Revista JaÉ - 7ª Edição: Gerações

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Tutores da Agência

José Roberto Severino

Marcos “Bau” Carvalho

Editora-chefe

Isabel Queiroz

Repórteres

Áila Bruna

Gabriel Freitas

Isabel Queiroz

Larissa Oliveira

Luiza Barbosa

Luz Sganzerlla

Matheus Batista

Mariana Abreu

Nauan Sacramento

Rodrigo Cerqueira

Sophia Eloy

Uelton Fael

Venicius Rodrigues

Revisão

José Roberto Severino

Laura Pita

Marcos “Bau” Carvalho

Diagramação

Rodrigo Cerqueira

Imagens de capa e contracapa

Isabel Queiroz (Verso da contracapa)

Larissa Oliveira (Capa e Contracapa)

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Editorial

Cicatrizes Invisíveis: Reconstruindo Infâncias e Juventudes

A infância e a juventude deveriam ser tempos de descobertas, brincadeiras e sonhos. No entanto, para muitas crianças e jovens no Brasil, essas fases da vida são marcadas por violência, negligência e ausência de oportunidades. As cicatrizes deixadas por essas experiências são muitas vezes invisíveis, mas seus impactos reverberam por toda a vida. Este número da Jaé busca iluminar essas histórias, mostrando como o crime, a desigualdade e a falta de políticas públicas roubam infâncias, mas também como iniciativas transformadoras tentam reconstruir espaços de esperança e dignidade.

No Conjunto Penal Masculino de Salvador, no bairro de Mata Escura, encontramos histórias de vidas interrompidas pela violência e pelo crime. Mas também encontramos luz. O Projeto Socializa Brasil, fundado em 1991, atua como um farol de ressocialização, oferecendo assistência jurídica, saúde, educação e capacitação profissional para aqueles que buscam uma segunda chance. A criação de um infocentro, que permite a realização de cursos online, é um exemplo de como a tecnologia pode ser uma aliada na reconstrução de vidas. Essas iniciativas nos lembram que, mesmo em meio ao caos, é possível semear esperança.

Já na UFBA, o projeto Crianças na UFBA nos mostra que a universidade pública pode ser um espaço de inclusão e reconstrução de memórias. Fundado em 2015 pelas professoras Juliana Prates e Adriana Ferriz, o projeto abre as portas da universidade para crianças, transformando o campus em um território de brincadeiras, aprendizado e convívio coletivo. Como diz um provérbio africano, “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. E é exatamente isso que o projeto propõe: reconstruir a aldeia, resgatando o sentido de comunidade e cuidado que muitas vezes se perde em meio à correria do mundo moderno.

No município de Valença, no baixo-sul baiano, o Instituto Mutá surge como um refúgio para crianças vulnerabilizadas. Em um contexto marcado pela violência e pela ausência do poder público, o instituto oferece não apenas assistência, mas também um espaço de acolhimento e transformação. O Mutá nos lembra que, mesmo nas realidades mais desafiadoras, é possível construir pontes para um futuro melhor.

Mas e quando a infância é roubada? Quando as fases da vida são atropeladas por questões de classe, raça, identidade e sexualidade? Neste cenário, práticas culturais como o candomblé e a cultura ballroom emergem como territórios de ressignificação. O candomblé, com seus rituais de dança, música e oralidade, oferece um espaço de cura e autoaceitação.

Já a cultura ballroom, nascida na comunidade negra e LGBTQIAPN+, permite revisitar a infância por meio da autoexpressão e da performatividade. Essas práticas nos mostram que, mesmo quando a infância é atravessada pela vida adulta de forma precoce, é possível encontrar caminhos de reconstrução e pertencimento.

No entanto, não podemos ignorar o preocupante cenário de evasão e abandono escolar no Brasil, como destacado pela psicóloga da educação Lygia de Sousa Viégas. Ela nos fala de exclusão e ausências de políticas públicas efetivas para a educação no Brasil. Esse abandono gera impactos profundos e duradouros, perpetuando ciclos de desigualdade e exclusão. Precisamos urgentemente de políticas públicas que garantam o direito à educação pública de qualidade para todas as crianças e jovens, independentemente de sua origem.

Este número da Jaé é um convite para olharmos para as cicatrizes invisíveis da infância e juventude, mas também para as iniciativas que tentam reconstruir esses espaços de esperança, lembrando que há sempre alguém lutando para que crianças e jovens possam viver com dignidade e sonhar com um futuro melhor.

Por: José Roberto Severino

Agência Experimental de Comunicação e Cultura 2024.2

Comunidade

Por: Gabriel Freitas, Larissa Oliveira e Rodrigo Cerqueira

Há um provérbio africano que diz: “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. O convívio coletivo é essencial no cuidado físico, emocional e intelectual das crianças. Em um mundo cheio de ocupações e que o tempo é sinônimo de dinheiro, a luta se torna exaustiva: trabalho, família, pagar contas, alimentação e, claro, a educação dos filhos. Assim, nem sempre há condições para que se tome todos esses cuidados. Em outra época, a convivência com a vizinhança na rua; hoje, além da rua e seus medos, o celular e outras distrações.

Localizado no bairro da Bolívia, no município de Valença, o Instituto Mutá atende centenas de crianças vulnerabilizadas. Em uma realidade de violência e desprezo do poder público, a instituição é um alento para famílias do município localizado no baixo-sul baiano. Quando iniciou, em 1997, o projeto funcionava em uma perspectiva assistencialista e emergencial.

A instituição foi então reconhecida pela Visão Mundial, organização que desenvolve projetos para assegurar direitos de crianças e adolescentes. Com a consolidação de uma parceria, a Visão Mundial possibilitou que o Mutá crescesse e pudesse alçar voos maiores. “No Primeiro momento foi bastante assistencialista mesmo. Mais de 400 casas foram construídas e reformadas, nesse período, foram entregues cestas básicas”, disse a coordenação do projeto. A preocupação do Instituto foi além e também passou a se preocupar com problemas relacionados ao controle de água e saúde da comunidade: “recebemos filtros para que tivesse água de qualidade. Outras situações foram identificadas, como resolver de forma particular a compra de remédios para moradores com doenças crônicas. Na época, tinha muita dificuldade com o atendimento de saúde”, completou. Em 2013, o Instituto Mutá também passou a ter uma aliança com o Centro de Atendimento ao Desenvolvimento (CADI), tornando-se Instituto Mutá/CADI Valença.

Em uma realidade de desigualdade social, falta de oportunidades e problemas crônicos na distribuição de renda, crianças e adolescentes de Valença permaneceram vulneráveis à violência emergente. Desafios enfrentados há quase 30 anos pelo Instituto Mutá perduram e continuam sendo a principal luta da instituição: cuidar das crianças e adolescentes.

O uso excessivo das redes sociais trouxe consigo mudanças que moldam o cotidiano da sociedade brasileira, além de uma nova profissão: os influenciadores digitais. A prática dessa atividade passa pela exposição de sua vida pessoal, ostentação de bens e padrões comerciais, nem sempre condizentes com as realidades locais. Com isso, surge a problemática: como tais padrões de consumo podem ser alcançados por quem não consegue atender às condições básicas de sobrevivência, mas passa a almejar uma vida vendida como perfeita? Com a ausência dos familiares e de uma rede de apoio, causada por diversos motivos, como o da jornada de trabalho, o uso do tempo nas redes sociais, transforma o que seria um escape para manter os filhos e filhas ocupados, em mais uma preocupação.

Foto: Instituto Mutá/CADI Valença

Quem pode auxiliar?

O desejo de ter um espaço para desenvolvimento cognitivo e social das crianças é almejado por muitos pais. Entretanto, em um local onde 11 mil pessoas vivem na extrema pobreza, a falta de políticas públicas para o contraturno escolar impede que as crianças frequentem uma escolinha de futebol, um curso de dança ou uma atividade cultural. Nessa realidade, o Instituto Mutá torna-se essa opção, levando dignidade e cidadania para essas crianças. “Temos o cuidado de oferecer oficinas de dança, música e robótica, além de outros cursos profissionalizantes. É importante ressaltar sobre a questão da tecnologia também. Acredito que um dos principais pontos para trazer uma nova visão e nova utilidade para a tecnologia, é o caso da oficina de robótica. Eles conseguem ter esse contato com a tecnologia, não apenas para o entretenimento, mas para fortalecer conhecimento, semear novos sonhos de que eles podem ir adiante com a tecnologia. Pode abrir portas para eles”, destacou o representante do instituto.

Essa alternativa se torna uma opção que não estava ao alcance da família, como disse Nilma, mãe de uma criança, de 9 anos, integrante da instituição: “No Cadi, ele possui acesso à tecnologias que ajudam o seu desenvolvimento lúdico, com o acompanhamento de um profissional. Sendo que, fora do Cadi, ele não teria essa facilidade, por conta dos recursos disponíveis e também tempo de acompanhamento para realização dessas atividades”. Quando questionada sobre como enxerga a influência do mundo digital, ela demonstrou descontentamento. “Acho negativo, pois as crianças expostas a influenciadores digitais, como blogueiros, podem começar a idealizar o estilo de vida que essas figuras promovem, o que frequentemente envolve produtos de consumo, padrões estéticos, gerando uma visão superficial da realidade. Isso pode gerar pressão por consumo ou busca desnecessária por validação”.

Foto: Instituto Mutá/CADI Valença

A Transformação Através das Oficinas Sócio-educativas

As oficinas incluem práticas como musicalização, dança e robótica. Além de desenvolverem habilidades específicas, elas criam espaços seguros e acolhedores, que incentivam a criatividade, o trabalho em equipe e a descoberta de novos talentos. Essas atividades são oferecidas de forma contínua desde a criação da instituição e foram estruturadas com o objetivo de proporcionar um desenvolvimento integral às crianças e adolescentes, abrangendo aspectos cognitivos, emocionais, espirituais e sociais.

Um destaque é o trabalho de prevenção à violência, especialmente em um contexto em que o aliciamento ao tráfico é uma realidade para muitos jovens da comunidade. Por meio dessas atividades, o Instituto busca não apenas proteger, mas também capacitar crianças e adolescentes para um futuro diferente, cheio de possibilidades e longe da criminalidade.

Ressignificando a Tecnologia como Ferramenta de Aprendizagem

No mundo contemporâneo, o Instituto tem se destacado por promover uma nova maneira de pensar e usar esses recursos. Ao invés de deixar que a tecnologia seja vista apenas como um meio de distração, a organização aposta em um trabalho de ressignificação, transformando-a em uma ferramenta poderosa de aprendizagem e desenvolvimento.

As oficinas de robótica são um exemplo inspirador desse movimento. Mais do que ensinar conceitos técnicos, essas atividades convidam crianças e adolescentes a desenvolverem projetos práticos que estimulam a criatividade, a inovação e o pensamento crítico. Nesse processo, a tecnologia deixa de ser apenas um canal de entretenimento para se tornar um espaço de descoberta e construção de conhecimento.

O Instituto também reconhece a importância de envolver as famílias nesta jornada. Por meio de ações de conscientização, pais e responsáveis são orientados sobre como equilibrar o uso de dispositivos eletrônicos e como incentivar o uso consciente da tecnologia. Essas práticas não apenas promovem um consumo mais saudável de conteúdo digital, mas também reforçam a relevância de interações humanas e do fortalecimento de laços sociais no desenvolvimento integral das crianças.

Ao redirecionar o uso da tecnologia para fins educacionais, a organização amplia horizontes para jovens em situações de vulnerabilidade, mostrando que é possível transformar desafios em oportunidades. A tecnologia, quando usada com propósito, torna-se uma aliada na criação de caminhos que conectam o aprendizado ao futuro, abrindo portas para um mundo de possibilidades.

Foto: Instituto Mutá/CADI Valença

Envolvimento da Comunidade: Uma Parceria Pela Infância

O envolvimento da comunidade vai muito além do reconhecimento. É uma parceria contínua, na qual pais, educadores e profissionais unem forças para garantir que os direitos das crianças sejam protegidos e que cada criança atendida tenha a oportunidade de se desenvolver plenamente. Essa conexão entre instituição e comunidade transforma o CADI em um exemplo de como é possível construir, juntos, um ambiente de oportunidades e crescimento. “Os professores e pais notam a diferença e se interessam em participar e conhecer”, destaca a assistente social da equipe.

Mais do que atender demandas, o CADI inspira uma transformação coletiva. Ele mostra que, quando a comunidade se une, nenhuma dificuldade é grande demais para ser enfrentada – especialmente quando a infância está em jogo. O CADI não apenas protege, mas também constrói autonomia, demonstrando que o futuro começa agora, com a ação de quem acredita no poder do cuidado e na força da união. “O CADI nos permite sonhar. Viver num espaço de violência, e ter a oportunidade de conhecer outras realidades dentro da arte e aprendizagem, transformou a minha vida.”, refletiu a pedagoga que passou pela ONG na infância. “Busco mudar a vida de outras crianças” , concluiu.

Foto: Instituto Mutá/CADI Valença

PÁGINAS VERDES

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LYGIA DE SOUSA VIÉGAS, PSICÓLOGA DA EDUCAÇÃO, AFIRMA:“À MEDIDA EM QUE OS POBRES ENTRAM NA ESCOLA, A CLASSE MÉDIA, QUE É A CLASSE DOMINANTE, SAI, E O PODER PÚBLICO DEIXA DE INVESTIR NELA.”

A especialista do tema, analisa o preocupante cenário de evasão e abandono escolar no Brasil, destacando os impactos profundos e duradouros dessa realidade na formação e no futuro de crianças e adolescentes ao longo das décadas.

Por: Áila Bruna, Nauan Sacramento e Uelton Fael

Acervo pessoal/Lygia Viégas

Foto:

Quando o assunto é infância, a escola se torna o segundo lar de muitas crianças. É onde fazemos amigos, construímos nossas identidades como cidadãs e cidadãos, temos a oportunidade de vivenciar um dos maiores instrumentos de socialização já criados. Mas o que acontece quando o ponto central dessa equação - a criança - não está lá? Em 2021, durante a pandemia da Covid-19, cerca de 5,9% das crianças e adolescentes estavam fora das salas de aula. Nos anos seguintes, as matrículas na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e no ensino técnico cresceram exponencialmente, segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP). Esses números e estimativas só evidenciam a necessidade de se debater o lugar das crianças na sociedade e os fatores que as afastam da escola. Lygia Viegas, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA), com experiência na área de psicologia escolar e educacional, conversou com a Agência Experimental de Comunicação e Cultura (AECC) e pontuou os aspectos que tornam a permanência das crianças na sala de aula uma luta constante, marcada por desafios que ameaçam o direito à educação e o desenvolvimento pleno na infância.

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- Quais grupos

LYGIA DE SOUSA VIÉGAS

Possui Graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1999), Mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (2002) e Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (2007). Foi bolsista de pesquisa FAPESP de Iniciação Científica, bem como de Mestrado e Doutorado. É Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced - UFBA), em regime de dedicação exclusiva, onde é professora de graduação e pós-graduação. Orientadora de Mestrado e Doutorado, tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Escolar e Educacional e Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: psicologia escolar e educacional em uma perspectiva crítica, escola pública, políticas sociais e medicalização da vida escolar.

foram historicamente mais afetados pela exclusão e pelas políticas de afastamento da educação no Brasil?

A educação no Brasil sempre foi marcada pela exclusão, especialmente para os mais pobres e para a população negra. Há pouco mais de 100 anos, 90% da população era analfabeta. A educação não era vista como prioridade. Mesmo após a abolição da escravidão e a Proclamação da República, a educação pública demorou a se expandir. O Ministério da Educação surgiu nos anos 30, mas o impacto real na população foi limitado.

Na década de 60, ainda tínhamos 70% de analfabetos, evidenciando a distância entre o discurso de educação para todos e a realidade. A verdadeira democratização da educação começou nos anos 80, com o fim da Ditadura Militar. Mas, nesse período, a classe média, temendo a presença dos filhos dos mais pobres, conseguiu se afastar das escolas públicas, que ficaram superlotadas e com infraestrutura precária. Essa exclusão ainda persiste hoje, com um forte preconceito racial e de classe. O fracasso da educação, muitas vezes, não considera as falhas de um sistema que foi historicamente estruturado para manter a população em um estado de ignorância, favorecendo a classe dominante.

2- Como a falta de acesso à escola pode afetar o desenvolvimento e a formação crítica de crianças e adolescentes na vida adulta?

A falta de acesso à escola impacta profundamente a vida das pessoas, pois reduz as oportunidades de trabalho e autonomia em uma sociedade letrada. É importante distinguir entre o conhecimento adquirido na escola e a verdadeira capacidade intelectual, que todos têm e desenvolvem para enfrentar as demandas da vida. Pessoas de diferentes origens e classes sociais criam estratégias de sobrevivência muito inteligentes, mas muitas vezes a sociedade mina essas iniciativas.

Apesar disso, a escola é essencial, especialmente para uma população pobre, pois é através dela que se acessa o conhecimento necessário para compreender a sociedade. No entanto, o sistema educacional tem falhado em promover uma educação crítica, como nos ensinou Paulo Freire, ao formar cidadãos passivos e omitir as lutas sociais e a verdadeira história do Brasil, perpetuando uma visão distorcida que favorece os interesses dominantes. Por isso, é crucial que as escolas formem cidadãos conscientes e críticos. Infelizmente, a educação atual ainda incentiva a competitividade entre os estudantes, o que prejudica a percepção de que somos uma classe oprimida e que precisa se unir para mudar a realidade. Romper com o pensamento dominante é difícil, mas não impossível.

3- Algumas coordenações escolares no Brasil visitam as casas de alunos ausentes. Essa prática ajuda a reduzir os índices de evasão escolar?

Se a escola for até a casa dos alunos, pode ajudar, mas tudo depende das relações de confiança que se estabelecem. Não é simplesmente uma questão de bater à porta, mas de como a escola e a família se relacionam. A evasão escolar muitas vezes não é culpa apenas da família ou do aluno, mas de um processo sutil de “expulsão” que acontece ao longo dos anos, com reprovações e um ambiente que faz o aluno se sentir excluído. Isso começa quando o aluno enfrenta dificuldades, e a família, vendo que a escola não ajuda, decide tirá-lo para o trabalho. O programa Bolsa Família, por exemplo, tentou garantir que as crianças frequentassem a escola, mas, mesmo com o auxílio, as crianças ainda eram maltratadas e rejeitadas nas escolas. O problema não é só a pobreza, mas a maneira como a escola trata esses alunos. Para combater a evasão, é preciso repensar como a escola lida com os alunos de classes mais baixas e garantir um ambiente mais acolhedor, sem preconceitos.

4- Com a sua especialização em psicologia escolar, como é para você lidar e presenciar os momentos que antecedem a saída de uma criança ou adolescente da escola? Existem sinais ou traços que indicam que isso pode acontecer?

É realmente como um relacionamento que está azedando. Você pode dizer que as coisas estão erradas. Existem sinais mas não existe uma regra rígida e rápida. Você começa a ver o aluno se retirando e, infelizmente, você vê professores que ficam realmente aliviados quando o aluno para de vir, dizendo coisas como “bom, eles só vieram para atrapalhar”. O próprio sistema escolar cria esses problemas e depois se vira e culpa a família por não se importar. As escolas usam o que chamo de “marcadores de opressão”. Eles analisam o gênero, raça, classe, orientação sexual de um aluno, se ele tem uma deficiência, se é indígena ou de uma comunidade marginalizada, e os usa para prever o fracasso.

Por exemplo, as escolas muitas vezes expulsam indivíduos transgêneros, levando a menos deles permanecerem na escola em comparação com alunos cisgêneros. Não é que eles não queiram aprender, é que as escolas simplesmente não aceitam quem são. É como se as escolas se sentissem mais confortáveis vendo dois meninos brigando do que dois meninos demonstrando afeto. Eles acham que brigar é normal, mas punem qualquer conexão amorosa. Isso transforma a escola em um lugar hostil para os alunos LGBTQIA+, eles são rotulados e sentem que não pertencem a aquele ambiente.

5- Vendo como o ensino brasileiro vem sendo precarizado ao longo dos anos, o que você acha que pode ser feito para ocorrer uma melhora?

Acho que é fundamental que haja um investimento sério em educação, que ainda está muito precário no Brasil. Durante o governo Bolsonaro, havia uma expectativa de que a gente conseguisse parar o avanço da barbárie, mas o que vemos são os impactos negativos ainda presentes na nossa realidade. A nossa história sempre foi marcada por autoritarismo e desvalorização da educação e isso não mudou. As universidades estão com recursos escassos e mal conseguem garantir o básico, como papel higiênico, o que é inadmissível. Para mudar essa realidade seria necessário reverter, por exemplo, o novo ensino médio, algo que este governo não tem interesse, porque tem alianças com empresários. Também é urgente investir nas universidades, pois são elas que formam profissionais para diversas áreas e muitos alunos, especialmente os cotistas, têm um compromisso maior com a sociedade, buscando trabalhar no serviço público, devolvendo o que receberam. Sem um investimento real, não vamos sair do lugar, e nosso trabalho individual será limitado. Precisamos de um investimento verdadeiro, que envolva recursos financeiros, para que a educação no Brasil possa realmente mudar.

6- Existem casos em que o aluno não deseja estudar por vontade própria, mesmo não passando por difículdades. Qual a razão para isso

existir?

Nos anos 90, uma pesquisa mostrou como a experiência escolar pode mudar a visão das crianças. Quando perguntaram para crianças que nunca tinham ido à escola para desenharem e contarem uma história sobre ela, os desenhos eram cheios de alegria, com escolas coloridas e tudo sorrindo. Mas, depois de um ano na escola, os desenhos mudaram. As escolas passaram a ser retratadas como castelos com grades e portas fechadas, e as histórias se tornaram sobre professores bravos e uma escola rígida. Isso mostra como a escola pode impactar negativamente a visão das crianças.

Outro exemplo foi um ex-aluno meu da faculdade, Liomar Lima, que compartilhou sua experiência de racismo na escola, desde a falta de cadeiras até a ausência de passeios. Ele se lembra do único passeio que teve, para a base naval de Aratu, que marcou sua infância. Após terminar o ensino médio, ele decidiu que nunca mais estudaria, mas, após conhecer um colega no projeto Pracatum que o inspirou, decidiu voltar a estudar e entrou em uma faculdade particular e acabou assumindo uma grande dívida. Formado em psicologia, ele fez um mestrado, focando em entender como o fracasso escolar afeta jovens negros e periféricos e o fazem desistir da escola, porém, com o surgimento da pandemia, ele não pôde entrevistar os adolescentes, então acabou escrevendo uma autobiografia, refletindo sobre sua própria trajetória escolar.

Crianças na UFBA: Reconstruindo

Espaços e Memórias na Universidade Pública

Por: Isabel Queiroz e Mariana Abreu

A expressão “ocupar a Universidade”, amplamente utilizada nos últimos anos, se refere à inclusão de novos perfis de estudantes na Universidade Pública e à luta pelo direito à igualdade de acesso ao conhecimento que a instituição oferece. Por meio do projeto de extensão, Crianças na UFBA o termo ganhou mais um significado: a presença das crianças como parte desse espaço.

Fundado em 2015 pelas professoras Juliana Prates, da Faculdade de Psicologia da UFBA, e Adriana Ferriz, do curso de Serviço Social da mesma instituição, o projeto ocorre no primeiro sábado de cada mês. A ideia surgiu durante a greve da UFBA que ocorreu naquele ano, em uma atividade envolvendo a Faculdade de Educação, o sindicato e a creche da UFBA. Juliana observava crianças brincando na praça das Artes, no campus de Ondina, durante a ocupação quando começou a pensar sobre o projeto.

Naquele momento, ela percebeu o potencial pouco explorado da Universidade como espaço público: “A gente tem um espaço que é protegido, no sentido de ter lugar para estacionar, um ambiente amplo onde as crianças podem brincar diariamente com segurança patrimonial e ao mesmo tempo, dentro daquela universidade, estávamos protegidos do capitalismo, ou seja, do consumo”, compartilha a professora, ao relembrar o início do projeto que completará 10 anos em novembro de 2025.

A Infância e a Universidade: Um Espaço Compartilhado

O objetivo do projeto sempre foi muito claro para as professoras: a ocupação do espaço público por crianças e famílias, levar a comunidade externa para dentro do campus e aproximar o ambiente acadêmico, que sempre pareceu tão distante para muitos. O Crianças na UFBA busca a valorização da infância de forma igualitária, com princípios como a desinstitucionalização do tempo livre, ou seja, crianças com liberdade de brincar sem um direcionamento pedagógico: “Eu não queria ter mais um espaço pedagógico. Não era a lógica de fazer um ateliê ao ar livre, de propor uma atividade pedagógica para as crianças. Era que elas pudessem ter tempo livre, inclusive para não fazer nada. Que a criança pudesse sentar lá na praça das Artes e ficar olhando para as árvores. Para mim, já estava cumprindo a função do projeto. Era retirar um pouco a ideia pedagógica das atividades com as crianças”, comentou Juliana.

Os outros princípios que regem o conceito do projeto de extensão envolvem: sustentabilidade, solidariedade, diminuição do consumo e valorização das brincadeiras tradicionais. Todos esses presentes na organização do evento, desde a proibição de vendas no campus, enquanto as famílias estiverem presentes, tanto no incentivo de que levem seus próprios lanches para compartilhar com os outros, fomentando a ideia de convívio coletivo e evitando a criação de uma hierarquia entre quem pode e quem não pode pagar por um lanche no ambiente.

Essas especificações seguem uma linha para que haja além do ato de preservação de cuidado não só da criança, mas de quem cuida também. A ideia é que não exista o sentimento de inferioridade em relação às crianças, ou a suas vivências contemporâneas, mas sim de incentivo de desfruto do que é de direito para uma infância saudável.

O Papel da Extensão na Formação Acadêmica

A palavra “infância” deriva do latim, in-fans, que significa “aquele que não fala”. Para Sarmento, pesquisador com ênfase na sociologia da infância, essa origem atribui a essa fase um sentido negativo, associando-a à incapacidade, fragilidade e inferioridade das crianças. Um dos propósitos do projeto Crianças na UFBA é justamente evidenciar a criança como um ser pleno — uma afirmação simplória e aparentemente óbvia, mas que, na prática, muitas vezes não é reconhecida dessa forma.

Na vida acadêmica, os ensinamentos dos projetos de extensão vão além do que a teoria poderia proporcionar. João Pedro Nascimento, 23 anos, monitor voluntário e estudante de Psicologia, relata que a experiência de estar nas atividades ampliou sua visão dessa fase da vida: “O projeto mudou minha percepção sobre infância, nesse sentido de que para cada criança é preciso um cuidado específico, porque elas vão ter suas demandas, necessidades e, portanto, é preciso ser cuidadoso nessa abordagem, para conseguir respeitar a vontade de cada criança, que é um valor muito importante para o projeto. Se a criança não quiser fazer nada e só ficar parada, é tão válido quanto quem quer explorar todos os lados”.

Para ele, seu maior aprendizado tanto profissional quanto pessoal foi compreensão das individualidades. “As formas que a gente interage é sempre buscando compreender e olhar para além do indivíduo, entender que talvez a criança não queira brincar, mas não significa que ela esteja totalmente desligada, ela pode querer desenhar, vestir uma fantasia ou fazer qualquer outra coisa”, ressalta João. O estudante ainda destaca que esse cuidado vai além das crianças, mas também com a relação com os pais, criando vínculos e fortalecendo essas identidades.

Foto: Acervo pessoal/Crianças

O projeto como uma ligação: Universidade e População

O objetivo é que o projeto não seja visto como temporário ou o único elo existente entre as crianças e a UFBA. A intenção é criar uma consciência de que as famílias possam ocupar independente do projeto: “Na nossa concepção a gente poderia deixar de existir, não existir mais o projeto, mas que as pessoas continuassem a usar o espaço da universidade para usufruí-lo. Pudessem andar de bicicleta, pudessem sentar para ler um livro, pudessem fazer disso, do espaço, como o espaço da rua, um espaço público que todos podem ocupar”.

Porém, mesmo com a iniciativa de aproximar o público externo da Universidade, os muros que cercam a instituição ainda são vistos pela maioria da população como instranspassáveis. Na Bahia, de 1,6 milhão de pessoas entre 18 e 24 anos, 85% nunca passou pelo ensino superior. Esses dados divulgados pelo IBGE no módulo de Pesquisa da PNAD, continuam escancarando o abismo educacional presente no Estado que distancia uma grande parte das famílias de sequer ter um contato com um projeto como o “Crianças”.

Parcerias com outros cursos da UFBA e divulgações em postos de saúde são artifícios utilizados pelas professoras para dar uma maior visibilidade ao projeto e alcançar o maior número de pessoas: “A gente fez uma parceria junto com a residência multidisciplinar em Desenvolvimento Infantil do Instituto de saúde coletiva e passamos a divulgar o projeto em unidades de saúde da família, em postos de saúde, além de fazer projetos específicos com instituições que atendem crianças e adolescentes”.

Um novo olhar para os espaços públicos e o não incentivo ao consumismo

A utilização do espaço público, sem uma lógica capitalista e consumista por trás, é visto pela professora como algo que mexe com as relações familiares. “Uma vez uma criança entrou e quando ela tava indo embora, falou assim para o pai: ‘Hoje foi a primeira vez que a gente não brigou. Você não me disse “não” nenhuma vez’. Isso tem a ver com dinheiro, né? Assim, nos espaços públicos, você diz não o tempo inteiro, porque tem uma interdição financeira ali, tem uma tensão que é mediada pelo capital”, evidencia.

Foto: Acervo pessoal/Crianças na UFBA

Infância: de um espaço de desvalorização para o de conhecimento e atenção

Nas áreas de conhecimento tradicionais como a psicologia, a sociologia e a antropologia, por muito tempo, as crianças não eram vistas como um foco de pesquisa, não se tinha interesse em estudar essa fase da vida. Até que no final do século XIX com o bielorruso, Lev Vygotsky, um dos pioneiros dos estudos da psicologia infantil, uma nova forma de compreender como as crianças obtinham conhecimento surgiu: por meio de experiências trocadas com o ambiente em que viviam.

Isso reflete muito a explicação de Clésia Miranda, uma das mães que frequenta o projeto desde de 2016, ao enxergar a importância desses convívios no desenvolvimento dos seus filhos. “O projeto ajuda e estimula as crianças a brincar, estimula a socialização, encontro com amigos. Por diversas vezes, marquei com as mães da escola dos meus filhos para irmos e lá fazíamos piquenique. Então estar num ambiente como esse é só vantajoso para essas crianças”

Para Juliana, o programa não deve ser aproveitado somente pelos estudantes de psicologia ou de serviço social, áreas das coordenadoras, mas também pelos estudantes de medicina, que tendem a olhar as crianças pela doença e não pela saúde. “É muito importante permitir o contato da criança com o estudante fora do lugar de aluno e paciente. Porque em geral, a Universidade trata a criança como objeto de conhecimento e não como sujeito de conhecimento”.

Para além do caráter social, que estimula e implica esses futuros profissionais a enxergarem as crianças por uma nova ótica, o projeto sempre buscou se institucionalizar e se manter ativo no caráter acadêmico, por meio de palestras, de artigos ou cursos de extensão. “Eu já fiz uma parceria com a residência multiprofissional do Instituto de Saúde Coletiva, uma pós-graduação de educação para falar do brincar. Além disso, produzimos artigos, capítulos de livro, apresentação em congresso… fazemos questão de divulgar esse trabalho como um dos tripés da Universidade: de pesquisa, ensino e extensão”.

Uma aliança da Universidade com a sociedade contra o desmonte público

Mesmo com todo o valor que se tem e todo o conhecimento que se é produzido, a Universidade vêm sofrendo com um sucateamento e estrangulamento de verbas, batalhando arduamente para conseguir se manter em pé. Mas como criar uma consciência social de que ela deve ser protegida? Para Juliana, as pessoas protegem o que elas conhecem. Então permitir que elas usufruam desse espaço é um dos passos para a sua manutenção. “A gente já fez atividades com crianças em momentos de greve e poder difundir o que é que a universidade faz e a precarização a que ela está sendo submetida é um ato cívico importante. Eu acho que as pessoas se aliam à luta em defesa do espaço público quando elas estão usufruindo. Acho que isso ajuda a materializar aquilo que é a Universidade”.

Para além de criar uma importante aliança com o público externo na luta pela defesa da Universidade, a professora relembra a fala do ex-reitor João Salles sobre a construção do sentimento de pertencimento das crianças que participaram e participam do projeto. “Imagina uma dessas crianças quando passar aqui no vestibular, no ENEM e entrar na Universidade. Ela vai poder falar assim: “A primeira vez que eu vim aqui foi para brincar”.

PERFIL

Cicatrizes Invisíveis: O impacto do crime na perda da infância e juventude.

O impedimento de vivenciar uma infância ou juventude tranquila, livre de violência e cheia de oportunidades, é uma das consequências mais devastadoras do crime no Brasil. No Conjunto Penal Masculino de Salvador, no bairro de Mata Escura, histórias de vidas interrompidas se misturam a tentativas de reconstrução e esperança, promovidas por iniciativas como a da Socializa Brasil.

Fundado em 1991, o Projeto Socializa tem como missão primordial a reintegração de indivíduos privados de liberdade à sociedade, atuando em diversas penitenciárias do estado da Bahia. O projeto nasceu com a proposta de proporcionar aos detentos uma nova oportunidade, oferecendo uma ampla gama de serviços que visam não apenas a ressocialização, mas também a valorização do ser humano, buscando resgatar direitos fundamentais muitas vezes negligenciados. Dentre as ações oferecidas, destacam-se a assistência jurídica, saúde, educação, e capacitação profissional, com a implementação de cursos diversos, incluindo agora a criação de um infocentro, que possibilita a realização de cursos online.

O Socializa foi fundado por um grupo de profissionais preocupados com a realidade dos indivíduos privados de liberdade, e o desejo de oferecer uma oportunidade de transformação para aqueles que, muitas vezes, não tiveram acesso a uma educação de qualidade ou a recursos básicos para se desenvolver. A motivação para a criação do projeto vem da crença de que todos têm o direito a uma segunda chance, especialmente em uma sociedade onde a exclusão e o estigma dificultam a reintegração de ex-presidiários. Para compreender como esse impacto se reflete na vida de quem vivencia esse sistema, foram entrevistados Bruno Conceição, pedagogo responsável pelo projeto, e dois reeducandos que, por meio das ações da Socializa Brasil, encontraram uma oportunidade de reescrever suas trajetórias.

Foto: Arquivo pessoal/Site oficial Socializa Brasil

A educação como ponte para a liberdade

Bruno Conceição, pedagogo do Conjunto Penal Masculino de Salvador, destaca a importância de devolver aos reeducandos o acesso à educação, algo que, para muitos, foi interrompido na infância ou adolescência. “Muitas das pessoas que estão aqui tiveram o processo educacional interrompido. Seja por falta de oportunidade, pela necessidade de sustentar suas famílias ou pela ausência de interesse, o resultado foi sempre o mesmo: um futuro incerto”, afirma.

A educação desempenha um papel fundamental no processo de ressocialização de indivíduos privados de liberdade, especialmente em um contexto como o das penitenciárias.

Para muitas dessas pessoas, a falta de acesso à educação é um dos principais fatores que contribuem para o envolvimento com o crime. Oferecer a oportunidade de aprender e se qualificar enquanto estão no sistema prisional não só amplia suas perspectivas de futuro, mas também proporciona uma forma de resgatar sua dignidade e autoestima. A educação, nesse contexto, é uma ferramenta poderosa para romper o ciclo da marginalização, proporcionando aos detentos habilidades e conhecimentos que podem ser essenciais para sua reintegração social e para que se tornem cidadãos ativos e produtivos após o cumprimento da pena.

Por meio de programas como o Virando a Página, que busca incentivar a prática de leitura em ambientes de privação de liberdade, a equipe pedagógica realiza um trabalho fundamental com os reeducandos, promovendo rodas de leitura. Os internos participam de projetos que vão além do aprendizado básico, como a produção de livros, incluindo Fábulas do Cárcere e um recente volume sobre racismo estrutural no sistema prisional brasileiro. “Essas atividades não só garantem o direito à educação, mas também resgatam a dignidade dessas pessoas”, ressalta Bruno.

Histórias de mudança

Jocimar Soares dos Santos, de 38 anos, começou sua trajetória no crime aos 14. Preso pela primeira vez aos 15, sua vida se transformou em um ciclo de furtos, assaltos e prisões que o levaram a perder sua esposa e seu pai. “Percebi que a vida no crime é uma ilusão. Aqui, aprendi a ler e a escrever. Graças aos cursos e oficinas, agora penso em fazer faculdade de enfermagem e abrir meu próprio negócio de chocolates”, compartilha.

Apesar de carregar memórias dolorosas, Jocimar destaca a importância do projeto na sua jornada de mudança. “O Virando a Página me ajudou a enxergar o mundo de outra forma. Antes eu não sabia nem escrever direito, agora consigo me expressar. Minha vida ganhou outro sentido.”

Já Victor Hugo, de 29 anos, viveu uma juventude estruturada, mas perdeu o rumo ao mergulhar no crime aos 18, motivado por desilusões amorosas e o uso de drogas. Após passagens por prisões que apenas incentivaram mais crimes, ele encontrou na Socializa Brasil o acolhimento necessário para reconstruir sua vida. “Aqui, o sistema é diferente. Tenho educação, trabalho voluntário e oportunidades.

Foto: Arquivo pessoal/Site oficial Socializa Brasil

Pude relembrar meus objetivos e planejar meu futuro. Quando sair, quero fazer faculdade de contabilidade e empreender.”

A história de Victor é marcada por momentos de humildade e reflexão. Ele conta sobre o reencontro inesperado com uma antiga diretora de escola que, ao reconhecê-lo, perguntou sobre sua mãe. “Chorei muito. Mas entendi que não há vergonha. Estou pagando pelo que fiz e me esforçando para ser alguém melhor.”

Ambos os relatos ilustram como programas como o Virando a Página e o Socializa Brasil não oferecem apenas educação e oportunidades de recomeço, mas promovem uma transformação profunda. Esses projetos ajudam a recuperar a autoestima e a dignidade de pessoas como Jocimar e Victor, que buscam uma chance real de reescrever suas histórias e recomeçar suas vidas.

Uma nova chance

Embora carreguem cicatrizes invisíveis, Jocimar, Victor e tantos outros reeducandos mostram que, com oportunidades reais, é possível transformar dor e arrependimento em esperança e ação. Para eles, o trabalho da Socializa Brasil representa mais do que uma chance de reintegração: é uma oportunidade de resgatar partes de si mesmos que acreditavam estarem perdidas.

“Valorizar as pequenas coisas e entender o que realmente importa é o maior aprendizado que tive aqui dentro”, diz Victor. Suas palavras ecoam a missão do projeto e a essência do que significa ressocializar: não apenas reintegrar à sociedade, mas restaurar vidas.

O impacto do crime na infância e juventude é profundo e devastador. Ele rouba sonhos, desconecta famílias e perpetua ciclos de violência. Contudo, histórias como as de Jocimar e Victor mostram que, por meio da educação e do apoio certo, é possível interromper esse ciclo. A Socializa Brasil, com seu trabalho no Conjunto Penal Masculino de Salvador, não apenas devolve oportunidades a quem teve uma vida marcada pelo crime, mas também prova que nenhuma cicatriz é profunda demais para ser curada.

Foto: Arquivo pessoal/Site oficial Socializa Brasil

Raízes

De Salto ou Descalço, o Caminho Leva à Infância

Por: Venicius Rodrigues, Sophia Eloy e Matheus Batista

Em uma sociedade enferma, é fácil perceber como a infância é muitas vezes atravessada pela vida adulta precocemente. O ciclo da vida nos exige percorrer todas as suas fases, mas muitas delas são atropeladas por questões de classe, raça, identidade e sexualidade, fazendo com que as pessoas vivam à mercê dessa ausência. Na vida adulta, esse “vazio” pode ser preenchido pelo reencontro, através de práticas culturais. Nesse contexto, o candomblé e a cultura ballroom aparecem como territórios de ressignificação e reconstrução das experiências que muitas vezes são negadas durante a infância.

O candomblé, uma religião de matriz africana que celebra a conexão espiritual e a diversidade, desempenha um papel crucial na preservação de valores comunitários, afetivos e de autoaceitação. Seus rituais, que envolvem dança, música e oralidade, são espaços onde a energia da infância pode ser evocada e curada. Por outro lado, a cultura ballroom, que emergiu na comunidade negra e LGBTQIAPN+ como um espaço de resistência e criatividade, oferece a oportunidade de revisitar a infância por meio da autoexpressão e da performatividade.

As balls são celebrações onde as pessoas podem assumir identidades, vestir fantasias e criar narrativas que muitas vezes lhes foram negadas. Essa cultura se constroi em torno da ideia de pertencimento e cria famílias escolhidas, conhecidas como “houses”, onde as relações de cuidado e acolhimento se assemelham ao lar que muitos não tiveram durante a infância. Assim como no candomblé, a musicalidade, a dança e a criatividade visual são ferramentas que permitem acessar e reconstruir memórias afetivas e momentos de liberdade pueril.

Tanto o candomblé quanto a cultura ballroom revelam a potência das práticas culturais como formas de cura e resgate da infância. Elas promovem espaços de resistência à opressão e, ao mesmo tempo, oferecem meios para a reconexão com o que é essencial na formação do ser humano: a capacidade de sonhar, brincar e ser livre. Ao revisitar as experiências infantis através dessas práticas, é possível reconstruir a fundação emocional e espiritual necessária para uma vida plena.

Zoe Luiza, artista Ballroom/Foto: Acervo pessoal
“Com a traquinagem de uma criança as coisas vão se resolver.’’

Enquanto adultos, o dia a dia é corriqueiro. Gerir a casa, cuidar dos filhos, garantir o pão de cada dia e pagar boletos são, sem dúvida, algumas das principais preocupações. O cotidiano de gente grande é tão freneticamente repetitivo que muitos se esquecem da magia que foi um dia ser criança. Essa essência parece ser atropelada pelas exigências diárias, restando apenas “aquilo que um dia já foi.” O que se ignora é que, nesses pequenos gestos esquecidos, está a cura. É no pé descalço no chão, no riso despreocupado e na maneira simples de olhar o mundo que se encontra a própria centelha divina: a criança interior, uma infância sagrada dentro de cada ser.

Mitiam Paula, Yaô de Oxum e mãe de primeira viagem, descobriu esse reencontro através do candomblé. A princípio, buscou a espiritualidade por conta de problemas de saúde, já que apenas a medicina não parecia suficiente. No entanto, além de alívio para as enfermidades do corpo, encontrou a cura para muitos conflitos da mente ao se reconectar com sua criança espiritual: a sua erê.

“Eu acho que é a questão dessa pureza, sabe? Acho que tem momentos em que você precisa levar a vida com a leveza de uma criança”, reflete Mitiam. Por meio dessa compreensão, ela viu no candomblé uma forma de resgatar essa energia de criança, percebendo que a vida adulta frequentemente tenta nos engolir. “Acho que todo adulto precisa ter seus 10% de criança para conseguir sobreviver, porque, senão, não vai. Lógico que, como adulto, você tem responsabilidades: pagar contas, arcar com débitos, trabalhar e garantir o sustento. Mas você não pode esquecer de reservar esses 10%, aquele momento para sentar, se lambuzar, brincar e dar risada. Porque, sem isso, a vida vira uma eterna angústia de trabalhar para pagar. Você precisa ter o seu momento de diversão”, conclui.

Mitiam Paula em festa de Yemajá/Foto: Pedro Henrique de Jesus

Às vezes, reencontrar a liberdade é como voltar ao ponto de partida: a criança que fomos e que, apesar do tempo, ainda vive em nós. Seja na espiritualidade que resgata a pureza esquecida ou na arte que dá voz ao que foi silenciado, esse retorno é um convite a olhar a vida com leveza e verdade. Como uma criança que corre descalça ou ri sem se preocupar com o amanhã, o reencontro com essa essência abre caminho para uma existência mais autêntica. É nesse espaço de acolhimento, longe das pressões sufocantes da vida adulta ou das opressões sociais que nos moldam, que encontramos cura e liberdade. Um lugar onde a expressão é permitida, onde o medo é substituído pela coragem de ser, onde nos tornamos gigantes simplesmente por permitirmos que nossa verdadeira essência floresça.

Ballroom: para além de uma expressão artística, um resgate de si mesmo

A liberdade de expressão é um direito de todas as pessoas, mas, para muitas crianças e adolescentes LGBTQIAPN+, ela ainda está longe de ser uma realidade. Desde cedo, elas enfrentam dificuldades para se expressar, seja por conta do preconceito, do medo de não serem aceitas ou pela falta de apoio nos lugares onde convivem, como a família e a escola. Essa falta de liberdade vai muito além de palavras não ditas. Ela afeta a maneira como essas crianças se enxergam, como constroem sua identidade e como se sentem no mundo. Entender como essa privação acontece e buscar formas de criar espaços seguros e acolhedores é essencial para que elas possam crescer sendo quem realmente são, sem medo de se expressar.

Crescendo com esse medo acumulado dentro de si, essas pessoas procuram válvulas de escape, que podem se manifestar de formas positivas ou negativas . Um exemplo de resgate positivo é a cultura ballroom, um movimento artístico-cultural que surgiu nos Estados Unidos, na década de 1970, com o intuito de acolher pessoas negras LGBQIAPN+. Desde então a ballroom, se mantém até hoje como um espaço seguro para que as pessoas possam ser quem realmente são.

Akiyra, filha da Brazilian Kiki House of Bushidö, encontrou na Ballroom uma maneira de potencializar aspectos que já estava presente em sua vida, mas que de alguma forma, acabaram se perdendo no decorrer do seu crescimento. “Eu sempre digo que a ballroom pega o que você é e simplesmente expande, leva ao máximo. Acho que foi exatamente isso que ela fez comigo. Antes da ballroom, eu era uma pessoa com muitos medos, e ela tem me ajudado a enfrentá-los e até mesmo superá-los. É muito chato viver nesse lugar de sempre ter medo de fazer as coisas, de, às vezes, nem se sentir à altura”

Zoe Luiza, atualmente 007 1 na cena Ballroom, também falou sobre como a Ballroom tem esse fator de cura para o resgate da sua criança interior.“Vou dizer uma frase de Pavuna, que é Statement Sensei da comunidade, e ela diz que a ballroom é o mais próximo do sonho que ela consegue viver. Então, os sonhos que eu tinha quando era criança, hoje estou conseguindo realizar — ainda não exatamente da forma como eu esperava, mas de algo próximo.”

1 - 007 são pessoas que não tem casa na Ballroom

Para alguns, a ballroom significa um lugar para superar seus medos e receios, que muitas vezes vêm do berço familiar. “Ela também nos ajuda a lidar com nossos medos: medo de sermos incapazes, insuficientes, ou até mesmo medo de sermos bons. Às vezes temos medo de sermos felizes. Isso acontece porque, em algumas situações, somos ensinados que está errado se sentir bem o tempo todo, ou que não somos merecedores daquilo. Isso, muitas vezes, vem do ambiente familiar. E como a ballroom também fala sobre família, acredito que ela tem muito a ver com essa ideia de nos potencializarmos, de nos revisitar enquanto pessoas, enquanto personalidades, enquanto família”, diz Akiyra Bushidö.

Além de um lugar para superar seus medos e resgatar sua criança interior, a ballroom também é um lugar para realizar sonhos que foram perdidos.

“Para mim, os sonhos que eu tinha — e que podem até parecer clichê — como ser celebrada enquanto pessoa trans negra, tornam-se reais na ballroom. É o único lugar onde vejo celebrarem vidas trans. Além disso, outras coisas que sempre desejei, como estudar, também foram possibilitadas pela ballroom. Sempre quis estudar dança, e a primeira aula que fiz foi de vogue femme, uma dança da ballroom. Depois disso, comecei a explorar outras modalidades porque conheci uma pessoa da minha House que dançava vogue e outros estilos. Essa pessoa me permitiu participar das aulas dela, e assim fui estudando mais e tendo acesso a coisas que antes não estavam ao meu alcance. A ballroom me deu acesso a tudo isso.”, completa Zoe Luiza.

Em uma sociedade que insiste em silenciar a pureza e a liberdade da infância, o candomblé e a cultura ballroom surgem como caminhos de resgate e reconstrução. Cada um, à sua maneira, permite que o indivíduo revisite suas origens, ressignifique suas dores e encontre um lugar onde sua essência possa florescer. Enquanto o candomblé, através do erê, nos convida a reencontrar a leveza e a simplicidade que a vida adulta muitas vezes destroi, a ballroom oferece um espaço onde sonhos perdidos são recriados e medos são superados. O que essas práticas culturais compartilham é a reafirmação da importância do pertencimento, do cuidado, permitindo que a criança interior — tantas vezes negada ou interrompida — possa finalmente se manifestar. Seja na dança, na espiritualidade ou no riso que ecoa como cura, é nesse retorno às raízes que encontramos, de fato, o caminho para existir em plenitude.

Venicius Rodrigues

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