Revista JaÉ - 6ª Edição: Há Margens

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Tutores da Agência José Roberto Severino Marcos “Bau” Carvalho Editora-chefe Madu Motta Repórteres Cinthia Maria Duda Santa Rita Isabel Queiroz Kamila Macedo Laura Pita Luanda Moreira Madu Motta Manoela Santos Marco Antonio Sá Marina Branco Pedro Beno Cordeiro Revisão Annandra Lís Esther Morais Joelma Stella José Roberto Severino Marcos “Bau” Carvalho Diagramação Marco Antonio Sá Apoio Nathalí Brasileiro Imagens de Capa Nega Lê (Capa) Amanda Barreto “Purple Paint” (Páginas Azuis) Diego Sei (Perfil) Marina Branco (Comunidade e contracapa)

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sumário Editorial

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Eixo

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Comunidade

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Páginas Azuis

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PerFil

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Raízes

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edit rial F

oi Mestre Didi quem descreveu as águas de Oxalá e sua importância ritualística no mito Nagô, reverenciado no preceito das águas que abre a procissão do Bonfim, a maior festa de largo de Salvador. Mas se em outros tempos as fontes e diques que existiam na cidade eram fonte incontestável da água, as coisas mudaram muito com o crescimento da cidade. A impermeabilização do solo, a ocupação dos vales, a ausência do tratamento do esgoto, lançado nos córregos espalhados por todo o território acenderam um alerta. Não seria nada novo, já que pelo menos desde os anos 50 Milton Santos já apontava para os perigos de uma expansão desenfreada da cidade de Salvador. As águas, tão presentes na vida religiosa, passam a ser pauta de preocupações nas reivindicações ambientais, no direito à vida e à saúde. Este foi o tema da revista Jaé deste semestre. Nossas agenciadoras e agenciadores foram a campo conhecer diversas abordagens do tema da água na cidade de Salvador. O resultado que apresentamos aponta para a multiplicidade de perspectivas relacionadas ao bem comum mais valioso para a vida: a água. Assim, nesta busca por diversas abordagens sobre o tema da água na cidade de Salvador, o sagrado que emerge nos usos das águas do Dique do Tororó se articula com o fascínio da produção de conhecimento gerada pela Oceanografia. A política pública de proposta de privatização dos serviços públicos de fornecimento de água e esgotamento sanitário se confronta com a abordagem artística enquanto ação micropolítica de reflexão sobre a presença dos corpos d’água em nosso cotidiano. E por fim usos da água como catalisadores de ações culturais e coletivas a partir de expressões como as Ganhadeiras de Itapuã consolidam a dimensão múltipla e integradora do tema da água em nossa sociedade. A importância dos mananciais não está isenta dos conflitos pelos seus usos, sendo locais da abundância que promovem encontros e interdições. Desta forma o desafio está posto para esta metrópole marcada pela modernidade e pela tradição, mas que precisa lidar com os usos cotidianos da água, sem negligenciar o futuro. Por José Roberto Severino e Marcos “Bau” Carvalho

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As descobertas da oceanografia por meio da prática do mergulho científico na Amazônia Azul. POR KAMILA MACEDO E MARINA BRANCO

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EIXO


Quanto mais fundo mergulhamos no oceano, com menos nitidez vemos as cores. E o azul do mar transforma-se em um preto que guarda incontáveis segredos. Nesta edição da JaÉ a editoria Eixo te convida a conhecer melhor a oceanografia, área do conhecimento acadêmico e científico que se dedica a pesquisar e desvendar os mistérios das águas e oceanos. A Oceanografia protagoniza inúmeras questões universitárias, monetárias, revolucionárias, inovadoras e até mesmo políticas. No Brasil, seu foco mora na chamada Amazônia Azul, relíquia da oceanografia mundial, muito explorada e pesquisada por meio da prática do mergulho científico e dos intensos estudos acadêmicos da área.

O QUE VOCÊ PENSA QUANDO Oceanografia na UFBA chegou à Universidade FedeSE FALA EM OCEANOGRAFIA? Araloceanografia da Bahia (UFBA) em 2004, como uma graPor ser uma graduação relativamente nova no cenário brasileiro, com menos de 50 anos desde sua introdução no país, muitas pessoas não sabem exatamente o que um oceanógrafo faz, nem quais são os resultados de suas pesquisas que são oferecidos ao mundo por essa profissão. Para embarcar nesse mundo subaquático que envolve uma área tão importante para o Brasil, país com um litoral continental, é necessário entender quais são os principais estudos que envolvem a formação de um oceanógrafo. O curso objetiva formar profissionais aptos na compreensão da dinâmica dos oceanos e zonas costeiras, pelos aspectos químico, físico, geológico e biológico. Com uma possibilidade de carreira ampla, os estudantes de oceanografia podem se especializar nas mais diversas áreas, tanto nas voltadas para a pesquisa no meio acadêmico, quanto para o mercado de trabalho.

Gerenciamento costeiro, mergulho científico e conservação da biodiversidade marinha são alguns dos vários campos que podem ser seguidos pelos oceanógrafos.

duação com duração mínima de quatro anos efetivados em oito semestres. Localizado no Instituto de Geociências, no campus Ondina, em Salvador, o curso oferece aulas seguindo uma grade organizada em formação básica, formação geral e formação profissionalizante. Na busca por entender a importância da água no meio acadêmico da UFBA, é necessário um aprofundamento nas práticas realizadas e dificuldades enfrentadas pela academia, que utiliza a cidade de Salvador como principal cenário para essas pesquisas. De uma perspectiva geográfica, a Bahia possui a maior costa litorânea entre todos os estados brasileiros. Em decorrência disso, Salvador, por ser a capital baiana, possui um vínculo especial com o mar. As águas que banham a cidade são protagonistas de histórias contadas pela população litorânea residente, e passadas de geração em geração. Tanto na religiosidade, quanto como forma de sustento, ou apenas por lazer nas praias, essa familiaridade com as águas do mar está presente em boa parte da vivência soteropolitana. No entanto, mesmo com essa proximidade com o litoral, não há nenhum campus ou laboratório na universidade com acesso direto às águas. Haveria alguma perda na formação dos futuros oceanógrafos? É possível reverter tal quadro?

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Pensando em uma alternativa para mudar isso, o professor Arthur Antônio Machado, atual coordenador do curso de oceanografia da UFBA, ajuda a transportar os conhecimentos aprendidos dentro da sala de aula para a sociedade a partir do seu grupo de estudos. Uma das alternativas utilizadas pelo professor é a prática do mergulho científico, ferramenta essencial para alcançar resultados na pesquisa acadêmica sem trazer malefícios ao meio ambiente. Com seus orientandos Arthur vai até o mar, ensinando os alunos a mergulhar e transformar o contato com a água em ações de pesquisa prática. Para Barbara Pedregal, que cursa oceanografia desde 2020 e também participa dessas atividades ministradas por Arthur, ter esse tipo de experiência é essencial para a formação de um oceanógrafo: “Se você estiver trabalhando com um bom professor, você terá uma experiência de oceanografia maravilhosa, porque você vai estar indo a campo, pegando as coisas na mão, saindo do seu dia-a-dia, das suas zonas de conforto, e vivendo a oceanografia de perto”.

Arthur Antônio Machado - acervo pessoal

Barbara Pedregal - acervo pessoal

O principal desafio, portanto, é o acesso. É preciso investimento para dar continuidade às pesquisas, projetos ou grupos de estudo, o que nem sempre é uma realidade nos interesses dos governos ao longo da história do país. Essa falta de investimentos pode tornar a oceanografia uma área inacessível para alguns estudantes, especialmente aqueles que precisam acessar as políticas de permanência e assistência. Há algumas restrições, principalmente financeiras, que contribuem para que ocorra esse tipo de distinção entre quem tem acesso e pode participar, e quem não tem e precisa recorrer a outros meios, o que foge totalmente do conceito de “Universidade para Todos”. Um exemplo dessa distinção vem pela própria prática do mergulho científico, que requer a realização de cursos profissionalizantes de mergulhador, garantindo uma execução segura dos trabalhos. Esses cursos, atualmente, precisam ser feitos fora da universidade e custeados pelos próprios alunos, que não têm como acessar a formação completa dentro da graduação. É aqui que vem a principal discrepância - quem pode pagar e realmente participar desses projetos? Felizmente, a possibilidade de tornar esse processo mais democrático existe e está sendo colocada em prática.

“U

ma das principais lutas que nós, do Colegiado de Oceanografia, estamos travando, é para ampliar a base do curso e formar professores, formar mergulhadores científicos aqui na universidade

- comenta o professor Arthur.

A oceanografia é o principal caminho em direção às descobertas marinhas, trazendo inúmeros benefícios para o futuro da vida humana e para o meio ambiente. Investir na área e na formação de profissionais capacitados para o trabalho é essencial, e pode ser uma chave para a preservação ambiental.

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O Mergulho Científico Para toda prática científica, é sorte grande existir um lugar de foco que concentre seu objeto de estudo. Um lugar rico, repleto de coisas a serem observadas, analisadas e descobertas. Na oceanografia, esse lugar existe - a Amazônia Azul. Com aproximadamente 4,5 milhões de quilômetros de extensão, a Amazônia Azul é a área aquática mais viva e biodiversa de todo o planeta. É rica em petróleo, minerais, fauna e flora marinha, e pertencente à Zona Econômica Exclusiva do Brasil - ou seja - a mina de ouro da oceanografia é brasileira. Toda a margem continental brasileira faz parte da Amazônia Azul, indo até 200 milhas costa afora, e colocando o Brasil em uma posição de destaque no cenário da oceanografia mundial. Entre várias disputas políticas pela posse da área, o governo brasileiro é o responsável pela realização de pesquisas, estudos e trabalhos na preciosa Amazônia Azul, que visam aumentar o campo de conhecimento da oceanografia, e elevar o nível de informação global acerca do mundo marinho.

MAPA DA AMAZÔNIA AZUL

Zona Econômica Exclusiva Extensão da Plataforma Continental

Assim surge o grande impasse da pesquisa oceanográfica: com a existência de uma área tão maravilhosa, é quase impossível não estudá-la, na tentativa de obter informações que poderiam revolucionar a ciência. Mas, sendo um local tão cheio de vida e biodiversidade, como se pode interferir nesse ambiente, ainda que para fins acadêmicos, sem remover amostras e promover o desequilíbrio ambiental? A solução para esse problema vem por meio da prática do mergulho científico. Mergulhando mar adentro, pesquisadores, professores, cientistas e alunos praticam a pesquisa pelo mergulho científico, que observa o ambiente e seus “habitantes” sem machucar, afetar ou desequilibrar o ecossistema que ali vive. Sem a necessidade de “arrastos”, pescas ou mortes, a informação é coletada por vídeos ou fotos, que permitem estudos aprofundados e sustentáveis da área. A prática do mergulho é essencial para descobertas científicas acerca dos 65% dos oceanos que ainda não conhecemos, ainda que se restrinja a profundidades de até 60 metros, cobrindo uma pequena parte da Amazônia Azul, que pode chegar a 4.500 metros de profundidade em alguns pontos. Ainda assim, é o mergulho científico o grande responsável pela monitoração da Amazônia Azul, já que, com o mergulho, é possível instalar equipamentos de medição e renová-los facilmente, acompanhando aspectos como temperatura, salinidade, turbidez, clorofila, oxigênio dissolvido, e até mesmo o pH da água, mantendo a Amazônia aquática viva e respirando.

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Na Bahia, um dos principais locais de concentração da Amazônia Azul, a oceanografia opera equipamentos de monitorização na Baía de Todos os Santos. Riquíssima em fauna, flora e natureza, a baía é o centro dos mergulhos científicos do estado, oferecendo a seus pesquisadores além de recifes, mais de 60 metros de profundidade disponíveis para mergulho e uma variedade imensa de formações geológicas. A baía é tão usada para mergulhar, que a prática se estende até ao mergulho amador, atraindo mergulhadores em busca de lazer. Por causa da alta frequência de imersões na área, um grupo de pesquisadores, do qual o professor Arthur Machado fez parte, chegou a disponibilizar os dados coletados oficialmente em um website público, o SiMCosta, uma grande rede de bóias coletoras de dados ambientais.

As Águas da Bahia Hoje, na Bahia, são realizadas diversas pesquisas, a exemplo do projeto Coral-Sol, do qual Bárbara é participante. Perigoso, rápido e invasivo, o Coral-Sol é uma espécie de animal com fase larval ou planctônica, ou seja, que vive na coluna da água, e outra fase adulta ou bentônica, que vive fixada ao substrato. Na década de 1980, a larva chegou ao Brasil, e vem se proliferando cada vez mais em áreas costeiras brasileiras, ameaçando a diversidade e vida dos ecossistemas marítimos. O projeto utiliza equipamentos sonográficos para localizar as áreas tomadas pelo Tubastraea spp, o Coral-Sol, e realiza mergulhos nos locais mapeados para monitorar, observar e controlar o crescimento desse coral, protegendo a cadeia produtiva e as comunidades marinhas de uma ameaça iminente. Outro projeto baiano que vem se desenvolvendo muito é o Cartas Sal, realizado por pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nesse projeto, o foco é no derramamento de óleo em mar aberto, sinalizando quais são as áreas de maior sensibilidade ao químico - que possuem corais, mangues, ou berçários de vida que raramente se recuperam de um derramamento intenso - e protegendo-as com mais afinco.

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Assim, é possível até mesmo direcionar manchas de óleo para praias menos suscetíveis e de limpeza facilitada, protegendo não só o ecossistema ambiental, mas também as comunidades próximas que interagem e dependem intimamente do curso de água em questão. Isso porque, ainda que a relação não seja óbvia, a vida social é intrinsecamente conectada à vida marinha, seja pelas consequências de desastres ambientais como derramamentos de petróleo, tsunamis e furacões, ou pelos impactos de uma festa, como o Carnaval, por exemplo, que por ser realizada próximo à costa, impacta no ecossistema marinho local. Sejam sociais, econômicas, acadêmicas, científicas, ambientais ou biológicas, as razões pelas quais a oceanografia é uma área essencial do conhecimento humano são incontestáveis. E se hoje a humanidade conhece apenas 35% da superfície terrestre, desconhecendo mais da metade do mundo submarino, não é exagero algum dizer que pode estar nos estudos do oceano o futuro do planeta.


comunidade

As crenças que margeiam o Dique do Tororó.

POR LUANDA MOREIRA E DUDA SANTA RITA

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Onde nascem as águas Quem é de Salvador ou mora na cidade, sem sombra de dúvidas, já foi ou no mínimo ouviu falar sobre o Dique do Tororó, cujo nome “Tororó” advém do tupi antigo. Com um espelho d’água de 110 mil metros quadrados e área ao redor de 2,5 quilômetros, o Dique é um espaço de relevância cultural e histórica reconhecida, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O Dique do Tororó é uma lagoa artificial e o único manancial natural de Salvador, é nele em que o curso da água se inicia. Um dos cartões postais mais famosos da metrópole soteropolitana, o Dique está presente tanto nas músicas, quanto na história do povo. Nesse espaço podemos encontrar 12 esculturas de orixás, obras feitas em 1996 pelo escultor Tatti Moreno. Oito dessas esculturas estão na água do Dique, são elas: as representações de Oxalá, Iemanjá, Oxum, Ogum, Oxóssi, Xangô, Nanã e Iansã; enquanto os monumentos de Oxumaré, Ossain, Logun-Edé e Ewá se encontram na calçada. Voltando alguns anos na história de Salvador, descobrimos que o Dique foi construído com a intenção de impedir que invadissem a cidade. Apesar dessa função inicial, o lago acabou auxiliando também no controle do fluxo de água pluvial, assim como na irrigação das plantações e abastecimento de água da população.

Uma coisa é clara: sua água é de importância inigualável tanto na vida dos moradores ao redor, quanto em Salvador como um todo.

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Uma das maiores presenças da manifestação candomblecista em Salvador acontece no lago, apelidado carinhosamente de Dique, próximo aos bairros Engenho Velho de Brotas, Garcia, Barris, Nazaré e Boa Vista de Brotas. É nas margens desse lugar de nascimento das águas que diversas religiões afro brasileiras encontram espaço para se expressar através de suas tradições sagradas, rituais e celebrações.

Manancial do sagrado Indo além do físico, o Dique está presente no plano ancestral, especialmente quando falamos de manifestações espirituais. O Candomblé é uma religião popularmente difundida na cultura da cidade de Salvador. Desde o processo pós-abolicionista, a comunidade, especialmente afrodescendente, vem elaborando um complexo processo de sobrevivência no território, mesmo diante de violências que acontecem, tanto do Estado, quanto nos espaços sociais. “O Dique sempre foi um lugar para mim, um lugar apaziguador. Nenhum momento de angústia, de aflição, naquela grama. Ficar observando, sentindo a brisa passar. É um espaço também de terapia, é bom que se diga. Então, ele está em um lugar estratégico, tem uma estrutura estratégica e apresenta os elementos que trazem essa tranquilidade, que trazem essa paz.” disse a entrevistada Sueli Conceição, Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente e Ebômi do Ilé Alaketu Ase Oju Omi. Quando escutamos nas músicas as frases “Nessa cidade todo mundo é D’Oxum”, cantada por Gerônimo; “Sou de Nanã Ewá, Ewá, Ewá É”, interpretada por Mariene de Castro ou até mesmo quando se observa o calendário de festas e feriados soteropolitanos, é notável a presença de marcadores do Candomblé auxiliando nas definições de datas e comemorações da cidade. Em uma breve pesquisa no site da Prefeitura de Salvador, é possível notar que de dezem bro de 2023 até


agosto de 2024 seis datas são dedicadas a ritos e celebrações oriundos do sincretismo entre as religiões católicas e de matriz africana, sendo um dos dias (08/12, dia de Nossa Senhora da Conceição da Praia) feriado na cidade. Tantos ritos, celebrações e comoções municipais, trazem à tona o sentimento de pertencimento fundamental para se estabelecer uma comunidade. Segundo o pesquisador Júlio Braga, “O Candomblé é, pelas suas características básicas, uma comunidade de natureza alternativa que permite a seus membros um estilo de vida bastante diferenciado do que se tem na sociedade mais ampla”. Entre enfrentamentos, coragem e fé de uma comunidade ainda crescente, é no pé das águas que todo preceito do Candomblé começa e também termina. Seja em rios, mares ou lagos, em marés altas ou baixas, em nascentes ou cachoeiras, todos os caminhos levam às águas. Foto: Marina Branco

Foto: Marina Branco

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“E

u fui no Tororó beber água e não achei (...)

A preservação desse patrimônio é fundamental. A manutenção do manancial afeta diretamente os religiosos que têm o lago como sagrado e utilizam dele para rituais, impedindo a manifestação dos adeptos devido às condições em que se encontra. Um exemplo disso é o estado do Dique no ano de 2017, quando representantes de casas de candomblé uniram-se no Ato em Defesa das Águas Sagradas do Dique do Tororó, protestando no local devido ao problema de mau cheiro e poluição. Para além de sua posição como ponto turístico, é preciso entender a posição e porquê a preservação das águas do Dique viabiliza um meio dessas comunidades fortalecerem sua ancestralidade. A intersecção entre biologia e religião aparece quando Sueli Conceição traz a visão ambiental, colocando a educação como caminho para que haja conscientização. “Educação para esse patrimônio imaterial, educação do ambiente. As pessoas trazem a educação ambiental no espaço diminuto, no espaço bem pequeno, como se fosse única e exclusivamente responsabilidade dos especialistas da área da biologia e afins”, afirma. Através da manutenção do Dique pode-se perpetuar a utilização pelas comunidades religiosas que vêem em suas águas e natureza ligação com o espiritual, como traz Sueli: “Então a água tem um papel importante nesses processos de construção espiritual, trazer vitalidade e purificação dos nossos corpos que estão neste lugar. E assim, quando chegamos nesses espaços religiosos, a primeira coisa que fazemos é tomar banho, porque a água tem esse papel fundamental de limpeza, de religação, de reconexão, de apaziguamento nas nossas vidas”.

Foto: Marina Branco

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PÁGINAS VERDES UIS

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CAPITALIZANDO GOTAS NOVO MARCO LEGAL RETOMA A AMEAÇA DE PRIVATIZAÇÃO DA EMBASA. Luiz Roberto Santos Moraes, especialista em Engenharia Sanitária e Ambiental, defende a importância da água enquanto direito humano, esclarecendo como torná-la uma mercadoria impactará a sociedade baiana. POR LAURA PITA E ISABEL QUEIROZ

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Promulgado em julho deste ano, o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020) incentiva a ampliação da participação privada em empresas como a Embasa. Atualmente, as ações que compõem a Empresa Baiana de Águas e Saneamento S/A (Embasa) são quase na totalidade do Estado. Porém, a Lei 24.362, sancionada em 2021, possibilita a concessão temporária de ativos da estatal a empresas privadas. Esse não é o primeiro movimento a favor da privatização do serviço de água e esgotamento sanitário no Estado da Bahia, afinal desde 1999 esse é um debate recorrente entre os governantes. Em entrevista para a Agência Experimental de Comunicação e Cultura, o professor Luiz Roberto Santos Moraes, especialista em Engenharia Sanitária e Ambiental, defende o trabalho e a importância da Embasa, alertando sobre os impactos ambientais, sociais, econômicos e políticos da sua privatização. “Atualmente, eu sou um usuário-cidadão dos serviços prestados pela Embasa. Mas, caso a empresa venha a ser privatizada, eu passo a ser tratado apenas como um cliente de um serviço que muda da lógica de me servir para a lógica da obtenção de lucro.”, alega Moraes. Para ele, é importante que a população esteja atenta aos diversos discursos e tentativas de privatização e se informe cada vez mais sobre o assunto, antes que seja tarde.

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Luto para que todas, todos e todes tenham direito à água, bem como para que os esgotos sanitários gerados sejam coletados, tratados e dispostos no ambiente de forma adequada, podendo ser pago uma tarifa módica pela prestação desses serviços públicos, sem qualquer tipo de distinção de classe, raça/ etnia e gênero.

Luiz Roberto Santos Moraes Engenheiro civil com PhD em Saúde Ambiental pela University of London, pós-doutorado nas Universidades de Barcelona-ES, de Lisboa-PT, do Minho-PT, da Beira Interior-PT e no Instituto Politécnico de Viana do Castelo-PT. Professor titular em Saneamento (aposentado) e Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia; Militante em Defesa do Saneamento Público


Atualmente, qual é o papel da EMBASA? A Empresa Baiana de Águas e Saneamento S/A é uma estatal que presta serviços públicos de saneamento básico, atualmente, em 367 dos 417 Municípios do Estado. Uma de suas principais funções é captar a água nos mananciais, transportá-la e tratá-la de maneira adequada e distribuí-la de forma contínua e com qualidade para a população, cobrando uma tarifa módica de seus usuários. Outra atribuição importante é a coleta, transporte, tratamento e disposição final, ambientalmente adequada, dos esgotos sanitários que geramos em casa. A importância da empresa fica ainda mais evidente quando se analisa o impacto positivo gerado na saúde e qualidade de vida da população usuária dos serviços prestados.

Como funciona a administração da Embasa? A Embasa é uma sociedade de economia mista de capital autorizado e tem como acionista majoritário o Estado da Bahia, com cerca de 99,7% do capital total da empresa. Uma parcela minoritária (0,3%) pertence a outros órgãos públicos - inclusive federais, como é o caso da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) - e de algumas pessoas físicas e jurídicas. Por isso, o Governo do Estado é quem determina a política da empresa, por meio de Conselho de Administração formado por sete membros: seis pessoas indicadas pelo Governador e um representante eleito pelos trabalhadores da empresa e aprovado pela Assembleia Geral.

O que significaria a privatização da Embasa para a lógica da empresa? Atualmente, o objetivo da empresa é prestar os serviços de água e esgoto para toda a população onde atua. Serviços públicos de qualidade, que possam melhorar a qualidade de vida, o bem-estar e a saúde das pessoas.

Se a privatização realmente acontecer, a lógica da Embasa passa ser a da mercadoria, de fazer negócios e ganhar dinheiro com a prestação dos serviços públicos de saneamento básico.

Quais movimentos o governo da Bahia realizou a fim de privatizar a Embasa? Os governos carlistas tentaram diversas vezes privatizar a Embasa, chegando a aprovar projeto de lei para essa privatização (Lei n. 7.483/1999) e a modificar dispositivos da Constituição Estadual. Os Municípios foram então autorizados a firmar convênios com o Estado, objetivando a desestatização dos serviços públicos de abastecimento de saneamento básico, com delegação simultânea da concessão de tais serviços à iniciativa privada. Fizemos muitas viagens pelo interior do Estado, acompanhando representantes do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente no Estado da Bahia (SINDAE), visando discutir com vereadores(as) e com a população em geral o prejuízo que seria causado se o projeto de lei fosse aprovado. Assim, conseguimos convencer vários Municípios a não aderirem à proposta. O Governo do Estado não conseguiu, então, concretizar a privatização da Embasa e aquela lei estadual continuou em vigor até 2013. Contudo, em setembro de 2021, Rui Costa encaminhou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei n. 24.362, que foi aprovado, alterando a Lei de criação da Embasa, apontando o caminho legal para a sua extinção como empresa pública/estatal. Agora, os ativos da Embasa não podem ser vendidos para o setor privado, mas podem ser concedidos por um período, como por meio de parceria público-privada (PPP).

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Qual é o argumento mais utilizado por quem defende a privatização da Embasa? A justificativa mais utilizada por quem defende a privatização da Embasa é que o poder público não tem recursos suficientes para investir em saneamento básico. Por isso, a empresa deveria fazer parceria com o setor privado, a fim de obter recursos para investimentos. Essa ideia precisa ser rechaçada, afinal a Embasa é superavitária, o que ela arrecada é mais do que ela gasta. Esse superávit é investido na ampliação e melhoria dos serviços públicos de saneamento básico. Com a privatização, o lucro seria destinado a pagar dividendos aos acionistas da empresa. A diferença é imensa. Agindo assim, haveria, cada vez mais, a transferência de recursos financeiros para o setor privado.

A privatização impactaria o acesso à água em regiões que já sofrem com a escassez? Caso a Embasa se torne uma empresa privada, cuja prioridade é a obtenção de lucro, a inclusão de localidades que já sofrem com a escassez de água seria ainda mais difícil.

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Quando procuramos conhecer quem ainda não têm a chamada “água encanada”, notamos que são residentes de pequenos Municípios, periferias, a população rural, quilombolas, indígenas, pessoas que têm maior dificuldade de pagar a tarifa do serviço público de água. A empresa que venha a explorar os serviços públicos de água e esgoto nessas regiões não irá prestá-los na mesma qualidade comparado a bairros onde reside a população de renda mais elevada. A lógica seria de atender melhor quem tem maior capacidade de pagamento.

Como a privatização da Embasa atingiria o meio ambiente? No processo de tratamento da água bruta (água do manancial), uma grande quantidade de impurezas é removida gerando lodo, constituído por diversos compostos orgânicos e inorgânicos, além de partículas presentes na água. Se esse resíduo for descartado de qualquer forma, poderá impactar negativamente o ambiente. O lodo da principal Estação de Tratamento de Água de Salvador (ETA João Durval) estava poluindo os rios da região. Mas a pressão de grupos ambientalistas, de universidades e da população interessada nessa questão fez com que a Embasa adotasse um manejo adequado para esse resíduo.

Acontecendo a privatização, a lógica da obtenção de lucro leva à redução de investimentos para o funcionamento adequado dos sistemas de esgotamento sanitário, o que pode conduzir ao lançamento de esgotos sanitários com tratamento inadequado no ambiente. Um exemplo recente é o da Inglaterra, onde os rios estão ficando cada vez mais poluídos, porque empresas privadas de esgotamento sanitário não querem investir para tratar os esgotos adequadamente.

De que maneira as cidades do interior serão afetadas pela privatização? Nos Municípios mais populosos, em torno de 20 cidades (como Salvador, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Jequié), a empresa arrecada mensalmente um valor maior que suas despesas, o que chamamos de superávit. A Embasa obtém lucro, porque o que ela ganha nessas 20 cidades supera o déficit nos outros 347. Acontecendo a privatização, a empresa privada trabalhará para aumentar ainda mais o superávit nos Municípios de população com maior capacidade de pagamento e certamente negligenciará as cidades do interior, menos populosas e com menor capacidade de pagamento em geral.


Na prática, a privatização de serviços de água já se revelou problemática? Em 2020, o Transnational Institute publicou o estudo The Future is Public, mostrando que, entre 2000 e 2019, 312 cidades do mundo tiveram seus serviços públicos de saneamento básico reestatizados. As empresas privadas não cumpriram os contratos e, então, os governos retomaram os serviços, muitas vezes tendo que pagar multas elevadas em razão da quebra contratual. Em Berlim, 1 bilhão de euros (5,3 bilhões de reais) estão sendo pagos pela prefeitura local à empresa privada por este motivo. Já no Brasil, sob o governo Bolsonaro, o Rio de Janeiro (que estava quebrado financeiramente) foi pressionado a privatizar sua companhia estadual de água e esgoto, a CEDAE, para que a União pudesse emprestar dinheiro ao Estado. Os Municípios foram divididos em quatro blocos, leiloados às empresas privadas possibilitando explorar por 35 anos os serviços de água e esgoto naquelas cidades, sob a condição de pagar um valor para o governo. Porém, parte desse dinheiro foi financiado por um banco estatal (o BNDES) a juros subsidiados. No final, quem irá pagar essa conta será a população, por meio da tarifa dos serviços. Essa é a lógica do capital, o mesmo pode acontecer com o futuro da Embasa.

Como impedir que a privatização de fato aconteça? Através de luta popular, luta social, luta política, luta jurídica. Atualmente, a Bahia dispõe de um Observatório de Saneamento Básico (OSB-BA), do qual participam diversas instituições. Eu espero que o OSB-Bahia, articulado com o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), a Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU), a Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), dentre outras entidades, tenha uma posição firme quanto a essa problemática. É importante que a sociedade esteja atenta aos diversos discursos e procure entender sobre o tema para se posicionar contra a privatização da Embasa, patrimônio do povo baiano.

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PERFIL

de onde vem pra onde vai Apesar de ser conhecida por suas famosas praias, Salvador também é um território onde águas urbanas contam histórias. Conheça o projeto CÓR-REGO, a chave do portal que conecta humano e natureza. POR MARCO ANTONIO SÁ E PEDRO BENO CORDEIRO

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O território que hoje conhecemos como Salvador surge de uma história marcada por conflitos. Os povos indígenas que sempre habitaram a região eram capazes de conciliar a vida coletiva com a preservação dos recursos naturais. A natureza incorporada às dinâmicas sociais permitia o desenvolvimento de tecnologias e saberes que foram reprimidos no cruel processo de colonização. Com a invasão portuguesa, o cenário se torna diferente e as formas construtivas importadas passam a sobrepor todo o ambiente. A gênese da capital baiana, ancorada no litoral, é marcada pelo uso das suas águas. O porto de Salvador, sempre visto como vital para a cidade, tem sua função preservada até os dias de hoje. As praias continuam sendo cenários belíssimos que ilustram os cartões-postais e representações da cidade. Porém, grande parte dos rios que correm por baixo de todo o concreto soteropolitano já fizeram parte das dinâmicas urbanas e, hoje em dia, essas águas ancestrais se encontram às margens da cidade. O ritmo de crescimento acelerado do último século, marcado pelo passado colonizador, trouxe enormes distorções ao desenvolvimento urbano, como a produção de lixo, desigualdade socioeconômica e velocidade de processos. Em meio a esse caos individualista, uma ideia acende o coração e a mente de duas pessoas: o projeto CÓR-REGO. Ele surge de um ensaio feito pelo fotógrafo Diego Sei (36) enquanto aluno do Pronatec¹. Desafiado a fotografar a orla da cidade, Diego, também surfista da praia do Barravento, percebe que, em dias de chuva, havia um rio que descia todo para o mar. Provocado pelo incômodo dos problemas que essa correnteza de poluição trazia, Diego segue o fluxo inverso das águas e faz seu ensaio denunciando o desaguar desse rio, mais conhecido pelos surfistas locais como “esgoto”.

Logomarca atual do Projeto CÓR-REGO

Ambos conectam seus trabalhos na criação do coletivo ARTE DO POVO, POVO DE ARTE. Assim, diante de uma urgência pulsante do presente, o passado é resgatado, em uma marcha rumo ao futuro. Todas as emoções gravadas na arte de Diego se unem ao estudo urbanístico de Camila e o projeto CÓR-REGO então renasce desse coletivo como a chave de um portal que conecta homem e natureza. O CÓR-REGO se propõe a lembrar dos rios da cidade. Rios que tiveram seus nomes esquecidos e hoje conhecemos por esgotos. Rios que estão aqui desde o início de todas as coisas e que guardam memórias da cidade. Essas memórias tamponadas são trazidas de volta à superfície em forma de arte pelo coletivo. Em um constante processo de descoberta, o CÓR-REGO vai (re)conhecendo cada rio que passa pela cidade de Salvador através de saberes ancestrais que, na maioria das vezes, não estão nos livros.

Passados oito anos, a arquiteta e urbanista Camila Contreras (33), que já possuía interesse na temática das águas urbanas, se depara com o ensaio de Diego, e, juntos, começam a unir forças. ¹ Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

“CRG” em pixo baiano / Por Diego Sei

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É o caso do rio que passa na Praia da Paciência, no bairro do Rio Vermelho. Você pode pensar que se trata de mais um esgoto devido ao estado de poluição. Porém, em conversa com Seu Antônio “Canhoteiro”, da colônia de pesca de Santana, ele revela que aquele é o Rio do Tabuleiro. Esse nome foi dado devido a uma pedra chamada tabuleiro onde ficavam as iscas para os pescadores exercerem seu ofício nas águas do rio, que antes, eram ricas em diversas espécies de peixes e mariscos.

Seu Antônio “Canhoteiro” segurando a placa feita pelo CÓR-REGO que dá nome ao Córrego do Tabuleiro Foto: Diego Sei

A margem Agora, nesta urbe aquática que é Salvador, a identidade do soteropolitano está atrelada às suas águas. O lema do Coletivo “ARTE DO POVO, POVO DE ARTE” se apresenta em diferentes linguagens e o CÓR-REGO, através das fotografias, de cartazes e de placas, serve de retrato ao que está ali, mas foi silenciado. Há uma fantasia na construção artística utilizada que nos convida para uma reflexão. A intervenção vem como forma de ressurreição, de revolta, de presença. Os rios, que se alongam pelos vales da cidade e acinzentam praias - desconstruindo a hegemonia azul das paisagens turísticas de Salvador - são marginalidades. O CÓR-REGO é, por gênese, em sua discussão e, acima de tudo, em sua estética: um movimento à margem. Foz do RIo Lucaia (Diego Sei - arquivo pessoal)

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Rio dos Seixos - Vale do Canela (Diego Sei - arquivo pessoal)

Diego, pixador desde os 15 anos, escuta a voz dos rios à noite e, através de sua arte, compartilha o som de latas e sprays com murmúrios onipresentes de um companheiro limítrofe. Eles estão sempre se comunicando. Mas, através da linguagem do CÓR-REGO, esse murmúrio do rio ecoa e se amplifica. O pixo, um dos principais agentes ligados à estética e ao propósito do coletivo, se conecta com as águas urbanas através da marginalidade. Marginal aqui não possui conotação pejorativa, mas representa tudo aquilo que é negado do modelo formal de produção das cidades. Aqueles que, assim como o CÓR-REGO, conseguem enxergar os rios da cidade pelo que são, estão deslocados do seu fluxo. Afinal, o “fluxo” parece ignorar os rios em detrimento dos esgotos. Mau cheirosos, sujos e contaminados, são como um problema a ser resolvido de forma rápida. Todos os anos, obras autorizadas pelo poder público soterram e apagam os rios que resistem, em meio às consequências ambientais alarmantes. O discurso pautado na ideia de progresso não se sustenta em meio aos apagamentos hidrográficos da cidade. É com as chuvas mais intensas que o rio revive e clama por seu espaço. A história do CÓR-REGO se mistura às histórias de seus transeuntes. Seu Cundu, pescador de longa data do Rio Vermelho, que ocupa o largo da Mariquita, denota a mudança que a figura de sua profissão passou. Assim como os rios, outrora cobiçados e saudados, hoje são reduzidos ao desprezo pela população, os pescadores, desse mesmo ecossistema, hoje são marginalizados.

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correntezas Salvador é composta por correntezas diversas. A falha geográfica que separa a cidade em duas proporciona muitas nascentes e a população sincretiza essas águas à cultura e à religiosidade. Seja na festa de Iemanjá ou na de Santa Luzia, nas músicas de Carlinhos Brown ou de Dorival Caymmi, desde o Dique do Tororó à Lagoa do Abaeté, a celebração às águas é parte da identidade soteropolitana. Na cidade onde “todo mundo é d’Oxum”, o povo sente, celebra e canta, porém, não enxerga. O CÓR-REGO age como esse condutor entre a cidade e o grande espelho que a envolve, para nos mostrar de onde viemos.

Foto: Diego Sei

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As correntezas que vêm de um lugar, vão para outro. “Para onde iremos?” é uma pergunta ainda sem resposta. Parece não haver remédio para os rios, muito menos as soluções rápidas que tanto ansiamos. O CÓR-REGO se propõe, então, a abrir uma possibilidade para o futuro e afetar nossos sentidos. Um retrato fantasioso, uma placa que dá nome a um rio soterrado, um manifesto artístico e um relato de um saudoso pescador são formas de conectar o nosso presente com o nosso passado e impulsionar esse diálogo para o futuro.


raízes

Canto de Resistência Três gerações das Ganhadeiras de Itapuã relatam como o seu vínculo com a Lagoa do Abaeté ajudou no processo de construção da identidade e conexão com o sagrado. Evelin, Verônica e D. Maria vão tratar do tema a partir de suas perspectivas, abordando sobre os desafios do passado e do presente. POR CINTHIA MARIA, MADU MOTTA E MANOELA SANTOS

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Constituído por senhoras, crianças e músicos locais, o grupo As Ganhadeiras de Itapuã surge da vontade coletiva de retomar, valorizar e fortalecer a riqueza da identidade cultural do bairro de Itapuã. Esse resgate se baseia na lembrança das tradições e festejos que marcaram a história desta antiga vila de pescadores, que hoje recebe o nome de Lagoa do Abaeté. De origem tupi, Abaeté significa homem forte, apesar de em seu significado ter um simbolismo masculino, a lagoa é marcada pela presença e identidade feminina, e foi importante para a construção de mulheres fortes, que utilizavam desse recurso natural para tirar o sustento de suas famílias. Falar sobre As Ganhadeiras é atravessar várias camadas que transpassam o tempo. Um dos primeiros registros se dá no início do século XIX, quando o regime escravocrata ainda era vigente no Brasil, e algumas mulheres escravizadas começaram a realizar trabalho de ganho. A modalidade, presente no Brasil imperial, era designada a pessoas libertas e escravizadas, que trabalhavam por demanda nos mais diversos serviços. O objetivo principal era a realização de pequenas tarefas com a finalidade de dar algum tipo de retorno financeiro para os escravagistas da época. Boa parte das ganhadeiras se dedicava às atividades de lavar roupas na beira da Lagoa do Abaeté. É nesse contexto, que boa parte da herança das ganhadeiras, criou raízes. Foi no bairro de Itapuã, que as atividades se centralizaram, realizando ali não só o trabalho de ganho, como também encontros das ganhadeiras e festejos religiosos que reuniam toda a comunidade local. A lagoa do Abaeté para as Ganhadeiras de Itapuã vai muito além de uma fonte de sustento, envolve também a relação com o sagrado e com a construção da identidade desse grupo. Hoje filhas, mães e avós da lagoa contam, a partir de suas perspectivas, relatos do passado e do presente. Mas de lá para cá o que mudou?

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Para onde vai minha lagoa? De acordo com relatos das Ganhadeiras, a lagoa extensa e de águas escuras é uma fonte que está diminuindo a cada dia. Segundo as Ganhadeiras por diversos motivos, entre eles a especulação imobiliária que cerca o depósito natural de água e as dunas próximas, além do descaso por parte do poder público. Dona Maria (77), uma das ganhadeiras com mais anos de vivência, conta a tristeza que é ver a cada dia a lagoa diminuindo: “Para o que eu vi e para o que eu estou vendo, o Abaeté me dá vontade de chorar, eu tenho tristeza em chegar lá e ver tudo aquilo tão vazio”. A relação não só dela, mas de todo o grupo com as águas doces situadas em Itapuã é marcada pela intimidade e sentimento de familiaridade, o que faz com que se sintam doentes também.

Dona Maria, Ganhadeira de Itapuã Foto: Manoela Santos

Mesmo com o medo que era sentido por parte de muitas pessoas quando viam a imensidão que formava a lagoa, o respeito e admiração eram cultivados principalmente por parte do grupos de lavadeiras, segundo a multiartista e ganhadeira Verônica (38) o impacto que era sentido ao sair do caminho de mata fechada e se deparar com aquele visual era impressionante. Para ela, com o passar dos anos, não somente a lagoa mas, também a relação das pessoas entre si e com a natureza estão ficando cada vez mais simplórias e esquecidas, algo que é somado ao apagamento da história do Abaeté. A falta da oralidade, da contação de histórias de avós para filhos e netos também são problemas que contribui com o apagamento da história do Abaeté e tudo que foi vivido lá: “Hoje não se acredita mais nos encantados e encantadas , os pais não falam para os seus filhos as histórias porque é importante manter essa oralidade viva, Os pais passarem para os filhos histórias, porque se hoje eu tô falando aqui, isso é porque eu escutei dos meus pais, mais ainda das minhas tias, da minha avó”. As ganhadeiras seguem vinculadas geracionalmente a esse bem soteropolitano, mesmo não lavando mais as roupas na beira da lagoa a conexão cultural e sagrada permanece, Verônica relata suas idas ao local para pedir, agradecer e se renovar “ Como eu a considero maior do que eu, embora eu sendo parte, eu clamo, entrego minhas dores e depois acaricio, agradeço ”. Evelin (29), neta de Dona Maria e também ganhadeira, conta igualmente que a relação dela é desde pequena brincando e vendo as mulheres lavando as roupas “Minha relação é desde criança, elas lavando e a gente pisava [nas roupas], eu nasci aqui, sou filha de Oxum, então sou apaixonada pelas águas doces, praticamente nasci no Abaeté. ” Apesar da poluição e da falta de preservação, além das problemáticas que rodam a lagoa, as dunas e adjacências como a construção de uma estação elevatória de esgoto, em 2021, na beira das águas, até mesmo a tentativa de mudança do nome para Campo santo por conta da recente utilização das localidades por pessoas de outras religiões, as Ganhadeiras continuam protestando pela preservação da Lagoa do Abaeté por meio da dança e da música.

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Meu Deus,

onde vou quarar minha roupa?

A relação das Ganhadeiras de Itapuã com a lagoa do Abaeté ficou abalada em 1991, quando as autoridades locais passaram a afirmar que o sabão utilizado pelas lavadeiras poluía a água e matava os peixes. Boa parte dessas mulheres ficaram sem fonte de renda e sem perspectiva de trabalho. “A dor maior não foi a questão do sustento, mas sim essa quebra de elo forçada. Então para mim e para elas essa foi a maior dor. Eu escuto elas falarem assim, que depois que as lavadeiras foram tiradas da lagoa, o Abaeté adoeceu”, relata Verônica. Verônica diz que foi um período muito difícil para o grupo, pois além de lavar roupas,a lagoa se constituiu como um importante espaço de convívio para as mulheres envolvidas no processo. Ali havia acolhimento, uma vez que elas levavam seus filhos, realizavam confraternizações e partilhavam suas vivências nas conversas cotidianas.“A lagoa do Abaeté ofereceu muita fartura, tanto de água, quanto de peixes. Então essas mulheres utilizavam e se serviam da Lagoa. Então ali elas lavavam, elas dialogavam, elas trocavam suas histórias, seus sentimentos diários. Na beira da lagoa, elas cantavam. Quantas canções saíram da beira da lagoa? A lagoa do Abaeté era e é até hoje uma verdadeira fonte de inspiração, de purificação, embora hoje as suas águas estejam poluídas”, afirma Verônica. As Ganhadeiras entrevistadas afirmam que foram pegas de surpresa pela notícia do afastamento. Segundo D. Maria, elas zelavam pela lagoa e por toda área ao seu redor, por compreenderem que o prejuízo da lagoa influenciava diretamente no trabalho delas. “As lavadeiras zelavam pelo Abaeté, porque elas precisavam disso aqui. Hoje em dia, sim, está abandonado.”, afirma D. Maria.

D. Maria narrou como os guardas eram bem rígidos naquele tempo e não permitiam que As Ganhadeiras chegassem perto da lagoa. Nesse contexto, a ganhadeira conta que em um dado dia uma senhora foi rudemente retirada da região para que a câmera de uma reportagem não a filmasse colocando a roupa no quarador, já que naquele momento era proibido. Segundo a entrevistada, As Ganhadeiras resolveram fazer um protesto em forma de música contra as opressões sofridas naquele período. A música “Seu guarda civil não quer” ainda hoje é tocada nas rodas de samba da cidade de Salvador e do recôncavo baiano.

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Seu guarda civil não quer a roupa no quarador/ Seu guarda civil não, quer a roupa no quarador/ Meu Deus, onde vou quarar, quarar minha roupa/ Meu Deus onde vou quarar, quarar minha roupa.


As Ganhadeiras também utilizavam o Abaeté para a realização de festejos, desse modo, o afastamento da lagoa representou o fim de algumas tradições. “Como eu estava dizendo a vocês, no dia 26 de julho, a gente rezava Senhora Santana. Era aqui que se fazia todo ano. Rezava Santo Antônio e no dia 2 de Fevereiro se botavam as oferendas. Reunia todo mundo, fazia feijoada e comia. A vida da gente era essa. Era uma vida ruim? Não era” , relata D. Maria. Apesar de não ter vivenciado boa parte dos momentos citados por D. Maria, Evelin reco-

nhece a importância da preservação dessas histórias para as futuras gerações. “Eu não vivi algumas dessas histórias, mas só de escutar, você acaba entrando no contexto e é como se tivesse vivido. Então eu me sinto na responsabilidade de segurar esse legado e de passar para as gerações que estão chegando. E aí a gente tem que estar firme para passar para as crianças esse legado, para que elas levem também e não acabe. Que cada um que vem chegando vai conhecendo a história, que hoje eu posso dizer que é a minha história e que elas vão dizer que foi a história delas também, mantendo assim a tradição.”

Netas de D. Maria com trajes das Ganhadeiras de Itapuã. Foto: Manoela Santos

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Foto: Labfoto (Facom)

REALIZAÇÃO

Agência Experimental de Comunicação e Cultura 2023.2

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