Revista entrelinhas da kaza 2015 single

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Especial A LÍRICA DESGARRADA DE PORT: O CLAMOR E A LOUCURA DE UM DEUS Felipe Garcia de Medeiros

Autor Convidado O QUE (TE) VEM ANTES? Jeferson Ferreira

Conto O FIO Betzaida Mata

Nacadema, de Juan Toro Ame. Se não der SONHE!, de Lucas Walker Na pele dos meninos, de Márcio ABC Entrevista com Scan


Conselho Editorial: Evandro Rhoden, Osvaldo Piva, Claudia Aguiyrre | Editora: Claudia Aguiyrre | Direção de Arte e Projeto Gráfico: Osvaldo Piva | Colaboradores: Beto Guilger, Betzaida Mata, Cláudia Naoum, Cláudia Reis, Elaine Milmann, Felipe Garcia de Medeiros, Jeferson Ferreira, Juan Toro, Lucas Walker, Luciano Garcez, Marcelo Conter, Márcio ABC, Marco Aurélio de Souza, Mariana L., Marina Tranquilin, Pedro Port, VJ Scan | Editora Kazuá: Equipe Editorial: Claudia Aguiyrre, Evandro Rhoden, Fernando Torres de Andrade, Roberta Oliveira | Diretor de Arte: Osvaldo Piva | Artistas Convidados da Kaza: Beto Guilger, VJ Scan Zungueira da Kazuá Divulgadora e Distribuidora Revista Entrelinhas da Kaza é uma revista bimensal da Editora Kazuá. Esta publicação não se responsabiliza por ideias e conceitos emitidos em artigos ou matérias assinadas, que expressam apenas o pensamento dos autores, não representando necessariamente a opinião da revista.


A Revista Literária Entrelinhas da Kaza traz a interessante reflexão do autor Jeferson Ferreira sobre o papel do prefácio. O escritor alerta para possíveis incertezas a respeito das funções que já foram atribuídas a este texto: “... tem sido utilizado com os mais variados intentos: breve biografia do autor e relação desta com a obra, biografia do autor, ligada ao tempo em que este viveu e relação com a obra, promoção do autor e da obra a partir do destaque de alguns pontos principais, explicação da estrutura organizacional do texto, seja literário ou científico... E por aí vai”. Ferreira, no entanto, transpõe às possíveis definições do termo e defende – sob o princípio que chama de “subjetividade radical” – a ideia de que o prefácio é um espaço de encontro entre fantasmas: os do autor, os do leitor e os do prefaciador. Fantasmas dos desdobramentos da própria escrita, reflexos de inspirações que se transmutaram em obras, de intenções que se transformaram ao alcançar as palavras. A criação poética de Felipe Garcia de Medeiros é reconhecidamente desregrada. Dizem dele que respira e só fala em poesia. Leitor atento e estudioso do gênero, o poeta revela zelo pela expressão artística e verbal do poema. É assim, como criador, que Felipe Garcia de Medeiros nos convida a percorrer os caminhos, as cenas e as sensações evocados por Pedro Port em seu livro-poema Sírinx – o monólogo de um imortal. Cada gesto poético de Pedro Port captura sua atenção. Na busca de uma fruição ampla da intensidade

do poema, Garcia de Medeiros celebra, como poeta, a obra de outro poeta, e nos brinda com seu deleite traduzido em A LÍRICA DESGARRADA DE PORT: O CLAMOR E A LOUCURA DE UM DEUS: “O monólogo de um imortal persegue a natureza íntima do homem. Ao projetar as fraquezas e a ruína do homem em um deus, Port pretende esboçar, em Sírinx – o monólogo de um imortal, o caminho onde o divino se humaniza através da loucura e do desgarramento. A incerteza diante dos eventos complexos da vida eleva o clamor do deus. Tentar o segredo é uma das maiores façanhas deste livro. Aquele segredo que os amantes tentam, de todas as maneiras, em vão, arrancar do outro. Desse modo, como o silêncio que dobra a palavra até o impossível, Port chega à nervura do poético. O seu discurso literário assanha a realidade ao trazer a imanência à profundidade do poema”. A Galeria da Kaza desta edição é com Vj Scan, artista e colaborador frequente na Direção de Arte da Kazuá, na qual cria projetos gráficos e capas de obras lançadas pela Editora. Neste encontro é possível perceber a dimensão de sua capacidade artística ao lidar com formas estáticas ou em movimento, com técnicas e suportes variados. A autora Betzaida Mata assina o conto inédito O Fio, parte de uma coletânea ainda em fase de preparação. A escritora vasculha as sensações de uma mulher, “criada para atender e satisfazer os outros, sempre voltada para as necessidades externas e perdida da própria existência”, na tenta-

tiva do resgate de si mesma. Nacadema é o poema selecionado para esta edição. Juan Toro, autor de obra homónima, busca a partir da poética as verdades nas fronteiras do universo acadêmico e reúne versos para fazê-lo. Destaque para o romance Na pele dos meninos do escritor e jornalista Márcio ABC, que documenta parte da história recente do país como pano de fundo para narrativa sobre um grupo de amigos e seus sonhos de adolescentes: “Entretanto, um silencioso acaso os sugará aos poucos para uma sequência de descobertas desconcertantes e doloridas que mudarão suas vidas de modo dramático”. Sobre os autores acadêmicos destacamos a entrevista de Elaine Milmann, educadora especial, psicopedagoga, mestre e doutora em Educação, sobre seu livro Poética do Letramento, resultado de sua tese de doutorado e de sua trajetória de investigação que relaciona escrita, corpo e linguagem, nas possibilidades de letramento de sujeitos em posição singular de linguagem. Destaque também para o interessante livro Imagem-Música em Vídeos para Web, de Marcelo Conter, no qual o autor apresenta um estudo sobre a música e o audiovisual no contexto da Web. A obra amplia a visão sobre a reutilização de vídeos da Internet, fenômeno que, para o autor, cria músicas a partir desse imenso banco de dados. A Revista Literária Entrelinhas da Kaza espera contribuir com o fazer poético e literário a partir destas leituras. Até a próxima edição!


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O que (te) vem antes? Jeferson Ferreira

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Scan

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Ame. Se não der Sonhe! de Lucas Walker

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Nacadema de Juan Toro

Na pele dos meninos, de Márcio ABC Livro sobre o despertar da adolescência revisita ano emblemático da ditadura

Viver e Morre de Medo de Cláudia Naoum


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A LÍRICA DESGARRADA DE PORT: O CLAMOR E A LOUCURA DE UM DEUS por Felipe Garcia de Medeiros, poeta

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Imagem-Música em Vídeos Para Web, de Marcelo Bergamin Conter

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Elaine Milmann

O Fio Betzaida Mata

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O que (te) vem antes? Jeferson Ferreira

O texto na cabeça explode em nervuras, argumentos, possíveis inícios. Mas nada sai. Tortura; texto é sempre demanda. Demanda particular e também de outro, para outro. Ninguém escreve para deixar embaixo da cama. Porém, masoquismo; há quem goze no desafio dessa demanda. *** E eu continuo. *** Minha demanda hoje é aparentemente simples: dar uma definição de prefácio. E apenas aparentemente, pois não se trata, afinal, em ímpetos dicionarizantes, de fazer com o dito termo um exercício de perífrase. Trata-se, antes, de uma minha (im)postura. *** Adendo: prefácio não é introdução. Introdução é parte integrante do texto, pois inicia o leitor em conceitos, visões de mundo e parâmetros organizacionais fundamentais ao entendimento de uma obra. A introdução é o começo da viagem. *** Vida não tem nem introdução, nem prefácio, né... Ô, coisa difícil... *** Prefácio vem do latim prae (antes) e factio (dito). Pura e simplesmente: o que é dito antes. A larga definição muito explica o fato de que na cultura ocidental (não sei em outras), o prefácio tem sido utilizado com os mais variados intentos: breve biografia do autor e relação desta com a obra, biografia do autor, ligada ao tempo em que este viveu e relação com a obra, promoção do autor e da obra a partir do destaque de alguns pontos principais, explicação da estrutura organizacional do texto, seja literário ou científico... E por aí vai. 6


*** No lusco-fusco das intenções, uma palavra se sobressai: explicação. Lembro aqui os dizeres de minha primeira professora de literatura na faculdade: “Vocês leem crítica. Vocês leem comentários. Vocês leem prefácios. Vocês leem dissertações, teses. Mas vocês não leem o livro! Leiam o texto primeiro. Primeiro o texto!” *** Preferir a explicação ao texto bruto, cru, é negar a viagem. Ou, pelo menos, topar a viagem, mas com um guia. *** Parto de um princípio que chamo de subjetividade radical. Por esse princípio, ninguém lê um texto. Nós lemos fantasmas nossos que ali nos aparecem. O contrário disso é supor que há leituras “certas”, fechadas. É matar a literatura (ou mesmo a filosofia, a psicanálise, etc.), enquadrando-a em fórmulas descritivas, receitas de bolo que fazem pose de verdades intelectuais inabaláveis. *** Pegue um livro qualquer. Há para ele leituras marxistas, liberais, estruturais, hippies... E a sua? Qual é? *** Que diabo é isso de fantasma? É bem simples (ou eu simplifico demais). Lemos, vemos ou escutamos o que nos toca. Outro dia, num candomblé, uma festa de Exu, escutei a seguinte música: “... Maria Mulambo, peito de aço, coração de sabiá.”

Mais tarde, um amigo, que na festa também estava, fez um comentário sobre a beleza da música. A música o tocou, pois, segundo ele, demonstraria o “poder” da entidade: além de ela ter o peito de aço, tinha o coração de sabiá, pequeno, difícil de pegar e atingir. Ou seja: o coração dela era inacessível, praticamente. Retorqui. Também achei a música linda, mas por motivo quase que totalmente oposto: pensei na oposição Força x Fragilidade. A entidade tinha um peito de aço, inexpugnável, e também um coração de sabiá. Passada a camada da dureza, da brutalidade, da força, era possível encontrar delicadeza, encanto, suavidade. *** Bom lembrar: uma leitura não exclui a outra. *** 7


Prefácio, para mim, é mediação. E, levando em conta o explicitado até aqui, o autor do prefácio vai lançar os fantasmas dele sobre o leitor, sem que este tenha a chance de ter um contato primeiro com o texto. Sem que o leitor tenha a possibilidade de deixar os próprios fantasmas fluírem com o correr da obra. Quase uma impossibilidade de defesa. Os fantasmas do autor do prefácio vão se interpor aos do leitor, quando seria mais interessante um diálogo pós-leitura, um encontro de fantasmas. *** Prefácio, portanto, acaba por ter um caráter “formador”. Aquele que escreve não deseja apenas informar. A seleção e organização do conteúdo, por exemplo, já denotam tendências de leitura. Já viciam a experiência do leitor; que, a meu ver, é melhor quanto mais “nua” for. *** Importante: eu não sou do partido dos sem ideologia, muito menos creio que sejam possíveis escritas e leituras “brancas”, ausentes de um ponto de vista, ou posicionamento existencial. Apenas prefiro ter um contato “original” com um texto; qualquer texto. Você aí, leitor, pode preferir outro caminho. Porém, creio, sempre é bom não ser inocente. E talvez ao menos para atiçar esta reflexão este texto sirva. *** Gosto de dizer que há dois tipos de prefácios: os prefácios formadores, e os prefácios-ecos. O prefácio formador está na categoria dos que criticamos até então: o fantasma do autor se impõe e, por vezes, até toma conta de outras leituras. Grande exemplo disso, e um exemplo em grande parte positivo (sim, algo pode ser criticável, mas ter quês positivos), é o Prefácio de Cromwell. Cromwell é uma peça de Victor Hugo em que, no prefácio, o escritor francês toma o partido do drama romântico, fundado na liberdade de forma e inspiração, contra o teatro clássico, já desconectado das fantasias e ambições estéticas do Século XIX. Digo que o exemplo é em parte positivo, pois o dito prefácio é estudado até hoje como um texto crítico fundador do drama romântico e da poética de Victor Hugo. Contudo... A peça mesmo jamais foi encenada decentemente e, à vera, não faz falta. A racionalização e a pura intelecção (canais norteadores de uma vontade formadora) prevaleceram sobre a experiência literária. Didatismo nunca casa bem com arte. *** Por que a imagem do eco? Eco é som que navega no espaço, sem forma ou alcance definido. Domina o ambiente, o preenche, mas sem um corpo. É uma alma que grita e se impõe e se expande, vibra e tremula e faz vibrar. Não é corpo, mas o corpo sente. Eco é o resta no leitor ao fim da leitura de um livro ou de um poema. *** Prefácio-eco é o que dribla o intuito formador, é o que trabalha como uma primeira caixa de res8


sonância, e não como um acadêmico, um moralizador ou um iconoclasta – seres diferentes, mas todos no campo semântico da didática. É aquele que assume a literatura (ou a leitura, no geral) como uma viagem rumo a uma lacuna. A linguagem é não mais do que uma tentativa débil de tentar traçar retornos (contornos?), ou ao menos pontos de contato, entre o homem e sua sensação de mundo. A linguagem é o signo máximo de uma lacuna (saudade?) que não podemos preencher. Lembro aqui do poema Ao Leitor, do livro Flores do Mal, de Charles Baudelaire, que assim termina (tradução de Ivan Junqueira): “É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção, Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado. Tu conheces, leitor, o monstro delicado – Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”

Interessante como, no mesmo verso, o leitor é chamado de hipócrita e, logo após, alçado à condição de irmão. O sujeito do poema, com tal artifício, desafia por meio da ofensa, mas também institui cumplicidade. Somos todos hipócritas e, com arte, ideologia ou entorpecimento mental, tentamos enganar o Tédio e o Tempo; esse monstro de duas cabeças que, com seu peso, nos faz sentir o inevitável fardo do nada. Eloquente solução a de Baudelaire. O poema inaugura imagens e arranjos estéticos presentes no livro, mas sem adotar a facilidade de um discurso direto e professoral. Consciente da novidade de seu livro, e firme no ideal de arte como sugestão, jamais didática ou formadora, mediante um poema, o autor recusa-se a formar seu leitor, antes o convida para a viagem. Se o leitor vai gostar ou não da tal viagem, como a experiência vai ecoar, são outros quinhentos. *** Vida não tem introdução. Nem prefácio. Mas a gente vive.

Jeferson Ferreira sempre foi um leitor dedicado e um observador atento do mundo que o cercava, procurando interpretá-lo e senti-lo de modo profundo. Essa afeição por interpretar e entender a realidade que o cercava, tanto quanto a paixão por vê-la de outros ambientes, outros tempos e outros olhares, o levou, como estudioso apaixonado e incansável, ao curso de Literatura na Universidade de São Paulo, instituição pela qual se consagrou Mestre em Literatura Francesa. Jeferson Ferreira é autor do livro Nó, lançado recentemente pela Editora Kazuá. O autor define a criação poética da obra: “A cidade corta o indivíduo, mas o indivíduo também corta a cidade (fazendo-se parte dela). E este sujeito, por vezes, se retrai, se internaliza – por sobrevivência, a cidade nos obriga a uma espécie de greve com o mundo. A paisagem externa foi se confundindo com uma subjetivação autoimposta, que se sobressaiu, formando verdadeiras paisagens internas. Dessa forma, o que era para ser uma viagem pela vida citadina acabou se transformando em uma viagem pelo sujeito, seus demônios e temores. Acabou se transformando em uma viagem sobre o quão difícil é a comunicação desse sujeito com o mundo. O quão apartados estamos do mundo e uns dos outros. A impossibilidade da comunicação humana.” 9


Livro sobre o despertar da adolescência revisita ano emblemático da ditadura Romance de múltiplas vozes traz grupo de garotos fascinados pelos Rolling Stones em meio às turbulências da amizade, do sexo e da ditadura militar Quando 1976 chegou, o Brasil vivia um dos períodos mais conturbados de sua história. O então presidente da República, general Ernesto Geisel, prometia levar adiante a abertura política, mas os crimes brutais não cessavam. Fazia poucos meses que o jornalista Vladimir Herzog fora executado nas dependências do exército brasileiro. E antes que janeiro acabasse, a ditadura faria ainda mais uma morte, entre tantas outras que só seriam descobertas mais tarde: a do operário Manoel Fiel Filho, então o último mártir dos anos de chumbo. Mas esse era apenas o começo daquele ano. Até dezembro, haveria novos fatos marcantes de uma época sombria para o país, como as mortes suspeitas dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart. Bombas na OAB e ABI, sequestro de bispo, massacre de militantes comunistas clandestinos, perseguições, protestos e mudanças no próprio comando do exército ainda completariam o quadro dantesco pintado em 1976. É nesse ambiente, em meio às sombras da ditadura militar, que o jornalista Márcio ABC, 10

50 anos, finca a história de seu quarto romance: Na pele dos meninos (Editora Kazuá, 268 páginas), obra que mergulha num Brasil amordaçado e ferido a partir do olhar de garotos que até então nada compreendiam sobre a época que começavam a trilhar. “Fascinados pelos Rolling Stones”, diz a sinopse, “uma garota e cinco meninos vivem num mundo de fantasias inocentes e despretensiosas. Enquanto tentam superar os obstáculos escolares, isolam-se em seu pequeno paraíso afastado de tudo e de todos para tocar e sonhar com um mundo utópico no qual planejam levar a boa vida que imaginam ser a de seus ídolos. Entretanto, um silencioso acaso os sugará aos poucos para uma sequência de acontecimentos que mudarão suas vidas de modo dramático”. Para a crítica literária e doutora em literatura brasileira, Lúcia Facco, responsável pela análise do livro antes que ele fosse avaliado pela Editora Kazuá, trata-se de uma obra “sofisticada e emocionante”. “É tocante sem ser piegas”, diz ela. “E, o mais importante, toca tão profundamente o lei-

tor, de uma maneira tão intensa, que o faz perceber a capacidade que o ser humano tem de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”. O escritor, poeta e professor de história Vitor Biasoli, autor do prefácio, identifica o livro como “ousado e corajoso”. Para ele, a trama “envolvente, sedutora e escandalosa” é levada ao leitor numa linguagem “desabusada e crua”, o que o torna ainda mais atraente. “É um romance capaz de jogar o leitor na lona”, avalia. Glossário - Na pele dos meninos ajuda a compreender o Brasil da ditadura militar sob a visão, muitas vezes inocente, dos personagens. O livro é recheado de palavras muito usadas na época, além de citações a respeito do universo social e político dos anos 1970. Para facilitar a vida dos leitores mais jovens, o romance traz, no final, um “bônus” especial: um glossário em que o autor resume, no mesmo linguajar desabusado do texto, algumas gírias, acontecimentos políticos, livros, filmes e detalhes das canções, a maioria dos Rolling Stones, citadas na obra, como nomes, álbuns e anos de lançamento.


Sinopse No ano emblemático de 1976, em meio às sombras da ditadura militar, um grupo de amigos cursa a oitava série ginasial ao mesmo tempo em que sonha com a formação de uma banda. Fascinados pelos Rolling Stones, uma garota e cinco meninos vivem num mundo de fantasias inocentes e despretensiosas. Enquanto tentam superar os obstáculos escolares, isolam-se em seu pequeno paraíso afastado de tudo e de todos para tocar e sonhar com um mundo utópico no qual planejam levar a boa vida que imaginam ser a de seus ídolos. Entretanto, um silencioso acaso os sugará aos poucos para uma sequência de acontecimentos que mudará suas vidas de modo dramático. Começam a fazer descobertas desconcertantes e doloridas, principalmente para garotos de catorze ou quinze anos. Entre os primeiros prazeres do sexo, as turbulências da amizade adolescente, os amores e as tragédias, os amigos são atraídos para um labirinto de perguntas cujas respostas sempre parecem estar além de suas possibilidades – metáfora de uma realidade política nacional que levará os protagonistas do romance a jamais poderem se despir completamente de sua pele de meninos, transformando-os em adultos marcados por um passado do qual não poderão se livrar. Contada por múltiplos narradores, é também a história real de um violento período de traumas e rupturas do nosso país. Mas, acima de tudo, um mergulho naquela zona vaga e nebulosa onde se situa a superação humana. Sobre o autor Márcio ABC nasceu em Lagoa Seca, bairro rural de Cafelândia (SP), em 1964. É jornalista formado em Bauru (SP), onde mora. Trabalhou em praticamente todos os gêneros da profissão: jornal, revista, rádio, televisão e internet, entre outros. Também deu aulas de jornalismo na Unesp-Bauru e no Imes-Catanduva (SP). Na pele dos meninos é seu quarto romance. Escreveu “Pater” (2012), “Desrumo” (2010) e “Parabala” (2002). 11


VJ Scan Giuliano Scandiuzzi ou simplesmente VJ Scan, como assina artisticamente, participou de diversos projetos com suas criações em artes visuais. Os suportes e técnicas são diversos: de videomapping - técnica que consiste na projeção de vídeo e efeitos visuais em superfícies ou objetos de grandes dimensões, tais como fachadas de edifícios-, a videoinstalações interativas. Como designer gráfico colabora com a Editora Kazuá em diferentes projetos sempre relacionados com a área de Direção de Arte. Scan avalia que qualquer mensagem a ser divulgada, independente da tecnologia, da linguagem, do suporte ou da técnica empregada deve ter com o objetivo transformar velhos paradigmas em novos conceitos. Declara que “Esclarecimento de ideias, aprofundamento cultural, conscientização ecológica e respeito às diferenças são premissas para que velhos estigmas e preconceitos sejam apagados definitivamente do pensamento e das atitudes humanas”. Confira suas inspirações e influências artísticas na entrevista concedida pelo artista à Revista Entrelinhas da Kaza. EK - Quais são as fontes de inspiração e áreas do conhecimento relacionadas com suas criações? Scan - Minha relação com o trabalho artístico é intensa, pois minha experiência é bem ampla em diversas áreas da arte. Como exemplo, a minha passagem pela montagem de três Bienais Internacionais de São Paulo, que permitiu que eu conhecesse pessoalmente diversos artistas renomados de todo o mundo. Esta experiência me qualificou não só pela troca de ideias e pela convivência, mas também tecnicamente, através da montagem de instalações e obras com nível de dificuldade elevado. Estas habilidades constituem aquisições vantajosas, que, somadas ao estudo teórico da arte e arquitetura dentro da Universidade, me possibilitou escolher e encontrar minhas convicções enquanto artista visual. Depois disso, enquanto fundador e membro do coletivo Bijari, tive a oportunidade de participar de diversas exposições nacionais e internacionais, inclusive de Bienais, desta vez como artista. Sob outra ótica, conheci e convivi com artistas renomados tanto nacionais quanto internacionais legitimando a discussão e evoluindo sobre meu próprio trabalho dentro deste grupo, o que agre12

gou ainda mais consciência e aprendizado. EK - Quando você começa a se familiarizar com o universo da criação audiovisual? Foi a partir de sua faculdade ou já havia um interesse ou conhecimento anterior? Scan - Durante o período de USP, mesmo estudando, comecei a trabalhar com cinema, fui assistente do Diretor de Arte Cássio Amarante por cinco anos, criando e desenhando cenários para diversos filmes publicitários e também videoclipes, e filmes de longa metragem. O convívio em sets de filmagem me despertou um desejo intenso de aprender e fazer uma parte que eu não fazia: a câmera. Quando estava em filmagens, meu trabalho era o cenário, bem como tudo que o envolvia, mas, minha atenção estava voltada à luz, à câmera e à imagem final que era produzida. Foi quando comprei minha primeira câmera de vídeo. Com ela, já no final do meu percurso como estudante de Arquitetura e Urbanismo, resolvi que meu trabalho final de graduação seria uma videoinstalação. Com a câmera fiquei seis meses rodando por São Paulo, captando imagens em diversas formas de transporte, carro, ônibus, trem, bicicleta, skate,


helicópero... A instalação teve o nome de Cidade Cenário, e discutia a relação do homem dentro desta cidade. Fiz um paralelo com o trabalho de cenografia e direção de arte, entendendo o visual da cidade como um eterno cenário de nossas vidas. Muitas vezes passamos por lugares comuns, edifícios, casas, mas na maioria das vezes não conhecemos aqueles locais por dentro. Isto me fez pensar que as fachadas não são nada além de um cenário, pois, na maioria das vezes não entraremos naquele determinado prédio. Esta instalação audiovisual teve uma edição complexa, utilizando áudios esquisitos, como sons rurais dentro da cidade, para expressar um descontentamento, uma inquietude, uma reflexão sobre como estamos vivendo dentro da urbanidade. Após a graduação, o trabalho ainda foi selecionado para o IX Salão de Arte Contemporânea Paulista, com exposição realizada na Estação Júlio Prestes, em 2000. Em 2001 o mesmo trabalho também participou da exposição coletiva “São Paulo Turística”, realizada no MAM. EK - Qual é a sua definição de videoarte? Scan - A videoarte para mim é a somatória de três elementos: conceito, técnica e forma. Porém, sempre fui mais adepto da realização em primeiro lugar, sou um realizador. Claro que penso e discuto conceitos e teorias, mas a prática é que me ensinou a fazer de fato. Experimentar sem teorizar é muito importante, pois no processo as descobertas são tantas que podem modificar qualquer conceito. Na arte é preciso estar aberto, entender e dialogar com as divergências. Meu sonho é conseguir um resultado que não precise de um texto para justificá-lo, onde a simples visualização já fala por si, e, em cada pessoa o entendimento é único. A obra aberta para reflexão, abrangendo pontos de vistas distintos, cria um universo de interpretações possíveis, e cada uma delas é que trará o verdadeiro significado de uma obra de arte, o verdadeiro dentro de cada indivíduo, pois não acredito em verdade absoluta e única. EK - Quais são as influências que encontra em sua criação audiovisual? Scan - Nos estudos universitários, eu foquei atenção na história da arte. Aprendi muito e me senti influenciado por grandes mestres como Leonardo da Vinci e Michelangelo. Depois fui atingido em cheio pelo revolucionário Marcel Duchamp. O movimento DADA questionou a própria arte, derrubou todos os limites impostos ao lon-

A autora Paula Pretta é atriz, cantora, letrista e compôs diversas músicas e Orikis que estão presentes neste livro. Dos encontros para a realização dessa publicação, da tarefa de criar ilustrações e capa, o artista multimídia Scan criou o que se apresenta como um capítulo à parte: imagens de suas obras de arte, um conjunto de dezesseis esculturas de luz neon, distribuídas com precisão e fartura que fazem do livro uma peça única.

Videoinstalação no Sesc Pompeia

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go dos séculos, sobre o que era arte e o que não era... A simples reacomodação de objetos comuns levados a museus e galerias, elevou a forma ao conceito. Conceituou sem interferir, criou um novo estado de arte, e destruiu qualquer paradigma anterior. Esta revolução na arte me atraiu muito e me instigou a explorar e trabalhar com este universo da readequação, reconfiguração e deslocamento. Outro grande mestre que me inspirou foi Nam June Paik. Um artista Sul Coreano que foi o precursor de tudo o que é chamando VIDEOARTE. Em sua grande trajetória desde seu nascimento em Seoul em 1932 até seu falecimento em Miami em 2006. Como estudioso de música, conheceu Joseph Beuys e integrou o movimento de arte neo-dadaísta Fluxus onde também foi inspirado por John Cage e criou a obra que deu origem à videoarte, “TV Magnet” que era nada mais que diversos aparelhos de TV ligados, sofrendo alterações e distorções magnéticas utilizando ímãs. Em Nam June Paik está o cerne de tudo o que faço hoje em dia, pois procuro aliar tecnologia a elementos básicos, da natureza ou mesmo de estruturas materiais simplificadas. Nos anos 90, uma onda invadiu São Paulo, e depois o Brasil. A palavra VJ deixou de ser apenas referência aos apresentadores da MTV. Surgiram profissionais como eu, que começaram a desbravar um caminho sem volta, onde som e imagens sempre estarão juntos em qualquer plataforma. A manipulação de imagens ao vivo foi o grande pavio, que me levou a buscar cada vez mais o aperfeiçoamento das técnicas, bem como a maiores degraus de experimentação. Por exemplo, a nomenclatura VIDEOMAPPING não existia, e já fazíamos coisas parecidas com projeção, mirar projetores para objetos eventuais ou arquiteturas, para fazer cair determinada imagem em determinado espaço. Hoje em dia o Videomapping é uma referência, um modo de pensar arquitetura, som e imagem. Criam-se novos diálogos entre os arquitetos, artistas visuais e músicos. Edifícios passam a ter “voz” e obras cada vez mais caras e efêmeras são produzidas. Em Espetáculos Audiovisuais, linguagens que antes caminhavam separadas, agora estão sendo formuladas em conjunto, ao mesmo tempo, com pura sincronia e batimentos regulares. EK - Quais são os elementos tecnológicos associados ao seu trabalho de Vj? 14

Show de Gilberto Gil

Show de Jorge Benjor

Iconorixás


Scan - A tecnologia pra mim é só uma ferramenta, que utilizo para criar. Computadores, softwares, câmeras, telefones, gadgets, sensores, videogames... Tudo é muito programado para ficar obsoleto rapidamente, obrigando-nos a ficar correndo atrás, se fez update do sistema, seu computador antigo já não vai aguentar rodar com o novo sistema, vai ter que comprar outro. Por isso eu digo que as ferramentas tecnológicas são importantes sim, mas não são indispensáveis. Eu penso que o conteúdo deva ter maior importância que os meios. Muita gente fica tão preocupada em estar up to date, top de linha com equipamentos e tecnologias, que se esquecem do mais importante, “O QUÊ?” fazer com tudo isso. Pessoas que compram um laptop novo, instalam um software de fazer música e se dizem produtores musicais, ou um software de vídeo e se dizem videomakers. Mas está muito longe de ser assim, apenas ter a ferramenta não te legitima como um criador. É necessário estudar muito, praticar muito, antes de sair por aí dizendo que é isso ou aquilo. Como são profissões recentes, ainda não existe legislação criada especificamente para isso, o que torna o mercado de trabalho uma verdadeira bagunça, onde se praticam preços totalmente díspares, mas não existe como comparar, como por exemplo, fazer um vídeo com uma produtora já conhecida com um trabalho reconhecido e consistente e fazer um vídeo com um garoto que acabou de comprar um computador. Dar o trabalho para o garoto apenas por conta do seu valor ser baixo, é desqualificar gerações inteiras de profissionais que deram muito duro para chegar onde chegaram. No meu ponto de vista crítico, vejo o dinheiro atrapalhando tudo, tanto o aprendizado do garoto, quanto a vida de um profissional experiente. EK - Em projetos como Tô-no-Rock, de onde surge a motivação para trabalhar com a interatividade? Como avalia a relação do público com este tipo de proposição? Scan - A vontade de trabalhar com interatividade vêm da minha curiosidade. Não havia experimentado antes e, em 2013 na virada cultural do SESC Pompéia, surgiu a oportunidade de realizar uma instalação audiovisual interativa. Eu esperava uma participação boa do público, e também esperava que meu trabalho pudesse ser capaz de transformar as pessoas, entregando a elas algum

conhecimento ou curiosidade sobre um assunto que elas antes desconheciam. Avaliando o que realmente aconteceu, pude perceber que a participação do público foi bastante significativa, muito além das expectativas do SESC e das minhas. Realmente ocorreu uma transformação, as pessoas vibravam, torciam umas pelas outras, porque nesta instalação recorri ao sistema de jogo, onde o público tinha que acertar determinada posição corporal para revelar de onde vinha aquela pose. Uma obra que chamou atenção, cativou e plantou conhecimento, depois fui descobrir que este tipo de obra tem um rótulo, edutainement, que, traduzindo para o português, seria educação com entretenimento. Então esta se tornou uma premissa para minhas próximas interatividades, não somente belas esteticamente, o importante é que elas tragam algum tipo de conteúdo educacional ou didático. EK - Nas atividades relacionadas à Direção de Arte na Kazuá, onde você deve dialogar com a temática trazida pelos livros, como você desenvolve seu trabalho? É possível definir um processo criativo independente (ou diferenciado) daquele que orienta suas criações artísticas pessoais? Scan - Trabalhar com a Editora foi a princípio um desafio, lançado pelo editor Evandro Rhoden. Ele me provocou a desenvolver uma linguagem à qual eu já era familiarizado, porém não exercia profissionalmente, que é a diagramação e a criação de imagens para capas. Procurei trazer minha estética, algumas vezes me utilizando de imagens em vídeo para transformá-las em ilustrações ou fotos. A experimentação com essa mistura de linguagens permitiu que um novo e rico universo se abrisse no meu trabalho, me obrigando a relembrar não só as ferramentas, como também conceitos básicos de geometria e estudos de cores, ensinamentos que tive no colégio técnico Liceu de Artes e Ofícios, e também na FAU USP. Realmente este processo definiu um processo criativo diferenciado e único, pois não conheço muitos profissionais capazes de exercer ofícios tão distintos, trazendo elementos de criação de um para o outro. A estética do remix, a linguagem do VJ, trazida para a forma gráfica impressa, permitiu resultados surpreendentes e muito distintos do que um diretor de arte gráfica sem experiência com vídeo ou cinema faria. 15


Ame. Se não der Sonhe! enfrenta o desassossego de inúmeros criadores: o de abordar temas universais como o amor. A escolha foi logo por ele, o sentimento que a todos pertence. Revisitado de modos e em modas. Inscrito em obras como esta, em que foi necessário mencionar sensações tão naturais para tantos e tantas, que provoca o receio da trivialidade. Percepções atávicas, parecem ter nascido dentro de nós. Exatamente pelo arrebato, pela falta de temperança, pelos folguedos e pela fluidez dolorida de alguns sentires, que mesmo nos assaltando, encantam. Gestos suspendem o tempo por algum tempo. Seria uma forma de evitar a morte? Daquelas coisas que acabam, como em Lucas Walker, precisando de um espaço para surgir. Aos gritos o autor recitou seus amores. Ele trabalhou as palavras, as ideias e os ideais por amor. Foi corajoso e humilde ao tornar-se transparente nas páginas que contem seus versos. Descobriu que em cada momento da existência o amor foi sentido distinto. E que conhecê-lo também depende do lugar, da hora, do instante. E da distância. E da vontade, e da volúpia. Lucas juntou em letras as suas inspirações e Osvaldo Piva acrescentou as imagens que conversam com elas. Relações sutis entre símbolos e sentidos. Busca de espaços e de vazios para os suspiros contidos e o deleite. Ou pelas linhas de fuga, para escapar da intensidade da dor em cada interstício. Melhor acordar num sonho! Ame. Se não der Sonhe! propõe o genuíno, o elemental: sentir a plenitude de morrer por um instante, eterno. 16


Fragmento do livro Ame. Se n達o der Sonhe!, de Lucas Walker

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Fragmento do livro Viver e Morrer de Medo, de Cláudia Naoum A escrita desta publicitária de formação e escritora por escolha, tem a particularidade da concisão, o que inscreve seu estilo na literatura de brevidades. Seus nano ou microcontos foram ilustrados pela artista Marina Tranquilin, no criativo projeto gráfico de Osvaldo Piva.

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Juan Toro Nacadema Quem sabe o dia cúmplice aferre em seus poros a terra que sai pulando do meu corpo empoeirado Fatigado de relutar com este chão que costuma teimar ao enterrar-me vivo, respirando, e com músculos ainda fortes Imagino Respiro Volto a pleitear uma luta assídua com minha consciência, o quê fazer aqui sorridente e exposto? O quê fazer vivo exportando partes que se vendem ao retrogrado sistema? Ingratos Lida da pessoa errante resignada, a pensar e caminhar do mesmo modo, sem questionar-se O quê fazer em prol do melhor? Castigar a pouca proeza da vida com sorrisos e abraços cálidos entre os pares, mesmo não sendo amantes Admiráveis por compartilhar do carinho do dono pagante, contratante, dono do pensar atrofiado de jovens envelhecidos e corrompidos Ingrato suor

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Ingrato ganha pão que se veste Desveste e ignora cuspindo uma queixa cega, sem gravidade Costume dos sistemas Labirintos que não possuem saída Túneis obscuros pela trapaça do dia Do mundo feito pedra Da vida feito muro Parede Mudo e enlouquecido No contágio das dores físicas Impaciência que não se explica Por ingênua ou por não ter raiz Uma coisa vaga que morde em forma de espinho Ferrão de abelha Agônica

O prefácio de Nacadema, obra de Juan Toro, nos faz o seguinte alerta sobre a escrita do autor: “A poética da verdade nas fronteiras da academia”. Em seus versos Toro relativiza “A instituição educativa, sua razão e suas linguagens”.

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Pedro Port

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A LÍRICA DESGARRADA DE PORT: O CLAMOR E A LOUCURA DE UM DEUS Felipe Garcia de Medeiros, poeta.

O monólogo de um imortal persegue a natureza íntima do homem. Ao projetar as fraquezas e a ruína do homem em um deus, Port esboça, em Sírinx – monólogo de um imortal, o caminho onde o divino se humaniza através da loucura e do desgarramento. A incerteza diante dos eventos complexos da vida eleva o clamor do deus. Tentar o segredo é uma das maiores façanhas deste livro. Aquele segredo que os amantes tentam, de todas as maneiras, em vão, arrancar do outro. Desse modo, como o silêncio que dobra a palavra até o impossível, Port chega à nervura do poético. O seu discurso literário assanha a realidade ao trazer a imanência à profundidade do poema. O percurso espiritual desta obra segue uma longa tradição de grandes poetas – como Dante em Vita Nova, Shakespeare em Romeu e Julieta, Ovídio em Arte de Amar e Vinícius e Tom em Monólogo de Orfeu. Aliado

a poetas que investigaram a natureza estranha, paranoica e difusa das relações humanas, Pedro Port exibe a invenção do outro como coisa amada ou animada e a reinvenção do eu ou de si como o eterno amador (em sua polissemia) de tudo, sempre a se perguntar socraticamente sobre o legítimo significado das coisas. O pensamento é dissidência, a incerteza ronda os porões da Razão. Este livro é um convite à vadiagem à lá Walt Whitman, é o suor do ébrio que lava a alma na noite, e o suspiro de uma dúvida que escorre dentro de um desejo, e que não podemos alcançar através de respostas rasteiras ou prontas, mas apenas com indagações sutis e reais. “O que é o Amor? Pergunte a quem vive, o que é a Vida? Pergunte a quem adora, o que é Deus?”1 – assim Shelley principia o seu questionamento SHELLEY, Percy Bysshe. Sobre o Amor. In: ______. Uma defesa da poesia e outros ensaios. Trad. Fabio Cyrino e Marcella Furtado. São Paulo: Editora Landmark, 2008, p. 9.

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em torno do Amor, palavra necessária, inefável e mundana. O “Amor – pois que é palavra essencial”, verso arrebatador da abertura do livro Amor Natural, de Carlos Drummond de Andrade, completa e concatena a busca sedenta desta obra inquietante. Sírinx – o monólogo de um imortal, o livro de Pedro Port, traz à tona, dentro de nós, aquele amor inesquecível/capital e misterioso da nossa eterna juventude – ora impossível, às vezes inexistente, e sempre, indubitavelmente, marcante. Recordamos dele como um símbolo de resistência em nossa curta e prolongada existência, ele é o princípio e o fim que sempre nos ronda quando nos questionamos – durante a vida inteira – sobre o amor, a vida e Deus; a sensibilidade de Port é tão precisa, que ele nos faz perceber que o amor, enfim, atravessa todos os temas desde sempre. Amor e loucura: é crucial para nós viver essa experiência e, 23


a partir de o primeiro palpitar amoroso, o ser toma consciência de sua incompletude plena, e se apercebe solitário como todos os animais viventes. A solidão do sujeito que busca, depois de desfeito o elo materno, perderse em uma possível fusão com o ser amoroso é, nesse sentido, violada pelo invólucro de nosso espírito, nos habitando, de forma inexorável, o paradoxo de ser e existir inacabado entre as incoerências do mundo. Trazendo questionamentos como esses em seu poema – para além de um pretenso dualismo – é de uma intensidade ímpar a quintessência da obra de Port, pois, ainda que fira a consciência estriada de alguns e cheia de falhas, reacende em nosso âmago o imperativo máximo da existência: a perpetuação da vida, a continuidade em sua descontinuidade, como diria Bataille a respeito de todo o erotismo. Para que abarcasse o máximo de referências possíveis e nos trouxesse os conflitos mais frementes da (pós)-modernidade de uma forma poética e crítica, Port atentou para uma conhecida história do mundo clássico. Nunca algo nos suscitou tanto mistério e indagação quanto a existência da figura de uma ninfa corredora, fugitiva, aquela que escapa a todos os ensejos e investidas, a mais resistente e desapegada das criaturas, como diz Port: “ai fugitiva nas Arcádias, a que em fuga/ tudo perde” e, por ser tão indiferente a tudo, portanto, ela se torna a mais desejada e ambicionada por todos. 24

Tendo como plataforma o mito, a trajetória de Port encena a tortuosa e magnífica fábula do homem; o destino, como fonte de recriação da fuga ao imperativo divino sobre a raça humana, surge ao longo do poema como um labirinto sem fim, fazendo com que o sujeito seja capaz de mudar sua rota inevitável. No caso de deus, como o Acaso re(age) sobre ele? Eis a ironia e o feérico paradoxo desta obra. Pedro Port recupera, de modo magistral, uma antiga história de sobrevivência que diz muito sobre os tempos líquidos e as relações líquidas atuais, admitindo a ideia de Literatura que Ezra Pound defendia, como: “a novidade que permanece novidade” e também o pensamento em que o filósofo alemão acreditava sobre como o poeta pode tornar a vida mais leve através de sua inventividade ao (re)ver a luz que emana do passado: Os poetas, na medida em que também querem tornar mais leve a vida das pessoas, ou desviam o olhar do trabalhoso presente ou ajudam o presente a adquirir novas cores, graças a uma luz vinda do passado que fazem irradiar sobre ele. Para poderem fazê-lo, têm eles próprios de ser, em muitos aspectos, seres voltados para trás; de maneira que se os pode utilizar como pontes para chegar a tempos e concepções muito distantes, a religiões e civilizações em vias de extinção ou extintas2. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano demasiado humano. Trad. Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005, p. 148.

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A inspiração matriz do seu livro-poema, uma vez que seu livro é composto por um longo poema e, no dizer de Octavio Paz, o poema é uma obra, “o poético é a poesia em estado amorfo”, produzindo “quadro, canção, tragédia”3, Port o faz à maneira dos clássicos e à feição dos pós-modernos4. Seu poema advém de um mito grego, cujo arquétipo é bastante conhecido por todos aqueles que, alguma vez, investiram em um ser adorado com a finalidade de amá-lo, possuí-lo, tê-lo. Bulfinch, em seu livro sobre mitologia grega, relata a labuta do deus Pã ao tentar conquistar a pulcríssima ninfa Sírinx, e assim a descreve: Havia uma certa ninfa, cujo nome era Sírinx, muito querida pelos sátiros e pelos espíritos dos bosques; ela, porém, não se entregava a nenhum, sendo fiel cultuadora de Diana, e dedicava-se à caça. Quem a visse em suas vestes de caça a teria tomado pela própria Diana; a PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

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A respeito dessa terminologia, em seu livro A condição pós-moderna, assim diz Lyotard: “A condição pós-moderna é, todavia, tão estranha ao desencanto como à positividade cega da deslegitimação. Após os metarrelatos, onde se poderá encontrar a legitimidade? O critério de operatividade é tecnológico; ele não é pertinente para se julgar o verdadeiro e o justo. Seria pelo consenso, obtido pela discussão, como pensa Habermas? Isto violentaria a heterogeneidade dos jogos de linguagem. E a invenção se faz sempre no dissentimento. O saber pós-moderno não é somente o instrumento de poderes. Ele aguça nossa capacidade de suportar o incomensurável. Ele mesmo não encontra sua razão de ser na homologia dos experts, mas na paralogia dos inventores”.

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única diferença é que seu arco era de chifre e o da deusa, de prata.5

Eis a ninfa que habita o livro-poema, a Sírinx, assim apanhada, sob a perspectiva do deus, no início do livro de Port: “Ó mulher dos meus sonhos, pétala tão bela,/ assazmente espinhosa naia dos gineceus,/ flor do meu desconforto, ó minha Solitude”. Nesses versos, já se percebe, de maneira única e latente, a intensa polissemia utilizada por Pedro Port, que se configura como a metáfora da metamorfose verbal da ninfa ao longo do poema e como signo máximo do fugidio e transitório. As palavras – “gineceu” – “ninfa” – “pétala” – encenam essa transformação física da bela figura e fogem ao leitor a todo instante como a Sírinx ao deus. É um jogo de prazer e tortura, uma roda interminável que nos leva aos sentidos que todo caminho nos ensina, que é o da travessia, de atravessarmos uns aos outros até descobrirmos e sabermos o sentido. Essa transformação verbal presente no poema Sírinx – monólogo de um imortal, de Port, revela a dubiedade da castidade e a lubricidade do corpo da ninfa; quando incrustada no corpo e nos órgãos femininos da planta, ela é potencialmente sexual; enquanto ninfa, de imaculada virBulfinch, Thomas. Juno e suas rivais, Io e Calisto, Diana e Actéon, Latona e os Camponeses. In: ______. O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula): história de desuses e heróis. Trad. David Jardim. 27ª ed. Rio de Janeiro: 2002, p. 40-41.

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gindade, ela se esgarça e foge do ideal sonhado pelo deus, se espalhando por todo o poema como o signo do irremediável na busca pela fusão impossível dos seres amados que estão em constante devir, em mutações e metamorfoses – sempiternas. Assim, Pã, o deus árcade, sente-se fatalmente atraído

essa investida do deus, no poema de Port, pode remeter À une passante, de Baudelaire – quando o poeta nos faz crer que o transitório nos desabita do lugar e nos transcende no tempo dentro de um instante que, nos versos de Drummond, “não cabe no infinito”. Naquele instante em que as obras de

por essa beleza quase inefável e efêmera, tem desejos intensamente eróticos e sua fome por ela o (de)forma como um ser de razão. Ele parece perder o fio no poema ao buscá-la loucamente, ou se esquece de si mesmo como um ser eterno capaz de superá-la; em muitos sentidos,

arte do real se dissipam antes do registro, antes mesmo do despertar das sensações, quando já não se pode mais alcançar quem se amou por já se ter passado ou existido e a eternidade perde todo o sentido. Assim Pedro Port assinala a ânsia do deus em experimentar o 25


efêmero como algo inerente ao seu ser divino: eis que me humilho e apuro a minha volição, desejo o teu conhecimento conhecer, do teu mortal sabor quero o gosto saber, [...]

Os dilemas da contemporaneidade são trazidos por Pedro Port como o sintoma de uma sociedade em descontrole, em desacordo, a distopia e a incoerência representam a provação a que todo sujeito é submetido ao desencaixar-se do sistema, da lógica, do cartesianismo. O amor só pode ser considerado se confrontado com o domínio social, como dissera Erich Fromm em A arte de amar, sem o qual, estaríamos construindo uma visão ingênua sobre ele. A sociedade fá-lo-á Questionar a sua volição, a sua vontade, abandonar a sua condição de divindade e imortalidade, renegar o seu conhecimento e, praticamente, tudo em favor do sabor/saber mortal do sexo, eis a imagem desgarrada do deus que, diante da visão única da jovem, busca, irreparavelmente, eternidade afora, partindo de sua condição infinita de ser, a satisfação amorosa e sexual na figura da ninfa fugidia. Chegar ao ponto de pôr em cheque a pretensa natureza divina, ao longo do poema, é deixar evidente que a sensação de incompletude dos desejos e das aspirações humanas é favorável à existência de algum sentido transcendente em nossa imperfeição, incompletude e fi26

nitude. Port como Pã nos dizem que, na verdade, nós nem sempre estamos preparados para enfrentar a transitoriedade e fugacidade que são incorporadas pela beleza terrível – ou para o horror e voracidade da paixão que nos penetra os órgãos fulminantemente, e Goethe já nos dizia: “Com a paixão – vem a dor”, o clamor, como podemos sentir, sinestesicamente, no poema de Port: clama por ti a minha alma quente e mensageira, que se nutre dos cardos da colina e sonha o mel haurir do olhar de quem tanto me estranha [...]

O poeta alemão passava pelo mesmo dilema do deus Pã do poema Sírinx, em suas investidas amorosas pessoais – era evidente a estranheza, o contraste entre os anos, a beleza que continha o corpo da jovem amada, e a dor de Goethe pelo desencontro entre corpo e alma (ou espírito) diante do paradoxo criado pelo tempo. Em Sírinx: monólogo de um imortal, Pedro Port aborda a incoerência que habita o mesmo corpo de uma criança de outrora, os mesmos desejos e anseios e paixões de uma criança que, ao crescer, na presença do seu corpo hodierno, vê-se impelido a se tornar quem é ao longo do tempo. Esse conflito fica claro quando ele põe no poema, como sujeito-lírico, a personagem de um deus – o imortal – em contraste com a de uma ninfa – efêmera, sujeita a meta-


morfose iminente e às promessas do acaso e da necessidade. Tentador, como estratégia de expansão do desejo no livro e expressão da nossa eterna insatisfação, o deus de Port traz consigo o dna de outros deuses valorosos e assim o poeta o apresenta: levo dos deuses a memória das ações sagazes e grandiosas que eles praticaram, afinal sou um deus, um que amor já venceu, um deus vencido, um bode por amor enlouquecido, demônio de vontades nunca satisfeitas, [...]

O deus/demônio do livro é filho de todos os desejos, é purulência, força erótica, impulso e reação; cativa pela divina cafajestagem. A sua violência tenta o imperativo da vontade, transcende a unidade que é pluralizada pelo sexo. O antagonismo é o próprio homem que se instaura no livro como um animal desejante, no qual o equilíbrio e o extremismo são tecidos pelo mesmo corpo que produz singularidades ao entrar em confronto com algum sentimento intensivo, como o amor, a paixão e a loucura. Port capta o histórico de desastres e perversões amorosas de outros deuses ao vincular o seu deus Pã à tradição trágica da busca pelo amor proibido, inalcançável, litigioso. Portador do bem e do mal, o fauno de Pedro rende-se, como seus antecessores, à fúria desse amor que

entorpece o espírito e o aquece como os ensejos irresistíveis de Vênus. Ele decide ser partícipe de uma aventura inolvidável, capaz de levá-lo a regiões hostis, como o olhar vibrante da mulher sonhada e o volteio de seus intermináveis cabelos. A sua poética, extremamente melódica, acentuada e imagética, salta aos ouvidos e como frames de vídeos, como um take de cena de um filme, consegue apresentar, visualmente, para o leitor, uma linguagem potencialmente cinematográfica, notável no decorrer do poema – precisa, o poeta compõe uma palavra-corpo e, tal como pensara Lessing, ao fazer reflexões lúcidas em torna das relações intrínsecas entre a poesia e a pintura, Pedro Port: “quer tornar tão vivazes as ideias que ele desperta em nós, de modo que, na velocidade, nós acreditemos sentir as impressões sensíveis dos seus objetos e deixemos de ter consciência, nesse momento de ilusão, do meio que ele utilizou para isso, ou seja, das suas palavras”6. Neste fragmento presente no início do poema, já é evidente que esse recurso abordado por Pedro Port é uma constante ao longo do poema Sírinx – e, além do mais, é o exemplo de uma desenvoltura estética que, diante da inconsciência das palavras, consegue provocar, fustigar todo o silêncio e LESSING, G. E. Lacoonte: ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia: com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2011.

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Rodrigo de Haro 27


toda a superfície da palavra em sua imanência: entre urze e seixo e vara e vau toda se esfola, e ruge como fera e corre assim magoada, e fere o céu com voz feroz, com ódio atroz, a caçadora, virgem sim, sanguissedenta, a de cerviz selvagem, mão esquartejadora, temida por dragões e pela lebre odiada, a moça belicosa de tão lindo rosto é desgarrada igual a mim, mas vai agarrada às negras crinas de umas éguas das Arábias, [...]

Dito de jeito técnico, as assonâncias e aliterações contribuem para a composição da melopeia – “urze e seixo e vara e vau”; em outras palavras, som e sentido se encontram de forma harmônica, a descrição da atmosfera revela o tom intimista/erótico e bucólico da narrativo. A obra do poeta se insere dentro de uma infraestrutura semiótica capaz de captar a rapidez e a leveza no poema, características defendidas e esboçadas – como propostas para o próximo milênio – pelo escritor e teórico Octavio Paz. Pedro Port está atento ao seu tempo e, como poucos poetas de hoje, é capaz de desafiar as formas modernas – ao ser ousadamente pós-moderno utilizando a forma clássica, e clássico, também, ao ser pós-moderno; quer dizer, não há como defini-lo, se28

não em sua própria indefinição – eis a contemporaneidade em toda sua complexidade e diversidade de formas. Esse aspecto multívoco de sua poesia nos revela que existe algo muito mais além do que meras definições temporais ou encarceramentos estilísticos na história da Literatura. O poeta contemporâneo consegue desfazer o tempo, é proteiforme, capturar o efêmero como o estatuto primordial da poesia e, aliado a uma precisão verbal de inquestionável vertigem em seus alexandrinos, nos reporta da sociedade subterrânea que habita o nosso espírito inundado e à deriva nos sentidos; o abjeto que ronda o nosso corpo é o atestado de uma violação do silêncio que ocupa todas as palavras, e faz com que elas sejam em sua significância. É nessas entranhas da sexualidade e da eroticidade que também se situa Sírinx: monólogo de um imortal, quando o desejo do deus é suplantado pelas vias aéreas do corpo mortal, e ele todo se esfola no poema, e assim o escancara Port:

selvagem”, “mão esquartejadora”, “temida por dragões”, “pela lebre odiada”, “moça belicosa”, tantas são as qualidades e desafios, que sentimos por ela a confusão que nos faz decidir pelo carpe diem, pela aventura, pelo desconhecido, ao invés do conformismo e da estagnação de uma relação banal, rotineira e segura. Se buscarmos ou investigarmos, em sua narrativa, a descrição dos fenômenos e a composição do espaço, veremos que há – visualmente – a presença de uma cartografia do desejo que perpassa todo terreno do Lácio, da Grécia, as planícies e planaltos da poética de Pedro Port surgem como genealogias identitárias, pois remontam a origem das coisas e dos sujeitos, vinculados a uma raiz aérea de existência. A jornada de Pã sempre retorna à sexualidade como uma fuga do efêmero e da mortalidade:

desse instante de tão veludosa lascívia, quando a meu alcance a pele feminina, enfim, toquei com a barriga coalhada de estrelas, [...]

Esboçando os elementos potencialmente eróticos em sua escritura, ele revela os desejos mais obscuros do fauno e da ninfa e, por que não, de nós mesmos quando nos colocamos diante do amor natural e da (obs)cena. Ao mesmo tempo envolvente e nebulosa, a canção de Pedro Port segue o ritmo de uma imagem-tempo dinâmica e multidimensional, algo

A pintura que o poeta faz da virgem é microscópica, carismática, aprofundada e interna. A ninfa é mostrada em seu aspecto físico e psicológico, como “sanguissedenta”, de “cerviz

se antes em pânico e asco fugiste ao contato de minha ébria epiderme, de meu são priapismo, declara enfim que amar só queres tua desdita, [...]


que só pode ser (des)feito com palavras. A sobreposição de planos em suas capacidades polissêmicas e metafóricas transpõe a barreira do discurso coloquial ao remeter a contextos e vocabulários de outras culturas, que exigem do leitor uma imersão ainda maior em Sírinx e, por isso mesmo, uma leitura desafiadora. Isso nos leva a crer que, para encontrarmos poetas como Pedro Port, é necessário garimpar bastante, reconhecê-lo como valioso e adentrar em seu estado de êxtase e busca – o eterno desencontro ou vão entre o corpo e a mente, a vida e a morte, o amor e o desamor. É preciso que nos lapidemos para que possamos chegar à brutalidade de sua expressão esmerada. A sensação que a obra de Port desperta no leitor é a de incompletude diante dos desejos e aspirações de ser em realidade e, ao lado dela, de pluralidade que abarca o nosso único corpo polivalente, impreciso, multipartido. O ser poético é o inacabado, o pólen, a mancha, o tardio e perene. Port arquiteta o corpo do homem-deus como se fosse uma máquina de ilusão, uma espiral desejante que se desencontra ao pluralizar a experiência nos limites de sua corporeidade. Quando um corpo não cabe em um deus, com certeza, não caberá em um homem, e assim nos atinge, na espinha dorsal do sentido, como um estribilho, Pedro Port: “cuido de camuflar minha híbrida evidência”. O atestado de multiplicidade de Sírinx: mo-

nólogo de um imortal está dado nesse verso lacônico – no qual o deus-poeta se põe diante de sua própria pluriessência como um encenador de máscaras do vivível e claro enigma do vir-aser híbrido e/vidente. Por mais letal que seja esse clamor, nos versos do poeta Pedro P., ainda sobram resíduos de um ser que convive com os extremos mais cruéis do amor -paixão de um mortal, e isto recai, inevitavelmente, sobre o seu corpo divino e, mesmo deus, ele é provado até à sua imortalidade inviolável e – como o castigo de Sísifo – carrega a pedra que o esmaga e o faz viver todos os dias, fazendo-nos lembrar, ao viver a lida de um deus, das palavras fatais do selvagem

Rimbaud: “o insuportável é que não existe nada insuportável”. Ele é um deus e procura, em sua imortalidade, a ascensão de seu desejo, o convencimento de sua deidade e a si mesmo, para que nos exponha a sua fragilidade incerta – entoa em seu ecoante monólogo: “um deus não chora, um deus não se arrepende, um deus/ nunca pede perdão, nunca se compadece,/ amor não amará um deus que amor enlouqueceu”. Em cada verso de Sírinx, como uma canção de inverno e solstício, soa a voz múltipla e cálida que transborda do corpo de um deus arrebatado pela visão de uma ninfa. O poema trata de uma longa e ardilosa busca, também deliciosa, única, e Manuscrito de Pedro Port para Sírinx

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faz referências interessantes às buscas pelo amor difícil na Literatura – pelo corpo jovem e pela beleza eterna – que nunca exaure seu brilho imaculado quando exposto às situações mais extremas de fé e provação. A ninfa que ronda o poema de Port possui um assombroso encanto que rememora o verso imortal de Keats, “o que é belo é uma alegria para sempre”, é um corpo sem lembranças de ranhuras, sem o risco do tempo ou marcas de transitoriedade; nele, estão projetados todos os sonhos do homem e a origem da humanidade, o poeta traz à tona o aparelho que move a sociedade, em seus versos, e abre-se, impiedosa, a engenhosa máquina feminina. Sírinx é – além de si – “o bafor divinal de um fauno desgarrado”. Não se engane à primeira visita ao ler os versos massivos deste livro. O poema de Pedro Port, de ponta a ponta, é um desafio aos leitores mais acomodados de poesia. A experiência de leitura de poesia nos transporta entre universos e membranas que nos apresenta, sob o olhar cósmico-estranho do poeta, as histórias e peripécias do homem em sua forma mais concisa e precisa possível; nele, há o princípio da invenção e reinvenção dos seres e das coisas em rotação amorosa. A palavra poética é o caminho traçado no tempo, onde este se torna o lugar de perene infração do finito e do humano, assim, o poeta busca e foge, é o fauno e a ninfa – quando tercei30

riza o eu no poema e transfunde, na linguagem poética, mito e símbolo para (res)significar o corpo e o amor. Sírinx: monólogo de um imortal é um poema-livro que se diferencia – existencialmente – das produções poéticas atuais. A sua contemporaneidade reside justamente no fato de tratar de um macro-tema que produz repetição e diferença inopinadamente ao longo dos séculos: o amor. Além de retomar mitos e arquétipos greco-romanos, o vocabulário e a forma se mesclam a um sentimento amoroso que se identifica, inevitavelmente, ao amor que buscamos hoje, ou seja, àquele amor que sempre nos descobre quando o buscamos, e faz-nos desconhecer-nos quando supomos tê-lo, e nos abandona quando o (des) conhecemos. A labuta do deusPã de Pedro Port é a mesma dos heróis da mitologia antiga: a maldição que cai sobre eles é o elemento sedutor da criatura, o motor-primeiro para a busca do impossível, que nunca se repete, e acontece constantemente quando o homem é colocado à prova diante do mistério e do desconhecido. A busca insondável de Port assemelha-se bastante à sina analítica da A tarde de um fauno, de Mallarmé, no qual o Sátiro perquire, para além da natureza, das coisas e do amor, através do sono e da vertigem, a ideia que ronda as palavras e os sujeitos, a ideia que – mais que a forma – compõe a infraestrutura do Universo – em

que momento (desconhecido) perdem-se, confundem-se ou interpenetram-se pensamento e sentimento, ideia e realidade, amor e carne – amor e medo, a perpetuação das ninfas. Port recita, em sua voz de homemdeus: “o medo sem razão e a loucura a quem mais ama”, a trama da loucura e razão, do apolíneo e dionisíaco em seu aspecto mais intensivo e inquebrantável. Sírinx apresenta-nos uma sensibilidade pós-moderna ao rever o amor como uma instauração do carnal e incorpóreo, “da carne renegada”, “do híbrido corpo”, que estruge na atmosfera dos seus sentidos. O personagem-lírico do poema é um desregrado, um ser que emana da própria vida a verdadeira ausência. O poema, de caráter narrativo-lírico, enseja em sua estrutura a (de)formação de uma ruptura que engendra o caos das produções contemporâneas: a (re)visão das formas poéticas, dos temas, da tradição literária e do próprio ser poeta. O aparato verbal do texto mostra um raro domínio da forma poética e o ritmo do poema é fluente como a corrente contínua de um rio em transbordamento, quando som e ideia se encontram numa torrente implacável de sentido, que o próprio poeta afirma ao dizer: “eu num acesso louco de melofobia” – claramente. A “mulher dos sonhos”, o desejo humano e vital pelo objeto amado, a (des)construção desse sentirse apaixonado e – por um lado


– arrebatado pela figura feminina é, ao mesmo tempo, afirmação e negação dessa busca pelo real sonhado, pelo o outro sem face, aquele que, dual dentro de uma multiplicidade, seria capaz de trazer satisfação, dor, sofrimento e “solitude”. Acompanhar, verso a verso, estrofe a estrofe, o imenso universo deste livro, é aventurar-se pelos sentimentos e pelas sensações mais plurais e abissais do espírito e do corpo humano, reconhecer que pode se chegar a um poema que não começou e que, no entanto, sempre se inicia de onde não acabou. Apesar do impossível, um deus sempre consegue o que quer, e Pedro Port retorna à superfície do poema como um homem resignado em sua condição divina ao dizer:

pós-moderno que os temas sempre serão atuais se tratados com rara sensibilidade poética, se sujeitos à revisitação das formas e da estética literária, e perenes, quando fazem do homem a fonte de sua emergente humanidade divina.

Manuscrito de Pedro Port para Sírinx

eu num acesso louco de melofobia a flauta dentro de uma gruta arremessei, [...]

A flauta arremessada ao infinito, em uma gruta cósmica, nas profundidades da razão do homem – a paralogia e a dissensão, o amor e a loucura, o corpo e o espírito, a espiral de tudo nas palavras do deus e do homem – e a sexualidade da ninfa que os atravessa para além do tempo. Esta poesia é um halo nas margens da poesia contemporânea brasileira, a lírica desgarrada de Port e o clamor que ressoa ao longo do poema Sírinx – monólogo de um deus mostram ao homem

Felipe Garcia de Medeiros nasceu em Imperatriz (MA) em 1989. Atualmente, mora no RN. Graduado em Letras pela UFRN e, recentemente, mestrando em Letras pela UFRN (Natal). Poeta, autor do livro de poemas Frio Forte, lançando em 2012 pela Editora Multifoco. Professor de Português e Literatura do IFRN (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte); com experiência em gêneros textuais, literatura e ensino, e pesquisador na área de literatura e estudos culturais (nos eixos temáticos: modernidade e pós-modernidade - tópicos de poesia e prosa), analisando a questão da lírica homoerótica em Fernando Pessoa. 31


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Kazuada fez um ano!

A Kazuada é uma festa-sarau, uma Roda de Samba, animada pelos talentos musicais de nossas anfitriãs Roberta Oliveira e Paula Pretta e seus convidados, que a cada encontro brindam à musicalidade brasileira. Este evento popular, que tem lugar no Largo Santa Cecília em São Paulo, um sábado a cada mês, recebeu grandes interpretes, compositores, ritmistas, repentistas e rappers... todos artistas inspirados! A Editora Kazuá agradece em nome da literatura e do samba!


Imagem-Música em Vídeos Para Web, de Marcelo Bergamin Conter

Não seria nenhum exagero afirmar que o site de compartilhamento de vídeos Youtube é peça fundamental para compreender a cultura contemporânea. Funcionando como um mapa de tudo que se produz em termos audiovisuais, suas características vão de encontro com o próprio princípio da internet, a produção e distribuição independente de conteúdo. Não admira, portanto, que grande parte do material disponível no site seja da apropriação de vídeos que se tornaram famosos, os chamados memes, transformando-os em algo inesperado. É o caso do vídeo MC Jeremias, que utilizou programas de edição para transformar uma reportagem sobre um jovem bêbado numa delegacia em um grudento funk batidão. A profusão desse tipo de atitude, iconoclasta e motivada por um espírito de criação, foi o que motivou o acadêmico Marcelo B. Conter a escrever o livro Imagem-Música em Vídeos Para Web, lançado pela Editora Kazuá. O livro, resultado da dissertação de mestrado de Marcelo em Comunicação pela UFRGS, aborda vídeos que surgem através de processos caracterizados como remixagens audiovisuais. Assim como na música eletrônica, os vídeos que o autor utiliza como material de análise, são produto demash-ups, ou seja, da combinação de materiais dispersos pelo Youtube para formar algo diferente. Mas o que há de novo em relação aos mash-ups esamplers tradicionais é a relação inseparável entre a imagem e a música, daí o título do trabalho. Imagem-música, o conceito trabalhado por Marcelo para definir esses vídeos, vem da insólita relação entre a filosofia francesa de Gilles Deleuze e Henri Bergson, com os métodos anárquicos e dispersos característicos da internet. Pode parecer estranho, à primeira vista, esse casamento, mas a partir das ideias desses filósofos não só é possível compreender os modos de produção de um gênero cada vez maior de vídeos presentes no Youtube, mas também delinear de que modo nos relacionamos com a cultura contemporânea e os artifícios de criação em seu interior. Marcelo, que também é músico e produtor audiovisual, não se prende às velhas definições e separações entre alta e baixa cultura. Compreende os vídeos na web como um contínuo, capaz de abarcar manifestações como o Funk da Menina Pastora, as diversas paródias de4:33 – peça musical de John Cage que consiste em quatro minutos e 33 segundos de pausa – , ou os métodos inovadores de composição musical da banda Pamplamoose, onde cada trecho musical tocado é acompanhado por um vídeo correspondente, formando uma verdadeira sinfonia pop audiovisual. 35


Elaine Milmann

Elaine Milmann é educadora especial, psicopedagoga, mestre e doutora em educação e autora do livro Poética do Letramento. A obra é o resultado de sua tese de doutorado e de sua trajetória de investigação que relaciona escrita, corpo e linguagem nas possibilidades de letramento de sujeitos em posição singular de linguagem. Na entrevista concedida a Kazua a autora comenta a escolha do tema e também a poética singular que surge do desenvolvimento da escrita em crianças com problemas orgânicos e/ou psíquicos. Editora Kazuá – Fale um pouco sobre a abordagem do tema e a relação com os ideogramas wen-escrita, shencorpo, yu-linguagem. Elaine Milmann – O livro Poética do Letramento foi dividido em três partes correspondentes a três eixos de minha investigação 36

sobre a aquisição da escrita em crianças com problemas orgânicos e/ou psíquicos: escrita, corpo e linguagem. Cada parte é introduzida com o ideograma correspondente: wen-escrita, shencorpo, yu-linguagem. Junto a cada um deles, acompanha a explicação de sua composição. Cada ideograma é composto de traços ‒ significantes gráficos ‒ remetendo aos fonemas através de uma rede que liga um significante a outros, tanto fônicos como escritos. Através dessa noção, Derrida amplia a noção de escrita, com sua écriture. Também o ideograma foi estudado por Jacques Lacan em sua discussão sobre a constituição do psiquismo, valendo-se de metáforas escriturais, como Freud já fizera. Essas metáforas, segundo a pesquisadora Cláudia Rego, sofrem um processo de inversão, passando a va-

ler também para uma teoria sobre a escrita. Sigo essa linha de pensamento em minha pesquisa. Finalmente, os ideogramas se destacaram nos estudos sobre a poesia concreta, estabelecendo pontes entre a escrita chinesa e a poesia concreta. Parece mesmo haver uma chave nas escritas ideográficas para compreender a complexidade da aquisição da escrita e da constituição do psiquismo. Essa chave, entre outras coisas, abre uma passagem para o trânsito entre a imagem e a escrita na constituição do sujeito e na aquisição da escrita A travessia pelas diferentes formas de registro gráfico é necessária para o sujeito poder experienciar o saber fazer com a linguagem escrita, fundamental para o letramento. Na poesia concreta, os jogos de traços e letras no espaçamento é um cenário


de escrita que nos lança na dança das letras com os sentidos tecidos. Isso vale para o trabalho de letramento de todos nós, pois este não se esgota nos anos iniciais da escola: segue por toda vida. EK – Sua tese aborda importantes aspectos em relação ao “letramento de crianças com problemas psíquicos e/ou orgânicos, considerando as relações entre escrita, corpo e linguagem”. Você pode descrever como e porque resolveu abordar este tema? Elaine Milmann – Trabalho com educação especial e com psicopedagogia. Com essa composição na formação, minha prática sempre voltouse para crianças com problemas orgânicos e/ou psíquicos, historicamente consideradas incapazes de aprender. Quis resgatar meus (quase) 30 anos de experiência em forma de uma investigação acadêmica perseguindo minhas dúvidas – inesgotáveis e compartilhando minhas aprendizagens – também infindáveis. Através desta pesquisa, minha proposta foi mostrar várias formas e tempos de inscrição do sujeito na escrita, o que é muito diferente de não aprender. Para poder identificar essas singularidades confeccionei lentes teóricas capazes de dar visibilidade e significação ao mínimo traço escrito realizado

por cada criança. Em tempos de políticas que privilegiam a educação inclusiva, o desafio é saber como acompanhar alunos com diferenças de ritmo e condições de aprendizagem muito particulares nas classes regulares. Há uma inquietação generalizada dos professores por se sentirem perdidos na sua prática com alunos com problemas orgânicos e psíquicos. Eu poderia chamá-los de deficientes, tgd, psicóticos ou autistas, mas o diagnóstico não ensina como as crianças aprendem e conforme os modos de usá-los, podem ser como um rótulo e até um aprisionamento para o sujeito. Esse livro se propõe a contribuir na proposta de inclusão, apresentando minha trajetória clínica em constante diálogo com a escola. EK – Sua base analítica sobre a questão central do livro se fundamenta “na psicanálise freudo-lacaniana” e na “filosofia derridiana”, para “questionar os critérios que definem o público-alvo da educação inclusiva”. Pode falar sobre a opção pelas linhas teóricas citadas e como estas linhas estão relacionadas em sua tese? Elaine Milmann – A psicanálise me acompanha há anos, pois trabalho em uma clínica interdisciplinar, o Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, onde os eixos de nossa prática é a constituição do

“Testemunho. Testamento. Um livro que, corajosamente, testemunha um trabalho sobre o qual não cabem os predicados de clínico ou escolar. Pelo menos não em uma posição de alternância – ou um ou outro. Assentadas tanto no chão da clínica quanto da escola, suas letras compartilham os rastros deixados por anos de experiência de trabalho junto a crianças e jovens que apresentam uma posição singular na linguagem”. (Simone Moschen)

sujeito. A psicopedagogia é um campo clínico e se faz na própria prática e eu necessitava de um referencial forte para abordar a escrita de uma forma consistente e encontrei isso em Derrida. A ideia não é sobrepor campos conceituais feitos de diferentes tecidos epistêmicos, mas fazer uma operação de importação conceitual. Nenhuma das duas teorias foi feita para investigar a escrita de crianças, mas ambas trazem elementos para compor nossas lentes investigativas. Na contemporaneidade 37


as bordas entre os campos se borram, pois precisamos aderir a um pensamento complexo para sair da lógica cartesiana. É preciso correr o risco e colocar as teorias em diálogo, a serviço de uma prática também complexa. Esse tema não foi aprofundado na minha tese – pois se trataria de escrever outra tese, mas o psicanalista René Major escreveu um livro onde realizou uma análise desistencial sobre as articulações entre Lacan e Derrida. Ambos, o psicanalista francês e o filósofo fizeram um retorno à Freud, de diferentes maneiras e com diferentes propósitos. Com o movimento de descentralização da consciência realizado por Freud, a consciência perdeu seu lugar de centro, sendo subordinada ao inconsciente, por ela ignorado. Mas foi o ensino de Lacan que evidenciou isso e que acentuou a importância de reinterpretar a história da razão, em diálogo com o mundo da literatura e da filosofia – afetando-o. Derrida era um filósofo que pensava com a psicanálise e por sua vez, se pergunta na abertura da conferência, A Razão depois do inconsciente, proferida por Major em 1988: Gostariam que esquecêssemos da psicanálise. Nós vamos esquecer a psicanálise? Ele se preocupava com essa possibilidade,

pois a lógica do inconsciente abalou as certezas mais fundamentais do discurso filosófico, seus axiomas, suas normas e sua linguagem e isso não pode ser apagado. A psicanálise é o que Derrida nunca esquece, nem abandona, mas não é um vínculo unívoco. Vale a pena ler Major para aprofundar esse tema. EK – Pode resumir a diferença entre alfabetização e letramento, segundo sua concepção? Elaine Milmann – A crítica feita é em relação ao uso tradicional da alfabetização, considerando a escrita estritamente como representação da fala. O letramento implica as práticas sociais no uso da linguagem escrita, possibilitando inclusive falar em pessoas letradas e não alfabetizadas e vice versa. Na alfabetização tradicional (não em todas as práticas, mas na maioria) o centro do ensino é colocado na fonetização das letras. Mas, a escrita tem muitas propriedades: polissemia, deslizamento, mudança de estatuto das unidades conforme o estatuto da diferencia que se estabelece entre elas. Para essas propriedades jogarem entre si, é preciso inicialmente, ser o traço recortado pelo significante e entrar em uma cadeia. Ao ser recortado, torna-se um significante gráfico que remete ao fone-

ma através de uma rede que liga um significante a outros, tanto fônicos como escritos. É preciso partir da totalidade desse sistema para operá-lo e não apresentá-lo esquartejado em fonemas ou sílabas. A entrada na totalidade da linguagem possibilita ao sistema da escrita tornar-se paradoxalmente total e aberto a múltiplos sentidos. Dito de forma mais simples, uma pessoa pode ler decodificando, mas não compreender o que leu – ela é alfabetizada, mas não é letrada. Isso é um dos maiores problemas da educação brasileira, tanto das crianças na escola como dos adultos (que passaram por ela), incapazes de fazer uma leitura com sentido e muito menos com crítica, ou de construir um texto legível com autoria.

Elaine Milmann, educadora especial, psicopedagoga, mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Dentro das possibilidades de pesquisa na área da educação, escolheu o ramo da educação especial, que se ocupa do atendimento específico a sujeitos em uma posição singular na linguagem.


O fio

Betzaida Mata

Recortado de uma página policial É estável o quadro de saúde da psicóloga Maria Cristina Pereira, de 42 anos. Ela já saiu do coma induzido, embora permaneça na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital João XXIII. Ainda não há previsão de alta, mas a psicóloga não corre risco de morrer. Na última quarta-feira, por volta das seis da tarde, Maria Cristina foi atingida no ombro esquerdo por um tiro disparado pelo seu ex-marido quando saía de um salão de beleza na região da Savassi. Antes disso, foi vista no Parque das Mangabeiras, aparentemente desacompanhada. A polícia ainda investiga o que ela fazia no parque àquele horário e uma possível relação desse fato com o crime. O autor do disparo, José Adão Filho, está foragido. A versão da vítima “Por que fui àquele parque numa tarde de quarta-feira quando deveria estar no consultório? Porque eu quis. Sim eu sei, não é motivo suficiente. Fui coagida? Absolutamente não! Talvez tenha sido das poucas coisas em minha vida adulta que fiz sem sofrer nenhuma pressão externa. Coação foi o casamento (você já está ficando velha e ele parece ser bom), a pri-

meira gravidez (toda mulher precisa ser mãe), a segunda gravidez (filho único é uma coisa tão triste!). Coagida sou a passar oito horas por dia no consultório, ouvindo misérias alheias, com um semblante seguro, sereno e forjado, enquanto meu corpo sente-se como que acorrentado àquela imponente cadeira em que me posto, bem detrás do divã. E quem me força a isso? Ninguém em especial, mas ao mesmo tempo é tão imperativo que eu cumpra o que está estabelecido, que não ouso contestar. Mas àquele parque eu não fui obrigada. Fui porque quis. E, se isso não é explicação suficiente, posso enumerar três motivos. Escolha o que mais lhe agradar. 1) Depois de quinze anos eu ficara livre daquele homem cujo nome prefiro não pronunciar e desejava reunir os cacos de mim para tornar-me inteira novamente; 2) Parada num semáforo, em meio a buzinas, sirenes e carros de som, subitamente me dei conta de que a cidade tornara-se barulhenta e insuportável, senti-me desorientada e quis fugir; 3) Os filhos estavam na escola e naquele momento não precisavam de mim. Por quaisquer dos motivos acima, ou por todos eles, ou ainda por nenhum deles, simplesmente porque quis, desmarquei os pacientes da tarde e segui até o parque. Só não desmarquei a manicure, agendada para as cinco horas. Minhas mãos 39


estavam horríveis e nunca suportei unhas com esmalte descascado. O que eu pretendia naquele lugar? Fazer dele meu reduto secreto. Bobagem, eu sei, todos conhecem o parque. Nos fins de semana, é invadido por tanta gente – crianças, skatistas, casais, grupos de excursão – que fica difícil até para fazer uma caminhada em paz. Refugiar-se ali, então, impossível. Contudo, imaginei que, numa tarde de quarta-feira, ele haveria de estar deserto. Então eu poderia fazer dali o meu templo de culto ao silêncio e à paz. Nem que fosse pelo período de uma tarde. Pouco me importava que no sábado seguinte voltasse a ser o lugar barulhento e repleto de gente. Como imaginara, estava praticamente vazio: uma mulher com duas crianças, um casal de namorados e um guarda florestal. Desci por um pequeno caminho de terra e cheguei a um lugar simpático, que tinha umas mesinhas de pedra com tabuleiros de xadrez desenhados e uns banquinhos redondos. Ali não havia ninguém. Sentei-me em um dos banquinhos e tirei da bolsa um livro de contos do Juan Carlos Onetti, que vinha lendo em suaves prestações e que, nas últimas semanas, em função das circunstâncias, abandonara. Comecei a leitura exatamente de onde havia parado, ou seja, no conto Excursão. Impressionada com a coincidência entre o enredo da história e meu estado de espírito, pensei que talvez as coisas na vida não ocorram por acaso. Mas logo deixei essa ideia de lado, porque lembrei que foi por acreditar que há um sentido oculto que une todos os eventos que me embrenhei por mais de uma década num casamento que... Mas eu não queria pensar naquilo. Fechei o livro. Levantei-me do banco e segui por uma trilha fechada e estreita. Os raios de sol incidiam parcos sobre a terra úmida que eu pisava. Respirei profundamente e desejei não ter de retornar nunca mais à vida de mãedonadecasaepsicóloga. Depois concluí que era preciso retornar, havia as crianças, a casa, os pacientes e eu não 40

podia simplesmente abandonar tudo. As pessoas precisavam de mim. As pessoas sempre precisam de mim. Eu estava com vinte e seis anos e ele acabara de perder a mãe. Bebia todos os dias e não encontrava um sentido na vida. “Você, Maria Cristina, é tudo o que tenho.” Afugentei a lembrança como quem espanta um inseto antes que outras recordações indesejadas me estragassem o passeio. Já estava tudo pronto: divórcio consumado, pacientes desmarcados, filhos na escola. Prossegui, portanto. No fim da trilha, abria-se um descampado em círculo, feito uma claraboia rodeada de árvores. Andei até o centro daquela roda e gritei o meu nome, esperando ouvir um eco. Mas não havia eco e sim um rebuliço de micos que saltavam sobre os galhos de árvores e emitiam gritinhos. Dezenas deles. Pus-me a observá-los na esperança de extrair uma lição de vida do comportamento daqueles bichos. Em vão. Como as árvores, os insetos e a terra, os micos ali simplesmente existiam, sem dor nem indagações. Não seriam facilmente aprisionáveis pelos conceitos humanos. Não eram “interessantes” ou “belos”, nem havia neles nenhum comportamento digno de ser utilizado como exemplo em livro de autoajuda. Eram micos e pronto. Um quati que escavava a terra aproximouse de mim. De mim não, que minha presença para ele pouco importava. Seguia farejando em busca de insetos e, por acaso, passou por mim. Eu contemplava a cena – quati, micos, árvores, insetos – atenta e invejosa da indiferença que demonstravam em relação ao mundo que os circundava. Poderia fazer sol, cair uma tempestade, a mata poderia pegar fogo ou um visitante generoso oferecer frutas e biscoitos aos animais: bichos e plantas não louvam a vida, nem lamentam a própria sorte. Apenas são. O mico não se importava com o quati e este estava pouquíssimo preocupado com meu olhar sobre suas escavações. Ambos eram indiferentes às árvores que lhes davam sombra e elas também, se faziam sombra sobre o chão,


não era em busca do reconhecimento alheio: era simplesmente porque são árvores e suas copas encobrem parte da luz do sol. Entretanto, mesmo cada um ocupado em apenas ser e sem se dar conta da existência dos outros ou, antes, sem se preocupar em ser algo aos olhos dos outros, parecia haver uma integração entre todos os seres da paisagem que eu contemplava. Um fio tênue e, no entanto, indestrutível os unia sem atá-los, integrava a todos sem que fosse preciso cortar, furar ou cerzir. Uma linha que apenas sutilmente tocava cada um daqueles seres. Nada da penetração invasiva que... Não, eu não estava lá para lembrar aquilo. Era, portanto, aquele fio sutilíssimo que criava no cenário uma unidade a que podemos chamar “Existência”. Cada um, com o trabalho de simplesmente existir, fazia parte da “Existência”. Todos estavam integrados. Menos eu. Quis, então, nem que fosse por um instante breve, esquecer que sou: 1) mãe, 2) dona de casa e 3) psicóloga. Ainda que por um centésimo de segundo, desejei me integrar àquela totalidade em que os seres se unem por uma linha sutil e forte. Para fazer parte da “Existência”, bastava respirar. Ou nem isso, cumpria apenas existir, feito as árvores, os bichos e as pedras. Observei mais uma vez a paisagem, fechei os olhos e respirei profundamente para me tornar parte daquele quadro. Tornei a abri-los e vi. Primeiro, as unhas coloridas com um vermelho extravagante. Eu não me lembrava de tê-las pintado daquela cor. Depois, o acesso espetado no dorso da mão esquerda, por onde passava o soro que pingava numa lentidão torturante. Senti o cateter enfiado nas narinas e aquilo me causou incômodo. Engoli seco e notei um objeto estranho em minha garganta. Uma sonda, provavelmente. Então, reparei as paredes brancas, o teto muito alto, o aparelho que monitorava o paciente da maca ao lado. Cada coisa em sua existência singular comunicava-se com a outra de um modo invasivo. A enfermeira que, naquele instante,

adentrou o quarto brusca e repentina, a agulha da seringa que ela espetou em meu braço e o medicamento que se injetou em minhas veias causando um ardor quase insuportável: nenhuma integração entre as partes que formavam aquele cenário e, quando uma interpenetrava a outra, deixava sempre um vestígio de destruição. Exatamente como o buraco que eu então percebera próximo ao meu ombro esquerdo, protegido por um curativo. Mais solitária que nunca, fechei os olhos. Ainda não fora daquela vez.” O Fio é um conto inédito de Betzaida Mata e faz parte de uma coletânea ainda em fase de preparação. A autora lançará pela Editora Kazuá o romance O Fundo e A Luz no qual a personagem Carol tem sua trajetória de vida contada desde a infância, crescendo numa família marcada por desencontros, que geraram um sentimento de inadequação ao mundo. Marcada pela lembrança de uma conversa com seu pai, Carol constrói a própria identidade, em meio a conflitos familiares. “Tornar-se quem se é”, o imperativo nietzschiano, pode ser tão fascinante – e perigoso – quanto se jogar nas águas profundas que a personagem enfrentará física e metaforicamente ao resolver se aventurar entre pescadores mergulhadores.

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O artista plástico, escritor e poeta Rodrigo de Haro escreve sobre a criação poética de Pedro Port, que lançará dois livros pela Editora Kazuá. Entrevista com Plínio Camillo, autor de Coração Peludo uma coletânea de contos sobre um único personagem, na qual se apropria dos ritmos das linguagens praticadas nas redes sociais para traduzir suas próprias narrativas. Camillo diz que a função da expressão artística no mundo de hoje é provocar reflexão e questionamentos, e aponta a literatura como “um caminho para contar histórias”. O escritor conversou sobre inspirações, primeiras incursões na escrita, processo criativo, surgimento e tratamento de personagens e a personalidade que imprime aos seus escritos. Conto de Fernando Torres de Andrade, autor de Para quando o entulho soterrar os joelhos. Palavraimagem com a poesia de Lucas Walker. “Sabe quando você se sente abraçado pelas palavras? É assim que Um Travesseiro para Dois me faz sentir. Abraçada, acolhida, compreendida e, algumas vezes, exposta. É estranho ler um conto escrito por outra pessoa e se encontrar ali, perfeitamente descrita, com todos os segredos e sentimentos expostos. É engraçado ler um conto e se sentir protagonista daquela história e ficar pensando ‘mas como ele sabe que eu passei por isso?’. É estranho, engraçado e apaixonante! A gente se apaixona pela leveza da escrita, pela positividade e até mesmo pelos maus momentos, afinal, eles sempre vêm com uma dose de estímulo para fazermos diferente.Nesse travesseiro encontramos histórias criadas por alguém que gosta de observar o mundo e tem um dom especial para captar detalhes que, para muitos, passam despercebidos”. 43


Apoio Cultural:

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