Audiovisual comunitário e educação: histórias, processos e produtos

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Audiovisual comunitário e educação Histórias, processos e produtos



Juliana Leonel Ricardo Fabrino Mendonça (Organizadores)

Audiovisual comunitário e educação Histórias, processos e produtos


Copyright © 2010 Os organizadores coordenador da coleção comunicação e mobilização social

Márcio Simeone Henriques CONSELHO EDITORIAL

Cicilia Maria Krohling Peruzzo; Desirée Cipriano Rabelo; Márcio Simeone Henriques; Nisia Maria Duarte; Werneck; Rennan Lanna Martins Mafra capa

Alberto Bittencourt (sobre imagem de Guilherme Almeida) editoração eletrônica

Conrado Esteves edição e revisão técnica

Clarisse Alvarenga Paula Guimarães Simões revisão

Dila Bragança de Mendonça editora Responsável

Rejane Dias Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico. Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. Autêntica Editora Ltda. Rua Aimorés, 981, 8º andar. Funcionários 30140-071. Belo Horizonte. MG Tel.: (55 31) 3222 68 19 Televendas: 0800 283 13 22 www.autenticaeditora.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro) Audiovisual comunitário e educação : histórias, processos e produtos / Juliana Leonel, Ricardo Fabrino Mendonça, organizadores. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2010. – (Coleção Comunicação e Mobilização Social, 7)

Vários autores. ISBN 978-85-7526-498-0 1. Comunicação - Aspectos sociais 2. Comunicação de massa 3. Comunicação e educação 4. Comunicação e tecnologia 5. Comunicação social 6. Educação audiovisual 7. Meios de comunicação 8. Produção audiovisual comunitária I. Leonel, Juliana. II. Mendonça, Ricardo Fabrino. III. Série. 10-10324

CDD-302.23

Índices para catálogo sistemático: 1. Audiovisual comunitário e educação : Comunicação comunitária : Comunicação social 302.23


À memória de nossa amiga Mariana Paulino.



sumário

Prefácio Fernão Pessoa Ramos.............................................................. 11 Apresentação....................................................................... 15

Parte 1 – Do audiovisual comunitário Capítulo I Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário Ricardo Fabrino Mendonça..................................................... 23 Capítulo II Vídeo e movimentos sociais - 25 anos depois Luiz Fernando Santoro............................................................ 47 Capítulo III Comunicação comunitária e digitalização dos media: problemas, perspectivas e desafios Sivaldo Pereira da Silva, Bráulio Ribeiro............................... 65

Parte 2 – Produções e processos Capítulo IV Refazendo caminhos do audiovisual comunitário contemporâneo Clarisse Castro Alvarenga...................................................... 87


Capítulo V Sentidos da imagem na quebrada Rose Satiko Gitirana Hikiji..................................................... 107 Capítulo VI Por uma pergunta sonora Pedro Aspahan......................................................................... 125 Capítulo VII Deslocamento, circulação, trânsito, contato na produção audiovisual comunitária Paulo Emílio de Castro Andrade............................................ 145

Parte 3 – Audiovisual e educação Capítulo VIII Para quem gosta de perguntar: uma reflexão sobre a Educomunicação Eliany Salvatierra Machado................................................... 167 Capítulo IX As TCIs na escola: da recepção à expressão Rafaela Lima............................................................................ 185 Capítulo X O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala Adriana Fresquet..................................................................... 203 Capítulo XI Ensaio sobre a gênese da cinematografia educativa no Brasil. Prospecção do componente histórico nacional nas práticas educacionais que envolvem Comunicação e Educação João Alegria.............................................................................. 231


Parte 4 – Gestão de produções colaborativas Capítulo XII Aspectos da gestão de ONGs brasileiras que lidam com os temas Comunicação e Educação André Sena............................................................................... 249 Capítulo XIII Sobre produção colaborativa Valter Filé................................................................................. 293

Parte 5 – Experiências de realizadores Capítulo XIV Pensamentos e trajetórias de jovens realizadores do audiovisual comunitário Juliana Leonel, Clebin Quirino dos Santos, André Luiz Pereira, Daniel Fagundes, Diego FF. Soares, Fernando Solidade Soares, Giovânia Monique, Vanice Deise, Wilq Vicente....................................................... 315 Capítulo XV Por um cinema compartilhado. Entrevista com Vincent Carelli Ana Carvalho........................................................................... 361 Capítulo XVI Por uma sistematização de nossas práticas: proposições e dúvidas Juliana Leonel........................................................................... 379 Capítulo XVII Catálogo de práticas Juliana Leonel, Moira Toledo .................................................. 387 Os autores............................................................................ 421



Prefácio

Fernão Pessoa Ramos*

A

udiovisual comunitário: educação, história, processos e produtos aborda um conjunto expressivo de produções audiovisuais desenvolvidas por comunidades no Brasil. O conceito de “comunidade” é trabalhado de modo diferenciado nos textos do livro, mas é possível localizar uma pertinência de conjunto. Referese a grupos de indivíduos que interagem de forma diversa, com recortes institucionais mais amplos, preservando identidades na interação com o externo e na circulação mais voltada para si. Como proposta da coletânea, surge a camada dessas relações que se expressa em matéria imagética-sonora, mediada pela máquina câmera denominada “audiovisual”. Assim, a produção audiovisual comunitária é trabalhada em suas diversas ramificações com * Professor titular do Departamento de Cinema (DECINE) do Instituto de Artes da UNICAMP. Foi presidente fundador da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (SOCINE). Seus projetos de pesquisa concentram-se na área de Estudos de Cinema, cobrindo documentário, teoria e ensino. Em 2008 lançou o livro Mas afinal... o que é mesmo documentário? pela Editora do SENAC. Em 2005, pela mesma editora, publicou, como autor e organizador, Teoria Contemporânea do Cinema (2 vols.). Também é autor de Cinema Marginal – a representação em seu limite (Brasiliense).

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ênfase em estudos de caso; configurações teóricas; abordagens de cunho mais sociológico e histórico; textos com viés mais militante; diálogos bem marcados com educação e pedagogia; questões estéticas envolvendo suporte vídeo ou digital; elaboração sonora do audiovisual; resumos práticos de ação em comunidades; depoimentos e entrevistas. É um panorama amplo e instigante da produção audiovisual de cunho comunitário, inédito em nossa bibliografia. O principal crédito da coletânea está em apontar para o tamanho e a diversidade desse universo, além de reivindicar a dimensão histórica de sua presença entre nós. Entre os textos com foco em grupos de atuação comunitária, é realçado o significado da produção cultural com imagens (e sons) na prática cotidiana. Na vida em comunidades de periferias, junto às parcelas menos favorecidas da população, os relatos possuem riqueza de detalhes, permitindo um mapeamento amplo da diversidade das estratégias com audiovisual. Nos textos que abordam experiências junto a comunidades urbanas, nos relatos de trabalho com populações indígenas ou nos depoimentos de cineastas, ficam evidenciadas as particularidades que a produção audiovisual traz para o cotidiano das comunidades. A ferramenta do audiovisual e as particularidades da dimensão da tomada que essa ferramenta detona mostram o lado pragmático da ação. Pragmático na medida em que surge no espaço de uma práxis que envolve agentes comunitários e a população propriamente dita. Parcela significativa dos textos debruça-se sobre dilemas epistemológicos abertos pela ação na tomada (afinal, quem sustenta a câmera?) e sua articulação em formatos mais ou menos narrativos. Outra contribuição forte, no panorama trazido pelo livro, consiste em lançar a questão do audiovisual comunitário no polo gravitacional da educação. Tal movimento flexibiliza a questão e produz resultados interessantes. O cinema, por exemplo, é bem trabalhado em sua especificidade, seja no campo histórico das propostas do cinema educativo na primeira metade do século XX, seja na interessante visão do cinema-arte no ensino, 12


Prefácio

como matéria pedagógica para estratégias comunitárias. Mas as abordagens vão além e centram-se no papel do audiovisual enquanto processo comunicativo com propostas pedagógicas diversas, envolvendo o próprio estatuto do conhecimento e da transmissão do saber. O universo da comunicação também aparece no horizonte. Busca-se pensar a inserção de uma prática audiovisual a partir do conceitual que o campo da teoria da comunicação nos oferece. A diversidade entre reflexões de corte mais teórico e relatos concretos da prática comunitária audiovisual é estimulante. Permite a afirmação definitiva do continente aberto pela produção disseminada de imagens. O que antes era privilégio de poucos cada vez mais torna-se ação corriqueira de muitos. A universalização de dispositivos imagético-sonoros e o barateamento dos custos para sua manipulação estão na origem desse processo. As reflexões contidas neste livro são resultado de um novo patamar na produção imagética que cabe descobrir. Se podemos falar sem susto de uma canção popular no Brasil, era muito temeroso, até hoje, falar de um cineasta popular, nos referindo à sua origem social. A razão principal nos parece simples: relacionase aos altos custos envolvidos na produção audiovisual. Dentro do meio social e dos contatos institucionais dominados por um cineasta de origem popular, é extremamente difícil capitalizar os recursos envolvidos, por exemplo, numa produção cinematográfica. O que a coletânea Audiovisual comunitário: história, processos e produtos testemunha é a ascensão de uma camada da população brasileira à produção audiovisual. O mapeamento que deixa transparecer traz um horizonte amplo de questões. Não só por apontar para necessidade de um novo quadro conceitual, mas também para testemunhar uma situação de fato. Os textos que seguem apontam para um contexto de eclosão, lidando com as diversas facetas que ela pode tomar.

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apresentação

O

projeto deste livro nasceu de nossa atuação profissional junto a uma Organização Não Governamental de Belo Horizonte, chamada Associação Imagem Comunitária (AIC). Há 18 anos, a AIC realiza projetos junto a variados públicos com o intuito de promover o acesso público à comunicação. Pautando-se por princípios participativos e democráticos, a instituição tem como uma de suas marcas a dedicação à sistematização das iniciativas que realiza e à investigação de metodologias, práticas e processos no campo do Audiovisual Comunitário. A preocupação em compreender um tipo de prática social que assumiu formas variadas ao longo das últimas décadas e que mobiliza centenas de realizadores em todo o território nacional nasceu justamente dessa inserção e do anseio por promover processos mais efetivos de acesso público à comunicação. Esses processos têm uma dimensão essencialmente democrática e cuja riqueza política reside nos formatos das relações sociais que instauram e nas produções que colocam em circulação. Este livro é composto por uma coletânea de textos que busca refletir sobre tais processos. A proposta foi submetida a editais do 15


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Fundo Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte e da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais e recebeu apoio para sua concretização. Em seguida, a ideia foi apoiada pelo projeto VIVO LAB, que está centralmente preocupado com a compreensão das relações entre os recentes desenvolvimentos das tecnologias da comunicação e da informação e as práticas sociais e artísticas da sociedade contemporânea. Esses apoios foram essenciais para que o projeto do livro pudesse ser executado do modo como desejávamos. Eles permitiram que os artigos fossem amplamente debatidos, de modo a garantir que se tornassem acessíveis e didáticos. Esperamos que os textos reunidos neste volume sejam capazes de dialogar com as práticas que interpretam. Desejamos que eles não apenas digam da movimentação social que embasa a produção audiovisual comunitária, mas também que dela participem. Assim, mais do que leituras distanciadas sobre um objeto comum, os textos se articulam pelo engajamento dos autores com o universo do audiovisual comunitário e pela percepção de pontos que precisam ser criticamente debatidos no sentido de fortalecer esse universo. O livro está dividido em cinco eixos, que não buscam esgotar as múltiplas dimensões que atravessam o fenômeno sob reflexão. Esses eixos não se configuram como partes isoladas, até porque os textos têm certa autonomia e atravessam diversos deles. Não se trata, portanto de capítulos estruturados em uma sequência linear. A organização proposta visa apenas a salientar algumas das dimensões centrais dos artigos em questão. O primeiro eixo enfoca aspectos mais gerais do audiovisual comunitário, apresentando a relevância desse tipo de comunicação e abordando alguns de seus desdobramentos históricos. O primeiro texto, de autoria de Ricardo Mendonça, explora duas razões conceituais que ajudam a justificar o audiovisual comunitário: o fortalecimento da democracia e o fomento à autorrealização. O segundo texto, de Luiz Fernando Santoro, analisa algumas transformações vivenciadas pelo movimento do vídeo popular desde os anos 1980, discutindo temas que vão das formas de distribuição das produções às po16


Apresentação

líticas públicas voltadas para essa área, preocupando-se, sempre, com as dimensões estéticas e políticas dessa prática. O terceiro artigo, escrito por Sivaldo P. da Silva e Bráulio Ribeiro, aborda o recente debate sobre a digitalização dos media, discutindo novos desafios e novas possibilidades para a comunicação comunitária. Os textos que compõem o segundo eixo buscam analisar pontos mais específicos de produções e dos processos que as possibilitam. Eles exploram aspectos estéticos, políticos e sociais que perpassam o fazer da comunicação comunitária. Clarisse Alvarenga investiga as transformações contemporâneas do vídeo militante e analisa duas produções para mostrar que a riqueza delas está na ruptura com o tradicional discurso da autoridade localista. O artigo de Rose Hikiji também chama a atenção para o deslocamento dos enunciadores ao longo de suas realizações. Adotando um enfoque antropológico, ela dialoga com as falas de vários realizadores e discute o teor da imagem do Cinema de Quebrada, a questão da alteridade e o cinema etnográfico. Pedro Aspahan aborda o estatuto do sonoro no audiovisual e questiona não apenas o predomínio da imagem em muitas produções, mas também o uso do som de um modo que desconsidera sua dimensão plástica, encarando-o apenas como fonte de significado. Fecha a seção, o artigo de Paulo Emílio Andrade, que se volta para uma contribuição pouco explorada do audiovisual comunitário: a circulação pela cidade e a consequente ressignificação do espaço público geradas pela realização de vídeos comunitários. No terceiro eixo, entram em foco as relações entre audiovisual e educação. Tais relações são fundamentais para realizadores e pesquisadores que se preocupam com o audiovisual comunitário por duas razões. Em primeiro lugar, porque o processo comunitário de produção é frequentemente pensado como uma forma de educação não formal, convocando questões e problemas típicos do campo da educação. A preocupação com o formato da relação entre educador e educando; a questão da produção coletiva de conhecimento; e a estruturação de metodologias mais aptas a fomentar o desenvolvimento da autonomia são apenas alguns exemplos de temáticas muito debatidas por pessoas envolvidas 17


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com o audiovisual comunitário. Em segundo lugar, nota-se que há um grande interesse por pensar o uso das tecnologias da comunicação e da informação em processos educacionais, de um modo geral. A produção e a discussão de obras de audiovisual comunitária despontam como práticas interessantes. Os textos que integram esse eixo se debruçam sobre algumas dessas questões, explorando, conceitual e historicamente, facetas da relação entre audiovisual e educação. Nesse sentido, Eliany Machado busca definir Educomunicação, e, para isso, aborda o modo como as ideias de Paulo Freire, Mario Kaplún, Martin Buber e Emmanuel Lévinas oferecem contribuições interessantes. O artigo de Rafaela Lima explora modos de apropriação das tecnologias da comunicação e da informação no contexto escolar, defendendo a riqueza das práticas de produção participativa. Adriana Fresquet analisa as propostas de Alain Bergala acerca do uso do cinema na escola, afirmando como ele pode criar uma dinâmica inovadora que transforma e reinventa profundamente o espaço escolar. O artigo de João Alegria, por fim, explora, historicamente, o uso educativo da cinematografia, realizando uma reflexão mais ampla sobre algumas práticas educacionais contemporâneas. O quarto eixo do livro reúne dois artigos que centram esforços em uma questão bastante negligenciada, qual seja, a da gestão de produções colaborativas. Na medida em que aumenta o número de produções audiovisuais comunitárias e que as organizações voltadas à sua promoção se profissionalizam, a estruturação interna desses atores coletivos ganha destaque, bem como as relações que eles estabelecem com outras instituições, sobretudo com aqueles responsáveis pelo financiamento e pela divulgação de algumas produções. Assim, o artigo de André Sena discute, empiricamente, como funções básicas da administração (planejamento, organização, direção e controle) são percebidas e operacionalizadas por profissionais que atuam em Organizações Não Governamentais da área de comunicação e educação. Valter Filé, por sua vez, aborda a difícil relação entre realizadores de audiovisual comunitário e uma emissora televisiva que tem 18


Apresentação

apostado em produções colaborativas e reflete sobre o significado e o formato dessa colaboração. Por fim, no quinto eixo, enfocam-se algumas experiências específicas de realizadores do campo do audiovisual comunitário. Esses textos buscam abrir espaço para que alguns realizadores comentem sua atuação e para que iniciativas interessantes implementadas por coletivos de diferentes naturezas se façam visíveis. O primeiro artigo da seção, organizado por Juliana Leonel, é composto por cinco textos que reúnem depoimentos, reflexões, reivindicações e sugestões de realizadores de Belo Horizonte (Clebin dos Santos e Giovânia Monique) e de São Paulo (André Pereira, Daniel FagundeS, Diego Soares, Fernando Soares, Vanice Deise e Wilq Vicente). O segundo texto apresenta uma entrevista, conduzida por Ana Carvalho, com Vincent Carelli, diretor e idealizador de uma célebre iniciativa de produção audiovisual junto a diversos povos indígenas. O terceiro texto expõe um levantamento de algumas boas práticas implementadas por realizadores de audiovisual comunitário em contextos diversos e para resolver problemas variados. Sistematizadas por Juliana Leonel e por Moira Toledo, tais iniciativas se apresentam não no sentido de oferecer um guia de soluções prontas para remediar qualquer dificuldade, mas como forma de reconhecer o êxito, localizado e específico, de algumas práticas que podem trazer insights interessantes, desde que isso não signifique uma aplicação direta e descontextualizada. Este é, em síntese, o espírito do livro. Os vários autores que o compõem, com suas diferentes histórias e enraizamentos, procuram ler facetas diversas do fenômeno aqui em foco de modo a trazer insights, reflexões e sistematizações para a compreensão e para a prática do audiovisual comunitário. Esperamos, pois, que o livro participe do macroprocesso de mobilização sobre o qual se propõe a discorrer. Para concluir esta apresentação, gostaríamos de registrar nossos agradecimentos ao empenho dos autores que contribuíram para a elaboração do presente volume e a todos os realizadores e integrantes de projetos de audiovisual comunitário que 19


se envolveram nos processos de sistematização de informações para a publicação. Agradecimentos especiais também são devidos a Clarisse Alvarenga e a Paula Guimarães Simões pelas sugestões, pelas críticas e pelo efetivo apoio técnico. Esperamos que o livro reflita esse processo de construção coletiva entre atores de contextos tão diferenciados e que participe do processo mobilizatório sobre o qual discorre. Os organizadores


Parte 1

DO AUDIOVISUAL COMUNITÁRIO



CAPÍTULO i

Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário Ricardo Fabrino Mendonça

Foi em 2003 que me aproximei do mundo do audiovisual

comunitário. Eu acabara de concluir minha graduação em jornalismo e procurava trabalho, quando recebi um convite para trabalhar em uma ONG de Belo Horizonte – a Associação Imagem Comunitária (AIC). Antes disso, eu assistira a umas poucas palestras sobre rádios comunitárias, mas nada que me despertasse o interesse por esse tipo de movimentação da sociedade civil. Para dizer a verdade, eu nutria certa desconfiança em relação àquela forma de militância que insistia em instrumentalizar a comunicação e demonizar a mídia massiva. O dia a dia da produção comunitária da AIC levou-me, contudo, a repensar certos entendimentos. Mantive o ceticismo em relação a abordagens instrumentais e maniqueístas, mas percebi que a comunicação comunitária não precisava ter esse foco. Ela não tinha que se construir como um contrapoder aos meios comerciais em defesa de sujeitos em situação de risco social. As relações sociais são bem mais complexas do que as delineadas por um modelo dicotômico. Nesse sentido, a enunciação comunicativa não pode se restringir ao embate de perspectivas. 23


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O audiovisual comunitário descortinou-se para mim como uma prática cultural potente, que permitia alterar sentidos enraizados nas tramas simbólicas que regem nossas ações cotidianas. Tratava-se de uma forma de experiência que propunha novas formas de interlocução, assumindo uma postura ativa na tessitura coletiva da realidade social. O audiovisual comunitário criava um novo jeito de alimentar os fluxos comunicativos por meio dos quais uma sociedade se narra, reflete sobre si mesma e se reinventa. Esses fluxos também dependem da mídia comercial, da conversa no ponto de ônibus, de uma discussão em sala de aula, do bate-papo no trabalho, da fofoca com o vizinho e da reunião no Congresso Nacional. Cada uma dessas instâncias comunicativas é atravessada por outras, bricolando fragmentos e encorpando a conversação da sociedade consigo mesma, para usar a expressão de José Luiz Braga (2001). Tendo em vista essa visão mais complexa de um sistema comunicativo que emerge da costura entre diferentes âmbitos de interação, gostaria de tecer alguns argumentos que ajudam a justificar a importância da produção audiovisual comunitária, a qual vem crescendo e ganhando complexidade há mais de três décadas. Entre as várias justificativas empregadas para defender essas produções, procuro apresentar duas razões que, embora imbricadas, podem ser analiticamente separadas: o fortalecimento da democracia e o fomento à autorrealização. Passemos a elas.

Fortalecimento da democracia Para que se defina o papel do audiovisual comunitário no fortalecimento da democracia é preciso, antes de tudo, explicar o que se entende por democracia. Isso porque várias abordagens democráticas levantam conjuntos de questões, demandas e expectativas diferentes. Entre a democracia dos gregos e as formas democráticas modernas, há diferenças profundas (Finley, 1988). Mesmo entre os regimes contemporâneos, notam-se vertentes participacionistas, elitistas, pluralistas e discursivas, e cada uma 24


Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

delas tem suas próprias divisões internas (Held, 1984; Miguel, 2000; Habermas, 1995). Grosso modo, todas as correntes partilham o ideal grego de um governo do povo em que a noção de igualdade política se torna fundamental. O que muda é o modo de implementação dessa modalidade de governança e a própria definição do povo a quem cabe a soberania. A compreensão de democracia que guia o presente artigo está embasada na vertente discursiva, que pressupõe que todos aqueles afetados por uma decisão devem ter a possibilidade de se expressar a seu respeito. Mais do que uma agregação de preferências expressas por meio do voto, a democracia demanda a comunicação entre os sujeitos, para que eles resolvam cooperativamente as questões que dizem respeito à coletividade. A democracia se edifica processualmente, quando os atores sociais buscam soluções para problemas cotidianos e alteram o curso e as regras da comunidade política. Todavia, essa defesa da comunicação e da troca de discursos não significa que a democracia requer uma espécie de assembleia em que cada sujeito possa se expressar diante de um imenso auditório. A escala das sociedades contemporâneas e a complexidade dos problemas que elas enfrentam inviabilizariam essa ideia. O choque público de discursos de que depende a democracia tem lugar na esfera pública, que surge como uma instância simbólica em que diferentes perspectivas são apresentadas (Dryzek, 2000; Habermas, 1997). Essa instância discursiva se conforma na articulação entre diferentes espaços de comunicação, que podem ser tecnicamente mediados ou copresenciais. O importante, nesse sentido, não é o que cada ator defende individualmente, mas o processo coletivo de reflexividade gerado por um choque de discursos que são simultaneamente acessíveis e inteligíveis a todos. É com essa definição em mente que procuro evidenciar a importância do audiovisual comunitário para o fortalecimento da democracia. Ater-me-ei aqui a três aspectos, sem, no entanto, propor esgotar as eventuais contribuições dessa forma de produção ao aprofundamento dos processos democráticos. 25


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São eles: (1) a pluralização da esfera pública; (2) a garantia do direito à comunicação; e (3) a atuação como mecanismo adicional do sistema de resposta social. Pluralização da esfera pública

Tornou-se lugar-comum dizer que a comunicação comunitária ajuda pluralizar a esfera pública. Não há quem discorde de tal afirmativa, que era uma das bandeiras do movimento do vídeo popular desde o seu surgimento. Entretanto, é importante qualificar a discussão para que se perceba claramente o significado dessa pluralização e as implicações dela. O primeiro ponto a ser esclarecido diz respeito ao objeto da pluralização. Afinal, o que deve ser mais plural? Ainda que algumas das definições mais enraizadas da noção de esfera pública estejam assentadas no conceito de opinião (Habermas, 1984), há uma crescente literatura que enfatiza a ideia de perspectiva (Young, 2000; Bohman, 2009; Porto, 2009). Iris Young (2000) é a primeira a fazer essa distinção explicando que a perspectiva é uma espécie de jeito de encarar o mundo, que algumas pessoas partilham por estarem similarmente situadas nas estruturas sociais. Indivíduos com opiniões e interesses radicalmente opostos podem ter uma forma comum de interpretar ocorrências do mundo exatamente porque já viveram situações parecidas. Para Young (2000), seria preciso garantir a expressão de uma multiplicidade de perspectivas para que a esfera pública se faça plural. Em linha semelhante, mas adotando um conceito distinto, John Dryzek frisa a necessidade de uma pluralidade de discursos. Estes são definidos como modos partilhados de dotar o mundo de sentido, encarnados na linguagem e marcados por pressuposições, julgamentos e disposições (Dryzek, 2005, p. 223). Uma esfera pública vívida e criativa é constituída por uma constelação de discursos, que se chocam e se transformam. O audiovisual comunitário é importante para que perspectivas e discursos sistematicamente invisibilizados se façam notáveis publicamente. A pluralização que eles encetam não 26


Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

se restringe à apresentação de diferentes opiniões nem poderia ser reduzida à positivação daquilo que a grande mídia insiste em associar a estereótipos negativos. Trata-se de uma pluralização mais estrutural, que afeta a trama intersubjetiva de sentidos, não apenas pelas temáticas que são abordadas, mas também pelo modo como tais temáticas são encarnadas na linguagem audiovisual. A ideia advogada aqui é que essa prática comunitária pode alterar as representações coletivas que alicerçam a construção social da realidade. A noção de representação coletiva foi proposta por Durkheim em sua “valorização do simbolismo coletivo como princípio fundante da realidade social” (Pinheiro Filho, 2004, p. 139). O sociólogo francês defende que a sociedade nos fornece “categorias de entendimento: noções de tempo e espaço, de gênero, de números, de causa, de substância, de personalidade etc. Elas correspondem às propriedades universais das coisas. São como quadros que encerram o pensamento” (Durkheim, 1996, p. XVI). Essas categorias são conceitos partilhados, que, para Durkheim (1995), impõem-se aos sujeitos. A definição de Durkheim padece, no entanto, de alguns problemas. Como sugere Minayo (2003), ela não está suficientemente atenta ao pluralismo fundamental da realidade social, além de restringir drasticamente o papel criativo dos indivíduos, ao definir as representações coletivas como entidades coercitivas e externas aos sujeitos. É nesse sentido que alguns autores buscam repensar a noção de modo a frisar a dinamicidade das representações, suas tensões internas e o papel dos sujeitos na transformação delas. Esse é o caso do trabalho de Serge Moscovici, que vai “menos no sentido da determinação – ou seja, da estruturação pela sociedade dos fenômenos da representação – do que no sentido da construção da realidade que se opera através desses fenômenos e dos quais os sujeitos sociais são também autores” (Herzlich, 2005, p. 58, grifo do autor). Moscovici (1978) procura destacar a potência da produção simbólica na instituição do real. É exatamente por isso que ele caracteriza as representações como sociais em vez de coletivas: 27


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[...] ao preferir o termo “social” ao “coletivo” de Durkheim [...] buscou explorar a variação e diversidade das idéias coletivas nas sociedades modernas, enfatizando a idéia de produção, de criação coletiva de idéias, ligando o fenômeno das representações a processos implicados com diferenças na sociedade (França, 2004, p. 14).

Adotando um enfoque construcionista, Moscovici (1978, p. 48) defende que as representações sociais são plurais e dinâmicas, na medida em que os sujeitos podem produzir combinações surpreendentes a partir do reservatório de imagens. A construção das representações ocorre em um processo permanente de atualização através de interações cotidianas, práticas sociais, condutas individuais, teorias científicas, narrativas midiáticas, instituições. Como lembra Moscovici, as representações “circulam, cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano” (1978, p. 41). Tais atualizações configuram-se, pois, como processos comunicativos em que sentidos partilhados são, tácita ou explicitamente, reafirmados e/ou transformados. Como assinala Sandra Jovchelovitch (1998, p. 71), ancorada no legado do psicólogo romeno, as representações sociais “se produzem e crescem na comunicação intersubjetiva, e ao mesmo tempo são, elas próprias, um dos elementos que possibilitam a comunicação intersubjetiva”. Apreendemos o mundo com base nos quadros interpretativos partilhados ao mesmo tempo que materializamos esses quadros por meio de práticas sociais em que nos relacionamos com os outros. Essa visão mais complexa da noção de representação aparece também no conceito de frames (Goffman, 1986) e nos escritos de Stuart Hall (1997) sobre as representações sociais, para citar duas perspectivas muito usadas no campo da comunicação. Em ambos os casos, a comunicação emerge como forma expressiva que alimenta o ciclo recursivo por meio do qual sociedade e indivíduos constroem-se mútua e permanentemente. A partir dessas discussões, fica mais fácil perceber o modo como o audiovisual comunitário contribui para a pluralização 28


Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

da esfera pública. Esse tipo de produção cria novas possibilidades expressivas para que perspectivas e discursos circulem pela sociedade. Ao fazê-lo, essa forma de comunicação altera o conjunto de representações publicamente acessíveis, o que afeta não simplesmente as opiniões de sujeitos, mas a forma como interpretam o mundo e agem sobre ele. Ao tornar a trama pública de comunicação mais densa e diferenciada, o audiovisual comunitário contribui, assim, para que a própria esfera pública se faça possível e para que suas promessas democráticas se realizem. Vale lembrar aqui a definição arendtiana de espaço público, para que se perceba esse papel do audiovisual comunitário. Hannah Arendt (2005) aponta que, se o espaço público necessita da visibilidade, ele não se restringe a ela. O espaço público se constrói na tessitura coletiva de um mundo comum, que transcende os sujeitos sem prescindir deles. Remontando aos gregos, Arendt percebe que essa construção intersubjetiva possibilita aos homens edificar algo mais durável que suas vidas efêmeras. Se eles não possuem a imortalidade dos deuses, o mundo partilhado que atualizam permanentemente em suas ações linguageiras garante-lhes certa transcendência. Na visão de Arendt (2005), esse mundo comum atua simultaneamente articulando e separando os sujeitos. Ela explica esse aspecto através de uma metáfora em que o compara a uma mesa. A mesa liga as pessoas sentadas em torno dela, ao mesmo tempo em que se interpõe a elas. De modo semelhante, se o mundo comum serve de substrato partilhado a conectar os sujeitos, ele também atua como instância mediadora que distingue as pessoas. O mundo comum não é um mar de mesmice, mas uma trama heterogênea que se conforma mediante o confronto de uma pluralidade de olhares. Analisando o trabalho de Arendt, Vera Telles explica essa questão: “é a pluralidade dos pontos de vista que confere certeza ao que existe, sem que essa certeza se desdobre numa identidade que anularia as diferenças sob o signo de uma única opinião” (Telles, 1999, p. 43). A pluralidade é, portanto, definidora do espaço público, já que permite o surgimento do mundo comum. Para Arendt (2005), 29


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essa pluralidade é o elemento essencial da condição humana e da própria construção coletiva da realidade. Sem ela não se pode distinguir o legítimo do ilegítimo, o justo do injusto, o certo do errado (Telles, 1999, p. 46). Tal pluralidade se revela em nossa capacidade de agir, de criar e de estabelecer o novo, sempre em relação aos outros. A ação evidencia que não somos simplesmente moldados por representações que nos são externas, mas que participamos da construção coletiva desse imaginário. Nesse sentido, o audiovisual comunitário viabiliza que uma pluralidade de representações sociais se faça evidente, além de estimular a transformação dinâmica delas. Esse tipo de produção se conforma como possibilidade de alterar o mundo comum e permite a reinvenção das tramas intersubjetivas que alicerçam a realidade. Nota-se, pois, que seu potencial democrático não está em uma suposta oposição à mídia comercial nem simplesmente na positivação daqueles que são negativamente estereotipados. A pluralização da esfera pública deve ser concebida de modo menos instrumental, para que se compreenda a real dimensão da produção comunitária. Mais do que gerar um contrapoder com seus respectivos contra-argumentos, ela pode afetar a estrutura da trama semântica que alicerça a sociedade. O primeiro aspecto do potencial democrático do audiovisual comunitário passa, portanto, pelo fomento a uma reflexividade social ampliada,1 que se complexifica quando novos discursos e perspectivas se fazem incluídos. À medida que a constelação de discursos se torna mais densa e variada, a esfera pública se fortalece, e as soluções coletivas precisam se tornar publicamente justificáveis e epistemicamente mais elaboradas. Com isso, fazse mais provável a construção de soluções políticas e de valores mais respeitosos e mais aptos a evitar erros (Bohman, 2007). A ideia de reflexividade social ampliada remete a processos em que grupos sociais colocam padrões de interpretação e conduta em suspenso, para que sejam analisadas e talvez alteradas. Trata-se de um parar e pensar coletivo, que é capaz de deslocar fragmentos das redes tácitas de significação (Dewey, 1954; Mead, 1934; Schütz; Luckmann, 1973).

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Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

Garantia do direito à comunicação

O segundo aspecto que indica o potencial do audiovisual comunitário no fortalecimento da democracia está articulado à pluralização da esfera pública, ainda que não seja sinônimo dela. Trata-se da garantia do direito à comunicação. Frequentemente propagado por realizadores e estudiosos da comunicação comunitária, esse direito envolve tanto a questão do acesso à informação qualificada sobre questões de interesse público quanto a do acesso à possibilidade de expressão pública. O direito à comunicação é extremamente relevante para a democracia, sobretudo quando se adota uma abordagem discursiva. Isso porque ele não é apenas uma evidência da cidadania, mas a sua própria condição de possibilidade. Seguindo Vera Telles (1999, p. 15), entende-se que “direitos e cidadania significam um modo de nomear (e imaginar) as formas pelas quais as relações sociais podem ser reguladas e construídas regras civilizadas de sociabilidade”. Em estreito diálogo com Hannah Arendt, Telles aponta que a cidadania é essencial para que outros mundos possíveis e melhores sejam elaborados. Para que isso ocorra, a cidadania não pode ser entendida como um pacote de benefícios. Ela é uma construção processual que se efetiva ao longo de sua própria busca. “Ter direitos significa, portanto, no dizer de Hannah Arendt, pertencer a uma comunidade política na qual as ações e opiniões de cada um encontram lugar na condução dos negócios humanos” (Telles, 1999, p. 59-60). Trata-se, em síntese, do direito a ter direitos. O papel do audiovisual comunitário torna-se, então, evidente. Tendo em vista a importância das interações midiatizadas para a conformação do espaço público (Gomes, 1999), esse tipo de produção aparece como forma de ultrapassar os constrangimentos espaciais e discursivos impostos pela mídia convencional, instaurando possibilidades efetivas para que um número maior de pessoas se expresse publicamente (Downing, 2002; Thompson, 1998; Curran, 2000; Blumler, Gurevitch, 2001). O audiovisual comunitário cria condições para que algumas pessoas, que não teriam outros modos para se fazerem ouvidas, ocupem a cena 31


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pública e enunciem suas perspectivas. Além disso, garante que a população tenha acesso a informações, opiniões e perspectivas que, de outra maneira, não teriam, como exploramos na seção anterior. Seria possível levantar a ressalva de que o audiovisual comunitário tem uma visibilidade muito restrita. Essa ressalva incorre, contudo, em três equívocos. O primeiro é julgar a necessidade de uma visibilidade global para que a voz dos cidadãos se faça ouvida. É preciso lembrar aqui a ideia de sistema comunicativo formado pela articulação de diversas arenas de interação que se atravessam. A enunciação propiciada pelo audiovisual comunitário pode atravessar outras esferas de maneiras que não podem ser previstas nem controladas. O segundo equívoco consiste na supervalorização do produto em detrimento do processo. Lugar-comum entre os defensores do audiovisual comunitário, a centralidade do processo ainda é pouco pensada quando se enfoca a questão do direito à comunicação. A importância de se colocar, de formular argumentos e de expor posicionamentos na elaboração de um produto audiovisual pode ter implicações na forma como os sujeitos agem em outras arenas do referido sistema comunicativo. Ao lidar com o domínio do simbólico e ver-se confrontado ou corroborado por outras pessoas, o indivíduo é provocado a perceber que o engajamento na esfera pública é possível. Por fim, o terceiro equívoco da ressalva é pressupor que a visibilidade do audiovisual comunitário é sempre pequena. Para além das televisões de rua e das exibições em centros comunitários, que também são importantes, é preciso destacar a existência de uma ampla gama de experiências que vêm ocupando espaços de grande visibilidade. Trate-se das produções veiculadas no You Tube ou daquelas que se inserem nas grades de programação de televisões públicas, comunitárias e comerciais, há, hoje, um conjunto de realizações do audiovisual comunitário que se faz bastante visível.2 Vale citar aqui a experiência norte-americana da Deepy Dish TV que implantou em 1986 uma rede nacional de acesso público, veiculando produções por canais de mais de 400 cidades ao longo de dez semanas (Engelman, 1990).

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Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

Assim, o audiovisual comunitário promove o direito à comunicação na medida em que complexifica a infraestrutura comunicativa do espaço público. Ele cria novas possibilidades de interlocução, assegurando a liberdade de expressão, que é pressuposta pela democracia. O acesso público aos meios de comunicação é um elemento muito importante para que os cidadãos tenham direito a ter direitos na sociedade contemporânea. É interessante lembrar que esse argumento estava na base da luta por acesso público à comunicação em seus primórdios na América do Norte. Já nos anos 1960, o professor Jerome Barron defendia o direito à liberdade de expressão em mídias de acesso público (Engelman, 1990). O Alternate Media Center, fundado em 1971 em Nova York por George Stoney, também advogava a bandeira do direito à comunicação. Associando-se à indústria do cabo e a movimentos sociais diversos, o referido centro se apresentava como defensor da cidadania, justamente por assegurar que um direito tão negligenciado viesse a se tornar realizável. Esse direito ajuda a estruturar a própria democracia, uma vez que ela é entendida como a construção coletiva do interesse público. Mecanismo do sistema de resposta social

O terceiro aspecto que gostaria de discutir sobre a contribuição do audiovisual comunitário para o fortalecimento da democracia diz respeito à sua atuação como mecanismo do sistema de resposta social. De forma muito sintética, isso significa que as mídias comunitárias podem atuar como instância reflexiva do sistema midiático, ajudando a examiná-lo, criticá-lo e repensá-lo. A ideia do “sistema de resposta social”foi desenvolvida por José Luiz Braga, no livro A sociedade enfrenta sua mídia. Nessa obra, Braga (2006) aponta que é preciso pensar a comunicação midiática para além da produção e da recepção: Propomos, assim, desenvolver a constatação de um terceiro sistema de processos midiáticos, na sociedade, que completa a processualidade de midiatização social geral, fazendo-a efetivamente funcionar como comunicação. Esse terceiro

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sistema corresponde a atividades de resposta produtiva e direcionadora da sociedade em interação com os produtos midiáticos (Braga, 2006, p. 22, grifos do autor).

Na visão do autor, esse subsistema apresenta circulação diferida e difusa, consolidando-se em várias instâncias por meio das quais a sociedade responde a seus meios de comunicação. Essas respostas seriam fundamentais para a própria produção midiática, que se repensa permanentemente para se ajustar aos quadros de sentido e aos valores da sociedade. Assim, importa perceber que o sistema de resposta social não se restringe a fazer oposição aos veículos comerciais. Há muitas modalidades de interação entre a sociedade e a mídia: crítica, retorno, militância social, controle da mídia, sistematização de informações, processos educacionais e formativos, processos de aprendizagem em público. Essas modalidades se manifestam em produções acadêmicas, cartas de leitores, fóruns de debates, críticas de cinema, blogs, ombudsmen, conversas informais e ações judiciais, para citar alguns exemplos. Os dispositivos do sistema de resposta social fomentam um fluxo comunicativo acerca dos fenômenos midiáticos, tensionando-os continuamente. Esse debate social sobre a mídia é fundamental para a democracia, sobretudo se se adota uma perspectiva discursiva, centrada na noção de esfera pública: [...] uma premissa que consideramos essencial para o presente estudo é que qualquer hipótese de “esfera pública midiática” (isto é, um debate social produtivo e aberto sobre questões de relevância para a sociedade através de processos midiáticos) tem que ser precedida pela efetiva existência de debate social produtivo e aberto sobre os processos midiáticos (Braga, 2006, p. 54).

Isso se deve tanto às contribuições que o sistema de resposta social oferece ao subsistema de produção midiática quanto ao papel que desempenha junto aos receptores, fornecendo-lhes padrões e critérios para a escolha e a interpretação dos produtos. Braga explica que se trata não de ensinar o usuário a se defender 34


Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

da mídia, mas de “estimular uma cultura de opções pessoais e de grupos que qualifique os usuários a fazerem sua própria crítica, por sua conta e risco” (Braga, 2006, p. 63). Meu argumento é que o audiovisual comunitário é uma peça muito relevante desse sistema de resposta social por basicamente duas razões. A primeira delas é que as práticas e processos que levam a essa forma de produção estão calcadas em um amplo movimento social que se propõe a refletir sobre os meios de comunicação comerciais e a produzir algo diferente, sem que isso implique a constituição de um contrapoder. Esse amplo movimento se consolida através de uma série de fóruns e debates em que vários coletivos e associações se põem a pensar sobre os rumos da produção midiática e sobre a possibilidade de utilização das tecnologias da informação e da comunicação em outros contextos. A Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009, é um bom exemplo desses espaços de discussão fomentados em grande medida por atores envolvidos com a produção comunitária. A segunda razão da relevância do audiovisual comunitário para o sistema de resposta social reside na própria produção desses realizadores. A democratização dos meios de comunicação é um tema frequentemente abordado por eles, e várias produções analisam estratégias, conteúdos e formatos da mídia convencional. Curiosamente, o audiovisual comunitário se apropria da tendência contemporânea da autorreferência midiática, para criticar a mídia e propor alternativas a ela. Além desse metadiscurso audiovisual, os realizadores comunitários contribuem para a conversação social sobre a mídia, quando conseguem propor inovações (estéticas, de conteúdo, de abordagem) que desnaturalizam o modus operandi midiático. Ao inovar, eles evidenciam que o uso das tecnologias poderia ser diferente, bem como seus objetivos e seus impactos sociais. A pluralização estrutural que podem proporcionar contribui também para a complexificação do sistema de resposta social. É preciso salientar, novamente, que perceber a produção audiovisual comunitária como mecanismo do sistema de resposta 35


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social não implica percebê-la como oposta ao sistema da mídia. Ao contrário, significa entendê-la como parte do fluxo comunicacional mais amplo que alicerça a sociedade e as práticas sociais. Exatamente por isso, a contribuição do audiovisual comunitário para a democracia não se esgota nas suas produções. O cerne dessa contribuição passa justamente pela interface que esse tipo de produção tem com outras esferas da sociedade. Portanto, assim como nas duas seções precedentes, defendo que o audiovisual comunitário tem um papel infraestruturante, que é essencial para a própria existência da esfera pública e para o adensamento da constelação de discursos que a compõem. Se o modelo discursivo de democracia tem por núcleo um choque de discursos não coercitivos que promovem a reflexividade social (Dryzek, 2000), é absolutamente fundamental o fortalecimento das infraestruturas comunicativas que o possibilitam. E é justamente isso que, de várias maneiras, o audiovisual comunitário acaba por fazer.

Fomento à autorrealização Se o fortalecimento da democracia é uma das justificativas do fomento à produção audiovisual comunitária, gostaria de sugerir uma segunda razão que aponta para a relevância dessa modalidade comunicativa. Trata-se do fomento à autorrealização, uma condição fundamental para a promoção da justiça. A construção de uma teoria da justiça alicerçada na noção de autorrealização vem sendo defendida pelos teóricos do reconhecimento, sobretudo por Charles Taylor (1994; 1997) e Axel Honneth (2003a; 2003b). Esses autores argumentam que a sociedade justa é aquela que permite que os indivíduos se realizem, não apenas naquilo que partilham com os demais sujeitos, mas também naquilo que os faz únicos e idiossincráticos. Para tanto, os sujeitos precisam ser reconhecidos nos processos relacionais, públicos e privados, em que se engajam. Essa concepção de reconhecimento não implica que as pessoas devam buscar a promoção e a valorização de uma essência 36


Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

identitária previamente estabelecida. A autorrealização não pode ser confundida com autoafirmação, como se cada pessoa devesse ser apoiada na consecução isolada de seus desejos, independentemente das outras pessoas.3 A autorrealização é uma construção relacional, assentada em gramáticas morais que se sustentam intersubjetivamente (Honneth, 2003a). Para Axel Honneth (2003a), nas sociedades ocidentais contemporâneas, há basicamente três esferas fundamentais para a autorrealização: o amor, os direitos e a estima social. O amor permite que os sujeitos se vejam reconhecidos como pessoas simultaneamente carentes e autônomas, dependentes de outros sujeitos, que também dependem delas. O amor alicerça a capacidade dos sujeitos de confiar em si mesmos e no mundo em que se inserem. Os direitos, por sua vez, permitem-lhes que se notem como pessoas que partilham a universalidade do humano. Eles garantem uma igualdade generalizada, que sustenta o autorrespeito, na medida em que o sujeito percebe que também é digno de respeito como todos os outros. Por fim, a estima social permite que os indivíduos sejam valorizados exatamente por aquilo que não partilham com os demais. Ela permite a construção da autoestima. Nesse viés, a autorrealização requer gramáticas interativas que permitam aos sujeitos a vivência do amor, dos direitos e da estima. Tais gramáticas não garantem que todos sejam amados, respeitados e estimados a priori, mas buscam evitar que algumas pessoas se encontrem impossibilitadas de sê-lo. É nesse sentido que cotidianamente vários atores sociais lutam para eliminar barreiras institucionais ou culturais que cerceiam, sistematicamente, a possibilidade do amor, dos direitos e da estima social. Lutar contra uma lei discriminatória ou contra práticas sociais tidas como desrespeitosas é uma das maneiras pelas quais tais atores propõem novas gramáticas para o regimento das interações sociais. Tendo em vista a reciprocidade constitutiva Para uma resposta aos críticos do reconhecimento que confundem autorrealização e autodeterminação, como Nancy Fraser e Patchen Markell, ver Mendonça (2009).

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do reconhecimento, essas gramáticas devem reconhecer os outros como pessoas, cidadãos e sujeitos. Exatamente por isso, autorrealização e autodeterminação se distinguem (Mendonça, 2009). Autorrealizar-se não significa viver como bem se deseja, mas buscar seus desejos e o desenvolvimento de suas potencialidades em uma sociedade que não impede a nenhum de seus membros que faça o mesmo. Mas o que essa discussão sobre reconhecimento e autorrealização tem a ver com o audiovisual comunitário? Meu argumento é que o audiovisual comunitário faz parte dessas lutas por reconhecimento, por meio das quais sujeitos buscam gramáticas normativas que fomentem a autorrealização. Tendo em vista essa ideia geral, gostaria de desenvolver dois aspectos a ela relacionados: (1) o audiovisual comunitário como possibilidade de expressão de novos padrões de reconhecimento; e (2) a transformação da identidade ao longo da própria luta por reconhecimento. A expressão de novos padrões de reconhecimento

O primeiro ponto a ser desenvolvido, e o mais óbvio deles, argumenta que o audiovisual comunitário se configura como uma modalidade expressiva que permite o deslocamento de gramáticas interativas. Diversos grupos, coletivos e indivíduos engajados no movimento de comunicação comunitária estão lutando por reconhecimento. Seja porque buscam mostrar que a favela não se resume à violência e à criminalidade, seja porque desejam tematizar a questão dos direitos de lésbicas e gays, seja porque abordam o descaso do poder público em relação a certas populações, seja porque evidenciam as incivilidades da vida cotidiana, muitos realizadores tentam propor outros padrões relacionais que garantam a todos a possibilidade de autorrealização. Cabe destacar que frequentemente esses padrões alternativos não envolvem uma completa mudança da sociedade. Muitas vezes, atores lutando por reconhecimento mostram à sociedade que as expectativas normativas que ela pressupõe válidas são 38


Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

sistematicamente desrespeitadas. Busca-se descortinar como são rotineiramente ignorados padrões de conduta esperados e apoiados. Mostra-se, por exemplo, que, se a igualdade da condição humana é plenamente aceita, o exercício dessa igualdade encontra-se frequentemente inviabilizado. Na mesma linha, argumenta-se que alguns sujeitos são desvalorizados a priori, independentemente das contribuições que possam vir a oferecer à sociedade. Demonstra-se que a inviolabilidade do corpo, essencial à autoconfiança, é desafiada por episódios de tortura, violência familiar e agressão policial, para citar alguns exemplos. Assinale-se ainda que o audiovisual comunitário se engaja nessas lutas por reconhecimento não simplesmente pelas temáticas que apresenta. As próprias inovações estéticas, encetadas por essa produção não comercial, viabilizam a proposição de novos padrões de interação. A possibilidade de surpreender os outros atores sociais, de falar-lhes de maneiras inusitadas, de assustá-los com uma linguagem pouco usual e interpelá-los com narrativas distintas induz à reflexividade. A inovação estética, justamente por sua capacidade desestabilizante, irrompe como algo que move os sujeitos da acomodação de seus padrões interpretativos, instaurando a possibilidade de refletir sobre eles. Para além do conteúdo e dos argumentos, portanto, a luta por reconhecimento se expressa, aqui, nas várias possibilidades de deslocamento das gramáticas interacionais. Em suma, meu argumento é que produções audiovisuais comunitárias permitem que muitos sujeitos se expressem publicamente para participar da permanente construção relacional dos padrões interativos de uma sociedade. Trata-se claramente de outra face das já mencionadas pluralização da esfera pública e garantia do direito à comunicação. A questão é perceber que, para além do fortalecimento da democracia, essas questões têm importância para a promoção da justiça e para a própria possibilidade da autorrealização. Para além da construção de uma sociedade democrática, o audiovisual comunitário perpassa processos de configuração identitária atravessando a conformação de sujeitos e as lutas políticas que os alicerçam. 39


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A transformação da identidade ao longo da própria luta por reconhecimento

A conclusão da seção anterior já introduz o segundo aspecto a ser ressaltado. Ao criar novas interlocuções e interações sociais, o audiovisual comunitário engendra uma dinâmica social que fomenta a transformação das identidades. Ao lutar por reconhecimento, através da expressão comunitária, grupos e indivíduos não simplesmente expressam seus desejos, mas são transformados pela própria interlocução que fazem avançar. Para explicar melhor esse aspecto, cabe destacar as ponderações de Patchen Markell (2003) que, embora se definisse como crítico à teoria do reconhecimento, propõe uma perspectiva inteiramente compatível com ela. Markell (2003) recorre às tragédias gregas para argumentar que, nelas, a identidade dos personagens não é anterior às ações, mas se constrói a partir dos desdobramentos das próprias ações. Markell analisa a Antígona, de Sófocles, para mostrar que a identidade dos protagonistas (Antígona e Creonte) não está previamente estabelecida, visto que suas ações e suas condutas geram conflitos com as identidades que eles anunciam (Markell, 2003, p. 74). Na trilha de Aristóteles e Arendt, Markell defende que a ação precede a identidade, e não o contrário. A ação projeta os seres humanos em um mundo de causalidade, iniciando sequências de eventos que, uma vez iniciados, continuam sem necessariamente respeitar as intenções dos agentes. Esse fato da causalidade da ação humana obviamente desafia nossa capacidade de controlar as consequências de nossas ações, na medida em que nos impede de situar uma fronteira natural e incontroversa entre nossas ações e os eventos que sucedem delas (Markell, 2003, p. 78, tradução nossa).

Justamente em virtude da imprevisibilidade desencadeada por uma ação, os próprios sujeitos se veem alterados ao longo de suas ações. O argumento de Markell, portanto, é que não se pode pensar as lutas identitárias como conflitos pela afirmação 40


Alguns argumentos em prol do audiovisual comunitário

de uma essência, já que as próprias identidades se transformam no decorrer da luta. Na mesma direção, James Tully (2000) também defende que as lutas por reconhecimento atravessam os sujeitos, alterando sua própria compreensão do self e seus anseios. A interlocução, como construção relacional, não simplesmente expressa as demandas de sujeitos reivindicantes, mas participa da reconfiguração dessas demandas. O espaço intersubjetivo atualizado na interlocução retroage sobre os sujeitos e permeia a própria construção enunciativa, como já anunciava Bakhtin (1992). Exatamente por isso, o audiovisual comunitário não deve ser entendido simplesmente como uma forma para que certos sujeitos (geralmente definidos como em situação de risco social) apresentem suas opiniões. Essa enunciação comunitária também transforma os realizadores. Ela é parte de um processo contínuo em que sujeitos, demandas, padrões interpretativos e gramáticas morais são intersubjetivamente constituídos. Rose Hikiji (2010), em artigo apresentado neste volume, demonstra exatamente esse ponto. Ela argumenta que o “cinema de quebrada” fomenta autodeslocamentos, mais do que autorrepresentações, na medida em que os enunciadores se transformam no contato com os outros. Nessa perspectiva, o audiovisual comunitário não é visto como instrumento para a autodeterminação. Ele emerge como espaço comunicativo que permite a edificação de gramáticas sociais compatíveis com a autorrealização. Ele é mais um fio no interior do tecido em que indivíduos e sociedade se constroem continuamente, fio cuja riqueza reside na possibilidade de pluralizar as interações sociais.

Considerações finais Neste artigo, procurei discutir dois eixos de justificativa para a produção audiovisual comunitária: o fortalecimento da democracia e o fomento à autorrealização. Para abordar o primeiro, explorei como essa forma de produção comunicativa pode contribuir para a pluralização da esfera pública, para a garantia 41


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do direito à comunicação e para o aprimoramento do sistema de resposta social. No que concerne ao segundo eixo, explorei o modo como o audiovisual comunitário permite a enunciação de novos padrões interativos e fomenta transformações identitárias ao longo das lutas por reconhecimento. Meu intuito foi evidenciar que essa produção não deve ser vista como instrumento de autoapresentação que permite que os pobres se oponham ao domínio da mídia comercial. A comunicação comunitária precisa ser pensada de forma mais complexa: como um elemento da grande infraestrutura comunicativa que alicerça as práticas socioculturais. É preciso pensá-la por um enfoque mais abrangente, que veja como é atravessada por outras esferas comunicativas, incluindo os meios de comunicação convencionais, com suas gramáticas e modalidades expressivas. Do mesmo modo, é preciso entender que essa forma de comunicação não se encerra em si mesma ou nas comunidades a que muitas vezes se destinam as realizações. Elas são importantes para o próprio funcionamento da democracia e para o desdobramento das lutas voltadas à garantia das condições de autorrealização. Contraponho-me, portanto, àqueles que julgam que a função da comunicação comunitária é o fortalecimento do sentimento de comunidade de vários grupos (culturais, geográficos, políticos, religiosos). Na perspectiva aqui advogada, a riqueza da comunicação comunitária surge exatamente da ultrapassagem do sectarismo, na medida em que se estabelecem novas possibilidades para uma interlocução social generalizada. Se a comunicação comunitária deve fortalecer uma comunidade, esta não pode ser entendida como um conjunto de guetos isolados, mas deve se aproximar daquilo que Dewey (1954) chamava de grande comunidade, que atravessa a sociedade como um todo. Foi a percepção gradual dessa potencialidade do audiovisual comunitário que me mostrou a riqueza desse universo quando, em 2003, aproximei-me dele. De lá pra cá, conheci grupos, coletivos e ONGs dedicados a esta causa. A produção comunitária tem crescido e ocupado importantes espaços. Diversificam-se os fóruns de realizadores e as arenas de debates de produções. O 42


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importante, agora, é fomentar o atravessamento dessas instâncias e das próprias produções por outras arenas comunicativas, incrementando o diálogo do audiovisual comunitário com a sociedade.

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CAPÍTULO Ii

Vídeo e movimentos sociais – 25 anos depois Luiz Fernando Santoro

O

lhar para o movimento de vídeo dos anos 1980, no início da década de 2010, obriga-nos a reler textos e manifestos, rever produções audiovisuais e tentar compreender as coisas que aconteceram ou deixaram de acontecer quanto ao uso do vídeo pelos movimentos sociais populares. A crença na revolução social por meio da comunicação ou na educação popular através do uso do vídeo deu lugar, nos últimos anos, a uma crescente e presente utilização desse instrumento como meio de expressão de realizadores pertencentes a diferentes grupos sociais. Esses grupos tiveram distintas formações, em geral desvinculadas das organizações e movimentos que, havia 30 anos, davam razão e sustentação à existência da produção em vídeo. O movimento de vídeo ganhou força no Brasil e na América Latina na década de 1980, a partir das necessidades de grupos sociais ausentes dos meios de comunicação. Com o vídeo, tais grupos tiveram aumentadas as possibilidades de registrar e difundir ações, lutas e ideias. Encontros, festivais, seminários e oficinas para realizadores foram espaços férteis para a difusão dessas possibilidades, para a troca de experiências e para 47


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a articulação de ações comuns. Surgiram, assim, consistentes movimentos de produtores de vídeo de interesse social no Brasil e na América Latina, a exemplo do que já acontecia com os produtores e os gestores de TVs de Acesso Público e TVs Locais nos Estados Unidos e no Canadá. Na segunda metade da década de 1980, os festivais de cinema e vídeo do Rio de Janeiro, de Salvador e de São Paulo; o Festival del Nuevo Cine Latinoamericano, em Havana; os encontros de vídeo em Santiago, Montevideo, Lima e Cochabamba atraíram o interesse concreto de várias ONGs do exterior, com a intenção de promover o vídeo como mais um instrumento para a democratização da América Latina. Geraram também um número considerável de material escrito, que teve ampla divulgação na época, levando os novos realizadores que atuavam nessa área a se integrar ao movimento. Tais realizadores tiveram posteriormente muita influência na definição de políticas públicas para o setor audiovisual em diversos países latino-americanos, como Brasil, Argentina, Chile e Peru. Na área acadêmica, ainda na década de 1980 e na primeira metade dos anos 1990, o vídeo foi tema de dezenas de pesquisas de mestrado e doutorado, até deixar de ser o centro de interesse com a chegada da internet – um tema novo que despertou a curiosidade dos pesquisadores e militantes. A Escola de Comunicações e Artes da USP, a Universidade Metodista de São Paulo, a PUC-SP e o Mestrado em Multimeios da Unicamp produziram teses e dissertações sobre as mais importantes experiências realizadas no Brasil e no exterior, como pode ser constatado nos sites dessas instituições e no banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação (CAPES).1 Os parâmetros para a definição do chamado vídeo popular, como consideramos no capítulo inicial do livro A imagem nas mãos (1989), ganharam novos contornos. Na época, a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), que reunia grupos e 1

Disponível em: <http://servicos.capes.gov.br>.

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Vídeo e movimentos sociais – 25 anos depois

realizadores que produziam vídeo e atuavam junto a movimentos sociais, abrigava uma intensa discussão sobre o conceito de vídeo popular, considerado pela maioria dos ativistas como o vídeo produzido pelos próprios grupos e entidades populares, em geral com equipamentos e equipes próprias. Ficava em segundo plano a então chamada produção independente, com os vídeos sobre temas de interesse social produzidos por realizadores ou grupos de produção. Esses produtores trabalhavam de forma independente ou eram contratados para trabalhos específicos por organizações sociais como sindicatos, associações civis, partidos políticos, entre outros. Em nosso livro, procuramos superar essa dicotomia, considerando, de forma ampla, vídeo popular como qualquer produção de interesse dos movimentos sociais. Na definição, incluem-se as produções de integrantes dos movimentos sociais, as que são realizadas por profissionais em conjunto com os integrantes de movimentos populares e aquelas elaboradas por profissionais sob a orientação de lideranças populares. Aceitavam-se, assim, as diferentes formas de produção da época, desde a inserção dos realizadores dentro dos movimentos populares, até as produções realizadas a partir de um olhar externo sobre ações e manifestações populares, feitas por videastas independentes ou contratados. Na verdade, tal definição procurava acompanhar a realidade, que era multifacetada em função das diversas modalidades de atuação. Mesmo nos grupos de vídeo em que os próprios integrantes dos movimentos sociais participavam da produção, como na TV dos Trabalhadores do Sindicato dos Metalúrgicos, de São Bernardo do Campo, havia uma integração na concepção e na realização dos vídeos com profissionais e intelectuais contratados.

O interesse recente pelo vídeo popular A partir da segunda metade da década de 2000, chama a atenção o novo e revitalizado interesse pela produção de vídeo, sobretudo do vídeo popular, ou de interesse social, em função de alguns indicadores: 49


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• Prefeituras, governos estaduais e ONGs têm realizado cursos e oficinas de produção em centros culturais e escolas, trazendo novos realizadores, sobretudo, grupos de áreas periféricas em grandes cidades, para o universo audiovisual. Esses grupos reavivaram a produção de vídeo junto aos movimentos sociais, tratando de temas do cotidiano regional e local, ainda ausentes nas grandes redes de TV. Os espaços de exibição são, contudo, bem limitados, pois se resumem frequentemente a mostras fechadas e à internet, pouco acessíveis ao público-alvo. • O diálogo possível com o poder público e as políticas de incentivo à produção audiovisual, mais evidentes a partir das ações do Ministério da Cultura no governo do presidente Lula e de alguns governos estaduais e municipais, sobretudo, nos últimos dez anos. • Estabelecimento de novos espaços de exibição para a produção independente, principalmente nas emissoras de TV a cabo, que acabam por gerar uma interessante oxigenação da programação. Incluem-se aqui as emissoras do setor público, como as comunitárias, educativas, universitárias, locais e legislativas. Já se pode observar uma crescente diversidade de programação e uma produção cada vez mais segmentada. • A evolução na qualidade e a redução nos preços dos equipamentos de produção de vídeo. Importa destacar ainda que a convergência tecnológica aproxima a internet e a telefonia móvel da produção audiovisual. Buscam-se novos conteúdos sobretudo para públicos jovens, de todas as classes sociais, que dialogam com agilidade e sem preconceitos com essas mídias digitais. O próprio conceito de qualidade técnica das gravações vem sendo revisto pela clara preferência por uma boa história ou narrativa. O público jovem aceita sem problemas gravações domésticas feitas com telefones móveis ou máquinas fotográficas. A produção audiovisual independente, direcionada para públicos específicos, encaixa-se perfeitamente nesse modelo, que abre novas perspectivas para o vídeo de interesse social. 50


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Esses aspectos trazem novos desafios e oportunidades para os realizadores, pois superam alguns dos grandes problemas do movimento de vídeo iniciado no Brasil nos anos 1980. • O custo de produção e dos equipamentos. Na época, os equipamentos básicos de gravação e edição tinham o formato VHS ou Super VHS, que possuíam evidentes limites técnicos, mas eram os únicos acessíveis: uma câmera custava cerca de 1.500 dólares, dez vezes menos do que equipamentos profissionais (nos antigos formatos U-Matic e, posteriormente, Betacam). Além da câmera, o maior limitador da produção estava nas características da ilha de edição, que era on-line, feita em corte seco; isto é, sem recursos de tratamento ou mixagem de imagem, tinha apenas um simples controlador das duas máquinas play e record. A pós-produção ou uma simples fusão de imagens exigia mais equipamentos e maior sofisticação em sua operação, que escapava da realidade e do conhecimento técnico dos grupos produtores. Recursos como o gerador de efeitos videotoaster, de baixo custo, trouxeram ao final dos anos 1980 um pouco mais de criatividade e acabamento nas produções.2 • A deficiente formação técnica e de repertório dos produtores. Ainda que o conteúdo e a abordagem dos temas fossem interessantes, a precária formação técnica, operacional e de repertório dos realizadores era evidente. Em geral, os grupos eram híbridos, com integrantes oriundos de escolas de comunicação, ou com formação em cinema e TV, misturados com ativistas vindos dos movimentos sociais e das lutas populares, que tinham intensa vivência dos problemas retratados nos vídeos, mas pouca referência 2

Esse problema foi atenuado quando a ABVP recebeu recursos para implantar ilhas de edição com melhor qualidade (semiprofissionais) em várias capitais brasileiras, com o objetivo de cedê-las aos produtores populares e, assim, colaborar com a melhoria da qualidade de finalização dos programas. Vários desses centros de pós-produção foram as sementes de canais comunitários locais.

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com relação ao universo audiovisual. Os programas deixavam em segundo plano ou até negligenciavam aspectos estéticos, ou de intervenção dos realizadores no conteúdo dos depoimentos e das entrevistas. A edição, a supressão de trechos ou remontagem de partes dos discursos de lideranças e especialistas eram pouco comuns. Em realidade, a maior parte dos integrantes desses grupos não assistia a programas de televisão ou filmes de forma metódica nem estudava a história e a linguagem do audiovisual. O repertório básico era, portanto, o próprio universo das produções em vídeo de outros realizadores populares, discussões em grupo e relatos de experiências, sistematizadas em reuniões, encontros e mostras organizadas por associações, como a ABVP. • Reduzidos espaços de exibição. Nos anos 1980, a TV a cabo estava começando no Brasil, e as experiências canadenses, norte-americanas e francesas eram as referências teóricas disponíveis. A TV comunitária era uma promessa em processo de discussão, e uma das principais formas de difusão dos vídeos produzidos pelos grupos populares era a multiplicação de cassetes VHS, que eram distribuídos para entidades e pessoas que se propunham a exibir tais produções em escolas, associações, igrejas, comunidades, etc.3 A ausência de políticas para a difusão ao grande público pressionou os realizadores a estabelecer circuitos alternativos, mas limitados, restringindo a divulgação e o impacto de suas produções na opinião pública. Nesse sentido, a ABVP e a Cinema Distribuição Independente (CDI) identificaram o problema e, com o apoio inicial da Unesco e de ONGs internacionais, como a italiana Crocevia, estabeleceram um projeto consistente de empréstimo e aluguel de vídeos e filmes, dentro da lógica dos videoclubes e das videolocadoras comerciais, que durou mais de uma década. Por meio desse projeto, muitos dos programas de vídeos chamados de alternativos ficaram bastante conhecidos por públicos específicos, sendo utilizados como instrumentos de debate e de educação. Os principais clientes eram professores, animadores culturais e ativistas políticos e sociais, que exibiam esses vídeos para grupos organizados, valorizando os temas e as abordagens diferenciadas ausentes na grande mídia. Em geral, tais pessoas tinham o objetivo de conscientizar, educar e formar opinião.

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Com dificuldades de ordem econômica, de linguagem e de veiculação, as produções eram bastante simples. Tinham forte viés jornalístico, e a narrativa era estabelecida sem que os processos de refazer, recriar e corrigir integrassem a edição e a pós-produção. Algumas correções banais exigiam refazer todo o trabalho ou mais uma cópia do material editado, o que reduzia a qualidade final do produto. Nesse sentido, observa-se que a retomada do audiovisual popular nos anos 2000 foi impulsionada pela superação de alguns dos problemas que marcaram a geração de 1980.

Para além do aprimoramento técnico: a discussão política Se os anos 2000 assistem a um significativo aprimoramento técnico das produções populares, muitos dos velhos problemas permanecem em discussão, como qualidade e financiamento dos vídeos, o papel dos comunicadores nas lutas sociais e populares, as coproduções e coalizões, as articulações sociais e a participação na definição de políticas públicas. Os avanços tecnológicos determinaram mudanças interessantes na atuação dos grupos populares e geraram projetos criativos basicamente centrados na internet. Tal avanço fomenta um otimismo técnico, em que uma nova tecnologia promete mais educação e democracia na comunicação. No entanto, um conceito central não deve ser esquecido nesses projetos, que em geral contam com participantes empolgados com o domínio de uma tecnologia: a ideia de que a luta por uma sociedade mais democrática, pela transformação social ou pela educação popular não se faz pela hipervalorização da tecnologia, como se acreditava na opção revolucionária do vídeo ou do rádio. Não se faz uma sociedade melhor sem articulação com as reais lutas sociais. As experiências mais consistentes de rádios livres, tanto na Europa quanto na América Latina, seguiram essa lógica de articulação com movimentos sociais que davam a elas o sentido de existir. Não eram apenas projetos de comunicação radiofônica. 53


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McChesney (2000) deixa claro que há uma ilusão em considerar a questão da democracia como uma questão tecnológica. Não basta ter acesso às informações: é fundamental que haja ações em comum e pressões para a definição de políticas públicas. Saber mais não significa que haverá mudanças; é preciso agir. Para McChesney, a democracia se faz com igualdade social ou diminuição das desigualdades. Uma comunicação mais democrática não garante isso e pode até ser parte do problema. Os milhões de sites hoje existentes podem trazer a diversificação nas fontes de informação, mas podem também acentuar as tendências antidemocráticas da concentração de mídias e reforçar a supremacia dos grandes grupos econômicos e políticos. As lutas da comunicação devem estar combinadas com bandeiras como reformas políticas, direitos dos trabalhadores, direitos civis, proteção ambiental, saúde para todos, reforma tributária, educação, entre outras. O importante é não entender comunicação como uma área de atuação e conhecimento desvinculada de todos esses aspectos, mas como algo que pode ajudar a todas essas lutas. Os militantes do vídeo popular muitas vezes tiveram, e ainda têm, uma clara compreensão desse aspecto do problema, mas a precisão no tratamento da informação e a busca por narrativas e linguagem audiovisual diferenciadas e criativas quase sempre leva a conflitos com lideranças e entidades que encomendam ou financiam os vídeos. O acerto no discurso político nem sempre atende à liberdade necessária ao processo de criação e às preocupações estéticas. Equilibrar esses aspectos estéticos e de conteúdo político sempre foi uma das principais dificuldades dos realizadores de vídeo popular. As câmeras custam cada vez menos, e a qualidade é cada vez mais próxima à das profissionais. Os processos de edição e pós-produção acessíveis não deixam nada a desejar em relação às produções da grande mídia. A lógica de funcionamento dos softwares de edição não lineares permite que se refaça e se corrija o vídeo constantemente, fazendo com que certos procedimentos, antes utilizados apenas no cinema, pudessem penetrar no 54


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universo do vídeo. Assim, um programa de vídeo pode ser aperfeiçoado, sem perda de qualidade. Gravações adicionais e complementares podem ser feitas. Novas informações em lettering podem ser agregadas ao programa. Enfim, a criatividade dos realizadores pode ser exercida no intuito de buscar resultados cada vez melhores. As fundamentais correções de cor, de áudio e até de enquadramento permitem a busca da qualidade em seus detalhes, além de exigir mais formação técnica e desafiar os limites da criação. Assim, a linguagem dos vídeos pode superar a narrativa simples do jornalismo, trabalhando e retrabalhando, à exaustão, sequências de imagens do programa. Essas possibilidades técnicas colaboram para melhores soluções não apenas estéticas, mas também de intervenção e tratamento dos conteúdos dos programas, o que acaba permitindo a confecção de vídeos, em geral, mais elaborados. A questão é pensar, contudo, como deve ocorrer a formação de produtores de vídeo popular. Existe uma crença equivocada de que um bom conhecimento da linguagem audiovisual é a garantia de uma boa formação. A quase totalidade dos cursos que existem no mercado enfatiza o manuseio da câmera e da ilha de edição, por meio de um grande conhecimento dos recursos dos equipamentos e de informações sobre a“gramática da imagem”. Há, todavia, uma falta de metodologias que fomentem a ampliação do conhecimento de outras referências audiovisuais, ainda que o YouTube e as diferentes presenças de vídeo na internet facilitem definitivamente essa tarefa. Em decorrência do desconhecimento teórico e da pouca leitura sobre a produção audiovisual, muitas vezes, os realizadores deparam-se com problemas e dilemas considerados e estudados desde o início do cinema militante, das rádios livres, das primeiras TVs comunitárias, em que se discutiram o papel dos comunicadores e se experimentaram elementos de linguagem e narrativas diversas. A autossuficiência de ter em mãos uma câmera com grande qualidade e um software de edição com amplas possibilidades cria a sensação perigosa de que a sofisticação tecnológica basta para uma produção interessante e com qualidade técnica. 55


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Novos espaços de exibição A consolidação das emissoras comunitárias e locais é outro desafio fundamental para os produtores de vídeo. Em 2009, havia mais de uma centena dessas emissoras legalizadas em todo o País. Reunidas em associações, como a Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM) e a Associação dos Canais Comunitários do Estado de São Paulo (ACCESP), tais emissoras não são apenas videocassetes públicos, em que cada entidade leva o seu programa para ser exibido, mas participam intensamente, de forma associada, das discussões sobre políticas públicas de seu interesse, como possibilidades de financiamento da produção e operação ou a migração para ondas abertas, possível com a TV Digital. Algumas emissoras, como a TV Aberta de São Paulo, transmitem semanalmente cerca de 170 programas produzidos por incontáveis associações de diferentes orientações políticas e ideológicas, numa lógica de tolerância e coexistência. As TVs comunitárias têm sido criticadas pelos desníveis na qualidade técnica dos programas exibidos ou pela baixa audiência dos programas. Contudo, há que se entender sua existência exatamente nessa limitação: a diversidade dos conteúdos e dos realizadores traz naturalmente a discrepância de qualidade, que deve ser entendida como característica dessas emissoras e não como deficiência. A busca da uniformidade da qualidade, como acontece nas TVs convencionais, dificulta a participação de novos produtores; elimina a possibilidade de diversidade; impede a experimentação e a inovação, sempre em nome de um padrão de qualidade. Para as emissoras locais e comunitárias, a saída é a busca por políticas públicas que facilitem o investimento em melhores equipamentos, em cursos de formação técnica e de ampliação de repertório audiovisual para os realizadores. No que concerne aos baixos índices de audiência, uma indagação parece atravessar a história do audiovisual popular: para que produzir se ninguém vê? Essa questão assombrou os produtores populares nos anos 1980 e 1990, quando existiam apenas espaços de exibição junto a grupos de discussão. Chegar 56


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a uma TV era a vitória máxima. A busca por audiência similar à das grandes redes, com sua programação voltada ao grande público, sempre foi o ponto fraco das emissoras educativas, públicas, universitárias e comunitárias. Afinal, de que adianta uma TV diferenciada, de qualidade, se ninguém a vê? Aqui, há um equívoco na definição de público e audiência. A questão não deve ser equacionada em termos de audiência absoluta, mas de audiência dentro de um limitado público-alvo. Em seu livro The Daily Planet, Patricia Aufderheid (2000, p. 115, tradução nossa) tem uma frase interessante sobre a relação entre TVs públicas e TVs comunitárias e o confronto com as grandes redes: “não queremos competir, mas incomodar, experimentar, mostrar diferentes visões de mundo”. A ideia é preencher os espaços deixados pelas redes de TV. As redes sociais, via internet, trazem novas perspectivas de se atingir públicos mais definidos. A palavra de ordem é articulação de telespectadores dispersos e a energização e a divulgação por meio dessas redes. Um trabalho de garimpagem fascinante e desafiador. Os novos e crescentes espaços na internet, nos últimos anos, têm sido um dos principais meios para a divulgação da produção de vídeo dos movimentos sociais. Afinal, a partir de meados dos anos 1990, toda a atenção da militância migrou para a web, e os projetos de comunicação passaram a privilegiar a rede. No plano da difusão de ideias e informações, o alcance da internet é cada vez maior, e as políticas públicas de sua universalização por meio da banda larga gratuita trazem perspectivas otimistas. A chegada do vídeo à internet, sintonizado com a ampliação da banda larga, traz maior interesse e mais diversidade na navegação, fazendo da convergência tecnológica algo fascinante e imprevisível. Contudo, a natureza da produção audiovisual não se vê inteiramente transformada: alguém sempre terá que fotografar, escrever e filmar. Essa é a nossa vocação, como produtores de conteúdo audiovisual para a TV ou para a internet, na IPTV ou na tela dos telefones celulares. Os desafios abertos pelas novas tecnologias são muito interessantes, pois ampliam os parâmetros de uma produção audiovisual, que não tem apenas 57


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que ter boa qualidade de conteúdo, de áudio e de vídeo, mas uma articulação social mais ampla para que seja acessível a, e visto por, um número grande de espectadores na TV, na internet ou no telefone móvel. O uso das redes sociais para a promoção e a formação de públicos específicos começa a ganhar peso no início da década de 2010 e deve ser o grande diferencial para que tais vídeos possam ter maior impacto na formação da opinião pública, de maneira complementar aos programas das redes de TV. A questão de fundo é refletir sobre os modos pelos quais essas ações fragmentadas e pulverizadas na web podem fazer com que a produção de vídeo nos movimentos sociais tenha impacto na opinião pública. Imaginar que esse impacto seja semelhante ao da grande mídia em geral não passa de uma miragem. Isso não quer dizer, contudo, que tal impacto inexista. Exemplos pontuais de sucesso podem servir de parâmetro para a reflexão, pois alguns desses programas têm impactos surpreendentes na opinião pública. É o caso do videomaker MV Bill, que teve trechos de um documentário sobre violência e crianças (Falcão, meninos do tráfico) reproduzido pela TV Globo, no Jornal Nacional e no Fantástico. Nos dias que se seguiram à veiculação das imagens, houve grande repercussão, até mesmo em debates do Congresso Nacional. Nos movimentos populares, existem centenas de vídeos que tratam de temas semelhantes e que, em alguns casos, poderiam causar efeitos semelhantes, se amplificados pelos meios de comunicação de massa. No entanto, eles permanecem nas prateleiras, sem despertar o interesse das grandes emissoras, que preferem tratar os temas sob sua própria ótica. Seria fundamental estabelecer políticas públicas que permitam que essas produções possam chegar ao grande público. O dilema passa, por vezes, pelo desejo de intervenção na grade de programação das grandes redes, sendo sugerida a obrigatoriedade de maiores porcentagens de produção nacional. Em nosso entender, isso colabora pouco para ampliar a visibilidade da produção independente. Há sempre o risco de repetição do modelo norte-americano, em que grande parte da programação é produzida fora das emissoras, mas privilegiam-se os produtores 58


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mais estruturados que propõem projetos ou aceitam encomendas de acordo com o interesse das emissoras, e não com as necessidades e os interesses populares. Outra possibilidade para que se pense em uma programação com visões de mundo diferenciadas pode ser encontrada em experiências significativas nos Estados Unidos. Emissoras de acesso público e projetos como o Deep Dish TV4 ou, mais recentemente, o Democracy Now!,5 são exemplos interessantes. Esses projetos incluem estratégias de articulação, promoção e energização dos programas, buscando não apenas formar públicos específicos, mas também atingir parcelas maiores da população. Um dos desafios mais interessantes e importantes para que a produção independente possa causar impacto na opinião pública passa pelos conceitos de coalizão e de coprodução sobre temas de impacto, deixados de lado ou tratados de forma incompleta pela grande mídia. Diferentes visões sobre tais temas podem ser reunidas, editadas e distribuídas nacionalmente, como fazem os projetos Deep DishTV e Democracy Now!, desde que articulados com as redes sociais via internet para a formação de públicosalvo específicos.

Audiovisual popular e políticas públicas Há possibilidade concreta de discutir de forma permanente políticas públicas para educação, comunicação e cultura. Nos

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Ver <http://www.deepdishtv.org>. Criada há cerca de 25 anos, é uma das mais significativas experiências de coprodução e distribuição de vídeos via satélite para emissoras públicas e comunitárias, uma coalizão que envolveu milhares de produtores de vídeo, organizações, associações e ativistas sociais, mostrando conteúdos coproduzidos diferenciados dos da mídia corporativa.

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Ver <http://www.democracynow.org>. Trata-se de um programa de notícias diário, independente, em rede nacional, realizado por profissionais renomados, para emissoras de rádio e TV, com um tratamento e uma abordagem dos temas jornalísticos diferentes do que fazem as grandes redes. Democracy Now! é o maior projeto de colaboração entre mídias públicas dos Estados Unidos: envolve emissoras de rádio e TV, públicas, locais, educativas e independentes, além disso está presente na web (IPTV).

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anos 1980, festivais de cinema e vídeo, encontros de produtores e seminários acadêmicos eram espaços privilegiados para essa discussão. O projeto de distribuição da ABVP com a CDI, em meados da mesma década, aproveitou a experiência de realizadores mais ligados ao cinema, que se moviam com mais naturalidade no diálogo com setores públicos na definição de políticas sobretudo de financiamento. Contudo, os realizadores de vídeo popular trouxeram um tom mais político à discussão e inviabilizaram, muitas vezes, o diálogo com setores públicos, porque defendiam posições opostas àquelas advogadas por tais poderes. A crescente democratização do País e as recentes mudanças nos critérios de financiamento de projetos culturais, incluindo a multiplicação dos Pontos e Pontões de Cultura do MinC e a valorização dos meios de comunicação locais e regionais pelo governo do presidente Lula, trazem novas esperanças. Convém mencionar os significativos avanços proporcionados pela Primeira Conferência Nacional de Comunicação. Realizado em dezembro de 2009, em Brasília, o encontro teve como tema Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital. Nele, discutiram-se muitas das preocupações e reivindicações apontadas pelos comunicadores populares. Embora não tenham um caráter determinativo, as conclusões e recomendações do encontro constituem um rico referencial para o estabelecimento de projetos em parceria com os poderes públicos e para a aplicação de políticas para o setor. Os produtores de vídeo de interesse social não tiveram espaços de discussão e de representação específicos na Conferência. No entanto, muitas de suas preocupações acabaram sendo representadas e defendidas por outras associações, com áreas de interesse em comum, como a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO), a Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM), o Coletivo Intervozes, a Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU), a Associação Brasileira dos Canais e Rádios Legislativas (ASTRAL), a Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas (ABEPEC), 60


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entre outras. A ABVP teve nos anos 1980 uma participação significativa em todos os espaços de debate sobre o tema de vídeo, por ser uma entidade que associava dezenas de organizações e realizadores de todo o Brasil. Seria interessante a estruturação de uma nova entidade representativa dos realizadores de vídeo popular e de interesse social. Isso porque não basta apenas fazer programas diferentes, por vezes, até excelentes. O fortalecimento da esfera pública como geradora de conteúdos e espaço de exibição é fundamental, pois é no espaço público que as oportunidades de igualdade são consolidadas e a sociedade se organiza de forma igualitária. Daí a importância da ampliação da atuação de universidades e escolas públicas, centros culturais, telecentros, museus, bibliotecas, teatros, oficinas culturais, emissoras de rádio, TVs públicas etc. E o espaço público eletrônico é cada vez mais presente nas sociedades democráticas. Como afirma McChesney (2000, p. 318), “contra o capital organizado é fundamental uma sociedade civil organizada”. O sucesso da democracia depende, em parte, da existência da livre troca de informações através do discurso público. “Sem um serviço público de informação não se pode construir uma democracia saudável”, afirma Ceasar McDowell, ex-presidente do Civil Rights Forum on Communications Policy, no site da instituição.6 O fórum é na realidade uma coalizão de organizações civis e grupos comunitários para o estudo e o debate de questões centrais da contemporaneidade em sua interface com os meios de comunicação e as tecnologias da informação. Ressaltar o papel da sociedade civil não implica, contudo, negligenciar o papel do Estado. Na área de comunicação, é preciso superar a ideia de que democracia se faz sem intervenção estatal, na lógica do “quem pode se estabelece”. Historicamente, aqueles que têm mais recursos financeiros e o discurso organizado e sistematizado (que facilitam bastante a produção de programas) acabam dominando a programação não só das grandes 6

Ver <http://www.civilrights.org>.

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emissoras comerciais, mas também das comunitárias. É o caso das igrejas, das entidades políticas, das ONGs, entre outras. A promoção da diversidade e da pluralidade numa programação deve prever estratégias para aqueles que não se encaixam nessa realidade ou que não têm a vocação de uma produção regular semanal para TV, mas têm o potencial de fazer programas pontuais ou transmissões únicas. O movimento de vídeo, que ganha novos contornos nesta segunda década dos anos 2000, tem o privilégio de contar com significativa experiência e literatura acumuladas de reflexões e lutas anteriores. Conta também com tecnologias de comunicação e informação que convergem e avançam em alta velocidade. Conta, sobretudo, com a possibilidade concreta de dialogar com estruturas de governo democráticas e de participar da discussão e do estabelecimento de políticas públicas para as áreas ligadas à comunicação. O desafio passa pela perspectiva de organização, de associação, de coalizão, de coprodução; enfim, de fazer coisas partilhadas para, assim, ampliar as possibilidades de ação social e de impacto efetivo sobre a opinião pública, informando, educando e consolidando a democracia e as oportunidades de igualdade social.

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CAPÍTULO IIi

Comunicação comunitária e digitalização dos media: problemas, perspectivas e desafios Sivaldo Pereira da Silva Bráulio Ribeiro

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radiodifusão comunitária firmou-se nas últimas décadas do século XX, sob a esteira de inovações técnicas, que viabilizaram a apropriação social de equipamentos de produção e transmissão de conteúdos. Captadores de baixo custo operacional e transmissores operando em baixa potência foram os pilares para o surgimento de rádios e TVs comunitárias. Longe de qualquer determinismo tecnológico, é possível afirmar que a inovação técnica foi e continua sendo um dos principais alicerces para esse segmento de mídia. De modo inevitável, tanto a produção quanto a transmissão e a recepção dos conteúdos audiovisuais dependem do tipo de infraestrutura disponível e de seu custo de aquisição, implantação e manutenção. Para a comunicação comunitária, algumas inovações como o barateamento de transmissores, a miniaturização de equipamentos, a facilidade na instalação e o manuseio de dispositivos não são apenas melhorias pontuais: podem ser considerados fatores determinantes de sua própria existência histórica. Tomando esse quadro como pressuposto, o objetivo deste texto é tratar a dimensão tecnológica da comunicação comunitária, 65


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abordando-a no contexto da convergência digital. Questões como reorganização do espectro radioelétrico, utilização de software, automação na produção e transmissão de conteúdo audiovisual digitalizado, interatividade através do mesmo canal, multifunções de novos equipamentos e mobilidade na transmissão e recepção de sinais constituem algumas das inovações técnicas que se erguem nesse cenário. Por sua vez, elas trazem alterações no modus operandi e no próprio modelo de radiodifusão comunitária hoje vigente. Porém, tais inovações não significam apenas aprimoramentos, e nem mesmo há garantias automáticas de que tais avanços técnicos e seus potenciais democratizantes sejam implementados. Outros fatores supratecnológicos (como modos de consumo, legislação, barreiras econômicas, know-how, etc.) também podem ser decisivos nesse panorama. Com esse problema em vista, a presente análise seguirá abordando dois eixos. Primeiramente, faremos uma breve caracterização da comunicação comunitária, com foco na radiodifusão1 e suas vinculações conceituais e históricas no que se refere ao fator tecnológico. Na seção subsequente, trataremos mais especificamente do fenômeno da digitalização, pontuando seus aspectos e suas implicações mais importantes no que diz respeito à comunicação eletrônica como um todo e no que se refere ao campo da comunicação comunitária especificamente.

Comunicação comunitária versus tecnologias Em linhas gerais, a noção de comunicação comunitária trata de processos comunicativos que se ancoram ou se desenvolvem no entorno de um agrupamento social específico,2 mediados Vale lembrar que a noção de radiodifusão trata da transmissão de conteúdo tanto radiofônico quanto televisivo através do espectro radioelétrico.

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Estes agrupamentos são, em última instância, comunidades. A noção de “comunidade” adotada aqui diz respeito a um estreitamento de laços entre indivíduos, capaz de sedimentar um senso de identificação coletiva com potencial para ações de comum interesse. Algo que pode ser suscitado não só por elementos físicos, como

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pelos diversos suportes disponíveis como impresso, rádio, TV ou, mais recentemente, a internet. Para alguns analistas, a comunicação comunitária exerceria hoje um papel importante na estrutura social e política contemporânea. Tais suportes seriam elementos de contra-hegemonia ou contrapoder, uma alternativa de informação para a opinião pública, um tipo de mídia mais próxima da realidade vivida pelos sujeitos e com maiores possibilidades de refleti-la, ou algo capaz de contribuir para a pluralidade de vozes nas diversas esferas da vida social (Castro, 2002; Lopes, 2005; Azevedo, 2005; Moassab, 2006; Tresca, 2008; Bahia, 2008). Jornais de bairro; sites de minorias étnicas; rádios comunitárias e TVs comunitárias são alguns exemplos que podem configurar esse formato de comunicação. No caso da TV e do rádio, tratase de pequenas emissoras com direção colegiada composta por cidadãos comuns, sustentada por instâncias participativas e deliberativas abertas à comunidade, sem fins lucrativos e geralmente vinculadas a uma associação civil. Historicamente, rádios e TVs comunitárias surgiram a partir da proliferação de equipamentos de transmissão de sinais em baixa potência, utilizando faixas ociosas do espectro radioelétrico, com instalações improvisadas (quase artesanais) e produção amadora. Esses veículos têm antecedentes nos movimentos de rádios livres, que apareceram na Europa nos anos 1970, principalmente na Itália, em 1975 (Machado, Magri; Masagão, 1996). Em território brasileiro, as primeiras rádios comunitárias surgem proximidade geográfica, por exemplo, como também por elementos mais abstratos, como identificação cultural, religiosa, etc. Nesse sentido, meios comunitários de comunicação se diferenciam dos meios de comunicação de massa uma vez que estes últimos sustentam características corporativas e comerciais, cujas atividades são direcionadas para vastos contingentes de indivíduos que ultrapassam o nível da noção de comunidade. Outra característica que podemos levantar é que a maioria das experiências de comunicação comunitária não tem fins lucrativos. Pode-se admitir que veículos comunitários tenham lucro com seus serviços ou apoios culturais, desde que tais dividendos tenham como finalidade a manutenção e o aprimoramento das produções. De todo modo, essa finalidade lucrativa é distinta das empresas dos mass media que trabalham com grandes aportes de recursos e funcionam para obter lucro direcionado a proprietários particulares e acionistas privados.

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entre o final da década de 1970 e início dos 1980. Cicilia Peruzzo (2009, p. 3) explica: No Brasil, as rádios comunitárias em freqüência modulada (FM) nasceram no contexto dos movimentos populares e como rádios livres (transmissão pelo dial sujeita a enquadramento legal) ou têm suas origens na rádio de alto-falantes, também chamada de Rádio Poste ou de Rádio Popular (transmitida através de caixas de som e bocas amplificadoras, e não sujeitas à legislação impeditiva para transmissão).

No caso da produção televisiva, é possível identificar suas sementes nas primeiras experiências de vídeo militante no final da década de 1960. Já nos anos 1970, há registros de TVs comunitárias em funcionamento na Europa e no Canadá (Santoro, 1989). No Brasil, começam a despontar a partir de 1980 (Peruzzo, 2000). Até o final de 2009, conforme dados do Ministério das Comunicações, havia no País cerca de três mil rádios comunitárias legalizadas. Estimativas da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço) apontam, contudo, para a existência de cerca de 10 mil emissoras operando na informalidade. No caso das TVs, levantamento feito pela Associação Brasileira de Canais Comunitários (Abccom) estima um total de 60 emissoras atuantes em território brasileiro.3 Apesar das dificuldades financeiras e de uma legislação limitadora (Castro, 2002; Lopes, 2005), essas experiências de comunicação continuam vivas e ativas em diversas regiões do País, organizando-se em torno de associações civis ou fóruns de mobilização coletiva. É possível afirmar que a comunicação comunitária sempre manteve seu destino sensível ou atravessado inevitavelmente pelas inovações técnicas no âmbito das telecomunicações. O rádio, por exemplo, passou por uma pequena revolução quando surgiu a frequência modulada (FM): Cabe mencionar que 34 delas são filiadas à Abccom.

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[...] uma forma de emissão relativamente barata, que não requer antenas transmissoras sofisticadas, e o equipamento pode inclusive ser construído caseiramente. As outras modalidades de emissão requerem maior requinte de tecnologia e de capital empregado, razão por que as suas despesas dificilmente poderiam ser bancadas por emissoras sem interesse comercial (Machado et al., 1986, p. 19-20).

Desse modo, a utilização de dispositivos de transmissão mais simplificados, a miniaturização de equipamentos, a facilidade de manejo técnico e a manutenção de um custo operacional reduzido podem ser considerados elementos fundamentais para a viabilização técnica da comunicação comunitária. Isso porque o acesso e o barateamento dessas tecnologias da comunicação foram e continuam sendo premissas para que a apropriação social exista no âmbito da produção e da transmissão de conteúdo através do espectro radioelétrico. Devido a sua própria natureza, a radiodifusão comunitária consiste num segmento midiático que não dispõe de volumosos recursos para investimento em bens de capital e maquinário robusto, como acontece nos mass media tradicionais. Essa característica pode encontrar novos elementos e novos desafios no processo de digitalização. Para avançarmos neste último ponto, a próxima seção irá elencar as principais mudanças que a digitalização acarreta seja para a produção e a transmissão radiofônica e televisiva em geral seja para o segmento comunitário em particular, além de apontar desafios e trazer exemplos da realidade brasileira.

TV e rádio digitais: potencialidades e desafios para a comunicação comunitária O que vem sendo chamado de digitalização dos media está intimamente vinculado à noção de convergência digital e consiste, de modo simplificado, na substituição do sinal analógico pelo sinal digital durante todas as etapas do processo de radiodifusão, isto é, na produção, na transmissão e na recepção de conteúdo (Weber; Evans, 2002; Ess, 2009; Pinheiro; Nunes Filho, 2009; 69


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Squirra; Fechine, 2009; Tavares, 2009). Trata-se de um fenômeno irreversível, que abre perspectivas de mudanças substanciais no modus operandi do rádio e da TV. Para compreendermos melhor tal fenômeno, convém apontar aqui dois momentos fundamentais. Primeiro houve a digitalização dos equipamentos; consequentemente os diversos dispositivos de produção e recepção de conteúdo radiofônico e televisivo passaram a operar com transistors, microchips, softwares e registro em suportes digitais. Depois houve a digitalização da transmissão com a codificação do sinal em bits. Nesse caso, o conteúdo passou a ser transportado pelo espectro radioelétrico em sinal digital (e não mais em sinal analógico como ocorreu durante todo o século XX) acarretando, assim, a bitmização de toda a cadeia de radiodifusão. Se a comunicação comunitária está inevitavelmente ligada às inovações tecnológicas, como vimos anteriormente, é razoável acreditar que o processo de digitalização traga-lhe mudanças significativas. Desde o final dos anos 1990, muitos autores têm apostado no potencial libertador ou democratizante das novas tecnologias da comunicação, sobretudo quanto às possibilidades de empoderamento social e político que os novos meios, como a internet, seriam capazes de suscitar (Toffler, 1995; Levy, 1999; Rheingold, 2000). No entanto, nem sempre todo o potencial de uma tecnologia de comunicação é adotado ou explorado integralmente. Isso ocorre porque a tecnologia incorpora, desde a sua gestação e em seu próprio design, valores e conceitos que influenciam direta ou indiretamente4 na dinâmica de seu desenvolvimento e operação. Fala-se indiretamente, pois não devemos esquecer que, por outro lado, as apropriações e os usos dessas tecnologias raramente são previstos in totum e podem ultrapassar os limites de seu projeto ou intuito inicial. Um bom exemplo desse fenômeno é a internet. Desenvolvida inicialmente para uso militar (Lemos, 2004; Castells, 1999), é hoje uma poderosa ferramenta de comunicação ponto a ponto de escala global. Seu uso extrapolou a previsão inicial, e seu controle é hoje um dos maiores desafios para aqueles que desejam mantê-la dentro de alguma margem de previsibilidade. Ao mesmo tempo, essa característica de “rede”, capaz

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Por exemplo, determinações governamentais sobre padrões tecnológicos a ser adotados em um país podem cristalizar a concentração de poder nas mãos de poucas empresas comerciais já consolidadas e, assim, limitar o potencial democratizante que algumas tecnologias poderiam acarretar. Para visualizarmos essas dimensões de modo prático, é possível listar um conjunto de inovações técnicas que se erguem no bojo da digitalização e significam ora fortalecimento, ora enfraquecimento da radiodifusão comunitária, a saber: (a) compressão do sinal e uso dinâmico do espectro; (b) diminuição dos custos de produção e transmissão; (c) integração entre aparelhos, conteúdos e sistemas; (d) aprimoramento da experiência da recepção dos conteúdos; (e) sofisticação na interatividade com usuários. A seguir, abordaremos cada uma dessas inovações, caracterizando-as e apontando os horizontes que trazem para a comunicação comunitária. a) Compressão do sinal e uso dinâmico do espectro. A conversão da informação analógica para digital torna possível comprimir o conteúdo audiovisual em códigos binários, trafegando, assim, com maior rapidez e desenvoltura através de cabos ou do espectro eletromagnético. Atualmente, dependendo do algoritmo de compressão utilizado, é possível transmitir digitalmente conteúdos audiovisuais utilizando apenas 25% da faixa do espectro radioelétrico5 em comparação ao que seria necessário para uma transmissão analógica. Com o avanço da de se refazer e se reordenar, sempre foi um aspecto almejado no bojo do projeto ARPANET, que lançou as bases para a rede mundial de computadores como a conhecemos hoje. O que os militares norte-americanos queriam era justamente uma rede de comunicação versátil e resistente a um hipotético ataque nuclear. Assim, o projeto por trás da tecnologia não morre, embora possa ser reapropriado ou reaplicado para diferentes finalidades. O uso do espectro eletromagnético é internacionalmente regido pelos princípios da racionalidade e da economicidade segundo a União Internacional de Telecomunicações. Nesses termos, o espaço utilizado para a prestação de qualquer serviço que necessite de espectro eletromagnético deve ser o equivalente e necessário apenas a prestação do serviço em tela.

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tecnologia de compressão de dados, é possível que esse espaço diminua ainda mais nos próximos anos.6 Com base nessas possibilidades de menor ocupação do espectro, surge o horizonte da multiplicação de canais. Isso permitiria a reorganização do dial com a redistribuição de faixas, na medida em que os atuais radiodifusores necessitariam, pelo menos em teoria, de menor espaço para efetivar transmissões. Isso ocorre devido tanto à diminuição de “tamanho”do conteúdo digital (quando comparado ao conteúdo analógico), quanto à possibilidade de gestão dinâmica do espectro. Este último aspecto consiste na auto-organização e no remanejamento sistêmico do tráfego de conteúdo através da identificação de ociosidades, passando a operar para suprimi-las. Assim, no momento em que uma faixa do espectro é menos exigida por uma emissora, isso é identificado e a sobra passa a ser utilizada por outro player ou para outro serviço, através do gerenciamento inteligente de demandas e ofertas.7 Portanto, é possível afirmar que, na migração do analógico para o digital, abre-se uma janela de oportunidade para a reorganização do uso dos canais de radiofrequência, incluindo a ampliação dos canais comunitários, o que se tornou tecnicamente viável e passou a ser uma perspectiva materialmente possível. No entanto, tal expansão não se encontra determinada automaticamente: pode encontrar barreiras legais pelo caminho. Por exemplo, a legislação que regulamentou o serviço de Alguns analistas vão mais longe: apostam que a digitalização já permitiria, inclusive, quebrar a ideia de que o espectro é um bem limitado e defendem a criação de um espectro aberto, sem predeterminação rígida de faixas a ser ocupadas e com espaço para diversos emissores simultaneamente. Ver: <http://samadeu.blogspot.com/2007/09/ porque-lutar-pelo-espectro-aberto-ou.html> e <http://www.openspectrum.info>. Acesso em 25 out. 2009.

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Por exemplo: se um canal de televisão exibe diariamente apenas no horário das 20h às 22h conteúdo em alta definição, é possível destinar a essa emissora maior largura de banda de transmissão apenas nesse horário, liberando o espectro para outros usos e outros operadores no restante do tempo. Porém, essa facilidade está condicionada à adoção de um operador de rede, que nada mais é que uma estrutura centralizada e compartilhada de transmissão.

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radiodifusão sonora comunitária no Brasil (Lei n.º 9.612/98) impede que haja multiplicação de canais comunitários do ponto de vista prático. A Lei estabelece que qualquer rádio comunitária é obrigada a operar em uma mesma frequência em todo o território nacional, especificamente a faixa dos 87,9 MHz. O argumento para esse confinamento foi a escassez de espaço do espectro para a expansão da radiodifusão como um todo no momento de regulamentação do serviço comunitário. Tal limitação gerou diversos problemas, como a sobreposição do sinal entre rádios comunitárias próximas, além de significar a impossibilidade de coexistência entre duas ou mais rádios comunitárias no mesmo território. Assim, ainda que a digitalização tenha tornado tal restrição sem sentido e possa haver um aumento significativo do número de canais de rádio disponíveis, a lei vigente cerceia tal possibilidade. Já no caso das TVs comunitárias, a compressão do sinal e a abertura de novos canais no espectro são elementos fundamentais para a ampliação do serviço e estão no centro das reivindicações de algumas emissoras no Brasil. Essa expectativa ocorre na medida em que viabilizaria a operação da televisão comunitária no sistema aberto. Pelo menos até 2010, os canais comunitários de TV só existiam no sistema fechado (via cabo ou satélite), como estipulou a Lei n.º 8.977/95, que regulamentou o serviço e criou a figura da televisão comunitária no País.8 Posteriormente, o Decreto n.º 5.820/06, que definiu o padrão da TV digital e o modelo de transição do sistema (adotando o padrão japonês ISDB-T) não previu qualquer fatia do espectro para transmissão das emissoras comunitárias de televisão.9 Ou seja, mesmo que Essa Lei criou também o canal de TV da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Poder Judiciário e do Poder Executivo, entre outros canais de interesse público.

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Sobre faixas voltadas para a operação não comercial ou especificamente de interesse público, o decreto estipulou apenas a criação de quatro canais: os canais Executivo, Cidadania, Cultura e Educação. Cada um deles com 6 Mhz de largura de banda (que lhes permitiria disponibilizar até quatro programações paralelas). Apesar dos termos do decreto, o movimento organizado das TVs comunitárias, coordenado pela Associação Brasileira de Canais Comunitários (Abccom) vem realizando uma campanha junto

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tenhamos em breve canais disponíveis no espectro devido aos espaços abertos pela digitalização, isso só terá efeitos reais para as TVs comunitárias se houver mudança na atual legislação que permita a operação do setor em sinal aberto. b) Alteração nos custos de produção e transmissão. São três fatores que dizem respeito a essa condição. (1) O primeiro deles é a diminuição da potência necessária para o transmissor atingir a mesma área de cobertura do analógico. Dependendo do padrão utilizado, pode ser necessário até dez vezes menos potência para alcançar a mesma área de cobertura. E, como o custo do transmissor tem relação direta com a sua potência, existe a possibilidade de haver um sensível barateamento, em comparação com seus correspondentes analógicos. (2) Em decorrência direta da diminuição da potência, teremos também menor consumo de energia.10 Tendo em vista que o consumo de energia é hoje uma das maiores despesas fixas de uma estação de transmissão, poderemos ter aqui uma desoneração no custo total de manutenção. (3) Por fim, existe a possibilidade de se criar o operador de rede: uma estrutura partilhada de emissão do sinal radioelétrico que tende a baratear e simplificar o processo de radiodifusão. Grosso modo, funciona como uma espécie de antena distribuidora de conteúdos produzidos por diversos canais/emissoras, que a utilizam simultaneamente.11 ao governo para que as televisões comunitárias sejam contempladas como uma das quatro programações possíveis no canal da Cidadania (digital), que seria administrado pelo Ministério das Comunicações. No final de 2009, já havia um projeto de lei tramitando no Senado Federal, o PLS 483/08, que propõe a regulamentação das TVs comunitárias em sinal aberto. São dois fatores que atuam diretamente no consumo de energia de um transmissor: sua potência e a frequência operada. Quanto mais altos os valores dessas variáveis, maior o consumo de energia.

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O Operador de Rede é uma espécie de intermediário entre o produtor de conteúdo (as emissoras) e os receptores (os ouvintes ou telespectadores). Nesse modelo, os produtores de conteúdo enviam os pacotes digitais para o Operador de Rede, e este faz a sua distribuição para o grande público. Na transmissão analógica, já era possível o uso do Operador de Rede. No entanto, é com a transmissão em sinal digital que essa

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Isso implica minimização dos custos totais de operação já que haveria compartilhamento e uma espécie de uso cooperativo entre as emissoras dessa infraestrutura de transmissão. Tal inovação pode significar melhorias para a comunicação comunitária já que é capaz de diminuir despesas e paralelamente impulsionar a qualidade técnica e o alcance espacial. Porém, a existência do operador de rede é um projeto que depende do marco regulatório de cada país. No Brasil, por exemplo, esse sistema não foi previsto em lei. E, para ser implantado, seria necessário reestruturar todo o serviço de radiodifusão, separando as funções de produção e transmissão, uma vez que hoje são exercidas concomitantemente por cada emissora. Como vimos, em linhas gerais, as opções técnicas adotadas podem trazer boas perspectivas para o barateamento da radiodifusão como um todo, porém existem barreiras concretas no caminho, que podem até tornar o processo ainda figura atinge sua potencialidade máxima. Para entender melhor a figura do Operador de Rede, vamos primeiro relembrar como funciona, hoje, o modelo de negócio da radiodifusão aberta no Brasil. Cada emissora ou geradora de conteúdo, seja ela uma rádio ou uma televisão, precisa construir sua própria estação de transmissão, que é formada basicamente por um transmissor e uma antena (ou sistema irradiante). É por isso que alguns canais de TV possuem imagem melhor que outros e algumas rádios sustentam melhor captação nos aparelhos receptores. A qualidade do sinal vai depender da qualidade dos transmissores e do sistema irradiante. Esse modelo gera um processo de competição entre os atores do mercado não apenas pelo conteúdo (como deveria ser), mas pela capacidade de investimento nos sistemas técnicos-materiais de transmissão. Uma emissora comercial quase sempre terá mais condições de fazer esse tipo de investimento, se comparado a uma emissora comunitária ou universitária, por exemplo. O modelo do Operador de Rede opõese ao atual modelo da radiodifusão aberta brasileira. Ao invés de cada emissora ou geradora de conteúdo possuir seu próprio sistema de transmissão, eles enviam o sinal de seu canal ou canais para o Operador de Rede, que garantirá a transmissão com qualidade de todos eles, de maneira isonômica e independente. Outro fator positivo da adoção de um Operador de Rede é o fato de que uma das principais barreiras de entrada de novos atores no setor da radiodifusão aberta é justamente o custo da montagem da infra-estrutura de transmissão. O Operador de Rede permite que esses custos sejam diluídos por um conjunto de geradoras de conteúdo, que pagariam pelo uso compartilhado da infra-estrutura. Dessa forma, televisões que possuem baixo orçamento, como é o caso das comunitárias e universitárias, teriam condições de acessar o espectro mais facilmente e com a mesma qualidade das comerciais.

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mais oneroso. Nessa perspectiva, a implantação da TV digital no Brasil é um caso ilustrativo. Ao adotar o chamado padrão japonês, o governo brasileiro optou pelos equipamentos mais caros e com o menor mercado de consumo em atividade no momento da escolha. Embora haja a perspectiva de barateamento com o passar dos anos,12 o preço dos equipamentos digitais continuará, pelo menos no médio prazo, mais oneroso para os radiodifusores comunitários em comparação com os equipamentos analógicos. No caso da rádio digital, a escolha do padrão também pode significar o encarecimento da radiodifusão. Por exemplo, durante o processo de escolha do padrão a ser adotado no Brasil, o governo brasileiro teria como opção o sistema proprietário de rádio digital HDRadio, de propriedade da empresa estadunidense Ibiquity, que, além de exigir o pagamento de royalties (licença) para uso e manutenção do sistema, não proporcionaria a otimização do espectro de radiodifusão. Nesse caso, ocorreria um acirramento da atual concentração do dial seguida de um encarecimento do custo de transmissão. Se, hipoteticamente, esse padrão fosse adotado, isso implicaria mais barreiras materiais para a rádio comunitária, pois toda emissora só conseguiria operar legalmente se fosse capaz de desembolsar os recursos financeiros necessários para pagar as licenças de propriedade exigidas.13 Em 2006, quando o Brasil optou pelo padrão japonês, apenas o Japão utilizava este sistema, enquanto algumas dezenas de países já utilizavam o padrão europeu. Para evitar um possível isolamento, o governo brasileiro realizou uma pesada ação lobby (diplomático e econômico) no convencimento de países latino-americanos em adotarem o mesmo padrão. Até 2010, Peru, Argentina, Chile, Venezuela, Equador, Costa Rica e Paraguai já sinalizaram favoráveis em adotar o padrão nipo-brasileiro. Dessa forma, a tendência é que o aumento da escala de consumo e de produção possam repercutir em alguma diminuição no custo elevado do padrão adotado pelo país.

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No final de 2009, o governo brasileiro deu uma guinada na preferência de padrão e começou a defender a adoção do sistema europeu, Digital Radio Mondiale (DRM), que não exige pagamento de licenças, é aberto (portanto não proprietário) e permite a otimização do espectro.

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c) Integração entre aparelhos, conteúdos e sistemas. Com a digitalização, os conteúdos audiovisuais se tornaram compatíveis com a internet e outras redes digitais. Desse modo, diluíram-se algumas fronteiras tradicionais, e os meios de comunicação – antes separados pela especificidade do suporte – passaram a convergir digitalmente. Operam agora sob a mesma plataforma técnica (Osuna; Busón, 2007), ainda que mantenham seus principais aspectos distintivos operantes (ou seja, o rádio continuará sendo rádio, assim como a TV continuará sendo TV, embora enxertados com novas características). Isso tem efeitos práticos como a multifuncionalidade de aparelhos e a convergência de conteúdos antes pouco intercambiáveis. No âmbito da radiodifusão comunitária, essa integração repercute em inovações tanto no processo de produção quanto nas possibilidades de recepção do sinal. No que se refere à produção, ocorre um aumento da gama de conteúdos disponíveis para veiculação, uma vez que todos os aparelhos passam a ser potencialmente captadores operantes sob o mesmo suporte. Paralelamente, o processo de captação, edição e transmissão se tornou mais ágil, uma vez que o conteúdo audiovisual tem maiores possibilidades de manuseio quando comparado aos formatos analógicos anteriores. No que diz respeito ao processo de transmissão, essa integração amplia a plataforma de distribuição do conteúdo, antes basicamente circunscrito ao cabo ou ao espectro radioelétrico. Nesse caso, o conjunto de terminais de microcomputadores e pequenos aparelhos digitais como telefone celular, laptops, palms, etc. passam a ampliar o leque de receptores de conteúdo televisivo ou radiofônico. Embora a digitalização aumente potencialmente a rede de recepção de conteúdo, é importante frisar que isso não significa necessariamente aumento de audiência. Aqui emergem duas possibilidades simultâneas, porém em direções opostas: (a) A possibilidade de expansão da audiência, incorporando, assim, ouvintes e telespectadores que antes estavam inacessíveis para o veículo comunitário. Por exemplo, um trabalhador baiano que mora em São Paulo pode ouvir a rádio comunitária da sua cidade 77


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natal localizada no interior da Bahia, através da internet, mesmo a centenas de quilômetros do local de transmissão. (b) A possibilidade de diminuição do tempo que o ouvinte-telespectador dedica ao canal comunitário, uma vez que a permanência do indivíduo diante de um aparelho passa a sofrer a concorrência dos diversos canais e mídias emergentes (ainda que não sejam necessariamente excludentes entre si). Nesse sentido, é interessante notar que o tempo médio de apreensão do consumo radiofônico vem caindo desde a invenção do rádio: de 15 minutos (em média) estimados na década de 1950 para atuais 90 segundos (em média) estimados nos dias de hoje (Meditsch, 1999). d) Aprimoramento da experiência da recepção dos conteúdos. A digitalização amplia significativamente a maneira de ouvir conteúdos radiofônicos ou assistir a conteúdos televisivos. A televisão e o rádio digitais implicam uma melhoria substancial da qualidade do som e da imagem. Por exemplo, com o sinal digital, o som transmitido em frequência modulada (FM) se torna similar à qualidade de um compact disc laser (CD). No caso das faixas de frequência mais baixas que estavam praticamente em vias de desaparecimento – como as ondas médias (AM) e as ondas curtas (OC e OT) –, a digitalização significará seu reposicionamento no cenário das comunicações de massa. Pode-se vislumbrar ainda o rádio transmitindo não apenas em estéreo (canais esquerdo e direito), mas em sistemas de cinco ou mais canais, ampliando significativamente a experiência radiofônica. No caso da TV, a imagem em alta definição também altera a experiência de recepção do conteúdo audiovisual. O aumento no tamanho das telas,14 aliado às novas tecnologias de LCD (liquid-crystal display), plasma e TVs de LED, aproxima, cada vez mais, a experiência televisiva da experiência cinematográfica. Hoje restritas a algumas produções mais caras, as imagens em alta definição tendem a fazer parte das produções mais triviais Principalmente quanto ao número de pixels, isto é, o aumento quantitativo de pontos de luz. Quanto mais pontos houver, mais detalhes da imagem são mostrados.

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da televisão. De talk-shows a telejornais e programas de auditório, os conteúdos televisivos serão cada vez mais captados com câmeras em HD (high definition). A produção de audiovisual em 3D também se incorpora a essas inovações da digitalização. No campo da comunicação comunitária, esse aprimoramento na recepção de conteúdos pode equilibrar as disparidades históricas relacionadas à qualidade técnica na recepção do sinal. Isso ocorre porque o sistema analógico exige maior robustez de equipamentos para melhor transmitir, o que vinha causando até então maior qualidade técnica de transmissão para os canais comerciais. No cenário da digitalização, rádios e TVs comunitárias15 passaram a ter acesso a equipamentos digitais capazes de transmitir com a mesma qualidade de recepção até então exclusiva dos mass media. Com esse fato em mente, é possível trabalhar com a hipótese de que a disputa pela audiência se dará mais fortemente no conteúdo (e menos na capacidade de transmissão), ainda que elementos tradicionais como a credibilidade de instituições midiáticas, a fidelidade do público e o capital simbólico mantenham seu peso e sua importância na determinação dessa audiência. Sobretudo, as condições básicas quanto à recepção do conteúdo deixam de ser elementos que causavam um claro desequilíbrio entre meios comerciais e meios comunitários.16 Porém, embora possa haver este maior nivelamento entre os diversos players quanto à capacidade de transmitir conteúdo radiofônico e televisivo, isso não significa que as disparidades 15

No Brasil, isso vale principalmente para o rádio comunitário (uma vez que a TV comunitária possui alguma estabilidade na recepção do sinal porque funciona em canais a cabo).

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No sinal analógico, a potência e a robustez do maquinário de radiodifusão eram um fator que marcava diferencial na qualidade da recepção do conteúdo nos aparelhos receptores convencionais principalmente quando se tratava do uso do espectro radioelétrico. Quem adquiria melhores equipamentos, satélites e antenas mais potentes sustentava melhores qualidades no áudio e imagens. A baixa capacidade de alocar recursos para esse fim fazia com que as rádios e as TVs comunitárias não sustentassem um equilíbrio na qualidade da recepção comparadas às mídias comerciais eletrônicas.

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desapareceram totalmente. Já há, hoje, distinções quanto à forma de disponibilizar e receber os conteúdos audiovisuais, seja através do próprio preço dos televisores em HD (que continuam com valores inacessíveis à maioria da população brasileira); ou seja mediante a comercialização de aparelhos de TV em 3D. Ocorre que tais opções possuem um custo mais elevado, uma vez que necessitam de equipamentos de produção nem sempre convencionais; de recursos humanos mais especializados; e, na ponta do consumo, de aparelhos receptores mais robustos para se efetivarem. Ou seja, há uma reconfiguração e um maior equilíbrio técnico em linhas gerais quanto às condições básicas de transmissão e recepção do sinal, porém, o poder econômico continua atuando como diferencial entre pequenos meios comunitários e mass media. e) Sofisticação na interatividade com usuários. Por fim, também no campo da recepção, uma importante mudança é a capacidade de interação com o usuário através do mesmo suporte. Podemos dizer que a melhoria na qualidade de som e imagem não altera a lógica de transmissão predominantemente verticalizada desses veículos. Nesse aspecto, a mudança efetiva vem com a interatividade que possibilitou ampliar a participação dos indivíduos que passam a ter ferramentas mais efetivas de input. Se as mídias digitais propiciam maiores possibilidades interativas, encontramos aqui uma inevitável aproximação conceitual entre comunicação comunitária e digitalização. Características como uma maior interação com as realidades específicas de cada comunidade e maior proximidade identitária, simbólica ou cultural com seus ouvintes-telespectadores são alguns dos fatores que podem ser vinculados aos potenciais interativos das plataformas digitais. Desse modo, essas tecnologias podem abrir novas fronteiras para uma comunicação mais horizontal, mais interativa, mais plural e menos centralizada, algo inerente ao próprio conceito e dinâmica de rádios e TVs comunitárias. Ainda que essa vinculação lógica entre meios comunitários e interatividade pareça natural, esse horizonte pode não ser explorado em todas as suas dimensões. Pode trazer, ao contrário, 80


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maior complexidade, pois toda interatividade requer o emprego de maiores recursos para viabilizá-la: quanto maior o contato que se abre com o público, maior estrutura será necessária para dar conta dessa demanda. No caso da radiodifusão comercial, a interatividade tende a ser utilizada para maximizar as relações de consumo, através do comércio eletrônico ou da propaganda dirigida. Ao mesmo tempo que gera custos, isso cria condições de sustentação, já que os anunciantes pagam pela interatividade como mercadoria agregada à propaganda (um custo que obviamente será repassado para o consumidor final). No caso da radiodifusão comunitária, ocorre uma relação distinta. A interatividade também requer maiores investimentos, seja em infraestrutura, seja em recursos humanos; porém, não traz necessariamente maiores aportes de recursos financeiros, como ocorre na mídia comercial. Ao mesmo tempo, convém ressalvar que isso não torna o meio digital inevitavelmente menos interativo porque não dispõe de tais recursos: paralelamente, também há formas de produzir interatividade a baixo custo, através de soluções alternativas (como uso de softwares livres, trabalho voluntário, participação da comunidade nos processos de produção, etc.)

Considerações finais Este trabalho teve o objetivo de discutir a comunicação comunitária diante do contexto contemporâneo da digitalização dos media. Primeiramente, tentamos demonstrar como os meios comunitários eletrônicos (rádio e TV) surgiram impulsionados pelas inovações tecnológicas de sua época. Essas inovações foram capazes de baratear e popularizar a implantação de pequenas estações artesanais, operantes em baixa potência através do espectro radioelétrico. Buscamos ressaltar como o destino desse segmento midiático está inevitavelmente conectado às inovações tecnológicas, ainda que não seja determinado unicamente por elas. Diante desse pressuposto, afirmamos que o processo de digitalização dos media eletrônicos no início do século XXI traz uma série de novos elementos para se pensar o presente 81


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e o futuro dos canais comunitários de TV e rádio. Para tanto, listamos cinco mudanças que a digitalização levanta para a comunicação eletrônica como um todo e como cada uma dessas possíveis transformações pode agir sobre ou se relacionar com a comunicação comunitária: (a) compressão do sinal e uso dinâmico do espectro; (b) alteração nos custos de produção e transmissão; (c) integração entre aparelhos, conteúdos e sistemas; (d) aprimoramento da experiência da recepção dos conteúdos; (e) sofisticação na interatividade com usuários. Em linhas gerais, é importante perceber que as potencialidades tecnológicas que o processo de digitalização suscita podem não ser necessariamente benéficas nem ser intrinsecamente democráticas. De modo complexo, tais inovações técnicas dependem de outros fatores supratecnológicos, como barreiras legais, interesses políticos, elementos comportamentais, empecilhos materiais e econômicos que podem definir a forma como essas tecnologias estão se cristalizando. Nesse cenário, o debate aparentemente técnico é atravessado por tais dimensões que influenciam o modo como determinadas tecnologias serão projetadas, operacionalizadas e apropriadas socialmente. Assim, os caminhos que a comunicação comunitária está trilhando diante da digitalização precisam ser analisados em suas diversas faces, levando-se em conta as escolhas feitas ao longo do processo. Essa análise cautelosa é importante para garantir o fortalecimento desse segmento no novo cenário midiático que se ergue.

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Parte 2

PRODUÇÕES E PROCESSOS



CAPÍTULO IV

Refazendo caminhos do audiovisual comunitário contemporâneo Clarisse Castro Alvarenga

Este lugar é um lugar. Aconteceu-lhe o que acontece ao rio. É raro, mas não é uma exceção. É único, mas não é uma verdade. Ir-se escrevendo o que se escreve, arrastando para o horizonte mais vasto (que é igualmente o mais longínquo), os limites da compreensão humana. Porque eu desejo o que há muito escrevo – que as diferentes formas de vida tentem uma outra ocupação da terra. Maria Gabriela Llansol, A restante vida.

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o ano 1994 comecei a atuar dentro da esfera do então chamado vídeo popular.1 Na época, eu tinha apenas 19 anos e Ingressei no TV Sala de Espera, um programa de comunicação comunitária voltado para a região nordeste de Belo Horizonte como estagiária, assim que iniciei o curso de Comunicação Social (UFMG), em 1993. Tratava-se de um projeto de extensão que envolvia a Prefeitura de Belo Horizonte e a UFMG, a partir da iniciativa do psiquiatra Musso Greco, que já naquela época tinha uma sólida trajetória dentro do campo das políticas públicas ligadas à saúde mental. No caso do TV Sala de

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era muito jovem para compreender em perspectiva o que significava fazer vídeo popular naquele momento no Brasil. Talvez por isso, não tenha tido receio de mergulhar de cabeça em uma prática que já vinha apresentando sinais de esgotamento. A manifestação mais evidente da crise do vídeo popular veio à tona logo no ano seguinte, com o encerramento das atividades da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), em 1995. Mesmo não fazendo parte diretamente da ABVP, mas atuando em parceria com seus integrantes em alguns de seus projetos,2 pude notar que, a partir de então, não haveria mais um projeto comum de atuação para os realizadores de vídeo popular no País e que as questões inerentes à prática do vídeo popular passariam a ser resolvidas de maneira localizada. A partir daquele momento, cada grupo teria que trilhar o seu próprio caminho. Quando a ABVP fechou as portas, estávamos tentando lidar com uma herança que vinha do vídeo militante, no que diz respeito à apropriação dos recursos do vídeo e da participação popular. Discutíamos muito e sempre testávamos novas formas de fomentar essa participação. Preocupávamo-nos,também com discussões sobre questões estéticas. Nesse momento de crise, começamos a desenvolver trabalhos com oficinas de vídeo dirigidas a comunidades específicas. A partir daí, tornou-se patente uma preocupação com a elaboração de metodologias de trabalho dentro dessas oficinas. Fortaleceu-se a possibilidade de trabalhar com outros formatos que viessem como uma decorrência das atividades desenvolvidas nas oficinas, e não como uma forma anterior ao processo. Espera, a proposta era usar as salas de espera dos postos de saúde para exibir em um aparelho de videocassete programas de televisão que eram produzidos nos bairros próximos e abordavam questões de interesse dos moradores. Algumas das questões tratadas eram gravidez na adolescência, lixo, festas, campanhas de saúde, receitas culinárias econômicas. Entre eles, o TV Beira Linha, em 1995, que consistia em produzir programas televisivos e transmitir em baixa potência na região nordeste de Belo Horizonte, envolvendo as comunidades dos bairros Ribeiro de Abreu, Paulo VI, Nazareth e Capitão Eduardo na produção do conteúdo.

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No estágio inicial de implementação dessas oficinas, vivíamos cercados de dúvidas por todos os lados. A autocrítica era quase uma condição de sobrevivência naqueles tempos, já que as antigas formas (metodológicas e estéticas) que havíamos herdado do movimento do vídeo militante e do vídeo popular pareciam não funcionar e, ao mesmo tempo, não havíamos ainda consolidado a possibilidade de atuar de uma forma diferente. Vivíamos uma tentativa cotidiana de sair do lugar, de caminhar para outro território ainda desconhecido, na base da tentativa e do erro. Depois de me distanciar um pouco da prática do vídeo popular para pesquisar e praticar o cinema documentário, pude notar que os impasses que enfrentávamos sobre participação e formatos poderiam ser relacionados a toda a tradição historiográfica do documentário brasileiro, em virtude do apelo inerente ao ato de passar a câmera para o outro, na conhecida expectativa de, com isso, “dar a voz” a ele (Bernardet, 1985). A partir de 2004 passei a problematizar os limites dessa ideia de dar voz ao outro, visto que ela opera com a noção de uma identidade estabelecida aprioristicamente, que se encontra à espera de representação audiovisual, como nos mostra Bernardet (1985). Comecei a trabalhar, então, com a noção de comunidade do filme, atentando para os vários atores e aspectos engajados na realização do chamado audiovisual comunitário: sujeitos vindos de fora, moradores da periferia, instituições e recursos técnicos (Alvarenga, 2004). Nessa visão, muitos sujeitos passam a se relacionar a partir da experiência do filme, tendo que desenvolver habilidades ainda não requeridas em sua vida cotidiana, como captar som, filmar, encontrar personagens, descobrir locações, editar. Enfim, a comunidade do filme precisa experimentar alguns dos vários elementos que constituem a prática do documentário. Em 2006, a partir de um diálogo com a antropóloga Rose Satiko,3 verificamos, nas experiências videográficas que emergiam 3

Rose Satiko Hikiji é professora do Departamento de Antropologia da USP, pesquisadora do Grupo de Antropologia Visual da USP (GRAVI) e do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama da USP (NAPEDRA). Uma parte da pesquisa

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nas periferias brasileiras entre 2000 e 2005, que os realizadores assumiam a primeira pessoa do discurso e, desde então, havia uma exploração do pessoal – ou local – como político (Alvarenga; Satiko, 2006b). Interessava-nos naquele momento o modo como os trabalhos de audiovisual comunitário desenvolviam um “argumento de autoridade”, que acabava surgindo a partir do “Sou de lá e, portanto, posso falar”. No presente artigo, pretendo investigar como o vídeo militante virou aquilo que vemos hoje. Na primeira parte do texto, discuto aspectos fundamentais do desenvolvimento do audiovisual comunitário no que diz respeito à questão da participação e do uso da linguagem videográfica. Em seguida, buscarei estabelecer uma articulação com o audiovisual contemporâneo, através da análise de dois filmes realizados, recentemente, por jovens, a saber: Serra: sons, trajetórias, caminhadas, becos (2006) e H2 In Concert casa-transporte-rua (2009). Ambos foram produzidos no escopo do projeto Rede Jovem de Cidadania, promovido pela Associação Imagem Comunitária (AIC), uma organização não governamental que atua com comunicação comunitária em Belo Horizonte desde 1993.4 Meu argumento em relação a esses dois trabalhos é que eles trazem uma efetiva inovação estética, ao utilizar a linguagem audiovisual de modo a revelar certo distanciamento dos realizadores em relação ao ambiente que lhes é próximo, rompendo com o discurso da autoridade e com o localismo geográfico.

Do vídeo militante ao audiovisual comunitário contemporâneo A concepção de “vídeo popular”, tal como descrita por Luiz Fernando Santoro (1989), nasce embebida no espírito vanguardista que deu origem à reflexão que compartilhamos foi desenvolvida durante o seu pós-doutorado no Departamento de Antropologia da USP e outra parte durante o meu mestrado em Multimeios (Unicamp). Agradeço a Evelyn Schüller, com quem discutimos nossas pesquisas para a redação de artigo para a revista Sexta-Feira (ALVARENGA; HIKIJI, 2006a) e para a ANPOCS (ALVARENGA; HIKIJI, 2006b). A entidade nasceu da experiência da TV Sala de Espera, mencionada acima.

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dos últimos anos da década de 1960, na Europa. Para explicar essa questão, o autor cita uma declaração de Jean-Luc Godard, em uma semana sobre o cinema político em Montreal: “Quero dizer ao público, inicialmente, que ele não possui esse instrumento de comunicação – ainda nas mãos dos ‘notáveis’ –, mas que poderá servir-se dele se lhes derem oportunidade para dizer e ver o que quiser, e como quiser”(Santoro, 1989, p. 22). Godard propunha a apropriação desse instrumento de poder, o que deflagraria uma série de discussões sobre o potencial do vídeo militante em oposição à TV de massa. A ideia central era que a câmera deveria estar nas mãos das pessoas para que elas próprias pudessem tomar as suas imagens do mundo. O movimento do vídeo popular, assim como o vídeo militante, defendia a participação direta das pessoas na produção de imagens. É importante dizer que esse processo não seria decorrência da evolução tecnológica, mas fruto de uma decisão política dos realizadores de vídeo ligados aos movimentos sociais. A ideia da participação teria sustentado a concepção das experiências de televisões comunitárias, na França e no Canadá, com a proposta de recriar a noção de comunidade por meio de um dispositivo eletrônico. As experiências brasileiras realizam uma síntese não apenas do que aconteceu na Europa e no Canadá, mas também de experiências anteriores no País, que enfatizavam a questão da participação. Embora o vídeo popular se mantivesse de fora das transmissões televisivas na América Latina, diferentemente do que aconteceu na Europa e no Canadá, Santoro e vários outros realizadores fizeram um esforço para tirá-lo de sua área demarcada de exibição junto aos grupos envolvidos e incluí-lo, por exemplo, no circuito de cinema, como aconteceu no Festival Latino-Americano de Cinema, em Cuba, no início dos anos 1980. O vídeo não tinha o glamour do cinema, não tinha grandes nomes como realizadores e a qualidade nem sempre agradava. Mas, apesar de não serem muito bons, os vídeos davam conta de coisas impressionantes: a tomada da Corte de Justiça colombiana por guerrilheiros, as revoluções na

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América Central etc. Nós argumentávamos que era através dos vídeos, e não através do cinema, que a história recente da América Latina estava sendo contada (Santoro, 2001, p. 3).

Sobre as diferenças de concepção estética entre o vídeo militante e o vídeo popular, podemos observar que, se na Europa o cinema militante tinha contado com a atuação direta de cineastas da Nouvelle Vague, na América Latina, o movimento do vídeo popular envolvia comunicadores e educadores sociais voltados para as práticas dos movimentos sociais. Tal movimento encontrava-se profundamente ligado aos partidos políticos de esquerda, sindicatos, movimentos populares e ONGs (Santoro, 1989). Em geral, as referências usadas para produzir vídeos aqui eram buscadas não na tradição historiográfica do cinema, mas no jornalismo, no vídeo institucional e na publicidade, ou seja, no campo da comunicação de massa. Não se tratava, pois, de uma batalha de um grupo de cineastas contra a televisão de massa, embora estivesse em jogo a produção de um tipo de imagem dos grupos sociais que a TV da época se negava a veicular. Isso fica bastante claro na definição de vídeo popular elaborada por Santoro (1989), que insere sumariamente o vídeo popular no horizonte dos movimentos sociais. Santoro considerava vídeo popular: [a] a produção de programas de vídeo por grupos ligados diretamente a movimentos populares, como, por exemplo, os sindicatos e associações de moradores e movimento dos Sem Terra; [b] a produção de programas de vídeo por instituições ligadas aos movimentos populares para assessoria e colaboração regular, como grupos da Igreja, a Fase, o Ibase, centros de defesa dos direitos humanos, entre outros; [c] a produção de programas de vídeo por grupos independentes dos movimentos populares, que por iniciativa própria elaboram-nos sob a ótica e a partir dos interesses e necessidades desses movimentos, que são por fim seu público mais importante;

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[d] o processo de produção de programas de vídeo, com a participação direta de grupos populares em sua concepção, elaboração e distribuição, inclusive apropriando-se dos equipamentos de vídeo; [e] o processo de exibição de programas de interesse dos movimentos populares, produzidos em vídeo ou utilizandoo como suporte, em nível grupal, para informações, animação, conscientização e mobilização (Santoro, 1989, p. 60).

O conceito de participação herdado do vídeo militante era empregado nessas instituições no sentido da participação direta na produção dos vídeos por parte dos integrantes dos movimentos sociais que eclodiam no Brasil, no final da década de 1970 e na década de 1980, num momento que antecede a redemocratização do País. Luiz Henrique Pereira Oliveira (2001), por sua vez, chama atenção para o fato de que os vídeos da ABVP não seguiram o caminho do discurso levantado nos documentos internos da associação. Embora a participação ativa dos grupos no processo de produção fosse enfatizada nas discussões registradas em documentos internos, essa participação não se torna visível nos vídeos. Apesar de ressalvar a heterogeneidade dos cerca de 500 títulos5 que compõem a videoteca da ABVP, Oliveira observou nessa produção uma disparidade entre a ideia de participação popular e sua efetiva realização. Diversas ações foram levadas a efeito para que efetivamente os movimentos populares participassem da maneira mais ampla possível do processo de produção de vídeos. Todavia, um dos traços que singularizou o vídeo popular foi o fato de que esta produção correspondeu a um momento em que as pessoas que atuavam junto aos movimentos sociais (comunicadores, educadores etc.) tiveram elas mesmas o acesso aos meios de produção audiovisuais (Oliveira, 2001, p. 19). Calcula-se que em 1992 havia cerca de 200 grupos de vídeo popular no Brasil, quase a metade do total que se estimava atuar na América Latina.

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Foram elaboradas, no interior do movimento do vídeo popular, críticas aos procedimentos empregados em muitas produções. A ideia de uma aplicação imediata dos vídeos populares, que deveriam levar o espectador à ação sobre uma realidade premente, acaba por fortalecer a adoção de “mecanismos pelos quais se procura obter uma rápida adesão do espectador, recorrendo ao uso de clichês” (Oliveira, 2001, 169). Outra crítica apontava no sentido da omissão de conflitos e contradições, em virtude da necessidade de apontar ao espectador uma única direção a tomar. Ainda que essas críticas tenham sido registradas nos documentos internos da ABVP, elas não foram suficientes para alterar a lógica dos vídeos. Segundo o diagnóstico de Oliveira, as questões estéticas foram abordadas dentro do movimento, mas de maneira isolada, sem se relacionar às demais questões. O que está ausente nas avaliações do vídeo popular não é propriamente a discussão da forma, mas a relação entre a forma e a mensagem. A reflexão sobre a articulação entre os meios utilizados para sensibilizar o espectador e a mensagem veiculada foi rara nos textos produzidos no âmbito do movimento de vídeo popular e também nos vídeos. O que se verifica é um relativo consenso na listagem dos aspectos que são rejeitados [...] e na listagem das soluções para a superação das deficiências – criatividade, diversificação dos formatos, pluralidade, incorporação das contradições (Oliveira, 2001, p. 390).

O fato é que, à medida que nos aproximamos da década de 1990, o vídeo popular se encontra cercado de críticas: de um lado, está a constatação da não participação das comunidades na realização dos vídeos; de outro, o enfraquecimento dos vínculos com os movimentos sociais, para onde estava orientada a militância do vídeo popular. Soma-se a isso, uma dificuldade para articular as questões políticas com as questões estéticas. Como observou Oliveira, era comum recorrer a clichês e a fórmulas prontas com a proposta de ter um entendimento mais amplo sobre os conteúdos veiculados. É dentro desse quadro que o 94


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vídeo popular entra na crise de identidade, que culmina com o fechamento das portas da ABVP, em 1995. Nos primeiros anos da segunda metade da década de 1990, que marca o início da prática do audiovisual comunitário pósvídeo popular, a grande mudança perceptível era a estruturação do trabalho prático de modo a fomentar a participação efetiva dos grupos. Nesse momento, vários projetos que vinham da fase do vídeo popular começam a abdicar da câmera, transferindo-a para as mãos dos grupos sociais envolvidos. Para que isso fosse possível, foi preciso criar oficinas que, em linhas gerais, explicavam como utilizar aquela tecnologia de captação de imagens e sons. Essa mudança tem implicações efetivas na própria estrutura e na estética dos produtos videográficos. A análise de dois trabalhos contemporâneos ajudará a mostrar o surgimento de novos elementos para se pensar o audiovisual comunitário. A compreensão dessa prática não deve se restringir à constatação da possibilidade de comunidades empreenderem projetos de vídeo. Ela deve apontar para as formas de experimentação de imagem e som desenvolvidas por essas comunidades. É isso que busco mostrar nas próximas seções, em que analiso duas produções contemporâneas.

“No ar, ninguém manda”6 O documentário Serra: sons, trajetórias, caminhada, becos7 foi realizado em 2006, no contexto dos processos formativos Apresentei uma primeira análise desse filme em uma comunicação no X Encontro da Socine (Sociedade Brasileira de Cinema), Ouro Preto (MG), 2006, na mesaredonda intitulada “Ensaiando o Documentário”, composta por Cláudia Mesquita, Leandro Saraiva, Marília Rocha e por mim.

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Tive contato com esse filme a partir de uma apresentação que Cristiano, um de seus realizadores, fez durante reunião do grupo de estudos da Associação Imagem Comunitária, que, naquele momento, começava a se organizar. O grupo era coordenado por Bráulio Britto, Musso Greco, Oswaldo Teixeira, Ricardo Fabrino e por mim. Agradeço a eles e aos demais integrantes da instituição pelo diálogo. As observações que tecerei neste artigo são de responsabilidade minha, mas certamente foram motivadas por nossas conversas durante as reuniões do grupo.

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em vídeo do projeto Rede Jovem de Cidadania da Associação Imagem Comunitária (AIC). Ele foi exibido pela Rede Minas de Televisão, emissora de cunho cultural e educativo, dentro de uma parceria que as duas instituições mantêm e que prevê a exibição semanal de material produzido nas oficinas da AIC. A proposta do filme, enunciada na sua abertura a partir de voz over dos realizadores, é fazer uma investigação dos sons do Aglomerado da Serra, favela belo-horizontina onde um deles, Cristiano, mora. O primeiro procedimento envolvido na realização desse trabalho prevê, portanto, não uma saída para pesquisa ou gravação, como costuma acontecer nas produções de documentário, mas uma saída para captação de sons. Depois de coletar os sons que consideraram significativos daquele lugar, uma dupla sai novamente pelos becos da favela da Serra, desta vez de posse de um aparelho de MD, onde estão registrados os sons captados por eles, e de uma câmera de vídeo. Interrompem passantes e pedem que adivinhem de onde eles tiraram aquele som através de interpelações como: “Onde que você acha que tem isso?”, “O som que você ouvir você vai falar como que faz pra chegar nele”,“Onde que está este som?”. A câmera acompanha os personagens, na entrada em cena e na tentativa de descobrir de que som se trata. Em primeiro lugar, não se trata de forma alguma de uma proposta de representação da favela. Pelo contrário, trata-se de um jogo audiovisual criado e aceito pelos participantes. De saída, temos, então, que não há uma proposta de representação direta da comunidade a partir de um argumento de autoridade, identificado no “Sou de lá”. Parece-me que o que motiva a entrada em cena dos personagens nesse filme não é a possibilidade de aparecer na televisão, autopromover-se, tornar-se uma pessoa conhecida, uma celebridade, dar um depoimento, um testemunho ou fazer uma confissão sobre a vida na favela – alguns dos clichês que orientam a participação das pessoas em registros audiovisuais nesse contexto. Em Serra: sons, caminhadas, trajetórias, becos, esta entrada em cena é mostrada dentro do vídeo e, a meu ver, o desejo das 96


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pessoas de entrar em cena se dá por um motivo muito singular, que independe de sua condição social ou de seu papel dentro do filme. Trata-se da possibilidade de ouvir sons desconhecidos que partem de determinado equipamento, uma proposta pouco usual e que, por isso, acaba por motivar uma quebra dos padrões previamente acordados do que seriam personagens de um documentário. É importante chamar a atenção para a possibilidade de requerer outras habilidades dos sujeitos filmados nas situações de gravação. Não apenas um depoimento, uma entrevista ou a autorização pelo uso de determinadas imagens. Mais que isso, o filme propõe a esses sujeitos novas possibilidades, embasadas na ordem do sensível, quando se lhes demanda a escuta. “Você vai escutar isso aqui e me falar o que você acha?”. O personagem entra no filme para escutar, com a chance de colocar não a sua ação de fala, mas a sua percepção, em jogo. A presença do equipamento torna-se essencial dentro da proposta, porque a ideia é justamente estabelecer uma relação dos personagens com um determinado aparato técnico móvel. A câmera que filma as pessoas que entram em cena se detém nas expressões dos rostos que se esforçam para reconhecer sons. Tais sujeitos ora cantarolam ou dançam uma canção, ora rememoram lugares, buscando localizar espacialmente o estímulo sonoro. O enquadramento não é frontal, mas lateral, o que evidencia a possibilidade de acompanhar aqueles que escutam ao longo de uma caminhada, sem detê-los na caminhada pelos becos da favela e sem questionar suas posturas ao longo da escuta. O próprio título do documentário revela a preocupação de seus realizadores em abordar o som dentro do espaço físico da favela, em suas trajetórias, caminhadas, becos. Parece importante para seus realizadores, então, que a experiência do filme aconteça simultaneamente ao caminhar, num incessante fluxo dos personagens. Outro ponto que pode ser levantado a respeito dessa abordagem é ela permitir que a escuta e a fala, duas experiências distintas, se misturem a ponto de se tornarem não só simultâneas mas 97


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indiscerníveis. Acredito que essa mistura seja almejada dentro de um ambiente em que “tudo acontece ao mesmo tempo”, “é uma confusão”, como diz Cristiano sobre a favela da Serra na abertura do filme. Vale observar ainda que todas as entrevistas acontecem nas ruas, com exceção para a de Maria da Paz, que acontece em sua casa. Isso permite que a entrada dos equipamentos em cena se dê como se eles se tornassem parte integrante desse ambiente instável, improvisado, que é a periferia de um grande centro urbano. A partir da descrição da proposta do filme com ênfase na maneira como coloca os personagens e os equipamentos em cena, podemos agora perguntar: O que acontece com a tentativa de representação do espaço da favela? Em vez de tentar construir uma imagem da favela, o que acontece é uma utilização do som como metáfora que permite o trânsito para além dos estereótipos inerentes à representação da violência e do tráfico de drogas. Justamente porque constrói uma proposta sonora para falar do morro, o trabalho consegue fugir das representações imagéticas já tão desgastadas da periferia. Não que as falas sobre a violência não estejam presentes. Estão ali, por exemplo, no depoimento de um morador que diz andar tranquilo de madrugada nas ruas, mesmo porque “bandidagem tem é em todo lugar”. Maria da Paz, cujo depoimento amarra os vários momentos de encontro com os passantes na rua, diz que os sons ouvidos antigamente são diferentes dos novos. Ela explica que os sons eletrônicos que predominam atualmente ajudam as pessoas a relaxar do trabalho, afirmando não haver como interferir nisso. Afinal, “no ar, ninguém manda”. Acredito que essa frase de Maria da Paz seja essencial para compreender o filme. Se ninguém manda no ar, ou no som, ao contrário do que acontece com o espaço urbano, que se encontra dominado, é justamente sobre ele que se pode interferir. Na verdade, podemos pensar que o filme repete para seus espectadores a mesma proposição que faz para seus personagens. Então, é preciso que eu também, espectador, imagine uma imagem do morro. Talvez seja por isso que o mesmo som que 98


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o morador ouve seja audível também para o espectador, como trilha sonora. Enquanto o personagem que entra no filme se esforça para identificar o som que escuta, nós, espectadores, somos levados a tentar imaginar esse som no espaço, sem que, para isso, tenhamos uma imagem precisa como referência. Com isso, nós, espectadores, temos a liberdade de construir uma imagem da favela que não nos é dada e fazemos isso junto com os moradores, que também não têm essa imagem, o que fica claro no esforço deles para identificar os sons. A imagem da comunidade é colocada em suspensão. É preciso notar que a imagem imaginada pelo espectador e a imagem imaginada pelo morador da favela certamente não coincidem. A diferença evidenciada pelo filme reside exatamente nesse deslocamento entre um olhar e outro, entre uma imaginação e outra, dos que moram dentro e fora. Há uma passagem em que foi utilizado um efeito de edição que explicita de forma muito interessante a não coincidência entre as várias imagens possíveis do morro, usada como uma metáfora da reverberação do som, matéria que o documentário opta por trabalhar de forma privilegiada e que é por natureza algo vibrante. Ao final do filme, vemos a regra que é levada a termo desde o início ser virada ao avesso. Nesse momento, o que vemos é uma imagem de onde o som foi realmente captado e uma voz over da fala de uma moradora tentando adivinhar de onde viria aquele som. A cena é supostamente constituída por um grupo de moradores que estão situados num ponto alto do morro e que dali apontam as fronteiras da favela. Não ouvimos a fala dos moradores, mas apenas vemos a cena deles apontando para fora e a fala em over da moradora dizendo que eles deveriam estar num lugar alto mostrando os limites da favela. A imagem que se constrói da favela, nesse caso, é uma imagem que foge aos próprios moradores, que vai sendo construída com os pequenos saltos entre um personagem e outro, seja ele morador da periferia, seja ele espectador do centro. Um dos caminhos possíveis para que o vídeo comunitário consiga fugir do argumento de autoridade é tornar expressiva a materialidade 99


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sensível que constitui a favela e não tomá-la como um dado de realidade pronto para ser representado. Em Serra: sons, caminhadas, trajetórias, becos, isso pôde ser feito devido à opção pela utilização de uma proposta sonora que se move em um ambiente (o ambiente sonoro) em que, no dizer de Maria da Paz, “ninguém manda”.

Casa-Transporte-Centro H2 In Concert Casa-Transporte-Centro é um documentário constituído por depoimentos. Por ocasião do evento H2 In Concert, em 2009, um grupo de jovens realizadores ligados ao projeto Rede Jovem de Cidadania da AIC foi ao Teatro Francisco Nunes (Belo Horizonte), onde transcorria uma programação composta por shows de hip-hop, e colheu falas de participantes das mais variadas partes da cidade. No trabalho existe, tal como em Serra: sons, caminhadas, trajetórias, becos, a opção por revelar a situação de gravação. Grande parte dos depoimentos é gravada nos camarins do Teatro, onde existe um grande espelho. Vemos quase o tempo inteiro refletida no espelho a imagem de um dos realizadores sustentando um microfone boom, enquanto os personagens falam direto para a câmera. Assistindo ao filme, é possível notar que os realizadores chegaram ao Teatro, procuraram seus personagens e propuseram que eles falassem sobre casa, transporte, centro. Não havia uma pergunta específica. Eles simplesmente jogaram três palavras e pediram que os participantes dissessem algo sobre elas. Aqui também o trabalho parte de uma proposição diferente daquela esperada de participantes de um documentário. Notamos isso na fala de uma das entrevistadas, Miss Black, que se apresenta como raper, arte-educadora, desempregada, moradora do município de Contagem: Achei interessante a forma como foi colocada essa pergunta. Fiquei até surpresa. Por que a gente tá acostumada com aquelas perguntas com respostas prontas pra dar. E é legal

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quando alguma coisa faz a gente refletir. A questão aí a gente pára e pensa: o que esse tema tem a ver com o meu dia a dia, com o cotidiano: casa, transporte, centro.

Nota-se que os entrevistados, em vez de responder diretamente aquilo que supostamente havia sido perguntado, procuram se questionar sobre o sentido das palavras que constituem a proposição do grupo. Miss Black continua da seguinte forma: A palavra centro diz que ali é o foco de tudo. Pode ser o centro da cidade. A palavra centro diz que tudo se reúne ali. Quem tá nas regiões periféricas metropolitanas ao redor do centro quer de alguma forma poder estar tendo acesso, estar chegando. Aí, volta a questão do transporte de novo. “Eu preciso chegar ao centro, eu preciso chegar mais rápido”. Então, tem várias coisas culturais que muitas pessoas queriam estar tendo acesso a esse centro. Então, por exemplo, a periferia onde que eu moro, eu moro no centro. Eu tô no centro da favela mesmo. Então, quando me perguntam: Você mora em que lugar do Marimbondo? Eu falo: eu moro no centro. Por que realmente se você for ver eu moro no meio, assim, bem centralizado, entendeu? Então, a palavra centro pra mim faz pensar isso.

Esse tipo de proposição que, em vez de preparar um questionário de perguntas para os entrevistados, propõe que eles entrem num jogo de palavras, faz com que o filme fuja do que é esperado de um documentário ou de uma reportagem televisiva. Em tais modelos, existem entrevistas estruturadas em cima de perguntas assertivas, claras e objetivas às quais os entrevistados têm que responder sim ou não, com uma justificativa. No filme em análise, propõe-se que as pessoas questionem o sentido das palavras. O que está em jogo talvez seja a possibilidade de fazer com que as pessoas pensem que uma pergunta é composta de palavras que foram escolhidas e articuladas. Uma pergunta não é algo pronto e naturalizado. Assim, o grupo de realizadores consegue fazer com que as pessoas entrem na proposta de um modo diferente. Miss Black, como vimos, discute a existência de outros centros, além 101


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do centro da cidade. Na concepção dela, cada comunidade tem o seu centro. Para os espectadores do filme, que foi exibido na Rede Minas, uma TV pública, pode haver uma alteração no tipo de posicionamento que se estabelece em relação às periferias. O morador do centro que se imaginava no centro, por exemplo, passa a perceber a existência de outros centros. O comentário do personagem Vulgo Elemento vai nessa mesma direção de questionar o sentido de centro, ainda que acabe por discutir o movimento de entrada e saída da periferia, que constitui uma experiência cotidiana de seus moradores. A palavra centro é muito relativa. Centro do que? E como que a gente vai entender essa realidade? Como realidade social, a dinâmica com a qual a gente trabalha é centro/ periferia. Aquilo que tá no centro é o que é bom, é o que presta e aquilo que tá ao redor é o que sobra, é o resto, é o sobrante... fazendo uma conjuntura de casa, transporte, centro, a gente vê que tem uma linha. Aquilo que me leva até onde eu quero chegar e aquilo que me faz voltar também ao lugar de onde eu parti, de onde eu saí.

O que Vulgo Elemento assinala com seu comentário é justamente que existem dois movimentos em jogo quando se articula periferia e centro: um é sair da periferia; o outro é voltar pra ela, tendo tido a experiência de viver o centro. Questões mais pessoais que atravessam a vida dos personagens envolvidos também são motivo de reflexão no filme: “Particularmente, esta semana estou vivendo um processo diferente na minha vida porque eu tô conseguindo reformar o meu barraco. Então, tá tudo uma zona, mas tá tudo correndo dentro dos conformes”, diz Negro F. Miss Black lembra o percurso que fez desde que acordou. Hoje eu tô na rua desde 6h da manhã. Fui para a Vila Santa Rita com o pessoal da Cuca receber o Mano Brown. Fiquei 1h30 dentro do ônibus para a Estação Diamante. Aí, sai de lá e tive que ir pro Eldorado e andar uns 30, 40 minutos a pé porque não tinha um ônibus que descia próximo de onde eu ia.

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A proposta acaba fugindo completamente de uma perspectiva de registro do evento de hip-hop, que passa a ser um pano de fundo para as questões que interessam ao grupo de realizadores. O filme chama a atenção para algo bastante curioso, que é a própria presença desses sujeitos vindos da periferia em um Teatro no centro da cidade, um espaço cultural instituído e consolidado. Alguns dos personagens usam as palavras acionadas pelos realizadores para fazer uma reflexão sobre o evento. É o caso de Russo: Eu me sinto mais em casa na rua do que em espaços públicos do jeito que a gente tá aqui hoje. Por que a gente fica com aquela cisma. O pessoal ocupa o teatro e a gente fica “Nossa, e se esses caras quebrarem cadeira? Nossa, e se esses caras chaparem o goró e quebrarem alguma coisa?” Automaticamente, vai dar galho. E eles vão falar “Pô, esses caras do hip-hop são tudo animal”.

Fica claro que há uma série de nuances na relação entre as três palavras selecionadas, e o filme persegue algumas das inúmeras possibilidades de combiná-las, a partir das escolhas específicas de seus personagens. Essas possibilidades é que fazem desse filme mais do que um filme de entrevistas ou de depoimentos. Trata-se de uma produção que requer um pensamento sobre os sentidos das coisas, sobre as palavras que usamos para representar esse ou aquele centro, essa ou aquela trajetória. Enfim, trata-se de uma forma de estabelecer um diálogo totalmente distinta daquela que considera os sentidos como dados. Da forma como o filme foi proposto, a impressão que se tem é que é preciso um trabalho de linguagem para alterar as relações entre as coisas, ou entre as coisas e o sentido delas no mundo.

A necessidade de experimentar Com este texto gostaria de ressaltar que o que considero mais interessante dentro do audiovisual comunitário contemporâneo é não apenas a possibilidade de grupos sociais terem a câmera em mãos, para usar a expressão de Santoro, ou participar 103


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da realização de filmes. O que mais me interessa é exatamente a possibilidade de esses grupos utilizarem o som, a imagem, a palavra, a letra para reinventar o sentido das coisas, questionar os espaços destinados para isso ou aquilo dentro da sociedade, a forma como se deve falar isso ou aquilo, o que se deve escutar e, a partir daí, construir outro mundo. Isso só pode ser feito com certo investimento na linguagem. Muito me incomoda ver trabalhos de audiovisual contemporâneos que ainda estão presos à comprovação da possibilidade de comunidades específicas realizarem trabalhos de vídeo ou mesmo em formatos que pouco levam em consideração a necessidade premente da experimentação audiovisual dentro da sociedade. Chama minha atenção nesses dois trabalhos a forma como o audiovisual pode constituir experiências sensíveis para os seus realizadores e para seus espectadores, contribuindo para que eles experimentem o mundo de uma maneira diferente. Assim, parece-me interessante pensar na possibilidade de que “as diferentes vidas tentem uma outra ocupação da terra”, como nas palavras de Llansol. Afinal, é experimentando o mundo que ele pode se tornar diferente.

Referências AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Presença, 1993. ALVARENGA, Clarisse; HIKIJI, Rose Satiko. De dentro do bagulho – o vídeo a partir da periferia. Sexta Feira - Antropologia, Artes, Humanidades, n. 8, p. 183-202, 2006a. ALVARENGA, Clarisse; HIKIJI, Rose Satiko. Sou de lá x Estive lá – o vídeo pela periferia. In: 30º ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANPOCS), 2006b. ALVARENGA, Clarisse. Comunidades por vir e imagens periféricas. Devires – Cinema e Humanidades, n. 3, v. 1, p. 166-179, jan./dez. 2006. BERNARDET, Jean-Claude. Cineasta e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. COMOLLI, Jean Louis. Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

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CAPÍTULO V

Sentidos da imagem na quebrada Rose Satiko Gitirana Hikiji

N

este artigo proponho uma reflexão sobre os sentidos da imagem para jovens moradores da periferia paulistana que nos últimos anos têm se envolvido no movimento de apropriação, divulgação e debate do audiovisual como meio de expressão. 1 Em 2004 estabeleci meus primeiros contatos com a produção audiovisual realizada em comunidades periféricas brasileiras, durante o 15o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Uma das sessões do evento, intitulada Formação do Olhar, promoveu debates e exibições de trabalhos exclusivamente realizados em oficinas.2 Desde então, tenho acompanhado Este artigo resulta de pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Parte importante da reflexão foi apresentada no 32.º Encontro Anual da Anpocs, no Fórum Imagens e Sociedade: leitura, produção e interpretação nas Ciências Sociais, em outubro de 2008. O fórum foi proposto e coordenado por Renato Monteiro Athias e Edgar Teodoro da Cunha, aos quais agradeço.

1

Discutimos aspectos das oficinas e da apropriação do audiovisual por comunidades no Brasil em Alvarenga; Hikiji (2006).

2

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o que percebo hoje como um movimento,3 assistindo ao seu importante crescimento nos últimos quatro anos. Aquilo que em 2004 poderia ser caracterizado como o fomento da produção audiovisual nas periferias por meio principalmente da ação de ONGs e do poder público hoje precisa ser descrito como algo maior, que revela uma movimentação importante protagonizada pelos próprios membros das comunidades que passam a atuar como realizadores, exibidores e militantes de um movimento pela democratização do audiovisual. Nos últimos anos, acompanhei festivais e fóruns de discussão em torno do Cinema de Quebrada;4 assisti a dezenas de filmes produzidos em comunidades ou oficinas; conheci grupos que realizam e exibem cinema em becos e vielas; acompanhei discussões em torno dessa produção em reuniões com a presença de coletivos de quase todas as regiões de São Paulo. O processo de pesquisa sobre o audiovisual na periferia de São Paulo resultou em algumas reflexões e, no filme Cinema de quebrada,5 protagonizado por membros de alguns dos coletivos que conheci, como o Filmagens Periféricas (de Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo), o Arroz, Feijão, Cinema e Vídeo (de Taipas, Zona Norte), o Arte na Periferia, o Núcleo de Comunicação Artística (NCA) e o Cine Becos, da Zona Sul. São esses os autores das reflexões acerca das imagens – sua agência e seus sentidos – que aqui apresento. Como Goldman (2008), gosto de enfatizar o aspecto de movimento dos movimentos, em vez de buscar a fixação de uma identidade do movimento. Esta nota pretende ser um início de conversa com alguns integrantes dos coletivos de realização audiovisual, que questionaram a designação movimento, por mim utilizada, temendo – com razão – sua tendência a congelar ações e pensamentos diversos numa imagem pouco contrastada.

3

Cinema de Quebrada foi o nome de um fórum que reunia grupos interessados em debater e promover o audiovisual comunitário na periferia de São Paulo. Foi também o nome de mostras de vídeo organizadas pelo grupo.

4

Pode-se assistir ao filme Cinema de quebrada ou adquiri-lo no Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo (LISA-USP): <http://www.lisa.usp.br>.

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Imagens que não refletem – Eu fui educado pelo Chaves e pela Xuxa. – Eu fui pela Angélica... E o Jaspion. – Cai a ficha quando você percebe que o mundo da Xuxa é o mundo da Xuxa, entendeu? Quando você percebe que o café da manhã da Xuxa não é o seu café da manhã. Quando você percebe que as Paquitas não são suas vizinhas, sabe, não são suas primas. [...] Então nada melhor do que trabalhar com audiovisual, já que a gente tem a possibilidade de pegar uma câmera dessa e fazer, de repente, o nosso Chaves, a nossa Xuxa.

Esse diálogo foi realizado entre alguns integrantes do CineBecos,6 um grupo da Zona Sul de São Paulo que atua principalmente com a projeção de vídeos em comunidades vizinhas ao Capão Redondo e ao Jardim Ângela. Ele revela uma preocupação comum entre vários dos coletivos que trabalham com audiovisual na periferia: as representações veiculadas na mídia e a possibilidade de construção de contradiscursos. Um dos primeiros filmes a que assisti na sessão Formação do Olhar do Festival de Curtas de São Paulo foi Improvise!, uma coprodução do Filmagens Periféricas com Reinaldo Cardenuto Filho, um jovem documentarista de fora. No filme a produção de imagens na e sobre a periferia era tematizada de maneira crítica. Em uma cena, uma moça questiona o porquê da exibição constante de imagens da violência e da criminalidade da periferia na televisão. Outra jovem questiona a necessidade de revistas e programas para negros. Em outro momento do filme, assitimos à discussão entre o diretor de fora e o grupo. Os jovens de Cidade Tiradentes reclamam a necessidade de o vídeo ser dirigido por um deles. Ouvimos 6

Registrado durante gravação de entrevista com os integrantes do CineBecos para o filme Cinema de quebrada, realizada em 2008. Para mais informações sobre o CineBecos, ver <http://becosevielaszs.blogspot.com>.

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em off que Reinaldo não abre mão da direção. Os integrantes do grupo, por sua vez, não aceitam o termo “codireção”. Exigem que alguém do Filmagens Periféricas seja igualmente diretor. Argumentam que assim poderão ter “mais controle”sobre o que filmar, sobre o material filmado. Em outra cena, uma jovem, negra está pronta para contar para a câmera o argumento de seu próximo vídeo. No mesmo plano, ela desiste do depoimento ao lembrar que alguém poderia roubar sua ideia. A câmera volta-se para um homem branco, que podemos supor ser o diretor do filme, que ri, junto com a jovem, da situação. Apesar dos risos, não ouviremos o argumento, que é mantido em sigilo. Nos créditos finais, a jovem, Kelly Regina Alves, moradora de Cidade Tiradentes, integrante da produtora Filmagens Periféricas e ex-aluna das Oficinas Kinoforum, assina o vídeo junto com Reinaldo Cardenuto Filho. O documentarista, que trabalhava no Centro Cultural São Paulo e fazia graduação em Ciências Sociais, investira seiscentos reais de seu bolso na produção desse que foi seu primeiro trabalho. Questões como autoria, representações e autorrepresentações da periferia, abordadas de forma exemplar nesse filme híbrido, foram simultaneamente tematizadas nos debates realizados no Festival de 2004, com a participação de professores universitários, oficineiros, coordenadores e ex-alunos de projetos. Em vários outros filmes produzidos nas quebradas, os mesmos temas emergiam em relatos geralmente críticos à mídia. Tais produções defendiam a apresentação de contraimagens da violência, manifestas nas mais diversas práticas artísticas e de sociabilidade das comunidades a que pertenciam os realizadores. Uma poesia de um dos membros do Núcleo de Comunicação Alternativa,7 coletivo da Zona Sul de São Paulo que trabalha com produção e exibição de vídeos e organiza ainda uma Disponível em: <http://ncanarede.blogspot.com>.

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videoteca popular, sintetiza as preocupações e formas criativas de exposição dos grupos:8 Sou um olho em processo de desintoxicação, um olhar angustiado, mesclado entre a revolta e a sensibilidade. Sou a negação ao poder privado da comunicação, sou a necessidade de independência da voz, do ver, narrador do quilombo moderno. sou quem toma de assalto a teoria e quem experimenta na prática a potencialidade do real e do imaginário. Exploro a linguagem, acadêmica, a gíria. Regurgito no espaço público minha pluralidade, minha mestiçagem, com mil caras, mil jeitos, mil anseios. Arquiteto da nova história, imagética e ainda oral, sigo observando de dentro a realidade que é minha e de meus irmãos. Sou viela, escadão, ciranda, morro, busão lotado, cachorro sarnento, gente sorrindo, boca de lobo, boca de fumo, esgoto à céu aberto, comunhão, palavrinha e palavrão, balaio de sensações. Sou o ser das quebradas que porta tal olhar e que transfere através de um suporte barato de registro sua percepção de mundo. Sou o indivíduo periférico no planetário coletivo esférico do lugar, com uma câmera na cabeça e uma idéia nas mãos... (Daniel Fagundes. “Manifesto da Imagem Quebrada”. Grifos meus.)

Imagens e transformação É o audiovisual como um instrumento de uma transformação política e cultural, que a gente sente necessidade 8

Agradeço a Flávia Belletati, orientanda de Iniciação Científica, que realizou uma etnografia do grupo, na qual chama a atenção para este texto de Daniel, publicado no blog do coletivo. Ver artigo de Flávia em: <http://www.fflch.usp.br/da/ antropologiacompartilhada/blog>.

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de realizar aqui. Então, é como uma ferramenta, a gente percebe que é uma arma, eu diria, fundamental porque a gente consegue envolver as pessoas, a gente consegue disponibilizar e ter acesso às pessoas, levar informação, cultura, conhecimento às pessoas de uma forma muito direta, muito envolvente (David Vidad, “Arte na periferia”9).

O filme Panorama, arte na periferia, de Peu Pereira e David Vidad, é um exemplo de contranarrativa à representação midiática da periferia paulistana. Em vez da violência criminal, principal temática associada à região na mídia, o documentário apresenta as manifestações culturais que movimentam toda a semana da Zona Sul de São Paulo.10 Depoimentos dos artistas e registros de suas obras e apresentações resultam em um mosaico que evidencia a diversidade das práticas artísticas na localidade e as reflexões sobre sua importância para a comunidade. Em um debate público sobre democratização do audiovisual,11 Peu teceu o seguinte comentário: “a mídia chamava carinhosamente aquele lugar, do Parque Santo Antônio, Jardim Ângela, de Triângulo da Morte. E hoje a gente está aqui falando de referência, do menino que sai da escola com o poema do Gaspar [poeta local]. Hoje não é mais o Triângulo da Morte, é o círculo das artes”. Panorama, arte na periferia desenha esse círculo. Parte de uma panorâmica sobre a Zona Sul, marrom acinzentada, e vai mostrando as cores do grafite nas paredes, os sons do “Samba da Vela”, o movimento da dança afro, os saraus literários e o cinema popular que redescobre uma cidade (Embu das Artes) por meio de um artista negro (Solano Trindade).12 Além da apresentação de conteúdos inéditos sobre a sociabilidade e a criatividade nas quebradas, alguns coletivos Depoimento para o vídeo Cinema de quebrada, gravado em fevereiro de 2008.

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Mais sobre o grupo em <http://www.artenaperiferia.blogspot.com>.

10 11

Realizado no Instituto Pólis, em 19 de julho de 2007, e registrado durante as gravações para o filme Cinema de quebrada.

O filme citado no vídeo é Imagens de uma vida simples, do coletivo NCA.

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têm explorado formas narrativas que se contrapõem ao que denominam a visão hegemônica, construída pelas grandes redes de comunicação, como podemos perceber na fala de Daniel Fagundes, do NCA:13 Eu acho que não se tem uma forma específica e nunca vai existir uma forma de como se representar a periferia. Eu acho que cada um vive a sua realidade e sabe como é que ela é. Eu tenho a minha visão, de ver como é o mundo, como é a minha comunidade, como é que são as pessoas com quem eu convivo. Nas vezes em que eu faço um filme, eu tento mostrar da minha forma. [...] Quando se proporciona para uma pessoa que nunca teve acesso a uma câmera produzir um filme, ela produz e mostra sua realidade, sua forma de olhar o mundo, sua forma de olhar a relação que sua comunidade propõe. [...] A gente tem muito acesso a Globo, SBT, esses canais de grande acesso. E o que eles passam é uma visão que está aí há muitos anos. Uma visão hegemônica de uma elite que na verdade quer que a gente continue cada vez mais pobre e no mesmo lugar.

Os vídeos do NCA, coletivo no qual Daniel atua, são um exemplo da busca por alternativas para a linguagem cinematográfica ou televisiva tradicional. Entrelinhas, um curta de três minutos, explora a sobreposição das linguagens policial, política e cinematográfica, por meio da metáfora do enquadramento. No vídeo, acompanhamos um personagem em seu trajeto pela cidade de São Paulo – periferia e centro. Efeitos especiais recortam alguns planos, destacando detalhes com uma moldura vermelha: o espelho no qual o personagem se observa pela manhã, um pedaço de cerca, o carro de pipoca. A cada enquadramento, ouvimos gritos – “Encosta aí, encosta aí!” – e sons de armas sendo carregadas ou de tiros. A pergunta apresentada em uma cartela no fim do filme evidencia a crítica política: “você está enquadrado?”. 13

Durante debate no CEDECA Interlagos, após exibição de filme do NCA, registrado durante as gravações para o filme Cinema de quebrada, em 18 jul. 2007.

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No longa mais recente do NCA, Videolência (2009, 59 min), retoma-se a discussão sobre a mobilização da periferia em torno do audiovisual, mas a narrativa documental é permeada por experimentos ficcionais que remetem ao experimentalismo dos curtas do coletivo. Como descreve Nathalie Ferreira,14 num dos momentos de ficção inseridos no filme, acompanhamos a perseguição de um menino por outros, armados com canos de PVC. “A câmera acompanha a correria dando atenção aos gestos dos perseguidores que imitam a ação de policiais em busca de bandidos. Ao fundo ouvem-se trechos do filme Cidade de Deus. Finda a caçada, com o perseguido encurralado pelos outros e na mira de suas armas, uma pipa cai do céu, e todos abandonam a brincadeira para correr atrás dela, juntos”. Para Ferreira, é na ficção que os grupos têm mais liberdade para “expressar sua subjetividade”, ou, nas palavras de Daniel Fagundes, citadas pela autora: Nessas ficções, está embutida ali uma porrada de coisas, que a gente vem trocando idéia depois que a gente estudou e... aquelas referências que passam no final do filme são coisas que a gente ficou pilhando lá, meio que esmiuçando e pensando em como pegar – por exemplo, um texto mó denso, tipo Maria Rita Kehl ou a “Sociedade do Espetáculo” do Debord – e tentar fazer uma dessas coisas se tornarem ações populares.

Geralmente realizadores com produções muito diversas possuem a percepção do audiovisual como meio, instrumento para atingir um objetivo mais amplo, que é a transformação social. Ideia ambiciosa – verbalizada em manifestos, entrevistas, conversas, poemas – que não é homogênea e precisa ser matizada. Para alguns, como o poeta Sérgio Vaz, organizador de um dos principais saraus da periferia sul de São Paulo, a arte transforma a gente e a localidade. Sua fala no documentário Panorama: arte Em artigo produzido em sua pesquisa de Iniciação Científica orientada por mim. Disponível em: <www.fflch.usp.br/antropologiacompartilhada/blog>.

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na periferia, do coletivo Arte na Periferia, também da Zona Sul, evidencia essa posição: Aqui não é pra transformar ninguém em artista, em hipótese alguma. A gente está aqui para transformar a periferia, e a periferia transformar a gente. E quando a gente faz poesia, a gente conserta o poema, e o poema conserta a gente. A gente está aqui pra aprender um com o outro.

Para Vanice Deise,15 moradora de Taipas, na Zona Norte de São Paulo, e realizadora de vídeos e oficinas, a transformação possível por meio da prática do cinema é a do próprio mundo, mesmo que o mais próximo, o bairro: Eu tenho minha convicção, é ilusão, é bobagem, mas eu vou mudar o mundo, pelo menos o meu mundo, pelo menos o meu bairro, entendeu? O mínimo que eu posso fazer eu vou fazer, eu vou me dar, eu vou dar o melhor de mim, porque essa é a minha convicção, entendeu? Esse é o meu foco, é usar o cinema como ferramenta de mudança, de transformação das pessoas.

É na prática que Vanice – e vários dos jovens realizadores com quem tenho conversado – exercitam sua utopia. Guerreira, a jovem de Taipas promoveu durante meses exibições nas paredes do conjunto habitacional onde vive, levando filmes e ideias para um local onde “falta tudo”, em suas palavras. Com apoio de editais públicos, como o Valorização de Iniciativas Culturais (VAI),16 realizou na escola do bairro oficinas de vídeo para crianças e jovens. Mesmo sem apoio, continua produzindo vídeos que são exibidos em festivais, como o de curta-metragens de São Paulo, onde conheci o Cinema de Quebrada, ou o do Fórum Social Mundial, para o qual Vanice já levou filmes seus e de outros coletivos. 15

Em depoimento registrado no filme Cinema de quebrada.

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O VAI é um edital da Prefeitura de São Paulo que contempla grupos periféricos com verba para compra de equipamentos, realização de oficinas ou produtos artísticos.

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Imagem, alteridade, identidade Junto com isso, vem toda questão de se reconhecer enquanto membro da periferia, não ter vergonha de ser da periferia, porque não há porque ter vergonha de ser da periferia (Vaz, Sergio. Panorama. Arte na periferia.).

Outro sentido das imagens para os realizadores de quebrada é justamente a construção da quebrada, periferia ou do popular como marcadores de diferença. “Cinema de Quebrada”, “cinema de periferia”e “audiovisual popular”são alguns dos nomes com os quais os coletivos de produção e exibição audiovisual têm se apresentado em fóruns públicos nos quais se organizam em mostras de cinema na mídia. Em comum, há a preocupação em caracterizar a periferia como espaço de experiências compartilhadas, necessidades comuns e criações próprias. Isso é legítimo. Por que isso é legítimo? Porque é nosso, cacete! A gente vai hoje lá nuns lugares da classe média, os neguinho falam “Ó os caras da periferia aí”. Ou, fulano é do Becos e Vielas, fulano é da Cooperifa, fulano é do Panelafro. E lá pra eles nós somos a Palestina. Nós somos da OLP: Organização da Libertação da Periferia. (Sergio Vaz, “Panorama. Arte na periferia”).

No momento de definição identitária, as oposições são criadas. Do outro lado da periferia, o centro. A periferia como o “o outro lado da ponte”,17 onde “o mundo é diferente”, como cantaram os Racionais.18 A ponte como representação da ascensão; eu preciso estar do outro lado pra estar melhor. Até porque é uma imagem que a gente vai construindo também. A gente tem que, por Agradeço a Juliana Biazetti, aluna de Iniciação Científica que tem acompanhado a realização desta pesquisa desde janeiro de 2007 e me chamou a atenção para a questão da ponte, conforme desenvolve em seu relatório final (BIAZETTI, 2008).

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Não adianta querer, tem que ser, tem que pá / O mundo é diferente da ponte pra cá / Não adianta querer ser, tem que ter para trocar / O mundo é diferente da ponte pra cá (refrão da canção “Da ponte prá cá”, dos Racionais MCs)

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exemplo, passar a ponte pra vir pra PUC. E é essa coisa psicológica de como a gente vai se corroendo antes da ponte. De como as nossas angústias vão interiorizando coisas, estereótipos e que a gente vai alimentando essa imagem de “da ponte pra lá” é melhor. (Juliana Santos. “Cinebecos”. Cinema de Quebrada) A gente vive numa espécie de um ovo frito, sabe? De uma gema, assim. E eu acho que essa gema, ou essa ilha, ela tem pontes em todo o redor dela, todo o círculo dela. Acho que a grande treta é como você faz pra passar a ponte e depois voltar, passar de novo na ponte, sabe. (Rogério Pixote.“Cinebecos”. Cinema de Quebrada).

A ponte revela a desigualdade. Provoca o sentimento de pertencimento ao lado de cá, ao outro mundo e, para esses jovens, coloca o desafio do retorno. É preciso acessar o centro – e grande parte dos jovens que atuam com audiovisual nas comunidades periféricas cursam faculdades e/ou frequentam espaços de organizações não governamentais (ONGs) ou outras instituições no centro de São Paulo –, mas é preciso fazer o caminho de volta e atuar junto à comunidade. Quando realizam seus filmes, o argumento de autoridade é, em geral, o do pertencimento: Essa é a grande diferença de quem faz filme de periferia, falando da periferia, e quem é da periferia e faz filme sobre ela. É a grande diferença, porque a gente vai falar de uma forma natural, porque a gente convive, a gente sabe, e não tem essa frescura de, “Ah, lá só tem neguinho, só tem rapper, só tem o pessoal que ouve Racionais”, entendeu? Não é. (DeiseVanice. Arroz, Feijão, Cinema e Vídeo. ”Cinema de Quebrada”).

Nesta chave, os filmes produzidos na periferia poderiam ser aproximados ao que Bill Nichols (1994) identificou como o movimento do cinema em primeira pessoa: uma crescente

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produção de autorrepresentações por parte daqueles que foram tradicionalmente objeto dos estudos antropológicos. Esse tipo de cinema caracteriza-se ainda como uma alternativa às grandes narrativas, já que exploram o pessoal como político no nível da representação textual e da experiência vivida. Chama a atenção em vários vídeos feitos na periferia uma espécie de permeabilidade entre autor e objeto.19 Frequentemente toma-se como tema do vídeo a própria experiência da vida na comunidade. Não raro um ou mais membros da equipe são também os protagonistas do vídeo. O deslocamento do lugar de objeto da representação a sujeito que a produz é tematizado em alguns vídeos. Exemplo disso é a discussão entre o diretor de fora e o grupo do bairro disputando o reconhecimento da autoria do filme, em Improvise!, já citada. O jargão “nós viemos aqui mostrar a realidade” pode ser ouvido em várias produções periféricas. O pertencimento a um lugar ou grupo é utilizado como argumento que autoriza o cineasta a produzir um documento sobre o mesmo. Quando analisamos a produção realizada em oficinas de vídeo (Alvarenga; Hikiji, 2006), observamos a ênfase no argumento “Sou de lá”para conferir autoridade às narrativas autorreferentes. No entanto, na produção dos coletivos que continuam a trabalhar com o audiovisual após a formação em oficinas, é possível identificar outros caminhos de argumentação, que me levam a repensar a ideia de “autorrepresentação”, como um conceito explicativo para essa produção. Nas produções que acompanhei na finalização do filme Cinema de quebrada, em 2008, observei um grupo da Zona Norte deslocar-se até o extremo sul de São Paulo para filmar a atividade de grafiteiros, que, além de suas atividades nas ruas, começam a ter suas obras expostas em galerias de arte da cidade.20 Um coletivo da Zona Sul acompanhou e documentou uma Este aspecto é discutido em Alvarenga; Hikiji, 2006.

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O grupo é o Arroz, Feijão, Cinema & Vídeo, de Taipas. Vanice Deise, fundadora do coletivo, convidou-me para acompanhar uma gravação para o documentário

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caminhada promovida por artistas de sua região em direção a Curitiba,21 com o intuito de conhecer manifestações artísticas de diferentes localidades e mostrar suas próprias realizações. Um dos membros do grupo, que exibe filmes nas quebradas da Zona Sul, realizou um filme sobre uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), em Itapecerica da Serra.22 O Núcleo de Comunicação Alternativa documentou a vida de Solano Trindade, artista negro de Embu das Artes. Em todos esses filmes, mais que autorrepresentação, há um deslocamento – espacial e social, que resulta em alter-representações, algo próximo ao que nós, antropólogos, fazemos quando nos direcionamos ao outro em busca de experiências e sentidos. Sobre o filme do NCA, Daniel Fagundes diz:23 No Imagens de uma vida simples a gente – o grupo, não só eu – quis pensar uma forma de dar vazão para o que aquela família tinha a dizer do Solano, sobre ser um negro que produz cultura no Brasil, sobre ser uma família que está resistindo a duras penas para manter uma cultura popular que pouquíssima gente dá valor no Brasil. É uma família fantástica, mudou minha vida ter passado aquele tempo com eles, vendo o que eles tinham de saber sobre a vida, sobre questões deles e sobre a vida do Solano. [...] Muitas vezes eu ficava emocionado de ver a força com que eles falavam. A gente foi mero instrumento, porque a gente deu vazão pra que pudesse ser contada essa história.

que estava fazendo em parceria com Zytho Romão, grafiteiro, morador da Zona Norte de São Paulo. 21

Donde Miras! Caminhada Cultural pela América Latina. Em 2008, foram percorridos mais de mil quilômetros entre São Paulo e Paraná. Nas cidades visitadas, foram realizadas oficinas culturais, debates e saraus com apresentações musicais, poéticas, intervenções locais, exibição de filmes, apresentações teatrais e de dança. Trechos do filme podem ser vistos no blog da expedição: <http://www.expediciondondemiras.blogspot.com>.

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2 meses e 23 minutos, documentário codirigido por Rogério Pixote, do Cinebecos.

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Em entrevista para o filme Cinema de quebrada, em setembro de 2007.

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Discuti com Daniel o fato de esse filme ter uma linguagem mais clássica, mais documental, diferente da experimentação poética e sonora que o NCA faz em outros filmes, como Paralelos, Entrelinhas ou Onomatomania. A explicação para a opção estética é ética: Na edição, a gente procurou fazer isso para que pudesse ter esse caráter; para que, dentro da linearidade, pudesse ter as falas essenciais que pontuassem quem era o Solano pra eles, pra família, pros amigos que viveram aquela ebulição cultural que foi o movimento do Embu e as diversas coisas que o Solano fez antes do Embu. Você vê que até hoje eles vivem como o Zinho Trindade falou: “a gente é quilombola; se queimaram nossa história há muito tempo atrás, se não deram direito de a gente escrever, a gente faz ela acontecer”.

Tal postura está relacionada, a meu ver, com o respeito ao que o outro tem a dizer, uma humildade diante do outro. Esse aspecto é tematizado por David MacDougall (1998) em sua defesa do cinema observacional. O autor afirma que há coisas no mundo dignas de ser vistas; para isso, é preciso que o cineasta reconheça que a história do personagem é muitas vezes mais importante que a narrativa do realizador. Por fim, Daniel reflete sobre proximidades entre sua própria história e esta outra que tanto o emocionou: Uma coisa muito bacana de os grupos de periferia estarem produzindo é isso: são pessoas que vivem essas realidades. Eu mesmo. Eu vivi isso. Eu cresci no meio da música, da arte, meu pai tocava, minha mãe produzia artesanato. Eu cresci no meio disso, me senti muito familiarizado, por ver também que a gente vive uma realidade social comum, não tinha nenhum megamilionário ali, que tinha uma realidade social totalmente diferente da minha. Tinha um monte de coisas comuns a mim, comuns a minha vida. Pessoas que, pra mim, não eram nada estranhas. Eu via mesmo neles o que eles queriam passar. Então, eu acho que o vídeo passa um pouco disso.

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Para além de autorrepresentação, há, na fala de Daniel e em diversos filmes realizados pelos grupos, um movimento de ir ao encontro do outro para pensar a própria experiência. É importante destacar essa saída de si – de seu bairro, de sua comunidade – em direção a outros lugares (incluindo outras quebradas). É parte do movimento de extensão do eu-realizador em direção ao mundo, por meio do filme.

Imagens e partilha Refletir sobre os sentidos da imagem para os meus interlocutores passa necessariamente por uma reflexão sobre o lugar da imagem em minha experiência de pesquisa. Quando opto por iniciar uma etnografia sobre o audiovisual na periferia, utilizando o vídeo como instrumento, tenho em mente uma concepção de Antropologia que gostaria de explicitar. Minha principal inspiração é a proposta do antropólogo e cineasta Jean Rouch. Desde a década de 1940 até sua morte em 2004, Rouch realizou mais de cem filmes, a maioria na África, e defendeu o cinema como meio de partilhar a Antropologia. O filme, e não o texto (tese), seria um meio efetivo de apresentar às populações com as quais realizava pesquisa – sociedades de tradição oral – o resultado de suas investigações. Como nota Piault (2000), os filmes de Rouch vão se tornando progressivamente uma produção coletiva da qual participam ativamente os atores-sujeitos, alguns dos quais se tornarão coautores: Aqueles que se exprimem (nos filmes) falam em seus nomes e não são atores submissos a um roteiro preconcebido, eles contribuem em sua elaboração, participam assim da construção de um lugar antropológico de interrogação. Neste espaço a priori abstrato da pesquisa antropológica se criará uma situação concreta, uma história vai se desenvolver, aquela do encontro de pessoas que não pertencem a uma mesma cultura e questionam abertamente entre elas seus pertencimentos, seus desejos, seus prazeres e suas obrigações (Piault, 2000, p. 217, tradução minha).

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Desde Rouch, é possível vislumbrar, por meio do cinema, uma Antropologia na qual a produção do conhecimento se dá no diálogo com o sujeito pesquisado e por meio da qual é possível devolver aos grupos pesquisados o conhecimento com eles produzido. Trata-se, para a Antropologia, da possibilidade de um diálogo com, em vez de um discurso sobre, tal como a questão foi enunciada por Pierre Clastres (1964). Nas pesquisas que venho realizando há alguns anos, tenho trabalhado com o vídeo no contexto etnográfico muitas vezes oferecendo o audiovisual aos sujeitos pesquisados. O vídeo, quando apropriado pelo outro, é um importante veículo expressivo, provocador de performances e de reflexões acerca das experiências vividas. Inicialmente, era esta minha ideia com os meus atuais interlocutores: realizar um filme em parceria com eles, experimentar os potenciais de partilhar, por meio da realização do filme, a produção de conhecimentos. No entanto, diferentemente de outras situações de pesquisa, nesta, o vídeo já se configurava como um meio expressivo para os sujeitos com quem conversava. A própria ideia do cinema como forma de expressão – que imaginava um conceito de minha pesquisa – era também um consenso para meus interlocutores. A proposta de realizar um filme etnográfico com os jovens (base do projeto de pesquisa) passou por uma série de mudanças. Compartilhar, agora, seria muito mais que fazer um vídeo em parceria com os jovens que pesquiso. Seria construir um filme ouvindo o que eles têm a dizer sobre o fazer fílmico e o estar no mundo. Seria construir filmes e textos a partir das imagens que eles próprios realizam – vídeos que devem ser reconhecidos, analisados e citados como um produto de reflexão e criação deles. Seria produzir imagens com eles, de perto (o Speaking nearby, da cineasta vietnamita Trinh T. Min-Ha24). Imagens que Em entrevista, Trinh T. Minh-Ha compara o filme a uma relação amorosa, e diz que nesta não é possível falar sobre o sujeito filmado, como se se pudesse objetivá-lo ou se separar dele de forma não problemática. Speaking nearby é, para a cineasta, um falar que não coisifica, não aponta para um objeto como se ele fosse distante do

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apresentem a eles – e a outros – meu olhar afetado pelas imagens que eles me oferecem.25 Como a antropóloga Jeanne Favret Saada, entendo aqui o afeto como matéria-prima das relações, dos encontros que experimentamos em campo. Ser afetado é deixar-se marcar por esses encontros, modificar-se, inclusive. Compartilhar seria também estabelecer uma conversa acerca do que cada um de nós pensa e faz com imagens. Este artigo, além do próprio filme Cinema de quebrada, é certamente parte do exercício de partilha.26 E, levando a sério o que dizem meus interlocutores, “fazer vídeo é só o meio, o instrumento”. Os sentidos da imagem estão além: na busca por transformações sociais radicais, como acreditam os realizadores do cinema de quebrada. E, posso dizer, eu também. Em uma utopia de Antropologia como a sonhada por Rouch.

Referências ALVARENGA, Clarisse C.; HIKIJI, Rose Satiko G. De dentro do bagulho: o vídeo a partir da periferia. In: FERRARI, F.; HIKIJI, R. et al. (Orgs.). Sextafeira: antropologias, artes e humanidades - periferia. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 183-204. BIAZETTI, Juliana. O vídeo na periferia: produção e recepção. Relatório final de pesquisa de Iniciação Científica. São Paulo: USP, 2008. Mimeografado. CHEN, Nancy; MINH-HA, Trinh T. Speaking nearby. In: TAYLOR, L. (Ed.). Visualizing theory. Nova Iorque: Routledge, 1994, p. 433-451.

sujeito que fala ou ausente do lugar da fala. É um falar que reflete sobre si mesmo e pode chegar bem perto do sujeito sem, entretanto, medi-lo ou reivindicá-lo. 25

Em seu pequeno artigo sobre o ser afetado, Jeanne Favret-Saada faz sua defesa de uma antropologia menos “acantonada no estudo dos aspectos intelectuais da experiência humana”, uma antropologia que reabilite a “velha ‘sensibilidade’” (Favret-Saada, 2005, p. 155).

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Em tempo: um novo espaço criado em conjunto com os alunos de Iniciação Científica que participaram desta pesquisa é o blog Antropologia Compartilhada <www.fflch. usp.br/da/antropologiacompartilhada/blog>. A ideia foi ocupar a rede com nossas reflexões, provocar debates, divulgar o que vem acontecendo nas quebradas, pelas mãos de quem pensa o cinema como meio de transformação, intervenção, provocação.

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CLASTRES, Pierre. Entre silence et dialogue. L’arc, n. 26. Republicado em BELLOUR, R.; CLÉMENT, C. Claude Lévi-Strauss, Paris: Gallimard, 1979, p. 33-38. FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Cadernos de Campo, n. 13, p. 155162, 2005. GOLDMAN, Márcio. Alteridade e experiência: antropologia e teoria etnográfica. Etnográfica, v. X, n. 1, p. 161-173, 2006c. GOLDMAN, Márcio. Políticas e subjetividades nos “novos movimentos culturais”. Disponível em: <http://abaete.wikia.com/wiki/ Pol%C3%ADticas_e_Subjetividades_nos_%E2%80%9CNovos_Movimentos_Culturais%E2%80%9D_%28Marcio_Goldman%29>. Acesso em: 11 fev. 2008. MACDOUGALL, David. Transcultural cinema. Princeton: Princeton University Press, 1998. NICHOLS, Bill. The etnographer’s tale. In: TAYLOR, L. (Ed.). Visualizing theory. Nova Iorque: Routledge, 1994, p. 60-83. PIAULT, Marc-Henri. Anthropologie et cinéma. Paris: Nathan, 2000.

Filmes citados Cinema de quebrada. Rose Satiko Gitirana Hikiji, LISA, 2008. Entrelinhas. Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), 2005. Imagens de uma vida simples. NCA, 2006. Improvise! Filmagens Periféricas e Vórtice Produções, 2004. Panorama: arte na periferia. Arte na periferia, 2007. Videolência. Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), 2009.

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CAPÍTULO VI

Por uma pergunta sonora Pedro Aspahan

Sem forma revolucionária não há arte revolucionária. Maiakóvski

Seis horas da tarde. No lugar da tradicional Ave Maria,

os alto-falantes da igreja tocam o Pierrot Lunaire, de Schoenberg. Homens e mulheres deixam o trabalho embalados por glissandos, gritos e ruídos de um cantofalado que se funde com as lembranças verbais do dia. No percurso para casa alguém dentro do carro liga o rádio e escuta Manuel Bandeira recitar o “Berimbau” entre graves e agudos: Os aguapés dos aguaçais Nos igapós dos Japurás Bolem, bolem, bolem. Chama o saci: – Si si si si! – Ui ui ui ui ui! uiva a iara Nos aguaçais dos igapós Dos Japurás e dos Purus. (Bandeira, 2007, p. 115)

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Da inesperada sonoridade, a mudança de estação radiofônica conduz o ouvinte ao som de ventanias e trovões que jorram para além das janelas do carro, para além do trânsito parado, para além do que se espera do rádio. Confuso, nosso personagem vagueia pelo primeiro bar. Em profundo silêncio, as pessoas assistem a uma partida de futebol. No lugar da narração esportiva, improvisações musicais conduzem o drama da partida em contraponto com os gritos ao vivo da multidão no estádio. Apesar da aparente radicalidade de nossos exemplos, acreditamos que o nosso ambiente sonoro pode ser muito mais interessante do que vem sendo. A começar pelo rádio, que veio substituir as marcações temporais da igreja medieval por uma cronometria obsessiva do trabalho, por uma verborragia ensandecida do consumo, pela simplificação e proliferação de modelos comerciais de música, pela substituição da escuta atenta e consciente por um ouvir desatento ou uma não escuta. O rádio tornou-se um ruído constante: uma parede sonora que nos protege do mais temível silêncio. Desde o final dos anos de 1920, enquanto as diversas vanguardas artísticas alcançavam um alto grau de experimentalismo e abstração plástica da imagem em movimento, a invenção do cinema sonoro foi recebida por grande parte dos cineastas como um retrocesso extremo das potencialidades criativas e artísticas atingidas pela montagem no cinema mudo. A substituição da leitura dos intertítulos pelo diálogo dos personagens e a utilização do som no sentido de um acréscimo de realismo à imagem foram exaustivamente criticadas por inúmeros autores, por exemplo, no famoso manifesto escrito em 1928 por Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov – Sobre o futuro do cinema sonoro: Gravação de som é uma invenção de dois gumes, e é mais provável que seu uso ocorrerá ao longo da linha da menor resistência, isto é, ao longo da linha da satisfação da simples curiosidade. Em primeiro lugar, haverá exploração comercial da mercadoria mais vendável, os FILMES FALADOS. Aqueles nos quais a gravação do som ocorrerá num nível naturalista,

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correspondendo exatamente ao movimento da tela, e proporcionando uma certa “ilusão” de pessoas que falam, de objetos sonoros etc. (Eisenstein, 2002, p. 225-226, grifos do autor).

Essa concepção naturalista-ilusionista do cinema, criticada pelos autores russos, estabelece-se a partir de uma estrutura de decupagem do chamado cinema clássico, que se apresenta ao espectador como uma janela aberta para o mundo ou como um “discurso da transparência”, nos termos de Ismail Xavier (2008). Contra esse cinema da continuidade naturalista, os autores propõem pensar o som, não a serviço do acréscimo de realismo à imagem, mas numa relação de contraponto, estabelecendo vínculos mais complexos na montagem visual e sonora, para além do sincronismo que se instaurava. Embora o cinema seja uma experiência audiovisual, muitas vezes, o visual se sobrepõe ao sonoro: a imagem ganha mais importância, tornando-se preponderante e colocando o sonoro em segundo plano, com a função de reafirmar aquilo que vemos. Essa estratégia de redundância trata frequentemente o sonoro como pano de fundo: há um predomínio dos sons delimitados pelo enquadramento visual, reduzindo o espaço sonoro do filme à visualidade das fontes geradoras e limitando as possibilidades de montagem sonora em relação ao que é visto e ao que não é visto. Nota-se ainda uma supervalorização da voz dos personagens que apresentam dicção e entonação teatrais para evidenciar seu desejo de expressão. A música ocupa o lugar de background; ganha função de pano de fundo emocional, que conduz o espectador sem que ele tenha consciência do processo de construção da linguagem. “Quantos filmes remendados pela música! Inunda-se um filme de música. Impede-se de ver que não há nada nessas imagens”(Bresson, 2005, p. 106). Desse modo, a utilização mais usual do som no cinema clássico tenta conduzir o espectador à ilusão naturalista da representação cinematográfica e se configura como elemento secreto de condução da narrativa e das emoções. 127


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Nessa perspectiva, o bom filme é aquele que consegue suscitar no público os efeitos desejados pelo autor, sem que o espectador perceba. Conforme uma conhecida anedota proferida entre os profissionais do cinema, o som do filme é bom quando ninguém o percebe. O bom filme consegue produzir, assim, o efeito da identificação entre o personagem e o espectador, tentando reduzir a distância entre a coisa e sua representação, o que reduz também o espaço para a reflexão criativa do espectador. A escuta ganha uma função emocional, desenvolvida e elaborada no pano de fundo: um tipo de escuta muito relacionada à contiguidade ilusionista do par imagem-som. De alguma forma, o cinema comercial acaba por dar à escuta aquilo que se vê. O princípio de escuta é guiado por uma referência causal redundante, reafirmando a imagem e tentando produzir uma operação de soma. Através do som, pretende-se dar mais emoção, mais realismo, mais espetáculo, mais indiferença, vinculando a escuta do espectador a uma narrativa que se pretende cada vez mais controlada. Nesse sentido, poderíamos dizer que, na construção desse tipo de filme, há uma apologia do ouvir em detrimento do escutar. O ato de ouvir é associado à capacidade fisiológica de perceber os sons através do sistema auditivo; atividade involuntária que, portanto, pressupõe certa passividade do sujeito e a impossibilidade de interromper o fluxo sonoro que nos invade e que continuará sempre invadindo enquanto não desenvolvermos pálpebras auditivas. O ato de escutar, por sua vez, associa-se a uma atitude consciente e intencional de perceber os sons e estabelecer relações entre os diversos materiais sonoros, suas transformações no tempo, suas semelhanças e diferenças. Enquanto escutamos uma música, por exemplo, produzimos associações inter-relacionando as notas ou os sons, agrupando as várias partes em conjuntos, relacionando melodia e harmonia, foco e periferia. Foram muitos os músicos que propuseram uma escuta musical dos sons cotidianos, como John Cage, na tentativa de converter o ouvir em um escutar permanente. Faz-se da escuta 128


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uma forma de vivência estética capaz de transformar o estar no mundo, como queriam as vanguardas do início do século XX ao aproximar ou indissociar a arte e a vida. Vários autores do campo musical discutem e complexificam as relações entre o ouvir e o escutar. O compositor francês Pierre Schaeffer, em seu Tratado dos objetos musicais, produz uma classificação das possíveis atitudes do ouvinte diante de um som:1 escutar (écouter), ouvir (ouïr), entender (entendre) e compreender (comprendre).2 Para ele, “escutar” significa direcionar a atenção para a fonte geradora do som, no sentido de descobrir a sua causa. Escutar é tomar o som como “índice” de um evento, no sentido semiótico. Produz-se uma abstração do som em si e passa-se a escutar, através do som, a fonte. Schaeffer (1988) afirma que o ato de escutar não requer necessariamente interesse pelo próprio som, mas uma utilização funcional do som para a descoberta de uma causa. Isso ocorre, por exemplo, quando conversamos com uma pessoa e prestamos mais atenção no sotaque dela do que no conteúdo da fala, para identificar de onde ela vem; ou quando escutamos um som e percebemos que se trata de um badalo produzido pelo sino da igreja localizada em tal região do bairro, embora talvez não possamos descrever a natureza e a qualidade desse som, sua materialidade expressiva, seu timbre, sua frequência, sua intensidade e sua duração. O escutar se dirige aos efeitos em busca das causas. Nos termos de Michel Chion (1998), trata-se de uma escuta causal. O cinema clássico se utilizou exaustivamente desse procedimento, conduzindo a atenção do espectador em torno de relações causais explicitadas Essa classificação resulta de um cruzamento entre dois dualismos da atividade da percepção: objetivo/subjetivo (colocando em relação o sujeito com sua percepção e o evento sonoro em sua materialidade) e abstrato/concreto (colocando em questão as referências causais do som e a qualificação produzida pela percepção).

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Schaeffer busca a origem etimológica das palavras e seu sentido no idioma francês, de tal forma que se torna difícil traduzir os termos sem uma perda semântica do sentido original, especialmente o termo “entendre”, que em francês tanto pode significar “ouvir”, “escutar” e “entender” quanto pressupõe a noção de “intenção”.

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pelo som, no sistema da imagem movimento, construídas por relações de ação e reação entre os personagens. No esquema idealizado por Schaeffer (1988), “ouvir” significa perceber através dos ouvidos. ‘Ouvir” diz da nossa própria condição fisiológica. Não deixamos de ouvir os sons, mesmo que não os escutemos. Mesmo o silêncio mais profundo constitui um fundo sonoro como qualquer outro, no qual se destacam com solenidade pouco habitual o ruído do meu fôlego e o do meu coração, como se o rumor contínuo que impregna até nossos sonhos se confundisse com o sentimento de nossa própria duração (Schaeffer, 1988, p. 62-63, tradução nossa).

Não se trata de um gesto inconsciente, mas de um limiar de consciência, como quem eleva a voz quando o ruído aumenta ou quando, retrospectivamente, percebemos, graças à memória, que um determinado som se fez presente3 (ouvimos o terceiro badalar do relógio e só então nos damos conta dos dois primeiros). É importante destacar essa sutil diferença, pois, para Schaeffer, o ato de ouvir é carregado de potencialidade, uma vez que se aproxima de uma percepção pura, sem significado, não codificada imediatamente, próxima da qualidade do som, da sua duração. Nesse sentido, aproxima-se da noção semiótica de “primeiridade” (Peirce, 1980) e pode estimular o ouvinte a se perceber percebendo. A partir dessa perspectiva, poderíamos dizer que todas as atitudes de escuta pressupõem o ouvir como primeira instância da percepção auditiva. O ouvir emerge como uma atitude mais despretensiosa e livre; daí sua potencialidade em despertar o interesse pelos sons. Na tipologia de Schaeffer (1988), o entender é visto como uma atitude qualificada e marcada por uma forte intenção de escuta. É praticamente impossível não produzir uma seleção daquilo que escutamos. Estamos a todo momento submetidos a diversas fontes sonoras, e a nossa atenção flutua entre as fontes. A escuta é sempre posterior ao acontecimento, por isso, retrospectiva.

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Enquanto escrevo, escuto o som do teclado, mas também o som das motos, de água escorrendo, de pássaros cantando, de crianças brincando, do motor de um Fusca. À medida que direciono minha atenção às diferentes fontes, retiro-as de um fundo indistinto em que elas apenas existiam como potencialidade e constituo os objetos através da minha própria percepção intencional. Esse ponto é importante no pensamento fenomenológico de Schaeffer: o objeto sonoro se constitui na relação com a percepção daquele que escuta. Varia, assim, de acordo com a experiência de cada ouvinte, embora possua também uma dimensão transcendente e objetiva que explicita o caráter intersubjetivo presente em cada escuta. Desse modo, a intenção de escuta do mecânico que testa o motor do Fusca se volta para a qualidade do som desse motor em busca de possíveis defeitos (o que aproxima, em certa medida, o entender do escutar4). Para entender, é preciso uma intenção clara de escuta. A intenção de escuta do músico, por exemplo, pode se dirigir tanto às alturas de uma melodia, como às relações harmônicas que ela estabelece ou às variações rítmicas e à forma musical. A intenção de escuta do técnico de som em cinema busca normalmente identificar os ruídos indesejáveis que atrapalhariam a nitidez da gravação e a limpeza da voz, desde as interferências eletrônicas, como o mau contato, até o canto dos pássaros que pode dificultar a montagem dos diálogos na ficção. Assim, entender se configura como uma escuta qualificada, voltada para aspectos particulares de um objeto sonoro que é classificado por essa escuta. É importante frisar que a nossa percepção tem por lei fundamental, como diria Schaeffer (1988), a impossibilidade de abarcar a totalidade Do ponto de vista semiótico, poderíamos dizer que entre escutar e entender há uma diferença de grau, e não de natureza. Ambos estão no nível da “secundidade”, pois direcionam a escuta aos índices da fonte geradora, com a diferença que o entender pressupõe uma atitude especializada e com uma intenção de escuta mais clara. Talvez por isso, Michel Chion (1998) resuma as atitudes de escuta em três: a escuta reduzida, a escuta causal e a escuta semântica, que correspondem praticamente às três categorias da semiótica peirceana.

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do acontecimento sonoro, funcionando sempre por esboços, recortes que nunca esgotam o objeto. Em relação ao cinema, cabe pensar de que modo o diretor propõe ao espectador, através da forma do filme, um modelo de escuta, apostando mais ou menos na capacidade perceptiva de quem vê o filme; na capacidade de construir os sentidos do filme num gesto ativo de leitura. Assim, entender pode significar, por um lado, uma atitude de simples reconhecimento das pistas sonoras propostas pelo diretor, de modo a conduzir e controlar a atenção do espectador em direção a uma trama preestabelecida, explorando seu desejo de ver e ouvir e produzindo uma economia da percepção e da libido em função de uma história roteirizada (Comolli, 2008). Por outro lado, entender pode se configurar como uma atitude de descoberta, em que o espectador se vê obrigado a montar e a relacionar sons e imagens desconectadas em função da construção de uma narrativa que se apresenta aberta à leitura e sobre a qual não se tem controle. Na última instância do circuito das atitudes de escuta proposto por Schaeffer (1988), o compreender corresponde ao modo com que o ouvinte se apropria dos sentidos do que ouviu, escutou e entendeu. Assim, o compreender pode ser relacionado à “terceiridade”peirceana e constitui o nível semântico da escuta: Eu compreendo algo como resultado de um trabalho, de uma atividade consciente do espírito que já não se contenta com um significado, senão que abstrai, compara, deduz e relaciona informações de natureza e fontes diversas. Tratase de perfilar, ou de obter uma significação suplementar (Schaeffer, 1988, p. 65, tradução nossa, grifo do autor).

Por meio do compreender, nossa escuta se volta aos sons como signos que nos introduzem a um sistema de valores, de significados. A tentativa de compreender sempre se dá quando há a presença da palavra. Como diria Michel Chion (1998), somos uma cultura “vococêntrica”: nossa atenção direcionase, com vigor, à voz humana, na tentativa de compreender os sentidos articulados pela fala. Mesmo em situações em que 132


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ela não traz um sentido claro, como nos balbucios incompreensíveis, nos esforçamos em decifrar a possível palavra, em detrimento dos outros sons.5 Também o rádio, do interior de seu vococentrismo, parece ter se esquecido de que, para além do aparelho que produz sons a partir de um espectro eletromagnético público, há um sujeito que escuta. Numa performance poética,6 o poeta e músico Arnaldo Antunes gritava “mate o tempo” e tentava sintonizar naquele momento alguma estação radiofônica. Realmente, o rádio, na maior parte das vezes, parece se lançar aos nossos ouvidos como um estímulo empobrecedor da experiência de estar no mundo, seja através da música reduzida a estímulo ao consumo, seja através da voz do locutor que ordena, seja através do apagamento da alteridade dos sujeitos que falam, através da autorreferência, do regime do Mesmo, como propõe Rancière (2003). Às vezes, a gente se esquece de que o rádio, um dia, foi pensado como arte. A rádio arte, que, a duras penas, ainda resiste em alguns países e que, aos poucos, vai encontrando um novo espaço de difusão na internet, propunha, mais que o ouvir do mundo, uma nova escuta transformadora do sujeito. Nesse sentido, o rádio vinha ao encontro da potência artística que o universo sonoro possui. Peço licença ao leitor para relatar, aqui, uma experiência sonora. Um dia, por acaso, sintonizei a webradio do site Ubu.7 De repente, começo a ouvir um sujeito imitando, com a voz, os sons de um carro. A princípio parecia não haver nada demais no exemplo. Continuei ouvindo. A voz rangia do registro grave ao agudo, produzindo sons guturais estranhos. O som saía da O aspecto sonoro e não semântico da fala foi fortemente trabalhado pela poesia sonora dos dadaístas, como nas obras de Henri Chopin, Isidore Isou, Kurt Schwitters e Hugo Ball, entre outros.

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A performance foi realizada através do ciclo de conferências Sentimentos do Mundo na UFMG, em 6 out. 2009, em Belo Horizonte.

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Recomendo profundamente esse site dedicado às vanguardas sonoras e audiovisuais, às etnopoéticas e aos artistas outsiders: <http://www.ubu.com>. Ele disponibiliza um amplo acervo sonoro e audiovisual, além de um canal de webradio experimental.

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garganta com ferocidade, entoando um duro atrito com as cordas vocais. Podiam-se escutar ruídos pouco utilizados na fala cotidiana, como sons de saliva, sons raspados de escarro, crescendos, decrescendos, fortíssimos. A performance, ainda assim, soava chata e repetitiva, mas o homem continuava ininterruptamente reproduzindo os glissandos obsessivos dos veículos como alguém que enlouquecia envolvido num devir-máquina-sonora. Durante uns vinte minutos, insisti, perplexo, em escutar esse sujeito incansável, enquanto buscava sentidos para a sua performance sonora. Só então me dei conta da importância da duração nessa performance. Se ela durasse apenas um minuto, não passaria de uma anedota. No entanto, para o artista, tenho a impressão, foi indispensável utilizar um tempo longo para expressar a sua proposição: ficar muitíssimo tempo reproduzindo os sons das máquinas para dar a dimensão do tempo que passamos em contato com elas na cidade moderna e das consequências psíquicas desse contato. Muitas perguntas sem resposta surgem de uma experiência de escuta como essa. Qual o sentido de estarmos submetidos a tanto ruído de máquina, durante tanto tempo, todos os dias da nossa vida? O que esse ruído produz em nós? Qual seria a relação desses sons com as neuroses obsessivas (como talvez a do músico que acabo de relatar) e com o estresse cotidiano? Como os sons que produzimos são afetados por esse ruído? Como a voz pode se tornar maquínica? Qual é o impacto do ruído na articulação da nossa fala? É conhecido o caso dos pilotos de Fórmula 1 que acabam falando de modo fanho e pouco melódico em função do contato intenso com o ruído dos motores (Schafer, 1997). Certamente, caso o ouvinte suporte a escuta do exemplo sonoro descrito, um amplo conjunto de questões aparece sem resposta. Não se trata apenas de gostar ou não dos sons, como propõe o mundo do entretenimento ao mimar o espectador, mas de conhecer diferentes proposições sonoras e, por meio da experiência que tais proposições possibilitam, pensar diferente. Por mais que pareça absurda, é difícil abandonar a pergunta: por que o rádio é tão medíocre se o universo sonoro é tão 134


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rico? Tudo bem que a resposta possa parecer imediata quando observamos os fundamentos comerciais a que o veículo se presta, além do dito “serviço” de informação rápida, oferecido pelo meio. Informar: pôr na fôrma, sem pensar na forma, sem pensar no mar. Todas as notícias são dadas da mesma maneira. A informação se contrapõe à experiência (Bondia, s/d). O rádio vem matar o tempo. Outra pergunta que nos assombra: por que o rádio não é feito por músicos, por artistas sonoros? Na nossa tradição, o rádio veio substituir a leitura, veio ocupar o lugar da palavra escrita, tomando o lugar da literatura (com a radionovela) e do jornal impresso (com o noticiário). Vale lembrar que a experiência proporcionada por um livro não é menos sonora que a escuta de um rádio. Nosso sistema de escrita se baseia na codificação fonética dos sons da língua. Ler é também cantar internamente, escutar. Não apenas a leitura, mas, muitas vezes, o próprio pensamento se estrutura a partir de uma fala interna, de uma recitação sonora povoada de imagens da memória.8 Talvez uma das dificuldades centrais inerentes ao nosso processo de escuta resida na relação com os sons abstratos. Estamos sempre tentando escutar, através do som, a fonte geradora. Uma escuta causal, como vimos, mais interessada em descobrir as fontes que as qualidades abstratas do som. Essa dificuldade surge, por exemplo, no trabalho da música concreta:9 como fazer música com ruídos gravados do mundo de modo a produzir não apenas um conjunto sonoro que remete a determinadas fontes (do tipo: isso é um som de trem, isso é um som de apito etc.), mas 8

Não é intuito deste artigo abordar a ampla discussão produzida pela Filosofia e pela Psicologia Cognitivista em torno das relações entre o pensamento e a linguagem.

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A música concreta, inaugurada por uma série de seis estudos produzidos por Pierre Schaeffer em 1948, trabalha como questão central a nova percepção auditiva acusmática (no sentido de escutar sem ver a fonte sonora) possibilitada pelo meio técnico (o sistema de gravação) e propõe, assim, a composição de músicas a partir de sons gravados. Difere das experiências da música eletrônica (anos 1950) pelo fato de esta fazer uso de sons sintetizados em laboratório, além dos sons gravados (cf. Palombini, s/d.).

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um conjunto de sons que se desprenda das fontes em função da sua qualidade material (ritmo, timbre, duração, intensidade, frequência) e que se associa através de uma percepção e uma estruturação musical? Como produzir uma escuta musical e abstrata desses sons, e não apenas uma escuta causal voltada para os índices? Pierre Schaeffer (1988) tenta escapar de uma interpretação subjetivista da linguagem abstrata da música e dos sons para encontrar, na percepção ancorada nas qualidades do fenômeno sonoro, a possibilidade da partilha coletiva dos sentidos a partir da experiência. Por mais que estejamos submetidos a uma série de condicionamentos culturais de escuta, o autor propõe uma compreensão compartilhada do objeto sonoro através de um gesto de descondicionamento dos nossos hábitos, que nos possibilitaria um redirecionamento da intenção de escuta para além das suas fontes causais: uma escuta mais próxima da materialidade do objeto sonoro. Não podemos esvaziar tão rápida e completamente nossa consciência de seus conteúdos habituais, de seus reflexos automáticos aos indícios ou valores que orientam sempre as percepções de cada um. Mas é possível que pouco a pouco essas diferenças se amenizem e cada um ouça o objeto sonoro, se não como seu vizinho, ao menos na mesma direção que ele, com uma mesma perspectiva, pois podemos mudar a direção do interesse sem transformar fundamentalmente a intenção “constitutiva” que a estrutura requer, já que ao deixar de escutar um acontecimento por meio do som, não deixamos de seguir escutando, através dele, o som como um acontecimento sonoro (Schaeffer, 1988, p. 165, grifos do autor).

Propõe-se não apenas escutar o acontecimento por meio do som (seus índices causais), mas escutar o som como acontecimento, como um objeto sonoro autônomo, material. Nossa escuta é simultânea ao fenômeno, mas só é percebida posteriormente, a partir das impressões que guardamos dele. Seria possível escutar o ruído de passos que se aproximam e colocar em suspenso a 136


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percepção causal imediata desses passos para atentar às suas qualidades materiais? Embora o esforço maior do processo de comunicação contemporânea seja reduzir a voz ao sentido, a fala também pode soar de forma abstrata e musical. Há várias línguas que ainda mantêm uma relação mais estreita com a música, como é o caso das línguas tonais na China, no Vietnã e em algumas partes da África, tornando inseparáveis a fala e o canto; tornando a fala dependente da articulação melódica. Além disso, alguns autores, como Rousseau, em seu Ensaio sobre a origem das línguas, ressaltam a precedência do canto em relação à fala. O homem teria se expressado primeiro através do canto para posteriormente desenvolver as articulações necessárias para falar. A musicalidade da língua antecede a realização formal do sentido. Yehudi Menuhin afirma: Durante muito tempo a música e a fala formavam um contínuo, ambas produzidas pela voz. Mesmo depois de terem aparecido os primeiros instrumentos, a música e a fala ainda se superpunham. [...] A escrita ajudou a separar a música da fala. As palavras escritas na argila ou no papiro podiam transmitir rapidamente mensagens simples, ao passo que a música estava vinculada à expressão de sentimentos complexos (Menuhin, 1981, p. 6).

No início do século XX, o Dadaísmo, o Futurismo (russo e italiano), o Construtivismo e o Surrealismo recuperaram essa fala musical, originária e mítica, rompendo com o rebuscamento literário acadêmico do romantismo burguês, para propor uma abolição do sentido em favor da musicalidade da língua. O zaum, a poesia fonética, a poesia letrista e a poesia sonora foram apenas alguns dos esforços para libertar a sonoridade abstrata e musical da língua, como no famoso poema de Hugo Ball10: 10

Disponível em: <http://www.ubu.com/historical/sound/ball.html>. Acesso em: 19 out. 2009.

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Não apenas a sonoridade da língua é trabalhada, utilizando onomatopeias e explorando o ruído forte das consoantes, como a imagem da letra começa a ser pensada como uma partitura musical que se oferece ao leitor. Essa pesquisa viria a se sofisticar ainda mais com o trabalho de Mallarmé em Um lance de dados jamais abolirá o acaso, traduzido pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari (2002), que abre caminho para uma ampla pesquisa em torno das relações entre a poesia visual e a poesia sonora. Se na história da música ocidental, desde o canto gregoriano, a vogal ocupou o centro da recitação musical representando a pureza da sonoridade, o som harmônico e melismático, a partir do século XX, tanto a música de concerto quanto a poesia sonora recuperaram os ruídos consonantais mais primitivos da emissão vocal como potência para a experimentação e para a liberdade. O lied de Schubert e Schumann e a orquestra operística wagneriana dariam lugar ao cantofalado de Schoenberg, entre gritos e sussurros, substituindo a articulação cristalina das palavras por um glissando que vagueia impreciso entre as notas. O arroto, o grito, o som arfado, o barulho da saliva, o riso: todo o ruído se 138


Por uma pergunta sonora

torna elemento de composição musical. Os sons que se expandiam e se intensificavam nas cidades modernas, com as máquinas industriais e os transportes de massa, romperiam o isolamento acústico das salas de concerto para emergir de dentro mesmo da música como um espaço privilegiado de expressão. A percussão ocuparia o primeiro plano da composição orquestral em obras como Ionisation (1931), de Edgar Varèse, para percussão solo e o Balé Mecânico (1926), de George Antheil, com ruídos de hélices de avião, buzinas e pianolas. O dodecafonismo de Schoenberg concretiza a expansão da tonalidade herdada do Impressionismo de Debussy e do Romantismo wagneriano para acabar com a construção hierárquica da harmonia, abalando a noção histórica de consonância. Todas as doze notas da escala cromática vêm fazer parte da construção musical de forma equivalente. Todos os intervalos, mesmo os mais ruidosos, desarmônicos ou dissonantes se tornam possíveis. Além da poesia letrista, fonética e sonora, a música concreta trabalharia a voz gravada, articulando a edição musical em função da fragmentação rítmica dos pedaços de fala, como no Estudo patético de Pierre Schaeffer (1988). Por outro lado, a música eletrônica de Stockhausen agregaria, aos ruídos e sons gravados e manipulados da música concreta, sons abstratos sintetizados em laboratório e projetados no espaço, como nas experiências de Gesang der Jünglinge (1955-1956). Os concretos brasileiros agregaram a essa pesquisa formal da poesia sonora (da qual são herdeiros declarados), a comunhão entre o visual, o sonoro e o semântico, produzindo poemas “verbivocovisuais” capazes de comunicar sua própria estrutura material no modo como se apresentam (Campos, 1987). O poema não é mais feito de ideias, mas de palavras-coisas, palavrasobjetos-sonoros-visuais-semânticos, como no poema “Beba Coca Cola”, de Décio Pignatari, musicado por Gilberto Mendes.11 No cinema, o áudio viria romper o vínculo imediato com a imagem, criando um novo uso do falado, do sonoro e do musical, 11

Disponível em: <http://www.poesiaconcreta.com.br/audio>. Acesso em: 19 out. 2009.

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que é a base de todo o cinema moderno do pós-guerra. O som não está mais a serviço da imagem, mas vem abalar as certezas da representação audiovisual. Ele se torna autônomo, fragmentado, anti-ilusionista, não redundante, ampliando as potencialidades do fora de campo e transformando radicalmente o uso da voz por meio do discurso indireto livre, como nos filmes de Marguerite Duras, Jean-Luc Godard, Jacques Tati, Robert Bresson, Glauber Rocha, entre tantos outros (Deleuze, 2005). Esse turbilhão de referências que apresento na constituição de um panorama amplo e pouco sistemático de diversos usos do universo sonoro na sua relação com o ruído e com a experimentação talvez se justifique por uma tentativa de manter viva a prática constante da inquietação, da pesquisa e do posicionamento ético/estético no trabalho com a educação sonora em todos os níveis. Nesse sentido, a constituição de uma educação sonora poderia instigar a reflexão crítica sobre o som nos diversos meios em que ele é utilizado, tendo como ponto de partida a própria experiência estética oferecida por esse amplo conjunto de referências que apresentamos e consolidando o exercício de escuta como base metodológica para a criação. Colocar a escuta em primeiro plano significa atualizar a história e fazer da própria percepção, matéria de criação e de livre experimentação. Já foi dito e redito sobre a prática da comunicação comunitária (e não só comunitária) que não basta proporcionar o acesso aos meios, mas as condições necessárias para que os produtores sejam capazes de repensar as formas do fazer em função dos seus desejos de expressão (Lima, 2007). “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, como afirma Maiakóvski. Tendo em vista o amplo crescimento dos meios de comunicação comunitários, é preciso que as novas perguntas que surgem recebam respostas formais diferentes, pensamentos formais próprios e característicos de cada lugar, seja no rádio, seja na televisão, seja no jornal, seja na internet. No entanto, na maior parte das vezes, o que percebemos é exatamente o movimento contrário: uma luta enorme pelo acesso aos meios de comunicação para reproduzir as formas já 140


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desgastadas do fazer midiático tradicional. Em relação ao universo sonoro, os problemas são ainda mais profundos. Imagine questionar numa rádio comunitária, por exemplo, a verborragia dos locutores locais ou a onipresença da música, mesmo que produzida regionalmente. Imagine questionar a fala teatral dos vídeos ou a submissão redundante do áudio à imagem tão recorrente nos trabalhos audiovisuais comunitários. Como fazer com que a experiência de produção comunitária seja capaz de resistir à padronização comercial quase inconsciente que se impõe pela profissionalização dos modos de fazer, se o objetivo comunitário, na maior parte das vezes, é reproduzir a forma já conhecida? Talvez seja preciso que a produção da comunicação comunitária assuma a radicalidade do gesto de resistência que a inaugura também na forma das suas produções. Isso deve significar também negar o modo de produção adotado pelo mainstream, modificar a relação com o público e fazer da pesquisa e da reflexão os motores de um trabalho artístico capaz de transformar boas perguntas em formas sonoras vivas e pulsantes. Nesse sentido, e ainda mais para quem está envolvido no trabalho com a educação e com a produção artística, precisamos cultivar o hábito de fazer e de compartilhar tais perguntas, pois, como afirma Paulo Freire em Pedagogia da autonomia: Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (Freire, 1996, p. 32).

E, para anunciar a novidade, é preciso uma forma tão nova quanto a ideia que a motiva. É preciso uma constante formulação de perguntas das quais não temos realmente nenhuma resposta, pois são essas perguntas que nos estimulam a seguir pesquisando, perguntando e buscando novas formas para a nossa dúvida. Ao mesmo tempo, o modo como formulamos e encontramos 141


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respostas para as nossas perguntas delimita um posicionamento estético que assumimos na crença da possibilidade de transformação da sensibilidade pela experiência e, portanto, da transformação do pensamento. Espero que a forma desse texto possa se apresentar como uma pergunta capaz de contribuir não apenas para a formulação de novas perguntas sobre o universo sonoro, mas também como estímulo ao desenvolvimento de experimentações práticas que recuperem a potencialidade do som nos diversos meios por onde ele possa se propagar.

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CAPÍTULO VII

Deslocamento, circulação, trânsito, contato na produção audiovisual comunitária Paulo Emílio de Castro Andrade

A

s reflexões e os diálogos relacionados ao audiovisual comunitário passam por questões diversas e importantes. Há quem compreenda que a participação de membros de grupos comunitários no processo de realização de um videodocumentário, por exemplo, seja uma possibilidade de produzir novos e diferentes olhares sobre as coisas, os lugares, as pessoas, as instituições, os acontecimentos. Há também quem defenda que a produção audiovisual de grupos comunitários pode resultar na ampliação do repertório cultural de seus integrantes, no fortalecimento da autoestima deles e na ampliação dos campos e das oportunidades de trabalho dessas pessoas. Este texto nasce de questionamentos que venho me fazendo ao longo de 10 anos de atuação na área, envolvendo o trabalho nas ONGs Humbiumbi (desde 2003) e Associação Imagem Comunitária (desde 2008), e de pesquisa realizada junto ao Observatório da Juventude da UFMG (entre 2006 e 2009). Pretendo trazer para o foco das reflexões sobre o audiovisual comunitário uma questão que permanece pouco explorada. A realização dos produtos pressupõe, em muitos 145


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casos, o deslocamento, a circulação, o contato com a cidade, o que levanta algumas indagações. Seria possível afirmar que esse trânsito pela cidade tem repercussões na vida de quem produz audiovisual comunitário? Em caso afirmativo, que repercussões seriam essas? Para buscar responder a essas questões, utilizamos como referência parte da pesquisa ONGs e Educação: significados atribuídos por jovens à participação em projetos educativos.1 A investigação foi realizada em 2007, tendo como sujeitos oito jovens que participaram de processos formativos desenvolvidos pela Associação Imagem Comunitária (AIC), em Belo Horizonte. A pesquisa buscou compreender a metodologia de trabalho elaborada pela AIC e os significados que os jovens atribuem à participação nos projetos realizados por essa ONG. Entre os resultados do estudo, evidenciou-se que a metodologia utilizada pela AIC contribui para que os jovens participantes dos seus projetos estabeleçam novos circuitos de participação e atuação na cidade, ampliando as esferas de sociabilidade. Ao mesmo tempo, tal metodologia influencia a escolha profissional desses jovens e a elaboração dos seus projetos de futuro, apesar das restrições para a inserção deles nos mercados de trabalho. O objetivo do presente artigo não é, contudo, fazer uma síntese da pesquisa. Atemo-nos a um de seus achados, que aponta para as possibilidades geradas pelo deslocamento espacial dos jovens ao longo dos processos de produção audiovisual. Assim, enfocamos uma parte das experiências observadas e das entrevistas com quatro dos jovens pesquisados.

A pesquisa e seu percurso metodológico Antes de apresentarmos os resultados da pesquisa, é importante explicitar aqui as referências metodológicas que a alicerçam. A pesquisa foi desenvolvida pelo autor do presente texto junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFMG, sob orientação do Prof. Juarez Dayrell.

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Deslocamento, circulação, trânsito, contato na produção audiovisual comunitária

Trata-se de um estudo de caso qualitativo, que busca uma compreensão abrangente do grupo investigado, tendo em vista as modalidades de atividade e de interação entre seus integrantes (Becker, 1993). Ao desenvolver um estudo de caso, o pesquisador lida com descobertas inesperadas, por isso a investigação é permanentemente reorientada no decorrer de seus achados. A escolha da ONG estudada foi feita com base na pesquisa exploratória sobre projetos juvenis que utilizam metodologias diferentes das práticas escolares tradicionais. Foi produzido um mapeamento de iniciativas de ONGs a partir de seus sítios na internet e de publicações a respeito delas. Após analisar as diversas iniciativas mapeadas, selecionamos a AIC, que desenvolve atividades em que jovens residentes em comunidades com baixo IDH produzem mídia.2 Selecionada a AIC, definimos os instrumentos metodológicos que seriam utilizados no desenvolvimento da pesquisa. O primeiro deles é a observação participante, que teve a função de contribuir para compreender de forma mais aprofundada as experiências dos jovens no cotidiano das ações realizadas pela AIC. Entre as diversas vantagens em realizar a observação, Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1999, p. 164) apontam que, por meio dela, é possível “identificar comportamentos não intencionais ou inconscientes e explorar tópicos que os informantes não se sentem à vontade para discutir [...] [e] permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial”.3 Como sujeitos da pesquisa, identificamos um grupo de oito jovens que participaram dos projetos Rede Jovem de Cidadania (RJC) e Cuco e que em 2007 mantiveram vínculo com a AIC. É importante explicitar que naquele ano esses jovens não eram mais Entre os objetivos da AIC estão “constituir-se num centro de experimentação comunitária em comunicação e de criação de possibilidades para o acesso público às mídias”, “construir espaços para que grupos socialmente excluídos ou com poucas oportunidades de visibilidade se coloquem no debate público” e “fomentar a construção da cidadania, entendendo-se como algo em constante processo” (LIMA, 2007, p. 28-29).

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Sobre a observação participante, ver também Becker (1993).

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educandos dos projetos. Alguns deles atuavam como estagiários ou monitores, e outros frequentavam informalmente atividades realizadas pela ONG, tal como o Conselho de Mídias Juvenis.4 Acompanhamos o cotidiano dos jovens na AIC entre abril e novembro de 2007, por períodos que variavam entre quatro e oito horas diárias. A cada dia, verificávamos quais dos jovens estavam presentes e decidíamos quais deles observar, já que se dividiam entre as várias atividades. Estabelecemos uma relação informal, e muitas vezes os jovens nos avisavam das atividades que iriam desenvolver, como um convite à observação. Para aprofundar o estudo, realizamos entrevistas individuais semiestruturadas, criando um espaço para que os jovens se expressassem em relação às questões centrais da pesquisa. Quem são os jovens sujeitos da pesquisa?

A concepção de juventude utilizada nesta pesquisa é marcada pela ideia de diversidade. Buscamos considerar as múltiplas questões que se apresentam nessa fase da vida, compreendendo que se trata de um momento de experimentação; de construção e ampliação de relações e de vínculos; de edificação de valores; e de ingresso no mundo do trabalho. Ao abordar a diversidade juvenil, Dayrell (2007, p. 6) afirma: A juventude é uma categoria socialmente construída e ganha contornos próprios em contextos históricos, sociais e culturais distintos, marcada pela diversidade nas condições sociais (origem de classe, por exemplo), culturais (etnias, identidades religiosas, valores, etc.), de gênero e, até mesmo, geográficas, dentre outros aspectos.

Os jovens sujeitos desta pesquisa residem em Belo Horizonte. Na sua história de vida há casos de falta de acesso a O Conselho tem a participação de jovens e grupos juvenis de Belo Horizonte. Os jovens do conselho contribuem com as produções da instituição de diversas maneiras, entre elas: analisam o formato, a linguagem e o conteúdo das produções, participam de processos formativos e realizam produções audiovisuais.

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bens culturais, trajetórias escolares irregulares e dificuldades de inserção qualificada no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, contudo, é preciso perceber que esses jovens amam, têm sonhos em relação a si mesmos, a sua família e à comunidade onde vivem. Eles estabelecem vínculos de diversas naturezas e encontram opções de trabalho, lazer e diversão. São jovens capazes de criar possibilidades para si e sua família, capazes de transpor limites invisíveis. Os jovens que compõem o corpus empírico da pesquisa participaram de processos formativos em audiovisual desenvolvidos pela AIC em anos distintos. Neste texto, trago para análise as experiências observadas e as entrevistas feitas com os jovens Fernanda, Otto, Daniela e Carlos.5 Fernanda, 20 anos, finalizou o ensino médio. Mora com a mãe e o irmão na Regional Barreiro de Belo Horizonte. Para chegar à AIC, faz um percurso de uma hora de ônibus. É agitada, falante e, em muitos momentos, brava. Bastante informal no jeito de lidar com as pessoas, Fernanda fala alto e coloca seus pontos de vista diante dos demais jovens e dos educadores com frequência. Ao mesmo tempo, demonstra atitudes de afeto com os colegas e parece ser reconhecida por eles como uma liderança do grupo. Isso pôde ser constatado pelo fato de ser recorrentemente escolhida para representar o grupo cultural6 do qual participa em eventos e outras atividades comunitárias e sociais. Fernanda teve seu primeiro contato com a AIC na escola onde estudava, quando participou de uma oficina de produção de vídeo. Não pôde participar de todas as atividades realizadas pela AIC na escola, naquela época, porque teve problemas de saúde. Ao retornar, ficou surpresa em receber o convite para participar de um novo projeto da instituição. Nele, Fernanda Todos os nomes são fictícios, a fim de garantir o anonimato dos jovens pesquisados.

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Fernanda, Otto, Carlos e Daniela, além de outros jovens, criaram um grupo cultural que atua principalmente realizando atividades de produção midiática junto a jovens estudantes de escolas públicas ou participantes de outros grupos culturais e projetos de ONGs.

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participou das atividades de produção de jornal e de programas radiofônicos e televisivos. De uma jovem que se considerava tímida, passou a ser, segundo ela mesma, uma jovem que se comunica, dá opiniões sobre diversos assuntos, propõe ações. Em 2007, atuou como estagiária da AIC e participou de diversas atividades. Trabalhou como educadora do Processo Formativo, que consiste na formação de representantes de outros grupos juvenis da cidade para a produção audiovisual. Participou também do Conselho de Mídias da AIC. O jovem Otto, 20 anos, reside na Regional Venda Nova de BH. Otto é falante, apesar de se dizer tímido. Demonstra calma, tranquilidade e certa seriedade ao se colocar diante de jovens e de educadores. Disponível para o trabalho em equipe, é respeitado pelos colegas por suas contribuições em discussões e atividades diversas. Otto começou sua inserção na AIC durante uma oficina de produção de mídia, com duração de três dias, realizada na escola onde estudou. Depois disso, foi convidado para ingressar em um projeto da AIC. Apesar de não ser um emprego, que tanto buscava na época, Otto decidiu participar. Nos anos em que participou dos projetos da AIC, atuou no desenvolvimento de diversos trabalhos em audiovisual. Em 2007, trabalhou como produtor dos programas de televisão da AIC. Otto é um dos fundadores e líderes de um grupo cultural. Carlos é o mais agitado e falante do grupo. Admite ter dificuldade de organizar e sintetizar suas ideias e, por isso, considera-se prolixo. É um jovem alegre e informal, que lida bem com os demais jovens do grupo. Usa roupas bastante coloridas, muda o corte de cabelo com frequência e utiliza muitas gírias em sua fala. Carlos conheceu a AIC no início de 2004. Militante do movimento estudantil, o jovem foi convidado para participar do quadro Debate no meio da rua, que na época compunha o programa televisivo do projeto Rede Jovem de Cidadania (RJC). Durante a participação no programa RJC, Carlos percebeu que aquilo era o que queria para sua vida, pois, segundo ele, sempre 150


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foi muito interessado em comunicação. Assim, Carlos entrou em contato para conhecer melhor o trabalho da instituição. Após uma entrevista, foi selecionado para integrar um dos projetos da AIC, no qual participou de um processo de formação em jornal e audiovisual. No projeto, Carlos e os demais jovens criaram planos de ação, que culminaram no desenvolvimento de atividades de produção de programas de rádio em escolas públicas. Daniela, 23 anos, mora com os pais e dois irmãos na Regional Nordeste de Belo Horizonte. Já finalizou o ensino médio. É reconhecida pelos colegas como a mais tímida, característica que ela mesma confirma como marcante em sua personalidade. A dificuldade em expressar seus pontos de vista em público não significa, segundo ela, que não tenha boas ideias. Ao contrário, Daniela compreende que tem muito a contribuir. Por isso, dedicase às ações em que não é necessário aparecer no vídeo e, na maior parte das vezes, dialoga com os colegas individualmente. A jovem demonstra ter muito cuidado com o próprio visual, utilizando acessórios diversos no cotidiano, tais como brincos e lenços no cabelo. Daniela é uma das jovens que mantém vínculo com a AIC há mais tempo. Desde 2003, quando teve início o projeto RJC, ela atuou na produção das diversas mídias na AIC. Apesar da dificuldade em se expor no grupo, Daniela afirma que um dos motivos importantes de sua permanência nas atividades do projeto foi a possibilidade de ser este um espaço de se fazer visível no mundo e de se expressar diante de outras pessoas. Em 2007, Daniela foi contratada pela AIC como estagiária, atuando no Conselho de Mídias Juvenis e no projeto Rede Jovem nas Escolas. Nesse período, desenvolveu atividades de produção audiovisual junto a alunos de escolas municipais de Belo Horizonte. A jovem participa ainda de um grupo cultural e de um grupo de poesias e músicas, em conjunto com outras três jovens que fizeram parte dos projetos da AIC. A produção audiovisual pelos jovens da AIC

Como já mencionado, os jovens pesquisados participaram de projetos realizados pela AIC, em que criavam e desenvol151


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viam produções audiovisuais. Na Rede Jovem de Cidadania e no Cuco, jovens de diversas comunidades de Belo Horizonte produziam programas de TV e de rádio, em que tinham a possibilidade de mostrar aquilo que consideravam importante, por meio da experimentação com diferentes formatos e elementos da linguagem audiovisual.7 Os jovens realizam produções de naturezas diversas, que vão do videodocumentário ao clipe musical, incluindo ficções em vários formatos. Para realizá-las, eles vivenciam todas as etapas da produção: definição de temas, pesquisa, elaboração de roteiros (quando for o caso), produção, gravação de imagens e sons, análise, decupagem, edição e finalização do produto. A metodologia utilizada nas ações de formação da AIC pressupõe que os conhecimentos técnicos são apropriados pelos jovens durante o fazer. Assim, não há aulas teóricas específicas sobre como utilizar uma câmera ou como editar um vídeo. À medida que a produção midiática demanda a utilização de um equipamento, a equipe técnica da AIC dá o suporte necessário aos jovens. Nesse sentido, o foco do trabalho parece estar centrado não no domínio técnico, mas em uma proposta de levar ao público reflexões e pontos de vista daquele grupo de jovens sobre determinado tema. Cabe ressaltar ainda que a AIC propõe a ruptura dos formatos convencionais dos produtos midiáticos, desafiando os jovens a experimentar e a criar novas formas expressivas.

A comunidade é toda a cidade Os jovens que participam dos projetos da AIC residem nas diversas regiões de Belo Horizonte, principalmente nos bairros da periferia da cidade. Como não são moradores do bairro onde Os programas de televisão são veiculados pela Rede Minas de Televisão, que abrange todo o Estado de Minas Gerais. Os programas de rádio foram veiculados em diversas emissoras, entre elas, a Rádio Favela e a emissora UFMG Educativa, tendo abrangência municipal.

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a instituição está localizada, esses jovens acabam circulando pela cidade. Essa circulação, conforme eles relatam, configura-se inicialmente como mero transitar, mas se transforma em possibilidades de acesso a espaços públicos de cultura, lazer, trabalho e cidadania. Para eles, isso parece ter significado uma mudança radical na sua relação com o espaço urbano. Tal circulação representa a superação da falta de acesso a muitos locais, gerada por razões como a escassez de recursos financeiros para conduções, a falta de motivos para transitar na cidade e o desconhecimento do direito de se fazer presente em espaços públicos. Ao comentar a dicotomia entre o espaço liso e o espaço estriado, proposta por Deleuze e Guattari, José Machado Pais (2005, p. 59) explicita que o espaço estriado refere-se à “espacialidade geométrica, homogênea, unívoca”, enquanto o espaço liso está relacionado às características vivenciais, sugerindo uma espacialidade antropológica. Tendo em vista o trânsito dos jovens no espaço urbano, Pais afirma: É essa mobilidade, característica do “espaço liso”, que alguns jovens procuram. Espaço de trânsitos, itinerantes, intersticiais, lugares de movimento e também de cidadania que se abrem a uma diversidade de usos, a uma multiplicidade de apropriações (Pais, 2005, p. 59, grifo do autor).

É do trânsito no espaço liso que parece se tratar a vivência dos jovens pesquisados. Ao se locomover de sua casa até a região central da cidade, onde se encontravam para produzir audiovisual, os jovens davam um primeiro passo na direção da apropriação da cidade. O segundo passo seria, então, a ocupação pelos jovens dos espaços públicos, estimulada pela equipe de educadores e pela coordenação da instituição. É o que indica a fala de Carlos: [Os educadores da AIC diziam] Vocês têm que ocupar esses espaços [...], vocês tem que ir, vão, sim, aquilo lá é de vocês também. Então, a Prefeitura e outros espaços, quando tinha aquelas festinhas e coqueteizinhos básicos, prêmio do fulano, sicrano ou beltrano, a gente era estimulado a

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ir mesmo. Palácio das Artes, Cine Humberto Mauro, onde acontecessem geralmente eventos que são “elitizados”, hoje a gente vai por prazer porque é uma coisa que a gente faz por gostar, entendeu? É isso, e a gente sempre vai em bloco.

O estímulo inicial da equipe da AIC fomentou o desejo de transitar. Desenvolveu-se um prazer por fazer parte dos diversos espaços e acontecimentos da cidade. É importante destacar também a dimensão política desse acesso à cidade. Nas palavras de Carlos: “É diferente até o jeito de você, por exemplo, pegar um ônibus, tem a discussão política por trás, que é o direito do acesso da cidade, quem pode ir, quem não pode, o lance do passe livre, a gente conversava muito, entendeu?”. Ao colocar em pauta, durante a produção de mídia, a questão do acesso à cidade e problematizá-la, a equipe da AIC parece estimular a reflexão crítica dos jovens. A essa reflexão segue-se o posicionamento dos jovens sobre o tema que lhes afeta cotidianamente a vida. A falta de recursos para transitar se colocava para eles como um impedimento de exercer o direito do acesso à cidade. A produção midiática comunitária previa que os jovens mostrassem suas comunidades aos espectadores e leitores. Durante a produção, contudo, intensificava-se o trânsito dos jovens e a própria compreensão da comunidade. Os jovens que residiam em uma região administrativa de Belo Horizonte passavam a frequentar e conhecer as demais regiões da cidade. Estaria, aí, um terceiro passo dos jovens na direção da apropriação da cidade. Daniela conta que o processo de produção midiática possibilitou-lhe sair do “mundo quadradinho” em que vivia: “Eu vou em altos lugares, vou no Alto Vera Cruz, vou na Serra, vou no Morro do Papagaio, cidadezinhas do interior, já fui em Contagem, em Itabira, em Itapecerica, sabe já andei muito, em vários lugares”. O depoimento de Daniela aponta uma questão importante para as juventudes urbanas, qual seja, o processo de formação de guetos que as cidades promovem e que dificultam o acesso às possibilidades que ela mesma oferece. Se, em cidades pequenas, 154


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não há as mesmas oportunidades de educação, cultura, lazer e trabalho das grandes cidades, nestas, todas essas oportunidades não são, em muitos casos, apropriadas pelos seus moradores, que ficam em seu “pedaço”, conforme categorizou Magnani (2005, p. 178). As longas distâncias, a falta de acesso ao transporte público, a violência e o desconhecimento dos lugares podem ser apontados como alguns dos motivos para que os jovens, como afirmou Daniela, permaneçam em seu “quadradinho”. O transitar pela cidade, citado por Daniela como algo novo e importante para sua vida, foi categorizado por Magnani (2005, p. 178) como “trajeto”, que se diferencia da categoria “pedaço”: Enquanto [pedaço] remete a um território que funciona como ponto de referência – e, no caso da vida no bairro, evoca a permanência de laços de família, vizinhança, origem e outros –, trajeto aplica-se a fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da cidade e no interior das manchas urbanas.

Transitar pela cidade parece ser importante para os jovens justamente pela oportunidade de ampliar os laços. Durante a produção dos programas de televisão, Belo Horizonte era vista pelos jovens como locação8 e como espaço de convivência e atuação deles. Os programas mostram as casas dos jovens, os seus bairros, os diversos espaços culturais e esportivos da cidade. Grandes ruas e avenidas servem não apenas de palco, mas de estímulo à reflexão. No quadro chamado Debate no Meio da Rua, por exemplo, jovens, especialistas e outros cidadãos discutiam temas em movimentadas vias de BH, de acordo com os tempos do sinal de trânsito. Além de promover uma crítica à temporalidade televisiva que, muitas vezes, impede o aprofundamento dos temas, o quadro metaforizava os espaços e os tempos de uma cidade grande. “Locação” é um termo técnico para designar o local onde é feita uma filmagem. As locações são utilizadas com a intenção de extrapolar os limites de um estúdio. Casas de entrevistados, vias e espaços públicos são exemplos de possibilidades de locação.

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Em outros momentos, comunidades específicas são temas de programas. Os jovens discutem as principais questões sociais e culturais de suas comunidades diferenciando-as ou comparando-as. As comunidades, nesses casos, são referências de pertencimento dos jovens. Um exemplo disso é o quadro Turista da Minha Comunidade, que também integrava programas da RJC. Nele os jovens percorriam as regiões em que moravam, mostrando o que percebem de importante nelas. Vale ressaltar que, nos dois casos, os espaços da cidade parecem ser vistos pelos jovens não apenas como locais, mas como loci de ação. Ali, a vida acontece; os jovens estabelecem relações, desenvolvem suas produções de mídia, trabalham, vivenciam opções de lazer e de cultura. Nas produções, os jovens desvelam a cidade ao mesmo tempo que ela se desvela a eles. Conforme relatam, ao produzir programas temáticos, eles iam a locais antes desconhecidos. Conversavam com as pessoas dali e vivenciavam novos acontecimentos. Assim, o processo de produção midiática significou uma possibilidade de apropriação das diversas oportunidades que a cidade oferece, seja nos campos da educação e da cultura, seja em relação ao mundo do trabalho, a relações afetivas e até mesmo para compreender melhor – e in loco – as diferenças sociais e econômicas existentes. Essa nova relação dos jovens com a cidade, em que eles se apropriam dos seus espaços e oportunidades, nos remete à noção de circuito, também proposta por Magnani (2005). Conforme o autor, esta compreende: [...] o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantém entre si uma relação de contiguidade espacial [...] possibilitando, por conseguinte, o exercício da sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos [...] [podendo o espaço] ser identificado, descrito, localizado (Magnani, 2005, p. 178).

Com base nessa ideia, pode-se afirmar que fazer parte do grupo de jovens que produz mídia na AIC significou para eles a 156


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entrada efetiva no circuito da cidade de Belo Horizonte. Passaram a frequentar espaços e eventos culturais, se articular com pessoas e instituições variadas, dialogar com grupos de jovens que atuam em diversas áreas e se interessar por ocupar espaços sociais até então desconhecidos ou pouco explorados. Vale lembrar que muitas das vivências dos jovens nesse circuito se transformavam em programas televisivos e radiofônicos. Portanto, de alguma maneira, esses jovens interferiam no universo das pessoas e da cidade também por meio de sua imagem. A jovem Fernanda demonstra uma compreensão que articula o trânsito pelos espaços da cidade à ampliação da noção de comunidade. O termo “comunidade” passa a significar não mais um bairro, mas o conjunto da cidade, ou seja, esse circuito a que se referiu Magnani (2005): Hoje em dia, eu acho que estou meio sem uma comunidade fixa, porque transito muito pela cidade, como eu nunca transitei na minha vida. Eu vou em casa só para dormir, também não sei se é ruim ou é bom, né? Eu acho que é um pouco ruim porque eu dei uma separada de lá da minha casa, mas para mim é bom porque estou vendo o tanto de coisa bacana que tem e que as pessoas ainda não conseguem utilizar isso tudo.

O depoimento de Fernanda mostra a ampliação do acesso à cidade, a transformação das relações que ela estabelece com a família e a ampliação das informações sobre os acontecimentos da cidade. É interessante notar também que o relato da jovem aponta que esse transitar pelos diversos locais de Belo Horizonte de certa forma tirou-a de casa. Isso se opõe ao discurso de diversas instituições do Terceiro Setor, que expressam interesse em dar uma oportunidade para que os adolescentes e jovens “saiam da rua”. Ao contrário, pela experiência dessa jovem, estar na rua é, em si, uma oportunidade de ampliar as possibilidades de vida. Como aponta Carrano (2002, p. 214), esse “estar na rua” possibilita a vivência de “práticas educativas na cidade”. Ao pesquisar grupos juvenis diversos na cidade de Angra dos Reis 157


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(RJ), Carrano (2002, p. 214) constatou uma “grande variedade de situações, rituais e ocasiões concorrendo para um amplo processo de educação ampliada”. Segundo o autor, existem diversos “acontecimentos educativos” na cidade, entre eles, cursos de línguas, atividades de lazer, academias de esportes e cursos profissionalizantes. Ainda segundo Carrano, há [...] práticas não-institucionais que se entrelaçam em diferentes espaços da cidade. Os sujeitos e grupos estabelecem relações comunicacionais entre si, e em diálogo com o conjunto das práticas urbanas. Nesse processo de trocas culturais significativas se envolvem, aproximam-se, antagonizam-se, e entrelaçam-se por práticas sem que necessariamente tomem consciência que essas relações podem ser efetivamente significativas (2002, p. 215).

Os jovens parecem vivenciar esse processo de trocas culturais com outros jovens e grupos que, de fato, possibilitou a criação e/ou ampliação de vínculos com a cidade. Esse transitar, gerado pela participação nos projetos de produção audiovisual, foi destacado pelo jovem Otto: Antigamente a [minha] vida se resumia entre a escola [...] e minha casa, minha rua, meu bairro, né? Tava ali sempre, não saía dali. Vindo pra cá, aí tem possibilidade, aqui o próprio projeto proporcionou, de viajar pra outro Estado, de conhecer lugares mesmo da cidade que até então não conhecia, um teatro, vários locais, enfim, a cidade como um todo, assim, Praça Sete, todo mundo falava, eu só via pela televisão, sabe, são espaços mesmos da cidade que eu até então não conhecia... uma vida de bairro é totalmente diferente de uma vida de cidade.

Ao passar a ter a cidade como espaço de interação (apropriando-se de suas oportunidades e expondo-se aos seus riscos9), Otto evidencia essa dimensão educativa de alguns projetos sociais, que possibilitam não apenas o acesso aos meios de comunicação, Cabe mencionar aqui que Otto já foi vítima da violência urbana.

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mas também à própria cidade, antes desconhecida e inexplorada. Otto e Fernanda demonstram compreender que não transitar pela cidade é deixar de estabelecer relações com pessoas, com outros grupos juvenis, outros lugares e outras instituições. Tratase de uma forma reduzida de enxergar o mundo. Assim, Otto compara-se aos demais membros de sua família: “Conhecer outros mundos, conhecer outras pessoas [...] É por isso que eu acho importante, porque [ficamos] num outro nível [em relação aos demais membros da família]... um nível que, pra depois, pra vida, vai fazer falta... Quando é apresentado um leque de opções, você tem possibilidade de escolher”. Nesse excerto, evidenciam-se diversas questões importantes. Uma delas refere-se à noção de “experiência”. Ao “conhecer outros mundos”, mais que ficar sabendo deles, os jovens os experimentam, vivenciando a diversidade de dimensões que os compõem. Outra questão está relacionada ao futuro. Conhecer a cidade pode contribuir para a ampliação de oportunidades, incluindo aquelas relacionadas ao trabalho. Cabe ressaltar a importância da escolha, que em muitos casos não faz parte das possibilidades dos jovens das periferias das grandes cidades. Para muitos deles, não há muito a escolher, diante das poucas possibilidades a que têm acesso. Na visão de Otto, apropriar-se da cidade significa ampliar as possibilidades de escolha. A jovem Fernanda traz um novo elemento para a análise, que articula a sua presença nos espaços da cidade ao acesso a bens culturais. Assim, ela justifica o fato de ficar a maior parte do tempo fora de sua casa e de seu bairro: Hoje em dia, eu consigo saber o tanto de show, o tanto de coisa que a gente pode usar de oficinas porque é de graça, a gente vai, a gente participa, ou às vezes é cinco reais, dez reais, coisa que, hoje, eu acho que a gente tem condição de ir. [...] final de semana nem fico dentro de casa direito, vou para alguma oficina, vou dar alguma oficina ou vou para algum show. Hoje eu saio bem mais do que antes do meu bairro. Hoje acho que a minha comunidade está se fazendo o tempo inteiro, ela está em vários locais. Fixo, fixo mesmo eu não tenho não.

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Preocupada em acessar a cultura, Fernanda aborda a questão dos eventos culturais realizados na cidade. O acesso à cultura, aliás, é uma preocupação central dos jovens brasileiros (IBASE/ PÓLIS, 2005). Segundo a pesquisa Juventude Brasileira e Democracia, a principal opção de lazer para os jovens das classes D e E são shoppings (53,8%); apenas 29,3% frequentam cinemas, 8,8% frequentam teatro e 7,2% vão a museus. Dos jovens pesquisados, 22,2% não costumam frequentar espaço algum de cultura e lazer, como os citados acima. A mesma pesquisa concluiu que o acesso dos jovens de Belo Horizonte a bens, serviços e espaços culturais está diretamente ligado à posição socioeconômica das pessoas. Ou seja, as desigualdades sociais reproduzem-se no acesso das pessoas à cultura. Essas desigualdades parecem ter sido abreviadas pelos jovens que participam dos projetos da AIC, já que, apesar de estar em desvantagem econômica, eles têm acesso a manifestações culturais primordialmente frequentadas pelas classes mais altas. Todos os sujeitos desta pesquisa relataram que frequentam espaços culturais da cidade, como o Palácio das Artes, o Centro Cultural da UFMG e museus diversos, além de ter contato com grupos culturais de jovens e de comparecer a eventos culturais gratuitos que acontecem na cidade, tal como o Festival Internacional do Teatro e da Dança. É necessário ressaltar que esse acesso a novas formas de cultura, no caso desses jovens, efetivou-se à medida que eles passaram a acessar a própria cidade para produzir audiovisual. Outra questão levantada por Fernanda é a concentração de eventos culturais em locais onde residem pessoas de maior poder aquisitivo, o que gera a necessidade do deslocamento. Segundo ela, o jovem que não transita pela cidade não fica sabendo da realização de eventos culturais do seu interesse. Uma última dimensão refere-se à promoção da visibilidade desses jovens, em face da invisibilidade da população nas grandes cidades. É como se, ao sair de seus bairros e ir ao encontro da cidade, seja transitando entre os espaços, seja participando de eventos culturais, seja produzindo mídia em espaços públicos, esses jovens passassem a existir. Assim como a cidade não existia 160


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para eles, eles pareciam não existir para ela. A jovem Daniela é uma das que expressam satisfação ao ser notada na cidade: Às vezes eu achava que as pessoas passavam por mim e não me viam, sabe? Aí [meu namorado disse]: “Não, você está muito enganada, a gente consegue te ver lá, consegue identificar, olha eu já vi aquela menina em vários lugares”, ele falou isso comigo. E fiquei: Nossa! Legal. Que bom que as pessoas me veem ali! Eu não sou... não é que eu não sou só mais um, mas eles me veem ali. Eu estou ali. Estou participando de alguma forma. Isso é muito legal. Quando ele falou isso comigo, eu fiquei tão feliz que vou passar a ir mais nos lugares, mais do que eu já vou.

Essa questão está relacionada às reflexões de Diógenes (2003, p. 179), que pesquisou itinerários de jovens do Ceará (torcedores de futebol, frequentadores de bailes funk e lutadores de jiu-jítsu). É possível estabelecer um traço comum entre os itinerários desses jovens e os dos jovens que integram os projetos da AIC, qual seja, se fazer único e diferente, apesar de parte de um grupo, e ser percebido no mundo: A alma da cidade, esse ponto onde o eu se decide, faz sua aparição quando cada corpo, coletivo ou individual, produz e expressa-se fora da pretensão de ser o uno, dissolve-se singularmente. É por isso que identificamos entre nossos personagens itinerantes tanta vontade de produzir diferenças, ser identificado como parte de: da galera, da torcida, da academia (Diógenges, 2003, p. 179).

Há outro ponto de vista em relação a esse processo dos jovens de “se mostrar” à cidade. Ao descrever a participação dos jovens no processo de produção de mídia, a equipe de educadores e coordenadores da AIC aponta que, com a apropriação técnica das ferramentas de produção, os jovens buscam “se mostrar” Assim, aparecer na televisão mostrando-se e apresentando a cidade aos espectadores indica que os jovens estão saindo da invisibilidade, ao mesmo tempo que retiram facetas urbanas da mesma condição invisível: 161


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Não apenas por meio da captação da própria imagem, mas do seu ambiente, gostos, símbolos, modo de falar, cotidiano, sua história – tudo coisas que fazem parte de um processo de construção de uma identidade individual e coletiva por intermédio do vídeo. O jovem vislumbra a possibilidade de se ver representado na televisão e de se reconhecer na imagem por ele criada (Lima, 2007, p. 74).

Ao se representar na televisão como aqueles que frequentam os diversos espaços da cidade, os jovens se colocam como parte desse espaço. Assim, o “trânsito” urbano se virtualiza: os jovens transitam efetivamente nos diversos espaços da cidade e, à medida que essas experiências são gravadas, editadas e exibidas na televisão, passam a transitar virtualmente pelos espectadores.

Considerações finais A participação nos projetos da AIC significou para os jovens pesquisados a “descoberta” da cidade, com suas oportunidades, suas possibilidades, suas contradições, seus problemas. O trajeto diário dos jovens até a sede da AIC ampliou-lhes a noção de comunidade. Antes, os jovens diziam-se restritos às suas respectivas ruas e a seus bairros, ou seja, a seus “quadradinhos”. A produção audiovisual, da maneira como era realizada, fomentou nos jovens a busca pelo desconhecido na cidade. No contato com as pessoas, os grupos, os lugares e as instituições, os jovens realizavam suas produções e, ao mesmo tempo, entravam em contato com possibilidades de lazer, de cultura, de trabalho, de sociabilidade e de formação existentes na cidade e delas se apropriavam. Fizeram o movimento de sair dos guetos. Descobriram novos mundos. E levaram a cidade a descobri-los.

Referências ALVES-MAZZOTTI, Alda J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1999.

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Deslocamento, circulação, trânsito, contato na produção audiovisual comunitária

BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1993. CARRANO, Paulo. Os jovens e a cidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. DAYRELL, Juarez et al. Juventude, pobreza e ações educativas no Brasil. In: SPÓSITO, Marília (Coord.). Espaços públicos e tempos juvenis: um estudo de ações do poder público em cidades de regiões metropolitanas brasileiras. São Paulo: Global, 2007. DAYRELL, Juarez. A escola faz a juventude? Reflexões em torno da socialização juvenil. In: VIEIRA, Maria Manuel (Org.). Escola, jovens e media. Lisboa: ICS, 2007. DIÓGENES, Glória. Itinerários de corpos juvenis: o baile, o jogo e o tatame. São Paulo: Annblume, 2003. IBASE/PÓLIS. Relatório global - Juventude brasileira e democracia: participação, esferas e políticas públicas - Relatório regional Belo Horizonte. Disponível em: <http://www.polis.org.br/obras/arquivo_241.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2009. LIMA, Rafaela (Org.). Mídias comunitárias, juventude e cidadania. Belo Horizonte: Autêntica/Associação Imagem Comunitária, 2007. MAGNANI, José Guilherme. Os circuitos dos jovens urbanos. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP. Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, v. 17, n. 2, p. 173-205, nov. 2005. PAIS, José Machado. Ganchos, tachos e biscates: jovens, trabalho e futuro. Porto, Portugal: Âmbar, 2005.

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Parte 3

AUDIOVISUAL E EDUCAÇÃO



CAPÍTULO VIII

Para quem gosta de perguntar: uma reflexão sobre a Educomunicação Eliany Salvatierra Machado

O

texto que apresento nesta publicação é fruto das reflexões e análises da pesquisa de doutorado intitulada Pelos caminhos de Alice: vivências na Educomunicação, a dialogicidade no projeto Educom.TV. O estudo faz parte do nosso próprio percurso no campo da Comunicação e, principalmente, na Educomunicação. Como a questionadora Alice, de Lewis Carroll, resolvemos perguntar: “o que é Educomunicação?”. Nossa tentativa de responder a essa indagação busca não verdades absolutas, mas respostas provisórias. Enveredamo-nos, assim, pela grande aventura de refletir sobre tais práticas, surpreendendo-nos com o diferente e com o novo. Desde 1996, participando de várias atividades do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), escolhemos a Educomunicação como nosso objeto de trabalho e fonte constante de pesquisa. O intuito deste artigo é delinear a ideia de Educomunicação, explorando algumas de suas bases conceituais. Interessa-nos, portanto, investigar esse campo, que situa o audiovisual no processo, no diálogo e, acima de tudo, na comunicação. 167


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

O texto parte de um resgate do contexto histórico, dos meandros e da fugacidade do campo emergente da Educomunicação. Trilha-se um percurso que começa com as contribuições de Ismar Soares, passa por Mario Kaplún e Paulo Freire, até encontrar em Martin Buber e Emmanuel Lévinas o diálogo intersubjetivo na alteridade. Durante todo esse trajeto fomos acompanhados pelas sábias palavras do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. Quando começamos a caminhada não sabíamos que diferenças fundamentais surgiriam. Mudanças que fizeram com que passássemos a perceber, mesmo contrariando a maior parte dos então educomunicadores, a Educomunicação não como intervenção social, mas como relação. Quais seriam, então, as diferenças entre a Educomunicação vista ora como intervenção social, ora como relação? Esse é justamente o caminho de Alice.

Educomunicação Ismar de Oliveira Soares deu o tom inicial de nossa reflexão. Para ele, Educomunicação significa uma área de atuação e intervenção social, que se subdivide em cinco subáreas: (1) leitura crítica e ativa dos meios; (2) mediação tecnológica; (3) gestão de processos educomunicativos; (4) epistemologia da educomunicação; estudos sobre a área; (5) expressões artísticas para processos educomunicativos. Soares (2002, p. 24) entende que a Educomunicação caracteriza-se por ser: Um conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos, programas e produtos destinados a criar e a fortalecer ecossistemas comunicativos em espaços educativos presenciais ou virtuais, assim como melhorar o coeficiente comunicativo das ações educativas, incluindo as relacionadas ao uso dos recursos da informação no processo de aprendizagem através do diálogo franco e aberto.

Ainda de acordo com Soares, a ideia de Educomunicação tem fortes vínculos com os escritos de Mário Kaplún, sendo que 168


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o livro Comunicação popular foi fundamental para o desenvolvimento dessa área.1 Jornalista e educador, Kaplún foi o responsável por criar o projeto Cassete Fórum, que usava a comunicação para a organização popular.2 A proposta dessa iniciativa era bastante audaciosa, porque buscava contribuir para a emancipação de comunidades. A motivação e a inspiração para que isso fosse possível, segundo o próprio Kaplún, vinham de Paulo Freire. De certo modo, pode-se dizer que é um modelo gestado na América Latina. Mas recebeu valiosas contribuições de pedagogos e sociólogos europeus e norte-americanos. Na nossa região, Freire e outros educadores imprimiram com clareza a orientação social, política e cultural e a elaboraram como uma “pedagogia do oprimido” como uma educação para a democracia e um instrumento para a transformação da sociedade (Kaplún, 2002, p. 45).3

No início do livro Una pedagogia de la comunicación – El comunicador popular, Mário Kaplún (2002) afirma que, quando fazemos comunicação educativa, sempre buscamos, de uma forma ou de outra, um resultado formativo e transformador. A produção da mensagem, em sua perspectiva, aspira a que os destinatários tomem consciência da sua realidade e reflitam sobre ela. Nesse sentido, podemos dizer que se trata de gerar debate, e a discussão é pensada como processo de formação e transformação. Assim, os meios de comunicação são concebidos como Mário Kaplún (1923-1998) foi um comunicador argentino, baseado no Uruguai, que trabalhou com produções radiofônicas e televisivas. Ficou conhecido na América Latina pelo trabalho radiofônico chamado Cassete Fórum principalmente pelo livro O comunicador popular.

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Entendemos o termo “popular” como grupos organizados, comunidades de bairro, associações e sindicatos ligados à classe trabalhadora.

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Do original: “En cierto modo, se puede decir que es un modelo gestado en América Latina. Auque recibió valiosos aportes de pedagogos y sociólogos europeos y norteamericanos, en nuestra región Freire y otros educadores le imprimen su clara orientación social, política y cultural y la elaboran como una ‘pedagogía del oprimido’, como una educación para la democracia y un instrumento para la transformación de la sociedad”.

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instrumentos para uma educação popular, ou seja, alimentadores de um processo educativo transformador. Na visão de Kaplún (2002), há dois modelos básicos de educação: • Exógeno: trabalha a educação com ênfase nos conteúdos e nos efeitos, encarando a relação como transferência; • Endógeno: enfatiza os processos, isto é, a relação se estabelece entre os sujeitos-educandos e os educadores. Kaplún compara esses modelos educacionais a formas distintas de conceber a comunicação. Para ele, a visão exógena é semelhante àquela que concebe o processo comunicacional como transmissão de informação; o velho e conhecido esquema emissor-mensagem-receptor.4 A educação dos efeitos remete à comunicação persuasiva, sedutora, própria da publicidade, em que o comunicador é uma espécie de arquiteto da conduta humana. De natureza distinta, o modelo endógeno está totalmente atento à pessoa e enfatiza o processo. Trata-se de uma educação libertadora ou transformadora, em que ação e a reflexão impulsionam-se mutuamente. Kaplún relaciona tal proposta à comunicação processual, que enfoca não o produto mas a relação entre sujeitos. Esse modelo seria a base para entender a comunicação popular. Baseado no livro de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, Kaplún pensa o impacto da comunicação popular sobre a democracia, julgando que a comunicação poderia se tornar um instrumento para a transformação da sociedade. A ênfase no processo significa ver a educação como um desenvolvimento permanente, no qual o sujeito descobre, elabora, reinventa e faz do conhecimento algo seu. Trata-se de um processo de “açãoreflexão-ação” que o educando produz a partir de sua realidade, de sua experiência, de sua prática social, junto com todos os outros que participam do processo. Os pressupostos aqui apresentados foram publicados por Kaplún pela primeira vez em 1985. Na época da publicação, era relevante marcar as várias concepções de comunicação.

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Na educação popular, o educador é considerado educando e, ao mesmo tempo, o educando é tomado também como educador. Assim como Freire, Kaplún (2002, p. 45) acreditava que ninguém pode se educar sozinho: “os homens se educam entre si, mediados pelo mundo, e essa trajetória na qual os homens se educam entre si é precisamente o processo educativo”. Dessa forma, o papel do educador é acompanhar o educando e estimulá-lo ao longo dos processos de análise e reflexão, para que os sujeitos aprendam e construam juntos. Na perspectiva processual, a proposta é “aprender a aprender”, para que, em primeiro lugar, o educando reflita autonomamente e, depois, consiga superar as constatações meramente empíricas e imediatas das práticas que o rodeiam (consciência ingênua). O educando é incitado a desenvolver sua capacidade de deduzir, de relacionar e de elaborar sínteses (consciência crítica). “Para que haja um processo de transformação real, é necessário que os estereótipos e os hábitos do homem dominado aflorem a sua consciência e ele vá, pouco a pouco, revisando-os criticamente” (Kaplún, 2002, p. 47). O mesmo ocorre no comunicador popular, que deve acompanhar o processo formativo, fomentando e provocando a crítica. O modelo apresentado por Kaplún para a comunicação popular tem sua base na participação ativa do sujeito no processo educativo; além disso, apresenta a perspectiva de formar esses mesmos sujeitos para a atuação social. Para o autor, a aprendizagem ocorre justamente no envolvimento e na investigação. Nos níveis psicossociais e culturais da comunicação popular, as metas são: (a) favorecer a tomada de consciência do educando em relação a sua própria dignidade e seu valor como pessoa; (b) ajudar o sujeito da classe popular a superar seu “sentimento apreendido” de inferioridade, recompondo sua autoestima e a confiança em suas capacidades criativas. Defende-se, pois, uma educação comprometida com o social, principalmente no que concerne à libertação dos excluídos. Sua mensagem central é a liberdade essencial que todo ser humano tem que realizar; a autonomia de pensamento e o diálogo são 171


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fundamentais para a transformação da realidade. O papel do educomunicador é justamente criar ambientes propícios para o diálogo.

O diálogo Como já mencionado, as ideias de Kaplún encontram profunda relação com os escritos de Paulo Freire sobre comunicação e educação popular. Freire acreditava que a comunicação seria definida pelo “ter em comum”, pelo “compartilhar” e principalmente pelo estar conectado pela mesma teia simbólica construtora de sentido em um contexto desigual e contraditório. Em amplo e detalhado estudo sobre o pensamento de Paulo Freire, Venício de Lima (2007) afirma que o pedagogo conceitua comunicação pela primeira vez em 1968, quando escreve para o Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agraria (ICIRA) do Chile. Intitulado “Extensão ou comunicação?”, o ensaio criticava o difusionismo norte-americano, defendendo que a comunicação requer coparticipação em vez de transferência. Lima (2007) explica que, na perspectiva freiriana, a comunicação tem ligações intrínsecas com o ato de conhecer. Em Freire, os homens são seres criativos. “Eles podem ser tratados como objetos por sistemas sociais opressivos, isto é, podem ser desumanizados, porém isso não altera a ‘vocação ontológica’ do homem, que é de ser Sujeito, consciente de si mesmo e que interage com o mundo e com os outros homens”(Lima, 2007, p. 59, grifo do autor). Essa interação efetiva requer o diálogo, que é fundamental tanto para a tomada de consciência quanto para a ação transformadora. O diálogo é mediador no processo do conhecimento, e a comunicação, ao nomear o mundo, possibilita a compreensão da realidade. O sujeito que conhece, no olhar de Freire, é o sujeito axiológico,5 aquele que valora. Esse sujeito não é indiferente ao Axiologia ou a “teoria dos valores”: considerada como parte importante da Filosofia ou mesmo como a totalidade da Filosofia pela chamada “filosofia dos valores” e por tendências congêneres, quando, no início do século XX, a expressão “axiologia” começou a ser empregada em seu lugar (Abbagnano, 2007, p. 115).

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mundo, mas lhe atribui valor e, consequentemente, significados. Tal construção encontra seus fundamentos na linguagem. Tratase de um sujeito que, consciente da palavra, intervém socialmente e produz cultura através da linguagem. Dialogar seria, então, uma forma de produzir sentidos compartilhados. No entanto, o diálogo viu-se instrumentalizado por muitos educadores populares e educomunicadores. Pensado a serviço da emancipação, ele deixou de ser visto como relação, transformando-se em ferramenta. O objetivo era a tomada da consciência para a intervenção e a transformação social. Acreditava-se na capacidade racional para operar mudanças, e o diálogo seria a ferramenta para promovê-las. Contudo, existem formas alternativas para se pensar a ideia de diálogo, o que nos leva ao trabalho de Martin Buber (2007). Na visão desse autor, o diálogo não é instrumento para um fim, mas um princípio para a alteridade, como veremos na próxima seção.

A palavra-princípio “Eu-Tu” Para compreender a noção de diálogo em Buber (2001) e, principalmente, o que ele concebe por relação, é necessário entender as palavras-princípio. Segundo Buber (2001), palavrasprincípio não são vocábulos isolados mas pares que ganham sentido em sua dualidade. O autor estudou a ontologia da relação humana e concluiu que existem duas formas básicas de relação: Eu-Tu e Eu-Isso. Com essa constatação, ele percebe que os sujeitos podem tratar aqueles com quem interagem como outros sujeitos ou como objetos. O “Isso”, em Buber (2001), é denominação para seres da natureza e coisas, enquanto o “Tu” é o sujeito em relação. Aquele que diz “Tu” não tem coisa alguma por objeto. O “Tu” não se confina a nada. Quem diz “Tu” permanece em relação, sem submeter seu outro. De acordo com Buber (2001), o ser humano adquire um saber sobre a natureza e sobre sua constituição em experiências. No entanto, essas experiências tendem a reduzir o real a “Isso”, objetificando-o. O experimentador, segundo Buber (2001), não 173


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participa do mundo. A experiência se realiza “nele”, e não entre ele e o mundo. A palavra-princípio Eu-Tu, todavia, fundamenta o mundo da relação. Por isso, é importante perceber como o “Eu”se relaciona com o “Tu”, bem como com todas as coisas que, quando devidamente pronunciadas, deixam de ser “Isso” e passam a ser “Tu”. Não se trata aqui do “Eu”da consciência que conhece o“Tu”, mas do “Eu”que se percebe em relação com o “Tu”. De acordo com Buber (2001), o mundo das relações se realiza em três esferas: a vida com a natureza, a vida com os seres humanos e a vida com os seres espirituais. O indivíduo não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas. Ele não é um simples “Ele” ou “Ela”limitado por outros “Eles”ou “Elas”; um ponto inscrito na rede do universo de espaço e tempo. “Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável, descritível, um feixe flácido de qualidades definidas. Ele é Tu, sem limites, sem costuras, preenchendo todo o horizonte. Isto não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua luz” (Buber, 2001, p. 57). Entre o “Eu” e o “Tu”, não há jogo de conceitos, finalidades preestabelecidas, avidez ou antecipação. A palavra-princípio Eu-Tu mostra, então, como podemos nos relacionar. Uma relação não instrumentalizada em que não há a intencionalidade de mudar o “Tu” em vista de fins políticos. O “Eu” que profere o “Tu” nada deve esperar e querer. E isso não é ingênuo. Ao contrário, é isso o que há de mais precioso em Buber: proferir o “Tu” sem torná-lo “Isso”. Venício Lima (2007) destaca certa ingenuidade política em Buber, o que o leva a preferir a perspectiva de Paulo Freire. Contrariando essa visão, acreditamos que a maior contribuição de Buber (2001) reside justamente no uso não instrumental do diálogo. Sua abordagem não apregoa a grande revolução via mobilização das massas. “Ele está preocupado com o homem, com a recuperação do humano numa sociedade cada vez mais técnica. E esta preocupação será traduzida no investimento da relação pessoal com o outro” (Marcondes Filho, 2008b, p. 357). Para Buber (2001) a possibilidade de transformação está na relação intersubjetiva. Ela reside justamente na mudança da relação 174


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que o sujeito estabelece com o outro, mas não é necessário um discurso sobre engajamento e uma instrumentalização da intervenção política. O importante é simplesmente o reconhecimento da importância do outro, que requer uma relação de tipo Eu-Tu, em vez de Eu-Isso. Martin Buber (2001) nos oferece, assim, um passo importante para a Educomunicação, quando nos permite repensar a relação, que se torna possível (por que não?) através do Eu-Tu no processo dialógico. Estudando Martin Buber (2001), percebemos o desvio que nós, educomunicadores, tomamos ao interpretar o diálogo através de Freire e Kaplún. Frequentemente o processo dialógico se torna estratégia político e não relação Eu-Tu. Quando utilizamos o diálogo dessa forma para a emancipação, acabamos por instrumentalizá-lo. Para que haja diálogo franco e aberto em processos educomunicativos, como indica Soares (2002), é necessário repensar como tratamos e concebemos o diálogo. Para que um atravessamento efetivo ocorra, é importante não buscar domar o outro, nem preestabelecer seus papéis. O equívoco da instrumentalização reside no a priori de intencionalidade, mesmo que esse seja de intervenção social. Não é a forma diálogo ou a representação do que se entende por diálogo – troca, conversa – que faz com que haja comunicação, mas o modo como o “Eu” se relaciona com o “Tu”. Essa é a novidade trazida por Buber (2001). Diálogo é o lugar do encontro, que perpassa a relação, como expresso no prefixo dia. Buber (2001, p. 59) escreve que, diante da imediatez da relação, “todos os meios terminam sem significado. Não importando também que meu Tu seja ou possa se tornar, justamente em virtude de meu ato essencial, o Isso de outros ‘Eus’ (‘um objeto de experiência geral’)”. Ou seja, estar presente no momento de proferir o “Tu” é fundamental. Buber (2001) explica: Com efeito, a verdadeira demarcação, sem dúvida flutuante e vibrante, não se situa entre a experiência e a não-experiência, nem entre o dado e o não-dado, nem o outro mundo do ser e o mundo do valor, mas em todos os domínios entre o Tu e o Isso; entre a presença e o objeto.

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O presente, não no sentido de instante pontual que não designa senão o término, constituído em pensamento, no tempo “expirado” ou a aparência de uma parada nesta evolução, mas o instante atual e plenamente presente, dá-se somente quando existe presença na mente presente, encontro, relação. Somente na medida em que o Tu se torna presente a presença se instaura (Buber, 2001, p. 59-60).

É preciso deixar claro que Eu-Tu, em Buber, não é o “Eu” que conversa com o “Tu” em uma troca de palavras. A palavra-princípio é como o “Eu” se relaciona com o “Tu”. Nessa perspectiva, o diálogo ocorre quando duas ou mais pessoas se “atravessam”.6 O diálogo, em Buber (2001), é o “entre” que permite que o “Eu” acolha o outro, ampliando-se por meio dele. Na relação “Eu-Tu”, os sujeitos se atravessam efetivamente, o que demanda não querer nada do outro: nem formá-lo, nem dominá-lo, nem libertá-lo. Nesse sentido e, ao contrário do que se poderia pensar, a Educomunicação não precisa se pautar pela proposta da emancipação ou por outros propósitos políticos previamente definidos. A riqueza e a profundidade da Educomunicação estão na própria dialogicidade; na relação Eu-Tu buberiana. É interessante resgatar aqui a passagem em que Buber (2007, p. 34-5) remete a um sonho que teria tido diversas vezes sobre um local sinestésico em que os sentidos seriam essenciais. Segundo Buber (2007, p. 54), há três espécies de diálogo: (1) O autêntico (falado ou silencioso) é aquele em que cada um dos participantes tem, de fato, o outro em mente, ou os outros na sua presença e no seu modo de ser, e a eles se volta com a intenção de estabelecer uma reciprocidade viva. (2) O diálogo técnico, movido unicamente pela necessidade de um entendimento objetivo; e o monólogo disfarçado de diálogo, aquele em que dois ou mais homens, reunidos num local, falam cada um consigo mesmo, por caminhos tortuosos, estranhamente entrelaçados e acreditam ter escapado, contudo, ao tormento de ter que contar apenas com os próprios recursos. (3) A espécie de diálogo que não é determinada nem pela necessidade de comunicar algo, nem de entrar em contato com alguém, mas unicamente pelo desejo de ver confirmada a própria autoconfiança, decifrando no outro a impressão deixada ou de tê-la reforçada quando vacilante.

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Seu sonho explicita a importância de se abrir para acolher aquilo que nos é externo e que simultaneamente nos constitui. Para ele, o “diálogo não se limita ao tráfego dos homens entre si; ele é [...] um comportamento dos homens um-para-com-o-outro, que é apenas representado no seu tráfego” (Buber, 2007, p. 40). Isso quer dizer que os sujeitos necessitam abrir-se perceptivamente ao outro. Esse aspecto é fundamental para quem ambiciona trabalhar com Educomunicação. O diálogo não pode ser provocado mecânica e estrategicamente nem usado como forma de capturar o outro. Para que ele ocorra de verdade, é necessário realizar o que Buber (2007, p. 56) denominou de movimento básico, que consiste no voltar-se-para-o-outro. A relação dialógica é entrega, mas acima de tudo é também imersão. Essa interpretação encontra eco nas formulações mais recentes de David Bohm (2005), para quem o diálogo é uma relação em que os interlocutores fazem algo comum, dando espaço ao aparecimento de algo novo. Tal como Buber, ele destaca que o diálogo não pode ser resumido à troca de ideias, pontos de vista e fragmentos isolados de informação. Bohm (2005) afirma que o diálogo pode ocorrer com qualquer número de pessoas, até mesmo com quem está sozinho. Para isso, basta que o sentimento dialógico esteja presente. O que nos chega dessa linha de pensamento é que o diálogo é uma proposta; um estar presente e um abrir-se ao outro. Ele se dobra à alteridade. Vamos relembrar que, em nossa busca de definição da Educomunicação, explicamos tratar-se de uma área norteada pelo diálogo franco e aberto (como afirma Soares), caracterizando-se como um processo (tal qual advogado por Kaplún). Com Buber (2001), redefinimos a noção de diálogo a partir da relação Eu-Tu, ressaltando a importância da alteridade. Resta-nos, agora, um último passo, no sentido de definir essa noção de alteridade. É aqui que chegamos ao pensamento de Lévinas e à visão do Outro não como semelhante, mas como diferença. 177


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O novo que me atravessa Emmanuel Lévinas é um pensador fundamental para a discussão da questão da alteridade7 e para a compreensão das bases de processos educomunicativos. A experiência do nazismo, incluindo sua prisão em campos de concentração e a morte de seus familiares, ajuda a explicar seu esforço para propor uma “ética da ética”: Angustiado pela perda de sentido no humanismo, [Lévinas] acreditava que este sentido só poderia ser buscado no compromisso ético. Não uma ética racionalista, que justificasse o dever ser, mas uma ética que nasceria anterior a própria consciência humana. Esta ética encarnada faz do outro questão central de toda sua Filosofia (Menezes, s/d, p. 1).

Assim como Buber, Lévinas não é um autor de fácil compreensão, principalmente porque parece fugir do leitor que deseja capturá-lo. Outra semelhança entre ambos é que são autores pouco visitados pelos estudos de Comunicação e não estão “em moda” na academia. Uma terceira aproximação possível diz respeito ao questionamento da perspectiva da tomada de consciência, tão cara aos educomunicadores, que eles realizam. Resgatando o pensamento de Ulpiano Vazquez, Souza (1999) afirma que é possível apontar, no conjunto da obra de Lévinas, quatro pares de oposições que servem como chave de Nascido em Kaunas, na Lituânia, em 1906, filho de um casal judeu, emigrou aos 11 anos de idade para a Ucrânia, onde presenciou a Revolução Russa de 1917. Posteriormente mudou-se da Ucrânia para a França, onde se fixou. Em 1923 iniciou seus estudos superiores em Estrasburgo e em 1927 começou a estudar Fenomenologia com Jean Hering. Trabalhou também com Franz Rosenzweig, assistiu a cursos ministrados por Husserl e Heidegger. Considerado o introdutor da Fenomenologia na França, Lévinas defendeu sua tese em 1929 sobre a Teoria da Intuição na Fenomenologia de Husserl. Em 1939 foi preso pelo nacional-socialismo e passou cinco anos nos campos de concentração. Depois disso foi diretor da Escola Normal Israelita Oriental por 18 anos, professor de Filosofia em Poitiers, ParisNanterre e, por fim, na Sorbonne. Lévinas faleceu em Paris, em 25 de dezembro de 1995. Cf. Souza (1999).

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leitura para seu trabalho: (1) Filosofia e Teologia; (2) Metafísica e Ontologia; (3) Ética e Fenomenologia; e (4) Tradição Judaica e Tradição Cristã. Marcondes Filho (2008b) explica que Lévinas advogava a reintrodução da transcendência na Filosofia, criticando o estruturalismo, o marxismo, a psicanálise e o cientificismo. Para Lévinas, a Filosofia e a racionalidade do ocidente repelem ou se negam a olhar aquilo que não conseguem ordenar e manipular. Entre as muitas entidades que lhes são ininteligíveis, podem ser citadas Deus; o agente individual; o passado histórico; o futuro progressivo; as culturas não ocidentais; e as tradições mitológicas ou tidas como “supersticiosas”. A racionalidade ocidental não soube lidar com o estranho e o imprevisível que marcam a configuração do humano. A originalidade da proposta de Lévinas está na consideração do outro como um mistério que ajuda a moldar a condição humana. O outro, de acordo com ele, é aquele que tem uma liberdade exterior à minha, ou seja, é diferença, e não semelhança. Não posso, não devo e, ainda que queira, jamais conseguirei capturar o outro. Trata-se de um infinito que se opõe à totalidade. Dentro dessa lógica, o diálogo assume importância central, pensado como espaço de encontro, e não de submissão. Todo encontro com o outro supõe um deslocamento, “sair do seu lugar e ir ao encontro do Outro” (Lévinas, 2008a, p. 65), afirma Lévinas, em Totalidade e infinito. Nesse encontro, que não faz desaparecer a separação entre os sujeitos, o Eu se desloca. Lévinas defende explicitamente uma filosofia do diálogo, que se apoia na tradição filosófica da unidade do Eu (ou do sistema) e da suficiência de si (da imanência). Essa filosofia sofreu forte influência de Franz Rosenzweig, Gabriel Marcel e de Buber: A importância de Martin Buber, para Lévinas reside no fato de este eliminar o fundamento gnosiológico do encontro. Eu não encontro o outro para saber nada, para conhecer coisa alguma, eu realizo, antes, um puro diálogo, uma pura “aliança”, diz Lévinas: volto-me ao outro não porque tenha havido uma proximidade prévia ou por já estarmos substancialmente unidos mas porque o “tu” é o absolutamente

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outro. A relação Eu-Tu é irredutível, o encontro não se reduz a nada determinável (Marcondes Filho, 2008a, p. 354).

Magali Mendes de Menezes aponta como essas ideias de Lévinas trazem importantes contribuições à educação: “Lévinas nos faz pensar que o mundo humano, a natureza enquanto um ser que pulsa, que se manifesta e tem seu próprio movimento, não pode ser objetivada” (Menezes, s/d, p. 9). Lévinas instiga a pensar a educação a partir da ideia de “dobrar-se ao outro” ou, nas palavras dele mesmo, entregar-se para o outro, ao infinito sem, contudo, se perder. Trata-se, nesse sentido, de receber o outro (homem, mulher, criança, negro, rico, pobre, judeu ou católico) e ouvi-lo, sem querer dominá-lo, encerrá-lo ou dogmatizá-lo. O Outro é alguém que eu jamais conseguirei capturar na sua inteireza. A educação percebida como relação é a abertura para que algo aconteça. A comunicação, então, torna-se uma dimensão fundamental da educação. Mas a comunicação entendida como relação é que permite a circulação das palavras entre seres humanos e, nesse sentido, abre-os à irredutível experiência da transcendência. Nesse sentido, de acordo com Ciro Marcondes Filho (2008b), o diálogo em Lévinas é algo que transcende a distância entre Eu e Tu sem suprimi-la, sem recuperá-la ou englobá-la. Não há “e” possível entre“Eu” e “Tu”, porque eles não formam um. Lévinas diz que aquilo que Buber havia descoberto na categoria de relação inter-humana não é efetivamente a relação com um interlocutor, mas com a alteridade feminina, em que o feminino se revela como a origem do próprio conceito de alteridade. Cabe destacar que o feminino em Lévinas tem relação não com gênero ou com a mulher empírica, mas com os gestos de acolhimento e hospitalidade que atingem uma radicalidade essencial e profunda. Esse gesto de acolhida, de acordo com Lévinas (2007), passa pelo acesso ao rosto, que não se restringe ao conteúdo dos atributos físicos que o compõem. Quando se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se o pode descrever, é que nos voltamos para outrem como

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para um objeto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação social com outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele (Lévinas, 2007, p. 69).

A relação com o rosto não deve ser a que procura um contexto para a significação. Ela deve ser ética, antes de tudo. “O rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido consiste em dizer: ‘tu não matarás’”(Lévinas, 2007, p. 70-71, grifo do autor). Para Lévinas, “desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter de assumir responsabilidade a seu respeito”(Lévinas, 2007, p. 71, grifo do autor). A responsabilidade não é um simples atributo da subjetividade, como se esta existisse em si mesma, antes da relação ética. Podemos notar, assim, que, em Lévinas, a própria identidade do Eu humano se conforma a partir da responsabilidade, o que requer a deposição do “Eu” soberano consciente de si. Tal deposição é gerada pela responsabilidade por outrem. “A responsabilidade é que exclusivamente me incumbe e que, humanamente, não posso recuar” (Lévinas, 2007, p. 84, grifo do autor). O que Lévinas entende por ética é essa responsabilidade pelo rosto, por esse Outro, que é totalidade e infinito. Trata-se de uma responsabilidade que está calcada não na culpa mas na liberdade. Diferentemente das propostas racionalistas de autonomia, em que o “Eu”se autogoverna, impondo-se regras universais, a responsabilidade ética nasce aqui da expansão gerada pelo encontro com o Outro. E essa responsabilidade pelo Outro é libertadora, na medida em que amplia o ser. Nesse sentido, propostas baseadas no uso racional do diálogo como modo de fomentar a autonomia jamais conseguiram reconhecer o Outro. A partir de Buber e Lévinas entendemos que a Educomunicação pode se tornar o espaço do “entre”, da relação comunicacional educativa, lugar em que o diálogo franco e aberto ocorre pela palavra-princípio Eu-Tu. Uma relação em que a alteridade se faz presente sempre. A Educomunicação 181


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não se restringe à formação com os meios de comunicação de massa (MCM) ou ao uso das novas tecnologias. O processo, que já era foco dos trabalhos de Kaplún, Freire e Soares, ganha novas dimensões quando a autonomia não é dada a priori ou planejada racionalmente, mas se edifica ao longo dos imponderáveis encontros humanos. A Educomunicação mais do que uma área, campo ou pacote de métodos de ensino, consistiria, portanto, em um conjunto de princípios e pressupostos que auxiliam o surgimento do diálogo. Ela deveria ser pensada como uma esfera em que a alteridade se faz presente. A comunicação não deve ser instrumentalizada, mesmo que os fins econômicos e políticos sejam nobres. A riqueza do processo educomunicativo não está no uso do audiovisual ou das novas tecnologias para a tomada de consciência. Educomunicação é a possibilidade de estar em relação Eu-Tu, em que a alteridade, como diferença, se faz presente. Trata-se de uma possibilidade para mudar a forma como apreendemos os seres e as coisas. A força de processos educomunicativos emerge do reconhecimento de que não sou Eu que mudo o Outro, mas é o Outro que me amplia e me leva ao infinito. Transformar essa relação em forma expressiva é o desafio da Educomunicação.

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Para quem gosta de perguntar: uma reflexão sobre a Educomunicação

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CAPÍTULO IX

As TCIs na escola: da recepção à expressão Rafaela Lima

Integro o quadro de sócios-fundadores da Associação Ima-

gem Comunitária (AIC), ONG nascida em 1993 com a proposta de desenvolver metodologias de promoção do acesso público aos meios de comunicação. Nosso grande interesse é pensar as mídias como espaços públicos democráticos. A partir dele, temos realizado centenas de iniciativas no campo da comunicação comunitária,1 envolvendo milhares de pessoas. Em função dessa trajetória na AIC, venho atuando, desde os anos 1990, prática e academicamente, no campo do uso das tecnologias da comunicação e da informação (TCIs) pelas escolas e pelos movimentos sociais. Naqueles idos da década de 1990, a grande novidade, especialmente no contexto escolar, era a chegada do vídeo à sala de aula. E vídeo era um termo associado, basicamente, a um conjunto de equipamentos analógicos grandes, pesados e caros: a câmera, a ilha de edição (que operava com fitas e muitas máquinas), o videocassete, o televisor ou o telão. 1

Vide <http://www.aic.org.br>.

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Quase duas décadas depois, o universo das tecnologias da comunicação tornou-se extremamente amplo e diversificado. Os equipamentos digitais de captação e manipulação de imagens e sons se multiplicaram vertiginosamente e são usados pelas pessoas todo o tempo. A palavra “audiovisual”, por exemplo, engloba hoje processos de produção os mais diversos: dos pequenos registros feitos com celulares, câmeras fotográficas e webcams até a produção e a veiculação de conteúdos pelas televisões de massa, passando pelas TVs hipersegmentadas, que entretêm os clientes no elevador, no hipermercado e na academia de ginástica. Além disso, a internet entra como uma mídia que gera convergência entre todas as outras e abre amplas possibilidades de veiculação e interatividade. Com ela, a ideia de segmentação e o imbricamento entre emissor e receptor tornaram-se uma realidade cotidiana. Frente ao boom tecnológico, o exercício da crítica e da reflexão faz-se fundamental. Muitas vezes, há uma fetichização da comunicação midiática, com uma supervalorização dos recursos tecnológicos em detrimento dos processos de produção de sentido. É nesse cenário que proponho uma discussão sobre as TCIs no contexto escolar. E essa discussão requer resposta a uma questão fundamental: o que é ensinar? É possível identificar três respostas a essa indagação e três possibilidades de uso das tecnologias comunicacionais a elas relacionadas. A resposta mais antiga seria: ensinar é transmitir conhecimento a alguém. A ideia do conhecimento pronto e estocado fomenta um uso das tecnologias e dos meios de comunicação como fontes de conteúdos a serem oferecidos aos alunos. Uma segunda resposta à questão entende que ensinar é problematizar situações para que o educando as perceba de uma forma diferente, mais crítica. Aqui, os conteúdos midiáticos surgem como um elemento para a promoção de debates. Trata-se da prática da crítica de mídia. Por fim, a terceira resposta parte da premissa de que ensinar é construir conhecimento em parceria com o aluno. Dessa acepção, derivam práticas de produção participativa de meios de comunicação 186


As TCIs na escola: da recepção à expressão

pela comunidade escolar. É esse o viés que mais me interessa. Antes de detalhá-lo, contudo, convém explicar, com mais cautela, cada uma das abordagens mencionadas.

Ensinar é transmitir: o uso ilustrativo das TCIs Na maioria das instituições escolares, o uso das TCIs é sinônimo de veiculação de DVDs educativos e de leitura ou sessão comentada de matérias de jornais, revistas e sites, de trechos de filmes, novelas, telejornais e séries televisivas. A proposta é usar os conteúdos midiáticos para ilustrar determinado tema. O ensino, nesse caso, é associado à ideia de transferência de conhecimento. O conhecimento, por sua vez, é tido como [...] um objeto que é de domínio do professor e que pode ser transferido ao aluno a partir de uma série de mecanismos, sem que o aluno tenha qualquer participação ativa no processo – ou seja, o aluno é visto meramente como um receptor de informações (Mayrink, 2000, p. 11).

Essa perspectiva pode ser associada ao que Paulo Freire chamou de concepção bancária da educação, modelo baseado em uma suposta dicotomia indivíduo-mundo, que sugere que os seres humanos seriam espectadores, e não recriadores, da realidade. Nessa visão, os indivíduos seriam portadores de uma consciência deficitária em relação a uma série de conteúdos. Prencher essa lacuna seria o trabalho do professor. Essa percepção do papel da escola e do próprio processo de construção do conhecimento pode ser identificada com o paradigma clássico – ou transmissivo – que foi dominante nos campos da Comunicação e da Ciência da Informação até o início da década de 1980. Podemos sintetizá-lo na fórmula proposta por Harold Lasswell, que acabou se constituindo em um marco desses estudos. Vickery apontava, nos anos 1970, a máxima de Lasswell como uma referência para a “compreensão científica da comunicação informativa”: 187


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Despindo o processo aos seus termos mais simples, Lasswell reconhece cinco aspectos chave para a comunicação: quem, diz o quê, em qual canal, a quem, com que efeito. Esses aspectos podem ser recolocados como os conceitos de fonte, mensagem, canal ou meio, receptor e resposta. Todos os fatores que podem interferir na ou distorcer a transferência da informação são classificados como ruído, e na tentativa de reforço dos pontos principais dá-se a repetição ou redundância. Outra variável é a direção da transferência, que pode ser de mão única, de A para B, ou interativa, com feedback de B para A (Vickery, 1973, p. 35, grifos do autor).

O pesquisador francês Louis Quéré (1991) chama o esquema caracterizado acima de modelo epistemológico de comunicação. O autor aponta que se trata de uma abordagem em que comunicação é considerada um processo de elaboração, difusão e recepção de representações do mundo real que estão no espírito de um sujeito epistemológico. Esse sujeito é monológico: dotado de estados internos e representações mentais, relaciona-se com os outros em uma postura de observação e de objetivação, produzindo índices que farão reconhecer suas intenções. Ele envia uma mensagem que informa certo conteúdo, com o objetivo de suscitar no destinatário representações ou ideias semelhantes àquelas que estão no seu espírito. Araújo (1997) aponta que o paradigma clássico da informação entende a comunicação como uma transmissão linear. O pesquisador discute uma das teorias assentadas nessa matriz conceitual: a Teoria Hipodérmica. Essa teoria postula que o indivíduo é direta e inevitavelmente atingido pelos meios de comunicação de massa, que exerceriam um papel onipotente. Tais meios manipulariam um indivíduo isolado em meio à massa. Ainda de acordo com Araújo, trata-se de uma abordagem em que as esferas de produção e de recepção de mensagens apresentamse separadas e distintas, e há uma intencionalidade predefinida pelos polos emissor e receptor, a partir de um mundo objetivo exterior aos sujeitos que comunicam. A essência é a ideia de transmissão e pressupõe a figura do receptor passivo. 188


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O pesquisador argentino Mario Kaplún defende que, em um contexto em que o ensino é percebido como um processo monológico, de transmissão unidirecional de mensagens de um emissor a um receptor, as TCIs acabam reduzidas a um papel instrumental: o de recursos tecnológicos usados em determinadas práticas de transmissão de conteúdos. Não há abertura a uma apropriação crítica e criativa de tais meios. O problema, avalia Kaplún, não é de infraestrutura tecnológica. O cerne da questão são as práticas de ensino que se dão no dia a dia. Mesmo que a escola seja equipada com os mais modernos equipamentos, se o seu cotidiano for marcado por práticas em que o aluno é convidado a memorizar e repetir um conhecimento pronto, o uso das TCIs também ocorrerá na perspectiva da passividade e da repetição.

Ensinar é problematizar: a crítica de mídia Autores como Certeau (2002), Hall (2003) e Martín-Barbero (2001) chamam a atenção para o fato de que o receptor da informação é um sujeito ativo. Estudos contemporâneos propõem uma ruptura com a fórmula linear e fechada – emissor/mensagem/receptor – e a percepção dos fenômenos comunicativos como processos abertos que são continuamente configurados e reconfigurados pela ação dos sujeitos envolvidos. A figura do receptor construtivo e ativo é central na análise que Certeau (1994) faz da esfera do consumo da informação. O autor nos fala de dois possíveis sentidos para o ato de consumir. O primeiro e mais comum sentido atribuído ao ato de consumo é a assimilação: ato de absorver, tornando-se semelhante àquilo que se absorve. Nessa primeira acepção, o consumidor é mero receptáculo, passivo, que, mecânica e acriticamente, incorpora os elementos que recebe. No entanto, podemos entender o ato de consumir em um segundo viés, como uma prática na qual o consumidor assume um papel ativo, apropriando-se do material que consome e o reinventando. Nas palavras de Certeau, trata-se do 189


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ato de “torná-lo [aquilo que é consumido] semelhante ao que se é, fazê-lo próprio, apropriar-se ou reapropriar-se dele” (Certeau, 1994, p. 261). O autor defende que, na esfera do consumo, “se esconde a atividade silenciosa, transgressora, irônica ou poética, de leitores (ou telespectadores) que sabem manter sua distância da privacidade e longe dos ‘mestres’” (Certeau, 1994, p. 268). Braga (2002) nos fala que a sociedade sempre gerou procedimentos críticos e interpretativos em relação a seus produtos simbólicos. São procedimentos que advêm das interações sociais que se dão em torno de tais produtos e acontecem também na dimensão dos meios de comunicação de massa. Na convivência dos diversos grupos com tais meios, é tecido um circuito social crítico ou um sistema crítico-interpretativo. O autor aponta que há diversas possibilidades de ações de retorno dos usuários em relação às mídias. Tais ações incluem desde aquelas que envolvem retorno indireto do usuário – como é o caso dos índices de audiência, pesquisas de opinião, estudos realizados pelos veículos – até os casos em que a interação com o veículo acontece de forma mais direta, como as seções de carta ao editor, os espaços de ombudsmen, os comitês de usuários e os fóruns de debate sobre as mídias. Braga adverte, contudo, que somente as ações de retorno não garantem a prática de uma crítica efetiva. Para ser eficaz, o sistema crítico-interpretativo construído pela sociedade precisa “agir positivamente”, “fornecendo bases, vocabulário e critérios para os usuários em seu esforço de seleção, interpretação e‘edição’ dos produtos com que se defrontam”(Braga, 2002, p. 33). Há que se buscar perspectivas para a construção da “autonomia interpretativa”dos sujeitos. Essa autonomia diz respeito não só à aquisição de competências para se apropriar criticamente dos materiais simbólicos, mas também à capacidade de selecionar e editar, de acordo com critérios próprios, aquilo que é de seu interesse. Braga busca superar, assim, a tradicional dicotomia entre apocalípticos e integrados.2 O que está em jogo não é uma oposição entre Tal distinção foi cunhada por Umberto Eco no clássico Apocalípticos e integrados (1976), que apresenta uma clivagem entre os críticos e os partidários da cultura de

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um polo maniqueísta que demoniza a mídia e outro, ingênuo, que a redime. A proposta de formação da autonomia interpretativa passa por outro viés, que não pretende ensinar as pessoas a se defender da comunicação massiva ou interpretar a mídia corretamente. Ao contrário, a autonomia interpretativa está associada à capacidade do usuário de, tendo em vista suas múltiplas referências culturais, perceber o produto midiático em seu contexto, apropriando-se dele e ressignificando-o. A formação de tal autonomia, ainda segundo Braga, passa necessariamente pela esfera da troca e do debate: pelas reflexões, configurações e reconfiguração de pontos de vista que emergem em espaços de discussão. Faz-se necessário problematizar, em arenas de debate coletivo, as informações veiculadas pela mídia, ao invés de julgar os meios a partir do conhecimento pronto de algum especialista. O espaço do debate é marcado pela diversidade, pela provisoriedade das soluções, pelas contínuas revisões. É sempre inacabado, agonístico: “a agonística (de agón - luta, conflito, combate codificado) refere-se à busca do conhecimento com base na polêmica, no livre debate de idéias, no abandono do argumento de autoridade” (Braga, 2004, p. 78). E é nessa esfera agonística que se faz possível desenvolver as competências interpretativas das pessoas. A escola pode – e deve – ser agente de desenvolvimento de tais competências, criando fóruns de massa. Os apocalípticos a veem como uma demonstração da crise da própria cultura. Para eles, a indústria cultural é marcada pela homogeneização e pela utilização de fórmulas que não demandam esforço do receptor. Os produtos assim constituídos (denominados como cultura inferior) levariam à alienação, ao conformismo e à narcotização das consciências. A finalidade dessa indústria consistiria na perpetuação do capitalismo, no controle das massas atomizadas e na planificação das subjetividades. Os integrados, por sua vez, chamam a atenção para a presença generalizada da mídia na sociedade contemporânea, percebendo-a como uma possibilidade de democratização da própria cultura. De acordo com essa visão, a densidade informacional da contemporaneidade pode se transformar em algo intelectualmente produtivo, sendo que a variedade cultural e estética pode engendrar maior participação social. Nesse sentido, a indústria cultural não é conservadora, como defendem os apocalípticos; ela pode criar novas linguagens. Para discussões sobre a clivagem apresentada por Eco, ver Dumont (1998) e Rocha (1995).

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discussão que ampliem e aprofundem os circuitos de debate social em torno das informações veiculadas pelos meios. Práticas de debate envolvendo produtos midiáticos estão cada vez mais presentes nas escolas. São práticas de simples implementação: basta que todos vejam, leiam ou assistam uma determinada produção juntos e depois se coloquem a discuti-la. Em geral, o professor, um aluno ou um grupo de alunos escolhe um tema e elege uma peça – como filme, blog, matéria de jornal – relacionada a tal tema. A partir daí, abre-se a discussão. Uma atividade nesses moldes pode ser, por sua simplicidade, uma excelente oportunidade de incremento dos processos educativos. Afinal, ela possibilita a experimentação de aspectos essenciais a estes processos: o diálogo, a argumentação, a convivência entre as diferenças, a percepção do conhecimento em sua dimensão processual e agonística.

Ensinar é criar: o uso expressivo dos meios O atual contexto cultural e tecnológico coloca estudantes e professores diante de grandes desafios: a questão do acesso efetivo aos processos de expressão e troca nos diversificados espaços midiáticos; a necessidade de fomentar leituras abrangentes e críticas dos meios de produção e circulação de sentidos presentes no cotidiano; a inserção nos circuitos de diálogo em rede que são tecidos no universo da comunicação telemática. Esses desafios estão colocados à instituição escolar, que precisa estabelecer uma relação crítico-produtiva-participativa com os novos meios e linguagens. Tais desafios dizem respeito ao processo de construção da cidadania autônoma e participativa. Afinal, “é necessário que os alunos se posicionem e se façam representar, considerando sua capacidade de produção simbólica nas múltiplas linguagens, o que é essencial para se apropriarem das diversas formas de diálogo do atual contexto”(Caboclo; Trindade, 1998, p. 19). Trata-se de perceber o educando como um sujeito autônomo e criativo e a educação como prática da liberdade, como bem defenderam Paulo Freire e Mario Kaplún. 192


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Afinal, [...] nada se aprende – ainda que o pressuposto seja que a educação consista em aprender – por transmissão, mas sim por elaboração própria e pessoal do educando. É só participando, envolvendo-se, fazendo-se perguntas e buscando respostas, que se chega ao conhecimento. Se adquire e se compreende o que se re-cria, o que se re-inventa e não simplesmente o que se vê ou escuta. A educação não é um conteúdo que se introduz na mente do educando, mas sim um processo em que este se envolve ativamente (Kaplún, 1983, p. 26-27).

Estes elementos – autonomia, criatividade e participação efetiva na construção do conhecimento – são a base para fomentar um uso expressivo das TCIs no contexto escolar. E essa ideia está diretamente ligada a um conceito para o qual eu gostaria de chamar a atenção: o conceito de acesso público à comunicação. Acessibilidade, segundo o dicionário, significa a facilitação da aproximação a, da interação com e da utilização de algo. Acesso público à comunicação diz respeito, portanto, à proposta de que os processos comunicativos possibilitados pelos meios tecnológicos sejam disponibilizados ao público em geral. Essa ideia traz consigo três premissas que também quero destacar. A primeira é a do acesso à mídia como direito humano, universal. A segunda é a de que um meio de comunicação não é um aparato situado entre o binômio emissor-receptores, mas sim um espaço público para as pessoas e os grupos se expressarem e dialogarem. A terceira premissa deriva das duas anteriores: as TCIs não se restringem aos equipamentos que tornam a comunicação possível. Os equipamentos não estão no centro – no centro estão as pessoas. Nessa direção, ao falar de “uso expressivo das TCIs”, estou me referindo a processos de construção de meios de comunicação pela comunidade escolar3 para estabelecer diálogos sobre 3

Geralmente, as experiências escolares envolvem diretamente professores e alunos, mas esse universo pode ser ampliado, incorporando funcionários, familiares,

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temáticas que são pertinentes a essa comunidade. Jornal, vídeo, site, blog, programa de rádio: hoje, proliferam experiências de produção de mídia nas escolas. Chamo a atenção para o fato de que o decisivo é o processo de construção dessas mídias. Há que se abrir espaço para as propostas participativas, a perspectiva da transdisciplinaridade e a busca da invenção. Uma proposta de mídia participativa na escola implica, num primeiro momento, um processo coletivo de definição de temáticas e dos próprios recursos midiáticos a serem utilizados. É fundamental que os temas trabalhados sejam escolhidos a partir do que os sujeitos envolvidos consideram relevante dentro dos processos educativos engendrados no dia a dia da escola. Da mesma forma, esses sujeitos devem discutir e estabelecer um consenso em relação a qual mídia é a mais adequada para gerar diálogos sobre o(s) tema(s) escolhido(s). Num segundo momento, no processo da criação da mídia, a participação de todos também é decisiva, de acordo com as habilidades e interesses de cada um. A perspectiva da transdisciplinaridade implica aproveitar espaços e processos de produção midiática para desenvolver experiências que não sejam compartimentadas dentro da grade curricular da escola. Isso permite romper, parcialmente, com os limites das disciplinas, promovendo uma produção coletiva de conhecimentos que possibilite a integração entre sujeitos e grupos diversificados. Processos participativos e transdisciplinares de criação de mídia na escola certamente possibilitam outra conquista fundamental em termos de expressividade: a construção de espaços de invenção. Segundo o dicionário, inventar pode ser várias coisas: criar, descobrir algo novo, imaginar algo irreal, fantasiar. Já o poeta Manoel de Barros nos convida a “desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até população, instituições do entorno, outras instituições de ensino e mesmo outros variados sujeitos e grupos com os quais a escola se relaciona. Um exemplo desse tipo de prática pode ser conferido em minha dissertação de mestrado (LIMA, 2004).

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que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que não tenham idioma”(Barros, 1994, p. 11). Quando falo da importância da invenção, refiro-me a todos esses elementos: a abertura à imaginação e à descoberta, e à vivência de processos criativos em que haja liberdade inclusive para a desinvenção. A perspectiva é a da experimentação. Experimentar é provar o gosto das possibilidades dos meios e tecnologias do fazer midiático. Na medida em que os participantes provam o gosto e descobrem o sabor do ato de criar, o processo torna-se frequentemente experimental no sentido de extrapolar os limites das linguagens e modos de fazer estabelecidos pelas mídias convencionais, reinventando-os. É assim que, muitas vezes, um olhar poético, crítico e indagador emerge nas produções midiáticas elaboradas nas escolas. Acredito, enfim, que, nos processos de uso expressivo das TCIs, a grande conquista é a geração de oportunidades para que os educandos redimensionem seu olhar sobre o universo da comunicação midiática e sobre o próprio processo de construção do conhecimento. Para além de elaborar uma crítica a determinados produtos de mídia, o que o sujeito constrói ao se colocar como autor é uma percepção dos processos de produção de discursos. De uma visão dos meios de comunicação como veículos neutros que apenas transmitem determinados conteúdos, passa-se a um olhar que percebe tais meios como espaços públicos nos quais os sentidos estão em permanente construção e disputa. Além disso, produzir conhecimento sobre um tema, ao criar discursos midiáticos para abordá-lo, é uma experiência que implica uma relação ativa com o conhecimento. Ao definir e estabelecer consenso acerca de uma pauta ou um roteiro, realizar um trabalho de campo para reunir informações e materiais ligados a tal tema e, finalmente, criar uma narrativa midiática sobre ele, o grupo que está às voltas com tal tarefa envolve-se em um processo de debate, pesquisa e sistematização. A mídia mostra-se, assim, como um espaço de efetiva construção coletiva de conhecimento. 195


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Envolver-se nesse tipo de experiência é fundamental para o educando, uma vez que a postura ativa em relação ao conhecimento é, a meu ver, o elemento mais importante do processo educativo. Se acredito que o conhecimento é algo pronto e acabado, a ser assimilado e acumulado, vou sempre esperar que ele me seja transmitido e acreditar que há um jeito certo e um jeito errado de perceber o mundo e de responder aos desafios dele. Em contrapartida, se acredito que o conhecimento é um processo contínuo de buscar respostas (sempre provisórias) às minhas indagações, coloco-me em busca, indagando e assumindo o risco de criar (com base nos elementos que pesquisei e sistematizei) minhas próprias respostas aos desafios do mundo. Essa é uma diferença decisiva.

Educação midiática: um convite a “conhecer o conhecer” Uso ilustrativo, uso para a crítica de mídia e uso expressivo das TCIs: a incorporação das mídias às práticas educativas escolares certamente não se restringe a essas três possibilidades. Tampouco acredito que esses usos são excludentes. Percebo que devem ser combinados no dia a dia da escola, criando um cotidiano de práticas diversificadas, que possibilitem a construção de um olhar diferente sobre o universo dos meios e das tecnologias da comunicação, além de fazer desses meios espaços de construção coletiva de conhecimentos. É nisso que, a meu ver, consiste a prática da educação midiática na escola. Há que se buscar abrir espaço para que experiências as mais variadas surjam. Para que palavras como “meio”, “ferramenta”, “instrumento”cedam lugar a outras como “processos”, “debates”, “usos”, “apropriações”. Afinal, não existe um conhecimento separado dos sujeitos que o constroem. Todos nós conhecemos o mundo ao vivê-lo. Acredito que é de suma importância pensar a educação, a escola e os usos para as TCIS numa perspectiva que incorpore essa percepção do conhecimento em sua dimensão sempre processual. Por isso, deixo aqui um convite desafiador, feito pelo biólogo Humberto Maturana: o convite a conhecer o conhecer. 196


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Nós pertencemos a uma cultura, a uma tradição de pensamento filosófico na qual a pergunta fundamental tem sido a pergunta pelo ser, a busca da identidade do ser, de sua essência [...] O que proponho é trocarmos a pergunta pelo ser pela pergunta pelo fazer, questionando: como fazemos o que fazemos? [...] como conhecemos? (Maturana, 2004c, n/p).

Para Maturana, é fundamental que a discussão sobre o conhecer abandone o pressuposto segundo o qual o ser que conhece é instruído por informações advindas do mundo externo. O autor propõe uma mudança de perspectiva, a partir da “pergunta pelo observar do observador”(Maturana, 1997, p. 21) e nos apresenta a seguinte formulação: “tudo o que é dito, é dito por um observador a outro observador, que pode ser ele mesmo”(Maturana, 1997, p. 34). Com isso, o autor abandona a ideia de representação do mundo e lança as bases para a Biologia do Conhecer. Sua proposta é construir uma compreensão do fundamento biológico do vivo. Tal compreensão nasce do conceito de autopoiese. Maturana e Varela (1995, p. 92) afirmam que as unidades autopoiéticas são a base de sua fenomenologia biológica. A autopoiese, termo que reúne as noções gregas de auto (própria) e poiesis (produção), refere-se à dinâmica do existir dos seres vivos – máquinas homeostáticas4 que se caracterizam por, literalmente, produzir a si mesmas, continuamente. Elas [...] se constituem e se delimitam como redes fechadas de produção de seus componentes a partir de seus componentes 4

O termo “homeostase”, em sua acepção nas ciências biológicas, é tradicionalmente utilizado para designar o mecanismo de equilíbrio entre a célula e o meio. A célula “desempenha um grande número de funções e deve, para isso, ter à sua disposição apreciável número de substâncias, ao mesmo tempo em que elimina outras. Dessa forma, certas substâncias devem entrar em seu interior, enquanto que outras devem ser rejeitadas. A membrana celular é a estrutura que possibilita esse intercâmbio de substâncias; ela seleciona aquelas que devem entrar e aquelas que devem sair, salvaguardando, assim, o equilíbrio essencial à vida” (Enciclopédia Êxitus de Ciência e Tecnologia, 1982, v. 6, grifos nossos). Nota-se aí o elemento constitutivo do conceito de “fechamento operacional” (a ser discutido mais adiante): é o sistema vivo que determina o que aceita como perturbação do meio.

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e de substâncias que retiram do meio: os seres vivos são verdadeiros redemoinhos de produção de componentes, uma vez que as substâncias que retiram do meio, ou que vertem nele, participam transitoriamente da ininterrupta renovação de componentes que determina seu contínuo revolver produtivo. É essa condição de contínua produção de si mesmos, através da contínua produção e renovação de seus componentes, o que caracteriza os seres vivos, e o que se perde com o fenômeno da morte. É a essa condição a que me refiro ao dizer que os seres vivos são sistemas autopoiéticos, e que estão vivos somente enquanto estão em autopoiese (Maturana, 1989, p. 197, grifos do autor).

O ser vivo se recria a cada instante, em interação permanente com o meio. Organismo e meio se modificam reciprocamente todo o tempo, num continuum de perturbações recíprocas. É fundamental prestar atenção ao fato de que um não determina as mudanças no outro. O próprio organismo e o próprio meio definem de maneira autopoiética os elementos que constituem perturbações e geram mudanças. Dessa percepção advém uma nova forma de olhar para o conhecer humano e emerge o tão conhecido aforismo da Biologia do Conhecer: conhecer é viver, viver é conhecer. O autor aponta ainda que os seres humanos operam num domínio que lhes é peculiar: o domínio da linguagem. Trata-se de um sistema de orientações de condutas consensuais, que tem uma especificidade decisiva na definição do humano: a recursividade. A linguagem permite, a quem nela opera, descrever-se a si mesmo e às circunstâncias do seu descrever. Maturana ressalta que “a linguagem não está no cérebro ou no sistema nervoso, mas sim no domínio das coerências mútuas entre os organismos. Quando o observador observa que isso acontece, e que as distinções realizadas aqui podem ser recursivas, ou seja, podem ser distinções de distinções nesse domínio, então nós temos uma linguagem”(Maturana, 1997, p. 66). A linguagem institui uma estrutura conceitual, um mundo de descrições no qual o ser humano flui. Assim, podemos afirmar que o homem 198


As TCIs na escola: da recepção à expressão

existe na linguagem e que é nesse existir na linguagem que ele realiza as operações de distinção, nas quais “a boca dá a vida dando nomes” (Magro, 2004, n/p). Ao destacar o homem como responsável pela construção do mundo por meio de seu operar na linguagem, Maturana e Varela já se davam conta, em 1970, da profunda implicação ética de sua teoria: Este livro [A árvore do conhecimento] tem não apenas o propósito de ser uma pesquisa científica, mas também o de nos oferecer uma compreensão do ser humano na dinâmica social e nos libertar de uma cegueira fundamental: a de não nos darmos conta de que só temos o mundo que criamos com o outro [...] Afirmamos que no cerne das dificuldades do homem moderno está seu desconhecimento do conhecer (Maturana; Varela, 1995, p. 264).

A Biologia do Conhecer pode fornecer importantes elementos para uma reflexão sobre os usos das TCIs no contexto escolar. O elemento decisivo dessa reflexão está ligado ao sentido da palavra conhecimento. Se acredito que não há um conhecimento externo ao sujeito que conhece, que conhecimento é algo que acontece na relação entre tal sujeito e seu meio, deixo de acreditar que há uma representação do mundo. Dessa forma, ao conceber uma atividade que envolva as mídias na escola, vou trabalhar tais mídias como espaços relacionais, e não como veículos para a difusão de representações de mundo mais adequadas aos alunos. Criar uma mídia mostra-se, assim, como o desafio de construir um espaço público midiático: um espaço voltado à expressão e à tessitura de diálogos entre os sujeitos da comunidade escolar. Na interseção entre os sujeitos e esse meio – o espaço público midiático –, cria-se uma dinâmica de interações que tem uma fluência própria: uma linguagem singular é criada e recriada à medida que os sujeitos se expressam e dialogam. Assim, não existe um jeito certo, prescrito, de produzir ou de dialogar com a mídia: o jeito de se expressar e de dialogar emerge na dinâmica relacional na qual a expressão e o diálogo se constroem. 199


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CAPÍTULO X

O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala1 Adriana Fresquet

Considero uma sorte, muito rara na vida, receber a proposta de colocar em prática as idéias surgidas em mais de vinte anos de reflexão de experiências e de trocas numa área tão ingrata quanto a da pedagogia, em que todo mundo sempre recomeça do zero, e em que os ganhos da experiência se capitalizam, em geral, muito pouco, sobretudo num campo minoritário como o do cinema. Bergala, 2008, p. 11

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Embora as referências sejam múltiplas, o diálogo que estabeleço neste trabalho está travado especialmente com diversos tópicos do livro L’hipothèse cinéma. Petit traité de transmission du cinema à l’école et ailleurs, publicado em 2002, em Paris por Alain Bergala. As reflexões do trabalho também estão impregnadas pelas falas proferidas por Bergala no II Congresso Internacional de Cinema e Educação da UFRJ. No evento, além de ministrar duas conferências, Bergala fez a abertura da I Mostra FE/UFRJ no Museu de Arte Moderna (Retrospectiva Kiarostami-Erice: outras correspondências) e apresentou a I Mostra Mirim de Minuto Lumière (na Cinemateca do MAM). Na ocasião, respondeu, com simplicidade e cordialidade, a todas as perguntas do público.

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A hipótese-cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema

dentro e fora da escola é uma ousada e poética proposta para a educação. De sua leitura surge a necessidade de levantar algumas questões e a vontade de dar a conhecer e problematizar alguns tópicos da obra de Bergala. Um artista (cineasta, teórico, crítico, escritor e professor) abordando questões de educação é sempre uma contribuição, aliás, uma iluminação. A hipótese do cinema como arte na escola consiste em entendê-lo como alteridade. Nada mais estrangeiro do que a arte no contexto escolar. Arte não obedece, não repete, não aceita sem questionar. Arte reclama, desconstrói, resiste com certa irreverência. Tome-se o cuidado de ler arte e não ensino da arte. Esta é característica principal do projeto de arte de Jack Lang, ministro da Educação na França, desenvolvido no ano 2000. Alain Bergala, conselheiro desse projeto, concebe o cinema na escola como um outro, um estrangeiro, porque leva para tal contexto algo que tradicionalmente não é próprio dele: a criação. Trata-se de uma sorte de avesso, de outra leitura do que se faz pedagogicamente com as atividades ligadas às artes. As novas tecnologias vêm produzindo uma pequena, embora significativa, revolução nas relações da escola com o cinema. A leveza e a simplicidade de operação de equipamentos e programas de edição, cada vez mais acessíveis em custo e uso, facilitam que o cinema penetre o espaço escolar a partir de diversas iniciativas de produção simples: curta-metragens de animação e ficção; documentários; cinema-teatro; pequenas filmagens com celulares ou câmeras digitais de fotografia, para citar alguns exemplos. Essas produções pretendem aproximar, de um modo cada vez mais contundente, a experiência do cinema e a educação formal. Se tentarmos relacionar essas práticas com algumas teorias do cinema que o concebem como substituto do olhar, arte, linguagem, escrita, pensamento, ou manifestação de afeto e simbolização do desejo (Aumont; Marie, 2003), identificamos que a perspectiva do cinema como arte mostra-se a mais ausente no cenário escolar. Dessa ausência, que simultaneamente se constitui em desejo, surge a necessidade de aprofundar o 204


O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

diálogo com a leitura que Alain Bergala faz do cinema na escola. Interessa-nos descobrir e questionar as possibilidades que a escola abre para o cinema, para a infância, para esse encontro.

Quem é Alain Bergala? [...] tenho o sentimento de ter encontrado a energia para iniciar esse “plano cinema” pensando, antes de tudo, nas crianças que devem se encontrar hoje, mais ou menos na mesma situação em que eu estava na infância: deserdados, distantes da cultura, à espera de uma improvável salvação, com poucas chances sociais de se dar bem na escola e não dispondo de um objeto preferido ao qual se apegar. [...] No meu romance pessoal, fui salvo duas vezes: pela escola e pelo cinema (Bergala, 2008, p. 13).

Segundo Mario Alves Coutinho (2007), quando Bergala era ainda um jovem estudante em Aix-en-Provence, em 1965, ele foi marcado por uma experiência determinante na sua vida: “Sabendo que um cineasta, chamado Godard, iria filmar alguns planos numa ilha, próximo de onde morava, ele (Bergala) pediu a um amigo sua câmera de 16 milímetros e rumou para o local, no dia da filmagem” (Coutinho, 2007, p. 86). Com medo de ser descoberto, solicitou a um assistente do diretor autorização para filmar. Godard autorizou com a condição de que não fumasse. Embora o episódio tenha ocorrido em sua infância, foi Godard quem colocou o cinema no cerne da vida profissional de Bergala. Alain Bergala é cineasta e professor de cinema em Sorbonne Nouvelle, Paris III; Lyon II e Rennes II. É autor de filmes de ficção e documentários, entre os quais se destacam Falsos fugitivos (1982), Cesare Pavese (1995), Fernand Leger, os motivos de uma vida (1997) e Les fioretti de Pier Paolo Pasolini (1997). Organizou vários cadernos ou fichas pedagógicas sobre filmes em École et Cinéma, organismo que promove atividades pedagógicas e eventos ligados ao cinema. Além disso, é diretor de L’Eden Cinéma, uma coleção de DVDs livres de direitos para difusão em sala de aula. 205


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Autor de vários livros e artigos sobre cinema, Alain Bergala foi redator e editor da renomada publicação Cahiers du Cinéma, na qual começou como colaborador. Ele é particularmente atraído por filmes cujos pequenos heróis concentram-se em um objeto; uma obsessão para se salvar em um mundo no qual a única oportunidade de existir passa por um resistir impulsionado por uma paixão pessoal. Esse é o caso dos filmes de Abbas Kiarostami, diretor que tem despertado seus interesses de pesquisa (Bergala, 2004). Bergala se refere à educação e ao cinema como duas formas de salvação pessoal, fundamentais à sua própria constituição. Cronologicamente a primeira foi pedagógica: “A escola, em primeiro lugar, me salvou de um destino de aldeão no qual nunca teria tido acesso nem à vida nem à cultura de adulto que acabariam sendo as minhas”(Bergala, 2008, p. 13). Um professor insistiu fortemente com a mãe dele para que continuasse com os estudos de ensino médio, embora na época a educação só fosse obrigatória até os 12 anos. A arte cinematográfica também exerceu função messiânica. “O cinema entrou na minha vida, no coração de uma vida triste e angustiada, como algo que logo soube seria a minha tábua de salvação”(Bergala, 2008, p. 14). No seu povoado natal, havia três salas de cinema. Cada domingo à tarde, ele podia assistir a um filme. Foi naquelas tardes que o cinema se constituiu definitivamente na sua opção de vida, permitindo-lhe rejeitar a proposta de vida de seu pai, centrada na caça, na pesca e na vida de campo. Assim, na sua biografia, encontramos a educação e o cinema como importantes desvios constitutivos, no sentido kafkiano da expressão: “Viver é desviar-se constantemente. Desviar-se de tal maneira que a confusão nos impede inclusive saber de que nos estamos desviando” (Kafka, 1979, p. 94). De fato, a proposta de Bergala também consiste numa sorte de desvio no que diz respeito à introdução dessa arte na escola. Inspirado na sua própria vida, o cineasta identifica esse desvio como a emergência de alguma forma de diferença na constante repetição da educação. 206


O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

A experiência do cinema em escolas francesas: um encontro do cinema com a infância Eu chegaria quase a dizer que o cinema me salvou a vida. Daí eu não poder falar dele intelectualmente. Cheguei a usar a palavra “droga”, antes de ela entrar na moda... Se me lancei no cinema provavelmente é porque na infância, isto é, durante os anos da Ocupação, minha vida não me satisfazia. 1942 é uma data importante para mim: foi quando completei dez anos e comecei a assistir muitos filmes. Dos dez aos dezenove anos, mergulhei de corpo e alma nos filmes. E não consigo analisar isso de maneira distanciada (Truffaut, 1990, p. 19).

O espírito das memórias da infância de François Truffaut permeia os textos e a proposta de Bergala. Há uma confiança a priori no sucesso desse encontro, em particular no cenário escolar. Em junho de 2000, Jack Lang, ministro de educação da França, organizou um grupo de consultores para colocar em marcha um projeto de educação artística e ação cultural na educação nacional, chamado Mission. O projeto teve o propósito de desenvolver a política definida no “Plano de cinco anos”para o desenvolvimento das artes e da cultura na escola. Quando assumiu a consultoria para o ministério, Alain Bergala já desenvolvia práticas e reflexões sobre o cinema em três instâncias: (a) na universidade, onde havia muitos anos analisava filmes com foco no ato de criação; (b) na École et cinéma, em que tinha lançado alguns cadernos pedagógicos sobre seus filmes preferidos; e (c) na Cinemateca Francesa, onde participava, desde 1995, do projeto “Cinema: cem anos de juventude”, que poderia se definir como uma experiência de laboratório de vanguarda pedagógica. Vale esclarecer que na França o ensino divide-se em quarto grandes níveis: école maternelle (entre os 2 e os 6 anos); école élémentaire (entre os 6 e os 11 anos); collège (entre os 11 e os 15 207


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anos) e lycée (entre os 15 e os 18 anos). Hoje existe um programa para assistir a filmes em salas comerciais e em sala de aula com coleções selecionadas de DVDs para todos os níveis de ensino. A proposta de Bergala permitiu que o cinema entrasse nas escolas públicas da França com uma marca diferenciada: pela primeira vez, ele assumiu nada menos que o lugar da arte. Para Bergala (2005, 2008), não assistir a filmes de qualidade durante a infância significa perder uma possibilidade que não terá como acontecer com a mesma intensidade mais tarde. É como se as impressões produzidas nos primeiros anos pelo cinema deixassem uma marca inesquecível na memória afetiva pessoal. Os filmes achados tarde demais “permanecerão parcialmente não revelados” (Bergala, 2008, p. 61). Implicitamente, o cineasta também nos convoca para acordar a criança no adulto espectador, no professor, no artista. O proposto encontro do cinema com a infância no contexto escolar traz embutida,uma tensão ou um paradoxo que legitima sua força. Por um lado, a escola se apresenta como o lugar tradicional do ensino, da regra e da transmissão de cultura num formato padronizado: nada mais oposto às possibilidades de aprender cinema como arte, como exceção. Por outro, contudo, a escola aparece como lugar garantido de acesso coletivo a um cinema que foge minimamente do consumo hegemônico. Segundo Bergala (2008, p. 32): “Tudo o que a sociedade civil propõe à maioria das crianças, são mercadorias culturais rapidamente consumidas, rapidamente perecíveis e socialmente ‘obrigatórias’”. A distinção entre educação artística e ensino artístico, levou-o a pensar uma pedagogia do cinema que não sacrificasse o objeto cinema. Trata-se de uma empreitada de conflito e coragem, que pretende preservar a força perturbadora da criação, num contexto – a escola – que historicamente tem agido como agente normalizador. A dificuldade intrínseca de ensinar cinema na escola, em particular, no espírito do projeto La Mission, remete à resposta de Orson Welles a Peter Bogdanovich, quando interrogado sobre o assunto. Para Welles, ensinar uma arte não 208


O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

é fácil. Ele afirma ser possível colocar um monte de poemas na cabeça de uma jovem, sem que isso faça dela uma poeta. Para chegar à experiência poética, é necessário muito talento do professor. Embora seja cético quanto à viabilidade de ensinar a apreciar o cinema, Welles frisa que há uma chance que reside na capacidade do professor de comunicar entusiasmo, estimulando o aluno a fazer suas próprias experiências (Bogdanovich, 1992).

A (im)possibilidade do cinema na escola Amo o cinema desde 1902. Tinha oito anos e estava internado numa espécie de prisão de luxo, ornamentada com o nome de colégio. Numa manhã de domingo vimos chegar no locutório um homem do tipo “fotógrafo”, que carregava um estranho equipamento. Era um cinematógrafo. Ele usava uma gravata larga e tinha uma barba pontuda. Ficamos observando-o durante mais de uma hora [...]. Mas, as crianças, como os selvagens, habituam-se depressa ao cinema e depois de alguns instantes eu já podia compreender tudo (Renoir, 1990, p. 42-43).

Do paradoxo, do contraste, da (im)possibilidade da aproximação cinema-escola, instalam-se desafios. O primeiro consiste no que Bergala afirma ser o melhor que a escola pode fazer pelo cinema: falar dos filmes como “obras de arte e de cultura”(2008, p. 46). Esse desafio pressupõe superar a tradição do cinema como linguagem, predominante no contexto escolar. Para Bergala, a predominância linguageira do cinema se justifica por razões históricas (coincidência do momento hegemônico das ciências da linguagem com o auge da ideia do cinema na escola) e ideológicas (formar o espírito crítico das crianças a partir de circuitos de análise do cinema, para abordar criticamente a mídia em geral). Nem a Linguística nem a ideologia defensiva, contudo, contribuem para uma aproximação sensível do cinema como arte. Bergala pretende deslocar o foco da leitura analítica e da crítica dos filmes para uma leitura criativa, que coloque o espectador no lugar do autor; que o leve a acompanhar na sua imaginação 209


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as emoções de todo o processo criativo, suas escolhas e suas incertezas. Nesse faz de conta, o espectador pode compartilhar aspectos não racionais, mais intuitivos e mais sensíveis da vivência do artista, que são fundamentais para quem pretende aprender uma arte. Outro grande desafio para o cineasta e professor francês seria a superação da ilusão pedagógica de acreditar em um processo interpretativo estruturado em três etapas: (1) análise de um plano ou sequência; (2) valorização do filme a partir da sequência; (3) formação do juízo fundado na análise. Isso não procede. A esse formato clássico, adotado inclusive em universidades, Bergala (2000, 2008) contrapõe uma proposta que busca fomentar mais autonomia de quem aprende, substituindo a explicação pela exposição a muitos e diversos (bons) filmes. Procura fomentar, assim, a construção progressiva de algo como uma cultura cinematográfica. Para que isso aconteça, é fundamental o papel desenvolvido pelo mediador, que auxiliará a fazer pontes, a comparar filmes, trechos e texturas, aguçando os sentidos para a percepção de sutilezas. Rancière (2002), em O mestre ignorante: cinco lições sobre emancipação intelectual, critica fortemente a explicação como uma prática que subestima a capacidade cognitiva daquele que aprende, pressupondo alguma incapacidade de apropriação pessoal do conhecimento. Em perfeita sintonia, Bergala aposta na sucessão de uma exposição contínua a bons filmes como uma estratégia sólida e não paternalista de formação do gosto. A distinção entre filmes bons e ruins aparece em A hipótesecinema, embora Bergala não aprofunde a discussão nem apresente seus limites. Caberia, pois, perguntar: O que são bons filmes? Afirmar a existência de bons filmes significa listar também os maus filmes? Podemos formar o gosto? Entendo que a proposta de Bergala pretende marcar um estilo. Todo estilo traz, etimologicamente, o corte até definir aquilo que se quer. Nesse caso, interpreto que a concepção de bons filmes de Bergala pretende fugir da indústria cultural e propor um cinema alternativo, que não roda no circuito comercial. Sua proposta 210


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envolve um mergulho nos clássicos da história do cinema e se aventura pelos filmes mais recentes que oferecem pontos de vista incomuns. Le point de vue (2007) é um exemplo nítido dessa aposta. Trata-se de um dos DVDs da coleção L’Eden. Nele, Bergala realiza uma viagem não cronológica pela história do cinema, através da edição de fragmentos articulados por diferentes pontos de vista. Algo assim como 51 encaminhamentos de continuidade/des-continuidade de estratos para abordar pontos de vista desde vários ângulos (históricos e linguísticos). Esse trabalho levou mais de cinco anos de busca, seleção e organização de trechos de filmes, para facilitar uma aprendizagem sofisticada e articulada entre teoria, prática e história. Ainda sem respostas para a questão sobre a definição dos bons filmes, ocorre-me abordar uma possível aproximação entre o bom e o belo. Isto é, proponho ao leitor pensar ou ensaiar uma tomada de posição a partir da reflexão de Charles Baudelaire (1997) sobre a beleza: O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento será indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha esses dois elementos (Baudelaire, 1997, p. 11).

Num gesto de ousada interpretação, sinto que essa dupla constituição atravessa o estilo dos bons filmes. Algo de eterno e de circunstancial do cinema emerge na lista de Bergala dos “Cem filmes para uma cultura alternativa” (2008, p. 91). Observe-se que esse gesto não deve significar uma invasão das escolhas das crianças ou adolescentes com comentários pejorativos ou censuras. Simplesmente pretende-se oferecer um leque amplo de outras possibilidades, que amplie o repertório 211


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das crianças a partir do cinema que não se vê nos shopping centers. A premissa que alicerça a proposta é que “o gosto só pode ser formado pela acumulação de cultura que requer tempo e memória” (Bergala, 2008, p. 100). Nesse sentido, é fundamental a formação do gosto do professor, seus hábitos de leitura, sua cultura e seu gosto pelas artes. Bergala almeja que todo professor se torne um bom passador, referindo-se ao conceito proposto pelo crítico de cinema Serge Daney.2 Faço questão de observar aqui – já que falo de Daney, que “inventou”o termo nessa acepção de agente de transmissão – que a bela palavra “passador” [em francês, passeur] tem sido utilizada de modo indiscriminado e pouco adequado. O passeur é alguém que dá muito de si, que acompanha num barco ou na montanha, aqueles que ele deve conduzir e “fazer passar”, correndo os mesmos riscos que as pessoas pelas quais se torna provisoriamente responsável (Bergala, 2008, p. 57).

Essa definição poética e profunda nos mostra uma forma precisa de formar o gosto, “correndo o risco” de transmitir o próprio gosto, que é justamente a única possibilidade do “entusiasmo comunicativo” a que referia Orson Welles. Oferecer grupos de filmes (diversificados no que concerne a gêneros e épocas), selecionados por alguém cuja experiência e cultura cinematográficas sejam reconhecidas na comunidade escolar, constitui uma possibilidade de encontro. Sabemos que o encontro com o cinema é sempre pessoal, íntimo, mas a possibilidade de oferecê-lo coletivamente no contexto escolar amplia e diversifica as formas que esse encontro Em uma entrevista realizada por Pedro Mexia para o Ministério de Cultura, publicada no “Caderno de Artes” do Diário de Notícias, de 26 mar. 2005, Daney cunhou o célebre conceito de “cine-filho” (cine-fils): alguém que é literalmente filho do cinema, porque no cinema projeta (e vê projetado) o seu filme pessoal, a sua aprendizagem, o seu espelho, o seu gosto, a sua melancolia. Nela cita a magnífica frase de Jean Louis Schefer sobre as imagens que “viram a nossa infância” e confirma que os filmes são indissociáveis da nossa biografia.

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pode ter. A vivência de assistir a filmes em salas de cinema constitui uma experiência coletiva muda, afirma Bergala (2008). Sua força reside na simultaneidade mágica de ser simultaneamente individual e coletiva. Existem muitas ONGs, muitas instituições públicas e instituições privadas que organizam atividades interessantes nessa articulação entre escola e cinema não comercial. Muitas dessas experiências favorecem o diálogo com os próprios cineastas, atores e roteiristas, abrindo o cinema pelo avesso e revelando outras formas de encontros e análises. Tais experiências configuram-se como uma grande chance para que a escola se transforme em espaço da diversificação do gosto e da alteridade, distanciando-se do padrão (quase) obrigatório que a globalização hegemônica estabelece. A hipótese: um encontro com a alteridade Jean-Luc Godard, no auto-retrato cinematográfico intitulado J-L G/J-L G, sussurra: “Pois existe a regra e existe a exceção. Existe a cultura, que é regra, e existe a exceção, que é a arte. Todos dizem a regra, computadores, t-shirts, televisão, ninguém diz a exceção, isso não se diz. Isso se escreve, Flaubert, Dostoievski, isso se compõe Gershwin, Mozart, isso se pinta Cézanne, Vermeer, isso se filma Antonioni, Vigo” (Bergala, 2008, p. 30).

Será, então, possível ensinar a escrever, a compor, a pintar, a filmar? Como abrir um espaço para a exceção no lugar historicamente privilegiado para a transmissão das regras, da história, da verdade, do contínuo, do status quo? Será essa uma nova possibilidade de pensar também a própria escola como lugar da criação, do surgimento do novo, do desvio para novos começos? Para Bergala (2008), a força e a novidade da hipótese-cinema identificam que toda forma de fechamento na lógica disciplinar reduz o alcance simbólico da arte e sua potência de revelação. É necessário criar condições para que seja possível ensinar sem formatar, sem simplificar, sem reduzir a tensão que o fazer arte 213


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produz na escola. E afirma: “Para que uma arte possa ser considerada como tal, deve seguir sendo um gérmen de anarquia, escândalo e desordem” (2008, p. 30). O projeto do ministro Jack Lang, de quem Bergala foi conselheiro, é fazer entrar as artes na escola como algo radicalmente outro, rotundamente diferente do que se estava fazendo. Tratase de um desafio político, que também depende da qualidade do capital cultural dos professores em exercício. Distinguir a educação artística do ensino das artes contém uma ameaça, já que alguns professores podem sentir-se desestabilizados. Como desconcertar sem desestabilizar? Como desordenar sem destruir? Como alterar sem desconfigurar o escolarmente previsto ou estabelecido? Parece não ser possível, propriamente, ensinar artes. A arte se encontra, se experimenta, se transmite, ou melhor, se “passa” – no sentido de Serge Daney – por vias diversas. Para que efetivamente se dê a transmissão, é necessário, em primeiro lugar, o desejo de quem aprende, sua observação atenta, curiosa, interessada. É preciso também a continuidade na exposição à arte contaminada pela paixão de quem o conduz. Outro vetor fundamental é o silêncio, o não dito em toda transmissão. A criança é atraída por tudo o que lhe dá prazer. Um bom filme, mesmo que não lhe seja completamente inteligível, pode produzir um intenso prazer e um forte desejo de ver e rever. O caminho do gosto não se faz sem riscos, e existe uma parcela de mistério, de algo não revelado, que permeia o processo de constituição do gosto na transmissão de uma determinada arte. À centralidade da alteridade segue-se uma segunda premissa que guarda relação com a leitura crítica dos filmes: a passagem ao ato de produção. Pode existir uma pedagogia centrada na criação tanto para a recepção dos filmes quanto para a prática do fazer cinema na escola. Idealmente o cinema como arte pode levar o espectador a experimentar as emoções da própria criação. A arte é por definição um elemento perturbador dentro da instituição. Ela não pode ser concebida pelo aluno sem a experiência do “fazer” e sem contato com o artista, o profissional, como corpo “estranho” à escola, como elemento

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felizmente perturbador de seu sistema de valores, de comportamentos e de suas normas relacionais. (Bergala, 2008, p. 30)

Não é por acaso que Alain Bergala é considerado um dos melhores críticos e mais profundos conhecedores da obra de Jean-Luc Godard. Na importância que Bergala outorga à cinemateca, ao ato de criar, de fazer cinema no contexto escolar, encontramos pegadas do pensamento, da vida e da obra de Godard. Godard (2006) conta que, várias vezes, foi convidado para dar aulas de cinema, mas que só a ideia de passar um filme e falar sobre ele o desagrada. Aliás, essa estratégia o choca. Godard afirma que os alunos não veem nada, senão o que se lhes disser para ver. Ele acredita na aprendizagem que se efetiva no ato de ver cinema, de se apropriar dos tesouros das cinematecas. Ao mesmo tempo, no contexto do cinema mundial, poucos cineastas sentiram tanta falta do fazer na experiência do aprender cinema, como Godard. Tanto que, em 1990, ele e Anne-Marie Miéville instalaram seu escritório no seio da École Nationale Supérieure des Métiers de l’Image et du Son (Femis). O propósito era permitir que os alunos vissem o processo de criação do início ao fim: desde a entrega do dossiê no Centre National de la Cinématographie (CNC) até a estreia nos cinemas. Godard é tão entusiasta que considera que gostar de cinema é já aprender a fazê-lo. Para ele, o ato de assistir e o ato de fazer caminham juntos na longa viagem de uma realização cinematográfica. Ele mesmo faz parte de um grupo de cineastas que se formou na interação com a cinemateca. Para eles, essa experiência, as descobertas, o prazer das sensações produzidas e o deslumbramento provocado pelos filmes era o principal motor para fazer cinema. Segundo Godard (2006), se faz um filme não apenas nas horas em que se trabalha nele, mas também enquanto se dorme, quando se acorda, quando se almoça, quando se fala ao telefone. Quem faz um filme está todo o tempo compenetrado nesse fazer. Godard nos anima a filmar simplesmente. Sua dica é direta: “Pegue a câmera, faça um ensaio e mostre para alguém” 215


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(Godard, 2006, p. 243). Ele recomenda, então, que se observem as reações dessa pessoa e que se continue o processo em outro filme. Contar o seu dia de uma forma, de outra; inventar uma maneira diferente. Ele está convencido de que sempre existem outros jeitos de contar; de tornar algo interessante. Na experiência de Godard, é interessante ver como ele filma a partir de uma atração por algo que desconhece, que não compreende bem, mas que o atrai e gera um certo sentimento abstrato. Filmar leva-o a verificar do que se trata, sob o risco de recuar ou mudar radicalmente as coisas. Somente no fim ele consegue averiguar se a intuição era exata, em uma espécie de obrigação quase sadia para concluir o iniciado (Coutinho, 2007). Serge Daney (2007), no seu livro A rampa, faz uma leitura da pedagogia godardiana, que o aproxima simbolicamente do espaço escolar. Depois de maio de 1968, a sociedade do espetáculo atingiu a geração que mais tinha investido na sua formação autodidata, nas cinematecas e nas salas de cinema, deslocando a bondade da sala de cinema para a sala de aula: [...] uma coisa é certa: é preciso aprender a sair das salas de cinema [...] E, para aprender é preciso ir à escola. Não exatamente à escola da vida, mas ao cinema como escola. É assim que Godard e Gorim transformaram o cubo cenográfico em sala de aula; o diálogo do filme em recitação, a voz em off em aula magistral; a filmagem em trabalhos dirigidos; o tema dos filmes em matérias obrigatórias; (“o revisionismo”, “a ideologia”, etc.) e o cineasta em diretor da escola, em monitor, em bedel (Daney, 2007, p. 107-108).

Para Godard, a escola se torna “o bom lugar”3 por três motivos fundamentais.Em primeiro lugar, ela seria o espaço por excelência onde é possível, permitido e até recomendado confundir as palavras e as coisas, sem conferir necessariamente 3

Para não correr o risco de ficar com uma leviana simplificação da concepção godardiana de escola como “bom lugar”, pelo fato de resumi-los, convido o leitor a fazer a leitura completa do capítulo “O therrorisado, pedagogia godardiana” do livro de Daney (2007, p. 107-114).

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alguma possível relação entre elas. Em segundo lugar, a escola é o espaço em que o mestre não precisa dizer de onde vêm seu saber e suas certezas. O que interessa fundamentalmente é a (re) transmissão. Em terceiro lugar, cada ano letivo traz o simulacro da primeira vez, um novo começo. Um começar do zero, do não saber, do quadro negro (Daney, 2007). Em diversas oportunidades, o cineasta francês tem destacado a dimensão pedagógica do cinema. Godard (2006) e delineia os deveres de um diretor, que podemos pensar como análogos àqueles de um bom educador. O primeiro é o dever de aprofundar, de estar em perpétuo estado de busca, o que não significa abrir mão da possibilidade de fascinar-se. O segundo é o desejo de ver sempre algum filme que o abale; um trabalho de outro realizador que o supere e gere o sentimento de que precisa fazer algo melhor da próxima vez (o que não é inveja, já que belos filmes são uma experiência constitutiva para os amantes do cinema). O terceiro dever do diretor é se perguntar por que está fazendo um filme e não se contentar com a primeira resposta. Sem dúvida, a obra de Bergala está permeada pelos princípios e pela pedagogia godardiana de modo geral. Ao pensar o professor como passador, Bergala está implicitamente nos falando dos deveres do diretor sugeridos por Godard. O filme é o produto de uma busca, não a transmissão de uma verdade ou uma mensagem. É na busca que se faz arte. É na busca que se aprende ensinando. O permanente estado de busca de um educador significa estar sempre numa travessia junto ao outro. É preciso vencer a inércia do saber pronto, concluído; daquele saber que só pode ser ensinado, mas que carece de toda novidade e mistério. A busca deve ser fascinante, já que a fruição das descobertas constitui novos motivos de busca e superação. Nesse sentido, tocamos no segundo dever de todo diretor/ professor. Desejar ver sempre algo melhor, correr o risco de descobrir algo muito superior ao que já foi capaz de produzir, pensar, fazer. E, nessa descoberta, admitir que o outro sempre significa um potencial de aprendizagem. A compreensão de que outro sempre poderá nos surpreender é um gesto de modéstia, 217


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que se afasta da inveja e se renova pelo fascínio, pelo alimento que significa seu próprio objeto (seja no caso, um filme para o diretor, seja uma experiência pedagógica bem-sucedida, para um professor). Finalmente, o professor deve sempre correr o risco de se questionar sobre seu fazer e não ficar satisfeito com a primeira resposta. O professor, assim como diretor, deve estar disponível para os desvios que o caminho possa trazer na busca do processo criativo. De fato, o diretor de cinema e o educador têm esta missão comum: criar e fazer criar. Por isso, só podemos pensar nos deveres como possíveis caminhos de buscas, riscos e desvios, já que nunca se tratará de uma simples transmissão de saberes e práticas. Outra interseção interessante entre a prática do cinema em Godard e a aventura pedagógica diz respeito à centralidade da noção de troca. Não é possível fazer cinema a sós. É necessária uma equipe, não um grupo; uma equipe que estabeleça uma troca intensa. Também na educação, torna-se cada vez mais central a ideia da produção coletiva e do exercício cooperativo. A relação do professor com seus alunos e o cinema no contexto escolar […] Sobre la seducción común se van erigiendo figuraciones más poderosas donde la virtud de la infancia se asimila a una discusión sobre lo visible, donde la consabida fábula de la mirada desnuda del niño sobre las apariencias del mundo adulto se presta a la confrontación de un arte con sus propios límites (Rancière, 2005, p. 82).

A importância mais radical da introdução do cinema no contexto escolar consiste em salvaguardar um espaço e um tempo para o encontro: do cinema com a infância, da criança com o adulto, do adulto com a criança que o habita. Para Bergala (2008), todo bom espectador de cinema reserva um pequeno lugar para a criança que tem vontade de crescer e, ao mesmo tempo, afasta-se um pouco do adulto que se tornou. Ele nos convida a ter sempre 218


O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

um primeiro encontro de não hostilidade ou de não resistência, com os filmes, permitindo-nos uma aproximação com um gesto infantil à obra. Só em um momento posterior, podemos aguçar outra leitura do filme que é válida como releitura ou revisitação. A relação do professor com seus alunos faz emergir a necessidade de revisitar a própria infância. Todos – incluídos o professor, o cineasta e o artista – fomos crianças. Nesse sentido, no seu encontro com os alunos através do cinema, o docente se vê diante de uma ponte e de uma ruptura. A ponte nasce da necessidade de buscar a criança que habita o self para que se experimente o prazer do cinema. A ruptura é geracional e guarda relação com a escolha dos objetos culturais preferidos pelas crianças ou pelos adolescentes. O adulto não pode nem deve se imiscuir no prazer experimentado na interação com um filme por motivos transgeracionais. O pedagogicamente correto corre o risco de virar obscenidade pela infeliz intervenção na experiência de prazer alheia. Algo como um vouyerismo de adulto sobre uma cultura que não é a dele (Bergala, 2008). Bergala reafirma em A hipótese-cinema que só se aprende aquilo que é mediado pelo desejo, mas é inviável aprender a desejar. “Pode-se obrigar a alguém a aprender, mas não se pode obrigar a ser tocado”(2008, p. 62). De algum modo, a escola não pode garantir o encontro íntimo e pessoal com as artes, mas pode garantir espaços e tempos para propiciá-lo. De fato, a escola tem uma importância crucial na promoção desse encontro. E, em função de sua experiência no projeto francês, Bergala aponta ações fundamentais que devem ocorrer em seu contexto: 1. “Organizar a possibilidade do encontro com os filmes” (Bergala, 2008, p. 62). Consciente da responsabilidade implicada nos primeiros encontros com o cinema, a escola deve implementar estratégias para colocar os alunos em contato com filmes que não estão no circuito comercial. Criar um acervo de DVDs no contexto escolar e organizar visitas a cinematecas e salas de cinema alternativas são algumas estratégias interessantes. 219


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2. “Designar, iniciar, se tornar um passeur” (Bergala, 2008, p. 63). O educador precisa mudar seu estatuto simbólico abandonando seu papel docente, para retomar o contato com os seus alunos a partir de outro lugar, que é menos protegido, na medida em que expõe preferências pessoais, gostos, relações com obras de arte específicas. É preciso desconstruir o mito da neutralidade: “o ‘eu’, que poderia ser nefasto ao papel de professor, se torna praticamente indispensável a uma boa iniciação” (Bergala, 2008, p. 64). Isso distingue o que uma instituição espera de um docente que leciona determinada disciplina e o que ele pode fazer como passador, iniciador, em um domínio da arte. O subjetivo ganha relevo e vitalidade na impregnação do gosto como forma de transmissão do cinema. 3. “Aprender a frequentar os filmes” (Bergala, 2008, p. 65). Uma vez gerado o encontro, é de se esperar que a escola facilite o acesso individual e vivo a filmes. Também é necessário iniciar os alunos numa leitura criativa, não apenas analítica e crítica, dos mesmos. Trata-se de proporcionar condições para que eles (re)visitem passagens de filmes durante um longo processo, que não guarda parâmetros nem compete com os modos de funcionamento da diversão. A proposta de produzir espectadores criadores consiste em favorecer as condições para que as obras a que se assiste consigam ecoar e se revelar em cada um, segundo a sua sensibilidade. Para que o espectador se torne realmente criativo, terá que virar um (re)visitador de filmes. 4. “Tecer laços entre os filmes” (Bergala, 2008, p. 67). Na escola podem ser tecidos laços entre filmes atuais e filmes mais antigos que, por sua vez, entrelaçam-se com outras produções culturais, movimentos, escolas, épocas. É quase uma forma de combater uma cultura do zapping, cada vez mais imposta, que nos apresenta mosaicos sem clarear as relações entre produções diversas. Essas quatro funções podem tornar a escola responsável por uma discreta, embora profunda, revolução estética, política e cultural. 220


O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

Da transmissão à impregnação Nunca acreditei na teoria “de-Pokemon-a-Dreyer”, segundo a qual seria preciso partir daquilo que as crianças gostam espontaneamente para levá-las pouco a pouco a filmes mais difíceis (Bergala, 2008, p. 96).

O cinema exerce um papel fundamental na transmissão (trans)geracional e nesse ponto articula-se intimamente com a função do professor. Bergala (2008) chama a atenção para um fato irrefutável: quando a transmissão não se limita a uma função social, coloca em jogo algo mais do que conteúdos a ser transmitidos; algo que não é totalmente consciente, que se aproxima de sentimentos, imagens, pegadas. Esse algo é muito marcante e eficiente na transmissão do cinema. A maioria dos professores que trabalha habitualmente com cinema parece contrariar a tese de Bergala, que discorda da possibilidade de estabelecer pontes entre o cinema comercial e o cinema de mais difícil acesso. Existem, de fato, vivências de alunos que passaram a gostar de outro tipo de cinema, graças a estratégias de algum professor que tecia ligações com filmes conhecidos pelos alunos. Para Bergala (2008, p. 96), o ato de iniciar pelo pseudogosto do marketing contém algo de demagogia e, sobretudo, de desprezo pelas crianças e pelas artes. A chave para compreender essa crítica de Bergala guarda relação com o que ele chama pedagogia da articulação e combinação de fragmentos (ACF). Na escola não é necessário (e às vezes nem conveniente) assistir a filmes na íntegra. É possível mostrar diversos filmes para apresentar a mesma ideia, viajando por diferentes décadas da história e mostrando exemplos de filiação artística. Observar uma sequência de planos que pretenda mostrar algum tipo de filiação por autor, por parâmetro estético ou linguístico, endereça o olhar para o objetivo do que se quer dar a ver, como afirma Elizabeth Ellsworth (2001). O trabalho com fragmentos (ACF), além de ser viável em termos de tempo para as características do trabalho escolar, 221


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permite contribuir para a transmissão do cinema de um modo bem diversificado, já que oferece múltiplas opções de difícil escolha no circuito comercial e no espaço doméstico. O ACF trabalha principalmente com planos. O plano é considerado como “a menor célula viva, animada, dotada de temporalidade, de devir, de ritmo, gozando de uma autonomia relativa, constitutiva do grande corpo-cinema”(Bergala, 2008, p. 124). Unidade mínima do filme, o plano consiste numa interface ideal entre uma aproximação analítica (pela multidão de parâmetros e elementos linguísticos de cinema que podem ser nele descobertos) e uma iniciação à criação (pela tomada de consciência de todas as escolhas que ele carrega). Esse trabalho com fragmentos não implica, contudo, que se deva desestimular o desejo de assistir aos filmes na íntegra. Uma estratégia interessante é a criação de uma filmoteca nas escolas que possibilite algo para além da transmissão, gerando condições de atingir a impregnação com os bons filmes durante um longo tempo. Uma filmoteca facilita muito a possibilidade de (re)encontros com os filmes. Muitos especialistas criticam severamente a introdução do cinema na escola pela perda da vivência numa sala absolutamente escura, com poltronas confortáveis e o clima que a experiência de uma sala de projeção proporciona. Mas quantas pessoas têm se apropriado do cinema espionando pela fresta da porta ou escondidas atrás de um sofá enquanto os pais assistem a um filme? Qual imagem pode melhor exemplificar isso do que aquela do Cinema Paradiso, em que o pequeno Salvatore espionava os filmes projetados por Alfredo para o padre? A comodidade não parece ser um elemento essencial diante do poder de impregnação e abstração que a paixão pelo cinema gera. Assim, mostram-se ricas as iniciativas como École et Cinéma, Collège au Cinéma e Lycéens au Cinéma, na França, que oferecem uma seleção de filmes escolhidos por um grupo de especialistas, que elaboram fichas pedagógicas disponibilizando-as para cada nível de ensino. Importa destacar ainda que a proposta de iniciar as crianças em um tipo de cinema não comercial nada tem a ver com 222


O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

arrastá-las do lugar-comum para outro lugar. Uma proposta de formação do gosto parte exclusivamente do encontro com a alteridade fundamental da obra de arte, com o desconforto e o choque que ela provoca. Os mais belos filmes para mostrar às crianças não são aqueles em que o cineasta tenta protegê-las do mundo, mas freqüentemente aqueles em que uma outra criança tem o papel de mediador ou de intermediário nessa exposição ao mundo, ao mal que dele faz parte, ao incompreensível (Bergala, 2008, p. 98).

De uma serena exposição das crianças a esse tipo de cinema, cujos ritmos, roteiros, fotografias são tão diferentes, podem surgir algumas reações de desagrado e desconforto, para as quais devemos estar preparados e armados de muita paciência. Em minha experiência pessoal, tenho ganhado vários encontros entre os alunos e o cinema como arte, não pela exposição direta aos filmes. É sempre uma intriga sobre a produção do filme, seu roteiro, algo da vida do autor que cria uma curiosidade de aproximação posterior, livre. Cortar a projeção de um trecho de um filme no momento em que a narrativa exige continuação tem gerado mais interesse e busca pessoal por parte dos alunos do que qualquer outro tipo de proposta. Os gestos cinematográficos: uma pedagogia da criação O cinema sempre é jovem quando retornando ao gesto que o fundou, às suas origens, inventa um novo começo. Quando alguém segura uma câmera e se confronta ao real por um minuto, num quadro fixo, com total atenção a tudo que vai advir, prendendo a respiração diante daquilo que há de sagrado e de irremediável no fato de que uma câmera capte a fragilidade de um instante, com o sentimento grave de que esse minuto é único e jamais se repetirá no curso do tempo, o cinema renasce para ele como o primeiro dia em que uma câmera operou (Bergala, 2008, p. 209-210).

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A pedagogia do cinema é caracterizada pelo modo de aproximação ao objeto. Essa aproximação deverá priorizar sempre um modo criativo, porque o cinema é um objeto vivaz e indócil, segundo Bergala (2008). Ele destaca a importância de evitar qualquer pedagogia que se estabeleça de maneira dogmática, aferrando-se rigidamente a um saber (muitas vezes, incompleto e reducionista) dos elementos da linguagem do cinema. Isto é, aprendendo algumas noções das fases de pré-produção, produção e pós-produção, parâmetros de realização de roteiros ou de elementos como a luz, o som, a cor etc., alguns professores transformam seu saber num verdadeiro vade mecum da arte de fazer cinema, diminuindo, quando não negam, a experiência de iniciação numa arte. É necessário lembrar aqui o que Bergala considera como gestos de criação cinematográfica, os quais são úteis para pensar todo tipo de criação. A criação cinematográfica põe em jogo três operações mentais fundamentais: a escolha, a disposição e o ataque (Bergala, 2008, p. 134), que podem estar presentes em qualquer fase do processo de produção (na filmagem, na montagem e na mixagem). Escolher é tomar decisões entre diversas possibilidades de seleção (atores, cenografias, cores, ritmos, planos, utilização dos sons).4 Dispor os elementos significa colocá-los em relação uns com os outros na filmagem, na montagem e Por exemplo, na experiência na Escola de Cinema do Colégio de Aplicação da UFRJ, com o grupo de alunos de ensino fundamental, fizemos a escolha de filmar um pequeno documentário sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas, entre 16 temas possíveis sugeridos pelos próprios alunos. As escolhas acontecem antes de filmar, durante a filmagem e na hora de montar e mixar sons. Nos sets de filmagens, “não escolhemos” aquele dia de chuva – o fator meteorológico é sempre um problema que pode significar uma possibilidade. Porém, decidimos filmar desde bicicletas para dois, uma boa parte do perímetro da lagoa, com o efeito da chuva em movimento. Escolhemos fazer planos de diferentes pontos de vista e de um minuto de duração, entre outras tantas possibilidades. Na montagem, escolhemos quais planos ficariam no filme; escolhemos algumas das entrevistas realizadas para incluir e as músicas que acompanhariam o percurso feito no carro ao redor e no passeio por dentro da lagoa pedalando nos cisnes. Finalmente, precisamos capturar, em outro dia, alguns sons da chuva caindo na lagoa bem perto da água para mixar, já que nenhuma filmagem tinha captado o barulhinho das gotas de chuva.

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O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

na mixagem de sons com imagens. Como afirma a pedagogia godardiana da criação, é na montagem que podemos criar mais livremente, alterar a ordem dos planos que não precisam ser dispostos na sequência em que foram filmados. Finalmente, atacar refere-se a agir, atuar, determinar e posicionar o ângulo ou o ponto de ataque sobre as coisas escolhidas e dispostas para filmar, e fazê-lo. Concretamente isso significa a determinação de quando aperto o botão que inicia a filmagem, quando termino o plano, como fazer os cortes de entrada e saída a partir da decupagem; e de como utilizar os sons na mixagem. Se esses gestos são válidos para toda forma de criação, devemos pensá-los também no contexto do professor. Sua tarefa, quando encarada criativamente, também supõe uma série de escolhas coletivas (conteúdos, espaço, tempo, entre outras), dispor os diferentes elementos em jogo (a ordem de introduzir os conteúdos, organizar os trabalhos grupais, etc.) e atacar no sentido de tomar decisões para a efetiva realização da experiência de aprendizagem. É importante que o passador tenha experiência artística, mesmo que seja modesta ou mínima, para que possa promover a integração efetiva do cinema na escola. Essa experiência é necessária para garantir a passagem ao ato de criação dos alunos. É importante salientar ainda que essa criação não deve se pautar pelo cronograma dos anos letivos. Frequentemente orientase todo o trabalho em função da organização do cronograma escolar, a fim de finalizar algum produto para a festa de fim de ano, a semana de ciências, a mostra de arte e cultura ou projetos semelhantes. Isso desmerece o esforço e pauta o trabalho por uma eficiência desnecessária. Na experiência de fazer cinema, o aprendizado não passa necessariamente pela palavra nem pela racionalidade, e sim pela observação, pela emoção, pelas sensações produzidas diante do outro, além do tempo de análise e observação do que se tem produzido. É importante ajustar as possibilidades reais de tempo, de recursos pessoais e materiais em função do projeto a ser alcançado, bem como permitir um tempo suficiente para ponderar, entre todos, os acertos e os erros nas escolhas realizadas coletivamente. 225


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Existem, porém, várias dificuldades do fazer cinematográfico no contexto escolar. Há as restrições de locação, a necessidade de autorizações para sair da escola, a questão da segurança dos equipamentos e mesmo das pessoas envolvidas, sem contar com as próprias restrições de recursos, softwares, iluminação para filmagem em estúdio etc. Todas elas podem ser sorteadas quando o que se propõe não é um grande tema, e sim estudar um pequeno tema, significativo da vivência pessoal dos alunos, na qual eles tenham acesso ao que desejam filmar, pela própria proximidade. Em relação ao produto mais indicado para ser realizado no espaço escolar, Bergala (2008) sugere que os curta-metragens se mostram mais viáveis, embora não sejam a única opção. Em A hipótese-cinema, encontramos interessantes sugestões de realizar partes de um filme virtual maior, em vez de produtos acabados. Fazer, pensar e sentir o cinema por si mesmo, sabendo que se trata de um fragmento de um projeto mais longo e socializar um resumo do roteiro geral para o público, no dia de sua apresentação. É preciso lembrar aqui que o mais interessante trabalho que podemos desenvolver na escola como produção não é necessariamente a encenação de uma historinha mas a invenção de exercícios que partem do espaço real, conhecido por todos, para produzir planos que levem à criação de algo novo, antes inexistente. A partir de regras e alguns princípios específicos, é possível reconstituir o espaço para o espectador, na medida em que os alunos se posicionam em relação à tensão entre o fragmento e a totalidade para tornar uma cena compreensível. Bergala (2008) sugere, por exemplo, que se façam e se editem três planos de um mesmo espaço, para a construção de um jogo de criação, na montagem, de um novo espaço. Nesse contexto, a prática do storyboard5 pode se tornar pedagogicamente nefasta, quando busca suprimir o medo e a incerteza (Bergala, 2006). Ao garantir um guia, uma sequência que leva a Rabiguer (2007, p. 410) define o storyboard como uma “série de imagens-chave esboçadas para sugerir como uma série de tomadas será”.

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um porto seguro, o storyboard pode “confiscar a experiência”, impedindo a experimentação. “É melhor ensinar, inicialmente, a apreender globalmente à cena, o espaço, suas limitações, os eixos principais, as escolhas de conjuntos para depois passar à decupagem plano a plano”(Bergala, 2006, p. 190). Na pedagogia da criação, um storyboard não tem mais sentido senão ser considerado como uma pré-formalização dentre outras possibilidades. A pedagogia da criação pressupõe ainda que haja o momento ver o filme – antes de construir as decisões finais (Bergala, 2008, p. 198). Esse momento deve propiciar um encontro com tudo o que concerne às características sensíveis do filme. No contexto escolar, o roteiro pode se transformar em uma camisa de força, que limita a percepção de elementos como luz, materiais, ritmos nos deslocamentos dos atores, som etc. Bergala nos previne da armadilha escolar de privilegiar sempre a dimensão linguística das produções, em detrimento da dimensão sensível, necessária e insubstituível, que condiciona o olhar tanto do mundo real quanto do mundo visionado dos filmes. Assistir a um filme, ao longo de sua realização, permite atentar para esses elementos estéticos frequentemente negligenciados. Cabe ressaltar, por fim, que o individual e o coletivo estão colocados em jogo de uma forma única na prática de fazer cinema na escola, na medida em que diferenças individuais podem ser ressituadas. Um bom aluno em Matemática pode ter terríveis dilemas para conseguir colocar a câmera no tripé. Um mau aluno em Geografia pode ter uma sensibilidade afinada para captar e enquadrar determinado sentimento em um plano. O cinema não requer conhecimentos prévios. Nesse sentido, ele reduz a reprodução da assimetria entre professores e alunos. A descoberta de novos interesses e capacidades pode contribuir para a mudança da leitura que os professores fazem de cada aluno, afetando a própria autoestima dos estudantes. Para que isso seja possível, é interessante fomentar a rotatividade dos alunos pelas diferentes funções nas fases de produção, pré-produção e pós-produção. A criação cinematográfica no contexto escolar teria seu potencial pedagógico comprometido 227


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se o líder da turma se tornasse o diretor, se a aluna considerada mais linda atuasse como protagonista e se os tímidos evitassem toda exposição. O deslocamento dos sujeitos é algo central na proposta de Bergala, perpassando o desafio individual e coletivo de criação.

Palavras finais Existe uma forma de olhar para o cinema, de fazer cinema e, em particular, de fazer cinema na escola com crianças e jovens, que é verdadeiramente comovente na vida e na obra de Alain Bergala. O trecho a seguir simboliza a força de sua perspectiva: Quando nos situamos no que há de originário no ato cinematográfico, somos sempre o primeiro cineasta, de Louis Lumière a um jovem dos dias de hoje. Rodar um plano é colocar-se no coração do ato cinematográfico, descobrir que toda potência do cinema está no ato bruto de captar um minuto do mundo; é compreender sobretudo que o mundo sempre nos surpreende, jamais corresponde completamente ao que esperamos ou prevemos, que ele tem freqüentemente mais imaginação do que aquele que filma, e que o cinema é sempre mais forte que os cineastas. Quando acompanhado por um adulto que respeita a emoção de criança, o ato aparentemente minúsculo de rodar um plano envolve não a maravilhosa humildade que foi a dos irmãos Lumière, mas também a sacralidade que uma criança ou adolescente empresta a uma “primeira vez” levada a sério, tomada como uma experiência inaugural decisiva (Bergala, 2008, p. 210).

Essa afirmação possui algo de magia poética. Ratifica o lugar da hipótese-cinema que não espera ser verificada, confirmada, comprovada. Trata-se de uma hipótese para devir, afetar e criar. Algo que lembra a imagem do balão vermelho, no filme de Albert Lamorisse, que incomoda e ilumina com seu vermelho todo o filme cinzento, provocando cada espaço, cada instituição, ao entrar na escola, na igreja ou no bonde com sua outra cor, seu 228


O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala

outro formato, com seu exercício final de tornar múltiplo o que era único, coletivo o que era individual.6 O cinema pode levar a escola a um devir em que ela se torne outra escola, renovando-se pelo exercício que só a alteridade permite. Pelo seu jeito de estrangeiro irreverente, pode construir a diferença e transformar a equação preestabelecida entre espaço e tempo. A proposta de Bergala alberga uma potência transformadora que, uma vez ativa, pode vir a se multiplicar, ganhando espaços de criação e projetos de cinema em escolas e outras instituições num verdadeiro processo de revolução artístico, pedagógico e social. Ela nos lembra o pequeno Tistu, em O menino do dedo verde (Druon, 2001). Em vez de plantas, A hipótese-cinema nos impulsiona a tocar, com cinema, todos os espaços onde é necessário redescobrir o encantamento com o mundo, a reinventar esses espaços. O encontro com o cinema proposto por Bergala constitui um ensaio de redescoberta e transformação. Embora a escola esteja no foco de seus escritos, é possível – desde o título – pensar a pertinência de introduzir o cinema em hospitais, cadeias, asilos e casas de repouso, entre tantos espaços cuja institucionalização precisa de um outro, estrangeiro – para impregnar, com vitalidade e arte, os diversos modos de estar no mundo.

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Ao final do filme, quando o balão vermelho é estourado, surgem, de diferentes partes da cidade, muitos balões de cores diversas, para a alegria do protagonista.

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CAPÍTULO XI

Ensaio sobre a gênese da cinematografia educativa no Brasil. Prospecção do componente histórico nacional nas práticas educacionais que envolvem Comunicação e Educação João Alegria

A imprensa aperfeiçoa-se, a telefonia e a rádio-telefonia desenvolvem-se, progride a fonografia, o teatro renovase, o cinema reúne os dons de todos e multiplica-se de atrativos, desponta a televisão para, em breve, modificar o aspecto dos espetáculos cinematográficos e torná-los ainda mais populares. O século, nós o vemos, é do cinema. O educador não pode desprezá-lo: deve introduzi-lo na escola, modificando processo e métodos de educação; e deve introduzir a educação no cinema, para orientá-lo e desviá-lo dos desacertados atalhos a que o levam os interesses mercantis do capitalismo mundial Almeida, 1931, p. 146-147

Primórdios e pioneiros

Q

uando o cinematógrafo chegou em 1895, a imagem já era considerada um importante auxiliar do ensino. No último quartel do século XIX, a lanterna mágica ameaçava reduzir o 231


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espaço da palmatória. Um conjunto de novas metodologias de ensino despontava em todo o Ocidente. No final de um século marcado pela expansão industrial, que levou as máquinas e os processos da produção industrial até a produção da imagem, também a educação foi contaminada por esse instigante conjunto de transformações. O profissional docente, fruto das primeiras escolas de formação de professores, começava a receber uma preparação profissional voltada ao uso de métodos educacionais em que a observação – ao natural e através de representações visuais – tornava-se cada vez mais importante para a aprendizagem (Villela, 2002). Com a popularização da imagem-técnica e dos novos processos de impressão e reprodução de fotografias e ilustrações, a sala de aula e o material didático empregado no ensino foram invadidos por figuras e por imagens, que passaram a ser reproduzidas com maior facilidade e a um custo menor. O cinematógrafo veio somar-se a essa tendência como uma promessa para tornar as lições mais interessantes dentro e fora da sala de aula. Nos primórdios da história do cinema, duas formas de expressão – a cinematografia científica e a cinematografia educativa – se confundiam, e a diferenciação entre essas noções surgiu no transcorrer do século XX. Paulatinamente a cinematografia científica restringiu-se ao uso do cinematógrafo em investigações no campo da ciência, bem como à documentação e à difusão das descobertas desse campo. A cinematografia educativa, por outro lado, ficou circunscrita ao uso do cinematógrafo para a educação em geral e principalmente para a instrução pública em atividades escolares. Ao pensar em cinematografia educativa desde uma perspectiva histórica, Jonathas Serrano (1931) afirma, em sintonia com os estudos de Coissac (1926), que as primeiras experiências nessa área teriam ocorrido a partir de um fato protagonizado pelo cirurgião francês Eugène-Louis Doyen, que em 1898 registrou uma de suas cirurgias em filme. A produção, com cerca de quatro minutos de duração, mostra a separação de duas irmãs siamesas, Doodica e Radica Neik, que viviam como atrações do circo Barnum & Bailey, na França (Lefebvre, 2004). A cirurgia filmada 232


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provocou muita polêmica e levantou uma série de questionamentos sociais e profissionais. O Dr. Doyen justificou a filmagem pela necessidade de observar as imagens posteriormente, como um recurso para seus estudos pessoais e para o ensino de técnicas de cirurgia a seus discípulos. O episódio encaixa-se perfeitamente na série inicial de experimentos do uso do cinema para a documentação de acontecimentos, processos científicos e fenômenos da natureza, com sua posterior utilização em situações de difusão de conhecimentos científicos e acadêmicos. Também merecem destaque as produções audiovisuais que Thomas Edison teria realizado para a educação de seu neto. Embora documentando experiências relativas à Física, à Química e à História Natural, elas foram encenadas para a câmera com o objetivo exclusivo de utilização na instrução escolar. Por isso, as experiências obedecem a princípios pedagógicos, inclusive na produção e na organização das imagens. E esse é seu grande diferencial em comparação a outras experiências da mesma época. Por volta de 1900, o pioneirismo de Thomas Edison na cinematografia educativa foi seguido por uma das primeiras empresas estruturadas para a produção de filmes educativos: a norte-americana De Vry School Films Incorporated. Essa empresa realizou produções sobre cidadania, eletricidade, personagens históricos, estudos da natureza, geografia, guias de aptidão profissional e ciências. A empresa também colocou no mercado uma variada linha de equipamentos para o uso do filme na escola, principalmente projetores portáteis e muitas coleções de filmes. De acordo com Roberto Araújo (1939), em 1901, Garrigon Lagrange utilizou o cinematógrafo para o registro de fenômenos físicos e o estudo da meteorologia. Entre 1904 e 1911, Lucien Bull realizou as primeiras experiências com cinematografia ultrarrápida, filmando a movimentação de insetos. Em 1909, o Dr. Comandon realizava estudos sobre bacilos e células com auxílio de técnicas cinematográficas. E, em 1911, Roberto Omegna realizou pequenos filmes com a aceleração de imagens do crescimento das plantas e de uma rosa se abrindo. 233


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Essas possibilidades de olhar – principalmente com o auxílio da microfotografia e dos recursos de câmera lenta e rápida, acelerando ou reduzindo o tempo dos movimentos e dos processos naturais – abrem possibilidades antes inimagináveis não só de investigação científica dos fenômenos da natureza, mas também de sua apresentação pedagógica ao público das salas de cinema em todo o mundo. No caso do Brasil, a experiência pioneira resultou dos esforços de Roquette-Pinto. Pensando na utilização educativa do filme, ele iniciou uma filmoteca de caráter científico e pedagógico em 1910, no Museu Nacional. A filmoteca foi enriquecida por produções realizadas por vários dos primeiros cinematografistas brasileiros, como a Comissão Rondon e o próprio Roquette-Pinto. Em 1907, o Marechal Rondon concluiria a ligação telegráfica entre a capital federal e o Amazonas, através do Estado do Mato Grosso, percorrendo 997 km pela floresta. Durante esse trabalho, estrutura-se a Comissão Rondon, que organiza novas expedições pelo País após a conclusão da linha de telégrafo. Tal comissão contribuiu largamente para a produção e a difusão de imagens e sons de paisagens naturais e habitantes do interior do Brasil. Em 1912, o próprio Roquette-Pinto trouxe de Rondônia os primeiros filmes sobre os índios Nanbikuaras como resultado de uma viagem que fizera com a Comissão Rondon. Essas películas passaram a integrar a Filmoteca Educativa e foram projetadas por ele em 1913, no salão de conferências da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O evento foi amplamente noticiado pela imprensa da época. Entre as realizações de pioneiros brasileiros na cinematografia científica e educativa, constam ainda as produções do professor Aloysio de Castro. Documentando estudos de moléstias nervosas, ele conseguiu realizar uma coleção de filmes sobre neuropatologia na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, entre 1913 e 1920. Várias iniciativas como essas se seguiram. Desenvolveram-se técnicas e procedimentos da cinematografia científica e educativa. Fortalecia-se, assim, a crença no potencial pedagógico do cinema. Se, por um lado, aumentava o número de experimentos de utilização do cinematógrafo para o registro de fenômenos 234


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naturais e processos científicos, por outro lado, começavam a despontar as primeiras manifestações de intelectuais e educadores que perceberam a possibilidade de um aproveitamento dos filmes para a educação.

Da sala de cinema para a escola: filmes para facilitar a instrução pública Foram necessárias mais duas décadas, até o final dos anos 1920, para que se desenvolvesse uma metodologia de apropriação da cinematografia para a educação formal e não formal no Brasil. Para isso, além do estabelecimento de técnicas de uso, houve um amplo debate moral, até que se chegasse a um consenso sobre quais seriam as produções mais adequadas ou mais educativas. Discussão semelhante já havia sido observada na França, como apontam Serrano e Venâncio Filho (1931, p. 24): “em 1906 já se discutia apaixonadamente, em França, a questão do emprego da maravilhosa invenção com fins educativos. Dos primeiros apologistas foram, entre outros, Coissac, Bénoit-Levy e Léopold Bellan”. Os autores informam que já se discutia a questão do cinema escolar em 1910, durante o Troisième Congrèss International d’Education Familiale, que aconteceu em Bruxelas. Nesse evento, foi objeto de debate uma proposta de reforma cinematográfica apresentada pela professora Bertinot, visando à classificação das produções pelo seu conteúdo. O poder sugestivo da tela e a crescente difusão de películas consideradas de teor inconveniente provocaram a apreensão dos profissionais envolvidos com o sistema educacional europeu. De fato, nos anos 1911 e 1912, enquanto se estabelecia uma das primeiras experiências de uso regular de projeções em sala de aula (quando Brucker, catedrático de História Natural, empregou projeções animadas em suas aulas no Liceu Hoche, em Versailles), era criado o primeiro serviço nacional de censura cinematográfica do mundo, na Inglaterra: o British Board Film of Censors (BBFC), que continua em operação até os dias de hoje. No Brasil, as primeiras menções ao uso sistemático do cinematógrafo em sala de aula estão no livro didático Epítome 235


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de História Universal, publicado por Jonathas Serrano em 1912. Posteriormente, em outra publicação, Metodologia da História, de 1917, o autor voltava a abordar a temática, confirmando seu pioneirismo no uso educativo do audiovisual no País. Outro precursor do uso sistemático do filme em sala de aula foi Venerando da Graça, que realizou uma série de experiências com o audiovisual entre 1916 e 1918. Sua reflexão sobre o tema pode ser encontrada no Boletim, publicado regularmente pela Diretoria de Instrução Pública do Rio de Janeiro no final da década de 1910. A preocupação com o conteúdo dos filmes e sua influência sobre o público estava presente em todas as discussões sobre o assunto. No livro Cinema contra cinema, Almeida (1931) transcreve um relato publicado pelo Diário de S. Paulo em 8 de agosto de 1930, de autoria do professor Gastão Strang, referindo-se a uma experiência vivida por ele no ano de 1912: Há dezoito anos [1912], quando eu dirigia o grupo escolar de Leme, tive oportunidade de constatar a grande influência exercida pelo cinema no espírito infantil. Levamos, certa vez, cerca de 60 meninos ao cinema local, que anunciava a exibição de uma das películas em que aparecem muitos cavalos e se disparam muitos tiros... No dia seguinte, qual não foi meu espanto quando, no recreio, deparei com uma porção deles a imitar as cenas de aventuras dos cangaceiros da tela? Resolvemos então, em vista disso, por curiosidade, dar em aula um trabalho escrito em que os alunos deveriam, com toda a liberdade de ação reproduzir as impressões da fita a que haviam assistido. O resultado que obtive, estudando através do escrito a alma impressionável da criança, foi o seguinte: sensíveis 7; indiferentes 16; com tendências mórbidas 37. Confrontando, mais tarde, esses resultados com as informações sobre o temperamento dos meninos que nos forneceram os respectivos pais, a conclusão final da experiência constitui uma prova de que fora extrema, nesses pequenos, a impressão [provocada pelo filme] (Almeida, 1931, p. 147).

É este o primeiro registro que tenho – para o Brasil – de uma investigação sobre os efeitos do cinema na infância. Pesquisas 236


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como essas só se tornarão comuns na próxima década, principalmente nos EUA e em alguns países da Europa. Na década de 1920, no entanto, muitas delas serão patrocinadas por empresas organizadas para a produção de filmes para uso escolar. É evidente o esforço dos educadores no sentido de criar parâmetros para avaliar a adequação do conteúdo dos filmes e, assim, determinar um audiovisual do bem, que pudesse ser aproveitado na educação. A preocupação se deve sobretudo ao fato de as crianças serem consideradas mais suscetíveis aos efeitos do conteúdo audiovisual, como se pode observar no fragmento acima. Esse tipo de percepção ainda está muito presente quando se fala do uso do audiovisual na educação nos dias de hoje. Situada no campo moral, tal discussão envolve desde então múltiplos atores sociais. Cabe citar aqui o peso da Igreja Católica, que se engajou no debate durante todo o século XX, estabelecendo uma relação contraditória com o cinema, predominantemente em oposição à cinematografia. Em 1957, Paulo Emílio Salles Gomes publicou no jornal O Estado de S. Paulo, em sua coluna no Suplemento Literário, um texto intitulado “Catolicismo e cinema”. Ele ressaltava que “é grande o número de padres e religiosos, incluindo chefes de diocese, cuja desconfiança pelo cinema assume, por vezes, a forma de total rejeição” (Salles Gomes, 1981, p. 71). O autor destacava a importância da organização católica norte-americana National Legion of Decency, que, durante a primeira metade do século XX, se encarregou da censura do conteúdo de filmes nos Estados Unidos. A entidade julgava as produções a partir dos preceitos de moral e decência preconizados pelo catolicismo. A atuação dessa organização levou a uma encíclica de Pio XI, Vigilanti Cura (1936), que veio a se tornar para os católicos um texto básico em questões cinematográficas. No Brasil, também se notam várias iniciativas para regulamentar uma censura católica aos filmes em cartaz. Merece destaque a criação, em 1917, da revista A Tela, editada em Petrópolis e especializada em cinema. No entanto, a publicação de uma crítica regular a filmes por religiosos e católicos praticantes 237


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se afirmaria apenas com a criação do Secretariado de Cinema e Imprensa da Ação Católica Brasileira no final da década de 1930. Um exemplo das iniciativas isoladas implementadas antes do surgimento do Secretariado de Cinema ocorreu na cidade de Salvador, segundo relato de Angeluccia Habert (2002). Em 1922, a Obra Social Católica instalou na cidade uma sala de exibição com 1.600 lugares, com o objetivo de formar espectadores. Diante da reação contrária de alguns setores da sociedade, a revista Artes & Artistas, focada em cinema, saiu em defesa da iniciativa. Ela argumentava que era importante que “o povo” tivesse “outra fonte”onde poderia “beber lições de educação e conhecimento” e que, ao contrário do que supunham os que viam na Igreja uma concorrente do mercado de exibição de filmes, aquele novo cinematógrafo tinha apenas propósitos “educativos e generosos”, como nos informa Angeluccia Habert. Nesse caso, também estava em discussão, além da polêmica aproximação entre religião e cinema, a possibilidade de os filmes atuarem como fonte de inspiração para a formação de valores morais. Em defesa dessa abordagem, uma crônica publicada por Artes & Artistas defendia a ideia de que “o efeito de um bom filme exemplificando questões morais valia mais que 10 sermões”. Não há como negar que boa parte do que foi e continua sendo definido como “filme educativo” teve a ver com o conjunto de preceitos morais difundidos pela Igreja Católica. O professor Gastão Strang também defendia a importância da censura para a qualificação da cinematografia educativa. Reconhecendo, na multidão de conseqüências boas e más das fitas, o extraordinário valor do cinema, os países civilizados têm adotado medidas para dele tirar o melhor partido em benefício da educação e contra seus malefícios opor regulamentos e agentes policiais, fiscais de moral e costumes (Almeida, 1931, p. 151).

Realizar a cinematografia educativa requereria opor o bom cinema ao mau cinema. Ou, como explica Lourenço Filho (1931, p. 5), no prefácio que escreveu para o livro Cinema contra Cinema: 238


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Este livro defende uma tese de grande interesse para todos quantos se preocupam com as coisas da educação: a de que o cinema deve curar-se com o próprio cinema, ou seja a de que, às exibições de mau efeito, sobre crianças e adolescentes, deve contrapor-se o cinema educativo. Daí, o título assaz expressivo de “cinema contra cinema”.

Após várias experiências e tentativas, no início da década de 1920, já se havia estabelecido um discurso social sobre o cinema e o filme educativo. No entanto, como já foi afirmado acima, durante essa década se fez um grande esforço para sistematizar seu uso regular para a instrução e para a educação. Em 1920, surge na Universidade de Columbia (EUA) a primeira cátedra universitária dedicada ao assunto. Em vários países, observa-se a organização de um serviço oficial de censura cinematográfica. São relatados os primeiros estudos de metodologia do uso do cinema em sala de aula e realizadas as primeiras pesquisas acadêmicas sobre o efeito do filme na instrução e na formação do caráter das crianças, adolescentes e adultos. Aparecem também os aparelhos portáteis de projeção e tomada de vistas, permitindo certa popularização do consumo privado e doméstico dos filmes e da sua produção.

As tecnologias da comunicação como atalho para a educação do povo Desde a década de 1920, as tecnologias da comunicação passaram a ser entendidas como uma promessa de solução para a árdua tarefa da educação, consequentemente como um caminho para a superação da incapacidade que se atribuía ao povo brasileiro para interagir com o resto do mundo. Contudo, temia-se a ameaça do cinema à constituição de uma cidadania genuinamente brasileira, diante da grande quantidade de filmes de outros países exibidos no Brasil, os quais difundiam informações, hábitos e valores morais vistos como inadequados. Os educadores estavam convencidos de que, sem uma ferramenta de comunicação eficiente para interagir com a 239


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população espalhada pelo território nacional, estaria inviabilizado o projeto de formação da nação brasileira republicana. Antes do cinema e, sem dúvida, antes do rádio, o letramento era pensado como única forma de comunicação entre os homens de diferentes locais e como condição sine qua non para a afirmação de uma identidade nacional. O cinema cria novas possibilidades de educação e de integração. É o que se pode verificar, por exemplo, no trecho de um artigo de Afrânio Peixoto, de 1929: Pelo cinema os homens se podem comunicar, sem que saibam ler... Basta que vejam. No fundo do Mato Grosso ou de Goiás, uma fita exibe, mostra, informa, comunica, como se portam as urbanidades polidas de Paris, Nova Iorque, Melbourne ou Rio de Janeiro, como livros, jornais, telegramas, cartas, jamais poderiam fazer. [...] Portanto, sem ênfase, o cinema pode e deve ser a pedagogia dos iletrados, dos analfabetos que apenas sabem ler, dos que sabendo ler não sabem pensar, obrigando as inteligências opacas, lerdas e preguiçosas a se revelarem, numa ginástica para compreender, e para acompanhar, e deduzir, e prolongar a fita que, por certo não tem comparação com nenhum dos outros precários e reduzidos e parciais e rudimentares meios de ensino (Peixoto, 1929).

Mais adiante, no mesmo artigo, Peixoto revela o sonho de transformação social embalado pelas possibilidades educativas do cinema: São tão raros os professores e escolas no Brasil! Raríssimos os bons professores. Como, além das crianças, os iletrados adultos lucrariam, se houvesse amplas escolas e bons mestres para eles! Pois bem, o sonho a realizar é este. Escolher um bom professor, melhor, uma bela, jovem, interessante e interessada professora, dotada do dom de ensinar. Fazê-la, por um método pedagógico experimentado, dar instrutivas e agradáveis lições, diante do registro, que será vidente e falante [cinema sonoro], a letra impressa, escrita, as frases, a historieta, os objetos, mostrados, combinados, dispostos

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Ensaio sobre a gênese da cinematografia educativa no Brasil

para uma impregnação na alma dos milhares de adultos e crianças que veriam, por todos os recantos do Brasil, passarem e repassarem essas fitas-lições, instrutoras e educadoras de um povo. A lição curta, divertida, graciosa, descontinuada por um incidente apropriado, que dê vida e curiosidade à lição, que vai ser continuada. Todo um curso assim. Depois de saber ler, saber contar, aprender geografia, ciências, línguas mortas e vivas, medicina, engenharia, tudo, tudo... que mundo novo tem esse sonho, incluso! (Peixoto, 1929).

A essa época, as nações mais pobres já estavam às voltas com a tarefa de equiparar sua população à dos países mais ricos e desenvolvidos no que concerne à educação das pessoas. Para Peixoto, o cinema aparece como a solução educacional que pode acelerar o processo civilizatório e a superação da ignorância. É também de 1929 a entrevista concedida por Jonathas Serrano intitulada Cinematografia educativa: resultados e possibilidades do primeiro movimento iniciado oficialmente no Brasil. A entrevista foi realizada por causa de uma exposição, cuja comissão organizadora foi presidida pelo professor Serrano no exercício de suas atribuições junto à Diretoria-Geral de Instrução Pública do Distrito Federal (DGIP/DF). O evento objetivava mobilizar educadores e formadores de opinião para a causa da cinematografia educativa, e milhares de pessoas se fizeram presentes (Serrano, 1929). O professor relata: A Comissão de Cinema Educativo [da DGIP/DF], promotora da exposição, procurara desde o princípio de seus trabalhos desenvolver um plano de ação eficiente, de utilidade imediata para todo o professorado. [...] Sem esquecer o curso, à noite, [...] para determinação exata do papel do cinema no ensino das várias disciplinas, na formação do caráter, na educação da própria família e do meio social (Serrano, 1929).

Serrano atribui à ausência de verbas especiais a dificuldade que enfrentava para disponibilizar aparelhos e filmes para escolas e professores. Por essa razão, ele vê com esperança o 241


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comparecimento de diversas autoridades, incluindo o prefeito e os representantes do Legislativo. O professor defendeu também a importância da colaboração dos pais e outros setores da sociedade organizada para que as escolas pudessem contar em suas atividades rotineiras com o recurso da cinematografia educativa. Indagado sobre o uso pedagógico do cinema no País, Serrano (1929) afirmou: “Sistematicamente, com plano integral e capaz de garantir êxito prático, até aqui não temos tido obra nenhuma que se imponha à atenção do país em geral”. Olhando para um panorama nacional, ele reconhece a existência de experiências que, embora louváveis, seriam esparsas e desconexas. Visando a transformar essa situação, ele expôs um plano de ação: Em primeiro lugar convencer os poderes públicos da alta relevância do problema da cinematografia educativa e da necessidade de consignar verbas especiais para aquisição de aparelhos e películas e para produção de séries educativas genuinamente nossas, adaptadas às exigências reais do meio. Nem se objecte que a produção envolve emprego improdutivo de capital. Quando houver, em todo o país, de norte a sul, real interesse por parte do magistério e dos outros elementos diretores da opinião pública – e a imprensa é, sem dúvida, um dos mais eficientes – e quando enfim o governo Federal, Estadual e Municipal, nas respectivas esferas de ação, facilitarem o surto da cinematografia educativa–a produção de boas películas de assuntos brasileiros será empresa remuneradora e capaz de tentar avultados capitais (Serrano, 1929).

E concluiu a entrevista defendendo a riqueza da cinematografia educativa e a possibilidade de sua utilização prática.

À guisa de conclusão É possível ouvir reverberar as ideias de Jonathas Serrano e Afrânio Peixoto no atual campo de pesquisa e de ação, que aproxima e faz interagir Comunicação e Educação. Para sublinhar essas conexões, assinalarei os pontos que considero mais relevantes nas falas desses autores, enfocando algumas das 242


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principais questões do uso do audiovisual e das tecnologias da comunicação no âmbito educacional. A leitura dos textos citados permite a identificação de pelo menos 14 pontos que merecem destaque na medida em que oferecem a oportunidade de colocar em perspectiva as práticas educacionais contemporâneas: 1. Um pressuposto em comum entre Serrano e Peixoto: a comunicação promove a civilização dos povos, e todas as nações almejam alcançar um grau de civilização elevado. 2. Um segundo pressuposto em comum: em um contexto em que a comunicação é dependente da leitura e da escrita, o grau de escolarização da população está diretamente relacionado com sua maior ou menor capacidade de interagir com outros povos (relações sociais, relações de mercado etc.). 3. Nesse sentido, o grau da escolarização das populações serve para a organização de um ranking comparativo entre nações, no qual os países mais pobres saem prejudicados porque em geral apresentam baixa escolaridade. 4. Uma promessa: as práticas educacionais resultantes do uso das tecnologias da comunicação poderiam acelerar uma subida de posições nesse ranking, independentemente do tempo necessário para o letramento das populações, porque permitem uma comunicação que não depende da escrita e utiliza imagens e sons. 5. Os dois autores ressaltaram (para sua época) a atualidade da discussão sobre as tecnologias da comunicação aplicadas às questões educacionais, defendendo a importância de refletir sobre elas e de viabilizar sua apropriação pedagógica. 6. Ambos reconheceram o profundo interesse que a discussão desse tema despertava entre os educadores e os formadores de opinião, inclusive entre os representantes da imprensa, pelos efeitos (benéficos e danosos) que os meios de comunicação poderiam provocar na sociedade e nos educandos. 7. Ambos afirmaram a importância de compreender e determinar claramente o papel do audiovisual, para além do divertimento 243


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público, no ensino dos conteúdos escolares, bem como na formação do caráter, da família, do meio social e da identidade nacional. 8. Já no início do século XX, ambos reconheceram a existência de um patrimônio de tecnologias da comunicação adequado, para que o projeto de uso do audiovisual na educação fosse viabilizado. 9. Ambos apontaram a necessidade da criação e do desenvolvimento de produtos ajustados às especificidades do meio sóciohistórico nacional, pois aos Estados Nacionais interessam sistemas educativos de afirmação identitária, e não aqueles que determinam laços de dependência entre nações. 10. Ambos propuseram uma ampla reformulação da educação (dos edifícios escolares à formação dos docentes) para a construção de um paradigma pedagógico que contemple o uso intenso das tecnologias da comunicação. 11. Ambos identificaram a ausência de recursos para disseminação desse projeto, principalmente ao considerar a imensidão do País e da rede de ensino que seria necessária para atender a toda a população. 12. Ambos defenderam a importância do envolvimento do poder público e da colaboração dos pais e de outros setores da sociedade civil organizada. 13. Ambos indicaram a necessidade de uma organização sistemática das iniciativas nesse campo, reconhecendo sua natureza eventual e esporádica. 14. Por fim, ambos sugerem que a apropriação educacional das tecnologias fomentaria a transformação prática da pedagogia, por meio de uma metodologia instigante, capaz de encantar adultos e crianças. As transformações tecnológicas experimentadas no início do século XX imprimiram marcas profundas no cotidiano das populações urbanas brasileiras, tornando possível perceber o efeito singular desses aparelhos e dessas técnicas nos projetos de educação concebidos nesse período. Trata-se de um período 244


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privilegiado para se estudar o início da interseção entre mídia e educação no Brasil. Os itens apresentados acima indicam a possibilidade de um componente histórico nacional imanente para o campo da mídia-educação, ainda pouco conhecido e reconhecido. O desconhecimento histórico pode levar a um entendimento da mídia-educação como se as ações nesse campo se fundamentassem apenas em fenômenos do presente. Esse modo de pensar e de agir dificultou, até agora, a valorização do processo sócio-histórico, que dá sentido às práticas mídia-educativas. Porém, facilitou a proposição desse novo campo transdisciplinar do conhecimento, que nasce da interseção entre Educação e Comunicação, ao isolá-lo de outras experiências bastante semelhantes no passado. O objetivo principal deste texto foi contribuir para as discussões que envolvem a interseção entre Educação e Comunicação, evidenciando que, no que diz respeito ao uso educacional das tecnologias da comunicação e dos produtos audiovisuais, precisamos mergulhar nas experiências já vividas e aprender com elas. Há um repertório ainda desconhecido de projetos e iniciativas de grande valor para a contemporaneidade. Desse universo, apenas alguns detalhes foram destacados e não chegam a ser representativos da variedade de ações implementadas, com mais ou menos sucesso, durante todo o século XX. Parece ter chegado o tempo de promover aproximações entre passado e presente. Cabe a nós pôr a mão na massa.

Referências ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. Cinema contra cinema. Bases geraes para um esboço de organização do cinema educativo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1931. ARAÚJO, Roberto S. O cinema sonoro e a educação. São Paulo: Edição do autor, 1939. COISSAC, M. G. Le cinématographe et l’enseignement. Paris: Larousse, 1926.

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HABERT, Angelucia B. A Bahia de aoutr’ora, agora: leitura de Artes & Artistas, uma revista de cinema da década de 20. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2002. LEFEBVRE, T. La chair e le celluloïd. Le cinéma chirugical du docteur Doyen. Brionne: J. Doyen Editions, 2004. LOURENÇO FILHO, M. B. Prefácio. In: ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes. Cinema contra cinema. Bases geraes para um esboço de organização do cinema educativo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1931. PEIXOTO, Afrânio. Um sonho, um belo sonho. O Jornal, 14 set. 1929. PIO XI, Papa. Vigilanti Cura. Aos veneráveis irmãos arcebispos, bispos e demais ordinários dos Estados Unidos da América, em paz e comunhão com a Sé Apostólica: sobre o cinema. Roma, 1936. SALLES GOMES, Paulo Emílio. Catolicismo e cinema. In: SALLES GOMES, Paulo Emílio. Crítica de cinema no suplemento literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 71-74. SERRANO, Jonathas. Epítome da história universal. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912. SERRANO, Jonathas. Metodologia da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917. SERRANO, Jonathas. Cinematoprafia educativa: resultados e possibilidades do primeiro movimento iniciado oficialmente no Brasil. O Jornal, 12 set.1929. SERRANO, Jonathas; VENÂNCIO FILHO, Francisco. Cinema e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1931. VILLELA, Heloisa O. S. Da palmatória à lanterna mágica: a Escola Normal da Província do Rio de Janeiro entre o artesanato e a formação profissional (18681876). 2002. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

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Parte 4

GESTÃO DE PRODUÇÕES COLABORATIVAS



CAPÍTULO XII

Aspectos da gestão de ONGs brasileiras que lidam com os temas Comunicação e Educação1 André Sena

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a década de 1980, o Brasil assistiu a um retorno pujante da sociedade civil ao cenário nacional, com a participação cada vez mais efetiva de organizações de diversas naturezas, formais e informais, na discussão, na elaboração e na execução de ações com o objetivo de solucionar problemas sociais (Fischer, 2001). O movimento da responsabilidade social empresarial encontrou eco no empresariado nacional, disseminando, a partir da década de 1990, o investimento privado em iniciativas de natureza social, que foram incorporadas à agenda institucional de companhias de grande porte e de médio porte (Curado, 2003). Em 1995, o Governo Federal lançou o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, no qual reconheceu o papel de organizações civis no desempenho de serviços e fortaleceu o conceito de “público não estatal” (Pereira; Petrucci; Schwarz, 1999). Esse contexto atraiu o interesse de organismos internacionais, tradicionalmente apoiadores de iniciativas não governamentais, que encontraram 1

Agradecemos a contribuição da professora Janann Medeiros da Universidade de Brasília, que forneceu valorosos comentários, sugestões e correções nas versões anteriores deste artigo.

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um novo quadro de movimentos sociais institucionalizados, vistos como potenciais destinatários de seus investimentos (Souza, 1991). Todos esses fatores levaram à emergência do terceiro setor no Brasil como uma alternativa para o enfrentamento dos problemas sociais. Formado por “organizações privadas, sem fins lucrativos, cuja atuação é dirigida a finalidades coletivas ou públicas” (Fischer, 2002, p. 45), esse setor tornou-se parceiro do Estado (primeiro setor), como executor de políticas públicas e captador de recursos e apoios junto às empresas (segundo setor). Os empreendedores sociais foram os primeiros a reconhecer que, por um lado, a institucionalização de iniciativas da sociedade civil permite um aumento exponencial da abrangência e do impacto de suas ações; por outro lado, a sua formalização cobrará o preço da sustentabilidade: as operações de uma organização sem fins lucrativos exigem a administração de uma estrutura cuja complexidade não pode ser negligenciada. Faz-se necessário conhecer mais profundamente os mecanismos que permeiam o funcionamento dessas novas instituições, uma vez que a tentativa simples e linear de transpor técnicas gerenciais oriundas de organizações empresariais costuma apresentar problemas, resvalando nas especificidades da gestão social, característica do terceiro setor (Teodósio, 2004; Azevedo; Bitencourt; Vaccaro, 2007). Em especial, coloca-se o desafio da investigação, da descrição e da proposição de modelos de gestão que consigam englobar procedimentos de controle e parâmetros de avaliação, calcados na constelação de valores presente na própria gênese da maioria dessas organizações (Tenório, 2003). Segundo Vidal e seus colaboradores (2006, p. 2), “o debate que emerge dos discursos acadêmicos é se as ONGs devem funcionar como empresas eficientes no provimento de serviços sociais, ou como organizações criadoras de novas ideias de transformação e utopias sociais”. O presente artigo tem por objetivo identificar aspectos da gestão de organizações não governamentais brasileiras que lidam com os temas comunicação e educação. Para sua 250


Aspectos da gestão de ONGs brasileiras que lidam com os temas Comunicação e Educação

elaboração, foram entrevistadas gestoras de cinco ONGs por meio de um roteiro semiestruturado, focando as funções administrativas (planejamento, organização, direção e controle) em suas organizações. Embora o terceiro setor seja objeto dos estudos organizacionais, em revisão da literatura nos periódicos científicos da área de administração, não encontramos nenhum artigo que nos esclarecesse quanto a esses aspectos técnicos da gestão. Realizamos também um levantamento em periódicos da área de estudos em comunicação, com o intuito de encontrar uma produção científica com o nosso foco de interesse. De fato, encontramos artigos e livros tangenciando questões da gestão em organizações não governamentais que atuam na área por nós investigada, mas nada que se aproximasse da abordagem técnica que fundamenta nossa pesquisa.

Funções administrativas A definição da competência e da esfera de ação da administração é atribuída a Henry Fayol, engenheiro francês, considerado o fundador da ciência da administração (Lopes, 1987). Em 1916, ele publicou Administração industrial geral, fruto de observações e reflexões advindas de seus mais de cinquenta anos de experiência como administrador em uma companhia metalúrgica francesa. Nessa obra célebre, que reúne os elementos do que viria a ser conhecido como teoria clássica da administração, Fayol propôs uma série de generalizações, entre elas, os princípios gerais de administração e os seis grupos de funções essenciais a qualquer empresa: técnicas, comerciais, financeiras, de segurança, contábeis e administrativas (Fayol, 1990). Para ele, as funções administrativas distinguem-se das demais porque não colocam em jogo a matéria-prima nem as máquinas e se restringem tão somente ao pessoal. As operações de que elas tratam têm o encargo de formular o programa geral de ação da empresa (previsão), constituir o seu corpo social (organização), dirigir o pessoal (comando), coordenar os esforços (coordenação) e harmonizar os atos (controle). 251


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Desde a formulação pioneira de Fayol, os mais diversos autores se inspiraram em suas categorias ou se apropriaram delas, alguns fazendo recortes diferentes e propondo redefinições a partir de focos variados. Para fins de nosso estudo, adotamos os conceitos e as definições encontradas em Tenório (2003), uma vez que foram desenvolvidos para responder às principais dificuldades enfrentadas pelas ONGs, sugerindo uma aproximação dos dirigentes dessas organizações com matérias já de domínio da administração. O autor chama as funções administrativas de funções gerenciais, definindo-as como as atividades de competência do gerente – a quem cabe orientar a dinâmica da organização – em seus mais variados níveis. Tenório (2003) apropria-se das cinco operações originais de Fayol, traduzindo-as em quatro funções essenciais ao trabalho do gerente: planejamento, organização, direção e controle. Nas seções seguintes trataremos separadamente de cada uma dessas funções. Antes, contudo, faz-se preciso delinear brevemente a pesquisa que alicerça o presente artigo. Caracterização da pesquisa

A pesquisa que fundamenta este artigo baseou-se em um estudo de campo realizado junto a cinco ONGs que lidam com os temas comunicação e educação. A pesquisa teve início com um levantamento das instituições consideradas referências nacionais nessa área, o que possibilitou a escolha de cinco delas, caracterizadas no Quadro 1. QUADRO 1 – Caracterização das ONGs pesquisadas ONG 1

ONG 2 ONG 3 ONG 4 ONG 5

N.º aproximado de profissionais que atuam nas atividades hoje

40

44

12

30

52

Sede

SP

BA

BA

MA

RJ

252


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Estados onde atua

Projetos em parceria com várias instituições públicas e privadas do País N.º aproximado + de 20.000 de participantes (por meio das nas atividades instituições hoje parceiras) Início das atividades

1991

BA

BA SP

MA

RJ SP SC

400

40

2.000

1.000

1999

2003

1989

1986

Cada uma das organizações indicou uma representante, em cargo de gestão na alta administração, para ser entrevistada individualmente, mediante uma entrevista semiestruturada. QUADRO 2 – Caracterização das gestoras entrevistadas Identificação

Idade

Formação

Entrevistada 1

54

Graduação em Psicologia com especialização em educação infantil

Entrevistada 2

60

Graduação em Sociologia

Entrevistada 3

34

Entrevistada 4

56

Entrevistada 5

55

Mestrado em andamento em Gestão e Desenvolvimento Social Especialização em jornalismo e direitos humanos Graduação em Comunicação Social/Jornalismo Pós-Doutorado em política e financiamento da educação Doutorado em Filosofia e História da Educação Mestrado em Administração e supervisão educacional Especialização em técnicas de comunicação e informação Licenciatura em Letras (PortuguêsFrancês)

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O roteiro da entrevista abordou aspectos das quatro funções administrativas (planejamento, organização, direção e controle) no dia a dia da organização: Como são os procedimentos concernentes a cada uma das funções? A quem cabe a execução de cada procedimento? Por que tais procedimentos se estabeleceram na organização? A quem coube tal decisão e em que contexto? Qual a justificativa para que tais procedimentos sejam adotados e não outros? Que benefícios e que problemas são percebidos em decorrência dos procedimentos adotados? As entrevistas foram gravadas, transcritas, organizadas e analisadas por meio de técnicas qualitativas. A análise buscou uma visão de conjunto, observando como as instituições lidavam com cada uma das funções administrativas descritas por Tenório (2003). Resultados

Planejamento A função planejamento (previsão, em Fayol) tem a finalidade de preparar a organização para o futuro, orientando as ações em seu dia a dia. É o “processo de estabelecer antecipadamente a finalidade da organização, escolher objetivos e prever as atividades e os recursos necessários para atingi-los” (Tenório, 2003, p. 27). Essa função envolve decisões que, a depender de sua abrangência, nível conceitual ou perspectiva temporal, poderão ser estratégicas, táticas ou operacionais. De modo geral, a função planejamento está diretamente relacionada com a elaboração de planos de ação, nos quais também são definidos orçamentos e cronogramas. Tenório (2003) argumenta que esses planos devem ser vistos não como dogmas intocáveis, mas como guias que servirão de referência para ações futuras – flexíveis o bastante para se adaptarem à imprevisibilidade do dia a dia. O planejamento nas organizações pesquisadas envolve dois níveis de tomada de decisão. O nível estratégico trata da definição do que é a instituição, do escopo e da natureza de suas atividades, enquanto o nível operacional trata, em geral, do detalhamento da execução de projetos. Decisões táticas perpassam 254


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os dois níveis: o primeiro, na escolha da estrutura de gestão da organização como um todo, e o segundo, na distribuição das tarefas entre os membros das equipes de projetos. O planejamento de nível estratégico ocorre, pelo menos uma vez por ano, em todas as organizações pesquisadas. Em algumas delas, são abordados os aspectos que caracterizam um planejamento estratégico conforme indicados na literatura, devido à colaboração de consultores especializados, voluntários ou contratados. Em outras, estabelecem-se metodologias a partir de concepções próprias, mas sempre com a proposta de se realizar uma pausa no final (ou no início) do ano para analisar o que fizemos, onde estamos e para onde queremos ir. Devido às demandas por profissionalização de sua gestão, todas as organizações pesquisadas já vivenciaram, pelo menos uma vez em sua história, um processo formal de planejamento estratégico em que as premissas que impulsionaram a sua criação foram registradas na forma de missão, visão, valores, metas organizacionais e análise de ambiente (interno e externo). Esse documento e suas premissas vêm sendo revisados desde então, ano após ano, à luz da análise: (a) das mudanças nos cenários em que a organização atua, (b) dos anseios dos públicos atendidos e (c) das demandas individuais de seus membros. De acordo com os relatos colhidos, em alguns casos, os valores e a visão do grupo de fundadores foram preservados, mas, na maioria das organizações, notam-se revisões e modificações. Embora a literatura indique que decisões desse nível cabem à alta administração (Daft, 2008) – o que numa ONG corresponderia à sua diretoria em consonância com a assembleia de sócios –, encontramos, em nossa pesquisa, um quadro diferente. Participam da reunião de planejamento de nível estratégico todos os membros envolvidos nas atividades diárias da organização, aos quais é atribuído o papel de decidir os rumos da instituição. Esse envolvimento de todos no planejamento estratégico parte do princípio de que uma relação diferenciada com a missão da instituição seria uma característica das relações de trabalho no terceiro setor. 255


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Talvez porque as pessoas que optam por trabalhar no terceiro setor [...] é muito mais uma identidade de sonhos, ideias, do que uma identidade de remuneração, trabalho e esse tipo de coisa. Não sei... às vezes também tem uma idealização muito grande do terceiro setor. Acho que o que une, mesmo ganhando menos que no mercado, que o setor privado... Acho que as pessoas valorizam muito mais a causa do que a remuneração. (Entrevistada 1)

Essa identificação com a missão leva os membros a se aprofundar nas questões que movem a organização, desenvolvendo uma visão ampliada de seu campo de atuação, independentemente de ser gestores de área ou executores das atividades-fim. Com isso, cria-se a oportunidade para que as reflexões individuais possam contribuir para o planejamento da instituição. Se ele compra isso aqui, ele internaliza o desejo de estar aqui, porque ele acredita na proposta de constituição da organização. Primeiro, ele é antenado com as pautas que estão diretamente ligadas ao público com que ele trabalha. Então, quando chega numa hora de discutir “ah e na incidência, a gente vai focar mais na praia da educação, ou...” Ele está ali na ponta com os jovens, ele pode chegar pra gente e dar um diagnóstico da sua impressão do dia-a-dia que vai mudar nossa decisão. (Entrevistada 2)

Em algumas entrevistas, relatou-se que a assembleia de sócios assume um papel consultivo em relação ao planejamento de nível estratégico. Ela não formula as políticas da instituição, mas realiza a avaliação e a ponderação da visão estratégica elaborada por aqueles que vivenciam o cotidiano da organização. Evidentemente, uma assembleia de sócios, pelo seu poder estatutário, tem legitimidade formal para vetar qualquer decisão tomada pelo coletivo dos empregados da ONG. No entanto, em nenhuma das entrevistas, identificamos a relação hierárquica empregador/ empregado existente nas empresas. Uma das entrevistadas atribuiu a inexistência dessa relação ao papel mediador exercido pelo comitê gestor: uma espécie de diretoria que tem formalmente 256


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o mesmo peso na tomada de decisão de nível gerencial. Porém, pelo que pudemos apurar, é um desejo das assembleias de sócios que o coletivo dos membros das organizações estudadas tenha voz ativa e assuma a responsabilidade por formular as decisões estratégicas da instituição. Uma entrevistada ponderou que, opinar nem sempre é fácil, embora a instituição se proponha a ouvir seus membros e acolher toda e qualquer contribuição como válida. Quando você tem uma estrutura onde você tem um empreendedor que é muito criativo, é muito inteligente, tem muita visão estratégica, isso é muito difícil para um time que é jovem, e que não tem uma política de formação, capacitação constante, não tem esse investimento, poder se colocar. Então, muitas vezes o time nem se sente muito à vontade para fazer isso, e é esse o trabalho que eu tenho feito bastante, de buscar que as pessoas consigam se posicionar e trazer soluções. (Entrevistada 1)

Outra entrevistada vê a participação no planejamento como um processo formativo em si, independentemente da capacidade de contribuir daqueles a quem é dada a possibilidade de opinar sobre assuntos institucionais. Como uma organização que sempre zelou e prezou pelos processos participativos, a gente abria essa oportunidade, mas sabia que, até internamente mesmo, havia um grau de incoerência nisso. [...] A gente nunca conseguiu perceber ou entender como é que a gente propiciaria pros estagiários, monitores, aprendizes [...] como garantir que eles, às vezes superapropriados de processos participativos dentro dos programas, também estivessem preparados para um processo participativo que estivesse pensando a organização e não mais só um pedaço do programa dele. Então a gente imaginava esse espaço, sem visão romântica disso, como um espaço educativo. (Entrevistada 2)

Em relação ao planejamento de nível estratégico, as entrevistadas apontaram apenas uma área em que as decisões se centralizam no núcleo gestor: a financeira. 257


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A única decisão que não é tomada coletivamente é a questão financeira. [...] Não depende diretamente [dos profissionais contratados para os projetos]. Depende de como se capta o recurso e como se vai fazer o planejamento para esticar durante todo o ano e ainda sobrar no início do outro ano. O diretor financeiro, junto com o [presidente da organização], faz e comunica quanto a gente tem pra gastar e em quê. (Entrevistada 3)

Uma das entrevistadas relatou que um modelo de reunião anual de planejamento deixou de ser adotado por exigir muito dos membros sem que o resultado fosse satisfatório para a instituição e para os participantes. Nesse modelo, todos participavam – incluindo o profissional encarregado da limpeza da sede –, e havia a apresentação de todas as áreas da organização. O setor financeiro apresentava a integralidade de suas planilhas de controle, devido ao entendimento da direção da organização de que todas as informações deveriam ser socializadas, sem o que não se poderia falar em transparência por parte da instituição. No entanto, além de não emitir opiniões relevantes para o funcionamento da área, a maioria dos participantes considerava o momento enfadonho, devido a um misto de desinteresse e despreparo para se posicionar em relação a aspectos técnicos da gestão financeira. É um procedimento comum a todas as ONGs pesquisadas que membros da equipe participem de toda decisão de nível operacional que os afete diretamente. O detalhamento das atividades acordadas nos projetos deixa margem para uma série de escolhas, as quais raramente ocorrem sem a existência de, no mínimo, um processo consultivo (formal ou informal) junto às equipes: “o planejamento das atividades é compartilhado exaustivamente com todos” (Entrevistada 03). A maioria dos projetos das ONGs pesquisadas reúne ações que, no conjunto, acabam por configurar uma atividade multidisciplinar. Para que seja redigida uma proposta coesa, em que as diversas ações se relacionem de maneira harmônica e haja coerência entre os objetivos propostos e os meios a serem empregados, 258


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é necessário um olhar preciso dos técnicos especialistas de cada área abrangida. As ONGs pesquisadas apresentam, em seus quadros, profissionais com experiência e conhecimento técnico em cada campo de atuação abrangido pelos projetos. Em alguns casos, foi relatada a formação de forças-tarefa dos coordenadores de área (quando essa setorialização existe) ou de grupos ad hoc multidisciplinares para a redação de projetos. Em algumas ONGs em que existem profissionais que se envolvem de forma mais estreita com a captação de recursos, detectaram-se problemas na manutenção de um modelo no qual quem operacionalizava o projeto não se envolvia na sua redação – a famosa dicotomia pensamento versus execução (head/ hands), consagrada pelos modelos clássicos de administração. A atividade passou a envolver não só aqueles que conhecem os interesses e as linguagens de potenciais financiadores, mas também os envolvidos nas atividades-fim, que têm conhecimento do tempo e dos recursos necessários para levar uma ação a bom termo, mensurando o impacto de um novo projeto na capacidade produtiva das equipes. Antes era a área da sustentabilidade que planejava o projeto, e o coordenador e as outras áreas envolvidas, que iam ter que executar, não necessariamente conheciam o projeto. Só quando ele era aprovado... Então, as chances de ter retrabalho, agendas acumuladas, problemas na execução, era muito grande. (Entrevistada 1)

Uma das entrevistadas nos relatou uma experiência em que um projeto elaborado em parceria com o poder público e organizações da sociedade civil contou com a participação dos chamados cidadãos-beneficiários2 no levantamento de informações a respeito de suas demandas e necessidades – para subsidiar a idealização do projeto – e na aprovação de sua redação final. Essa experiência destacou-se em nossas entrevistas devido ao papel ativo desempenhado por atores comumente chamados 2

Conforme termo cunhado por Tenório (2003).

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de público-alvo de um projeto social que tradicionalmente se posicionam como recebedores de um pacote – visando ao seu desenvolvimento, mas elaborado por terceiros. Foram relatadas por todas as entrevistadas experiências de planejamento participativo (em graus maiores ou menores), envolvendo não só os membros das ONGs como também atores das partes interessadas. Realizamos, primeiro, pesquisas, para termos uma base de dados que nos inspire na realização de um planejamento [...] pesquisa documental e debates realizados com jovens em 9 municípios. Tudo que se pesquisa se leva para discussão com os próprios atores, e interlocução por meio de seminários, para ver o que se pode saber. [...] Uma vez pronta a redação do projeto, voltou-se a dialogar com o público para apresentar os objetivos, estratégias, formas de gestão e avaliação. A [organização] tem como princípio se dedicar ao desenvolvimento dessas regiões mais precárias do estado, mas fazê-lo de forma articulada com todas as organizações na base. (Entrevistada 4)

Apesar de ser uma competência demandada a todo instante nas organizações pesquisadas, pelo menos uma entrevistada relatou um problema recorrente na redação dos projetos: o mau dimensionamento dos recursos necessários à implementação de uma ideia. Isso se deve ao fato de que todo novo projeto tem sempre novos elementos, seja em relação à metodologia, seja em relação aos objetivos pretendidos, o que dá às ONGs pesquisadas um caráter de experimentação permanente. Por maior que seja o conhecimento técnico e a experiência dos profissionais da organização, a incorporação constante de elementos novos instaura uma margem de risco crônica. Dificilmente, um parceiro financiador dispõe de uma estrutura que torne possível a ampliação de um orçamento, uma vez que o projeto tenha sido aprovado. [...] só que esse projeto tava desenhado para uma ação de funcionamento do centro e uma pesquisa. E essa pesquisa exatamente para acompanhar e avaliar o desenvolvimento dessas crianças. [...] Nós planejamos essa atividade de pes-

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quisa de forma muito... não tínhamos essa experiência. E a pesquisa está ocupando muito mais horas das pessoas do que efetivamente foi planejado. Então, isso foi uma questão: como fazer adequação desse projeto? E é difícil... Se você tem orçamento, você tem, se você não tem orçamento, como fazer para transformar isso em dinheiro para pagar horas das pessoas e tudo isso. [...] Nesse momento, a pesquisa era uma coisa que nunca tinha sido feita e dimensionouse uma avaliação no início de um processo, no meio de um processo e no final de um processo [...], não tinha um coordenador a todo tempo nesse processo, mas sim umas intervenções pontuais [...]. Então, isso o que que representa? Um aprendizado pra gente, na hora de pensar um novo processo de pesquisa. [...] A gente agora fez uma proposta pro financiador para que ele mantenha o coordenador de pesquisa até o final do projeto. [...] A [organização] não tem bem equalizada a questão de entrada de projetos e dimensionamento de recursos humanos para tocar aqueles projetos. (Entrevistada 5)

As atividades de planejamento apresentam uma abordagem participativa, fruto de uma cultura organizacional que preza pela autonomia e responsabilização de seus membros. A assembleia de sócios entende que decisões sobre os rumos da instituição devem ser compartilhadas tanto com coordenadores quanto com os operadores das atividades finalísticas. Os responsáveis pela elaboração de projetos a serem submetidos aos patrocinadores recorrem à colaboração tanto de membros da organização especializados nas ações propostas – devido ao seu caráter multidisciplinar – quanto dos membros que ficarão responsáveis por sua execução. Em alguns casos, até mesmo o público-alvo das organizações pesquisadas é chamado a participar da elaboração de projetos de cujas ações tomarão parte. Mesmo com o envolvimento de toda a equipe na elaboração dos projetos, algumas vezes, ocorre o mau dimensionamento dos recursos necessários à implementação de uma ideia, devido à constante proposição de ações inovadoras, nunca antes vivenciadas. 261


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Organização A função organização compreende “a capacidade ou a ação de agrupar pessoas e recursos, definindo atribuições, responsabilidades e relações entre indivíduos e grupos, de modo a possibilitar o atingimento dos objetivos da organização” (Tenório, 2003, p. 55). Segundo o autor, em toda organização ficará estabelecido, de maneira mais ou menos explícita, mais ou menos formalizada, quem poderá tomar decisões e sobre que assuntos, qual atividade caberá a quem, quem será o responsável por acompanhar e controlar cada atividade e os tipos de relações que estabelecerão entre si os diversos membros em suas variadas atividades. A divisão de trabalho, noção que, ao lado da divisão de recursos, encontra-se no cerne dessa função, pode eventualmente ser explicitada por meio de uma série de instrumentos: estatuto, organograma, regimento interno, manual de procedimentos, descrição de cargos (listagem detalhada de tarefas e de seu objetivo e das competências necessárias para o seu bom desempenho). O organograma como uma ferramenta de gestão está diretamente relacionado à função organização, que trata do desenho da estrutura organizacional. Algumas entrevistadas disseram que nunca havia sido elaborada tal representação da organização, já outras nos forneceram uma relação de áreas por função com seus respectivos membros. Buscamos nos sites das organizações e, em alguns casos, encontramos representações gráficas. Porém, nada do que nos foi disponibilizado contempla a noção de linha de comando, conceito proposto por Fayol e por meio do qual são representadas as relações hierárquicas presentes na estrutura de gestão de uma organização. Apesar disso, pelo menos uma das entrevistadas entende que há em sua organização uma hierarquia formalmente estabelecida devido à existência de diferenças na remuneração e na natureza das responsabilidades atribuídas a cada cargo: “eu tenho uma estrutura que tem gente que tem mais responsabilidade, que ganha mais, outros que ganham menos... então, não é todo mundo igual, existem níveis” (Entrevistada 1). 262


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Porém, pelas respostas obtidas, conclui-se que se atribui à estrutura hierárquica o papel de distribuir não o poder, mas a responsabilidade pelo fazer. Uma das entrevistadas considera que, como a cultura do planejamento coletivo e da tomada de decisão compartilhada é uma marca de sua organização, pouco daquilo que os membros executam nasce de orientações que chegam prontas das instâncias superiores. Para essa entrevistada, o conceito de cargo gerencial não se relaciona com o poder de mando, e sim com a natureza da tarefa: “não se está falando ali de um cargo, se você aumentou de status... Não é nada disso que está em jogo. Está em jogo um outro fazer, você está indo para uma outra função” (Entrevistada 2). Ainda que em quase todas as entrevistas o conceito de cargo gerencial seja relacionado ao dever de criar condições para o fazer, algumas respostas apontaram a existência do direito de mandar e de ser obedecido. Os exemplos dados retratam situações isoladas – evidenciando uma prática pouco rotineira –, mas que reforçam o entendimento de que, apesar de tal poder permanecer latente boa parte do tempo, ele existe: “processo democrático é uma coisa [...], mas, às vezes, é preciso tomar uma atitude de autoridade [...]. Há as atitudes que precisam ser tomadas para beneficiar o próprio processo democrático” (Entrevistada 03). Uma das entrevistadas respondeu que, uma vez definidos de maneira negociada e democrática os marcos conceituais que irão balizar os processos decisórios dos gestores, decisões tomadas de maneira centralizada não são percebidas negativamente, caso sejam coerentes com esses marcos e devidamente comunicadas e justificadas aos membros. O planejamento é coletivo, mas há uma distribuição de tarefas para a execução. [...] Na minha concepção, o interessante [...] não é simplesmente descentralizar, e sim socializar ao máximo toda essa concepção, definir consensos e, a partir daí, dependendo da natureza daquilo que for necessário, você centraliza ou descentraliza (Entrevistada 4).

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A maioria das ONGs pesquisadas não adota uma estrutura em que um diretor assume sozinho a responsabilidade por decisões executivas. A direção executiva é quase sempre feita de forma colegiada. Em geral, há um grupo menor que congrega os responsáveis por áreas macro (tais como a coordenação de projetos, a coordenação financeira e a coordenação administrativa) e um comitê mais amplo que envolve também os gestores de cada área de atuação da organização. Há casos de departamentalização por projetos e outros por eixos temáticos. Cabe ao grupo menor ter a visão do que é necessário institucionalmente para que as deliberações do grupo maior possam ser efetivamente operacionalizadas. É a equipe que pensa estrategicamente a organização, que tem tempo para isso. É remunerada para isso. [...] É a equipe que, na hora que parte para a execução do que o comitê gestor deliberou, consegue ver o macro. Porque depois que o coordenador de programa delibera e diz “ah, eu acho que o caminho poderia ser esse e tal”, na prática ele vai pro seu cadinho, pro seu programa, ele não consegue ter essa dimensão macro. E quem tem esse olhar macro e acaba provocando o comitê gestor é essa coordenação executiva. (Entrevistada 2)

Uma das entrevistadas relatou uma malograda experiência de direção centralizada por ocasião da contratação de um gestor profissional originário do meio empresarial e interessado em contribuir com ações na área social, agora que se encontrava aposentado. O comando executivo a cargo de uma só pessoa não deu certo porque as adequações propostas com o objetivo de profissionalizar a gestão aparentemente entraram em choque com valores intrinsecamente ligados ao funcionamento dos processos organizacionais. Após dois anos, seu desligamento ocorreu em meio a uma crise que quase levou ao fechamento da ONG. Foi então que se implantou o modelo atual em que três membros assumem a direção executiva de forma colegiada, compartilhando algumas tomadas de decisão com um grupo maior integrado por oito coordenadores de área. 264


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Em 2001 a situação era muito mais hierárquica do que é hoje. Essa questão da gestão compartilhada, das três pessoas, o comitê gestor, nasceu depois. Na ocasião entrou uma pessoa e foi muito problemático. Foram dois anos em que a equipe teve um problemaço, eu achei que ia dar muito certo, mas não deu. Era uma pessoa com uma formação de empresa, mas que tinha muitos interesses em projetos sociais. Tava aposentado. Tinha um perfil que poderia dar um upgrade na [organização], mas a coisa não aconteceu. Também, fazer a gestão de forma hierárquica e você assumindo toda uma coordenação, uma instituição como um todo, é um peso muito grande. [...] E foi realmente uma coisa muito boa fazer essa descentralização que estava em um pelo menos em três e desses três compartilhando com outros oito. (Entrevistada 5)

Uma característica central das ONGs pesquisadas, e que impacta diretamente sua organização, é a captação de recursos por meio de projetos. Essas organizações têm sua gênese relacionada a um projeto inicial, ao qual, em virtude do sucesso e do reconhecimento alcançados, vários outros projetos foram agregados, o que levou à necessidade de uma estrutura de gestão compatível. No caso da função administrativa organização, o enfoque participativo – existente na cultura das organizações pesquisadas e revelado nas entrevistas – traduziu-se numa preocupação com a integração das várias áreas da instituição. Essa preocupação apareceu justificada sob dois pontos de vista. O primeiro, mais técnico, trata do ganho de produtividade. Uma das entrevistadas relatou que o modelo de gestão por equipes de projetos causou uma compartimentalização da instituição, implicando uma divisão de tarefas inadequada face ao potencial humano disponível. O prejuízo na capacidade produtiva foi contabilizado não só pela instituição, mas também pelos próprios membros. A solução encontrada foi buscar a ajuda de um consultor externo para uma reestruturação, que levou a um modelo próximo daquele que a literatura chama de matricial.3 3

“Em paralelo à estrutura funcional, sob a responsabilidade dos gerentes funcionais, são criados grupos de projeto, sob a responsabilidade de gerentes de projetos. Os

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A direção [da instituição] sentia que tinha um modelo de trabalhar por equipe com projeto que não estava funcionando. Existia um desgaste nas relações, o clima organizacional estava mais pesado [...]. Quando você tem um time que é supercomprometido, que topa varar noite, esse ritmo é uma coisa que você aguenta, mas não aguenta tanto tempo [...]. Então, eu acho que isso acaba causando um desgaste muito grande. Existem equipes que trabalham na mesma sala uma do lado da outra, mas não sabem o que estão fazendo, e, depois, percebem que podiam estar trabalhando junto. Teve retrabalho. [...] Eu acho que foi esse movimento que fez com que a direção buscasse uma ajuda externa que pudesse repensar a instituição e que repensou por meio de um novo desenho de áreas de funcionamento [...]. A direção resolveu repensar pelo desenho organizacional: nova divisão de trabalho, novas áreas, aí se desenhou um organograma que fosse por áreas-fins e não por projetos. (Entrevistada 1)

Essa concepção de desenho institucional a partir de uma estrutura matricial apareceu também em outras entrevistas (apesar de nenhuma delas utilizar essa denominação). O outro ponto de vista para justificar o esforço de integração entre as áreas diz respeito aos valores institucionais. Segundo esse ponto de vista, relatado em uma das entrevistas, cabe à direção o papel de trabalhar para que, na dinâmica organizacional, prevaleça um valor caro à instituição: o sentimento de pertencimento por parte de seus membros. Trata-se da manutenção de um ambiente em que haja companheirismo, troca, solidariedade e ajuda mútua. O esforço integrativo, sob esse ponto de vista, busca que cada um, quaisquer que sejam suas tarefas ou funções, sinta-se parte da organização como um todo. Mais do que isso, pretende-se que esse sentimento leve à adoção de comportamentos que promovam a integração e o grupos de projeto utilizam as mesmas pessoas que pertencem aos setores funcionais. Estes passam a ter dois tipos de trabalho, um relativo ao seu setor funcional e outro relativo ao projeto do qual estão participando; e dois “chefes” diferentes, o gerente funcional e o gerente do projeto” (PATAH; CARVALHO, 2009, p. 304).

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pertencimento, num movimento contínuo de retroalimentação dos valores institucionais. Conforme relatado anteriormente, praticamente todas as entrevistadas informaram que a área financeira costuma ser gerenciada sem a participação da direção executiva ampliada (o fórum que reúne o núcleo gestor e as coordenações de área). Uma entrevistada evidenciou uma razão para isso, já comentada na seção Planejamento: o desinteresse da maioria dos participantes da reunião de planejamento estratégico participativo em discutir e opinar sobre os assuntos da área financeira. Outro motivo levantado para a área financeira ser gerenciada sem a participação de um fórum executivo ampliado envolve uma visão estratégica das atribuições e responsabilidades dos profissionais que atuam nessa área das ONGs pesquisadas. As entrevistadas que se aprofundaram nessa questão concordaram que cabe às organizações um papel mais complexo do que o simples controle orçamentário dos projetos. Possibilitar o atingimento dos objetivos da organização requer uma engenharia financeira em que o dinheiro dos projetos deve atender tanto àquilo que foi acordado com o financiador quanto à visão ampliada que a instituição tem das ações que deve promover para cumprir sua missão. Muitas vezes, um projeto vem viabilizar um conjunto de atividades que compõe apenas em parte a ação global que a instituição entende que deva ser levada a cabo. Faz-se então necessária a articulação de vários projetos para que a ação seja executada: Normalmente, um projeto que financia pessoas (formação), não financia equipamento e vice-versa. [...] Então essa parte financeira fica num controle totalmente separado. [...] Todo mundo tem conhecimento do orçamento. [...] Agora, não é cada pessoa que diz “preciso de tanto”, porque isso não existe. (Entrevistada 3)

Em casos assim, o coordenador da ação gerencia não um projeto, mas um conjunto de atividades financiadas por vários 267


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projetos que se complementam. Com isso, alguns projetos também financiam atividades que envolvem ações diferentes, as quais têm, do ponto de vista da organização da ONG, coordenadores diferentes. Outras vezes, há atividades que a ONG considera importantes e para as quais não há orçamento previsto em nenhum projeto em andamento. Havendo uma folga em algum orçamento, busca-se uma rubrica compatível para implementar tais atividades. Em muitas ocasiões, surge uma situação como a relatada na seção Planejamento, em que os recursos para viabilizar uma ação foram mal dimensionados. Caso o parceiro não possa ou não concorde em aprovar um aditivo, a área financeira precisa realizar uma verdadeira engenharia orçamentária, baseando-se no seu conhecimento das rubricas ricas e pobres e dos termos dos contratos firmados com os financiadores, para garantir a continuidade do processo. Há uma questão ainda que envolve a área financeira. A prestação de contas junto ao parceiro financiador é relativamente flexível. Se, durante o desenrolar do projeto, foram feitos redirecionamentos que geraram um impacto social positivo, há grande chance de que o financiador veja tal descumprimento do acordado com bons olhos. Mas há toda uma prestação de contas com as instâncias do poder público, principalmente em se tratando de tributação, para a qual não há tolerância no descumprimento de normas estabelecidas por lei. As entrevistadas relataram casos de ONGs cujo trabalho era reconhecido pela sociedade, mas que tiveram que encerrar suas atividades por problemas dessa natureza. Daí a atenção especial dada pela direção à área financeira. As entrevistadas abordaram essas várias situações relatadas para explicar a razão pela qual, muitas vezes, a área financeira se mantém acima das decisões envolvendo a ação social propriamente dita. As áreas finalísticas das ONGs pesquisadas são tipicamente mais integradas e participativas, enquanto as áreasmeio, aparentemente pelo tipo de competências que demandam de seus executores, permanecem relativamente isoladas, em 268


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graus maiores ou menores, ainda que em congruência com os valores e finalidades da organização. Uma das entrevistadas relatou a existência, em sua organização, de um plano de cargos e salários, elaborado com o apoio de uma consultora de recursos humanos e submetido à análise e à aprovação do coletivo dos membros, após ajustes feitos pela direção executiva. Entre os ganhos percebidos pela entrevistada está a formalização da isonomia entre os projetos no tocante à remuneração da equipe. Profissionais de competências, carga de trabalho e responsabilidade semelhantes recebem a mesma remuneração, independentemente da política de remuneração proposta pelo financiador. Por exemplo, jamais um parceiro externo diria que um educador, porque é do programa dele e ele pode pagar mais, ele vai ganhar mais do que o outro. Não, isonomia vale para todos os projetos, todos os educadores que têm funções semelhantes vão ganhar de acordo lá com suas competências e com sua carga de trabalho dentro do projeto e quem define isso é esse plano de cargos e salários, e não o financiador. Essa definição do que configuraria essas competências, se tem curso disso e daquilo, tempo de instituição, então você tem umas peculiaridades que é bem da nossa praia [...]. (Entrevistada 2)

A hierarquia de comando das ONGs pesquisadas não se encontra representada em organogramas. Porém, a atribuição dos cargos respeita uma distribuição assimétrica de responsabilidades em natureza e alcance. O fato de a maioria dos recursos ser captada junto a patrocinadores que financiam projetos induz a organização do trabalho por meio de equipes. A preocupação de que haja a integração de todos os membros e áreas leva à criação de arranjos que ajudem a superar possíveis isolamentos. A direção executiva é colegiada, geralmente composta de três ou mais membros, e todos os níveis de tomada de decisão tendem a ser descentralizados a não ser pelo setor financeiro. Sobre este, pouco se opina, mesmo nos fóruns coletivos de tomada de decisão, devido a um misto de desinteresse e desconhecimento 269


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técnico por parte dos demais membros. Decisões centralizadas são bem recebidas desde que percebidas em congruência com os valores compartilhados pelo coletivo dos membros. As decisões referentes ao setor financeiro são as mais centralizadas, em todas as organizações estudadas. Direção A função direção é a atividade de “conduzir e motivar as pessoas a executarem suas tarefas a fim de alcançar os objetivos organizacionais” (Tenório, 2003, p. 79). Engloba duas funções previstas originalmente por Fayol: comando e coordenação. Como explica Tenório (2003), as atividades relacionadas a essa função poderão exigir do gerente as capacidades de coordenar, liderar, motivar e tomar decisões. O elemento fundamental relacionado ao desempenho da função direção é a comunicação, sem a qual não se tem sucesso em interagir com as pessoas. Os cargos de direção/gerência nas ONGs pesquisadas, em regra, são ocupados por pessoas que têm uma história de trabalho ou de afinidade com a instituição. Para as entrevistadas, isso se dá pelo fato de que a competência considerada prioritária para que alguém possa conduzir uma atividade nessas organizações é de natureza atitudinal. Trata-se do conhecimento e da internalização dos valores que constituem a referência da organização e do consequente domínio das maneiras estabelecidas consensualmente para traduzir tais valores em práticas de trabalho. Com isso, eficiência não significa simplesmente fazer mais com menos, e sim levar a termo essa equação respeitando o jeito de trabalhar consagrado pela instituição. Cada organização pesquisada teve sua própria história para a construção de seu conjunto de valores e de suas formas de traduzi-los. Todas as entrevistadas concordam que, ao se fazer mais com menos sem respeitar esses valores e práticas, perde-se o sentido da ação. A gente abre seleção, reconhece que não tem aquele knowhow, tenta traçar um perfil bem fechadinho [...]. Primeiro, a gente, em geral, faz, às vezes, uma consulta interna. Pessoas que a gente acha que tem o desejo ou o perfil, apesar de

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não ter trabalhado com... Porque pra gente é muito caro que entenda o nosso processo de trabalho. (Entrevistada 2)

Se normalmente as organizações exigem de seus membros o comprometimento com as metas organizacionais, percebemos nas entrevistas que os profissionais das organizações pesquisadas são bastante exigidos em relação aos valores que caracterizam a identidade da instituição. Essa exigência leva a conflitos de visões de mundo diferentes, que a direção busca equacionar por meio das dinâmicas e temas escolhidos para as discussões. Uma das entrevistadas relatou que, com o objetivo de aprimorar os processos organizacionais, a direção propôs à equipe que se debatessem conceitos psicanalíticos. Aproveitando a expertise de um de seus coordenadores, foram realizadas leituras de textos seguidas de debates; alguns dos autores lidos, psicanalistas de renome nacional, também foram convidados a realizar conferências e discutir a relevância da teoria psicanalítica para a elucidação dos conflitos que surgem no dia a dia da organização. Lidamos com um grupo de profissionais mais jovens, nível superior, alguns com mestrado, especialização, [...] abertos a uma exposição de pensamento em outras perspectivas. Não havia exatamente conflito, mas se gerava muitas dúvidas. A concepção dominante na qual eles se formaram na universidade não era aquela que nós decidimos utilizar como nossa referência. [...] Não se tratava da possibilidade de um conflito para aquilo que era o trabalho apenas, mas por um modo de vida. O grupo de estudo te levava a discutir sua formação, seus valores, seu modo de vida. Como você vive, como você tem seus hábitos, como você tá se posicionando enquanto pessoa. [...] Buscamos conteúdos de psicanálise pra tentar compreender as contradições do eu que existem. Você tinha o conflito instalado nessas pessoas, esses especialistas que participavam [...] ajudavam a reconhecer e enfrentar as contradições. A psicanálise é a possibilidade de compreender os conflitos. [...] lendo os textos e trazendo os pensadores para interlocução mais próxima. (Entrevistada 4)

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Uma das ONGs pesquisadas desenvolveu e sistematizou uma metodologia de capacitação de educadores em parceria com uma instituição educacional europeia. Não se trata de uma capacitação interna, mas de um produto formatado, objeto de muitos projetos voltados para Secretarias de Educação e escolas. Como as atividades em torno das quais se estruturam seus projetos são de cunho educacional, essa metodologia pronta para a disseminação é um processo de referência para seus profissionais, dos quais se espera que compreendam e reproduzam as práticas propostas pela instituição. [A organização] vem fazendo, há dez anos, formação de pessoas e formou um grupo na metodologia de capacitação, nós chamamos de facilitação de mudanças educacionais. Esse curso de formação de facilitadores foi desenhado com a nossa experiência de formação e uma organização holandesa, que dá consultoria em todo o mundo nessa área de educação e de facilitação de mudanças educacionais. Desenhou-se uma metodologia que foi construída com a experiência internacional [da organização holandesa] e com todo o nosso conhecimento já sistematizado até aquele momento. [...] Então, é uma metodologia, é um rumo metodológico que a gente tem. (Entrevistada 5)

Em uma das ONGs pesquisadas foi estabelecida uma rotina de reuniões com o objetivo de desenvolver e aprimorar as competências gerenciais dos coordenadores de área, bem como de promover o desenvolvimento dos componentes de suas equipes. [...] as pessoas, principalmente as lideranças, que são minhas prioridades nesse momento, elas só vão poder ser autônomas se elas puderem ser responsáveis também, ou seja, se elas tiverem a condição de ter a capacidade de decisão, de escolha, e o conhecimento pra poder fazer isso. Então, a autonomia não quer dizer abandono [...] A instituição tem que fazer ajudar o fortalecimento dessa liderança, seja na parte técnica, ou nas ferramentas de gestão. Eu tenho pessoas que são líderes de áreas que tem conhecimento técnico incrível, [...] mas eu tenho que fortalecer essa pessoa com

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a ferramenta de gestão também, porque se ele não tem a capacidade de conduzir seu time, dificilmente ele vai ter a capacidade de atingir as metas da área. É uma preocupação sim. É por isso que estamos com um processo agora, meio permanente, de formação: o time se reúne a cada 15 dias, 4 horas, e com os temas prioritários que são definidos com o próprio time. (Entrevistada 1)

Os processos de formação vão além de competências profissionais. A vivência de valores humanos e as maneiras de traduzi-los no trabalho, no dia a dia da organização, é um tema recorrente nos espaços de discussão que as ONGs pesquisadas promovem e que fazem parte de sua rotina. Em todas as entrevistas, foi-nos passado o entendimento de que um dos objetivos das áreas-meio das ONGs pesquisadas é conseguir criar condições para que seus membros tenham uma prática coerente com os valores arregimentados das teorias em que se referencia o discurso organizacional. As entrevistadas consideram que o bom funcionamento de suas organizações depende dessa coerência. [...] se a gente trabalha esse valor, a honestidade, é pra ser honesto mesmo. O desapego a padrões antigos... é um processo de transformação pessoal. Pra que você possa ajudar a transformar o mundo você precisa também estar atento à sua transformação, se não você não vai levar credibilidade ao que você faz, nem ao que você prega. Não adianta parecer, você precisa ser. [...] Em tudo que nós fazemos, os valores estão presentes: solidariedade, coletividade, espiritualidade, prazer em servir, alegria. [...] A coisa aqui é papo reto, é olho no olho, uma relação muito franca. Como trabalhamos com juventude de periferia, a coisa é muito clara, e eles são muito claros, muito objetivos. (Entrevistada 3)

A comunicação interna também é vista como uma ferramenta fundamental para promover o engajamento. Há ações que buscam levar informações sobre o funcionamento, a atuação e a estrutura da organização a todos da equipe. Por meio dessas ferramentas, cada integrante toma conhecimento do trabalho de seus colegas e tem seu trabalho reconhecido internamente. 273


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Acho que, nesse processo, comunicação é fundamental. Tanto você compartilhar mais as coisas: desde está entrando fulano, está saindo fulano da instituição, conseguimos mais um projeto, conseguimos um novo parceiro. É compartilhar essa informação [...] Isso é uma coisa que eu insisto o tempo todo [...] mesmo que seja por e-mail, seja na reunião geral, contar os sucessos, as coisas boas. Quem está na execução, mas fica trabalhando aqui muito internamente, não tem a dimensão do reconhecimento que [a organização] tem lá fora, e é importante trazer isso, pois traz um novo significado para aquele pedacinho daquele trabalho que a pessoa está fazendo. Então, a comunicação é superimportante. (Entrevistada 1)

A identificação com a missão e o modo de trabalhar da organização é, segundo os relatos, o mecanismo mais importante para garantir o comprometimento individual dos membros da equipe. Esse mecanismo garante que dois valores importantes e presentes em todas as entrevistas integrem o posicionamento exigido (implícita ou explicitamente) dos profissionais: autonomia e responsabilização individual. Como comentamos no tópico organização, foram poucas as situações relatadas em que a liderança precisou fazer uso da autoridade do cargo para que alguma atividade se realizasse. A recusa ao uso desse tipo de autoridade é parte da cultura das organizações pesquisadas. Quando a relação indivíduo-instituição preconizada pelos valores organizacionais se descaracteriza, em geral, a solução é o desligamento. Identificamos algumas situações em que ocorreu desligamento. Uma delas está relacionada com inadequações atitudinais, situações em que conhecimentos e habilidades técnicas não são questionados, e sim o desejo ou a capacidade de interagir com os colegas. A maior parte das entrevistadas deu muitos exemplos de como a cooperação e a colaboração no seio das equipes faz parte da cultura de suas organizações. Um profissional que se sinta desconfortável com essa forma de compartilhar o trabalho também deixará desconfortável o resto de um grupo, já acostumado com tal cultura. 274


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Não há um processo demissional. É sempre muito conversado. [...] Há uma seleção natural [...] você não está se sentindo dentro do propósito da instituição [...] as pessoas reclamam, [...] fulano não está correspondendo às expectativas, ele não está sendo cooperativo, não é colaborativo com os colegas. A gente chama pra juntar pra fazer tal e tal trabalho, e ele quer fazer sempre o trabalho dele [...]. A gente chama a pessoa, conversa, quer saber se é aquilo mesmo que ela quer. (Entrevistada 3)

Há outras situações em que o profissional não vê mais a organização como um meio para realizar seus projetos profissionais. Mudanças ambientais levam a reposicionamentos estratégicos da organização, fazendo com que determinados campos de ação deixem de ser privilegiados. O profissional que não se vê na nova configuração pode, nesse caso, não ver mais sentido na sua permanência. Uma entrevistada comentou que essa questão é tratada com certo cuidado, uma vez que a instituição estabelece uma relação diferenciada com seus profissionais. O sentimento de pertencimento é constantemente trabalhado para a manutenção do comprometimento e da harmonia interna e, consequentemente, há o estabelecimento de uma relação afetiva com cada membro. A participação na recolocação de um membro, mais do que uma política de recursos humanos, é vista como resultado dessa relação afetiva. A força dessa relação e a dificuldade em se formarem quadros com perfil multidisciplinar para atuação em papéis diversificados faz com que, em determinadas circunstâncias, um indivíduo possa até mesmo influenciar a organização a considerar outra área de atuação ainda não abrangida e que, sendo de seu interesse, justifique a sua permanência no quadro. É sempre num processo muito espontâneo. De ficar muito evidente que o plano de vida daquela pessoa não casa mais com a organização ou que a função que ela exercia, de repente, não contempla mais aquele programa que ela tá dentro. Ela mesma chega a essa conclusão. Fica gritante. [...] Já aconteceu isso muitas vezes de superprofissionais

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aqui dentro, da gente ter que abrir mão deles porque fomos mudando de foco e aí a gente ajudar ele na reinserção dele em outra organização. Ou quando ele tá a fim de buscar outras coisas. Isso também já aconteceu, várias vezes, de gente super-boa, que a gente adora, ama, quer aqui dentro e ela chega e diz: “deu pra mim, quero experimentar outras coisas, outras áreas que a [organização] não oferece”. Pode ser exatamente o contrário, inclusive: “Vocês estão aqui nesse foco e tal, mas eu estou mais a fim de trabalhar com essas outras coisas”. [...] Essa pessoa é claro que ela tenta influenciar nos nossos programas, na nossa decisão. “Será que a [organização] não tem interesse de trabalhar esse tema?” (Entrevistada 2)

Uma entrevistada apontou duas situações em que a direção se depara com problemas motivacionais: ociosidade e sobrecarga de trabalho. A primeira é quando, dentro da dinâmica das atividades correntes de um projeto, não há demanda de trabalho para profissionais que ali foram agregados para desempenhar tarefas técnicas específicas. A entrevistada nos relatou que a preocupação por parte da liderança, nessa situação específica levantada, não passa pelo custo de se manter membros ociosos, mesmo que temporariamente, uma vez que essas tarefas fazem parte da rotina dos projetos e não seria o caso de se pensar em desligamento. Foi enfatizado na entrevista, sobretudo, o compromisso da direção em dar suporte a esses profissionais, buscando meios de integrá-los a outras atividades, como forma de manter a sua motivação e o prazer em fazer parte do quadro da organização. “Quando não tem projetos de produção, existe certa ociosidade naquilo que é função da área técnica. Aí precisamos dar apoio, inserir essas pessoas nos projetos em curso” (Entrevistada 5). O segundo tipo de situação relatada que afeta a motivação da equipe é o excesso de trabalho devido ao mau dimensionamento do esforço necessário à consecução de um objetivo. Como já havíamos comentado na seção Planejamento, identificamos nas práticas de elaboração de projetos a incorporação permanente de elementos novos que instaura uma margem de risco crônica. 276


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Nesses momentos, a identificação que cada membro tem com os impactos a serem alcançados com o resultado das atividades é fundamental para garantir a consecução dos objetivos propostos. “Há desmotivação também quando se está com muito trabalho pra dar conta e pouco tempo [...], excesso de trabalho que causa estresse e frustração de não dar conta de tudo aquilo que tem que ser feito” (Entrevistada 5). A direção das ONGs pesquisadas é composta quase exclusivamente por pessoas que têm uma história de trabalho ou afinidade com a instituição. Na escolha de pessoas para ocupar postos de trabalho, a princípio, a identificação com valores e práticas institucionais pesam mais do que domínio técnico ou experiência na área. Processos de formação permanentes ou pontuais foram relatados em todas as entrevistas. Envolvem não só o desenvolvimento de competências profissionais, mas, principalmente, a vivência de valores humanos e as maneiras de traduzi-los no trabalho, no dia a dia da organização. A identificação com a missão e o modo de trabalhar da organização é o mecanismo mais importante para garantir o comprometimento individual dos membros da equipe. Membros que não se adéquam nesse campo acabam se desligando, mas não sem obter grande apoio da organização na sua recolocação em outras instituições. Ociosidade e sobrecarga de trabalho são as principais causas de desmotivação entre os integrantes das ONGs investigadas. Controle A função controle “compara as ações planejadas com os resultados obtidos. A partir dessa análise é possível dar início a eventuais correções nos rumos definidos pela organização” (Tenório, 2003, p. 95). O controle pode ocorrer: (1) antes do início da execução de um plano de ação, através da avaliação da disponibilidade de condições e recursos necessários; (2) durante a execução, por meio do acompanhamento da operacionalização do plano de ação; (3) após a execução, ao se compararem os resultados esperados e os efetivos, diagnosticando eventuais disparidades e suas causas. O controle envolve análises dos 277


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níveis estratégico, tático e operacional, os quais têm abrangências e dimensões temporais distintas. Ele ocorre dentro de uma sequência lógica, com quatro momentos: estabelecimento de padrões de desempenho, mensuração dos resultados, comparação do desempenho real com o padrão estabelecido e adoção de ações corretivas. O tema avaliação, diretamente relacionado à função controle, foi abordado em todas as entrevistas, por integrar, tradicionalmente, a estrutura das ações desenvolvidas por organizações não governamentais: “dentro dos projetos ou oficinas, há sempre um processo de avaliação. Podem ser escritas, faladas, representação [...], há sempre uma dinâmica de avaliação em que comparamos o momento inicial com o momento final” (Entrevistada 5). A organização de parte das atividades por meio de projetos leva as ONGs pesquisadas a adotar certos procedimentos de controle, uma vez que, para cumprir o contrato firmado com o parceiro financiador, terão que prestar contas de suas atividades. O grande número de reuniões e debates que integra a rotina das organizações pesquisadas contribui para que todas as etapas de uma ação sejam constantemente monitoradas e avaliadas. Os profissionais estabelecem uma relação de confiança e troca, o que favorece que os colegas expressem suas opiniões entre si. A tarefa de identificar boas práticas e apontar falhas e necessidades de correção de rumos não é exclusiva dos coordenadores. De modo geral, pela dinâmica que se estabelece nos grupos, todos os colegas colaboram expondo seus pontos de vista a respeito do desenvolvimento das atividades. Quando nos reunimos e há uma avaliação do grupo sobre determinadas ações, o feed-back é dado ali. [...] Percebo que há um crescimento muito grande da ação de nossos educadores. Interesse, troca de conhecimentos, aprofundar questões, as pessoas individualmente estão procurando e estão trazendo essas questões para os pequenos grupos. (Entrevistada 5)

Em alguns casos, a rotina de reuniões de avaliação é semanal, ocupando uma carga horária considerável e envolvendo 278


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tanto os coordenadores quanto os executores na ponta: “essa direção colegiada se reúne toda segunda pela manhã para olhar tudo que precisaria para a semana e, na segunda e na terça, tudo isso era discutido com o coletivo interdisciplinar. Só na quinta começava o deslocamento para os territórios” (Entrevistada 4). A maioria das ONGs pesquisadas desenvolveu metodologias de trabalho, que com o passar do tempo se tornaram o seu maior diferencial. Mais do que o resultado de suas ações, os métodos utilizados para alcançar seus objetivos são, hoje, padrões de desempenho registrados, perseguidos em cada trabalho realizado. As metodologias que cada organização desenvolveu à sua própria maneira são a maior referência nos processos internos de checagem do desempenho da instituição. Quando a gente desenvolve o nosso planejamento, a gente não só diz a ação que a gente quer fazer, mas como a gente quer fazer, a [organização] tem um jeito de fazer as coisas. Por mais que os programas tenham suas peculiaridades, existe um jeito de fazer da instituição, inclusive tem uma metodologia que é a nossa coluna vertebral que é a educação pela comunicação. Então, tudo vai ter que respeitar o que reza a cartilha da educação pela comunicação: processos participativos, colaborativos, integrados, dinâmicos, interativos, onde educador e educando constroem juntos. Então, [...] tem um modus operandi aí que é característico dessa metodologia que perpassa todos os programas da organização. (Entrevistada 2)

A clareza sobre o rumo metodológico que uma ação deve tomar deve-se em parte ao fato de que as ONGs pesquisadas produziram muitos textos explicitando as linhas de pensamento nas quais elas referenciam suas práticas. Uma das pautas das reuniões de acompanhamento trata da verificação da coerência entre a maneira como as atividades vêm sendo conduzidas e a proposta da organização. Apesar da proposta participativa, a [organização] tem uma direção que é a opção política, ideológica, pedagógica da

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instituição e deixou isso explícito em tudo que escreveu. [...] A [organização] se dedicou muito a registro [...] muitas publicações. [...] Termos de referências de todas as áreas [...]. O que se pactua são questões mais conceituais e ideológicas. A partir daí, o setor encarregado pela operacionalização toma as decisões com autonomia. (Entrevistada 4)

Uma das organizações que desenvolveu e sistematizou um processo de formação de educadores tem um documento em que foram registrados aspectos do comportamento esperado daquele que atuará em nome da instituição. É uma referência forte tanto para o profissional pensar sua prática quanto para a direção na hora de avaliar o grau de adesão de um membro à proposta institucional nas práticas do dia a dia: “não tem escrito os padrões de desempenho, mas tem as regras de um bom facilitador. [...] como agir enquanto facilitador [...] temos a sistematização do que a gente espera que os nossos educadores façam” (Entrevistada 5). Todas as ONGs pesquisadas têm atuação integral ou parcial na área de educação midiática. A lida com práticas pedagógicas e a relação com esse campo de conhecimento tem impacto direto na estrutura e no funcionamento das ONGs pesquisadas, uma vez que ele comporta uma extensa tradição em metodologias de acompanhamento e controle. Essa relação natural entre o campo de atuação da organização e práticas de controle institucional apareceu em diversas entrevistas. A gente não tem um momento que é para isso. Isso acontece o tempo inteiro com essas reuniões que podem ser semanais, quinzenais, ou os encontros mensais entre as equipes [...] Faz parte da rotina, principalmente para uma instituição que tem uma atuação grande na área de educação. Já é muito da natureza de quem trabalha nessa área isso: planejar, avaliar, reencontrar, replanejar, discutir, avaliar o processo. (Entrevistada 2)

Para algumas das entrevistadas, o conceito de controle burocrático tem conotação negativa, associada à noção de 280


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fiscalização. Em algumas entrevistas, novamente se aludiu à abordagem pedagógica da instituição para se explicar o sentido dado pelos membros às práticas adotadas para controle dos processos internos. Os relatórios não eram só para serem entregues. Eram lidos pra ver quais eram as dificuldades e o que fazer diante delas. Todos os profissionais responsáveis pelas ações produziam esses relatórios. Era um trabalho muito ampliado, numa tentativa de ao máximo se acompanhar aquilo que se fazia. Não é um acompanhamento no sentido de controle no sentido burocrático, mas um controle pedagógico pra ver como redefinir processos. Na reunião de segunda, é feita a avaliação das práticas frente ao conteúdo teórico estudado, mesma coisa na terça. (Entrevistada 4)

Uma das entrevistadas considerou que as práticas adotadas, principalmente as reuniões, suprem as necessidades de monitoramento, mas ponderou que ainda há muito a fazer em termos de profissionalização da gestão. Tal entrevistada tem formação e experiência na área de gestão de organizações sem fins lucrativos e reconhece que há uma série de ferramentas ainda não incorporadas aos processos organizacionais, que, no futuro, poderão contribuir para aumentar o controle do desempenho da instituição. Então, eu ainda não tenho [sistema de monitoramento], mas eu me reúno sistematicamente agora e eles sabem que, pelo menos uma vez por mês, a gente vai ter reuniões de monitoramento desses planos de ação, junto com execução orçamentária, [...] muito ainda não de forma tão sistematizada [...] e isso é uma prática que ainda não tem muito aqui, se combina muita coisa, mas ninguém cobra depois. Eu não tenho sistema de monitoramento ainda [...] porque eu vejo esses problemas que eu já te falei na parte do planejamento. O problema, agora, é criar referências. Eu não tenho plano de carreira, planos de cargos e salários, porque eu não tenho todos os cargos definidos, sistematizados, comunicados, publicados pra todo mundo; essa referência pra depois eu

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poder cobrar, avaliar desempenho dessas pessoas. Então, eu acho que a gente tá no processo de estruturação dessas coisas todas e da mesma forma, projeto bem planejado, aí na hora a gente vai poder dizer se, na hora da execução, houve falhas ou não houve problemas. (Entrevistada 1)

Em relação à seção Controle, há um tipo de preocupação específica das organizações não governamentais que trabalham para o desenvolvimento social: a mensuração do impacto de suas ações. De acordo com Roche (2002, p. 37), avaliação de impacto é a “análise sistemática das mudanças duradouras ou significativas – positivas ou negativas, planejadas ou não – nas vidas das pessoas e ocasionadas por determinada ação ou série de ações”. Os aspectos do controle referentes a esse tipo de avaliação vão além do acompanhamento dos processos internos; envolvem metodologias para dar a conhecer a repercussão externa das ações da instituição. A avaliação de impacto trata de desdobramentos que não influenciam o funcionamento da organização, mas estão diretamente relacionados com a visão e com os objetivos institucionais. Os procedimentos utilizados nas avaliações de impacto ainda são motivo de insatisfação por parte das entrevistadas. Uma delas nos relatou que, apesar de sua organização atribuir muita importância à mensuração do impacto social de suas ações, em geral, os parceiros financiadores das ações não têm essa mesma visão. A avaliação de impacto é um processo oneroso que, muitas vezes, não tem tanta relevância em termos de marketing institucional quanto uma avaliação de reação dos atores envolvidos nos projetos. A falta de orçamento para fazer um levantamento rigoroso dos resultados de médio prazo e de longo prazo das ações torna difícil realizar uma aspiração declarada da instituição: a sistematização e a disseminação de metodologias de mudança social. Disso tudo, no final do ano, você tem um monte de dados na mão. É angustiante pra uma organização que depois gostaria de ter tempo pra olhar pra eles com calma. E é essa

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calma e esse olhar mais profundo sobre o que esses dados trazem pra nós – não só para a [organização], mas para o cenário em geral, como ele dialoga com as informações externas, o quê que eles têm a dizer –, isso requer tempo, isso requer um profissional ali dedicado a fazer isso. É essa etapa que, às vezes, o financiador não quer estar junto com você, porque o orçamento acabou. Ele “não, não e tal, aqui pra gente contempla, resolve pra gente esse relatório final”. Mas, às vezes, não contempla a [organização] ficar nesse meio do caminho. Pra gente é o meio do caminho ainda. Porque o nosso desejo seria, muitas vezes, poder não ficar só na etapa que vai da avaliação do resultado. Mas, pelo menos, ter um processo de avaliação que seja feito a cada três anos daquele projeto, poder chegar a mensurações mais profundas de impacto praquela realidade, pra vida daquelas pessoas envolvidas naquele cenário. Isso é supertrabalhoso, nem todos compram essa ideia. (Entrevistada 2)

A dificuldade de realizar a avaliação de impacto não se deve apenas à falta de interesse do financiador em ser parceiro também nessa etapa. Estabelecer indicadores dessa natureza é um problema em si. Uma das entrevistadas reconheceu que o impacto social de grande parte do que é realizado ainda é imprevisível e difícil de avaliar. Os indicadores dos projetos controlam sobremaneira o que se produziu, informando pouco sobre as repercussões do que foi produzido. Estamos trabalhando muito pouco ainda com sistema de avaliação [de impacto]. Eu tenho dado mais ênfase em onde se quer chegar. A gente está discutindo mais isso, se não, vai monitorar o quê? Então, os planos de ação das equipes que elaboraram esse semestre, são planos que tem muitas atividades, mas não tem o “pra que”, e é isso que eu tenho trabalhado mais. [...] Os projetos, aqui, eram elaborados com indicadores tão genéricos e sempre com uma avaliação tão qualitativa que fica muito difícil saber se você impactou mesmo ou não e era até mesmo muito baseado em cima do realizado: fez a publicação, fez não sei quanto vídeos, não fez? O que eu estou tentando causar nas pessoas é o

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incômodo de que “e daí?”A gente fez o livro, mas a gente mexeu alguma coisa nessa realidade? (Entrevistada 1)

Procedimentos de monitoramento e avaliação são parte da estrutura das ações desenvolvidas pelas ONGs pesquisadas. Reuniões e debates integram suas rotinas, o que contribui para que todas as etapas de uma ação sejam constantemente revistas e repensadas. Os padrões de desempenho esperado dos membros na execução de suas atividades estão representados em uma série de textos produzidos pelas organizações investigadas, que explicitam as linhas de pensamento que referenciam suas práticas. O conceito de controle burocrático tem uma conotação negativa – associada à noção de fiscalização. Procura-se, portanto, dar um sentido pedagógico às práticas adotadas para controle dos processos internos. As entrevistadas consideram que há muito a fazer em termos de profissionalização da gestão: há uma série de ferramentas ainda não incorporadas aos processos organizacionais que poderiam contribuir para o controle do desempenho da instituição. Os procedimentos utilizados nas avaliações de impacto – ou a ausência deles – também são motivo de insatisfação por parte das entrevistadas. Os indicadores deveriam ser pensados durante o planejamento, o que geralmente não é feito e reflete na capacidade de mensuração do impacto das ações das organizações pesquisadas. Considera-se também haver certa dificuldade em envolver os financiadores nessa etapa final da ação social, que, em geral, só demonstram interesse em avaliar o produto imediato das ações. Discussão

Apesar das peculiaridades das organizações investigadas, identificamos, por meio das entrevistas realizadas, a existência de procedimentos que caracterizam cada uma das chamadas funções administrativas. O que diferencia as organizações não governamentais das empresas privadas ou dos organismos do poder público é o modo como essas atividades se estabelecem 284


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em sua dinâmica organizacional, e não a existência ou não de atividades de planejamento, direção, organização e controle. Organizações sem fins lucrativos se distinguem das estruturas organizacionais que usualmente são objeto dos estudos em administração principalmente pela natureza de seus objetivos, suas metas e suas missões. Nas ONGs estudadas, identificamos práticas que evidenciam a busca de um equilíbrio entre a exigência de que o ser humano se organize mentalmente para o exercício de tarefas funcionalmente racionalizadas – em que se impõe um autocontrole moral e físico – e a sua necessidade inerente de desenvolvimento para a autoconsciência. Essa busca faz com que o conceito de efetividade nos processos organizacionais estudados assuma definições particulares. As necessidades da organização são consideradas tão importantes quanto as dos indivíduos que a compõem. O conflito entre os valores da organização e dos indivíduos é discutido nos estudos organizacionais por pesquisadores que propõem uma distinção entre a racionalidade da organização (e da ação administrativa) e outras racionalidades. Essa distinção remonta a Max Weber, considerado por alguns o fundador dos estudos organizacionais (Carrieri; Paço-Cunha, 2009). Para Ramos (1983), a ação administrativa apresenta um tipo específico de racionalidade, que Weber denominou racionalidade funcional,4 por meio da qual “não se aprecia propriamente a qualidade intrínseca das ações, mas seu maior ou menor concurso, numa série de outros, para atingir um fim preestabelecido, independentemente do conteúdo que possam ter as ações” (Ramos, 1983, p. 38). A predisposição pragmática do padrão das ações funcionalmente racionais implica uma subordinação dos indivíduos a realidades dadas e uma concomitante inclinação a se opor a toda sorte de orientação baseada na transcendência da Utilizamos as traduções adotadas por Ramos (1983) para os termos weberianos. Em traduções adotadas por outros autores, a racionalidade funcional é também chamada de racionalidade instrumental ou técnica; a racionalidade substancial é também chamada de racionalidade substantiva ou com relação a valores.

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rotina diária, fundada seja em valores religiosos, seja em valores seculares utópicos (Kalberg, 1980, p. 1152). Há uma tradição de autores que debatem criticamente a onipotência da racionalidade funcional nas organizações. Tenório (2002, p. 49) pergunta-se se “a razão administrativa, como conhecimento empírico-dedutivo manifestado através das teorias organizacionais, é capaz de atender à desejabilidade de uma decisão gerencial”. Ramos (1983) argumenta que o estudo científico da administração deve permitir a distinção dos diversos espaços existenciais humanos e o reconhecimento da racionalidade funcional como definidora da organização sem magnificála. Ao contrário, faz-se necessário relativizá-la, colocando-a em perspectiva com os outros tipos de racionalidade existentes no ambiente externo à organização. A racionalidade funcional é contraposta por esses autores a outro tipo de racionalidade intitulada por Weber de racionalidade substancial.5 Uma ação dotada desse tipo de racionalidade é “fortemente portadora de consciência sistemática de sua intencionalidade, visto que é ditada pelo mérito intrínseco do valor ou dos valores que a inspiram [...]. É um ato que atesta a transcendência do ser humano, sua qualidade de criatura dotada de razão” (Ramos, 1983, p. 38-39). A racionalidade substancial também ordena diretamente a ação, mas não com base em um cálculo puro de fins e meios para a solução de problemas de rotina, e sim relacionando a ação a um postulado de valor passado, presente ou potencial. O postulado de valor estabelece um cânone válido, ou seja, um padrão de referência em função do qual o fluxo interminável de eventos empíricos advindos da realidade será selecionado, medido e julgado (Kalberg, 1980, p. 1.155). Para Ramos (1983), os elementos que caracterizam a racionalidade substancial – a conduta baseada em valores, orientada por um critério transcendente, a preocupação em Kalberg (1980) identifica na obra de Weber quatro tipos de racionalidade. Se não abordamos todas aqui é porque a abrangência que essa discussão suscita vai muito além do escopo de nosso artigo.

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resguardar a liberdade, o conhecimento lúcido e autônomo de relações entre fatos, entre outros – interferem no rendimento ou êxito da ação administrativa. Entre as propostas de modelos organizacionais que busquem evitar que o crescente determinismo da racionalidade funcional ameace a necessidade sempre presente da emancipação humana estaria a autogestão, caracterizada pelo exercício coletivo do poder de decidir sobre os destinos, processos e resultados do trabalho (Motta, 1981). Uma organização autogerida seria um espaço idealizado onde a racionalidade (funcional) da instituição e a racionalidade (substancial) dos indivíduos encontrassem um equilíbrio; um grupo de pessoas congregadas em uma organização pelo objetivo desta, mas tomando decisões pautadas pela solidariedade entre si. A proposta da autogestão fundamenta-se na ideia de que o poder de decidir sobre os assuntos principais relacionados a uma organização deve recair sobre as pessoas que a compõem. Estudos sobre organizações comunitárias e organizações não governamentais6 identificaram em seu funcionamento a presença de princípios relacionados ao conceito de autogestão (Carvalho, 1995; Motta, 1999; Peruzzo, 2004). Isso se explica em parte pela forte influência que experiências de autogestão ocorridas em vários países do mundo nos anos 1960 e 1970 exerceram sobre os movimentos sociais brasileiros, levando-os a adotar, em seus discursos e práticas, princípios tais como pluralismo, democracia de base e autonomia de seus membros (Nascimento, 1999). A respeito da integração e da harmonia entre indivíduo e organização, Ramos (1983, p. 43), referindo-se a Whyte, afirma que: Seria utópico admitir-se que houvesse a possibilidade de instalar-se harmonia perfeita entre os valores do indivíduo e os da organização. Nas situações administrativas ou organizacionais, o indivíduo se encontra ordinariamente em tensão. Todavia, os graus e conteúdos dessa tensão podem Carvalho (1995) distingue as organizações comunitárias (ou de base) das organizações não governamentais quanto à sua formação e ao escopo de suas atividades.

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Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

ser mais ou menos deteriorantes, do ponto de vista humano, conforme as qualificações estruturais da organização.

De fato, as gestoras por nós entrevistadas concebem suas organizações como espaços cujas configurações estruturais devem permitir que os graus e conteúdos da tensão típica do local de trabalho – gerada pela disciplina necessária para que condições e meios se adéquem aos fins elegidos – sejam menos deteriorantes, do ponto de vista humano. Há certamente uma preocupação por parte da direção com a eficiência da ação administrativa, principalmente devido aos compromissos assumidos junto aos financiadores das ações. Porém, por meio de nossa investigação, pudemos perceber que os procedimentos administrativos são profundamente marcados por constelações de valores, estabelecidas em cada instituição a partir de histórias organizacionais particulares. Os indivíduos que movem as organizações pesquisadas são sujeitos que se identificam com esses valores, e a organização é vista como uma ferramenta coletiva utilizada para levar a cabo uma visão compartilhada de ação social transformadora. Se normalmente as organizações exigem de seus membros o comprometimento com as metas organizacionais, nosso estudo sugere que os profissionais que trabalham nas organizações pesquisadas são bastante exigidos em relação aos valores humanos que caracterizam a identidade da instituição. Ou seja, nessas organizações, a racionalidade substancial desempenha um papel de destacada relevância. No que concerne aos aspectos de gestão, podemos definir as instituições investigadas como organizações do tipo codeterminação, de acordo com classificação proposta por Carvalho (1995, p. 78). Todas têm por objetivo indireto formar seus membros para que possam desempenhar papéis de liderança nos espaços sociais que ocupam. A liderança nessas organizações é exercida no ato de liderar e, ao mesmo tempo, na criação de novos líderes. O poder da organização só cresce quando há uma simbiose entre líderes e líderes potenciais, baseando-se o relacionamento entre líder e liderado no ensino mútuo e no aprendizado. 288


Aspectos da gestão de ONGs brasileiras que lidam com os temas Comunicação e Educação

É esperado daqueles que ocupam postos de liderança que estejam constantemente inspirados pelas aspirações dos liderados, por uma interação constante com as necessidades reais do grupo. O poder formal é exercido por um comitê reduzido (em geral, corroborado pela assembleia de sócios), que prescreve as regras de funcionamento interno da organização e é soberano frente a qualquer poder que possa ser exercido por uma pessoa individualmente. A relação entre membros e líderes envolve um longo processo de consulta, aprendizado e socialização. Ser membro das ONGs pesquisadas implica adquirir uma consciência do que significa a organização e do que ela está fazendo. Encontros são realizados regularmente, pois decisões tomadas em qualquer nível são consultivas, devido à cultura existente de corroborá-las coletivamente. Geralmente, há uma intensa preparação antes que decisões coletivas aconteçam, cabendo aos membros da direção colegiada trabalhar para que os conflitos sejam minimizados no momento da tomada de decisões. A informação circula igualmente entre as pessoas com autoridade e demais membros. O segredo é considerado antiético.

Considerações finais Nosso estudo identificou aspectos da gestão de cinco organizações não governamentais brasileiras que lidam com os temas comunicação e educação. Por meio de entrevistas realizadas com gestoras das cinco ONGs, foram caracterizadas, em cada uma delas, as funções administrativas (planejamento, organização, direção e controle). Sugerimos a realização de novos estudos em que os resultados de nossa pesquisa sejam comparados com dados referentes às funções administrativas em empresas privadas e órgãos públicos. Tais estudos teriam por objetivo explicitar distinções entre aspectos da gestão desses três tipos de organizações. A relevância de tal investigação se justifica pelo fato de os manuais adotados nos cursos de administração, geralmente, se basearem em exemplos obtidos de estudos realizados junto a empresas. Profissionais 289


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envolvidos na administração de ONGs encontram dificuldades em aplicar os princípios prescritos pelos autores de tais manuais por não encontrarem ali representada a realidade organizacional que vivenciam. Enfrentamos problema semelhante, porque, ao realizar o levantamento de referências que fundamentassem a elaboração do presente estudo, não encontramos nenhum artigo que nos esclarecesse quanto aos aspectos técnicos da gestão de organizações não governamentais para os quais se dirigiam nossa pergunta de pesquisa. A comparação das funções administrativas em ONGs com as de outros tipos de organização, levando à identificação de traços distintivos, poderá dar subsídios – aos pesquisadores da área – à proposição de novas ferramentas de análise, compatíveis com as especificidades encontradas. Outra possibilidade de pesquisas futuras trata da investigação da existência de especificidades na gestão das ONGs que trabalham com comunicação e educação em comparação com outras ONGs. Embora nossa abordagem metodológica não tenha sido direcionada para responder a essa questão, algumas falas das entrevistadas indicam caminhos de pesquisa para maior aprofundamento no tema. Vários autores, entre eles Barnard (1979), propõem a existência de uma relação entre atividades finalísticas de uma organização e a maneira como se organiza o trabalho para realizá-las. Para Barnard (1979, p. 146), “cada finalidade específica envolve uma especialização de meios. [...] a especialização é um reflexo das finalidades desejadas”, ou seja, os princípios e preceitos sob os quais uma atividade é realizada influenciam diretamente os princípios e preceitos que regem a forma pela qual ela é gerida. A análise dos resultados de nossa pesquisa exploratória à luz da afirmação de Barnard nos leva a formular a hipótese de que a área de atuação das ONGs estudadas afeta diretamente a configuração de suas funções administrativas. Em outras palavras, já que tais organizações se distinguem de outras similares pelas atividades-fim que desempenham, pode-se supor de maneira análoga que seus processos organizacionais possuam aspectos distintivos. 290


Aspectos da gestão de ONGs brasileiras que lidam com os temas Comunicação e Educação

Durante as entrevistas realizadas para a elaboração deste artigo, as entrevistadas exaustivamente aludiram à constelação de valores que permeia suas organizações e que, segundo elas, seria determinante para o que Barnard chama de especialização de meios. Esses valores foram relacionados a uma série de referenciais teóricos das áreas de comunicação e educação (inclusive aqueles formulados por pensadores que se encontram na interseção desses dois campos do saber), que fundamentam os métodos e práticas consagrados por suas organizações na execução das atividadesfim. Sugerimos, portanto, a realização de pesquisas posteriores que tenham por objetivo investigar em que medida os conceitos e valores que norteiam as atividades finalísticas de tais organizações influenciaram a estruturação de suas funções administrativas e de que maneira continuam a influenciar seu funcionamento hoje.

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CAPÍTULO XIII

Sobre produção colaborativa Valter Filé

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ste texto nasceu de um esforço para compreender aquilo que alguns grupos de produção midiática envolvidos em projetos coletivos chamam de produção colaborativa. Tal esforço teve início em um seminário presencial organizado pelo Canal Futura (CF), do qual participaram muitos coletivos de produção midiática.1 O presente artigo busca ampliar as ideias e as condições da discussão acerca da produção colaborativa, ao organizar e desdobrar algumas linhas de argumentação trabalhadas no evento. O intuito é que a reflexão aqui desenvolvida possa se configurar como um modem, que conecte novamente os que participaram do seminário ou outros que possam se agrupar a partir de interesses comuns, para continuarmos o debate por outros circuitos. Na primeira parte do texto, discutiremos a noção de colaborativo. Em seguida, o foco será colocado sobre o Canal Futura e o modo como vem abrindo espaço para os projetos colaborativos. Seminário realizado em dezembro de 2007, na sede do Canal Futura - Fundação Roberto Marinho, identificado como Fórum de Produção Colaborativa, com a presença de membros do Canal e de representantes das organizações sociais parceiras.

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A terceira seção apresenta uma discussão de quatro questões que são importantes no desenvolvimento de tais projetos e foram suscitadas no seminário, a saber: a natureza das organizações sociais e de uma emissora como o CF; a suposta oposição entre colaborativo e profissional; a questão das temporalidades e da experimentação, que marcam a produção colaborativa; por fim, procura-se propor alguns argumentos que realimentem a discussão em busca de referências para lidar com (não para domesticar) a noção de produção colaborativa.

O conceito de colaborativo Os projetos coletivos que envolvem interesses, objetivos e esforços comuns, principalmente na internet, têm sido chamados de colaborativos. Eles sugerem novas formas de produção e circulação de informações e conhecimentos, criando possibilidades distintas daquelas instituídas pelo modelo do capital privado, regulado pelo mercado, que trata informações e conhecimentos como mercadorias e gera exclusões e hierarquizações. Os processos colaborativos rivalizam, em grande medida, com a ideia de economia escriturística (Foucault, 2002), defendida pela lógica da ciência moderna e pelo modelo hegemônico de educação, que têm suas próprias agências de controle da produção, da circulação e da distribuição dos lucros materiais e simbólicos. Tais agências controlam o que se pode dizer/ escrever/publicar a partir da confirmação do poder da autoria, das suas autoridades, conferidas por rituais novamente organizados por tal economia. De modo distinto, os projetos colaborativos pretendem ser enriquecedores para seus participantes, em seus esforços conjuntos a partir da construção de uma inteligência coletiva (Lèvy, 1998). Nessa proposta, o conhecimento é entendido como um patrimônio social a ser produzido coletivamente e compartilhado, de modo a ampliar a polissemia e a polifonia (Bakhtin, 1999) das produções, ou seja, ampliando as possibilidades de sentidos, assim como o número de vozes que se manifestam nesse fazer. 294


Sobre produção colaborativa

As colaborações podem ser feitas tanto pela disponibilização de conteúdos e ideias em espaços públicos, sem a interferência da figura de um editor, como a partir de projetos em que o mais importante não é a autoria, mas a corresponsabilidade no desenvolvimento de conhecimentos, de conteúdos e de possibilidades em favor de questões coletivas. Essa corresponsabilidade, uma vez assumida em todas as suas dimensões, talvez pudesse diminuir a tensão das contradições, das dificuldades encontradas no processo de produção e, assim, poderia favorecer uma aprendizagem entre culturas institucionais, que exigiria definições e negociações ao longo de todo o processo, em vez da “saia justa” da entrega do produto no encontro final. Nesse contexto, a avaliação da produção não seria um simples julgamento. A avaliação seria um processo através do qual se buscaria não somente as lacunas mas também o que se construiu. O ganho seria não apenas o produto final (o programa produzido) mas o conhecimento suscitado e as potencialidades geradas em comum. É preciso deixar claro que é difícil apreender essa produção de conhecimento. Não há muitas experiências em mensurar a dimensão daquilo que chamamos de conhecimento e do seu valor. Em nossa sociedade da informação (Castells, 1999) ou do conhecimento (Lèvy, 1998), lidamos com tempos de programas, com temáticas, com linguagens, com audiências, mas ainda dispomos de poucos recursos para realmente empreender um esforço sobre a produção de conhecimentos em todas as suas dimensões. A era da colaboração apresenta-se, todavia, como uma oportunidade de articulação social para a conjunção de diferentes esforços, visando ao enfrentamento de problemas e à promoção do bem-estar coletivo. A corresponsabilidade na produção de conhecimentos, no enfrentamento de problemas e na promoção do bem comum deve orientar a produção colaborativa, que deve ser entendida como um espaço de ação conjugada, onde se realizam diferentes encontros com a alteridade. A produção colaborativa deve levar em consideração o que faz cada uma das partes envolvidas, até porque cada uma delas não pretende alterar 295


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sua rota nem seus objetivos para atender a demandas que a afastarão de suas ações. Esses jogos de alteridade produzidos pelos encontros na diferença oferecem possibilidades efetivas de deslocamento dos envolvidos. Assim, a ideia de produção colaborativa ultrapassa as noções de interatividade que estabelecem previamente um lugar para a entrada do outro; um lugar para escolhas e alternativas já definidas a priori. Cada vez mais, com a cultura digital, fortalece-se a ideia de inter-ação, que acolhe outros modelos de participação. Na inter-ação é o encontro com o outro que cria o espaço da atuação conjunta. Uma abertura para a construção desse espaço de ação conjunta vem sendo desenvolvida pelo Canal Futura (CF). É importante perceber o modo como se constrói essa associação entre o CF e grupos sociais, que vem resultando em produtos colaborativos. É para essa questão que nos voltamos a seguir.

O Canal Futura: produção colaborativa como jogo de alteridade Uma parte significativa da programação do Canal Futura nasceu da interlocução com grupos organizados da sociedade civil. A interlocução vai desde a escuta das ações e lutas socioculturais de várias organizações até a produção de programas por meio de parcerias. A prática de realizar programas em interlocução com as organizações sociais tem sido chamada pelo CF de produção colaborativa. Segundo a definição de um dos membros do CF, essa forma de produção diria respeito ao “conteúdo audiovisual que está na tela do CF e foi essencialmente proposto por outros com questões que nos são muito caras e em cuja produção houve algum tipo de interlocução, com nossas equipes” (informação verbal). Como pensar a produção colaborativa no Canal Futura? Onde incidiria a colaboração? Ou seja, colabora-se com o CF ou os parceiros colaboram entre si, com um interesse comum? No primeiro caso, existiria apenas um ator que colabora, reservando-se ao 296


Sobre produção colaborativa

outro uma performance esperada, no papel de um juiz ou de um contratante. Nesse caso, sobra o que existiria de pior da relação comercial: a cobrança por um produto pago. Na segunda possibilidade, os colaboradores seriam os envolvidos, incluindo o CF. A última situação colocaria a ênfase da colaboração numa responsabilidade partilhada – um aspecto fundamental das produções colaborativas, como evidenciamos na seção anterior. As relações estabelecidas nas produções colaborativas têm sido muito ricas e agregam valor à performance dos participantes. O objetivo inicial desses encontros é produzir algo em comum, valendo-se das potencialidades reconhecidas em cada grupo envolvido. Espera-se ainda que as potencialidades, reconhecidas desde o início, possam se ampliar ao longo do processo. Como em toda e qualquer relação, contudo, a lida cotidiana traz questões que precisam ser discutidas e pensadas até para ampliar a qualidade dessas relações. Tais encontros nem sempre acontecem como se espera, porque o encontro com a diferença (ou o jogo da alteridade) é marcado por imprevisibilidades. Esse jogo, com o qual não há uma maneira predefinida de lidar, coloca muita coisa em risco (risco, aqui, não tem conotação negativa): as possibilidades de movimentação, a identidade que se quer construir frente ao outro, seus limites, seus temores e seus compromissos. Mas a alteridade é uma oportunidade para nos enriquecermos com aquilo que, no outro (ou no que supomos ser o outro), nos desestabiliza e, assim, nos obriga a rearranjar nossos pesos e nossas medidas em busca de novo equilíbrio. A alteridade nos faz pensar naquilo que, supondo ser do outro, se traveste em nós de outras coisas e nos engana. Ela cria oportunidades de experiência, e não de experimentos controlados, de ampliação de caminhos, de tempos e de maneiras de fazer. Assim como os jogos de alteridade, os encontros para conversas, desde que estruturados como espaços generosos em que há um cuidado com o outro, configuram-se justamente como processos que podem garantir negociações de sentido. Encontros e conversas são a base dos conhecimentos gerados pela rede de experiências tecidas pelo fazer coletivo, colaborativo. 297


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

O seminário organizado pelo Canal Futura pode ser visto como um desses encontros marcados por jogos de alteridades. A presença de membros do próprio Canal e de representantes de organizações sociais parceiras possibilitou uma discussão acerca da produção colaborativa e do modo como ela vem sendo desenvolvida por esses atores sociais. Algumas das questões discutidas naquele encontro serão abordadas a seguir.

Sobre ditos, não ditos e mal ditos: especulações e provocações A partir da fala dos participantes do seminário, escolhi levantar alguns temas para, em seguida, tentar esgarçá-los naquilo que me parece mais importante discutir. São eles: (1) os problemas da relação entre culturas organizacionais diversas; (2) as diferenças entre uma produção colaborativa realizada por uma organização social e uma produção profissional realizada por uma produtora comercial; (3) as temporalidades que atravessam as organizações sociais, a lógica televisiva e a das produtoras comerciais; (4) as possibilidades de experimentação. Embora não pretendam ser uma síntese daquilo que foi discutido no seminário realizado pelo CF, as questões apontadas envolvem eixos muito interessantes para reflexão. Os problemas da relação entre culturas organizacionais

No seminário, levantou-se a diferença de tamanho das organizações envolvidas em uma produção colaborativa. Chegou-se a comparar o Canal Futura (CF) a um petroleiro, talvez porque as outras organizações se sentem como pequenos barcos nessa relação. O meu argumento aqui é que, apesar de todas as diferenças (de tamanho, de estrutura administrativa, de cultura organizacional de modo mais amplo), é preciso que tanto o CF quanto as organizações sociais promovam uma abertura mútua na realização de uma produção colaborativa. As relações com a alteridade devem ser vistas não como empecilhos, mas como 298


Sobre produção colaborativa

enriquecedoras para as próprias instituições e para os projetos que desenvolvem. Entendemos que as diferenças entre as organizações vão incidir concretamente sobre o cotidiano das relações. Se pensarmos as organizações como sujeitos coletivos (Sader, 1995), a discussão das diferenças culturais é muito importante para a negociação de projetos colaborativos. Tais negociações envolvem as estruturas materiais e as produções simbólicas – formas jurídico-administrativas, crenças, ideologias, sentimentos de pertencimento e as lutas de cada processo instituinte que justificam a existência de cada organização. Movimentos que nunca estão consolidados ou em repouso. Em cada instituição, assim como em cada ser humano, existem contradições internas, fundadas principalmente na tensão entre equilíbrio e mudança, movimentos necessários para a sobrevivência da organização. Contradições, paradoxos e ambiguidades serão condições essenciais para uma vida saudável, desde que existam espaços para que essas tensões sejam trabalhadas. Haverá, todavia, mais complicações se tais tensões não forem expressas, mas escondidas, pois passam a fazer parte dos mal ditos. Essas situações, não da diferença, mas da falta de condições de lidar com elas, podem trazer muitas dificuldades, principalmente se preferirmos considerar a diferença como princípio de desigualdade e não como possibilidade da riqueza da alteridade. Nesses casos, como resultado, pode haver dificuldades de um trato mais relaxado, menos fiscalizador, o que não quer dizer menos envolvido no acompanhamento do processo. Os aspectos que uma organização não pode trabalhar internamente revelam por certo as dificuldades que possivelmente ela terá numa relação que se pretende colaborativa. Parece-me que aí existiria uma distância entre o que fazem e poderiam fazer as organizações sociais, e o que o Canal Futura poderia esperar. Essa distância talvez seja aquilo que deve ser considerado como possibilidade de entrar na negociação, que, repito, deve constar das abordagens iniciais para produções conjuntas. 299


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O tamanho e a natureza das organizações sociais e do Canal Futura trazem, assim, implicações para o modo como se estabelecem relações entre eles na realização de projetos colaborativos. Além disso, é preciso pensar no modo como esses projetos são planejados pelo próprio CF, bem como suas relações com as chamadas produções profissionais,2 ligadas a princípio a produtoras comerciais. Para essa questão é que nos voltamos a seguir. Entre o colaborativo e o profissional: possibilidades de convergência entre uma produtora comercial e uma organização social

Parece-me que aqui existe uma grande zona de sombras, repleta de dúvidas e questões a ser discutidas. Por exemplo: do lado das organizações sociais, há argumentações como “O Futura disponibiliza muito mais recursos para as produções comerciais”; “os projetos colaborativos têm pouco tempo para produção e pouco dinheiro para sua realização”. Um dos participantes parece resumir os incômodos de muitos grupos da seguinte forma: “qual é a diferença entre o colaborativo e o profissional?” E eu refaço a pergunta de outra maneira: Poderia existir uma produção profissional colaborativa? Ou: pode haver uma produção colaborativa profissional? Ou ainda: o que nos leva a esse suposto antagonismo entre profissional e colaborativo? Pareceu-me que o antagonismo entre o profissional e o colaborativo nesse debate traduzia certo incômodo, que nos assalta quando ouvimos – principalmente nas organizações sociais – palavras como “comercial”, “profissional”, “mercado”. Esses termos nos remetem a um antagonismo em relação a assuntos mais militantes ou de cunho social, educativo. Há uma resistência alicerçada em uma ideia de incompatibilidade entre o social e o comercial. Vale ressaltar que o termo “profissional” foi usado no seminário, para estabelecer uma diferença entre a produção das organizações sociais e as produções desenvolvidas por produtoras comerciais. Como o enunciado pelos presentes foi o termo profissional, resolvi seguir minha reflexão utilizando-me do termo.

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Sobre produção colaborativa

Outra forma de compreender essa relação entre o profissional e o colaborativo é tentar considerar o primeiro como aquele que desempenha uma atividade para a qual tem formação e, portanto, é pago para fazê-la. Uma produtora comercial pode, inclusive, montar equipes com vários profissionais que vêm dos movimentos sociais, das organizações populares que dão formação em algum tipo de profissão do mercado, e nem por isso esses profissionais podem responder por tal intimidade, proximidade ou acessibilidade a determinados temas. O CF ponderou que todas as produções veiculadas pela emissora eram pagas – fossem colaborativas ou não. Alertou ainda para o fato de que qualquer organização poderia participar da seleção para contratação das produções, independentemente de ter objetivos comerciais. Interessa notar, contudo, a existência de algumas questões de difícil tratamento. A principal delas está em certo orgulho de grande parte das organizações populares de ter seus produtos feitos por não profissionais. Tais organizações conectam os produtos a processos de formação ou de mobilização, como se esses processos, por si mesmos, dessem credibilidade ao produto ou encobrissem quaisquer exigências de qualidade. Essas práticas de produção poderiam ser consideradas portadoras de algum valor agregado? Qual? É preciso que cada organização manifeste qual é o seu valor agregado (caso ele não esteja no produto), para evitarmos que o fato de ser sem fins lucrativos e/ ou trabalhar com pobres já contenha implicitamente alguma qualidade e alguma verdade inquestionável que coloquem tais organizações acima do bem e do mal. Então, se existe uma reivindicação por um tratamento igual conferido pelo Canal às produtoras comerciais (igualdade na disponibilização de recursos, principalmente), ao mesmo tempo, nos damos conta de que a maioria das produções das organizações sociais é realizada por pessoas que ainda não são profissionais. Para as organizações sociais, isso justificaria certa tolerância, visto que tais pessoas estariam em processo de formação. Independentemente da natureza da organização responsável pelo desenvolvimento dos programas, é fundamental que o 301


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

Canal procure definir quais são as referências para a avaliação de um produto considerado de qualidade para ser exibido no CF. Além disso, as organizações devem pensar sobre o alcance de seus produtos, pois muitas vezes tais produções se prestam às formações, aos processos que estão sendo vividos em determinados contextos e como respostas a certas circunstâncias, e não para alimentar uma grade de TV, de forma isolada de outras atividades. Pode-se questionar se não seria mais interessante se as organizações que pretendem profissionalizar seus alunos/ membros montassem equipes de produção para atender a um mercado. Com isso, elas competiriam com produtoras profissionais oferecendo suas originalidades de experimentação e usos mais arrojados de linguagem, resguardando, quando for o caso, o caráter dessas organizações de ser sem fins lucrativos. Contudo, é extremamente revelador que muitas vezes o que é pago para as organizações seja transferido para profissionais envolvidos na formação ou para instituições indiretamente envolvidas no processo de produção. Em várias ocasiões, aqueles que estão em formação têm dificuldades até para se locomover de sua casa até o local onde está instalado o núcleo de produção. Isso indica a complexidade das relações que constituem uma organização da sociedade civil. Há relações comerciais (envolvendo aqueles que assumem os processos de formação, consultores e diretores) e relações de outra natureza para os não profissionais envolvidos (alunos, moradores das regiões envolvidas, militantes etc.). Assim, o colaborativo, que abriga relações entre militantes, profissionais, voluntários, os responsáveis pelos projetos/organizações e financiamentos, também deve considerar as implicações das relações de trabalho e de poder que passam por um saber aplicado e implicado nos compromissos de cada instituição. Cabe, então, perguntar, atendo-nos ainda à questão do valor agregado de cada produtora social: Será que essas organizações estão disponíveis para receber o que os envolvidos podem ofertar – em termos de visão de mundo, de problemas que não estejam na pauta ou nas agendas políticas de determinadas classes ou 302


Sobre produção colaborativa

elites – ou se dispõem fundamentalmente a responder aos compromissos de financiamento, fazendo com que seu público – alunos, militantes, etc. – cumpra apenas um papel previamente estabelecido por mandatos ou editais? Pode-se questionar ainda em que medida os esforços (tempo, recursos materiais e simbólicos) despendidos com voluntários, militantes e participantes são proporcionais àqueles despendidos na realização de oficinas, na criação de estratégias de trabalho pedagógico, no desenvolvimento de metodologias e no pagamento de consultorias. Em que medida aquilo que está nas produções colaborativas das organizações da sociedade civil e de escolas não são ratificações de mensagens já conhecidas, encobrindo injustiças cognitivas (Santos, 1997)? Em que medida tais produções desconsideram e tornam invisíveis saberes distintos, pela ignorância que os processos já consagrados de produção e de formação vão produzindo? Talvez fosse interessante pensar nas práticas cotidianas dos envolvidos nas realizações para qualificar os tempos de produção, os custos, o valor agregado, os modelos de gerência e o respeito nas relações. A produção colaborativa, de acordo com as pistas oferecidas pelos participantes do seminário, não deve ser vista em oposição ao profissional. Ela deve se diferenciar pela originalidade e pela qualidade das experiências relacionais, bem como pela potencialidade de geração de novas intervenções sociais. Ou seja, a diferença estaria naquilo que excede uma suposta produção comercial com um valor social agregado, se é que isso é possível. A partir da diferença entre as demandas, os modos de produção e as culturas organizacionais, seria interessante pensar as formas de participação das várias organizações que compõem uma mesma produção colaborativa na definição do projeto a ser executado. Isso requer que se defina o que cada organização tem de original que justifique um acordo de parceria para a produção de um programa de TV. Será que o envolvimento qualificado com um tema garante, em si mesmo, a condição dessa organização de realizar um programa para a TV? Por que 303


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não assumir os sentidos da colaboração como a ampliação do fazer compartilhado, em conjunto, desde aquilo que cada um pode e deseja oferecer? Outra questão importante diz respeito às características das entidades escolhidas para participar de uma produção colaborativa. A referência seria o lastro sociopolítico oriundo da representatividade que uma organização agrega ou a sua capacidade inventiva de lidar com a linguagem televisiva? Que outros valores são caros na relação? A autoridade numa temática supostamente aludida a uma determinada organização como uma espécie de expertise? Ou será por uma espécie de reserva de domínio e do direito de tratar algum tema? Como evitar confundir a especificidade do trabalho de um grupo com sua condição de dar uma contribuição original na lida com as exigências da linguagem audiovisual para um programa de TV? Tais exigências não giram apenas em torno daquilo que poderíamos chamar de qualidade intrínseca de um produto audiovisual, desde o ponto de vista do uso de bons equipamentos e algum domínio da gramática do meio. Até porque atualmente muitas são as organizações que conseguem ter bons equipamentos e equipes que sabem fazer usos adequados da câmera, boa captura de áudio e boa edição. Mas nem todas sabem contar bem uma história. Talvez aqui esteja o problema da melhor definição daquilo que cada um dos participantes numa produção colaborativa pode fazer e de suas tarefas. É preciso reconhecer que os grupos que atuam colaborativamente são corresponsáveis por aquilo que se propuseram. Todos devem reconhecer quais são as questões que estão em jogo, quais são as potências de cada instituição. Todos devem desenvolver, portanto, um alto grau de transparência e capacidade de negociação, facilitando a interferência coletiva no processo. Também seria necessário ressignificar o conceito de interferir e as conotações de intervenção, evitando a visão de imposição violenta de um sobre o outro, sobre os modos de produção do outro ou até sobre aquilo que alguns ousam chamar de natureza da organização, ou seja, sua essência. 304


Sobre produção colaborativa

Parece-me que as relações baseadas em supostas essências, com as reservas de domínio, precisam sofrer alguns deslocamentos. Muitas organizações lidam com determinadas questões de forma bastante curiosa. Se o foco se volta para determinado público, a atuação parece um circuito fechado, asséptico: as coisas dos jovens só podem ser feitas pelos jovens; as coisas dos negros só podem ser feitas pelos negros. Será que as questões dos grupos podem ser pensadas sem as outras formas de instituição imaginária (Castoriadis, 1991)? Sem os outros de outros grupos? Educadores que trabalham com jovens nas organizações costumam fazer de tudo para deixar claro que as produções são totalmente feitas por eles de forma autônoma e enfatizam que se trata de realizações sem a intervenção de adultos ou, no máximo, com poucas intervenções, mas sempre respeitando a vontade dos jovens. Tenho muitas dúvidas em relação a esse tipo de postura que faz do jovem (ou qualquer outro representante generalizado de um grupo) um estandarte. Tal assepsia, muitas vezes, quer mesmo é enaltecer a organização que formou tais jovens – autônomos, independentes, fantásticos. É nesse enaltecimento subjacente que moram vários perigos. Menciono aqui dois deles. Em primeiro lugar, tal preocupação enaltecedora leva muitas vezes a processos pedagógicos que buscam não a radicalização de uma aposta naqueles sujeitos. Estes são apenas convidados secundários, coadjuvantes que já têm seus papéis previamente definidos e suas atuações controladas para o desenvolvimento da grande cena. Essas encenações nem sempre respeitam o outro como outro legítimo, nem têm lugar para histórias mais singulares e singelas. Frequentemente esse outro é um invento – principalmente em suas carências. Em geral, tal invento só é representado por um feito – quase sempre feitos discursivos que brilham, não pelo que colocam em movimento, mas pelo poder da autoria, da capacidade/autoridade de dizer. Muitas organizações parecem desconhecer quem são as pessoas de carne e osso com as quais lidam. O segundo perigo diz respeito à experiência de formação. Não acredito que a convivência entre iguais seja bastante para 305


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

enriquecer a experiência humana. Certa vez, perguntei a Eduardo Coutinho o que ele achava das TVs comunitárias, dos moradores falando para os próprios moradores. Ele me respondeu: “Acho interessante. Mas tem coisas que só se diz aos diferentes”. Obviamente, lidar entre iguais numa situação familiar é uma coisa. Outra é lidar na diferença; aprendendo com a diferença, na interculturalidade – construindo os jogos de alteridade que discutimos anteriormente. Creio que muitas produções colaborativas seriam enriquecidas se os jovens (ou qualquer grupo de realizadores) pudessem trabalhar ao lado de profissionais atentos, para que esses profissionais fossem surpreendidos e simultaneamente pudessem desnaturalizar os gostos dos educandos, oferecendo-lhes outras possibilidades de ver o mundo. A explicitação das diferenças, em vez de sua camuflagem (com o discurso do “somos todos iguais”), é repleta de potencialidades. A qualidade das produções depende de que cada envolvido esteja atento para não subestimar nem superestimar ninguém, já que essas são duas faces da mesma moeda do preconceito. A isso corresponde, a meu ver, a discussão dos princípios éticos e dos princípios estéticos. Esses princípios, se assumidos como valores fundamentais, e não como jargões atraentes, possibilitarão diferenças em cada projeto, em vez da busca desenfreada pela aparência equivalente de sucesso. Para lidar com esses perigos, é preciso atentar para o modo como as relações com a diferença são construídas. É fundamental construir o envolvimento com o outro sem que essa relação seja apenas de afirmação das minhas qualidades, da minha grandeza, das minhas capacidades; sem subestimar o outro ou superestimar o outro. Uma saída para essa suposta descaracterização pode ser encontrada na adoção de um viés distinto. Em lugar de descaracterização, poderíamos pensar na intersubjetivação, ou seja, um processo em que vamos nos tornando outros, alternando-nos, à medida que somos atravessados por outras subjetividades. Esse viés não resolve, entretanto, o problema em sua totalidade. Permanecem ainda os problemas administrativos, institucionais e até ideológicos que são tão difíceis de ser transpostos que levam alguns a declarar a incompatibilidade da relação. 306


Sobre produção colaborativa

Por tudo o que foi exposto, penso que a questão do colaborativo e do profissional passa pela definição daquilo com que cada instituição (comercial ou social) pode e quer contribuir dentro de seu diferencial, agregando valor ao processo de produção, ao produto e aos objetivos de cada um dos envolvidos. É preciso que haja clareza nos critérios de parceria, assim como sensibilidade nos encontros com a diferença, para que cada ator social envolvido na realização traga originalidade, novidade e deslocamento para a relação. Talvez seja preciso pensar a relação entre o colaborativo e o profissional mais por proximidade do que por antagonismo: que o colaborativo deixe de ser pensado como condição apenas das organizações sociais, enquanto a produção profissional deixe de ser vista como restrita a produtoras comerciais. Nessa nova visão, é possível questionar os custos e as remunerações que marcam cada produção: será que as agências proponentes de produções colaborativas (como CF) pagam menos ao trabalho das organizações sociais (como foi sugerido por vários depoimentos no encontro) por já esperarem determinado resultado, baseado numa visão preconcebida de uma produção menor? Ou: quando as organizações sociais exigem uma melhor remuneração pelo seu produto, em que se baseia tal reivindicação? Como se pode perceber, as relações entre o colaborativo e o profissional são complexas, por isso merecem ampla reflexão. As temporalidades das organizações sociais e os tempos de uma TV

O terceiro aspecto a ser abordado encontra-se diretamente relacionado à seção anterior. No entanto, ele levanta algumas questões novas. Meu argumento aqui é que as temporalidades que atravessam as organizações sociais e as produtoras comerciais são distintas, o que incide diferentemente no modo como as produções podem ser realizadas. A lógica temporal que constitui a televisão é marcada pela aceleração, pelo imediatismo, pela disposição criteriosa dos horários possíveis para cada projeto, pela localização de cada 307


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

um na grade da emissora. As produtoras comerciais também precisam se preocupar muito com a otimização do tempo na realização de seus projetos. A dinâmica temporal que rege uma organização social que trabalha com linguagem audiovisual, por sua vez, não segue exatamente tais orientações da televisão ou de uma produtora comercial. As organizações sociais defendem a necessidade de um tempo de maturação das ideias, tempo de relação com os envolvidos numa produção – um personagem, uma comunidade, uma instituição – pois certamente cada relação ultrapassará aquela produção/gravação específica. Cada relação com quem se grava, numa produtora social, vive (ou deveria viver) de outro tipo de intensidade, de outro tipo de negociação que não a mais imediata e utilitarista. Porém, essas lógicas temporais devem ser pensadas de modo a não criar uma incompatibilidade na realização de projetos coletivos (que associam organizações sociais e produtoras comerciais) ou mesmo a supressão de tais projetos em função da necessidade de dar uma resposta urgente a uma demanda. É preciso compreender e saber lidar com essas diferentes temporalidades que podem atravessar os projetos coletivos colaborativos, de modo que a dinâmica temporal de tais projetos não se converta em apenas uma regra burocrática, mas possa se traduzir na própria estética dos projetos. Uma incorporação estética não será, pois, um entrave à realização de tais projetos, trazendo implicações para a experimentação da linguagem, na medida em que diferentes temporalidades se imbricam. Talvez essa compreensão do atravessamento das temporalidades num mesmo projeto possa ser um valor agregado ao processo de produção e ao produto, que pode trazer um diferencial para cada instituição. Esse diferencial também pode ser alcançado a partir dos tipos de experimentação, como será discutido a seguir. A experimentação

O último aspecto a ser abordado diz respeito às possibilidades de experimentação abertas pelo trabalho colaborativo. 308


Sobre produção colaborativa

Trata-se de um ponto especialmente importante tanto quando se fala de formação ou atuação em/com linguagem audiovisual como na discussão sobre a própria TV de uma forma ampla. Quase todos os participantes do seminário falaram de experimentação, vinculando-a a novos usos de linguagem, a formatos ou a processos pedagógicos de natureza distinta. Diversos participantes ressaltaram as dificuldades de experimentação em função dos padrões já estabelecidos como autorreferentes pela linguagem televisiva. Muitos produtores ou formadores duvidam que a experimentação seja apenas uma questão de formato, de linguagem. Muitas vezes há uma tentativa de cercear e controlar a experimentação, o que tem a ver com aquilo que o paradigma da ciência moderna (Santos, 1997) nos deixou de herança, ou seja, a ideia de que existiria uma verdade essencial, que já está nas coisas, independentemente de nós e das relações. Uma verdade que se dita por quem tem autoridade, ou seja, nesse caso, pelos grupos representativos que se arrogam o poder e a reserva de domínio sobre tais temas. Há produtores de mídias que já têm uma verdade, um saber que se quer como o melhor, por ser consagrado e querem, ao entrar em contato com outros numa produção, submetê-los a essa verdade, buscando a confirmação dessa verdade, mesmo que tentem artifícios para escamotear tal situação. Esse paradigma da ciência moderna que acredita na possibilidade de uma verdade essencial dificulta o surgimento de novas experimentações. Por quê? Porque, se há uma verdade estabelecida, o que pode acontecer de novo? O que pode acontecer que nos surpreenda, que nos desloque das nossas certezas? Experimentação é entendida aqui como trabalho árduo sobre questões que nos desafiam e podem nos desequilibrar naquilo que achamos que já sabemos. Quando acreditamos numa verdade essencial, ao experimentar, controlamos a experiência, impedindo que alguma coisa diferente do que se previu aconteça com os envolvidos. Uma produção audiovisual, nessa perspectiva, obedece à necessidade de veiculação de uma realidade tão real que muitas vezes os próprios 309


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envolvidos não se reconhecem ou se aborrecem por estarem atados, circunscritos ao mesmo lugar. Minha impressão é que, para além dos constrangimentos da linguagem televisiva que cerceiam a experimentação nas produções colaborativas, a lógica com que operam algumas organizações sociais também pode contribuir para a reprodução de padrões pouco criativos de produção midiática. Certas organizações investem-se de uma autoridade pelo lugar que ocupam. Desconhecem o fato de que não basta ser uma autoridade temática ou ter uma abordagem verbal original para realizar um bom programa e gerar movimentações em seu entorno. Na narratividade, principalmente televisiva, verdade não é o contrário de mentira ou de falsidade. Em televisão, a imposição de uma verdade vinda de uma autoridade sobrepõe-se pesadamente contra a capacidade imaginativa, coibindo, assim, as possibilidades de novas experimentações. Nesse sentido, podemos buscar num documentário não a verdade dos fatos – coisa da racionalidade escriturística – mas a dramaticidade dos acontecimentos e da própria condição humana. Só para dar um exemplo, existem produções ficcionais que apostam em histórias que tentam ser tão coincidentes com a realidade que chegam a aborrecer, tornando-se pouco viáveis televisivamente. Tais produções contentam-se em confirmar clichês identitários, em dar lições de moral explícitas ou defender verdades acabadas. Destroem aquilo que deve ser a potência de uma obra audiovisual, principalmente em projetos que envolvem educação e cidadania: a capacidade de fazer pensar, de fazer imaginar. São produções que ainda creem na transmissão de saber, como a passagem mecânica de alguma coisa sólida, de um lado que sabe a outro lado obscurecido. É preciso, portanto, atentar para os modos como a experimentação pode ser feita nas produções colaborativas, a fim de não cercear mas impulsionar novos tipos de experiência.

Para concluir A partir das discussões realizadas ao longo do artigo, gostaria de concluir com os seguintes argumentos: 310


Sobre produção colaborativa

• A produção colaborativa depende da definição de quem colabora com quem ou com o quê. Se as organizações sociais colaboram com o Canal Futura, restringindo sua participação à produção de programas, confundindo-se e referenciando-se nas produtoras comerciais; ou, se ambos juntam forças num projeto coletivo. A segunda opção demanda responsabilidades compartilhadas e colaboração efetiva de todos os envolvidos ao longo da execução. A corresponsabilidade cobraria interlocução mais constante e esforços coletivos, o que requer a ampliação da capacidade de produzir conhecimentos. • Se a produção colaborativa demanda um programa para a grade de um canal de TV, a escolha do parceiro deve considerar o diferencial que tal grupo vai oferecer para o projeto e os valores que podem ser agregados a todos. • Uma produção colaborativa deve ser pensada por aquilo que vá além de um programa de TV. Deve conceberse principalmente pelos seus desdobramentos, como intervenção social. A qualidade, então, estaria na capacidade não apenas de contar bem uma boa história usando a linguagem audiovisual, mas também de dar outras finalidades ao produto na consecução dos objetivos comuns que geraram a parceria. Esse seria um dos diferenciais que por si mesmos agregariam valor ao processo como um todo. • Se a parceria deve ir além do programa, é preciso entender que este se define por sua capacidade de comunicação, tanto como um produto audiovisual que vai para a grade de programação de uma TV quanto como mediador de uma ação social que lhe excede. • A produção colaborativa deve se fundar na articulação das qualidades e da potencialidade complementares para a produção de conhecimentos como resposta a questões sociais que nos desafiam. 311


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Até aqui eu fui. Espero ter oferecido elementos para continuarmos a conversa, mais do que verdades para decretar o silêncio.

Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. CASTELLS, Manuel. A era da informação - economia, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998. SADER, Eder. Quando os movimentos sociais entram em cena. São Paulo: Paz e Terra, 1995. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente - contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, Boaventura de Souza. Para além de um pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, Coimbra/PT, p. 3-46, 1997. SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. Porto/PT: Afrontamento, 1997.

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Parte 5

EXPERIÊNCIAS DE REALIZADORES



CAPÍTULO XIV

Pensamentos e trajetórias de jovens realizadores do audiovisual comunitário Juliana Leonel

A

atuação de jovens com o vídeo comunitário se fortalece e ganha visibilidade no Brasil a partir dos anos 2000. É um fenômeno que nasce sobretudo nas periferias das grandes cidades do País, empreendido por coletivos juvenis que se articulam e atuam na constituição da cena cultural. São jovens, em sua maioria, egressos de processos formativos em comunicação comunitária. Por meio da produção de vídeo, a juventude vem recriando suas possibilidades de entrada nas esferas culturais e políticas, em um movimento dinâmico marcado pela invenção constante. Podemos dizer que esse processo foi conformado principalmente por um contexto profícuo, que conjugou ações da sociedade civil, o fortalecimento da temática juvenil na agenda pública e a criação de novas formas de incentivo à cultura no Brasil. Na última década, as organizações promotoras de projetos de comunicação comunitária fomentaram debates sobre políticas públicas da juventude, promovendo a participação autônoma dos jovens. Além disso, governos também formalizaram instâncias e programas. Cabe mencionar a criação da Secretaria Nacional de Juventude em fevereiro de 2005 e o surgimento de Secretarias e 315


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Conselhos voltados para as questões juvenis em diversos municípios e estados brasileiros. As iniciativas públicas também avançaram no sentido de fomentar processos culturais mais descentralizados, direcionados à cultura popular e à cultura livre digital. É o caso do Programa Cultura Viva1 do governo federal, lançado em 2004. Outro exemplo contundente é o Programa de Apoio à Produção de Obras Audiovisuais Digitais Inéditas, lançado em 2007 e destinado a pessoas que integram ou integraram projetos sociais de comunicação. Paralelamente, festivais audiovisuais abrem espaço à produção independente e juvenil ou são criados justamente em torno delas. Assim, muitas realizações ganharam visibilidade em eventos como o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, a Mostra de Cine do Ceará, o Festival de Jovens Realizadores do Mercosul, a Mostra Visões Periféricas e a Mostra Favela É Isso Aí. Em São Paulo, em 2005, foi fundado o I Fórum Paulistano de Cinema e Vídeo Comunitário Jovem, na Coordenadoria da Juventude de São Paulo. O Fórum significou um espaço de interlocução entre o poder público e a juventude. Os diversos encontros realizados ao longo daquele ano foram importantes por promover diversas parcerias especialmente a realização da Mostra Cinema de Quebrada (em outubro de 2005) e a formação do Coletivo de Vídeo Popular (em 2008). Em Belo Horizonte, em 2003, a ONG Associação Imagem Comunitária (AIC) deu início à Rede Jovem de Cidadania, iniciativa que articulou dezenas de grupos e coletivos juvenis da rede metropolitana de BH numa rede de comunicação de acesso público (com programas de TV e rádio, agência de notícias Segundo projeção do Ministério da Cultura, o Programa Cultura Viva apoiou em sete anos quase quatro mil Pontos de Cultura em 1122 municípios do Brasil, alcançando oito milhões e 400 mil pessoas. A demanda de ações de iniciativas de comunicação acabou por gerar em 2009 a criação de um edital dentro do Programa especialmente voltado a Pontos de Cultura de Mídia Livre (Fonte: <www.cultura.gov.br>).

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e jornal impresso). A partir de tal iniciativa, com o objetivo de mapear de forma mais sistemática a demanda dos coletivos culturais juvenis para a apropriação dos meios de comunicação, a AIC realizou, em 2005, o Encontro do Acesso. Vários grupos, mobilizados por esse encontro e ao redor principalmente de coletivos como a Rede de Agentes Culturais Juvenis D-ver. cidade Cultural e o coletivo Hip Hop Chama, realizaram processos formativos audiovisuais e propuseram intervenções em seus contextos locais em parceria com a AIC. Tendo em vista o contexto aqui explorado, apresentamos a seguir reflexões de alguns realizadores inseridos no movimento de acesso público à comunicação de Belo Horizonte e de São Paulo. Convidamos os jovens a registrar seus processos, trajetórias e experimentações. Os cinco textos que publicamos aqui fazem parte da seleção de um conjunto maior de artigos de realizadores que foram escritos sob encomenda para o livro. O processo de edição dos textos foi intenso e terminou por se transformar também em um espaço rico de trocas e debate. Ao final, acreditamos que os artigos materializam o encontro frutífero dos jovens com a equipe de editores e pareceristas do livro. Vários posicionamentos inicialmente criticados por nossa edição, principalmente no que se refere a abordagens dicotômicas, foram mantidos por decisão de seus autores. Em outros momentos, novas ideias surgiram por meio de encontros, conversas telefônicas e trocas de e-mails entre a equipe de edição e os jovens, desdobrando os textos em novas direções. Narrados em primeira pessoa e baseados em experiências pessoais, os cinco textos apresentados a seguir representam o resultado desses encontros. De forma geral, eles oferecem propostas e respostas que nascem da relação cotidiana de cada um com o audiovisual e com os espaços públicos locais das cidades. O primeiro texto, de autoria de Clebin dos Santos, narra a trajetória do autor na comunicação comunitária, desenvolvendo algumas reflexões sobre sua própria atuação como realizador e educador. Composto por três histórias singulares, o texto é finalizado com algumas memórias de infância sobre uma caçamba de 317


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entulho, que metaforiza a discussão do autor sobre a importância do improviso nos processos educativos e sobre a necessidade de reciclar fatos e sentidos em nossas trajetórias. O segundo texto, produzido por quatro realizadores do coletivo paulistano NCA, apresenta críticas contundentes ao universo da comunicação de uma forma geral e a algumas práticas específicas da produção audiovisual comunitária, configurandose como um manifesto aberto do grupo. Na opinião dos autores, a utilização de determinadas formas de linguagem e tópicos significou fugir das normas acadêmicas de escrita, as quais, na visão do grupo, iriam distanciá-lo do contexto analisado. Em uma troca de e-mails com nossa equipe, os realizadores afirmaram: estamos dentro desse movimento em formação e não nos eximimos de nossa posição nessa história! É com esse espírito que o artigo faz um chamado para que o movimento do vídeo popular ganhe as ruas e as pessoas façam parte da produção de seus discursos e complementem os seus sentidos. O texto de Giovânia Monique explora sua atuação como educadora em escolas, discutindo especialmente a importância de processos mobilizatórios. A autora propõe a utilização dos meios de produção audiovisual como formas de repensar o funcionamento da escola e de gerar processos educativos que formem alunos propositores de ações de transformação social em suas comunidades. Para a realizadora, a experimentação da linguagem radiofônica vem possibilitando novos espaços de reflexão e aprendizado para os jovens, fomentando a constituição de redes comunicativas entre comunidades diferentes. Vanice Deise destaca, em seu texto, duas frentes de atuação em relação ao audiovisual comunitário: (1) a realização de oficinas audiovisuais, a fim de promover discussões entre os jovens no que se refere à criação, participação comunitária e transformação social; (2) a formação de público para assistir aos vídeos realizados por moradores da periferia, conferindo maior visibilidade a tais produções. Para a realizadora, tanto os processos formativos quanto as exibições comunitárias podem impulsionar a constituição de uma visão mais crítica da realidade 318


Pensamentos e trajetórias de jovens realizadores do audiovisual comunitário

pelos jovens. Estes, por sua vez, podem construir representações mais legítimas de suas experiências nas produções audiovisuais que desenvolvem. A dificuldade de acesso aos meios de produção, distribuição e exibição do audiovidual no Brasil é também o tema central do texto de Wilq Vicente. A partir de suas vivências como um “entusiasta do vídeo popular”, o autor ressalta a precariedade dos incentivos que fomentam os projetos culturais, assim como a necessidade de transformação dos editais que visam a promover tais incentivos. O realizador destaca ainda a importância de constituição de outros espaços de debate, a fim de ampliar o potencial transformador e redemocratizante da comunicação. Por fim, é importante ressaltar que não se espera que esse conjunto de textos seja representativo do pensamento de todos os realizadores de vídeo do País ou sequer dos grupos de que esses autores participam. O que essas experiências pessoais permitem é a percepção do papel protagonista desempenhado pelos realizadores audiovisuais na criação de canais de diálogo e de participação no cenário nacional. Esses jovens se mostram como criadores ativos de redes de sociabilidade: ocupam escolas, cineclubes, festivais e estabelecem fóruns populares, que têm se encarregado de formalizar demandas e pautar políticas públicas.

Mobilização, provocação, mudança: Tema Real Clebin Quirino dos Santos

Há algum tempo, venho acumulando sensações e experiências sobre como criar alternativas a fim de sair do cômodo lugarcomum. Desde cedo tive um modelo de educação improvisista, em que aprendi a lidar com os restos que me foram propostos e, acima de tudo, com as imposições de sentidos e valores distantes da vida concreta que experiencio. A saída improvisada era o que restava para mim e para diversas pessoas em condição social 319


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regida pela escassez, com estrutura familiar comprometida, dificuldades na geração de renda e poucas perspectivas escolares. Essas pessoas na maioria das vezes ocupam subempregos que não são valorizados, ainda que façam parte da construção histórica do mundo desde seus primórdios. Para essa população que depende do improviso, a educação proposta pelo setor administrativo do estado ou dos municípios é geralmente desestimulante. Educadores despreparados e desmotivados encontram alunos mais desmotivados e desacreditados, em um espaço massivamente mostrado e destruído pelos meios de comunicações de massa. As informações e as notícias narradas por tais meios têm um peso muito grande na vida das pessoas, embora a verdade publicada ali nem sempre tenha sido devidamente apurada e comparada a outras situações e pontos de vista diferentes. Isso se agrava à medida que a informação se transforma na pizza entregue em casa na hora da fome: a pizzaria que entregar mais rápido ganha o cliente! Isso torna a informação pouco democrática, rápida e sem brechas para ampliação de discussões importantes. Um exemplo claro disso pode ser percebido nas notícias sobre assassinatos ou apreensões de drogas envolvendo adolescentes de periferia de grandes centros urbanos. Logo se criminaliza o sujeito como marginal, sem atentar para a complexidade dessas dolorosas histórias: quais as bases educacionais que esses sujeitos tiveram? Quais as implicações da estrutura familiar nesse tipo de situação? O que o poder público fez para evitar tais tragédias? Qual é o papel da sociedade? Que papel teria a comunicação na hora de lidar com tais acontecimentos? São tantas perguntas que não caberiam em um só parágrafo. É como se a vida fosse menos que um momento trágico ou um verso de poesia que se constrói dentro de cada um. Detectado esse problema, percebo que algumas pessoas conseguem sair do lugar de coitado ou desprivilegiado, que acha que somente as classes dominantes podem produzir conhecimentos e valores válidos para qualquer tipo de organização social. É preciso ter outros tipos de olhar sobre as 320


Pensamentos e trajetórias de jovens realizadores do audiovisual comunitário

comunidades, o que requer provocar discussões dentro e fora desses espaços relacionados à mídia. É importante instigar os sujeitos a questionar as coisas do cotidiano, para que possam reconstruir e recontar toda uma história, rica em arte e valores ético-culturais, que é abafada pelo bombardeio de informações e imagens da grande mídia. Cabe destacar aqui que a maioria das pessoas não foi alfabetizada para ter uma leitura crítica sobre o que está posto como verdade em outdoors, programas de TV, rádio, revistas, jornais ou formadores de opinião (intelectualizados ou não), que quase sempre fazem com que nos sintamos engolidos pela cultura generalizadora e maçante. Essa cultura, talvez nem fosse tão pretensiosa, mas se torna totalizadora pelo simples fato de não termos na maioria das vezes um modelo estrutural, familiar e educacional que nos leve a questionar tais assuntos. Como diria Rubem Alves (1996), frequentemente a educação assume formas adestradoras e cognitivas, que não proporcionam o desenvolvimento da capacidade de reflexão crítica. Exatamente por perceber que a prática da educação midiática tem algo a oferecer na construção de um mundo mais crítico, procuro compartilhar neste texto um pouco da experiência prática que tive na realização de ações educativas em três lugares: a Associação de Radiodifusão Real de Comunicação Comunitária (Fusão Real), o Programa de Orientação e Conscientização da Criança e do Adolescente (POCCA) e a Associação Imagem Comunitária (AIC). Essa experiência está embasada em técnicas improvisistas das linguagens de comunicação, em reflexões da área de arte-educação e em valores comunitários do contexto em que me insiro. Apresentadas as três experiências, busco concluir o texto com algumas notas sobre o improviso e sua importância na educação.

Caso 1: Fusão Real Em 1996, quando comecei a me interessar por movimentações e organizações sociais e me envolvia com a cultura hip-hop, 321


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tive um grande achado. Por influência de meus pais, eu tinha uma forte ligação com o universo musical e passava o dia inteiro escutando vinis e gravando fitas cassetes de coisas que ouvia no rádio. Mudava o dial de um lado para o outro incessantemente, à procura de alguma sonoridade que me agradasse ou me causasse estranheza. Com o passar do tempo, percebi que a minha preferência era por rádios comunitárias, cuja programação oferecia propostas musicais e sociais distintas. Os locutores pareciam ser pessoas comuns e próximas a mim. Aos poucos, o interesse pelas rádios comunitárias foi aumentando, e cheguei a visitar algumas delas. Meus questionamentos e minhas propostas instigavam minha vontade de estar à frente dessas rádios, por alguns minutos. Descobri, então, uma rádio no bairro Vista do Sol, próximo à Vila Maria, onde moro. Tratava-se da rádio Playboy FM, que, por motivos judiciais, mudou o nome para rádio Realidade. Entrei em contato por telefone e perguntei como poderia propor um programa. A pessoa que me atendeu disse que eu teria que ir à reunião geral e explicar minha proposta. Foi o que fiz. E na semana seguinte já estava no ar. O programa se chamava Realidade Ativa e combinava rap com questionamentos sobre políticas, segurança, economia e sociedade. Os comentários eram pouco apurados, agressivos e radicais. Com o passar do tempo, tais posicionamentos amadureceram: era preciso lidar com públicos diferentes, e não fazia sentido assumir posturas tão totalitaristas e massificantes como aquelas a que me opunha. Em uma das reuniões mostrei-me contrário à proposta da rádio e tornei-me diretor de programação. Entrei de cabeça no novo cargo. Modifiquei todo o quadro de programas. Promovi várias conversas com os programadores sobre mobilização social, comunicação, cultura popular, reconhecimento das bases, educação e posicionamentos radicalizados. Muitas pessoas deixaram a rádio: algumas por não concordarem com o tipo de organização; outras por não atenderem à demanda necessária para estar ali. Eu incentivava os programadores a pesquisar mais sobre os meios que eram utilizados ali em favor das comunidades. 322


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Com a reorganização da programação e a potencialização dos comunicadores, logo veio a resposta das comunidades que ouviam a rádio. Mais inserções e questionamentos ao vivo. Mais propostas e mais proximidade entre a rádio e os ouvintes. Como a relação ficou mais próxima e menos agressiva, a rádio se tornou um grande palco, uma espécie de divã, para pessoas que queriam ser escutadas e percebidas como protagonistas. A rádio começou, então, a ser procurada por grupos organizados, partidos políticos, universitários e pesquisadores. Com o assédio, ela perdeu força e saiu do ar durante seis meses. Mesmo assim, um grupo de cerca dez pessoas continuava a se encontrar em nome da nova organização da rádio, que passou a se chamar Associação de Radiodifusão Real de Comunicação Comunitária (Fusão Real). Para além do nome, percebemos que era necessário propor uma nova programação, além de buscar formação nos campos da cultura, da arte e da comunicação. Buscamos ainda uma articulação com outros grupos. Nesse processo, encontramos a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRACOBH), o Programa de Orientação e Conscientização da Criança e do Adolescente (POCCA), o Coletivo Hip-Hop Chama e a Associação Imagem Comunitária (AIC), além de outros tantos parceiros. Estes fizeram com que o processo de fazer e compartilhar rádio comunitária ficasse muito mais rico e prazeroso. A atuação da rádio se expandiu, tendo o seu apogeu entre 1999 e 2003, período em que várias ações eram propostas, como previa o estatuto da associação. A realização de processos formativos mais reflexivos do que impositivos fez da rádio uma grande referência na região. As pessoas começaram a se apropriar da emissora, sentindo-se parte de fato do que era feito ali. Apesar da divergência política e cultural, a rádio mantinha diálogo aberto com vários grupos, fazendo com que as inquietações dos ouvintes e das organizações que tomavam parte do espaço radiofônico viessem a debate público. As discussões que eram realizadas no ar vinham à tona nos espaços formativos propostos pela rádio junto a escolas e projetos sociais. Os debates eram intermináveis: começavam aos sábados, às dez horas 323


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da manhã no programa que eu apresentava e se estendiam até sabe-se lá quando. Os temas giravam em torno de educação, arte, cultura, política, economia e suas variantes. Em certas ocasiões, algumas pessoas não entendiam meu papel ali à frente de um meio público. A rádio e eu sofremos muitas ameaças sobretudo quando levávamos temas contrários ao poder público e ao tradicionalismo familiar. Por fim, via-me envolvido até o pescoço com as ações comunitárias de rádio e os movimentos que propunham mudanças em prol dos avanços propositivos, críticos e reflexivos das comunidades. As reflexões desencadeadas nesse período fazem parte da vida de muitas pessoas, inclusive a minha. Comecei a trabalhar a comunicação de forma criativa e a promover o encontro de divergências no espaço público, mesmo sabendo que a discussão não terá fim nem se resume a um posicionamento intelectualizado. Acredito ter contribuído, assim, para que sujeitos não renegassem a sua realidade ou suas bases, mas conseguissem reconhecer e respeitar os outros. O debate contribui para que sujeitos conheçam outras verdades sem abrir mão das suas. As experiências com o outro servem de substância para ações mais amplas e menos excludentes.

Caso 2: POCCA No final de 1999, fui convidado a contribuir como voluntário em outra ação que nascia ali, na mesma região onde morava. Desta vez, tratava-se de uma associação que previa atividades com crianças e adolescentes da comunidade da Vila Maria. O nome do coletivo já era bem peculiar e causava estranheza nos ativistas mais conservadores dos movimentos sociais da região, pois fazia um trocadilho com um apelido da vila: Poca Olho. Para muitos, tal apelido era negativo, pelo fato de ter surgido a partir de uma história de violência. No entanto, a intenção era pegar o nome que os adolescentes usavam para falar do local em que viviam, transformando-o em um nome atrativo: Programa de Orientação e Conscientização da Criança e do Adolescente (POCCA). 324


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Minha participação na associação era no sentido de mobilizar e provocar crianças e adolescentes, a partir de elementos do campo da cultura. Eu utilizava, especificamente, a radiodifusão comunitária e a cultura hip-hop. Assim, abria possibilidades de exploração e experimentação de dois ricos canais de comunicação e expressão artística e cultural para os participantes que, na sua maioria, conheciam as duas propostas de forma pouco aprofundada. O entendimento dos milhares de jeitos de organização de uma comunidade, possibilitado pela disposição para trabalhar junto (ouvindo, refletindo e considerando as especificidades de um dado contexto), ajuda a avaliar as chances de sucesso de uma ação em um dado local. Isso é algo de extrema relevância. Frequentemente ONGs, associações, grupos religiosos e outras instituições se baseiam em dados de pesquisas e em reflexões de estudiosos que parecem bastante genéricos. Pensando em uma vila com a dimensão daquela em que eu moro atualmente, cada rua e cada beco têm suas particularidades e, por mais que as pessoas tenham sido criadas na mesma vila, cada rua, cada beco e cada pessoa constroem um jeito de lidar com o outro, de lidar com a vida, de se organizar perante a diferença e os problemas que a comunidade tem. Portanto, a atuação de grupos bem-intencionados nessas comunidades pode ser sem sentido, ou mesmo equivocada, quando se pauta por questões prontas e generalizadoras, que supõem que toda a comunidade deve agir, pensar, desejar e sonhar da mesma maneira. A probabilidade de isso dar certo é mínima. Além disso, muitos jovens, independentemente da classe, não são educados para ter voz e autonomia; para questionar ou escolher. É muito comum que não tenham interesse por trabalhos coletivos e comunitários. Juntando ação mal planejada, jovens desacreditados e a falta de participação da comunidade, o que posso dizer é que muitas das ações propostas não passam de perda de tempo, na melhor das hipóteses, ou tentativa de adestramento, na pior delas. O trabalho desenvolvido pelo POCCA foi de extrema importância para alguns jovens. As reflexões que o grupo conseguiu 325


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construir com mais de 50 meninos e meninas – que nos fins de semana iam ao espaço onde o grupo propunha suas atividades – continuam a se fazer presentes nas vidas de muitos deles. Tive uma prova clara disso quando um engraxate de aproximadamente 16 anos veio conversar comigo em um bar: Clebin, você não lembra de mim, mas eu lembro de você toda vez que estou desacreditado. Cê sabe que a quebrada tá cabulosa, e a maré não está pra peixe. Mas ainda não me entreguei. Lembra daquilo que você falou lá na escola? Tinha muita gente, né, mais aquilo foi pra mim. Eu senti e até hoje eu lembro...

Não me lembro o que eu disse naquela ocasião, mas sei que o trabalho valeu a pena e que escolhi o lugar certo para ser realizador. Lágrimas me tomaram logo que o rapaz partiu e me senti muito próximo a ele. Fico feliz ao perceber que o processo tenha sido interessante mais pelo fato de eu estar ali e trocar ideias do que pelo conteúdo que foi trabalhado na formação.

Caso 3: Associação Imagem Comunitária Há hoje muitas brechas e muitas oportunidades de financiamento que possibilitaram o fortalecimento do terceiro setor. Fomentadas pela lógica de funcionamento dos grandes setores econômicos, com suas estratégias de marketing e suas campanhas publicitárias, tais brechas envolvem muitos editais, licitações e fundos que colocam centenas de grupos em disputas. Em grande medida, contudo, os projetos que se encaixam nos perfis particulares de certos financiadores são carregados por pensamentos totalitários que dificultam a construção de práticas formadoras de sujeitos que tenham efeito transformador. Entretanto, há algumas organizações não governamentais que conseguem escapar dessa lógica perversa e promovem práticas distintas. É nesse sentido que conto agora uma das experiências mais prazerosas que já me ocorreram desde meus 16 anos de idade. 326


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Por volta de 2004, sentia que faltava algo que iria além de ser filho de Nilda Quirino e Antônio dos Santos, de ser favelado, ativista de movimentos culturais, comunicador social e cantor de festa de rap. Eu estava envolvido com várias atividades naquele momento. Uma delas era o Coletivo Hip-Hop Chama, que discutia, além de outras coisas, políticas públicas mais justas dentro da cultura hip-hop. Em um de nossos encontros, deram um aviso sobre uma ONG que havia feito um convite para uma formação em torno do audiovisual. Logo me interessei: era o que eu queria naquele momento.Várias pessoas quiseram ocupar as quatro vagas ofertadas para o coletivo, e cada uma teve que defender a própria candidatura. Eu disse que uma vaga deveria ser minha, pois já atuava na área de comunicação social: editava, trabalhava com produção musical, tinha vínculos com vários grupos e por aí se estendeu a minha defesa, até alguém dizer: “Pronto, nos convenceu!” A ONG em questão era a Associação Imagem Comunitária (AIC), que promovia uma formação focada na temática juventude e direitos humanos. O grupo em que me inseri produziu um vídeo que abordava assuntos ligados às rádios comunitárias. Encerrada a formação e instigado pela proposta da AIC, percebi a possibilidade de estreitar meus laços com a instituição. Essa vontade nascia da observação do modo como os propositores conduziam as oficinas e da forma como expressavam orgulho pelo trabalho que realizavam. Não se tratava de falas prontas dirigidas ao público, mas de falas marcadas por amor ao que estavam fazendo. Aquelas pessoas acreditavam naquilo que propunham, embora nem sempre fossem claras sobre o que queriam provocar e dependessem da disposição dos participantes que vinham de diversos grupos organizados de BH. Eu não me contentava só com o tempo da oficina, por isso gastava todos os minutos possíveis trocando ideias com os três propositores – Aléxia Melo, Bernard Belizário e Pedro Aspahan – que me iniciaram no audiovisual. Admirado com a forma como eles lidavam com as tecnologias e com a própria instituição de que faziam parte, pensava: “Quero ser isso aí ou alguma coisa 327


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parecida”. Parecia muito interessante lidar com a divergência, com a diversidade, na qualidade de um mediador que se preocupa realmente com o que o outro está dizendo, sem querer imprimir valores e sentidos pessoais e sem se achar superior por ocupar o lugar de professor. Sempre acreditei nesse tipo de conduta e estava feliz por encontrar um grupo que pensava de forma semelhante. Logo me coloquei à disposição para qualquer trabalho na AIC, fosse ele voluntário, fosse remunerado. Fui, então, convidado a acompanhar um grupo que estava realizando um vídeo em um bairro próximo à região onde morava. Na sequência, já no final de 2004, passei a integrar a equipe de um projeto que propunha ações de rádio comunitária em escolas públicas de Belo Horizonte. Nesse mesmo projeto, participei da condução de um processo formativo com cerca de 30 jovens. Com isso, fui me aproximando cada vez mais da equipe fixa da AIC, até que surgiram algumas vagas, e manifestei minha vontade de trabalhar ali de forma permanente. Desde então, trabalho na equipe da Rede Jovem de Cidadania, junto a diversos grupos e coletivos que buscam produzir peças comunicativas. Atualmente trabalho como educador de vídeo, fazendo um pouco de tudo: produção, discussão, gravação, edição. Mas sinto que meu trabalho é principalmente encontrar pessoas, no sentido profundo do termo. O trabalho com o outro proporciona diversas descobertas pessoais e coletivas, quando se está à vontade e consegue fazer com que o outro se sinta parte da proposta. O real encontro faz com que aumente sempre o desejo de estar no papel de questionador, provocador, propositor, mediador ou professor. O importante é aliar a prática ao estudo para estarmos mais próximos daquilo com que queremos trabalhar. É importante também não descartar nunca a hipótese segundo a qual, mesmo entre iguais, todos são extremamente diferentes. Outro aspecto a ser mencionado é a necessidade de abandonar uma concepção redutora de verdade, que dificulta conhecer outros olhares sobre a mesma coisa. É preciso construir olhares próprios e descontruí-los sempre, desmistificando visões de mundo no campo prático da educação midiática. A arte de lidar 328


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com o olhar, com a realização e com o poder da mobilização e da sensibilização a partir da linguagem pode estar presente ao longo de nossas vidas nas coisas mais simples do dia a dia. Por isso, entender as complexidades, miniaturas, subjetividades e a metamorfose poética da realização comunitária como arte fomenta a sensibilidade, o desejo e a liberdade de criar sentidos. ****** Os três casos apresentados aqui são pequenos fragmentos de minha vida e de minha atuação no campo da educação midiática e da formação de jovens. Eles mostram situações diversas em que oportunidades foram construídas no próprio processo em que trilhei uma trajetória como educador. O movimento de refletir sobre tais experiências e de dotá-las de sentido traz lembranças de outro aspecto fundamental desta trajetória. Um dos lugares que mais marcaram a minha infância e a minha adolescência foi uma caçamba de lixo que ficava no fim da rua em que vivia. A caçamba era um lugar vivo, onde eu encontrava amigos, inventava brincadeiras e descobria objetos desconhecidos. A cada dia, ela trazia a esperança renovada de uma nova revelação e de uma surpresa. Na caçamba já encontrei roupas, brinquedos, material de construção e revistas, para citar alguns exemplos. Até hoje, tenho o hábito de olhar seus arredores com curiosidade, em busca de objetos únicos e significativos, histórias de vida jogadas fora, memórias supostamente apagadas, bens materiais dispostos como inúteis. Sempre me apropriei desse lixo. Tomei-o como próprio. Usei coisas com os fins para os quais foram produzidas. Dei novos usos a outras. Compartilhei com os amigos da rua muitas experiências e brincadeiras que começaram na caçamba. Fiz pequenas reformas na minha casa. Hoje compartilho com colegas de trabalho objetos que vieram dela e que podem se mostrar novamente úteis. Alimento-me cultural e artisticamente da caçamba em diversas ocasiões. Esse processo de me alimentar daquilo que parece desimportante, de ressignificá-lo e reutilizá-lo marcou minha vida. Em cada um dos casos mencionados anteriormente, eu me apropriei de 329


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oportunidades que apareceram e busquei criar um lugar próprio, com minhas contribuições, sempre aprendendo com as surpresas e as revelações de cada dia. A caçamba também ajuda a pensar minha prática como educador. Ela metaforiza a potencialidade de estar aberto ao outro, de se deixar transformar por ele, ao mesmo tempo em que se atua para transformá-lo. Ela mostra a produtividade das brechas, daquilo que é incerto e do que se desdobra a partir do encontro. Aquela caçamba, que foi meu grande brinquedo ao longo da vida, tornou-se a definição do trabalho a que me dedico e a filosofia que utilizo diariamente para aprimorá-lo.

Referências ALVES, Rubem. Ciência, coisa boa... In: MARCELINO, N. C. (Org.). Introdução às ciências sociais. Campinas: Papirus, 1996. BASTIDE, Roger. Arte e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970. FOTOLOG Técnica Mística. Desenvolvido por Clebin Quirino dos Santos. Disponível em: <www.tecnicamistica.blogspot.com>. Acesso em: 22 maio 2010. GOLDSCHMIDT, Lindomar. Sonhar, pensar e criar: educação como experiência estética. Rio de Janeiro: Wak, 2004.

Para reinventar o vídeo e a periferia: vídeo popular, cinema de quebrada, vídeo comunitário, audiovisual periférico... Ser ou não ser? André Luiz Pereira Daniel Fagundes Diego F. F. Soares Fernando Solidade Soares Belezas são coisas acesas por dentro, Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento... Jorge Mautner 330


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Quando nós, do NCA, recebemos a proposta para escrever este texto, decidimos elaborá-lo conjuntamente, com contribuições de todos os integrantes do grupo. Os processos coletivos são fundamentais para o nosso trabalho. É a partir desse fazer que afirmamos nossa postura política e ação prática. Realizamos um debate em que discutimos sobre as perspectivas do nosso trabalho, a noção de periferia, o trabalho das ONGs e de outros atores envolvidos com o audiovisual popular. Essa conversa foi gravada e transcrita. Desse material, chegamos ao conteúdo deste artigo. Aqui fizemos o exercício de meditar sobre questões que permeiam nossa prática e a de outros coletivos que estão organizados em prol de uma produção popular de audiovisual. Fazer uma revolução nas relações e possibilitar que os sujeitos compreendam a estrutura do sistema social em que estão inseridos são missões do NCA. A nosso ver, o advento do vídeo nas periferias de São Paulo assemelha-se à chegada das parafernálias portuguesas nas comunidades indígenas: um espelho em troca de um lote de terra; uma câmera em troca de uma propaganda. O machado que cortou o pau-brasil decepou, e muito, a tradição e os valores ancestrais. No jogo objetivo do ter e não ter, a desigualdade se afirmou. Das ocas aos barracos, dos espelhos às câmeras de vídeo, o processo se repete, as comunidades crescem, e, para quem vive no extremo, a extremidade é o que se tem (da sobra de comida ao lixo tecnológico). A memória é a ação da resistência nas falas e nas práticas do povo que transmite sua sabedoria às gerações posteriores. A vasta produção de documentários nas periferias do Brasil é um registro de sua história oral. É a possibilidade do registro histórico e da denúncia pela perspectiva de quem vive o fato narrado. O fazer pensando, que instiga inovações teimosas. O novo que emerge como gramínea nas brechas do concreto. A beleza apagada pelo sofrimento diário do ônibus lotado, do trabalho forçado, do esgoto a céu aberto, da moradia precária renasce, ainda que muitas vezes de forma inconsciente, pela linguagem, pela estética, pela reinvenção da forma. 331


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Nesse contexto do audiovisual popular, emergem algumas questões: até quando legitimar a cosmética da fome? Quando buscaremos a autonomia no processo de criação e a apropriação dos meios de produção? Quando superaremos a dependência da estrutura institucional, que muitas vezes direciona os conteúdos e aliena a produção? Que lutas terão de ser travadas? O fato é que na lógica atual o realizador audiovisual é muitas vezes quase indivíduo passivo à sua realidade (pautado pelo mercado, pela conjuntura e pelo contexto de vida). É como se o sujeito periférico estivesse na periferia, mas não tivesse capacidade de discernir e refletir sobre sua própria realidade. É necessário que os excluídos falem mais de si, e isso não significa que só eles têm propriedade para tal, mas seu posicionamento é importante para a formação de sua imagem social. Achamos que rotular a produção como periférica ou comunitária pode isolar a possibilidade de sentidos que esse tipo de ação alcança, porque caracteriza o trabalho através de estigmas sociais, distanciando novos públicos e legitimando a ineficácia do poder público no cumprimento de suas atribuições básicas. O estado brasileiro nega a todo momento os meios de produção de arte e comunicação. Quando enfatizamos fazer um cinema de quebrada, sem nunca pegarmos numa câmera de película, afirmamos que nosso vídeo está condenado a justificar a defasagem técnica oriunda da exclusão socioeconômica na linguagem. Se o que se faz é vídeo, isso deve ser reconhecido como tal, em suas defasagens de resolução e suas potencialidades de experimentação, também para que fique claro quem tem acesso à produção de cinema com toda a estrutura necessária neste País. Antes de ser membros de uma comunidade ou classe social, somos seres humanos, atravessados por culturas milenares e universais. Quando não nos damos conta de nossa localização no eixo tempo/espaço, fica difícil perceber as premissas culturais com as quais operamos tacitamente. Um bom exemplo é o distanciamento histórico dos termos “erudito” e “popular”. A definição do dicionário Aurélio para “erudito” é: “De saber vasto e variado”; “popular” significa: “Do povo ou feito pelo 332


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próprio”. Assim, observamos que “popular”e “erudito”não são opostos. Por um lado, o que é popular também tem saber vasto e variado, considerando sua diversidade étnica e sua potência criativa; por outro, o popular não é definido pelo povo, como supõe o dicionário. Dadas as gigantescas disparidades sociais, o povo não tem posse sobre os meios de produção de informação e, logo, não forma uma opinião condizente com a sua realidade. Frequentemente, o povo se vale da consciência elitista criada como consenso pelos meios de comunicação de massa, produzindo algo pautado muito mais no exterior (padrão eurocêntrico/ fora de si) do que em suas raízes culturais e estéticas. Por isso, para nós do NCA, o vídeo popular, enquanto termo, compreende o saber construído pelo povo no decorrer dos tempos, em suas lutas e em seus hábitos culturais em sociedade, buscando através do audiovisual uma maneira de promover valores e saberes genuínos do povo. A definição de “vídeo popular” delineada por Luis Fernando Santoro (1989), em seu livro Imagem nas mãos, permanece viva, e o desejo de produzir uma comunicação realmente popular fomentou o surgimento, em São Paulo, em 2008, do Coletivo de Vídeo Popular, do qual também fazemos parte. O Coletivo de Vídeo Popular se propõe a reunir os grupos e os indivíduos interessados na produção de uma mídia audiovisual participativa, construindo redes de compartilhamento de informação e ações conjuntas, que vão desde a concepção de um circuito de exibição popular à articulação em torno de políticas públicas nessa área,de modo que os desafios continuem a ser lançados e enfrentados coletivamente.

O centro da periferia e a periferia do centro Qual é a idade da ideia de periferia? Quantos anos tem esse conceito? Há quanto tempo ele gera tanto interesse? É bem provável que estejamos vivendo um novo modismo. A comunidade se constituiu como um novo nicho de mercado 333


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e um fetiche audiovisual para emissoras de TV e a sede delas por audiência. O que já foi chamado de aborígine, de incivilizado, de escravo, de proletário, de malandro, de suburbano hoje é chamado de periférico. Mais um nome para uma velha condição. Não que seja ruim renomear e recontextualizar algo; afinal, a realidade muda, as pessoas se transformam, as cidades crescem, novos problemas surgem e se misturam aos mais antigos. A questão é entender o que esse novo elemento de identidade (a periferia) propõe à vida cotidiana. Em que efetivamente a criação de um movimento periférico altera as bases estruturais desse sistema de classes? Estamos, portanto, em uma sinuca de bico, e quem sofre as piores consequências desse sistema é a juventude, que consome a arte enlatada e se vê em meio a um turbilhão de informações. Como apontou Debord (1997, p.182), “Os homens estão mais parecidos com seu tempo do que com seus pais”. A história foi diluída no caldeirão das novidades insólitas, e isso não foi revolucionário como imaginavam os futuristas no início do século passado. Pelo contrário, a dissolução da história nos colocou à mercê da ideologia do consumo em prisões particulares: apartamentos e casas com sistemas de vigilância via satélite. Sequer foi preciso queimar bibliotecas: inventou-se o Google, e o mundo da praticidade auxiliou o mundo da ignorância a se expandir como um vírus (control C + control V). Vivemos talvez o momento do auge da ignorância capitalista, em que tudo é aparente, e quase nada é o que é para além da imagem. O elogio da insensatez é um culto perpétuo, pautado pela indústria audiovisual, em que tudo se contamina. A política é um show, ainda que de horrores. Trata-se de um show, no qual as pessoas participam como coadjuvantes no próprio filme. É o espetáculo da democracia representativa (aliás, representar é qualidade de imagem). A segurança pública opera a partir da lógica do controle social, em que o Brasil Urgente2 exibe benfeitores Programa jornalístico de caráter sensacionalista da TV Bandeirantes.

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televisivos, que mais parecem feitores do Brasil colônia. Os capitães do mato do cotidiano atual sobrevivem no olhar do vizinho, na tensão da esquina de madrugada, na tranca do portão. A polícia de hoje assume posição meramente funcional, tornando-se uma consciência audiovisual coletivamente instituída. As universidades transformaram-se em shoppings; em linhas de produção da educação disciplinar. Ali o sujeito aprende como se inserir no mercado, já que o senso crítico tornou-se cafona na era da alienação. O aprendizado da inconsciência é o reflexo da geração dos adoradores de Malhação3 nas faculdades. Vigora o prazer fetichista do relacionamento plástico, do celular, do automóvel, do belo acima de todas as coisas. Ser cego, nesse contexto, poderia ser uma fuga dessa realidade, mas o imaginário também já foi corrompido. Como no filme documentário Preto e Branco,4 de Carlos Nader, no qual um homem, portador de deficiência visual desde que nasceu, alega não gostar de japoneses, sem sequer ter visto algum em sua vida. Levando em consideração todo esse contexto, é preciso avaliar o trabalho realizado pelas ONGs com o audiovisual nas periferias. No caso de São Paulo, percebemos que, ainda que tenham nos possibilitado produzir imagens, não nos possibilitaram a produção de imaginários. O discurso mais recorrente é o de autorrepresentação: “Vamos possibilitar aos carentes que mostrem sua comunidade como a mídia não mostra”. Mas a grande questão é: Basta que alguém habituado com a miséria pegue numa câmera e grave seu cotidiano para que ele seja modificado? Nós, do NCA, acreditamos que isso é uma falsa utopia, que reforça a ideologia elitista, que segue mantendo a pobreza em prol da centralização eterna dos meios de produção midiática. A suposta democratização dos meios de comunicação, que ocorreu tanto pelo barateamento dos equipamentos de suporte digital quanto pela disseminação de oficinas pelas Novela da TV Globo.

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Carlos Nader, 2004, 73min. Já Filmes.

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periferias do Brasil, não trabalhou a desconstrução do imaginário edificado por anos de TV. Mesmo que jovens tenham posse de uma câmera, o discurso deles acaba ficando igual ao da produção audiovisual comercial ou parecido. É como se as novelas que agora usam a periferia como tema tivessem sua versão de baixo orçamento nos guetos das cidades. Salvo raras exceções, continuamos reproduzindo o discurso, precarizando a forma e alterando os rostos. Mas a periferia continua a mesma no que diz respeito às condições de vida. A tecnologia tornou-se apenas mais um produto de consumo, que mais fetichiza do que transforma. Com este texto, não pretendemos levantar a ideia de que todos os produtores devam ser contrários ao mercado audiovisual. A reflexão desenvolvida aqui surge da crítica ao discurso que prega “usar o vídeo como uma ferramenta de transformação social”. Essa é uma justificativa frequente de projetos para conseguir financiamento de atividades com vídeo em periferias. Porém, nada se transforma enquanto não tivermos claro o que queremos transformar. A periferia é real consequência da sociedade de classes. E, se essa estrutura não for alterada, nada se altera. O vídeo deve trazer provocações e incitar discussões. A periferia necessita compreender que estar à margem é mais que uma questão geográfica. Trata-se também de uma questão política e econômica. Precisamos entender a própria relatividade da ideia de centro, pois o centro pode também ser periferia ou pode estar nela. Do mesmo modo, a periferia pode ser centro, se considerarmos a relatividade do termo que é definido, ora pela precariedade de vida, ora pela riqueza cultural. Os processos de formação de identidades estão relacionados com a cultura. Nota-se, assim, que o rótulo “periferia” é problemático, beneficiando seu próprio contraponto. Afinal, quantas periferias serão necessárias para construir um império? A eterna afirmação da miséria nos levará à cristalização da condição de pobreza e precariedade ou a inversão dos 336


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papéis de oprimidos e opressores. É inegável o fato de que o assumir-se periférico, num primeiro momento, é de extrema importância para a edificação da autoestima destruída por anos de padronização eurocêntrica. Movimentos como o punk e o hip-hop são, para as comunidades de baixa renda, uma forma legítima de resistência cultural e de embate contra as desigualdades sociais do Brasil urbanizado. No entanto, o rótulo “periférico”acabou por enfraquecer esses movimentos, já que todo o sistema de controle se voltou para a repressão e contenção das ações dos coletivos. Esses grupos, inicialmente revolucionários, foram cooptados e integrados à indústria cultural, depois que foram devidamente rotulados e embalados pela moda. Isso gerou certa dormência no ideário de transformação do movimento. Os grupos foram homogeneizados em torno de uma imagem que os caracterizava frequentemente como bandidos ou baderneiros e reprimidos à revelia pelos órgãos de segurança pública. Ao refletir sobre uma imagem representativa do que é a periferia, por que não pensar em senhores reunidos num bar tocando viola caipira e cantando antigas toadas de boi à beira de um córrego? Por que não pensar nos ônibus lotados? Nas crianças correndo atrás de pipas? Nos carros rebaixados, tocando funk no último volume? Devemos buscar nossas raízes culturais esquecidas, além de assumir as novas manifestações culturais, por mais que essas novidades violentem nossa consciência. A mudança de paradigma precisa partir da história do outro e de sua vivência social. Ela deve buscar, no respeito à condição alheia, a crítica saudável e construtiva. Isso é importante para que alteremos os valores retrógrados e preconceituosos. Precisamos fomentar a produção da imagem-enigma, imagem que provoca o refletir sem entregar uma verdade fechada, exigindo do outro sua interpretação de mundo e convocando sua posição, com firmeza e personalidade no espaço. Sem a necessidade de rótulos.

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Vídeo popular e a indústria do audiovisual No próprio vídeo popular, corremos o risco não só de nos perdermos na teia complexa da produção, como de cairmos no ilusionismo (iluminista) de que nossa produção carrega a verdade e é fonte condutora da desalienação, simplesmente por estar desvinculada do mercado de entretenimento. De um lado, temos o cinema hollywoodiano, mentindo vinte e quatro quadros por segundo; do outro, temos o vídeo popular, que sonha com uma verdade inquestionável, simulada pela codificação da câmera. No meio, encontra-se o espectador, perdido com a enxurrada de discursos, que podem não variar tanto em forma, mas variam em conteúdo: há tudo para todos os gostos. O maior exemplo de fracasso da nossa produção popular está na tentativa de reafirmar esse contraponto à mídia comercial. Ainda que tal contraponto tenha razão de ser, a forma como se busca fazê-lo legitima e reafirma a ordem estabelecida. Uma das grandes estratégias do chamado “cinemão” está na criação dos mitos: rostos bonitos ganham destaque frequente em superclose, demonstrando talentos inalcançáveis e vidas invejáveis. Já o vídeo comunitário, em algumas categorias de sua produção, assume a estratégia de exemplificar (e encenar) certa guerrilha social, através de lideranças e mitos revolucionários, nos quais devemos nos espelhar. Na maioria das produções, esses personagens são muito éticos e quase destituídos de contradições. Nos dois lados, temos um cenário bem parecido: o espectador fica imerso na impossibilidade de vivenciar a experiência da forma como foi mostrada, confortando-se na representação absorvida dentro do discurso do filme. Nesse sentido, a negação afirma aquilo que pretende negar. Mesmo quando o vídeo tenta trabalhar apenas com a realidade que quer desmascarar, pode cair no problema de levantar idealizações românticas, de conscientizar o alienado ou desmascarar as mentiras midiáticas das grandes corporações. Trata-se de um ideal bonito, mas falho. Conscientizar o outro traz a ideia 338


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de que ele é destituído de uma consciência, ou que, no mínimo, precisa ampliar seus horizontes, para além do que pense saber. Nesse sentido, repetimos o discurso colonizador segundo o qual a alta cultura é feita em terreno europeu: só se faz filosofia em alemão; cinema bom é cinema francês. Para nós, sul-americanos, fica a sensação de que a cultura é exterior a nós e que devemos ser gratos por aprender com o colonizador. Acreditamos que, para além de uma produção que incite a mobilização social, uma das práticas que a fortalece enquanto ruptura com o mercado é realizar exibições gratuitas em espaços públicos e abertos. Nessas exibições, nossa produção atinge com maior força seu objetivo de desestabilizar não só o mercado de entretenimento mas também a lógica econômica dos guetos familiares (individualizados em seus lares, com seus próprios aparelhos). Exibir em uma praça é um convite para ocupar a rua. Promover um debate após uma exibição é um chamado à interpretação, à sociabilização, ao compartilhamento. Realizar mostras na própria comunidade em que o vídeo foi feito fomenta a troca de impressões sobre a produção e a percepção de falhas. Esse tipo de visibilidade implica sair do limiar da representação e cair no campo da apropriação e da ressignificação. É quase como fazer um buraco (pequeno) na teia de relações do mercado político/econômico, que não dá espaço para troca. A mídia (com sua fala ininterrupta e sem réplica) e o mercado (que cria objetos e necessidades) decidem a compra e o consumo. A política é o campo em que devemos lutar por mudanças. O vídeo popular tem, por obrigação, que ir além de si e ocupar a rua, chamando pessoas para completar seu discurso. Ele precisa ser um convite ao fazer junto; tem que se tornar independente não só de recursos, como de estrutura e propósitos. Tomar a rua, conviver e compartilhar. Vídeo popular como convocação à participação!

Referências DEBORD, Guy, Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. SANTORO, Luiz Fernando Santoro. Imagem nas mãos - o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus, 1989.

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Possibilidades e saberes do audiovisual na escola5 Giovânia Monique

A proposta de utilizar o audiovisual para transformar a escola em um espaço provocador da autonomia e do protagonismo é extremamente interessante porque agrega uma ampla diversidade de pessoas e de grupos comunitários. Acredito que as escolas são um lugar fundamental para a transformação das comunidades. Elas articulam uma pluralidade de valores e vivências. Moro em Belo Horizonte, numa região pouco privilegiada por ações governamentais. As pessoas e os grupos locais se mobilizam frequentemente para realizar projetos nos campos da cultura, da educação e da estruturação do bairro. Como moradora atuante da comunidade, eu não poderia ficar de fora e venho fazendo as minhas propostas. Uma delas foi utilizar o audiovisual para mobilizar e sensibilizar adolescentes e jovens em uma escola perto da minha casa e na qual eu havia estudado. Foi a minha primeira experiência como educadora. Ali assumi outro papel: atuar como multiplicadora da minha experiência com os meios de comunicação, que nasceu na participação em processos formativos promovidos pela ONG Associação Imagem Comunitária (AIC). Em 2004 entrei para o projeto Rede Jovem de Cidadania da AIC. Nessa experiência, pude ampliar minhas discussões, meus conhecimentos e minhas críticas sobre uma série de questões. A partir da vivência em processos de construção coletiva do projeto, tornei-me propositora de diversas ações. Passei a ser mais questionadora, fortaleci minha autonomia e minha capacidade de participação. O desdobramento desse processo de formação em mídias junto à AIC me levou a propor ações no espaço escolar. Agradeço especialmente as conversas e as ideias dos companheiros Alexia Melo, Jeferson Cleber (Clebin) e Pablo Abranches para a produção deste texto.

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Desenvolvi um projeto de rádio em parceria com os alunos dessa escola. Acredito que usar peças radiofônicas e audiovisuais de maneira didática permite gerar discussões e provocar os jovens a refletir sobre os conteúdos e a forma dessas produções. Essa prática possibilita, ainda, o registro de valores e da memória sociocultural de alunos e da comunidade. Quantas histórias, quantas culturas, quantos costumes, quantas tradições, quantos saberes e quantas vontades estão guardados dentro de casas e comunidades. Está mais do que na hora de proporcionar espaços para discutir e realizar ações para promover o acesso e dar visibilidade a essas transformações de cada comunidade, muitas vezes vistas de forma estereotipada. O audiovisual é um meio que permite diversas formas de atuação, até porque um processo nunca é igual a outro. Os encontros de formação para o rádio possibilitam uma transformação intensa dos alunos. Não digo que seja uma transformação especialmente no desempenho escolar ou que reflita diretamente na melhoria das notas, ainda que isso possa acontecer. Trata-se de uma mudança relacionada principalmente à construção da própria identidade. Os processos de produção audiovisual possibilitam que os jovens repensem o funcionamento da escola. Eles se tornam mais autônomos, mais propositores e com mais vontade e mais capacidade de intervir no espaço escolar. Quando comecei a desenvolver o projeto de rádio, houve uma resistência inicial dos professores, porque eu era ex-aluna. Apesar disso, consegui levar o projeto adiante. O fato de já ter estudado na escola e ser conhecida por atuar de forma ativa nos eventos e nas festas me ajudou muito no contato inicial com os alunos. Já havia um clima de confiança estabelecido entre nós. O fato de ser uma proposta para trabalhar com mídias, utilizar um gravador ou uma câmera, poder criar programas e depois exibilos também exerceu um grande fascínio para o grupo de jovens. Já no primeiro encontro que tive com o grupo de alunos, tentei estabelecer uma relação diferenciada com eles. Mostrei que tudo seria criado coletivamente, que eu não tinha uma 341


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proposta inicial fechada para o desenvolvimento do projeto da rádio. Propus que criássemos juntos tanto a forma de trabalhar como os temas que abordaríamos naquele espaço. De imediato, e para surpresa de muitos, os alunos propuseram vários temas interessantes, inclusive polêmicos, como drogas, violência, saúde, política, educação, temas que muita gente acredita não interessar aos jovens. Outro aspecto importante nos processos formativos da rádio foi a realização de alguns debates sobre os meios de comunicação. Com essas discussões, foi possível perceber o papel e o poder que tais meios têm junto a seus leitores, seus ouvintes e seus telespectadores. Muitos jovens partilham a mesma realidade de ver a mídia do outro lado, como meros espectadores, em meio a informações, novelas, propagandas, consumo. Esse processo foi importante para discutir questões relevantes do cotidiano dos jovens. Discutir mídia no contexto escolar ajuda a dinamizá-lo, para que ele não se atenha apenas às disciplinas formais como Português, Matemática, Ciências. Com o passar do tempo, comecei a tentar promover um vínculo maior do grupo com a comunidade vizinha. A ideia era ocupar outros espaços de participação, para além dos muros da escola. Pensava construir uma rede de iniciativas comunitárias que pudesse fazer parte da nossa programação. Cada vez mais, fomos propondo atividades em lugares diferentes. Exemplo disso foi uma atividade que fizemos em uma creche do bairro. A turma elaborou um roteiro superinteressante, a escola emprestou fantasias, e os jovens fizeram um programa ao vivo, totalmente voltado para as crianças. O programa reunia música, informação e várias brincadeiras. Foi uma tarde inesquecível, que estimulou muito todos os alunos a continuar com o projeto da rádio e realizar ações em outros locais da comunidade. Eram ações simples que começaram a fazer parte da vivência do grupo, possibilitando aos jovens exercer outro papel: o de propositores. O projeto da rádio foi se transformando a cada período, a partir da necessidade e da vontade dos alunos que participavam. 342


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No início, eu percebia grande dificuldade no diálogo com a direção e com os professores. De forma geral, na minha experiência como aluna, sempre achei difícil fazer questionamentos e praticamente impossível desconstruir processos no universo escolar. Mas o nosso projeto com a rádio foi se tornando cada dia mais legítimo, e o corpo docente da escola foi se transformando em verdadeiro parceiro. A direção da escola possibilitou que o projeto acontecesse de forma dinâmica, permitindo o envolvimento de todos e dialogando com as propostas feitas pelos alunos. Chegou-se até a improvisar um estúdio na sala da diretoria. E, com o tempo, o grupo de alunos do rádio ganhou novos equipamentos e um estúdio profissional. O projeto aconteceu durante dois anos. Deixei de atuar como educadora, mas prossegui fazendo um acompanhamento do grupo. A ideia do projeto foi sempre que os próprios alunos deveriam dar continuidade ao processo, que de certa forma já era realizado com autonomia e independência. Os professores e a direção temiam que a rádio ficasse por conta dos alunos. Muitos achavam que os jovens não teriam capacidade de manter sozinhos uma rádio. Contudo, esse não era meu objetivo. A minha proposta sempre foi fortalecer os espaços para que os alunos pudessem construir coletivamente. Eles deveriam não ficar sozinhos, mas gerir uma dinâmica participativa que envolvesse diversos sujeitos que utilizavam o espaço escolar: professores, direção, funcionários e comunidade. A rádio é feita pela escola e para escola, e não com o objetivo de ser uma brincadeira dos alunos. Com o tempo, isso foi ficando claro. A escola cedeu e entendeu o porquê de um meio de comunicação dentro do contexto escolar. É compreensível essa dificuldade de perceber a possibilidade de um espaço de construção coletiva por parte da escola. Esse tipo de prática é diferente da forma como atuam, por exemplo, muitos professores. Na sala de aula tradicional professor fala, e aluno escuta. No espaço da rádio, por sua vez, há uma equipe sentada em círculo para pensar coletivamente e discutir. 343


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Confesso que, na época em que eu estudava, era muito difícil questionar. Eu ficava na posição de receptora, mesmo. Não eram criados momentos que possibilitassem discussões, além das matérias formais. De alguma forma eu nem imaginava que eles poderiam existir. Foi, então, a partir do processo formativo que vivi na ONG Associação Imagem Comunitária (AIC) que comecei a perceber a diferença entre a educação formal e a educação não formal. Com a experiência, entendi essas duas maneiras de educar e ser educada. Pude entender que existem propostas formativas que nos permitem atuar com outros papéis. No cotidiano do projeto, fui percebendo que precisava atuar de forma mais ativa, que cabia a mim questionar, expressar quais eram as minhas vontades e meus sonhos, fazer minhas críticas e começar também a fazer propostas. Passei a mostrar para outras pessoas meus desejos e meus sentimentos. Tudo começou a ser possível para mim. É preciso ressaltar que há falta de clareza no entendimento dos espaços de formação, como se eles se restringissem à sala de aula. O autoritarismo do espaço escolar acaba muitas vezes por pensar a educação não formal como se ela rivalizasse com os professores. Dentro do espaço escolar, a forma de trabalhar da educação informal choca, pois é muito diferente do ensino tradicional. Buscamos promover outras atuações dos alunos, fomentando o pensamento coletivo e possibilitando a efetiva escuta das demandas e das sugestões dos jovens. Isso faz uma grande diferença. Os alunos começam a compreender o sentido do que estão fazendo. Quando experimentam esse espaço de formação, tem início, muitas vezes, por parte dos alunos, um questionamento dos procedimentos empregados pela educação formal. Enxergar isso como rivalidade é inútil. A educação informal não busca tomar o espaço de professores e da direção, mas construir ambientes em que os indivíduos possam se expressar e se mostrar. Esse objetivo não implica disputa. A ideia é unificar; descobrir algo diferente para os alunos e, junto com eles, complementar as formas, as culturas e os conteúdos trabalhados em sala de aula. Isso não quer dizer que a educação informal é a 344


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grande salvadora da pátria, mas ela ajuda a minimizar parte dos problemas hoje enfrentados pela educação. Estamos acostumados a estudar para vestibulares, para o ENEM e para concursos públicos. Não há uma preocupação com a descoberta de novos valores e de questões culturais ou com os direitos humanos. A educação não parece voltada para promover a autonomia intelectual. No entanto, quando escolas abraçam projetos sociais e iniciam processos de experimentação, tem início um movimento muito rico. A experimentação da linguagem radiofônica com os jovens vem dando muito certo. Estabeleci uma parceria com os alunos para que entendessem que fazem parte do que está sendo construído. Trabalhamos em equipe, sem monopolizar o espaço e o poder, para produzir um bem coletivo. Com todo esse processo, a ampliação de saberes é sempre uma consequência. Construímos redes com outras escolas, possibilitando diálogos com jovens de comunidades diferentes. Tais redes comunicativas fortalecem os movimentos em favor de direitos e deveres voltados para os alunos, além de envolver familiares e a comunidade escolar. Cada imagem e som pensado pelos alunos – as formas de criar e mostrar – parte de uma vontade de fazer diferente, trabalhada de formas particulares em cada processo. Não importa quanto tempo eles demoram para fazer vídeos ou peças radiofônicas, mas o processo realizado, com seu percurso de reflexão e aprendizado. Hoje, com muita felicidade, posso dizer que a rádio está nas mãos de todos e que o nosso objetivo foi concretizado.

Para levar o audiovisual para as quebradas Vanice Deise ...deve-se examinar o impacto social crescente da revolução da informação Carlos Arnaldo e Asa Finnistrom 345


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Minha trajetória no audiovisual começou em uma oficina de alfabetização nesse campo. Participei de um processo formativo que foi oferecido no bairro da Vila Brasilândia, na cidade de São Paulo. O acesso que tive às formas de realização audiovisual foi a oportunidade de descobrir que era nessa área que eu gostaria de atuar profissionalmente. O núcleo Arroz, Feijão, Cinema & Vídeo, que coordeno, nasceu com o objetivo de formar o público para assistir aos vídeos realizados por moradores da periferia de forma independente. Lutamos também para dar visibilidade ao audiovisual comunitário e levá-lo às salas de cinema espalhadas pela cidade. Escrevi o projeto Rolê na Quebrada, patrocinado em 2005 e 2006 pelo Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da prefeitura de São Paulo. As ações do projeto foram desenvolvidas principalmente no bairro da COHAB Taipas, periferia da zona noroeste da cidade. O principal objetivo do Rolê na Quebrada é promover exibições audiovisuais ao ar livre. Também realizamos oficinas audiovisuais de forma a propiciar que os participantes relacionem a expressão audiovisual a três ideias fundamentais: a criação, a participação comunitária e a transformação social. Para quem nasceu na periferia, esses são sempre temas importantes para a discussão. A parte formativa do projeto ocorria três vezes na semana. Às quintas-feiras, para crianças a partir de sete anos de idade matriculadas regularmente no Núcleo Sócio Educativo Alegria de Viver (também localizado na COHAB de Taipas). Aos finais de semana, os encontros eram voltados para jovens e adultos, em dependências cedidas previamente pela COHAB e por parceiros. Durante os processos de formação, observa-se talento, descrença e anseios entre os participantes. Um dos principais pontos altos de todo projeto, além da realização propriamente dita, são as projeções em que os moradores podem se ver, reconhecer a si mesmos e ao bairro no telão. Aproveitamos esse momento para fazer a divulgação de informações artísticas e culturais. A abertura das sessões de exibição são sempre marcadas por um evento de rua com apresentações 346


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artísticas locais. Isso dá margem à crença de que tudo aquilo que se quer pode, sim, ser conquistado. Um processo formativo não pode ser encerrado sem que o grupo experimente esse momento de se ver e ser visto. Logo depois, o que fazemos é batalhar para que outras comunidades, outras cidades, outros públicos possam também conhecer o material. A distribuição dos produtos audiovisuais comunitários é sempre uma etapa complicada. É feita na maioria das vezes por meio de trocas entre núcleos de produção audiovisual de outras cidades, outros estados e até outros países. Os vídeos realizados também são enviados para seleções em festivais e mostras, que têm se tornado um espaço cada vez mais importante de visibilidade para as produções que se enquadram nesse perfil. Nas mostras audiovisuais que organizo, sempre me preocupo, durante a curadoria, em selecionar vídeos e filmes que dialoguem com a realidade do público. O objetivo é que os participantes possam se envolver com o audiovisual comunitário desde o início. Faz parte do que eu chamaria de um processo de transformação do olhar. Durante eventos e projeções do Rolê na Quebrada, era habitual observar a curiosidade dos moradores que assistiam a tudo das janelas de seus apartamentos ou das escadas dos prédios da COHAB. Não é incomum encontrar na periferia pessoas que nunca entraram em uma sala de cinema. Portanto, a formação de público é fundamental. É preciso levar o público das quebradas às salas de cinema; além disso, é importante trazer filmes e vídeos até a quebrada. Ou seja, descentralizar e democratizar o acesso ao audiovisual pode contribuir para a transformação das visões de mundo. Dar visibilidade para o vídeo comunitário em grandes salas de cinema é uma forma de valorizar esse tipo de produção e de apresentar outros olhares sobre a cidade e sobre a periferia para o público com maior poder aquisitivo. Da mesma maneira, levar o cinema para periferia incentiva o nascimento de cineclubes ou projeções ao ar livre, a fim de promover o acesso da produção cultural audiovisual à população de baixa renda. 347


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Atualmente, o Arroz, Feijão, Cinema & Vídeo continua atendendo à demanda da comunidade que participou do projeto Rolê na Quebrada, e permanecem as exibições. O mais importante é que a população do bairro se apropriou do processo de produção das mostras audiovisuais. As intervenções são promovidas de forma participativa, junto aos moradores. A experiência de contemplar o poder da união da comunidade em prol de si mesma é um aprendizado muito importante. Todos podem sentir na pele as dificuldades existentes, bem como os benefícios proporcionados, no processo de trazer a arte e a cultura até a quebrada. Percebemos que há muitas iniciativas sociais em várias regiões brasileiras, que, assim como a nossa, são criadas no intuito de democratizar esse acesso à produção cultural e audiovisual. Essas ações contribuem para o aprendizado e a compreensão do espectador diante de obras audiovisuais diferenciadas. Observamos que os participantes dos processos formativos e das exibições comunitárias adquirem uma visão mais crítica de sua realidade, e depois se tornam capazes de criar vídeos e representar com maior legitimidade sua realidade e sua experiência. Possibilitar o acesso à informação permite a compreensão de que nascer, crescer e viver na quebrada para além de uma questão geográfica ou social é uma questão de experiência de vida. A todos nós cabe reivindicar os direitos muitas vezes esquecidos pelo poder público. A periferia também tem o direito de participar da construção do seu próprio saber dentro da escola, em casa, na rua ou na utilização de intervenções artísticas por meio de múltiplas linguagens e mídias.

Referências ARNALDO, C. A.; FINNISTRÖM, A. In: CARLSSON, U.; VON FEILITZEN, C. (Org.). A criança e a violência na mídia. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 1999.

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Vídeo em movimento: apenas uma experiência Wilq Vicente

Meu nome é Wilq Vicente e sou um entusiasta do vídeo popular. Para falar de minha experiência pessoal com essa prática comunicativa, é preciso começar por meu universo imagético particular: de um jovem que assistia a inúmeras bizarrices nos meios de comunicação e vem para São Paulo a fim de tentar se aprofundar em “comunicação popular”. Ainda no Recife, surgiu a vontade de entender os processos de construção da imagem e aprender a realizar vídeos. Estava cansado de ver produções estereotipadas sobre minha cultura, sobre meu povo, e desejava desmistificar a produção audiovisual e suas hierarquias. Ver filmes sempre foi natural. Comecei projetando em aparelho de TV e VHS na escola em que estudava. A partir dessa experiência, surgiram outras inquietações, tais como analisar textos teóricos e conversar com diversas pessoas. Essas vivências começaram a abrir meus olhos. Percebi que havia um problema grave: o cinema brasileiro é mal distribuído e não chega a muitos lugares onde seria interessante chegar. A nossa locadora de bairro não dispunha de filmes nacionais. Não havia quase nenhuma informação sobre o cinema de Pernambuco. Não compreendia ao certo por que tinha que assistir a filmes estadunidenses e não a produções nacionais ou latinoamericanas. Textos e materiais relacionados ao cinema mundial também eram muito difíceis de conseguir em minha cidade. Naquele momento cheguei a uma conclusão: não se pode produzir e analisar imagens sem compreender os aspectos econômicos, sociais e políticos que as envolvem. Tal compreensão aguçava mais minha curiosidade e, ao mesmo tempo, fazia com que me sentisse acorrentado. Descobri livros sobre cinema e algum material sobre o vídeo popular no Brasil. No entanto, esses materiais priorizavam o eixo Rio-São Paulo, tradicionais polos de concentração da produção midiática. 349


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Em 2002 ouvi falar de alguns festivais que chegaram ao Recife. Comecei acompanhando edições itinerantes do É tudo verdade e do Festival Internacional de Curtas (São Paulo), além do Cine PE, do Cine São Luiz e do Cinema do Parque, que exibiam produções nacionais. O que mais me chamava a atenção em tudo isso era a paixão despertada pelo cinema nacional. Pensava ali, naquela sala: posso conhecer um pouco do Brasil através dessa tela de projeção. Filmes como Preto e branco (Carlos Nader), À margem da imagem (Evaldo Mocarzel), O rap do pequeno príncipe (Paulo Caldas) e Baile perfumado (Hilton Lacerda) me impressionaram pela capacidade de fazer sentir o poder e as possibilidades de produzir imagens. Naquele período comecei a acompanhar o programa Zoom, da TV Cultura de São Paulo. O programa me chamou a atenção em uma ocasião especial, quando exibiu uma matéria sobre oficinas de produção de vídeo. A reportagem não informava se se tratava de uma ação do poder público, mas o fato é que era na cidade de São Paulo, e não no Recife. Até aquele momento, eu desconhecia essas ações de formação audiovisual popular. Em 2005, tive oportunidade de conhecer São Paulo e percebi como era contraditória a construção da imagem da cidade. Em geral, veicula-se uma imagem-modelo, bem articulada e projetada com luz e maquiagem. Senti-me um extraterrestre, em um mundo oco e figurativo. Entretanto, ao mesmo tempo, pude perceber a realidade camuflada, escondida em imagens falsas, construídas com propósitos bem claros. São representações imagéticas que buscam “alie-mentar” as camadas populares, cristalizando a ideia de que o indivíduo sempre é capaz, mesmo sendo do “pobretariado”. Nesse mundo, a televisão é um relógio e um calendário. É sua escola, casa, igreja, amiga e amante. São Paulo, um roteiro incompleto, um vídeo sem acabamento. Popular, mas desfigurado.

Cidade de São Paulo Já nesse monstro de cidade, surgiu o interesse de buscar oficinas de vídeo que dessem respostas a algumas de minhas 350


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inquietudes. Procurei oficinas junto a várias instituições, notando que havia certa disputa entre elas para conseguir pessoas interessadas nessas formações. Ingressei em uma oficina, depois de um extenso processo seletivo e, como ocorre com muitas pessoas, senti certa desilusão, já que queria não apenas fazer vídeo mas também compreender, de forma mais coerente a conjuntura econômica, social e cultural que cerca a produção das imagens. No curso trabalhamos um pouco a questão político-cultural, mas a formação em vídeo foi superficial e desvalorizada pela instituição que era financiada por grandes corporações. Oferecer ações culturais em comunidades, museus e outros locais públicos é uma estratégia que contribui para a constituição de uma boa imagem dessas instituições. Não compreendia muito essas parcerias, embora percebesse que havia ali uma espécie de mina de ouro. Sentia certa frustração e constrangimento ao ver que minha participação naquele lugar era meramente numérica. Tratava-se de uma nova forma de capitalizar o olhar, expressa em frases bastante recorrentes: “Façam vocês mesmos! Peguem as câmeras. Agora, é a chance de vocês. Tornem-se grandes cineastas da periferia. Vocês não queriam as câmeras? Tomem!”. Tal como o filme Cinco vezes favela, idealizado pelo cineasta Cacá Diegues,6 muitas instituições criam ilusões que implicam uma imagem feita, editada e exibida sem inovação alguma, sem texto novo. Talvez por ingenuidade, nos inserimos na criação de um mundo que não queremos. Esse mundo pasteurizado, criado pelas oficinas, não necessariamente implica a produção de outro olhar. Ficamos presos a um processo estéril, enquanto discussões mais sérias ficam sempre para depois. Essas discussões envolvem O projeto do filme de Cacá Diegues é inspirado no longa-metragem Cinco vezes favela de 1961, um dos marcos inaugurais do Cinema Novo brasileiro. A diferença com o clássico do Cinema Novo são os realizadores: todos os diretores, os roteiristas e a equipe de produção foram selecionados em oficinas realizadas em comunidades do Rio de Janeiro. O filme é produzido pela Luz Mágica Produções Audiovisuais e pela Globo Filmes, com coprodução e distribuição da Columbia Tri Star do Brasil.

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temas como reformulação da Lei Rouanet, criação de políticas públicas específicas, vagas nas universidades públicas e/ou elaboração de cursos técnicos especializados. A lógica do Cinco vezes favela, a meu ver, não ajuda a avançar. É necessária uma real emancipação das formas de mediação. Até quando iremos precisar de um interlocutor para conseguir realizar e/ou idealizar os nossos projetos? Quando o Estado brasileiro vai dar crédito às iniciativas jovens espalhadas por diversos estados? Haverá na história quantos Cinco vezes favela? É preciso perguntar: precisamos disso? Queremos nos tornar difusores de material audiovisual sem qualidade? Queremos reproduzir vícios televisivos? Passei dois anos nesse curso. Discutia bastante, mas de fato não aprendi a construir uma narrativa audiovisual coerente. Sabia que não sairia dali um profissional da área videográfica/cinematográfica. Nem sei se era a minha intenção. O fato é que passar tanto tempo num lugar pode tornar alguém mais alienado ou quebrar o seu teto de vidro. E definitivamente esse teto foi despedaçado, sem que eu soubesse como consertá-lo. Essa quebra de timecode, o drope, outrora no Recife, agora em São Paulo, abriu meus olhos e percebi que precisava me aprofundar em diversos temas, tendo em vista as dificuldades de trabalhar com vídeo.

Envolvimento Envolvi-me, cada vez mais, com esse mundo. Queria me aprofundar nessa área, que se tornou uma paixão, uma causa, uma militância. O estado vídeo: uma forma de pensar, um estado de espírito, uma poesia concreta. Tentar realizar vídeo com temáticas coerentes era não apenas uma meta mas também uma forma de me manter próximo das camadas populares, das quais advenho. No entanto, não sabia como faria isso. Por onde começar? Que passos dar? Mil questões me rodeavam. Em meados de 2005, soube que o poder público municipal, por intermédio da Coordenadoria da Juventude, abria-se para o diálogo. A partir dessa iniciativa, surgiu o Fórum de Cinema 352


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Comunitário, reunião permanente de instituições não governamentais e jovens realizadores da região metropolitana de São Paulo. Participei do Fórum desde o início, e o que mais me motivou foi a vontade de me inteirar sobre esse “negócio”estranho, que envolvia instituições fortes. Os objetivos desse espaço foram construídos a partir de diagnóstico produzido pelos realizadores, que identificou as principais demandas para o setor: ocupar os espaços públicos de projeção audiovisual, ampliar o acesso aos meios de produção e às verbas públicas e multiplicar e aprimorar os processos formativos. Os debates iniciais do Fórum se concentraram principalmente nas estratégias de fomento às iniciativas dos coletivos. Em um dos encontros surgiu a ideia de organizar a Mostra Cinema de Quebrada, composta exclusivamente por vídeos coletivos juvenis e independentes do Brasil. A produção da mostra ficou a cargo dos próprios integrantes do Fórum, e fui um dos indicados a participar. A experiência me levou a perceber as dificuldades de ser um militante jovem na cidade de São Paulo. Tudo tem desdobramentos financeiros: o seu deslocamento, a sua alimentação e o seu salário. E o poder público não se interessa em viabilizar o processo; importa-se apenas com o produto final. Meu trabalho-militância ao lado dos outros companheiros foi intenso: oito horas por dia para garantir uma mostra bacana. Fazer a curadoria e a produção ao mesmo tempo era algo novo para mim. Tinha certeza de uma coisa: tratava-se de um trabalho especial. A realização da Mostra Cinema de Quebrada nos fez acreditar que deveríamos pensar em um processo de realização de exibições continuadas. O acesso aos meios de produção não é o único abismo a ser superado: a distribuição é um problema fundamental. Muitas vezes, os coletivos percorrem a cidade com o vídeo embaixo dos braços, batalhando espaços de exibição. Tratase de uma dificuldade do cinema nacional, que já é antiga e afeta as produções comunitárias de maneira ainda mais avassaladora. Um dos efetivos desdobramentos da Mostra Cinema de Quebrada foi a promoção de rodas de conversas, em que estiveram 353


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presentes representantes do setor público e de universidades, bem como parceiros e realizadores. As temáticas foram estabelecidas pela equipe de produção do evento. Entre elas, cabe citar a discussão intitulada Ampliando outros horizontes, que abordava a formação técnica e teórica, estética e conceitual dos novos realizadores e de suas produções. Vale mencionar também a temática Quanto vale ou é por quilo, em que foram debatidas parcerias necessárias ou desejáveis para a continuidade dos trabalhos dos coletivos como modo de fomentar a emancipação e a autonomia. Em 2006, o Fórum de Cinema Comunitário deixou de se encontrar com frequência, devido não só à falta de recursos para o deslocamento de seus integrantes, mas também a outros fatores, como a falta de um projeto político claro por parte do Fórum. Além disso, alguns coletivos que o integravam tiveram projetos aprovados no Programa para Valorização das Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Isso diminuiu o tempo e a capacidade de envolvimento de seus integrantes naquele espaço. Eu integrava um coletivo que tinha inscrito um projeto, o qual fora aprovado e recebera apoio financeiro. Nossa intenção era tentar reeducar nosso próprio olhar e o das pessoas que iriam participar. Partíamos da crença de que a juventude não está adequadamente representada nos meios de comunicação, por isso não tem seus interesses contemplados. Também considerávamos que a produção midiática comercial está cheia de contradições. Ela engloba produções vagas e fantasiosas, sem peso político que aponte compromissos reais. A mídia tem dificuldade de escutar diferentes vozes e expressar consensos possíveis entre atores diversos. Assim, o ano 2006 foi bem proveitoso: aprendemos muito sobre a cultura do vídeo popular. Em 2007 tivemos o projeto renovado pelo mesmo programa de financiamento municipal. Realizamos, então, as atividades na comunidade da Brasilândia (zona norte de São Paulo), que historicamente sempre foi utilizada pelo cinema nacional como uma típica representação da periferia. Essa comunidade está em filmes como O homem 354


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que virou suco, de João Batista de Andrade, e Eles não usam black tie, de Leon Hirzman. De certa forma, queríamos produzir com os jovens vivências que pudessem gerar outras imagens possíveis da região. A experiência de nosso coletivo, por dois anos consecutivos, ajuda a analisar a profunda relação entre os três tipos de ações mais comuns na área do vídeo popular: as governamentais, as não governamentais e as autônomas dos coletivos. As iniciativas do poder público e do chamado terceiro setor são tímidas e pontuais quando não estão articuladas entre si. Em geral, essas duas esferas estabelecem também parcerias continuadas com os coletivos. Fica clara, por exemplo, a precariedade dos incentivos que fomentam as iniciativas culturais. Os recursos são escassos e temporalmente limitados. O Programa VAI, que apoiou nosso projeto, dispunha de uma verba reduzida, que foi disponibilizada durante dois anos apenas. Além disso, acreditamos que os editais podem melhorar as formas de viabilizar e incluir a participação de grupos e coletivos de pequeno porte. Os contratos, por exemplo, são feitos em parceria com instituições formalizadas, com cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ), que apadrinham os coletivos. Seria importante pensar formas de estabelecer o vínculo entre os coletivos e o poder público diretamente. Outro ponto crucial para os projetos de coletivos contemplados é a necessidade de devolução dos equipamentos adquiridos. Ao final do projeto, os realizadores são obrigados, segundo critérios de alguns editais, a devolver os bens adquiridos à esfera pública municipal ou às instituições. Com isso, eles se veem impossibilitados de manter suas ações quando os apoios acabam e, com eles, o acesso aos equipamentos. Como militante, sentia certa frustração vendo a coisa toda ruir de tempos em tempos. É necessário e urgente garantir políticas públicas para a continuidade das iniciativas dos coletivos. Isso requer o acesso sistemático a recursos públicos, para que as ações não sejam paliativas, mas ofereçam contribuições concretas. Nunca é demais repetir. 355


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

Nada novo, mas inovado Entre os vários desafios dessa jornada, alguns foram vencidos ou perderam importância. Outros permanecem. Mantenho minha maleabilidade, percebendo melhor a cada dia a complexidade e a riqueza de nossas experiências. Costumo dizer que vou me espalhando, assim como se espalham as imagens. Aprendo o tempo todo a me lançar em terrenos estranhos. Poderia, como muitos, ter me direcionado para uma trajetória mais precisa, mas as indefinições realmente me interessam. Como coadjuvante, tive o privilégio de acompanhar tentativas e erros. Nossas próprias ingenuidades foram sendo superadas graças ao exercício de experimentar. Impossível, neste momento, não olhar para trás: reuniões, debates, coisas ditas, escritas e o surgimento e a realização de um conjunto de iniciativas que mal mal estão dando certo. Um bom exemplo é o Circuito de exibição do vídeo popular, uma proposta de criar novos espaços e modos de distribuição da produção audiovisual comunitária. É uma forma de reapropriação dos meios de exibição que aos poucos vai corroendo a estabilidade das barreiras burocráticas impostas pelo sistema mercadológico. Há ações efetivas, que ultrapassam as movimentações das listas de discussão na internet. Procuro me distanciar dessas listas já que frequentemente funcionam como entrave para o trabalho propriamente dito. Precisamos entender que uma geração se faz aqui, com eventos presenciais e ações cotidianas. Cito, por exemplo, a realização de encontros, como a Semana do Vídeo Popular no Cine Olido (espaço público), em 2008 e 2009, que fomentou a visibilidade de diversas iniciativas, fortaleceu o diálogo entre coletivos, além de ter acentuado a questão política e cultural dos processos de criação em vídeo popular. Fica claro que agora há muitas vozes buscando reafirmação. Não por acaso, o incremento da produção do vídeo popular e comunitário fomenta também a ampliação e a criação de editais específicos para a área de audiovisual, além de gerar críticas aos processos de concessão de emissoras de televisão, bem como pressões pela regionalização da programação veiculada. 356


Pensamentos e trajetórias de jovens realizadores do audiovisual comunitário

A retomada do vídeo popular, possibilitada pelo desenvolvimento da tecnologia da imagem digital e pela viabilização da edição em computadores pessoais, transforma as possibilidades do fazer videográfico. O que antes era restrito a poucos e grandes produtores agora é acessível a muitos e pequenos realizadores. É provável que esse movimento se configure como uma inovadora forma de guerrilha cultural: a microtelevisão (LCD) das câmeras de três CCDs corroendo o padrão de qualidade da produção mercadológica, suprema e ideológica. Se o vídeo popular não tem a chance de mudar completamente um sistema ancorado nas telas da burocracia e da burguesia, seguramente questiona a sua legitimidade como única fonte emissora de uma identidade nacional (a pasteurizada identidade do Sudeste, vale lembrar). Acredito que a própria tecnologia somos nós: as pessoas. Menciono aqui o filme Na real do real (2007),7 que registra uma violenta ação de despejo, coordenada pela prefeitura, contra os moradores da Favela Real Parque. O documentário expressa a sensação de indignação e revolta daquela população excluída. É também sobre esse tema o vídeo A luta continua (2008),8 realizado pela comunidade do Real Conquista de Goiânia. A produção conta a trajetória de famílias despejadas pelo poder público. Esses vídeos cumprem um papel social. Lançam um olhar diferente para temas centrais dessas comunidades, desmascaram um sistema opressor e excludente. O vídeo popular precisa ser entendido com essa função popular, a serviço do povo, dando visibilidade àquilo que anda esquecido pelos grandes meios de comunicação. A tecnologia precisa cumprir uma função social. Não podemos cair nessa tendência capitalista da tecnologia por si mesma nem nos transformarmos em reféns dela. A tecnologia da imagem digital precisa mediar as experiências populares. Ela tem que auxiliar, sem ser notada. Cumprir a função e pronto. Sumir. Videodocumentário de direção coletiva. Realização da Favela Atitude. Ano: 2007. Duração: 10 min.

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Videodocumentário de direção coletiva. Realização do Movimento do Vídeo Popular de Goiás. Ano: 2008. Duração: 10 min.

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Breve conclusão Perdoem-me se insisto na primeira pessoa e incomodo ocupando este espaço de modo testemunhal. Os espaços e os meios de que disponho hoje potencializam o meu incômodo. Portanto, pretendo continuar me transformando. Escrevo este depoimento porque me indago: até que ponto ficaremos esperando acontecer um milagre? É preciso entender que a luta é muito maior do que a tecnologia em si. A experiência social é algo central em todas as etapas de realização e exibição de um vídeo. A câmera (não importa com quantos CCDs) precisa ser um olho que coloca questões e realiza conexões. A edição é uma abertura para fazer conexões entre os questionamentos. As exibições realizadas nos circuitos populares são muito importantes porque apresentam tais conexões, recebem respostas e se transformam a partir delas. É de extrema necessidade ampliar os espaços de discussão para que possamos visualizar melhor este quadro a fim de compreender a incorporação do vídeo nas novas funções sociais e avaliar o impacto que isso tem na sociedade. Para pensar em espaços de debate e em instâncias que se constituam como representações locais e nacionais, é fundamental pensar a presença das bases que trabalham diariamente com iniciativas populares. Suas experiências podem contribuir para possíveis projetos de políticas públicas, com o objetivo de ampliar o potencial transformador e redemocratizante da comunicação. É importante que todos os coletivos e todos os indivíduos assumam a corresponsabilidade de construir um espaço para pensar, refletir e agir de forma coerente sobre as ações e para o fortalecimento das articulações locais. Precisamos estreitar os laços do nosso compromisso e deixar de lado o orgulho que, muitas vezes, transforma potenciais trocas em palcos de pura verborragia. Essa compreensão dos novos papéis sociais permite uma atuação consciente, aberta e articulada. A prática videográfica desses jovens nas comunidades e as experiências dos coletivos em diversas cidades são manifestações que podem ilustrar este novo movimento. 358


Pensamentos e trajetórias de jovens realizadores do audiovisual comunitário

Referências COSTA, André. Vídeo e ação social em São Paulo: novas centralidades na representação videográfica da cidade. Facom - Revista da Faculdade de Comunicação da FAAP, São Paulo, n. 13, p. 57-61, 2º semestre de 2004. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.

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CAPÍTULO XV

Por um cinema compartilhado. Entrevista com Vincent Carelli Ana Carvalho

N

o dia 20 de novembro de 2009, poucas horas antes do voo do cineasta e diretor da ONG Vídeo nas Aldeias, Vincent Carelli, sentamos para uma conversa num café de Belo Horizonte. A princípio, tínhamos a proposta de uma entrevista mais formal sobre o Projeto Vídeo nas Aldeias, sua metodologia, sua trajetória e sua repercussão nas comunidades indígenas. No entanto e felizmente, Vincent não é pautável. Sabia disso de antemão: trabalhamos juntos no projeto desde 2007, no desenvolvimento de projetos, pesquisas e oficinas. Mas o imprevisto da situação não deixou de ser surpresa. Grata surpresa. Todo o roteiro de perguntas previamente elaboradas voltou para dentro da bolsa, e o que era para ser uma entrevista, virou conversa, troca, bate-papo, um bom encontro, enfim, como não poderia deixar de ser. Por cerca de duas horas, Vincent contou histórias como os narradores indígenas de seus filmes e os cineastas formados no projeto. Relatou trajetórias de vida e os caminhos que o levaram a criar o Projeto Vídeo nas Aldeias (VNA), as descobertas, os encontros, o desenvolvimento do projeto, as lutas e as políticas 361


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culturais indígenas. Muitas perguntas ficaram sem respostas ou nos levaram a outras questões. A própria fala de Vincent, fragmentada e pessoal, revela um pouco seu método de trabalho, fundado essencialmente no encontro: de desejos e olhares apaixonados, conflituosos, instáveis, invisíveis. No Vídeo nas Aldeias, a criação passa também pelo imprevisto, pelo risco, por um estar, um pensar e um recriar visualmente um mundo só possível no encontro e no gesto em direção ao outro e a si mesmo. Nascido em 1953, em Paris, filho de pai brasileiro e mãe francesa,Vincent lançou-se na experiência com os povos indígenas ainda muito jovem, com 16 anos, quando foi, pela primeira vez, para os Xikrin, no Pará. Mais tarde, ingressou no curso de Ciências Sociais da USP, mas logo abandonou a academia e tornou-se em 1973 indigenista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), trabalhando entre os Asurini, Nambiquara e Gavião. Não acreditava, porém, no trabalho desenvolvido pelo Estado e tornou-se indigenista por conta própria. Foi também repórter fotográfico das revistas Isto É e Repórter Três e do Jornal Movimento. No princípio dos anos de 1970 tornou-se editor fotográfico do Programa Povos Indígenas no Brasil, um banco de dados sobre os povos indígenas idealizado pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI). Em 1979 fundou junto com outros antropólogos o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), praticando o que definiu como “indigenismo subversivo”. Ali dentro surgiu o Projeto Vídeo nas Aldeias, como desdobramento de um trabalho realizado por Vincent entre os Nambiquara em 1987. A experiência resultou no vídeo A festa da moça,1 definido pelo diretor como uma catarse O vídeo A festa da moça retrata o encontro dos índios Nambiquara com a sua própria imagem durante um ritual de iniciação feminina. A “moça nova” permanece reclusa desde sua primeira menstruação até as aldeias aliadas virem celebrar o fim da sua reclusão. Ao assistir suas imagens na TV, a comunidade fica decepcionada e critica o excesso de roupa. A festa seguinte é realizada e registrada com todo o rigor da tradição. Eufóricos com o resultado, os Nambiquara resolvem retomar, diante da câmera, a furação de lábio e de nariz dos jovens, costume que haviam abandonado havia mais de vinte anos.

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coletiva: o ato de filmá-los e deixá-los assistir ao material filmado, foi gerando uma mobilização coletiva e culminou com a retomada de um ritual abandonado havia mais de 20 anos pela comunidade. Diante do potencial que o instrumento apresentava, a experiência foi sendo levada a outros grupos, gerando uma série de novos trabalhos. E em 1997 foi realizada a primeira oficina de formação audiovisual na aldeia Xavante de Sangradouro. De lá para cá, o VNA cresceu, transformou-se, agregou novos pensamentos, pessoas e ideias, tornando-se referência mundial em formação audiovisual de povos indígenas e mídia colaborativa. Com mais de 34 realizadores formados pelo projeto, numa área de atuação que envolve cerca de 40 comunidades em todo o País, o Vídeo nas Aldeias produziu ao longo de seus 20 anos de história um importante acervo de imagens sobre os povos indígenas e uma coleção de mais de 70 filmes, exibidos e premiados em mostras e festivais nacionais e internacionais. Em 2000 o Vídeo nas Aldeias se constituiu como uma ONG independente e passou a ter o apoio da Embaixada da Noruega, da Petrobras e do Ministério da Cultura.2 Nesse tempo as políticas culturais e de inclusão indígenas também mudaram, transformando abordagens, posturas, demandas e desejos. No entanto, o Vídeo nas Aldeias mantém sua vocação inicial – apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais – por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada, marcada pela abertura ao outro, seus olhares, pontos de vista e pensamentos. Uma atitude necessária de estar no mundo, percebê-lo e construí-lo de modo a acolher o outro e a diferença. Ana Carvalho (A.C.) – Vincent, a história do Vídeo nas Aldeias (VNA) é também sua trajetória de vida. Impossível falar do projeto sem conhecer um pouco do seu percurso e dos movimentos que te levaram a ele. Eu me lembro de Para maiores informações sobre a instituição, áreas de atuação, catálogo de filmes, publicações, oficinas e projetos, acessar: <http://videonasaldeias.org.br>.

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uma conversa na sede do escritório do VNA, em Olinda, quando você me disse: “Olha, o VNA, minha atuação como indigenista, tudo começou com uma fotografia...”. Vincent Carelli (V.C.) – Ah, como toda essa história aconteceu é mesmo um mistério. Quer dizer, um dia, meu padrinho chegou com uma fotografia de um jovem Xavante, nu, com um arco e flecha na mão. E essa foto foi, assim, um negócio! Eu sonhava com aquele lugar, aquele índio. Tive uma infância e uma adolescência muito dura, sofrida mesmo. E os índios eram uma espécie de ficção, um outro mundo, como ainda são hoje, não é? Estávamos em 1969, eu tinha 16 anos e decidi me jogar numa aventura existencial. Não era política ainda nem era cinema. Acho que era uma fuga mesmo. E fui para os Xikrin. A.C. – Como você percebe essa experiência? V.C. – Essa primeira visita marcou muito minha vida. Foi uma virada, uma inspiração. Me deu um norte, um interesse, uma paixão. Vivi um ano entre os Xikrin e fui muito bem acolhido por eles. Os Xikrin são duros, mas ao mesmo tempo têm uma doçura incrível. E era uma situação muito especial; eles eram um grupo isolado. Mas foi um período muito difícil também. Muitos morriam de epidemias. Eu não sabia nada de medicina e ficava estudando compêndio médico pra poder ajudar. Tive uma experiência privilegiada. Quer dizer, esse envolvimento com os Xikrin foi um envolvimento de vida, me deu um rumo, não no sentido missionário, mas de prazer e de descoberta. Eu era um cara muito silencioso. Nunca aprendi a língua, mas tinha essa outra coisa, essa comunicação por empatia, de presença, que é uma sensibilidade que os índios têm no relacionamento com as pessoas. As coisas não são muito avaliadas pelas palavras, mas pelos gestos, pelo comportamento. É uma percepção mais sensível das relações, entende? Então, eu fui um pouco... A.C. – ... formado nessa maneira de se relacionar com eles. V.C. – Sim, um pouco nessa maneira de olhar para as coisas, de observar as coisas, de senti-las, que é ainda a forma como continuo 364


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me aproximando hoje dos grupos com os quais trabalhamos no VNA. Depois dessa experiência entre os Xikrin, tive uma passagem rápida pelo curso de Antropologia da USP [1971], mas eu queria mais do que a academia podia me dar naquele momento. Eu queria realmente viver esse mundo indígena. Logo no primeiro ano, tranquei o curso e nunca mais voltei. Depois, resolvi me matricular num curso de indigenismo da FUNAI [1973], e aí começou minha aventura política, que foi um verdadeiro choque de realidade. Se a universidade não era meu lugar, tampouco a FUNAI era meu lugar. Mas ali tive contato com os Asurini e outros grupos indígenas. Foi uma época difícil politicamente. Eram os contatos, as epidemias, as transferências. Enfim, acho que estou me perdendo (risos). A.C. – Então, depois da FUNAI você continuou sua atividade como indigenista por conta própria? Como foi isso? V.C. – Na FUNAI eu realmente estava deslocado, no lugar errado. Então, tomei parte numa outra aventura humana incrível. Participei de um projeto junto aos índios Krahô, do Tocantins, coordenado pelo antropólogo Gilberto Azanha, acho que em 1975 ou 76. Aprendi muito durante esse período. Trabalhávamos num contexto complicado, ainda sob a herança da atuação do SPI [Serviço de Proteção ao Índio] na região: uma atuação paternalista, inoperante. E o projeto veio desmontar todo esse aparato. Nosso papel era desconstruir essa autoridade (e isso eu adoro!), essa forma perversa de dominação. E também criar condições para que os índios tomassem novamente as guias de suas decisões. Isso era o mais difícil. Porque essa postura de pai, de se resolver todas as situações e conflitos, é uma postura completamente desmobilizadora politicamente. Cria uma relação viciada de acomodação. A.C. – Ou seja, você já não compreende mais quais são os instrumentos, os meios de produção para trabalhar autonomamente, para construir alguma coisa. É possível perceber também sua atuação no VNA, anos mais tarde, nesse mesmo sentido, de oferecer possibilidades de apropriação de ferramentas, no 365


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caso, o vídeo, para uma construção autônoma do olhar e da perspectiva indígena. V.C. – Sim. Mas voltemos aos Krahô. As relações de poder no projeto começaram a ficar também muito complicadas: disputas políticas, fofocas. E eu acabei não aguentando a pressão e saí do projeto. Mas, então, os índios vieram nos buscar e disseram: “Vocês têm que voltar”. E, então, surge o CTI [Centro de Trabalho Indigenista], em 1979, de uma demanda dos índios. No CTI, a gente fazia um “indigenismo subversivo”, às avessas. Começamos a atuar buscando inicialmente maneiras de garantir a sobrevivência daquelas comunidades, para garantir sua autonomia. A.C. – Nesse período também você viveu uma intensa atuação como fotógrafo. Como se deu essa relação com a imagem e a passagem para o vídeo? V.C. – A Virgínia Valadão, minha primeira mulher, me apresentou para o Beto Ricardo. Eles estavam começando, dentro do CEDI [Centro Ecumênico de Documentação e Informação] a produção da enciclopédia Povos Indígenas no Brasil.3 Foi incrível. Eu atuava como fotógrafo e editor, e passei a trabalhar costurando uma rede de alianças entre missionários, pesquisadores, indigenistas, enfim, tudo o que pudesse trazer informações para essa enciclopédia. Essa experiência foi fascinante. Visitei muitos arquivos. E, nesse momento, tive a consciência da importância dessas imagens; desse resgate através da imagem, da memória que se constrói através da imagem, da sua importância para os grupos que estavam querendo virar o jogo, se reerguerem. Essa ideia da importância da imagem como base de apoio para uma revalorização de si mesmo. Uma possibilidade de, através das imagens, os índios poderem perceber seus processos de mudança e reconstruírem sua memória. E, então, quando surgiu o A conformação da enciclopédia remonta ao início dos anos de 1970 e teve sua origem no Programa Povos Indígenas no Brasil, desenvolvido pelo CEDI. Herança desse trabalho, a enciclopédia é hoje produzida e atualizada pelo Instituto Socioambiental (ISA) e está disponível para consulta no portal: <http://pib.socioambiental.org/pt>.

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VHS, a fotografia ficou de lado. Eu tinha em mãos, enfim, um instrumento que permitia gerar uma resposta imediata nas comunidades. Além disso, eu já não estava mais tão satisfeito com essa história de banco de dados, de organização de arquivo. Eu precisava de alguma coisa mais carnal. A.C. – Ir para o campo... V.C. – Ir para campo. Então, fui para os Nambiquara com uma câmera na mão e vivi a primeira experiência do Vídeo nas Aldeias, filmando A festa da moça [1987]. Pôxa! Aquilo foi uma experiência poderosíssima. Fizemos várias projeções na aldeia. Todo mundo enlouquecido! Aí, teve aquele momento mágico da furação dos lábios dos jovens. Tudo catalisado pela câmera. Mas era também tudo muito frágil: as relações de poder, a entrada do dinheiro na comunidade. Nessa mesma época, fui também para os Gavião,4 que estavam vivendo um momento importante, de retomada da sua história. Mas essas foram as primeiras experiências, em que eu fazia tudo sozinho ainda, sem falar a língua, sem um interlocutor. Depois vieram as parcerias, que são um elemento-chave para o VNA, porque é preciso ter o domínio da língua, uma intimidade e uma relação estreita com a comunidade e as pessoas filmadas, um interlocutor, índio ou antropólogo, para que seja possível o diálogo e uma construção realmente colaborativa. Mas estávamos no princípio de tudo, e a situação não era simples. A.C. – Essas comunidades buscando se reerguer, tentando lidar com suas escolhas passadas, com aquilo que restou, e o vídeo como instrumento de reflexão... 4

Em 1988, Vincent realiza junto aos Parakatêjê/Gavião o vídeo PEMP, que narra a saga desse povo para manter sua identidade cultural e sua autonomia política frente aos megaprojetos de desenvolvimento implantados pelo governo no sul do Pará. Os índios conquistaram sua independência econômica exigindo indenizações das estatais por esses projetos. Kokrenum, líder do grupo e um dos poucos depositários das tradições, luta incansavelmente para “segurar” esse patrimônio cultural para as próximas gerações.

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V.C. – Como uma forcinha, vamos dizer assim. Mas olha, tem que jogar no ambiente certo. Falo da escolha dos povos, que é uma etapa fundamental para o funcionamento do projeto. A preocupação é plantar esse instrumento num ambiente propício, no qual existe um movimento no sentido de uma retomada de consciência, de reflexão. Ou não funciona. O VNA precisa entender onde sua ação será mais útil, mais efetiva. A.C. – E como se dá essa escolha? Essa percepção da potência de uma determinada comunidade? V.C. – Por exemplo, as forças, as limitações e as diferenças entre as comunidades de zonas mais urbanas e as mais isoladas. Uma comunidade indígena menor, de poucas pessoas, forma uma unidade, e isso tem uma força especial que não se encontra, por exemplo, entre comunidades mais urbanas e maiores, com 5 mil pessoas ou mais. Essa força de uma comunidade, que é um povo, que fala uma língua, que tem um modo de funcionamento, de criar seus consensos. A gente entra em um campo, propondo um trabalho de vídeo, que tem uma sinergia muito grande pelo fato de estarem ali estabelecidas relações muito sólidas, de desejos coletivos, de uma vida coletiva mesmo. Isso é uma especificidade do Vídeo nas Aldeias: o trabalho com comunidades pequenas, que são uma unidade política, que possuem um sentimento de pertencimento que gera um fenômeno maravilhoso, que é essa coisa linda que a Andréa França5 escreveu no catálogo do VNA [A livre afirmação dos corpos como condição do cinema],6 que ela chama de desejo coletivo do filme.7 Esse desejo múltiplo do filme, Pesquisadora de cinema e comunicação, professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-RJ, coordenadora do Curso de Cinema da PUC-RJ.

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O artigo, originalmente publicado no catálogo Mostra vídeo nas aldeias: um olhar indígena, em 2006, está disponível para consulta em: <http://www.videonasaldeias. org.br/2009/biblioteca.php?c=10>.

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“Para além da intimidade e da cumplicidade entre aquele que filma e aqueles que são filmados, patente em todos os planos de cada um desses documentários, existe um desejo de filme que não está somente do lado dos índios videastas, mas do outro lado da câmera também: há um desejo de filme tão grande quanto o desejo

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de estar no filme, de ver as coisas que devem estar no filme, eu acho que é uma especificidade que cria uma força que talvez explique o interesse que o filme gera. A.C. – Ainda sobre esse desejo coletivo do filme, de ser filme... Claro que existe uma especificidade de cada trabalho, de cada contexto de oficina, mas eu queria que você falasse um pouco sobre o processo de criação dos filmes. O que está em jogo nas oficinas? Como são seus desenhos, seus limites, seu funcionamento no tête-à-tête com os participantes? V.C. – Quando eu comecei as primeiras experiências do VNA, eu não havia ainda me interessado exatamente por cinema. Não tinha uma formação, não conhecia [Jean] Rouch, antropologia visual, não sabia nada. Mas essa postura de abertura para o outro e para o acontecimento, essa forma de estar na aldeia e interagir com os índios, essa sempre foi minha postura. Desde a Festa da moça, desde meu trabalho anterior como indigenista, eu sempre me deixei guiar por eles. Foi assim com o capitão Pedro [Nambiquara], que assumiu a direção do filme comigo. É essa postura de se deixar levar. De interagir, de dialogar. É isso o essencial do método, o resto é bobagem... Eu praticava isso já com a minha câmera. Filmava, projetava na aldeia e dizia: “Assiste aí”... E percebia o impacto ou não daquilo, e aí é deixar rolar. “O que vocês querem fazer? O que querem dizer? Como querem dizer?”Uma câmera na mão e uma vontade que se expresse. Não é “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. É a busca e o incentivo por uma atitude de acolhimento da expressão das pessoas, dos desejos, da criação, da imaginação. A.C. – Mas não era ainda de uma maneira sistematizada... a câmera na mão dos índios... A formação dos cineastas, daquele que filma e, ao tornar esse desejo visível, atuante, falante, essas imagens criam um cinema absolutamente igualitário, um cinema onde cada corpo – seja ele da planta, da concha, do jacaré, da cutia, da criança, do velho – tem o mesmo valor que um outro para a câmera, todos eles igualmente diferentes, importantes e únicos.” (FRANÇA, Andréa. A livre afirmação dos corpos como condição do cinema. In: Mostra vídeo nas aldeias: um olhar indígena. 2006. p. 30. Catálogo).

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como projeto, começa com a I Oficina de Formação na aldeia Xavante de Sangradouro, em 1997. V.C. – Sim, mas já tinha o que considero essencial, que é esse deixar-se guiar pelo olhar do outro. Foi assim na Festa da moça. Foi assim entre os Gavião. E também na época eu já passava a minha câmera para as mãos dos índios. Mas não era como hoje. Não tínhamos equipamento e financiamento suficiente. Nem íamos para as aldeias com a frequência que vamos hoje. Então, as coisas foram avançando de uma maneira muito espontânea; a passagem da câmera da minha mão para as mãos dos índios. Ou seja, esse movimento de formação já estava rolando. Distribuíamos algumas câmeras, fazíamos algumas oficinas de edição, mas tudo ainda muito individualmente. A oficina em Sangradouro foi uma tentativa de promover um encontro entre esses índios que já estavam produzindo, atendendo a demandas de registro das comunidades. Foi uma maneira de tentar entender esse processo e sistematizar esse trabalho de formação. A.C. – Você fala da ausência de um método específico, e eu entendo isso como uma ausência de uma oficina de manual, de apostila, uma oficina fechada. Mas há uma abordagem, um pensamento, escolhas. Acho que é disso que estamos falando. Tem uma outra coisa de que eu me lembrei agora: a questão do impacto dessas oficinas nas comunidades indígenas e também junto aos brancos; como esses filmes são recebidos e lidos. Algumas pessoas acreditam que um filme muda muito pouco uma realidade, mas a experiência de uma produção colaborativa, se não muda exatamente uma realidade, transforma ao menos aqueles que estão mais diretamente envolvidos no processo. V.C. – Sim. Se, por exemplo, a história dos Nambiquara e dos Gavião, como de outros grupos indígenas, regrediu ou acabou mal, seja pela entrada do dinheiro, nosso maior feitiço, ou por outros fatores, por outro lado, os filmes permaneceram e são motivo de orgulho nas aldeias: “Olha o que nossos parentes estão fazendo!”. Tem uma valorização e um reconhecimento 370


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das culturas e do pensamento indígena muito grande a partir do vídeo. Um impacto muito positivo no mundo indígena. Quer dizer, essa experiência muda, sim, alguma coisa. Os grupos trocam essas imagens, se inspiram. E tem a questão do vídeo como instrumento de potencialização de movimentos que já estão em andamento num determinado grupo, de reconhecimento, de resistência. Esses filmes circulam enormemente entre os grupos indígenas. Geram reflexão. E isso não é só entre os índios. Os filmes têm um impacto muito grande também entre os não índios e se tornam referência e inspiração para outras experiências de mídia indígena no mundo todo. Os filmes agregam e representam diversas coisas para além mesmo do próprio filme. Movimentam outros ânimos. Nossa tentativa, entre os brancos, é justamente romper e desconstruir a imagem e as representações estereotipadas que têm sobre os índios. Os filmes buscam deslocar o espectador, guiá-lo pelas mãos ou pelo olhar para a descoberta de outro mundo, de outra realidade. A.C. – Mas, muitas vezes, a audiência não indígena não acredita que esses filmes foram feitos por índios, o que, de certa forma, revela uma concepção sobre os índios (“estes caras não podem fazer isso sozinhos”) e revela também uma busca por um purismo, ou, por parte dos críticos, a expectativa de uma vanguarda cinematográfica. V.C. – Pois é. É a velha expectativa de que o novo vem do outro. Mas o outro somos nós. E o outro pode surgir também em qualquer outro lugar. Um vizinho, um parente. O VNA nunca teve a preocupação de ser vanguarda de nada. Estamos preocupados em atender um desejo coletivo de expressão, de existência, é um processo muito prazeroso, e os grupos ficam super felizes com as produções. Os filmes viram uma espécie de carteira de identidade audiovisual. Isso é lindo. A gente é muito pé no chão. Chega na aldeia, sente, olha e pergunta, “E, então, o que tu quer?” E a gente faz o que é possível dentro dos recursos disponíveis. Agora, isso da parceria, da nossa interferência, é algo que incomoda muita gente, e isso carrega a 371


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ideia de que o bom selvagem não se expressa sozinho, não é? E ficam em busca de um purismo da imagem e do processo, de uma imagem autêntica e genuinamente indígena. Se não temos uma imagem genuinamente indígena na forma cinematográfica, temos um pensamento indígena autêntico expresso ali, no seu conteúdo, na sua abordagem, no ponto de vista, na intimidade de um gesto. Hoje, principalmente, eu não tenho pudores na minha intervenção. Meu papel é também questionar, gerar deslocamentos, discutir uma ideia, apontar outros caminhos possíveis. Tem que fazer isso também, ou o processo não avança, não se transforma e corre o risco de se criarem fórmulas, e aí acaba a criação, o diálogo possível, a reinvenção do olhar. A gente está vivendo um momento em que buscamos também nos filmes a contradição, a frustração, o embate, as dificuldades. Perceber os filmes que nascem em contextos desfavoráveis e que acabam por gerar e movimentar pensamentos incríveis, novos olhares e relações. Nossa função é também desconstruir certas mistificações e fantasias. Incentivar um debate mais crítico e reflexivo sobre as próprias produções. É a nossa interferência necessária. E, de certa maneira, os filmes dos índios são meus filmes também. É claro que há uma participação muito grande de quem está coordenando a oficina, que faz das tripas coração para que o filme aconteça, que também dá ideias. A.C. – E também presente num outro momento crucial da formação, que é a montagem do material. Até que ponto e como acontece essa interferência? V.C. – Sim, a montagem, a linguagem cinematográfica. É claro que na edição a gente tem um papel importante, mas o material está ali, foi produzido e existe anterior à mesa de edição. É no material bruto que está expressa a autenticidade de um pensamento. Nosso papel é perceber a potencialidade do material produzido, ajudar a ordená-lo, a dar uma narrativa, por assim dizer, mais convencional, ou mais eficaz, talvez, mais ocidental na sua forma final, o que normalmente frustra a expectativa de muitos críticos e cineastas, que buscam e esperam um purismo 372


Por um cinema compartilhado. Entrevista com Vincent Carelli

que não existe. Porque a preocupação dos índios é outra. É criar filmes que gerem valorização e reconhecimento de suas culturas e identidades. Mas como eu disse, há um pensamento expresso ali. É claro que nossa edição é também reducionista, num certo sentido. Meu sonho é que um dos filmes desses cineastas possa traduzir um mito, uma narrativa mitológica, cinematograficamente. Uma narrativa que anda em círculos, que se ramifica... Enfim, um filme que possa expressar essa complexidade do pensamento. Porque a gente ainda não consegue. A gente está sempre reduzindo, escolhendo a fala de um narrador ou outro, escolhendo uma versão ou outra, pra não ficar muito confuso. Mas espero que esses cineastas deem ainda conta dessa expressão. Mas, voltando sobre a questão da edição, é claro que a edição tem sua força, mas ou o material produzido tem consistência ou não tem. Não se resolve isso na edição. Alguns consideram nossa participação na edição nossa maior “impureza”. Mas isso é a colaboração, a troca, o que traz a força do projeto e dos filmes produzidos. Nossos filmes são possíveis e são o que são apenas neste, e a partir deste, diálogo. A.C. – Já que estamos a falar das produções, uma questão que muito frequentemente aparece em relação aos filmes é essa tênue equação entre a militância do projeto e a expressão artística de uma produção. Como você percebe essa relação nos filmes do VNA? V.C. – Ainda persiste uma leitura didática dos filmes. Os filmes do VNA não são didáticos, embora carreguem uma série de informações. Mas sua construção não é didática. O que acontece é que uma realidade, uma vida, um gesto cotidiano se revela nesses filmes, e a partir deles é possível conhecer. E isso não tem nada a ver com ser didático. Em relação à tua pergunta, penso o seguinte: a perspectiva do projeto é militante, mas não em relação aos filmes, nem às oficinas, nem ao que se filma. Claro que, por vezes, temos filmes mais especificamente militantes, que às vezes nascem de uma demanda ou de uma situação muito imperativa, de demarcação de terra, por exemplo. Algumas 373


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

demandas são colocadas nesse sentido, e é nosso papel também estar abertos para esse tipo de proposta, que normalmente nasce da urgência. Mas o processo de criação não é militante num sentido explícito. Se você assiste a um filme como o Shomotsi,8 por exemplo, você se depara com uma situação cotidiana, e é ali que se revela toda uma realidade. O filme é de uma poesia incrível, de muita sensibilidade, uma expressão artística. Ou seja, o VNA possui sim uma postura política e militante, de gerar inclusão, de dar visibilidade, de fazer circular essas produções, mas a sua abordagem, sua construção não é militante. O sonho é militante. Um sonho militante de poder contribuir para viabilizar os sonhos deles, entende? Falando ainda dessa abordagem, da construção do filme, o que a gente busca nas nossas produções é o imprevisto, o improviso, o encontro, o espontâneo. É isso o que fica nos filmes, que dá o sabor da edição. Nossa tentativa nas oficinas é instigar uma postura diante do mundo: a câmera na mão, a proximidade com o personagem, a observação. A.C. – Uma disponibilidade para o acontecimento... V.C. – É. E desconstruir essa ideia de autor, do roteiro pronto, anterior à filmagem, essa sobrevalorização do autor. Estamos falando de um processo coletivo e colaborativo. Nosso desafio é criar essa atitude, essa abertura para o real, para aquilo que se desenrola na sua frente. É algo intuitivo também. Isso é o nosso grande método (risos). De fato, existe a influência dos Ateliers Varan,9 do aprender fazendo, de uma postura não condescendente frente aos alunos, uma limitação do tempo, do material, uma economia do olhar que gera também um pensamento sobre O filme, realizado em 2001 pelo professor indígena e cineasta Valdete Pinhanta, narra o cotidiano de seu tio Shomõtsi, um Ashaninka da fronteira do Brasil com o Peru. O vídeo foi premiado em diversos festivais e mostras nacionais e internacionais e é tido como uma das principais referências estéticas e de abordagem, entre os filmes produzidos pelo VNA.

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Escola francesa de cinema documentário fundada em 1981 pelos cineastas Jean Rouch e Jacques d’Arthuys. Os Ateliers Varan funcionam como uma série de workshops, tendo como método fundante o aprendizado através da prática. <http:// www.ateliersvaran.com>.

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o filme. Mas, no nosso caso, temos uma perspectiva bem menos autoral e mais coletiva. Então, a gente herda a experiência dos Varan, mas adaptada às condições indígenas, às dinâmicas das políticas internas de cada comunidade. Talvez isso seja o mais difícil: a questão política da inserção das oficinas nas comunidades. É fundamental saber lidar com isso. É algo que exige muita sensibilidade. Entender as conjunções políticas, saber colocar sua presença, seu ponto de vista, criar um ambiente de trabalho harmonioso dentro de um mundo de tensões, desejos e contradições. Saber se colocar nesse ambiente. Uma vez conquistado esse lugar, todo o processo flui. A.C. – Você fala de um momento importante na política brasileira em relação aos índios. Como isso repercute no projeto e nas comunidades? V.C. – Estamos vivendo hoje um momento muito particular. O País mudou. É um momento de passagem, quando ser índio passa a ser alguma coisa valorizada, com direitos. Esse ambiente de mais valorização, de mais direitos, disseminou também um novo espírito de retomada entre as comunidades indígenas, e vemos uma demanda enorme por projetos culturais, de valorização cultural, de fortalecimento da identidade, de reconhecimento. E, junto, uma demanda crescente pelo uso do vídeo nas comunidades. Não damos conta dessa demanda sozinhos. Por isso, é preciso a inserção de outros grupos e organizações. Tem que multiplicar, tem que ter gente para dar conta dessa demanda. É o momento de democratizar o acesso, dar ferramentas e pronto. Isso vai abrir um canal fundamental para essas comunidades. E você vê, também hoje, os cineastas da primeira geração já dando oficinas, formando novos cineastas nas suas aldeias, porque é isso que tem que acontecer. Esse processo de autonomia, de seguir em frente com seus próprios projetos. E ampliar a visibilidade, o acesso, o debate. Você vê essa questão da obrigatoriedade do ensino das culturas e história indígenas nas escolas de ensino médio e fundamental. É uma inversão de pontos de vista necessária. E isso tudo acontecendo agora, numa história muito recente. É preciso 375


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que a gente se mobilize para dar conta dessas novas demandas e desafios. A.C. – A respeito disso, em função do processo de produção do Guia didático cineastas indígenas10 para as escolas de ensino médio da rede pública, você discute a denominação “cineastas indígenas” mais como uma provocação do que exatamente um conceito. O que significa ser um cineasta indígena? V.C. – Essa edição da coleção de DVDs Cineastas indígenas vem atender a uma demanda de implementação das Leis 11.645 e 10.639, que incluem, no currículo oficial escolar, a obrigatoriedade do estudo das histórias e culturas indígenas. É uma conquista sem precedentes, a possibilidade de se oferecer uma visão única da realidade indígena brasileira: o ponto de vista dos índios, dos vencidos. Uma outra historiografia possível, percebe? Agora, a questão dos cineastas indígenas é quase um convite mesmo ao estranhamento, à provocação. Um chamado para uma postura desarmada frente às produções indígenas. Na verdade, é quase um tratamento de choque. Foi a forma que encontramos de chamar a atenção. Porque as pessoas estranham e questionam o índio com havaianas, com celular, o índio que transita pelo seu próprio mundo e pelo nosso, porque, para a grande maioria das pessoas, há apenas duas categorias de índios: aqueles que ainda são índios e os já não são mais índios. Imagina, índio cineasta. É de novo essa ideia do purismo, do bom selvagem. E agora a gente tem esse desafio, quando se tem a possibilidade do ensino das culturas indígenas nos currículos oficiais das escolas fundamentais e médias. E a gente tem uma grande contribuição a dar e uma responsabilidade enorme, que é encontrar a melhor forma de chegar aos alunos e professores, de apresentar toda Com patrocínio do Programa Petrobras Cultural, o kit Cineastas Indígenas: um outro olhar consiste num box com cinco DVDs de filmes dos povos Kuikuro, Panará, HuniKui, Xavante e Ashaninka, e um guia para professores e alunos, com informações sobre cada um dos povos, fontes para pesquisa complementar e temas para discussão em sala de aula. A versão do guia para download está disponível em: <http://www.videonasaldeias.org.br/2009/noticias.php?c=33>.

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Por um cinema compartilhado. Entrevista com Vincent Carelli

essa riqueza, o pensamento, a complexidade e também material produzido por esses grupos e cineastas. Esse é também, de certa forma, o nosso desafio nos filmes em relação à audiência não indígena: criar possibilidades de um diálogo real, de desconstruir preconceitos e estereótipos, de possibilitar o contato com o olhar indígena, de suas formas de viver e experimentar o mundo e de nos devolver esse olhar, seus pontos de vista e a complexidade e diversidade do seu pensamento. A.C. – Pra gente terminar, gostaria que você falasse um pouco sobre as perspectivas e projetos futuros do VNA. Como manter (ou transformar) o pensamento do projeto no contexto de novas parcerias, as politicas culturais, a crescente demanda dos índios? Ou seja, como avançar e crescer sem perder aquilo que anima o projeto: a luta política das comunidades indígenas e seu reconhecimento e afirmação étnica e cultural através do vídeo? E, por fim, qual o seu desejo para o VNA e as comunidades com as quais trabalha? V.C. – Embora todo dia o VNA se lance em novas aventuras, e essa de distribuir kits [Cineastas indígenas; um outro olhar] para escolas é uma delas, acho que, de certa maneira, o VNA cumpriu uma etapa: a de criar um conceito novo, o do índio cineasta, hoje respeitado por sua produção em todos os meios. O VNA pretende avançar na publicação da coleção Cineastas indígenas agregando mais povos, de maneira a constituir um grande painel da diversidade indígena deste País. Considero esta coleção histórica, por trazer com qualidade um retrato dos povos indígenas e disponibilizá-lo para o grande público. A visibilidade crescente que o projeto ganha anima muita gente a tomar para si a iniciativa de oferecer capacitação para comunidades indígenas de suas regiões. Hoje alunos do projeto colaboram, por exemplo, com o Museu Dom Bosco, em Campo Grande, dando oficinas no Mato Grosso do Sul. Muito mais ONGs estão se organizando para atender a imensa demanda reprimida das comunidades indígenas por acesso à tecnologia audiovisual e à Internet. A revolução necessária da banda larga para os interiores do País é uma questão vital para os índios, já que eles habitam as regiões mais isoladas. 377


E pode fazer toda a diferença para as novas gerações de cineastas. O movimento indígena é tão fragmentado que nem sequer uma agência de notícias indígena temos neste País, o que faz muita falta. Portanto, temos um longo caminho pela frente.


CAPÍTULO XVi

Por uma sistematização de nossas práticas: proposições e dúvidas Juliana Leonel

E

m anos de atuação com o audiovisual comunitário através da ONG Associação Imagem Comunitária, em contato seja com educadores da instituição, seja com companheiros de nossa rede de parceiros, sempre convivi com perguntas e incertezas sobre como organizar processos de formação e produção em audiovisual comunitário e, consequentemente, como sistematizar as aprendizagens geradas nessas práticas cotidianas. Sabemos que simultaneamente os projetos de audiovisual comunitário sustentam-se com conhecimentos e geram conhecimentos, além de teorias e ideologias, que nem sempre estão expressos de forma explícita. Também observamos que os problemas são solucionados principalmente com a reflexão dos propositores dos processos e com a própria prática de enfrentar as dificuldades. Esses atores fazem um investimento pessoal na organização de propostas formativas com as comunidades. Põem em jogo sua formação teórica, suas experiências prévias e uma série de habilidades que aprendem a desenvolver. Os propositores de ações audiovisuais comunitárias lidam cotidianamente com mudanças de diversas naturezas, enfrentam 379


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

limitações materiais e fazem a gestão de interesses e pontos de vista divergentes entre os envolvidos nas ações. Reagem criativamente para levar adiante seus objetivos, desenvolvendo constantemente um processo de reflexão-ação, o que lhes permite compreender as situações, orientar-se nelas e posicionar-se diante delas. É possível remeter, aqui, à discussão feita por Michel de Certeau (1994), que encara esses processos cotidianos de invenção como um tipo de arte capaz de subverter a rigidez das estruturas do mundo. O autor atribui às práticas ordinárias o estatuto de objeto teórico, entendendo-as como uma forma de agência tática, que reinventa a realidade e altera sua organização política. Poderíamos, assim, falar em artes de fazer empreendidas pelos propositores de audiovisual comunitário frente a situações desconhecidas. A cada mudança nos processos de intervenção, há uma reação criativa de novas práticas, que, por sua vez, geram novos saberes. Barnechea e Morgan (2007) denominam esses conhecimentos de situacionais, porque permitem entender as situações que surgem na prática. Os propositores acessam informações e referências quando a ação o exige, recorrendo a ideias e teorias que os ajudem a compreender e atuar em uma situação nova. Acreditamos que essas características de conhecimento prático e situacional conformam os questionamentos e as dúvidas vinculados à formulação de metodologias e, consequentemente, à escolha de métodos para organizar a produção/formação para o audiovisual comunitário. E a partir das aprendizagens geradas na prática é que se lança o desafio de como sistematizá-las. O que podemos observar no nosso cotidiano é que, infelizmente, a sistematização dos processos é uma atividade pouco desenvolvida por muitas iniciativas brasileiras do audiovisual comunitário – ainda que seja unânime o reconhecimento de sua importância. A seguir, discutimos a ideia de uma sistematização popular dos conhecimentos produzidos nas práticas comunitárias e, em seguida, apresentamos a proposta de organização de tais saberes desenvolvida para o presente livro. 380


Por uma sistematização de nossas práticas: proposições e dúvidas

Sistematização popular A defesa pela criação de processos de sistematização de conhecimento dos movimentos sociais ganha força no final da década de 1970, na América Latina. O momento, marcado pela redemocratização em vários países, exigia um salto qualitativo nas ações dos movimentos populares. Há um esforço consciente de teorizar e questionar a práxis social para comunicar o conhecimento produzido, processo baseado em preocupações de ordem política (Ghiso, 1998). Os primeiros passos no sentido de valorizar o conhecimento prático dos movimentos sociais foram dados pelos projetos educativo-populares em atividade no continente. Logo se percebeu que, tendo em vista a diversidade de idiomas que perpassam essas iniciativas (Barnechea; Morgan, 2007), a sistematização popular seria o caminho mais adequado. Com isso, defende-se que os empreendedores das práticas devem assumir a tarefa de produzir conhecimento. Eles são os sujeitos mais adequados para refletir sobre suas próprias práticas e ações, bem como sobre os efeitos delas. Como sistematizadores, os realizadores podem produzir um conhecimento rico que se desdobre sobre a ação na busca pela superação de problemas (Barnechea; Morgan, 2007). Santos (2006) também defende que os saberes contextualizados, produzidos próximo às iniciativas estariam a serviço de práticas transformadoras emancipatórias e contribuiriam para o reconhecimento dos realizadores da ação social como protagonistas na produção de conhecimento. Frente ao que denomina monocultura do saber científico, o autor considera fundamental a participação dos atores dos movimentos sociais para a promoção do diálogo permanente entre diferentes tipos de saberes. É nesse sentido, por exemplo, que em todos os movimentos de sistematização que vivenciei através dos projetos da Associação Imagem Comunitária, sempre esteve presente o esforço de criar situações que levassem os propositores a ver a relevância de sua atuação como sistematizadores, percebendo a possibilidade de ruptura dos supostos hiatos entre o racional e o subjetivo, 381


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entre o objetivo e o afetivo. Houve sempre também uma busca por garantir que a sistematização fosse uma tarefa reflexiva, organizada de forma a intervir nas ações, viabilizando a realização de objetivos e metas. Como aponta Jara (2004), a sistematização deve ser como um espiral que, ao retornar à ação, transforma-se em um processo de educação popular. Para o autor, processos de sistematização promovem ações político-pedagógicas, por meio das quais se constituem várias formas de protagonismo popular. É necessário frisar, ainda, que esse impacto da sistematização não precisa se restringir à própria prática que a gera. Por isso, diversos autores (Martinic, 1986; Osorio, 1996; Zuiñga, 1997) têm ressaltado a importância de dar visibilidade às sistematizações populares. Eles percebem que os saberes criados na prática por determinado projeto pode retroalimentar e fortalecer os movimentos sociais de uma forma ampla, aumentando o conhecimento recíproco entre as organizações e promovendo ações coletivas conjuntas (Santos, 2006). Entende-se, assim, que o compartilhamento de processos de produção do conhecimento prático é um ato essencialmente político. Essas proposições oferecem contribuições fundamentais para o compromisso de transformação social do audiovisual comunitário na contemporaneidade. Projetos e práticas sociais têm relevância não apenas pelo impacto que proporcionam mas também pelo conhecimento que geram, por isso é muito frutífero estimular interconexões e trocas de aprendizagens e reflexões entre grupos. A questão que permanece, contudo, é como fazer isso. Como conhecer e compartilhar o saber produzido na prática pelo movimento de audiovisual comunitário brasileiro? O que se pode e o que não se pode fazer com a sistematização para além do âmbito do próprio projeto? O que poderia estender a sistematização de uma experiência particular a outras? São válidas e generalizáveis as lições de uma iniciativa para outra?

Confluências e sugestões das práticas Sem pretender responder totalmente a essas perguntas, fizemos uma aposta para explorar o conhecimento prático de 382


Por uma sistematização de nossas práticas: proposições e dúvidas

projetos de audiovisual comunitário. Convidamos os realizadores de algumas iniciativas a sistematizar para o livro alguma prática desenvolvida em suas ações audiovisuais. Algumas ações sistematizadas não se restringem ao universo do audiovisual comunitário, mas oferecem contribuições ao seu fomento e à realização de suas práticas formativas. Pedimos a esses realizadores que localizassem ações singulares que tivessem sido inventadas para solucionar algum problema ou melhorar algum processo. A ideia era que cada sistematização nos possibilitasse entender a lógica de uma prática em particular e não os detalhes do projeto em que ela foi criada. Propusemos que as iniciativas identificassem, nos seus relatos, as razões da prática, bem como as contradições e as tensões que marcaram os rumos do seu desenvolvimento. Com isso, o leitor poderá identificar continuidades e descontinuidades, coerências e incoerências, semelhanças e diferenças em relação a outros processos. O objetivo foi estimular esses atores a reconhecer saberes que nasceram a partir de demandas cotidianas de forma a materializá-los neste livro. No total, foram apuradas 40 práticas,1 das quais 18 estão organizadas em um catálogo na seção seguinte. Ressaltamos, desde já, que tais práticas não devem ser entendidas como “receitas para o sucesso”, que poderiam ser reaplicadas e multiplicadas mecanicamente em qualquer contexto. Trata-se de práticas específicas e contextualizadas, que ganharam sentido e existência em determinadas situações concretas. Mais do que um receituário pronto, elas devem ser entendidas como parte de um jogo discursivo mais amplo de reflexão e experiência no campo do audiovisual comunitário. Esperamos que elas estimulem e alimentem a busca contínua e situada de saberes e práticas que resolvam dificuldades concretas. Entre as experiências coletadas, muitas estão focadas na sugestão de propostas formativas que fogem aos modelos As 40 práticas podem ser conhecidas através do site: <http://www.educacaomidiatica.com>.

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baseados na pedagogia escolar tradicional. Há uma aposta na gestão compartilhada dos projetos sociais, que objetiva fomentar a compreensão, pelos participantes, do sentido dos processos vividos. Por meio de assembleias, rodas de debates e outros métodos e técnicas, as práticas constituem-se como rituais de aprendizagem, avaliação e planejamento com códigos inovadores, que exigem relações coletivas e face a face. A nosso ver, as práticas apresentam uma valorização do que Marta Souto (1993) chama de pedagogia do grupal, o que vai além das tradicionais metodologias de trabalho em grupo. A autora entende o grupal como pluralidade de indivíduos em copresença para realizar algo. O grupo é tomado como uma unidade não simplificada mas múltipla e composta de uma diversidade interna. Na perspectiva de Souto, é desde o grupal que se constrói uma integração não reducionista das situações, a qual inclui o nível individual de participação e aprendizagem. Muitas ações escolares tendem a não incluir as interações como fator de interesse. Frequentemente elas operam no nível individual e não atendem as características do conjunto. As práticas encontradas em diversas iniciativas de audiovisual comunitário parecem propor o âmbito grupal como o mais adequado para embasar as situações formativas. Há uma espécie de devir grupal atravessando várias experiências pesquisadas que apresentam possibilidades de autorreconstrução e de auto-organização, de forma aberta e flexível. O universo pessoal e cotidiano dos participantes é o ponto de partida de algumas atividades. Revisita-se o que é conhecido, comum, local e ordinário para reinventá-los. É essa também a base da relação estabelecida com a técnica audiovisual pelas práticas coletadas. Busca-se uma valorização da criação artística indagatória; do pensamento audiovisual em detrimento de uma abordagem tecnicista. A difusão do vídeo comunitário também é o alvo da reflexão de algumas experiências. Seja ocupando espaços mais institucionalizados (como escolas), seja criando propostas de visibilidade em esferas mais fluidas e amplas (como exibições 384


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de rua), existe uma preocupação central de que as produções circulem e estabeleçam interlocuções. O objetivo é difundir a produção audiovisual de forma qualificada de maneira que as redes de visibilidade dos vídeos se constituam também como espaços de reflexão, educação e formação de público. Com relação a esse aspecto, poderíamos falar em videopolíticas de distribuição, que não se restringem à exibição das produções. Há teias de comunicação interpessoal fundamentais nesse processo, criando formas de dialogar com a cidade, com outros públicos, com as esferas políticas. Por fim, é preciso considerar que a prática formativa dos projetos audiovisuais comunitários ultrapassa os aspectos narrativos e descritivos que surgem da reconstrução das experiências vividas no catálogo proposto neste livro. Não se pode esquecer que as práticas relatadas nascem de encontros, de relações que se dão em um espaço e um tempo determinados. Surgem em um contexto sociocultural e com objetivos de transformação e superação específicos. Sabemos das limitações das narrativas catalogadas em apreender e explicitar claramente as dimensões ideológicas e afetivas que constituem uma ação. Na leitura das práticas catalogadas, é preciso levar em conta que, em geral, esses movimentos de criação e proposição dos grupos são processos abertos e em constante construção. É importante ressaltar, ainda e uma vez mais, que em nenhum caso acreditamos em uma replicabilidade mecânica dessas aprendizagens. Entretanto, acreditamos que a sistematização dessas práticas poderá proporcionar sugestões, intuições, pistas, provocações que incentivem outras experiências.

Referências BARNECHEA GARCÍA, M.M.; MORGAN TIRADO, M.L. El conocimiento desde la prática y una proposta de método de sistematización de experiencias. 2007. Maestria en Sociología - Pontificia Católica del Perú, Lima, 2007. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1, Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

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GUISO, Alfredo. De la práctica singular al diálogo con el plural: aproximaciones a otros tansitos y sentidos de la sistematización en épocas de globalización. Medellín: Fumlan, 1998. JARA, Oscar. El desafio político de aprender de nuestra prácticas. San José, Revista del Centro de Estudios y Publicaciones Alforja, junho 2004. MARTINIC, Sergio. Elementos metodológicos para la sistematización de proyectos de educación popular, Santiago: CIDE, 1987. OSORIO, Jorge. Interculturalidad y Pedagogías de Borde. In: Contexto y Educación, n. 42, Santiago, Ijui, 1996. SANTOS, Boaventura S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo, Cortez, 2006. SOUTO, Marta. Hacia una didáctica de lo grupal. Buenos Aires: Miño y Dávila, 1993. ZUÑIGA, Ricardo. Resituando la evaluación del desarrollo local. In: Revista Persona y Sociedad, Santiago, ILADES, 1997.

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CAPÍTULO XVIi

Catálogo de práticas Juliana Leonel Moira Toledo1

1 Formação para o audiovisual

1. Edição dominó Realizada por: Projeto Alice, prepara o gato! Localização: Niterói (RJ) Website: <http://alicercepreparaogato.worldpress.com> Quem relata: Mauro Reis, coordenador do projeto Objetivos • Planejar e conceber coletivamente a montagem/edição de produtos audiovisuais resultantes das atividades formativas do ateliê de vídeo do projeto. Utilizamos o banco de dados de experiências de audiovisual comunitário brasileiras produzido a partir da tese de doutorado de Moira Toledo, intitulada Educação audiovisual popular no Brasil - panorama 1990-2009, desenvolvida junto ao Programa de Estudos dos Meios e da Produção Midiática da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação da Profa. Esther Imperio Hamburger. O banco de dados da tese pode ser acessado em: <http:// www.kinooikos.com> (área “mapa de projetos”).

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• Envolver todos os participantes do processo formativo na concepção integral dessa etapa, de forma que a montagem do vídeo seja um processo realizado por todos. • Focar o processo de finalização do vídeo no pensamento da montagem e não na operação mecânica do equipamento de edição. Descrição Primeiro, os participantes são convidados a assistir ao material gravado em vídeo. Todos anotam as cenas de que mais gostaram, ou seja, os pontos fortes do material bruto. Cada cena destacada é anotada no quadro e ganha um nome. Esses blocos de assunto, de uma fala ou de um som vão funcionar como peças de um jogo de dominó. Tudo é escrito e nomeado em um quadro para facilitar a associação entre essas partes. Completa a lista, o jogo começa. O primeiro participante a jogar escolhe uma cena, e o segundo, outra cena que faça associação com a primeira escolhida. Depois, um a um, os participantes vão fazendo suas jogadas e associações. As possibilidades de casamento de uma peça com a outra são bem livres. É permitido desde montar uma peça com outra sem mudar muito o rumo da narrativa (como no dominó, onde a associação é feita pela semelhança das peças) até mudar radicalmente o rumo da narrativa ou montagem, fazendo casamentos inusitados. Também é permitido usar uma peça/cena mais de uma vez. A repetição de cenas cria muitos significados, e isso é compreendido na brincadeira. Cada associação, cada montagem, é registrada no quadro, em sequência. O jogo para quando já houver um número considerável de associações feitas, e não necessariamente quando todas as cenas disponíveis estejam associadas. Em seguida, o grupo é convidado a fazer um balanço da sequência de cenas feita até aquele momento. Com isso, instala-se um debate, em que todos manifestam sua opinião ao mesmo tempo. Essa é também a hora de decidir qual parte será realmente o início do vídeo e de reordenar o material. A partir dessa ideia de começo, a linha narrativa é recriada. E são possibilitados novos casamentos de peças, novas ideias associativas. Fechada uma sequência, o material audiovisual é levado para a ilha de edição.

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Catálogo de práticas

Em outro dia de encontro, os participantes são convidados a assistir ao vídeo que se imaginou no jogo e avaliar o resultado. Em geral, trata-se de um momento de debate, de defesa de determinados caminhos para o produto final e de esclarecimento de dúvidas. Não raramente, é necessário retomar o processo no quadro-negro e propor novas associações com a edição dominó. O tempo do jogo e a quantidade de encontros depende do tamanho e da complexidade do material bruto gravado. Desafios Se o material bruto for muito extenso, uma sugestão importante é preparar uma pré-edição e realizar o jogo a partir desse primeiro copião. Resultados Os participantes apropriaram-se da técnica de montagem com muita facilidade, desmistificando a ideia de que se trata de algo difícil e trabalhoso. Depois dessa primeira experiência com o jogo edição dominó, passam a planejar suas gravações já pensando na montagem e em função dos desafios que identificaram inerentes à etapa de edição. Esse método utilizado para a edição, de certa forma, conferiu um estilo aos vídeos realizados pelo projeto Alice, prepara o gato!. 2. Um som, uma imagem Realizada por: Associação Imagem Comunitária Localização: Belo Horizonte (MG) Website: <http://www.aic.org.br> Quem relata: Aléxia Melo (sócio-fundadora), Ana Tereza Brandão (sócio-fundadora), Áurea Carolina (colaboradora) e Tiago Pisolati (redator) Objetivos • Introduzir o uso dos equipamentos de produção audiovisual. • Destacar a interdependência entre som e imagem no vídeo. • Apresentar os processos de criação audiovisual com ênfase na expressão de ideias e não no domínio de técnicas.

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Descrição Essa prática foi realizada durante um processo formativo em produção audiovisual com 20 jovens. Nesse processo, foi dado enfoque a discussões sobre patrimônio cultural, as comunidades dos participantes e as diversas realidades e formas de organização das juventudes locais. A proposta era criar imagens e ambientações sonoras que traduzissem sentimentos comuns dos participantes em relação ao lugar onde vivem. Os jovens foram divididos em quatro grupos. Dois grupos receberam gravadores de áudio, ao passo que os outros dois receberam câmeras de vídeo. Cada grupo deveria, então, gravar um som ou uma imagem (em um plano) que fosse representativa de sua comunidade. Quando os grupos retornaram com suas produções, seus equipamentos foram trocados. Os grupos que receberam uma imagem capturada por outro grupo deveriam sair em busca de um som que a completasse. Por sua vez, os grupos que receberam um som gravado por outro grupo deveriam produzir uma imagem que o representasse. Ao término da atividade, as quatro produções foram exibidas e comentadas por todos. Desafios Como essa prática foi realizada em um dos primeiros contatos dos jovens com as câmeras de vídeo e os gravadores, um dos desafios era criar uma situação em que esse contato inicial com os equipamentos não suplantasse a reflexão sobre os produtos a serem desenvolvidos. Afinal, é importante não se restringir a uma abordagem tecnicista. Resultados A atividade apresentou os equipamentos aos participantes de forma satisfatória. A partir da proposta de produzir uma imagem ou um som que fosse representativo da comunidade, os jovens utilizaram os gravadores e as câmeras como um meio de construir aquelas representações – e não como um fim. A troca de produtos entre os grupos, assim como sua complementação, criou um ambiente de produção coletiva em que todos se sentiram realizadores do produto final gerado.

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3. Meta-aula de roteiro audiovisual Realizada por: Oficinas Tela Brasil / Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André (ELCV) Localização: São Paulo e Santo André (SP) Website: <http://www.telabr.com.br/elcv> Quem relata: Henry Grazinoli, educador da ELCV (20072008) e coordenador das Oficinas Tela Brasil (2008 e 2009). Objetivos • Introduzir a linguagem e a formatação da escrita do roteiro através do próprio ato criativo de escrevê-lo. • Desmistificar as técnicas de roteirização, mostrando que qualquer pessoa pode ser um observador criativo e informado da vida, o que a capacita a escrever um roteiro audiovisual. • Utilizar o próprio universo referencial dos aprendizes, mostrando que todos somos parte de uma sociedade audiovisual e que basta sistematizar um pouco nossas referências para produzir um vídeo. Descrição A sala de aula fica de portas abertas, e o educador não está lá. Enquanto toca música instrumental, os educandos entram e se acomodam. Subitamente, o educador irrompe na sala de aula e, sem dizer nada, começa a escrever no flipchart, em linguagem de roteiro cinematográfico. Exemplo:“Sala de aula. INT. Dia. Um grupo de alunos espera o início da aula. Um professor barbudo (cerca de 30 anos) entra na sala de aula e começa a escrever um roteiro no flipchart. Ele se volta aos alunos e diz: ‘Bom dia, pessoal! Essa é a primeira aula do curso de roteiro. Nós vamos conhecer mais sobre a linguagem e vamos escrever um roteiro coletivo”. O educador observa a sala de aula e escreve, em seu roteiro no flipchart, algumas ações dos alunos: “Enquanto o aluno de boné azul morde a tampa da caneta, uma aluna loira, de olhos verdes, folheia um caderno”. Até esse momento da aula, o educador não diz uma palavra sequer, limitando-se a descrever algumas situações que acontecem na sala e explicando a aula através do roteiro no

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flipchart. O que deveria ser dito pelo educador é escrito no flipchart, em formato de diálogo, como se estivesse sendo escrito um script da aula. Normalmente, a turma fica em absoluto silêncio, acompanhando o que o educador escreve com curiosidade e atenção. Os aprendizes ficam bastante surpresos quando percebem que algumas ações que acontecem na sala, bem como as “falas” do professor, aparecem escritas no flipchart, como no texto de um filme ou de uma novela. O educador prossegue e escreve em seu roteiro: “Agora é com vocês”. O educador, enfim, entrega a caneta a um aluno, que levanta e vai até o flipchart. O professor se senta. O aluno livremente dá continuidade ao roteiro que o educador começou, contribuindo com sua observação do que acontece na aula e com sua criatividade. Depois de escrever duas ou três páginas, o aluno escolhe outro colega de turma e entrega para ele a caneta. O aluno que recebeu a caneta vai até o flipchart e continua a escrever o roteiro. Assim prossegue a primeira parte da aula, com diversos alunos da turma recebendo a caneta e escrevendo o roteiro coletivo. Geralmente, os aprendizes descrevem a própria ação de pegar a caneta e escrever no flipchart. Mas nunca para por aí. A maior parte dos alunos escreve, em forma de diálogo, no roteiro, suas primeiras impressões da aula: seu estranhamento com o silêncio do educador, suas expectativas para o restante da aula. Outros alunos não perdem a oportunidade de brincar com algum colega ou com o próprio educador, escrevendo no roteiro alguma situação engraçada, que não aconteceu mas poderia ter acontecido. Exemplo: “O aluno pega a caneta e, ao se aproximar do flipchart, escorrega e cai. A turma dá muita risada. O professor levanta correndo para ajudar o aluno, cheio de pose, mas acaba escorregando também e caindo de bunda no chão. A turma morre de rir”. Após cerca de trinta minutos, em que os alunos se revezaram no flipchart, exercitando a linguagem recém-descoberta, o educador recebe a caneta e encerra o roteiro. A etapa seguinte da

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aula consiste na leitura coletiva de todo o roteiro. É sempre divertido e interessante ler a situação que se passou na sala (ou a situação imaginada por alguns alunos) já em linguagem de cinema. De acordo com observações que partem dos alunos e do educador, são feitas “correções” no flipchart, sob o olhar de todos, e o roteiro é aprimorado em conjunto. Desafios Desfazer os mitos criados pelos próprios alunos de que “escrever é muito difícil pra mim” e de que “eu não sei nada sobre audiovisual” é o grande desafio dessa prática. A interferência do educador, de maneira criativa e sutil (através do roteiro, sem dizer nada), para encorajar alguns alunos a escrever no flipchart também é fundamental. É muito importante debater com aprendizes os motivos de a aula ter sido realizada dessa forma, sempre contextualizando e relacionando com o processo de escrita do roteiro audiovisual. Além disso, vale ressaltar a importância do processo criativo de um roteirista, mostrando que a realidade pode ser interessante, mas que sempre existe a possibilidade de criar sobre ela, transformando a situação cotidiana em um drama, uma tragédia ou uma comédia. Resultados Sem perceber, cada aprendiz, seguindo o modelo inicial colocado pelo educador no flipchart, escreve parte de um roteiro cinematográfico sem nunca ter tido contato com as discussões teóricas existentes sobre esse processo. Durante a leitura de todo o roteiro produzido na aula, os próprios aprendizes constroem uma visão crítica do que foi escrito, criando uma espécie de autoavaliação das técnicas de escrita audiovisual e do processo criativo. Depois da última leitura e da conversa acerca da linguagem do roteiro e do processo pelo qual turma e educador passaram, todos se sentem mais encorajados e aptos a escrever, além de ter aguçados sua criatividade e seu desejo de conhecer mais teorias e técnicas.

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4. DedoFilme Realizada por: Oficinas Itinerantes Tela Brasil / Buriti Filmes Localização: São Paulo (SP) Website do projeto: <http://www.telabr.com.br>, <http:// www.buritifilmes.com.br> Quem relata: Marina Santonieri, coordenadora pedagógica Objetivos • Desenvolver uma forma lúdica e especial de apresentar a linguagem audiovisual, experimentando trabalhar coletivamente e vivenciando diferentes etapas da produção, como roteiro, fotografia e montagem, sem a necessidade de um educador explicá-las previamente ou teorizar a respeito. Descrição O DedoFilme é um jogo proposto no primeiro dia de um processo formativo em vídeo. Assim que começa o encontro, os participantes são convidados a fazer uma produção audiovisual realizando apenas os cortes diretamente na câmera, ou seja, gravando os planos e cenas do vídeo na ordem em que será exibido. O educador propõe algumas regras para que os participantes se organizem para a produção. Pede-se que o vídeo seja feito com, no mínimo, dois personagens; que utilize uma cena com diálogo e outra sem diálogo; que tenha o mínimo de cinco cortes e de cinco tipos diferentes de planos; e que tenha pelo menos um plano em movimento. Para tanto, explica-se, grosso modo, o que significam os termos “plano” e “corte”, apenas para viabilizar o exercício, deixando que as dúvidas venham naturalmente, a partir da prática. As gravações também têm que acontecer em um espaço delimitado: apenas no local onde a formação é realizada. Uma turma de 20 alunos é dividida em três subgrupos. Em aproximadamente 40 minutos, eles devem escrever um roteiro curto em seus grupos. Apresenta-se um modelo de story board e solicita-se que escrevam o roteiro conforme esse modelo. Também orienta-se o grupo a dividir as tarefas e decidir quais serão as funções de cada um na hora da gravação. Em

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dez minutos, os educadores realizam uma breve explicação de como operar a câmera. Cada grupo utiliza de 20 a 25 minutos para se preparar e, em mais ou menos uma hora, os grupos gravam seus exercícios, acompanhados sempre por um educador. Não é permitido ficar assistindo à fita durante as gravações nem refazer algum plano. Depois, os três vídeos são exibidos, empregando-se cerca de 20 minutos para a realização de uma avaliação do processo e dos resultados. Essa avaliação deve apontar e debater os erros e os acertos, identificando a utilização da linguagem cinematográfica, os cortes, os planos e o som. Desafios Muitas vezes, os educandos não apertam corretamente o botão de iniciar e parar a gravação (REC), e a câmera continua gravando, alterando a brincadeira. Ou, então, o grupo não se organiza direito, e as vozes de comandos como “ação” e “corta” entram no vídeo. É preciso orientar, com clareza, sobre a importância de estar muito concentrado e atento na hora de iniciar e de parar a gravação. Por isso, também se recomenda realizar esse primeiro dia de formação com acompanhamento de mais de um educador. É importante que os educadores e os monitores estejam sempre por perto, solucionando dúvidas e ajudando com sugestões. Outro ponto importante é não utilizar muitos equipamentos. Recomenda-se apenas uma câmera com microfone embutido. Isso ajuda a centrar o foco dos participantes nos aspectos mais expressivos que técnicos do processo. Quando trabalham com equipamentos restritos (como no caso, sem tripé, iluminação e microfone direcional), utilizarão de forma muito mais consciente e eficaz esses equipamentos na primeira oportunidade. Resultados Ao final do primeiro dia de formação, são desenvolvidos vídeos de aproximadamente três minutos idealizados, realizados e finalizados em menos de três horas. Para os participantes, o jogo funciona como uma espécie de intensivão, que ajuda a despertar a percepção para os aspectos da linguagem audiovisual (especialmente sobre os princípios da montagem) e

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faz aflorar as primeiras e fundamentais dúvidas. Durante o exercício, cada grupo enfrenta dificuldades, como locação, atuação e cenário. Isso ajuda a exercitar soluções criativas frente a limitações comuns no cotidiano de uma produção. O DedoFilme é um exercício desafiador que só pode ser realizado com boa comunicação e a colaboração de todos do grupo. Esse estímulo já no primeiro dia de formação ajuda a estabelecer um clima de confiança entre educadores e educandos, e entre o próprio grupo de participantes. 5. Planos e sequências Realizada por: Associação Imagem Comunitária Localização: Belo Horizonte (MG) Website: <http:/www.aic.org.br> Quem relata: Aléxia Melo (sócio-fundadora), Ana Tereza Brandão (sócio-fundadora) e Tiago Pissolati (redator) Objetivos • Trabalhar com narrativas por meio da montagem de imagens, sem usar o suporte sonoro. • Introduzir diferentes técnicas de montagem e discutir a evolução da imagem em movimento. Descrição Esta atividade, que pode ser utilizada em processos formativos de produção audiovisual com públicos variados, trabalha a habilidade de contar uma história a partir de suas lacunas – valendo-se, portanto, do processo de montagem. Para sua realização, divide-se a turma do processo formativo em grupos de cerca de cinco componentes. Cada grupo recebe uma tira de papel com a descrição de uma ação curta e outra tira com um número. A ideia é que o grupo crie um vídeo breve, sem som, no qual narre essa ação com o número de planos sorteado. Ao final da atividade, cada grupo exibe suas produções. Depois de assistir a elas, os outros grupos devem descrever qual é a ação descrita, quem a realiza e onde ela acontece.

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Desafios A dificuldade de se mostrar a importância do planejamento – uma espécie de montagem mental – antes mesmo da gravação das imagens. Normalmente, no primeiro contato com os equipamentos, pode haver uma tendência de se gravar mais material do que o necessário para aquela produção. Resultados A partir da proposição de contar uma história curta em um número determinado de planos, os participantes compreendem a necessidade de realizar um planejamento prévio à gravação das imagens. 6. Árvore das cores Realizada por: Instituto Criar /B_arco Centro Cultural Localização: São Paulo e Santo André - SP Website: <http://www.institutocriar.org>; <http://www. obarco.com.br>; <http://www.guimohallem.com> Quem relata: gUi Mohallem, educador da Oficina Iluminação e Elétrica do Instituto Criar (2004-2007), educador convidado do B_arco (2010) e fotógrafo. Objetivo • Desenvolver estratégias de sensibilização para as técnicas de iluminação e fotografia. Descrição Em uma sala ampla e totalmente escurecida, três refletores são dispostos em forma triangular. É importante que estejam afastados uns dos outros tanto quanto possível. Cada refletor está com um filtro de luz chamado tecnicamente de gelatina. Em cada refletor, há um filtro de uma das cores primárias em combinações aditivas: vermelho, azul e verde. Todos os refletores apontam para o chão e enquadram uma folha de sulfite. Ao lado das folhas estão alguns materiais: tecidos coloridos, estojos com canetinhas, papel crepom de diversas cores (quanto mais pastel a cor melhor), colas e

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tesouras. No centro desse triângulo, há um refletor sem filtro, com luz branca mais suave, que ilumina em foco o centro da sala. O educador, então, convida os participantes a entrar na sala com cerimônia, como se estivessem entrando em um espaço mágico. O clima de mistério é proporcionado pela penumbra e pelas luzes pontuais. O grupo de participantes, em pé, faz um círculo ao redor da luz branca central. O educador então lê uma única vez um trecho de um conto. Depois, ele apaga a luz branca, e a turma é dividida em três grupos. Cada grupo se dirige a um dos refletores. A tarefa de cada equipe é criar uma imagem relacionada ao texto narrado pelo educador, usando os materiais disponíveis. Essa imagem é finalizada na folha branca de sulfite. É importante que seja dado um tempo suficiente para que haja discussão e que decisões sejam tomadas nessa construção da imagem. Cada grupo apresenta sua imagem aos outros grupos. Depois, as equipes são convidadas a se deslocar no sentido horário para o refletor/árvore seguinte levando sua imagem. Assim, a imagem construída sob a luz azul passa a ser iluminada por uma verde, a verde por uma vermelha e assim por diante. As cores são radicalmente alteradas. Essa radicalidade vai depender do grau de pureza dos filtros gelatinas usados. Ao final, a luz branca é acesa, e todos se reúnem no círculo inicial munidos de suas imagens. As cores reais são enfim descobertas. O jogo termina com uma discussão sobre as técnicas de iluminação e fotografia. O grupo experimenta com a câmera as interferências que a iluminação pode causar tanto objetivamente (na cor imaginada por uma cena) quanto subjetivamente, no sentimento percebido sob as diversas luzes. Desafios É importante criar as condições mínimas de segurança para ninguém tropeçar nos fios. A escolha da história também merece atenção: deve-se buscar narrativas férteis para a criação das imagens. Também é importante ler interpretando as histórias para estimular a turma.

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Resultados O jogo desperta a percepção para influência das luzes na captação da imagem em vídeo. É uma boa forma de introduzir as técnicas de iluminação e fotografia. O clima de magia criado pela iluminação e a experimentação de criação de imagens sob diferentes luzes estimulam muito os participantes a continuar fazendo testes e explorando as possibilidades fotográficas com câmera. 2 Gestão de processos e grupos

7. Avaliação em duplo circuito Realizada por: Oficina de Iluminação e Elétrica / Instituto Criar Localização: São Paulo (SP) Website: <http://www.institutocriar.org> Quem relata: gUi Mohallem, educador da Oficina entre 2004 e 2007 e Moira Toledo, coordenadora pedagógica em 2005. Objetivos • Criar as condições para que os alunos possam participar ativamente do processo de avaliação, superando algumas limitações dos métodos clássicos. • Possibilitar que os participantes compreendam o sentido dos processos vivenciados e que se corresponsabilizem pela avaliação de sua atuação. Descrição A avaliação experimentada no âmbito do Instituto Criar tem o objetivo de refletir sobre o desenvolvimento dos participantes e dos processos formativos em que estão inseridos, já que são de natureza profissionalizante. As avaliações não são apenas realizadas ao fim de um curso, e sim periodicamente, ao longo da formação. Na experiência realizada, foram experimentadas duas formas simples de conjugar as visões e as reflexões tanto do educador quanto dos participantes. Em um primeiro momento, cada um dos envolvidos na formação

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escrevia uma carta ao educador, fazendo uma autoavaliação e propondo uma nota. O educador lia e respondia com as suas opiniões e considerações e dava uma nota final. Em um segundo momento, o processo se invertia. O educador escrevia sua avaliação sobre a atuação de cada paticipante. Este, por sua vez, respondia ao educador e lançava uma nota final, que era soberana. Desafios É preciso destacar que o mais importante no processo não é a nota nem as cartas de avaliação em si mesmas. O principal é o exercício de refletir sobre e experimentar o momento de avaliar como um espaço de diálogo entre educador e participante. Ainda que existam uma nota e algumas categorias dadas de antemão pelo educador, o fundamental é criar um espaço mais subjetivo de compreensão sobre a formação e sobre a inserção de cada um no grupo. É importante que o educador utilize a avaliação para destacar o sentido de cada evento realizado no processo formativo e para ajudar os participantes a descobrir isso através da troca de papéis. Vale também exercitar a autocrítica e criar as condições para que os alunos se apropriem da proposta de maneira ética e compreendam a complexidade da tarefa. Resultados Vivenciar essa tarefa de refletir sobre as próprias experiências e atitudes, seja iniciando a avaliação, seja reagindo a uma avaliação feita por outra pessoa, em geral, tem transformado a própria ideia que os participantes tinham do que é avaliar. A iniciativa facilitou a compreensão pelos grupos de que a avaliação pode ser uma estratégia pedagógica participativa, voltada para reorientações do desenvolvimento dos cursos e para fortalecimento de habilidades intelectuais, pessoais e interpessoais dos participantes. Outra conquista dessa intervenção foi a corresponsabilização dos participantes. As trocas de cartas e notas e a subversão do poder do educador de definir uma nota final revelaram que os participantes se avaliavam com honestidade e se sentiam mais comprometidos com sua participação a partir do exercício proposto por esse tipo de avaliação.

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8. Círculo de histórias Realizada por: Movimento Um Milhão de Histórias de Vida de Jovens/ Museu da Pessoa e Aracati Localização: São Paulo (SP) (Há organizações parceiras em seis Estados: CE, BA, MA, PE, MG, RN) Website: <http://www.ummilhaodehistorias.org.br> Quem relata: Mariana kz, coordenadora do Movimento no Museu da Pessoa Objetivos • Contar, gravar e compartilhar histórias de vida de jovens, a fim de fortalecer a autoria e a mobilização dos participantes para as causas de juventude e pautar esse tema em diferentes espaços da sociedade. Descrição Reúnem-se de 8 a 10 pessoas em círculo, de forma bem acolhedora, para que todos fiquem à vontade. A atenção se volta para o grupo: não se pode levantar; os celulares ficam desligados. No primeiro momento, cada participante escolhe uma história da sua vida e compartilha com o grupo. Enquanto a pessoa narra a sua história, todos permanecem em silêncio. A história tem tema livre. Depois, os outros participantes podem dar sugestões para melhorar a narrativa da história que ouviram, e como pode ficar mais interessante. Não se pode julgar a história nem a pessoa. Na sequência, cada participante roteiriza o seu caso contado: escreve em texto de até uma página, atentando para começo, meio, fim, clímax, suspense. O grupo volta a se reunir em um segundo círculo para compartilhar os roteiros e receber sugestões de mudanças. Finalmente, cada participante, com o roteiro pronto, grava sua história em áudio usando sua própria voz e seus dotes artísticos. É importante interpretar o texto em vez de somente lê-lo. Pode-se usar qualquer equipamento gravador de áudio. O grupo volta a se reunir em círculo para a exibição de todas as histórias e, a partir delas, discutir a importância dessa experiência, o conteúdo das narrativas registradas e o que elas revelam sobre o grupo.

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Para encerrar, os participantes criam juntos um plano de mobilização, planejando a realização de círculos de histórias em outros lugares e pensam em ações de intervenção social que podem colocar em prática a partir das histórias. Para isso, é importante valorizar o que cada um faz melhor: vídeo, grafite, desenho, teatro, música, produção de um debate. Em geral, o processo completo do círculo de histórias tem duração de seis horas, distribuídas em três dias: um para contar a história; outro para roteirizá-la e começar a gravá-la; e outro para terminar a gravação e ouvi-la. Mas é possível realizar a atividade de forma mais concisa em uma tarde, reduzindo o tempo dos debates e das discussões. Desafios É importante criar um ambiente acolhedor, que deixe os participantes à vontade para contar sua história. Algumas histórias podem ser bastante fortes. Aconselha-se estar atento para garantir bons produtos sonoros a partir do trabalho de interpretação com os participantes. Outro desafio é garantir a promoção de uma reflexão rica e aprofundada das histórias, a fim de resultar em um bom planejamento e em um real impacto das ações de mobilização. Resultados Um resultado direto e de fácil percepção é na formação dos participantes, que podem mudar o modo de perceber as pessoas ao seu redor e a própria realidade que os cerca, entendendo que cada pessoa tem uma história a ser valorizada. Além disso, as histórias produzem ações de intervenção direta na comunidade, como a que ocorreu na região sul de São Paulo: um grupo de jovens artistas, a partir da experiência do círculo, resolveu resgatar as histórias do bairro onde moram e recontá-las através do grafite nas paredes das casas de uma das ruas da região. Com isso, o grupo valorizou seu trabalho e a comunidade, além de atrair visitantes e veículos de mídia. Outro resultado é o uso das histórias registradas para a reflexão sobre políticas públicas de juventude, como a criação de material de reflexão e discussão sobre o Plano Nacional

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de Juventude. Em 2004, a Comissão Especial de Juventude do Governo Federal lançou o projeto de lei que estabelece o Plano Nacional de Juventude (PNJ). Para colaborar com a democratização do debate sobre o PNJ, o Movimento Um Milhão de Histórias elaborou um CD-ROM lançando a campanha Plano Nacional de Juventude em Pauta, no qual são apresentados os objetivos e as metas do plano, ilustrados com histórias registradas pelo Movimento. Esse material foi amplamente divulgado e distribuído para promover o debate sobre essa questão. 9. Núcleo de reflexão pedagógica (Nureflex) Realizada por: Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André (ELCV) Localização: Santo André (SP) Website: <http://www.santoandre.sp.gov.br/bn_conteudo. asp?cod=3513> Quem relata: Moira Toledo,supervisora pedagógica do projeto (2006-2008) Objetivos • Estabelecer um espaço sistemático de participação dos alunos e professores da ELCV na gestão do projeto de ensino audiovisual. • Diminuir a evasão. • Associar as práticas pedagógicas da escola às expectativas dos alunos e vice-versa. • Permitir que os alunos se apropriem da escola e se correponsabilizem pela gestão dos processos. Descrição Os encontros do Nureflex foram implantados em 2007, com a turma três da escola (2007-2008). Consistem em assembleias quinzenais realizadas com toda a comunidade escolar, nas quais são deliberadas diversas questões relativas à gestão da instituição e dos processos formativos, regras de convivência, planejamento e avaliação das atividades, seleção e avaliação

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de alunos e da equipe de professores, alocação de verbas, entre outros. Os representantes do conjunto de alunos que participam do Nureflex são rotativos. Um presidente e um vice-presidente são eleitos mensalmente para comandar as atividades do Núcleo. O presidente é responsável por coletar as pautas entre educandos e educadores e conduzir as reuniões. O vice-presidente é responsável pela ata das reuniões e pela supervisão das comissões responsáveis por diversos temas. Um dos educadores da escola também compõe o núcleo de coordenação do Nureflex. Desafios É necessário dar tempo às discussões e exercitá-las cotidianamente, para provocar a reflexão sobre o papel e o potencial de uma instância de participação como é o Nureflex. Há dificuldades na implantação de instâncias de gestão participativa, incluindo a própria compreensão de seu sentido. Em geral, com o passar do tempo, com a percepção cada vez maior do impacto das decisões do grupo de alunos nos rumos da escola, esse espaço começa a ser apropriado e realmente se torna legítimo. No nosso caso, foi com a vivência nas reuniões que o grupo foi ganhando mais habilidade para deliberar em reuniões, exercitando a troca respeitosa de ideias. Resultados A participação ativa dos alunos na gestão financeira e pedagógica provocou uma transformação na escola. Houve uma redução significativa no percentual de evasão dos alunos, e as atividades passaram a ser mais bem compreendidas e avaliadas. Isso provocou mudanças estéticas nos vídeos, refletindo na qualidade da produção audiovisual de forma geral. Curiosamente alguns dos alunos, que eram justamente os mais críticos e reticentes sobre o tema, tornaram-se lideranças. Os alunos aproximaram-se da gestão da escola como um todo, as reclamações diminuíram e, na emergência de problemas, eles passaram a tomar atitudes que conduziam diretamente à solução.

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10. Caderno de processos Realizada por: Programa Laboratório Inhotim/Instituto Inhotim Localização: Brumadinho (MG) Website: <http://www.inhotim.org.br> Quem relata: Janaina Melo, cooordenadora de Arte e Educação do Instituto Inhotim Objetivo • Criar uma superfície mediadora para auxiliar no registro, na pesquisa, na expressão artística e na avaliação da formação de jovens moradores das comunidades vizinhas à instituição museológica em audiovisual e arte contemporânea. Descrição O caderno de processos é uma prática utilizada durante o Programa Laboratório Inhotim, que contém pesquisas, anotações, inquietações e descobertas diretamente relacionadas aos encontros de formação em audiovisual e arte do programa. São cadernos que acompanham os jovens participantes no decorrer dos dois semestres de formação. Durante o primeiro semestre, o caderno é um espaço de experimentação mais livre, compartilhado por até quatro jovens. Funciona como um diário de bordo, um espaço não apenas para o registro de todas as impressões e informações colhidas durante atividades como pesquisa de campo nos distritos da cidade, pesquisa na biblioteca, informações sobre os artistas, mas também para colagem de imagens interessantes, acúmulo de desenhos, mensagens e fragmentos de textos. No caderno, os participantes deixam mensagens para os outros jovens que o compartilham, dão continuidade a desenhos e colagens iniciados por outro participante e, em conjunto, elaboram seus próprios referenciais. Como é compartilhado (um caderno para quatro jovens), funciona como um instrumento que favorece a ação colaborativa, que é estratégia essencial para o desenvolvimento da prática como um todo.

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No segundo semestre do programa, adota-se o caderno individual. Através dele cada participante começa a dar corpo à sua própria pesquisa, delineia seu foco de interesse e propõe o que gostaria de investigar na instituição museológica. Desafios É importante que os educadores façam proposições claras a fim de incentivar os jovens a compreender o caderno como algo especial, para que ele não seja banalizado. Devem-se explorar todas as possibilidades de registro visual, iconográfico, artístico, informativo e poético, e não apenas anotações como em cadernos escolares. Resultados O caderno de processos contribuiu para que os jovens do Laboratório Inhotim explorassem sua capacidade criativa e expressiva, estabelecendo outra relação com a arte e com os espaços públicos da cidade. Compartilhar um caderno durante um semestre foi importante para dissolver a ideia de autoria individual e reforçar a ação coletiva. O caderno se tornou espaço de pesquisa e avaliação continuada para a equipe de arte e educação do Instituto. Além disso, foi possível acompanhar o desenvolvimento individual e coletivo dos participantes e utilizá-lo como fonte para o planejamento de atividades formativas. Os cadernos são também exibidos na exposição final do programa. 3 Fomento, difusão e criação de redes

11. Cineastas Indígenas nas escolas Realizada por: Vídeo nas Aldeias Localização: Recife (PE) Website:<http://www.videonasaldeias.org.br>; <http:// br.youtube.com/user/VideoNasAldeias> Quem relata: Vincent Carelli, fundador do projeto e secretário executivo da instituição

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Objetivo • Fazer chegar até as escolas de ensino médio a produção dos cineastas indígenas, aproveitando o espaço criado pela lei que determina o ensino da História e das Culturas Indígenas no ensino fundamental e médio das escolas brasileiras. Descrição Depois de 13 anos de implementação das oficinas de formação e produção de vídeo por cineastas indígenas, o Projeto Vídeo nas Aldeias reuniu o melhor da produção e publicou uma série de DVDs intitulada Cineastas indígenas. A edição especial para escolas é composta por um kit com cinco DVDs e acompanhada de um guia para professores e alunos. Cada DVD reúne dois filmes de autoria indígena sobre o mesmo povo, dois filmes complementares sobre a história dele e um making of para trazer informações complementares sobre o povo e contextualizar o sentido que essa produção audiovisual tem para ele. Estão sendo doados três mil kits a escolas de ensino médio para uso em sala de aula, tentando fazer chegar a elas a realidade indígena vista e apresentada pelos próprios índios. Qualquer escola pode se cadastrar no site do projeto e pedir o kit. Ao fazer o cadastro, a escola se compromete a enviar para o Vídeo nas Aldeias sua avaliação do material e a fazer relatos sobre as projeções e discussões surgidas em sala de aula a partir dos filmes, colaborando com uma pesquisa sobre o olhar dos brasileiros sobre os índios. O guia para professores e alunos pode ser baixado também na página do projeto na internet. Desafios O desafio de uma distribuição é fazer a informação e os kits chegarem às regiões mais remotas do País, principalmente, às áreas próximas das populações indígenas, onde os conflitos e os preconceitos são mais frequentes. Tratar da diferença cultural não é uma tarefa fácil, e em alguns casos pode até gerar um reforço dos preconceitos. Por isso, o projeto precisa fazer uma avaliação de como os filmes estão sendo trabalhados a partir dos comentários sobre o uso do material oferecidos pelas escolas.

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Resultados Os filmes chegaram a 2,6 mil escolas do Brasil. Até o momento recebemos um número reduzido de avaliações do material, porém a surpresa com a qualidade do material e o impacto com o novo conceito de Índio Cineasta foi muito bem recebido, instigando a curiosidade dos alunos. É também unânime a importância do Guia para professor e alunos. Recebemos alguns relatos consistentes, inclusive de escolas que produziram projetos pedagógicos para uso do material, e outras que estão elaborando um para 2011. A demanda das escolas de ensino fundamental foi tamanha que já temos um projeto de produção de um Kit com um DVD de filmes para criança. 12. Dia de recreação audiovisual Quem realiza: Cinema Nosso Localização: Rio de Janeiro (RJ) Website: <http://www.cinemanosso.org.br> Quem relata: Mirian Machado, coordenadora sociopedagógica Objetivos • Sensibilizar alunos, educadores e gestores de escolas públicas para o uso do vídeo como meio de ensino e de expressão. • Envolver jovens educadores e alunos do Cinema Nosso como monitores de processos formativos no contexto escolar, oferecendo-lhes um espaço privilegiado de multiplicação de seus conhecimentos e de experimentação como educadores. Descrição Um grupo de educadores e alunos da Cinema Nosso visita mensalmente escolas públicas do Rio de Janeiro, nas quais realiza o Dia da Recreação do Audiovisual. O evento é caracterizado por diferentes atividades que envolvem a prática audiovisual: oficinas de filmes em celular, cinema de animação

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com pixelation,2 além de diversas outras práticas artísticas e recreativas. Antes do evento, a equipe do Cinema Nosso passa uma semana visitando a escola, divulgando e apresentando as atividades que serão oferecidas e fazendo as inscrições dos alunos que participarão delas. Em geral, toda a comunidade escolar é reunida em um auditório ou na maior sala que a escola disponibilizar para conhecer o que será oferecido. Vídeos produzidos como resultado de outros Dias de Recreação do Audiovisual são exibidos para motivar os alunos a participar. A participação tem que ser uma escolha do aluno: nem a escola, nem a equipe do Cinema Nosso apresentam a atividade como compulsória. Em cada Dia da Reacreação Audiovisual, participam cerca de 90 alunos por turno, que são coordenados por 10 integrantes da equipe do Cinema Nosso. Os participantes são divididos em grupos (de até sete pessoas), que são acompanhados pelos jovens educadores/monitores. Promovem-se, então, atividades de formação e produção audiovisual com, no máximo, uma hora e meia de duração. Em cada pequena oficina, são realizados o roteiro, a produção e a gravação de um vídeo de aproximadamente um minuto. A edição é realizada na sede do Cinema Nosso. Com os vídeos finalizados, a equipe do Cinema Nosso faz uma exibição para os realizadores e os participantes das oficinas. Depois da aprovação dos realizadores, é marcada uma data para o lançamento dos vídeos para toda a escola. Desafios Para ser possível realizar vídeos em tão pouco tempo, é importante pensar a edição ainda no momento de produção. Trabalha-se sempre a montagem desde o momento de roteirização da ideia. As imagens gravadas em cada oficina de curta duração são desacarregadas para um computador de edição, na ordem em que será montado o vídeo. Cada grupo de alunos Pixilation é uma técnica de animação stop motion na qual atores vivos ou objetos reais são utilizados e captados quadro a quadro (como fotos), criando uma sequência de animação.

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elabora também uma ficha com os dados dos participantes e as informações sobre o arquivo de imagens gerado pelo grupo. Isso agiliza e garante o processo de edição, que em geral é realizado de forma simples, com corte seco e inserção de créditos. Outra questão desafiante é garantir que a comunidade escolar – alunos e professores – possa aprofundar a experiência com o audiovisual proporcionada pelo Dia da Recreação. Para isso, a equipe do Cinema Nosso mantém abertos os canais de comunicação e se disponibiliza para apoiar outras atividades que a escola queira promover, informando atividades e buscando informações sobre os processos que são desenvolvidos em cada escola parceira. Por fim, acredita-se que também é importante criar sempre as condições para acompanhar e garantir que os jovens educadores, com pouca prática em liderar processos formativos, sejam apoiados pelos educadores mais experientes da equipe do Cinema Nosso. A ideia é que os mais jovens e com menos prática também possam vivenciar um processo formativo e atuar de forma prazerosa, interagindo e valorizando o processo de troca de conhecimento com os alunos da escola. Resultados Segundo avaliação do Cinema Nosso e das próprias escolas, aproximadamente 300 pessoas (em média 90 a 110 alunos por turno) participam em cada dia de realização do projeto. Dezenas de vídeos são produzidos. Muitos participantes se interessam em aprofundar os conhecimentos sobre o tema e ingressam nos cursos regulares da OSCIP. Há escolas que iniciam o processo de valorização do uso do audiovisual no seu dia a dia ou intensificam, incorporando-o em atividades curriculares. Muitos professores buscam aprofundar sua formação para utilizar o vídeo em sala de aula. Há casos também de escolas que não tinham equipamentos audiovisuais e procuraram comprá-los depois do Dia da Recreação para dar continuidade às atividades.

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13.Chamada criativa Realizada por: Eletrocooperativa Localização: Salvador (BA) Website: <www.eletrocooperativa.org.br> Quem relata: Mariana Costa, Laura Correa, Ana Laura Castro: equipe de coordenação da eletrocooperativa. Objetivos • Criar e ampliar o alcance dos processos de aprendizagem coletiva através do portal da eletrocoopertativa. • Fomentar processos criativos com geração de renda principalmente entre o público jovem. • Divulgar a ideia de que todos são capazes de criar e de fazer o melhor com os recursos disponíveis. Descrição O portal lança periodicamente os editais públicos das chamadas criativas. Estas são sempre baseadas em uma pergunta chave. A pergunta é lançada no portal, e os participantes são convidados a respondê-la com uma criação audiovisual. Qualquer pessoa pode participar. Vale usar todo tipo de linguagem audiovisual: vídeos, fotos, produções radiofônicas, ilustrações, animações etc. O que se acredita é que uma pergunta sempre estimula a criação e a aprendizagem. Ao tentar responder à pergunta com uma criação audiovisual, os participantes vivenciam um processo de formação. Necessitam de buscar informações, pensar, coletar dados e fazer contatos com outras pessoas e instituições. A equipe de coordenação do portal tenta sempre elaborar uma pergunta que seja relevante, que proponha pensar sobre questões importantes (Alguns exemplos de perguntas que já foram tema das chamadas criativas: O que você aprende quando se conecta com os outros? Como você coloca os seus sonhos em ação? Como nosso imposto deve ser usado para o Brasil que sonhamos?). Cada chamada tem geralmente um

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patrocinador. O recurso do patrocínio é utilizado para a manutenção do portal e para a premiação das melhores criações audiovisuais selecionadas. Cada criação vencedora ganha R$ 300,00 (trezentos reais). A cada edital são selecionadas e premiadas entre 30 e 75 criações, dependendo do valor do patrocínio disponível. As chamadas ficam de dois a três meses abertas à participação. A equipe responsável pelo portal descobriu que quanto mais tempo no ar, mais pessoas participam. Acredita-se que é importante dar um prazo maior para que os participantes vejam outras criações publicadas no site, se inspirem nelas e realizem melhor seus trabalhos. O principal critério de seleção é a criação pela força de sua mensagem e não por sua qualidade técnica. O portal mantém um acervo permanente com todas as obras audiovisuais acessíveis. Qualquer pessoa também pode votar e ajudar a eleger as melhores criações. Desafios O portal busca criar a cada dia estratégias para estimular os participantes a criarem em conjunto e a se relacionarem de maneira ativa na rede, propondo novas ideias e liderando processos. O maior desafio nesse sentido é tecnológico. É preciso estar sempre buscando aperfeiçoar tecnologicamente a plataforma, desenvolvendo novos instrumentos para atender essas demandas. Resultados A Eletrocooperativa já realizou 14 chamadas criativas com chamadas criativas ao longo um ano e meio de existência. Quinhentos participantes tiveram suas obras audiovisuais selecionadas e ganharam o prêmio de R$ 300,00 (trezentos reais) cada um. A plataforma também tem uma interface na Africa do Sul e se prepara para a inauguração na Holanda. As chamadas também ajudam a manter uma rede ativa de colaboradores do portal, com criação de grupos de trabalho temáticos e conteúdo criativo disponível. Todos os trabalhos postados pelos criadores da rede estão sob a licença Creative Commons. Isso quer dizer está disponível para download e

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para ser usado e remixado em novas criações, desde que não seja usado para fins comerciais e que sejam dados os devidos créditos aos criadores das criações originais. 14. TV OVO no ônibus Realizada por: TV OVO Localização: Santa Maria (RS) Website: <http://www.tvovo.org> Quem relata: Francele Cocco e Neli Mombelli, colaboradoras da TV OVO Objetivos • Manter um programa cultural e de utilidade pública à cidade de Santa Maria. • Ampliar os espaços de visibilidade para a produção audiovisual comunitária da TV OVO, envolvendo públicos de outros bairros da cidade para além das comunidades em que o projeto atua. Descrição O projeto de veiculação do material produzido pelos jovens envolvidos nos processos formativos da TV OVO no transporte coletivo urbano iniciou-se em 2001. Para isso, foi feita uma parceria com uma empresa de ônibus do município, que fez o investimento para instalar em um veículo de sua frota um televisor e todo o equipamento de exibição. A transmissão é realizada em um único ônibus que, ao longo de um mês, é alocado em várias linhas operadas pela empresa. O programa tem aproximadamente meia hora e é exibido de forma contínua de segunda a sexta-feira, cobrindo vários trajetos da cidade. Desafios A estética dos programas precisa ser adaptada ao meio de transporte para fazer frente a tantas interferências que disputam a atenção dos espectadores como os ruídos do trânsito, as paradas contínuas do veículo e os horários de muito movimento de passageiros. Busca-se a utilização de planos estáveis, a edição em corte seco, e a trilha sonora é muito explorada

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como um recurso para pontuar e separar informações. A programação apresenta formas mais imagéticas do que sonoras para criar sentido. Os textos falados são curtos, e os textos escritos, muito utilizados. Resultados O programa atinge cerca de 15 mil pessoas por mês, 180 mil pessoas por ano e já está no ar há nove anos. Esse espaço de exibição propiciou à TV OVO a manutenção de um núcleo permanente de produção, estimulando os jovens que participaram dos processos formativos a continuar produzindo e continuar colaborando na instituição. A sustentabilidade do projeto depende de uma série de parcerias e convênios, por exemplo, com universidades locais. A previsão é que equipamentos (vídeo, conversor e DVD) sejam instalados no segundo semestre de 2010 em, pelo menos, mais cinco ônibus, de forma a exibir a programação em mais linhas do município. 15. Residência criativa do audiovisual Realizada por: Projeto Rede Geração Digitaligada de Webvisão / Fábrica do Futuro Localização: Cataguases (MG) e outras cidades do Brasil Website: <http://www.fabricadofuturo.org.br> Quem relata: César Piva, gestor cultural Objetivo • Desenvolver ambientes colaborativos de formação em projetos de audiovisual comunitário por meio do intercâmbio de experiências entre profissionais e jovens com trajetórias profissionais diversas. Descrição A Residência Criativa do Audiovisual é uma proposta de intercâmbio de formação entre os participantes do Projeto Rede Webvisão com outros profissionais e jovens de projetos audiovisuais comunitários brasileiros. O intercâmbio

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da residência acontece principalmente de duas formas. (1) Técnicos e jovens de projetos de outras regiões do Brasil são convidados a passar um período (três a doze meses) na sede da Fábrica do Futuro na cidade de Cataguases. Durante a residência os convidados promovem oficinas e atuam no cotidiano dos processos como qualquer outro profissional da equipe. O principal objetivo é que o profissional visitante ofereça algum conhecimento inovador para o projeto. (2) A Fábrica do Futuro promove visitas às instituições parceiras e intercâmbio com toda a rede, para que os integrantes do Webvisão vivenciem espaços formativos diferenciados em outras cidades brasileiras. Nesse caso, há o intuito de criar oportunidades de trabalho e formação para os seus jovens também fora da cidade de Cataguases. Um exemplo de tais iniciativas é a montagem de equipes de jovens de vários projetos para produzir vídeos coletivos, participar de coberturas colaborativas de projetos e eventos, bem como para realizar cursos ou oficinas em outra instituição. Em todos os casos, a Fábrica do Futuro arca com os custos de viagem, hospedagem e alimentação ou faz pagamento de bolsas em dinheiro. Desafios O maior desafio é assegurar o registro e a sistematização desse processo de aprendizado, formação e produção, de maneira que se possa garantir o fluxo e o acúmulo do conhecimento adquirido ou gerado na experiência. Resultados O processo de intercâmbio de experiências entre profissionais e jovens de regiões diversas serviu para fortalecer a rede colaborativa do projeto e possibilitou a criação de metodologias alternativas para a formação e a produção audiovisual realizadas pelo projeto. Também gerou uma apropriação diferenciada do portal da Fábrica do Futuro, que é a instituição realizadora do projeto. A plataforma começou a ser utilizada como instrumento de formação, criação e produção, promovendo também

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experiências de intercâmbio formativo virtuais. Ao alterar e deslocar caminhos tradicionais de formação e vivência, as residências provocam profundas transformações na vida pessoal e profissional de seus participantes. 16. Circuito independente de distribuição e exibição Realizada por: Coletivo de Vídeo Popular Localização: São Paulo (SP) Website do projeto: <http://videopopular.wordpress.com> Quem relata: Vanessa Reis, integrante do Coletivo Objetivos • Criar e garantir possibilidades de circulação para o vídeo popular em todas as regiões da cidade de São Paulo. • Promover a articulação entre os coletivos realizadores de audiovisual e os espaços de exibição. • Contribuir para a formação de público crítico. • Manter e ampliar um acervo itinerante de vídeo popular. Descrição O Circuito de Distribuição e Exibição reúne vídeos realizados por coletivos audiovisuais, agrupa-os em DVDs e faz a distribuição desse acervo para centros culturais e outros coletivos exibidores. Os DVDs são autorados e reproduzidos com a marca e a identidade visual do Circuito, e os programas apresentam a ficha técnica do vídeo e o contato do realizador. O Circuito também faz articulação entre os espaços de exibição parceiros para que seja feita a exibição do mesmo vídeo ou programa em diversos locais da cidade ao mesmo tempo, de forma a criar o efeito do vídeo entrando em cartaz. Também são produzidos materiais impressos para a divulgação das exibições. Até o momento, os vídeos que entram no Circuito chegam através da indicação da rede de parceiros do Coletivo do Vídeo Popular. A distribuição também é direcionada a coletivos e projetos que fazem parte dessa rede. Isso não tem impedido, contudo, que pessoas e grupos que não estejam formalmente articulados com o

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Coletivo do Vídeo Popular disponibilizem seus vídeos ou recebam os DVDs selados para a exibição. Desafios Conseguir sistematizar a agenda coletiva de exibições do Circuito, especialmente em material impresso é um desafio. Esse material impresso é significativo porque torna, em alguma medida, visível ou mensurável a abrangência da ação. Outro desafio é fazer a distribuição com uma periodicidade fixa. Em geral, é estabelecido um número de programas a ser produzido em certo período e, quando ficam prontos, são articulados pontos e/ou encontros para distribuição. Resultados Foram reunidos e distribuídos 11 pacotes de programação audiovisual em DVDs e realizadas ao menos 50 exibições com esses programas entre junho e dezembro de 2009, inclusive em outras cidades do Estado de São Paulo. Associados ao Circuito foram publicados dois números da Revista do Vídeo Popular, com textos de participantes de coletivos audiovisuais e parceiros. O Coletivo também realizou a Semana do Vídeo Popular, com mostras de vídeo popular e espaço de reflexão e trocas de experiência sobre o tema. 17. Empreendedores da Difusão Realizada por: Cinema na Comunidade (piloto 2007) / Associação Cultural Kinoforum Localização: São Paulo (SP) Website: <http://www.kinoforum.org/oficinas/piloto.html> Quem relata: Vanessa Reis, integrante da Equipe de Coordenação das Oficinas Kinoforum Objetivo • Proporcionar aos participantes do projeto condições de elaborar, viabilizar e realizar projetos culturais autônomos, especialmente de exibição audiovisual, através da oficina de

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exibição e programação, que inclui um período de prática e experimentação. Descrição A partir da demanda de participantes de oficina audiovisual por continuidade de ações audiovisuais em sua comunidade, foi realizado um projeto piloto com uma oficina de exibição e programação audiovisual voltada para jovens que já haviam participado das Oficinas Kinoforum de Realização Audiovisual. Após a oficina, os participantes realizaram durante meses diversas exibições sob orientação da Kinoforum e com seu apoio, iniciando um processo de parceria e de gradual autonomia para os participantes do projeto. As atribuições dos jovens participantes eram estas: elaborar as exibições, propor locais para elas, organizar a programação de filmes e indicar parcerias possíveis, realizando a pré-produção, a produção, a montagem e a desmontagem de equipamentos. A Kinoforum manteve comunicação constante com os grupos, orientando-os e apoiando suas ações com empréstimo e transporte de equipamentos, contato com realizadores, impressão de material de divulgação, além de ter integrantes da equipe em todas as exibições. Desafios Foi um desafio manter o nível de mobilização e envolvimento dos participantes da experiência a médio prazo, quando as ações aconteciam de forma dispersa nas comunidades. Em uma atividade que exige muita autonomia dos participantes, somente os que tinham real intenção de se dedicar à difusão do audiovisual é que seguiram com as atividades propostas. Resultados O Cinema na Comunidade deu apoio aos grupos já existentes e outros em formação. Desse processo, o resultado mais concreto foi que alguns dos participantes da oficina de exibição e programação audiovisual criaram o núcleo independente S.A.C.I.. Após o período de parceria com a Kinoforum, eles se mantiveram articulados, agregaram novos integrantes e continuaram atuando. Em 2009 o 418


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projeto do S.A.C.I. foi contemplado no Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da prefeitura de São Paulo, para realização de exibições. Um projeto de produção de um curta-metragem do grupo também foi selecionado no edital de produção audiovisual voltado a egressos de oficinas audiovisuais, do Ministério da Cultura. 18. Valorização de iniciativas culturais – Programa VAI Realizada por: Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo Localização: São Paulo (SP) Website: <http://programavai.blogspot.com/>; <http://

www.expansaocultural.sp.gov.br> Quem relata: Gil Marçal, coordenador do Programa VAI Objetivos • Apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões do município de São Paulo desprovidas de recursos e equipamentos culturais. • Estimular a criação, o acesso, a formação e a participação do pequeno produtor e criador no desenvolvimento cultural da cidade. • Promover a inclusão cultural. • Estimular as dinâmicas locais e a criação artística. Descrição O Programa VAI foi criado a partir da Lei n.º 13.540, Decreto n.º 43.823/2003, lei de incentivo que disponibiliza 90% dos recursos para pessoas físicas e 10% a pessoas jurídicas. O programa teve papel histórico no município de São Paulo, ao priorizar o apoio ao segmento jovem, principalmente a coletivos juvenis sem organização formal. O VAI tem orçamento anual e, em 2010, destinou até R$ 20.690,00 por projeto, tendo contemplado 127 propostas. A seleção é feita por uma comissão mista, composta por organizações da sociedade civil 419


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e membros do governo. Os aprovados têm prazo máximo de realização de até oito meses, e o recurso é repassado em até três parcelas, mediante prestação de contas parcial para a liberação da parcela seguinte. São oferecidas anualmente oficinas de elaboração de projetos ou apresentações públicas do edital, com o intuito de estimular a participação. O aspecto da formação é considerado um dos pilares do VAI, e a equipe técnica do programa faz o acompanhamento permanente de cada projeto, dando assessoria técnica aos grupos. Há também propostas de desenvolver ações de formação aos interessados, voltadas ao estímulo da diversificação criativa das propostas. Desafios O Programa segue no esforço de atingir todo o território da cidade e captar a diversidade de ações culturais do município. Muitas vezes, o público não se sente habilitado a elaborar projetos, e há locais da cidade sem equipamentos públicos de cultura, em que o VAI não chegou. Busca-se também ampliar a participação no Programa de jovens com baixos níveis de escolaridade, que estejam no ensino médio ou no fundamental. Hoje se observa que a maior parte dos representantes dos coletivos contemplados está cursando o ensino superior ou já o concluiu. Resultados O Programa conseguiu permanecer mesmo com as mudanças de governo e chegar ao seu sétimo ano de realização. Até a 7ª edição, recebeu 4.735 inscrições e selecionou 644 projetos. Uma de suas características mais importantes é a diversidade de linguagens culturais que os projetos abarcam. Os resultados mais qualitativos do programa ainda não foram devidamente mensurados, mas o que percebemos cotidianamente é que o VAI, como credibilidade aferida pelo poder público, abre portas para que os projetos consigam outros parceiros. Muitos acessam a universidade a partir de sua vivência no programa; outros conseguem trabalho e articulam-se em redes existentes na cidade. Além do público diretamente envolvido nos projetos apoiados, na maior parte dos casos, observamos que os resultados irradiam também para a região do entorno nos quais estão inseridos.

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Os autores

Adriana Fresquet Professora adjunta de Psicologia da Educação e Cinema e Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ. Cocoordenadora da Rede Kino: Rede Latino-americana de Educação, Cinema e Audiovisual. Divide com Hernani Heffner o comando da coleção Cinema e Educação, coedição Booklink-LISE/UFRJ. Ana Carvalho Graduada em Rádio e TV pela UFMG e pós-graduada em Jornalismo: Práticas Contemporâneas pela PUC-Minas. Desde 2001 atua em projetos de formação em audiovisual e na realização e edição de vídeos. Compõe a diretoria da Filmes de Quintal e é uma das curadoras do Forumdoc.bh. É colaboradora do Vídeo nas Aldeias e, recentemente, tornou-se membro do conselho diretor dessa instituição. André Luiz Pereira Colaborador do coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA). Concluiu o SENAI em tornearia mecânica e ainda hoje exerce a profissão de metalúrgico. Foi educador de literatura na antiga FEBEM (hoje Fundação Casa) em São Paulo. É autor do livro de poemas e crônicas Lágrima terra, publicado em 2009, em conjunto com seu amigo de infância Daniel FagundeS pela Edições Toró. André Sena Mestre em Administração pelo PPGA/UnB. Tem especialização em gestão financeira pelo IBMEC/MG e licenciatura em Letras Francesas pela FALE/UFMG. Foi coordenador de empreendedorismo da 421


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ONG Rede Cidadã e coordenador de monitoramento e avaliação do SESCOOP/NA. Participa do grupo de pesquisas em aprendizagem organizacional (UnB). Trabalha no núcleo de gestão da Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura. Clarisse Alvarenga Jornalista (UFMG, 1996) e mestre em Multimeios (Unicamp, 2004). É professora da Escola Guignard (UEMG), onde integra o Laboratório de Pesquisa e Experimentação em Imagem e Som (LAPEIS), e do Instituto de Educação Continuada (PUC Minas). Como realizadora, dirigiu os filmes: Ô, de casa! (2007, 70’), Sertão Mar (2010, 15’) e Excesso de água (em fase de finalização). Clebin Quirino dos Santos Aluno do curso de Educação Artística da Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais. Educador, produtor, articulador e editor do núcleo de produção audiovisual da ONG Associação Imagem Comunitária. Atua em Belo Horizonte em três coletivos juvenis: Produto Tosco, Dinamite e Rap em Fatos. É produtor musical, poeta e artista plástico e teve atuação forte em ações com rádios comunitárias de Belo Horizonte tanto à frente de programas como na coordenação de emissoras. Daniel Fagundes Um dos fundadores do Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), no qual trabalha na proposição de ações socioculturais, prioritariamente através do vídeo e da mídia impressa. Videasta e escritor de formação não acadêmica, fez cursos e oficinas de vídeo em diversas associações e escolas técnicas. Suas maiores influências são oriundas do movimento estudantil, da cultura popular e do movimento punk. Diego Francisco França Soares Colaborador e um dos fundadores do coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA) e aluno de Cinema e Vídeo pela Escola Livre de Santo André (ELCV). A partir de sua experiência com o Engenho Teatral Diego, adentrou no universo audiovisual em uma oficina nas proximidades do seu bairro, o Jardim Rosana. 422


Os autores

Desde então, vem realizando diversos cursos e trabalhos como freelancer na área de vídeo. Eliany Salvatierra Machado Professora do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF. Doutora em Ciência da Comunicação pela USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) e do Núcleo de Estudos Filosóficos da Comunicação (FILOCOM) da Escola de Comunicações e Artes da USP. Fernando Solidade Soares Um dos fundadores e colaboradores do coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA), aluno do curso de Filosofia da Universidade São Camilo e videasta de formação não acadêmica. Foi por dois anos educador social de crianças e jovens em situação de rua na região central de São Paulo. Já teve artigo publicado na revista Filosofia e na revista de Vídeo Popular. Suas influências de base vieram do movimento hip-hop. Giovânia Monique do Carmo Educadora social, articuladora e produtora de processos formativos em rádio e audiovisual da ONG Associação Imagem Comunitária (AIC). Participa de vários projetos socioeducativos do Coletivo Entreface e é produtora de eventos para o Coletivo Produto Tosco. Atuou como mobilizadora do Fórum de Entidades e Movimentos Juvenis da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Foi educadora de diversos programas governamentais voltados para a juventude de escolas públicas como o Programa Escola Aberta e o Programa Escola Integrada. João Alegria Doutor em Educação pela PUC-Rio, membro do Grupo de Pesquisa Educação e Mídia (GRUPEM/CNPq) e professor do Curso de Especialização em Mídia, Tecnologia da Informação e Novas Linguagens Educacionais (PUC-Rio). Trabalhou como autor e diretor de televisão junto às principais emissoras do País. É gerente de Programação, Jornalismo e Engenharia do Canal Futura, da Fundação Roberto Marinho. 423


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Juliana Leonel Jornalista, com Máster Europeu em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Autônoma de Madrid e pós-graduação no curso Imagens e Culturas Midiáticas pela UFMG. É sócio-fundadora da ONG Associação Imagem Comunitária (AIC), onde foi diretora de projetos. Foi professora universitária, diretora de programas e repórter em emissoras de televisão. Trabalhou como assistente de direção e produtora de filmes e comerciais. Luis Fernando Santoro Doutor em Ciência da Comunicação e professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Diretor e produtor de programas de TV e vídeo da Memória Magnética Comunicações e consultor do Instituto Nacional de Telecomunicações. Foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Vídeo Popular e da TV dos Trabalhadores. Moira Toledo Doutora em Cinema pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP e bacharel em Cinema pela FAAP (SP). Atuou como educadora e colaboradora pedagógica em ações em comunicação comunitária como o Projeto Perifa, as Oficinas Kinoforum, a Casa do Zezinho e a Academia Internacional de Cinema. Foi coordenadora educacional do Instituto Criar, das Oficinas de Documentário do Centro de Cultura Judaica, da Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André e das Oficinas Tela Brasil. Paula Guimarães Simões Doutoranda em Comunicação Social pela UFMG e mestre em Comunicação pela mesma instituição. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (GRIS). Paulo Emilio de Castro Andrade Jornalista, mestre em Educação (UFMG) e especialista em Educação, Comunicação e Tecnologia (UEMG). Foi pesquisador do Observatório da Juventude da UFMG. Atuou como educador e coordenador de projetos da ONG Humbiumbi – Arte, Cultura e 424


Os autores

Educação entre 1999 e 2008. Faz parte da equipe da Associação Imagem Comunitária, como coordenador da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia de Belo Horizonte. Pedro Aspahan Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Tem especialização em Imagens e Culturas Midiáticas também pela UFMG. É membro da Associação Imagem Comunitária e da Associação Filmes de Quintal. Atuou como técnico de som e montador em inúmeros filmes do cinema mineiro, entre documentários e ficções. É professor de Design Sonoro da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia de Belo Horizonte. Rafaela Lima Jornalista e mestre em Ciência da Informação pela UFMG. Coordenou projetos de comunicação comunitária da UFMG e é sócio-fundadora e diretora institucional da ONG Associação Imagem Comunitária (AIC). Atua como professora dos cursos de pós-graduação em Gestão Cultural (EAD Senac) e de Gestão de Processos e Práticas de Comunicação para Sustentabilidade (IEC-PUC Minas). É organizadora do livro Mídias comunitárias, juventude e cidadania, da coleção Comunicação e Mobilização Social (Autêntica, 2007). Ricardo Fabrino Mendonça Professor adjunto do Departamento de Ciência Política da UFMG e doutor em Comunicação pela mesma instituição. É integrante do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME/UFMG) e da Associação Imagem Comunitária (AIC). Suas publicações e seus interesses de pesquisa se voltam para a área de Comunicação e Política, com enfoque em teoria democrática, teoria do reconhecimento e a questão do acesso público à comunicação. Rose Satiko Gitirana Hikiji Professora do Departamento de Antropologia da USP, vicecoordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA), membro do GRAVI (Grupo de Antropologia Visual) e do NAPEDRA (Núcleo de Antropologia, Performance 425


Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

e Drama) da mesma instituição. É autora do livro A música e o risco (Edusp/Fapesp, 2006) e coorganizadora dos livros Escrituras da imagem (Edusp, 2004), Imagem-Conhecimento (Papirus, 2009) e da coleção Sexta-Feira - Antropologia, Artes e Humanidades. É realizadora de vídeos etnográficos, entre eles, Cinema de quebrada (LISA, 2008), Prelúdio (LISA, 2003) e Microfone, senhora (LISA, 2003). Valter Filé Professor adjunto da UFRRJ Instituto Multidisciplinar – Campus Nova Iguaçu (RJ). Integra o grupo de pesquisas Educação, Sociedade do Conhecimento e Conexões Culturais da instituição. Foi um dos realizadores da TV Maxambomba (TV de rua que atuou junto aos moradores da Baixada Fluminense - escolas, movimentos sociais e culturais – na perspectiva de experimentar novas formas de comunicação comunitária) da TV Pinel (experiência de realização televisiva com usuários do hospital psiquiátrico Philippe Pinel). Vanice Deise Uma das criadoras e coordenadoras do Núcleo de Produção Independente Arroz Feijão Cinema e Vídeo. Cursa Pedagogia no Instituto Sumaré de Educação Superior. Tem experiências como editora de vídeo, produtora cultural e arte-educadora. Atualmente está à frente do Espaço Cultural Olhe, situado em Taipas e inaugurado em março de 2010, onde desenvolve atividades sociais e formativas. Wilq Vicente Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, designer e videomaker. Integra o Coletivo de Vídeo Popular São Paulo e foi coautor do projeto A Fantástica Fábrica de Cinema (FABICINE). Participou como curador e produtor das mostras Cinema de Quebrada (Centro Cultural São Paulo), Carta Branca ao Submarino Vermelho (19° Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo) e II Semana do Vídeo Popular (Galeria Olido).

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Outros títulos da coleção “Comunicação e Mobilização Social”

Comunicação e estratégias de mobilização social Autor: Márcio Simeone Henriques O crescimento dos movimentos sociais lançou novos questionamentos quanto à importância da comunicação na permanência e solidificação desses. Os movimentos sociais, diante deste espaço midiatizado, procuraram transformar as lutas por reconhecimento em lutas por visibilidade. Os textos que constituem este livro discorrem sobre a necessidade de pensar os meios de comunicação de massa não como atividade fim, mas, sim, como atividade meio que explora o potencial educativo gerado pela participação ativa do cidadão em todo o processo. Entre o espetáculo, a festa e a argumentação: Mídia, comunicação estratégica e mobilização social Autor: Rennan Mafra Visibilidade, convocação, participação, comunicação – questões essas que instigam e permeiam os processos de mobilização social. Em que medida ações espetaculares se inserem nesses momentos? Quais as possibilidades tem a festa com vistas ao engajamento coletivo? Como os sujeitos são envolvidos, nos processos mobilizadores, em momentos argumentativos? Não por acaso tais questões representam o tema central deste livro, discutidas aqui particularmente a partir da relação entre mídia, comunicação estratégica e mobilização social. O autor propõe pensar como dimensões de espetáculo, festa e argumentação, enquanto processos comunicativos, instauram relações e modalidades de participação e interação com os sujeitos, em

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Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

processos mobilizadores. Debruçando-se sobre a relação entre essas dimensões e a convocação política dos sujeitos para a deliberação pública das questões que afetam a todos, o autor enriquece a reflexão sobre a relação entre a comunicação e a mobilização social, no cenário democrático contemporâneo. Mídias comunitárias, juventude e cidadania Autora: Rafaela Lima Pensar a democratização dos meios de comunicação fica mais fácil quando conhecemos o trabalho desenvolvido pela Associação Imagem Comunitária (AIC) em seu projeto Rede Jovem de Cidadania. No processo de tessitura coletiva da Rede, a ordem é dar visibilidade às mais diversas vozes e olhares. Ao possibilitar que a juventude tenha acesso a todo o processo de produção midiática em meios como rádio, televisão, mídia impressa e internet, a entidade apresenta novos modos de lidar com a comunicação. Propõe metodologias para que as práticas de mobilização, debate, construção de conhecimento, criação e reflexão sobre a mídia integrem, de forma indissociável, um processo amplo de redimensionamento da relação entre os sujeitos, os grupos e os meios de comunicação. Neste livro, a reconhecida trajetória da AIC é apresentada em artigos que reúnem reflexões e análises sobre os critérios que a orientam. E, como forma de enriquecer a leitura, o diálogo entre comunicação, educação e cidadania encontra força em textos que sinalizam a importância da produção midiática ser descentralizada, plural, em defesa do direito de expressão e campo fértil para criatividade e inovação. Se pelos meios de comunicação a sociedade olha para si e para o mundo, nada mais justo do que essa iniciativa desafiante e necessária. Mobilização social: um modo de construir a democracia e a participação Autores: Nísia Maria Duarte Furquim Werneck , José Bernardo Toro “O horizonte ético é o que dá sentido a um processo de mobilização. Um país explicita seu horizonte ético, seu projeto de nação, por meio da sua Constituição. Nela, ele define seu

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Outros títulos da coleção

futuro, orienta suas escolhas. Quanto mais participativo tiver sido o processo de sua elaboração, mais essas escolhas refletem a vontade de todos e serão por todos compartilhadas. No artigo primeiro da nossa Constituição, está consagrada a nossa escolha pela democracia, tendo como fundamentos, entre outros, a cidadania e a dignidade humana. É necessário um entendimento preciso sobre o que significam essas opções.” Rádios comunitárias: mobilização social e cidadania na reconfiguração da esfera pública Autora: Lílian Mourão Bahia “As rádios comunitárias contribuem, de fato, para a reconfiguração democrática da esfera pública nas comunidades onde atuam? Quais os entraves da atuação das emissoras radiofônicas de alcance comunitário para agirem como reconfiguradoras das esferas públicas locais? Em que medida as rádios comunitárias contribuem para a formação e a fixação das identidades locais, como também para o exercício da cidadania e do reconhecimento social das populações locais? Quais os diferentes sentidos que os atores e movimentos sociais ligados às experiências das rádios comunitárias atribuem à prática da emissora comunitária?” Essas são algumas das questões elucidadas neste livro, que, além de caracterizar os recursos técnicos e humanos disponíveis nas rádios pesquisadas, investigou de que forma as comunidades locais participam e interagem com as programações e até que ponto essas emissoras comunitárias inovam e rompem, de fato, com o modelo radiofônico praticado pelas emissoras comerciais. Visões de futuro: responsabilidade compartilhada e mobilização social Autores: Márcio Simeone Henriques, Nísia Maria Duarte Furquim Werneck Esta coletânea traz exemplos de projetos mobilizadores que trabalham com uma visão de comunicação estratégica. Nos dois primeiros casos, empresas assumem a tarefa de estimular as comunidades, exercendo sua responsabilidade social, e apontam para uma nova realidade de relacionamento e, por isso

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Coleção “Comunicação e Mobilização Social”

mesmo, para as novas atitudes que precisam adotar frente aos mais diversos públicos. Como os próprios casos demonstram, este campo de interlocução não é algo construído sem conflitos, dilemas e contradições. Assim, as próprias estratégias e técnicas de comunicação precisam ser vistas como algo muito mais aberto e bem menos determinado, dado o caráter dinâmico dessas ações. Cremos que os casos aqui relatados podem estimular a ampliação das reflexões sobre a comunicação em processos de mobilização social e, mais além, ilustrar os desafios de comunicação com que a sociedade democrática se depara.

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Este livro foi composto com tipografia Minion Pro e impresso em papel

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