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DUAS MENTIRAS 2006
o mundo continua sendo um breve colapso logo que as pálpebras baixem & meu amor por ti uma profanação consciente de eternas estrelas de rapina Roberto Piva
Longe da blasfêmia, deus algum resiste. F. M.
1. Minha nudez de bruços espalhada pelo sofá dava boa acolhida aos afagos de sua mão. Talvez se espantasse ao tocar-me entre as coxas, pois aqueles dedos esboçavam alguma surpresa antes de mergulharem em minha umidade. Depois me abria toda, com as duas mãos, como se viesse do olhar sua fome maior. E ali, me admirando, mal arriscava um beijo, até que lhe mandasse enterrar-se em mim de vez. Com suportável violência então me atendia, suando todo o peso de seu corpo sobre o meu. Parecia rasgar-me, mas ninguém jamais o fizera tão bem quanto aquele garoto. Não há dúvida: havê-lo morto deixou-me um pouco sem mim.
2. À noite eu lhe disse que seria sua menina, evocaria as forças que fariam dele um maestro a afinar-me toda em cada toque. Foi delicado ao me atar enquanto repetia o que lhe era por mim sussurrado. Meus mamilos queimavam. Ele os mordia cozendo-me em saliva como se fosse óleo. Eu lhe pedia que não deixasse um santo descoberto. Suguei-lhe tudo quanto coube em minha boca. Bem sabia o que fazer enquanto atiçava meus lábios, me incitando a mordê-lo. E o fiz, até que sangrasse um pouco. Porém naquela noite algo lhe espantou o gozo. Deixou-me presa ao chão e se foi. Jamais o pude entender, ou a quem quer que ali tenha estado.
3. Desde quando me visitas, delírio flamejante, enquanto durmo e nem sequer sonho contigo? Não sei como me exploras, porém saberás o quanto me encanta esse queimante latejo que deixa suas marcas em minhas entranhas. Todas as noites eu me enrosco em meu desejo à espera que me venhas consumir como um rito. Presa fácil de tuas virtudes ou perversão, nada disto importa. O que me intriga, anjo ou demônio, é que afinal me evites desperta, que não me queiras enquanto não adormeço. Para onde me levas, desfalecida e sem memória, sem que me deixes vestígio algum além do fogo que quando acordo me inunda a carne inteira?
4. Cenas retiradas de um corte, ainda em sangue, tão invisíveis quanto cicatrizes. Agudeza de gestos imprevistos. Quero provar teu corpo agora, enquanto o extraio do meu, deleitosa habilidade de fazer com que saias de mim ensopado de gozos. Retorna um pouco mais, seu bruxo arredio. Espedaça-me o que reste. Sou tua loba exasperada até que me cegues de tanto prazer. Rimos das cenas que saltam de tuas mordidas e arranhões. A minha dor também te deseja, garimpeiro devasso. Quando me sangras bailam fogos-fátuos, e um quero-quero desponta nos brejos de minha alma. Apenas tu, diabo de homem.
5. Nunca o pude encontrar, residente incerto em todos os lugares. Descria do rigor das formas, entretinha-se a criar receitas com fragmentos de corpos humanos, e em meus braços revivia os amores que tivera com sua mãe. Também eu tinha fome e sede do sangue de sua alma, e nada em meu corpo o acusava de herético. Dosava saliva em mim a enlouquecer-me, deixava-o morder-me a nuca como se gravasse ali um testemunho inextinguível de sua visita. Mas o desgraçado ia sempre embora, sempre, deixando-me o avesso jorrado por toda a casa. Atormenta-me a imagem de ter que matá-lo para dispor de sua morada sempre que o queira.
6. Dorme comigo esta noite. Quem sabe invento um nome para ti. Sei que há quem desconheça como possa vir a ser chamado, ou quem prefira jamais pronunciar o próprio nome. Toco em ti, em tua lasca em desuso enquanto dormes, habitante feliz entre pentelhos, sossegada pela inocência ou pelo amor que não posso crer seja algo além da imagem de meu preciso desejo. Se o extirpo para que não ame outras jamais, dele também me privo, uma prova além de mim. Como arrastar para dentro de si um homem sem que lhe falte tudo o que lhe cabe em vida? Afago-a por baixo e beijo a glande adormecida, enquanto as lágrimas sugerem outro modo de ser.
7. Antes não era assim. Estávamos no poema, elementos esvoaçantes por toda a festa – baile de hereges e corruptos –, estávamos ali, entre anjos bêbados atribuindo culpa a quem seja. Eu te procurava alheio às máscaras, meu reino independente, imaginativo. Homem ou mulher, tu eras sempre único. Não te daria um nome bíblico. Refazes a ti de tuas ilusões como jamais imaginei houvesse alguém. Não quero um olhar piedoso em mim. Tenho que te matar e não sei se algo um dia explique este impulso. O dilema será sempre o meio, o recurso com que desatar tua existência da minha. Um cancro molestando meu amor e requerendo que eu te mate, apenas.
8. Houve um momento em que fiquei apenas contigo. Todos se retiraram e até ríamos, sem saber ao certo quem éramos: um diante do outro. Tu eras só gracejo, com heresias e artimanhas. Imagens camuflavam-se em quimeras portáteis, sacolas de serpentes malignas. Eu sabia que não eras aquilo, que havia uma ilusão adulterada diante de mim, não eras, não eras, não eras nada daquilo, mas era exatamente assim como estavas à minha frente. Como discutir com a vida quando ela se mostra o que não é? A quem interessa a conversão, senão aos desesperados? O mundo também está infectado de mim. Somos tão estranhos entre nós, que todos queremos um mal isolado, uma fatalidade distinta.
9. Uma greta de claridade que nunca soubemos se vinha pelos olhos na cena que se entremostrava a insultar-nos ou pela over the raimbow que o piano de Keith Jarrett afirmava não haver engano. Era assim: era assim: mil vezes buscar o mesmo ponto no mesmo ponto. Andávamos a repetir acordes dispersos da existência, afeitos às boas sementes, crendo na justiça, no poder guardado em salmos, à disposição de selos agudos. Não era apenas como me penetravas. Eram praças, a maneira como o vento me tocava o rosto e a senhora que vendia florais já o reconhecia. Um atracadouro sabia com exatidão o nome que nunca nos dissemos. Ando por aquelas ruas todas, inquieta, sem que nada explique por que não pude deixar de matá-lo.
10. Dissecados ali sobre a mesa: o rosto e a máscara, dilema minucioso de interferências de espectros cujo juízo não cabe sequer a eles mesmos. Ainda que se integre o Diabo aos processos sangrentos da Igreja, toda a repugnância virá de Deus, pela presunção de que poderia salvar a todos. As opiniões suspeitas são filhas da vaidade e não há prova em contrário. Ouvíamos Shakti, nossos corpos entornados no tapete da sala, o vinho de sua saliva embriagando meus mamilos. De qual obra tratávamos senão da latitude desses versos, do caráter da espátula nas cores que lhes revelam os mais secretos dons? Não há destino ou mérito, e todo juízo deriva sempre de uma frustração.
11. Tocava meu corpo de ouvido, disposição gráfica alguma do acaso me despertaria melhores gozos. Cheiro de anca, joelho se mostrando acanhado, solecismo de intervalos indecisos, flancos irônicos, ríamos de tudo com ele vendado e sendo vidente de meus afrescos e retábulos. E identificava-me o fundo da agulha como se lhe fosse o criador. Arejava-me a bunda a lamber-me em toda parte, rumorejando: nem Pollock ou Bandeira captariam a abstração rugosa deste pequeno centro do mundo. E detalhava cidades inteiras na ponta da língua, imagens que o meu suplício gozoso logo desfazia em sua volúpia de restaurar o mundo a cada hora. Como recriá-las agora, desfeita a semelhança?
12. Quem foi? O Diabo não diz. Deus não se encontra. A vida reduz o trabalho da imprensa a um mesmo lugar-comum. Mesmo que eu declare minha culpa não haverá provas. Não há motivo nem se localiza a arma do crime. Estás simplesmente morto, um conflito a menos nas relações diplomáticas. Houvéssemos planejado isto e nem seria preciso desferir-te um golpe fatal. Ocultaria teu corpo por algum tempo e logo me voltarias a foder, meu anjo, como nenhum outro homem jamais jamais. Quanto em nós consumimos amanhando o impossível? Que horrores justificam o amor ausentar-se de si? Quantas vezes então terei que matá-lo, diabinho, até que me identifiquem e eu possa dizer quem és?
13. Na banheira o riso é que nos sacode e nem pensamos em carnes trêmulas ou restos humanos empurrando-se uns aos outros no matadouro das ruas. Não estamos no maio de 68 ou talvez dali nunca tenhamos saído. A conspiração é filha dos pontos de interesse. Pregoeiros como Dennis Arcand ou Bernardo Bertolucci, compreendem a ação do punhal na banheira de maneiras distintas. Dennis esvazia seus filmes dos formidáveis tolos que ainda acreditam na inocência. Bernardo se sente atravessando um nevoeiro, e impõe a seus personagens uma visão que afinal lhes é cedo para conquistá-la. Quando o meu amor me mordiscava os dedos dos pés, na banheira, nos lembrávamos de Peter Weiss, da alucinação da realidade representada em um hospício, loucos atores que indagavam “que cidade é esta na qual a carne está nua nas ruas?” E enquanto ouvíamos Joss Stone e tomávamos um Quinta do Côtto nos entreolhávamos: quantos suportarão tudo antes de se vingarem? O meu amor dedilhava minha xota submersa e não segurávamos punhal algum em nossas mãos. “Longo ruflar de tambores”, dizia ele. Eu ria e cheia de admiração confessava que o dedão de seu pé era o máximo dentro de mim.
14. Em que cidade te encontras? Toda vez que tocava eu o instigava rindo. Já te decidiste quantos queres ser em mim? Sabes quanto suporto, meu anjo? Tuas privações se multiplicam e quase todas são fruto de uma falsa ideia de justiça no mundo. Põe tua mão bem aqui. Não te disfarço a umidade. Eu te quero bem mimoso dentro da confissão, e que lambas em mim as escamas mais desconformes. Os raros desenhos dos pratos de meus gozos são teus. Só não me insultes com a anatomia do irreversível. Tudo já foi embora ou aguarda sua oportunidade. Não há crises ou queixas, inspiração ou agonia. Aos indecisos não sobra sequer um prego, uma hora marcada na jaula a que se recolhem. Eu nos vejo.
15. Adoro quando me fotografas nua, inaugurando ângulos insuspeitos. Ver meu corpo assim dobrado em elegâncias e desvarios, rindo com o desaparecimento súbito de certos conceitos, como se não mais tumultos e assobios nos arrastassem a revolução alguma, perceber como escreves levado apenas por um segundo, que não queres construir nada, que isto caberá um dia à tua escrita ou a teus leitores, por isto és tão livre para soterrar belezas e pôr em dúvida o fanatismo disfarçado de harmonia… De que outra maneira eu leria um manuscrito teu ao lado da câmara digital? Eu sempre soube de nossa impossibilidade, mas quis levá-la até o limite porque te amo demais. Contudo, indago se este não é um pastiche do cinema francês que tanto detestamos? Por que agora descarnar a lucidez em busca de um palimpsesto da miséria intelectual já compreendida e refutada? A nenhum homem entreguei a minha nudez tão sem obstáculo. Ensaiávamos juntos o meu deleite quando me agarravas. Tu me amas demais? Insuficientemente de menos? E não conta o quanto eu te amo? Queres que eu repita com todo o meu ser o quanto me amas e que até sonhe com isto? E quando me darás o teu amor? Empurro-te com o pé e amarroto teu nariz a quase te deixar sem fôlego. Eu não quero ter razão, mas sim que te desfaças de tuas migalhas de presunção. Somos apenas o que neste instante estamos a ser. Se não compreendes isto, poeta, não terei remorso algum em matá-lo.
16. Deitávamos para o filme e nos púnhamos para além do mesmo. Quando estava bem uma Emma Thompson ou um Sean Penn, o vinho se enriquecia e as mãos ameigavam nossos pêlos sob o edredom como se fôssemos nós a melhor representação de cada cena. Diante de uma má atuação, as mãos não se continham e refazíamos o enredo, fosse contra os cátaros ou a excomunhão de algum dualismo não revelado. O amor não tem nenhum apreço pela história. Não há lei divina que escreva tão bem seus postulados quanto o jorro picante do esperma de meu homem dentro de mim. Emenda tuas doutrinas umas nas outras de tal forma que não tenhas, a custo, que ilustrar o meu mundo. Apenas tua heresia pacifica e me abrasa as dádivas.
17. Os corpos dançavam todos, como se expulsassem os espíritos corruptos. Nus com asas, ilustrados feito uma parábola insofismável, cuja escritura os evitasse por temor. Quantos laços eclesiásticos não foram rompidos por taras, em penas mitigadas pela autoridade subversiva do esplendor a todo custo? Qual doutrina pode se basear na descrença absoluta? Quantas almas constituem um rebanho em termos de mercado? O que cabe ainda a Deus entender antes que se sinta de todo inutilizado? Pus um lençol sobre o corpo inerte de meu amor e o segui tocando como se quisesse reavivá-lo. Só não escondeu de mim sua memória, frações onde o safado disse aguardar-me em outra cama.
18. Por onde querem que caia a queda? Pelo punhal sob o lenço sonegado ou pelo disparo de origem indeferida? Por onde matamos o amor de uma forma regulamentada pela lei? O amor acaba por se confundir com tudo e pode ser o estopim de uma matança estúpida. De quem me aproximo? Com quem falo? Quantas vezes a fatalidade não atua no lugar da coincidência? Como duas amigas que trocaram de turno no plantão de um hospital. Pelas mãos de quem exatamente morre o amor? imaginemos um mundo tão soterrado de respostas quanto de perguntas. Seria mais fácil
amar e escrever livros menos conflitantes? De repente me ocorre aqui que a vida nos leva sempre a matar a ela mesma. Fosse apenas um romance e por tudo o que ali houvesse de mim, o que estaria a derrotar senão a própria linguagem? Todo este homem que tanto amei, cujo frêmito eu sinto ainda a pronunciar-me um despenhadeiro langoroso por todo o ser, todo ele é apenas linguagem que desbarato ao fim de um livro? E se outros amores me ocorrem, saio a confundir seus clamores afundando-me na puríssima areia mítica da semelhança de páginas de todos os livros? Então o que buscamos em tais papiros senão uma pérola impura do que de fato somos? Contaminação, sordidez, lascívia? Disfarce do que afinal mais tememos encontrar em nós? Um livro como um ponto de fuga, semelhança secreta, ficcional ao tornar-se mais fácil negá-la? Por isto dormimos todos apodrecidos de nossa própria morte. Se vasculhar por entre móveis, decerto encontrarei clavículas ou rótulas desse monstro de pedra ígnea que me sacudiu toda a existência. Desfazia-me com ungüentos de sua doçura harmonizada em meus poros. Ágrafo capaz de me revelar escritos submersos. Se não pensei em refazer a queda, em deixar de lado o livro, em sair a buscar seus pedaços a ver se o recompunha como um ser redivivo,
é que desconheço como os despojos comungam entre si, se são incondicionalmente insurrectos, que ideias cada uma de suas partes considera acerca do prodígio da rearticulação. Só agora dei por mim: se não há lei que regulamente a morte do amor, em que base restabelecê-lo? Sem cairmos em golpes de linguagem, como tratar de entranhas sem que sejam prevenidas que saem gotas de sangue de mármore e papel? E de que serve tudo isto? Entramos em um reino crepitante de línguas que roçam nossa pele e nos atormentam de maneiras palpitantes. Os remos chegam forjados e nem desconfiamos que vamos apenas remar, apenas, apenas remar. Então por onde matamos esse amor, forrando em trapos a hemorragia com que o destroçamos quando não havia mais recurso à difamação? Representamos a queda, a grácil similaridade entre o trágico e o cômico, o uso do punhal, e a regulamentação da lei tão sobrecarregada de lacrimosas origens e verbetes hesitantes? Não há lei para nada. Nisto nos prolongamos.
19. Não rompe nunca o pano. Os detalhes sangrentos não passam de improvisos. Umas poucas imagens quisera retocar, porém o morto já ali estava, dessangrado e sem recurso a novos argumentos. Não me serviam as vestes de sombras em terracota, e suas vozes escorreram todas pelo proscênio. Nunca se sabe ao certo com que morto se pode contar em um teatro em ruínas, o oficial de justiça por vezes sendo o único espectador. Além de nós, as vítimas mais abjetas de tudo o que escrevemos. Seríamos semelhantes ao rosto estriado de um diabo que não costuma nos revelar de todo o que somos? Ou mal reconhecemos nosso espírito o mudamos, para que não nos venha dominar o que tememos?
20. O que planejas? O tolo marcava a nós uma faixa, sentado ao pé da estante. Vinha então me apertar os seios com aqueles laços e era tanta a doçura que meus requebros desafiavam a música que nos acompanhava. E espremia cerejas em meu peito, sugando-as como se lesse a mais esplêndida beleza tatuada no abismo iminente. O ar está tão róseo na tarde e não sabia como amá-lo ainda mais se isto acaso me fosse pedido. Quem nos toca nessa porta? O que deseja? Quem pensa que mora em nós? O amor é para ser dito de uma só vez e mesmo assim não vou dizê-lo.
21. Quando me sentei aqui para escrever este livro tua ausência ainda me doía. Não pude contar a ninguém que te matei, nem o que fiz com teu corpo. O assunto é fácil de resolvê-lo, bem mais que a sedução de compartir com alguém nossas migalhas da existência. Quando se perde um filho até se pode levar uma amiga ao cemitério ou dizer do rádio imprestável que simplesmente foi posto no lixo. Mas quando se mata o homem que se ama e esconde seu corpo, o que enunciar a quem quer que seja? E quando se tem dúvida onde este corpo esteja? E quando já não se sabe se de fato o matou? Tu me dóis tanto em mim que já não sei ao certo o que fiz de ti.
22. Os mortos se escondem por toda parte em nós. Cobrejam quando o assunto é terreno e lavram suas asas quando o vento lhes é benfazejo. Afinal já estão mortos e de nada podem valer. Que ajam assim os vivos já é outra doutrina, tornada a imaginação um distúrbio e a crença uma encenação desprovida de toda originalidade. Numa noite assim teu corpo desce sobre o meu e a minha nudez é tanta que a tens com tudo, e é tão bom que me penetres, que tuas árvores sejam pássaros e teus casebres nuvens, e a flor de teu sexo seja afável no meu e os mortos não caibam em cena sequer na memória, pois eu verdadeiramente te amo, e te quero bem vivo.
23. Eras assim, meu anjo de quantas asas? Toda a música que me tocavas, era assim? Bagres lascivos em suas guelras com entradas secretas, exuberância dissoluta por onde se entrevia um banho de quimeras, malícia de falos levitando em penhascos… Era este o teu livro? Pinturas de naufrágio, relicário de árvores decaídas como corpos celestes ou o tombo de amantes decepadas pelos pés… Toda a força humana moída por um cancro na imaginação, as inúmeras formas descritas disformes… Estás mesmo escrevendo este livro? E ainda me queres tua puta de meia idade, tu com a tua matança humana disfarçada em versos, teu deplorável enredo romântico: quantas vezes mal olhastes em direção a teus pés? E já nem me lembro ao certo onde te enterrei:
24. Não vejo nenhum policial. Ninguém deu pela tua falta. A dúvida maior ficou comigo: não há quem me faça recordar o que fiz com teu corpo. Um de nós não passa de um lapso de memória. Não é que queiramos poupar um ao outro, mas simplesmente não sei o que fiz de ti. Nos banhávamos o corpo todo de vinho, esperma, cereja, e por vezes sangrávamos um pouco, entre risos. Um flagelo poético que a música ajudava a dissipar. Mas onde estás agora? Não quero com isto te propor uma ausência erudita. Assim vais acabar me matando. Onde estás, diabo? Onde enfiei a porcaria de teu corpo morto? O mal de tua ausência me sufoca. Não passas de um reles amante desaparecido, sórdida criatura que se nega a aceitar a morte. Mostra-te, feiúra corroída por teu desamor…
25. Tu me eras tudo: como me tocavas bem dentro, na carne e no espírito, sem jamais separá-los. A vida de ninguém está preparada para o amor. A poesia, a liberdade e o amor decerto são fraudes mais patéticas do que a polidez que por vezes os quer fazer de reféns. Álibi ou simulacro, é fato que há um programa de recapacitação de hereges. Proscrita ou prescrita: a tinta será sempre um risco. Não sei se tive um amante, se vivi um louco amor e o matei. “Desperto dando gritos alheios”, como se vivesse um verso de Díaz-Casanueva. Dedicar-me a estas memórias, faz com que me identifique a rostos iluminados por uma imagem que se repete: nada sei de mim: não me lembro ao certo o que fui.