Justiça Federal: estudos doutrinários em homenagem aos 45 anos da AJUFE

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Roberto Carvalho Veloso Fernando Quadros da Silva

JUSTIร A FEDERAL

estudos doutrinรกrios em homenagem aos 45 anos da AJUFE

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Editora D’Plácido Av. Brasil, 1843, Savassi Belo Horizonte – MG Tel.: 31 3261 2801 CEP 30140-007

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Plácido Arraes Produtor Editorial

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Tales Leon de Marco Capa, projeto gráfico

Letícia Robini

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios, sem a autorização prévia do Grupo D’Plácido.

Diagramação

Christiane Morais de Oliveira Bárbara Rodrigues da Silva Enzo Zaqueu

Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica Justica federal: estudos doutrinários em homenagem aos 45 anos da AJUFE. VELOSO, Roberto Carvalho; SILVA, Fernando Quadros da. [Orgs.] -- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017. Bibliografia. ISBN: 978-85-8425-716-4 1. Direito I. Título. II. Artigos CDU340

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CDD340

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APRESENTAÇÃO

A Associação dos Juízes Federais do Brasil completa 45 anos de fundação, que se deu no dia 20 de setembro de 1972, cinco anos depois da instalação do segundo período da Justiça Federal, ocorrido no ano de 1967. Portanto, as duas histórias caminham lado a lado, a da Ajufe e a da Justiça Federal. Era uma época difícil porque vivíamos sob o governo dos militares e as liberdades não eram a tônica do regime constitucional vigente. Os primeiros juízes federais tiveram de prestar a jurisdição com altivez e destemor. Pensou-se, equivocadamente, que se estava reinstalando uma justiça para fazer o que o governo federal queria, o que a vontade dos governantes determinava. Ledo engano, em 1967, há 50 anos, começava a funcionar uma justiça independente. Os Juízes cumpriram à risca o que está dito de Deuteronômio 16:19: “Não torcerás a Justiça, não farás acepção de pessoas, nem tomaras suborno, porquanto o suborno cega os olhos dos sábios e subverte a causa dos justos.”

Se somos reconhecidos como uma Justiça séria, honesta e comprometida com o julgamento dos casos graves ocorridos no Brasil, isso se deve em grande parte ao trabalho desenvolvido pelos juízes federais que fundaram a Ajufe em 1972. A Ajufe está em seu décimo sétimo presidente e a sua história é de lutas em defesa de seus associados. São 45 anos de profícua atividade associativa com importantes conquistas para a Justiça Federal e para a sociedade brasileira, sendo a principal delas a garantia da independência judicial. Passamos por muitas dificuldades remuneratórias ao longo da existência da associação, mas sempre reagimos com dignidade e altivez, até o auge de termos de realizar um movimento paredista no final da década de 90. A Ajufe foi a maior defensora da instituição do teto remuneratório para o serviço público e ainda hoje luta para que este seja observado pelos três poderes. Se há irregularidades, estas devem ser coibidas. No âmbito do Judiciário, o órgão responsável para o exercício desse controle é o Conselho Nacional de

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Justiça, que a emenda 45 criou para, entre outras atribuições, verificar anomalias no sistema remuneratório. A Ajufe se contrapõe à campanha que se tenta fazer contra o Poder Judiciário, atacando-o de todos os lados com a finalidade de enfraquecê-lo e assim diminuir o enfrentamento à corrupção. A Ajufe defende o Judiciário e a sua independência porque é sabedora de que este é um dos pilares do Estado Democrático de Direito e o seu enfraquecimento somente interessa aos que tramam às escondidas contra a Democracia. Por isso, resolvemos marcar a comemoração dos 45 anos da Ajufe com a publicação deste livro. Nele estão reunidos artigos referentes à Justiça Federal e à Ajufe, fazendo do livro uma referência para os que pretendem estudar temas relacionados às atividades cotidianas dos juízes federais. O tema é mais do que oportuno diante da inserção social das decisões tomadas pelos magistrados federais. A Justiça Federal tem sido demandada a resolver problemas que antes não chegavam ao Judiciário, principalmente no âmbito das políticas públicas. É também inegável o papel desempenhado na esfera criminal com as operações contra a corrupção deferidas no âmbito da Justiça Federal, causando verdadeira revolução na impunidade até então existente, em especial quando se referia aos poderosos. A partir desses parâmetros, ilustres associados participam desta obra com profícuos artigos sobre a Justiça Federal: evolução histórico-legislativa, a gestão da comunicação da Ajufe no biênio 2014-2016, breves apontamentos sobre as execuções fiscais ajuizadas por Conselhos de Fiscalização Profissional no âmbito da Justiça Federal, as diferenças de regime indenizatório nas modalidades de expropriação no âmbito da responsabilidade civil do estado, benefícios não-contributivos da previdência social e redução das desigualdades sociais no meio rural, impacto nos cenários político, econômico e social após a atuação das varas federais criminais especializadas em lavagem de dinheiro e crimes financeiros, o sistema de precedentes vinculantes e o incremento da eficiência na prestação jurisdicional: aplicar a ratio decidendi sem rediscuti-la, salsichas, pães e ministros: uma reflexão crítica sobre o processo de escolha dos membros do STF, a conciliação como forma consensual de resolução de conflitos e de acesso à ordem jurídica justa e efetiva, a Justiça Federal em ação na garantia dos direitos fundamentais: a inconstitucionalidade material da cobrança de contribuição previdenciária do segurado aposentado, tutela de evidência do crédito tributário federal: notas sobre a indisponibilidade de bens e penhora eletrônica, análise econômica do processo civil brasileiro, a justiça restaurativa sob a perspectiva dos crimes de competência da justiça federal: considerações a partir do caso paradigmático da 7ª vara federal de Florianópolis, a tutela provisória de urgência: breves relexões sobre sua concessão de oficio na Justiça Federal, apontamentos sobre a coisa julgada no Novo CPC, a competência cível da Justiça Federal e a cumulação de pedidos: comentários ao art. 45 do

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CPC/2015, conflitos, humanismo e jurisdição: a conciliação na Justiça Federal da Primeira Região, o acidente ecológico ocorrido em agosto de 1998 no complexo portuário da Cidade de Rio Grande com o afundamento do navio maltês “Bahamas”, aplicação do princípio da proporcionalidade como limitação ao direito de punir, limites jurídicos da delação premiada e a necessidade de controle recursal contra a sentença homologatória, por trás das decisões de juízes: algumas breves considerações sobre modelos de decisão judicial, varas federais ambientais: experiência, dificuldades, perspectivas, breves notas sobre a prestação jurisdicional efetiva e os caminhos, apontados pelo novo CPC: a ampliação do acesso à justiça em face dos métodos autocompositvos de solução dos conflitos. A publicação deste livro representa um marco na comemoração dos 45 anos da Ajufe e, com certeza, contribuirá com o estudo de temas relacionados à Justiça Federal. Boa leitura a todos. Roberto Carvalho Veloso – Presidente da Ajufe Fernando Quadros da Silva – Diretor da Revista

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ATUAL DIRETORIA DA AJUFE

BIÊNIO 2016-2018

SOCIAL

PRESIDENTE

Marcelo da Rocha Rosado

Roberto Carvalho Veloso

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

VICE-PRESIDENTES

Raquel Coelho Dal Rio Silveira

1ª Região: André Prado de Vasconcelos 2ª Região: Eduardo André Brandão de Brito Fernandes 3ª Região: Marcelle Ragazoni Carvalho 4ª Região: Nelson Gustavo Mesquita Ribeiro Alves 5ª Região: Antônio José de Carvalho Araújo

ASSUNTOS LEGISLATIVOS

SECRETÁRIO-GERAL Fernando Marcelo Mendes PRIMEIRO-SECRETÁRIO Rodrigo Machado Coutinho

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Carlos Eduardo Delgado RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Candice Lavocat Galvão Jobim ASSUNTOS JURÍDICOS Alexandre Ferreira Infante Vieira ESPORTES Gabriela Hardt

TESOUREIRO

ASSUNTOS DE INTERESSES DOS APOSENTADOS

Frederico José Pinto de Azevedo

Sérgio Feltrin Corrêa

REVISTA

COMUNICAÇÃO

Fernando Quadros da Silva

Paulo André Espirito Santo Bonfadini

CULTURAL

ADMINISTRATIVO

Marcos Mairton da Silva

Alexandre Berzosa Saliba

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TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO Marcelo Lelis de Aguiar COORDENADOR DE COMISSÕES Fábio Moreira Ramiro PRERROGATIVAS Marcel Citro de Azevedo SUPLENTES Paulo César Villela Souto Lopes Rodrigues Fernando Nardon Nielsen Sandro Nunes Vieira Ronivon de Aragão CONSELHO FISCAL Claudio Kitner José Airton de Aguiar Portela Marianina Galante Leonardo da Costa Couceiro (suplente) Marcelo Guerra Martins (suplente)

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SUMÁRIO

1. Justiça Federal: evolução histórico-legislativa

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Alexandre Vidigal de Oliveira

2. Gestão da comunicação da Ajufe no biênio 2014-2016

29

Antônio César Bochenek

3. Breves apontamentos sobre as execuções fiscais ajuizadas por Conselhos de Fiscalização Profissional no âmbito da Justiça Federal 39 Bernardo Tinôco de Lima Horta

4. As diferenças de regime indenizatório nas modalidades de expropriação no âmbito da responsabilidade civil do estado

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Fabio Luiz de Oliveira Bezerra

5. Benefícios não-contributivos da previdência social e redução das desigualdades sociais no meio rural 69 Fabio Luiz de Oliveira Bezerra

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6. Impacto nos cenários político, econômico e social após a atuação das varas federais criminais especializadas em lavagem de dinheiro e crimes financeiros 81 Fausto De Sanctis

7. O sistema de precedentes vinculantes e o incremento da eficiência na prestação jurisdicional: aplicar a ratio decidendi sem rediscuti-la 101 Frederico Augusto Leopoldino Koehler

8. Salsichas, pães e ministros: uma reflexão crítica sobre o processo de escolha dos membros do STF

113

George Marmelstein

9. A conciliação como forma consensual de resolução de conflitos e de acesso à ordem jurídica justa e efetiva

123

Gustavo Catunda Mendes

10. A Justiça Federal em ação na garantia dos direitos fundamentais: A inconstitucionalidade material da cobrança de contribuição previdenciária do segurado aposentado 139 Luciano Tertuliano da Silva

11.Tutela de evidência do crédito tributário federal: notas sobre a indisponibilidade de bens e penhora eletrônica 151 Marcelo Barbi Gonçalves

12. Análise econômica do processo civil brasileiro 163 Marcelo Guerra Martins

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13. A justiça restaurativa sob a perspectiva dos crimes de competência da Justiça Federal: considerações a partir do caso paradigmático da 7ª vara federal de Florianópolis 183 Micheli Polippo Cristiane Martins de Paula Luz

14. A tutela provisória de urgência: breves reflexões sobre sua concessão de oficio na Justiça Federal 199 Mônica Lúcia do Nascimento Alcantara Botelho

15. Apontamentos sobre a coisa julgada no Novo CPC

213

Newton Pereira Ramos Neto

16. A competência cível da Justiça Federal e a cumulação de pedidos: comentários ao art. 45 do CPC/2015

241

Oscar Valente Cardoso

17. Conflitos, humanismo e jurisdição: a conciliação na Justiça Federal da Primeira Região 251 Reynaldo Soares da Fonseca Gabriel Campos Soares da Fonseca

18. O acidente ecológico ocorrido em agosto de 1998 no complexo portuário da cidade de Rio Grande com o afundamento do navio maltês “Bahamas” 265 Ricardo Nüske

19. Aplicação do princípio da proporcionalidade como limitação ao direito de punir 277 Roberto Carvalho Veloso

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20. Limites jurídicos da delação premiada e a necessidade de controle recursal contra a sentença homologatória 289 Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar

21. Por trás das decisões de juízes: algumas breves considerações sobre modelos de decisão judicial 313 Sergio Nojiri

22. Varas federais ambientais: experiência, dificuldades, perspectivas

325

Silvia Regina Salau Brollo

23. Breves notas sobre a prestação jurisdicional efetiva e os caminhos apontados pelo novo CPC: a ampliação do acesso à justiça em face dos métodos autocompositvos de solução dos conflitos 337 Sylvia Marlene de Castro Figueiredo

Autores 351 Lista de presidentes e diretores da AJUFE, desde a criação

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JUSTIÇA FEDERAL: EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA1

Alexandre Vidigal de Oliveira2 A trajetória histórico-legislativa da Justiça Federal no Brasil tem início com a concretização dos ideais republicanos, consolidados na proclamação República, e já no Governo Provisório, sob a égide da Constituição Provisória da República, publicada com o Decreto n. 510, de 22/06/1890, é editado o Decreto n. 848, de 11/10/1890, tratando da criação, organização, composição e competência da Justiça Federal e instituindo também o processo federal. Neste primeiro momento de sua criação a estrutura da Justiça Federal é formada, em primeiro grau, pelos Juízes de Secção e, em segundo grau e última instância, pelo Supremo Tribunal Federal. Essa estrutura orgânica e funcional da Justiça Federal, em sua primeira concepção, inaugura, na realidade, mais do que uma Justiça Federal, o próprio Poder Judiciário da União e revela que a partir de então o Poder Judiciário Nacional passa a ser integrado pela Justiça dos Estados e por aquela Justiça da União. Até então, e ainda sob a égide da Constituição Política do Império do Brasil, de 25/03/1824, o Poder Judiciário Nacional identificava-se como Poder Judicial e tinha sua estrutura formada pelos Juízes de Direito e Jurados, na 1ª instância, pelas “Relações” em cada uma das Províncias, como órgãos de 2ª instância, e pelo Supremo Tribunal de Justiça, como órgão de cúpula do Poder Judicial. Os objetivos desejados com a criação da Justiça Federal foram bem explicitados na Exposição de Motivos do Decreto n. 848, de 1890, e deles Este artigo, sob o título JUSTIÇA FEDERAL. EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA foi originariamente escrito e publicado em setembro de 1996. Na época, um texto pioneiro no tema. Passados mais de 20 anos, é agora reescrito em homenagem aos 50 anos de instalação da Justiça Federal nessa segunda fase de sua história. 2 Juiz Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Mestre e Doutor em Direito pela Universidad Carlos III, de Madrid/España. E-mail: alexandre.oliveira@trf1.jus.br 1

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se destacando, dentre outros, a primeira iniciativa de se instaurar no Brasil o controle da constitucionalidade das leis: “A magistratura que agora se instala no país, graças ao regime republicano, não é um instrumento cego ou mero intérprete na execução dos atos do poder legislativo. Antes de aplicar a lei cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção, se ela lhe parecer conforme ou contrária à lei orgânica”.3

Inspirou-se a criação da Justiça Federal, quanto à sua organização e alcance jurisdicional, na Justiça Federal norte-americana de 1789, extraindo-se, também, quanto à delimitação de seu campo de atuação, alguma experiência da Justiça Federal da Suíça, de 1874, e da Justiça Federal da ‘’Confederação Argentina”, por sua lei de organização judiciária de 18834. Na sua primeira organização, a Justiça Federal era exercida pelos Juízes de Secção, Juízes Substitutos e Juízes “ad hoc”, como membros de 1ª instância, todos de livre nomeação pelo Presidente da República. Os Juízes “ad hoc” atuavam nos casos onde não pudesse funcionar o Juiz Substituto. Em 2ª e última instância a Justiça Federal era exercida pelo Supremo Tribunal Federal, composto por 15 Juízes, livremente nomeados pelo Presidente da República, após aprovação do nome pelo Senado. Atuava também o STF como órgão de competência originária e de única instância, e, desta, sendo de se destacar o controle de constitucionalidade verificado apenas de modo difuso, inclusive quanto às decisões da Justiça Estadual. Na sua concepção original, cada Estado, assim como o Distrito Federal, formavam uma Seção Judiciária, totalizando 21 Seções5, com sede na capital, e integrada apenas por um Juiz de Secção e um Juiz Substituto, este com exercício por um período limitado de 6 anos, e, em ambos os casos, para investidura no cargo, devendo aqueles Juízes ser bacharéis em Direito com pelo menos 4 anos de exercício da advocacia ou magistratura, não se exigindo limites de idade. Como aspectos de relevo na primeira instituição da Justiça Federal, tem-se “a instauração do princípio da inviolabilidade ao direito de defesa, nos moldes dos tribunais ingleses e americanos”6, a garantia da “soberania do cidadão com a adoção de fórmulas mais singelas, mais promptas, e de maior eficácia na preservação dos direitos individuais”7; a criação do Júri Federal; a integração do Ministério Público Federal junto à Justiça Federal, sendo o seu Procurador-Geral um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, com nomeação vitalícia naquele cargo e perda das funções da magistratura, e funcionando em cada uma das seções judiciárias um Procurador Parte integrante da Exposição de Motivos do Decreto n. 848, de 11/10/1890, pelo ex·Presidente da República Manoel Ferraz de Campos Salles (JUSTIÇA FEDERAL-LEGISLAÇÃO. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1993, 428 p.) 4 Ibid. 5 Ibid. 6 Ibid. 7 Ibid. 3

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da República nomeado livremente pelo Presidente da República, com exercício por apenas 4 (quatro) anos; e, por fim, dispondo de uma sistematização processual própria, formada por 342 artigos, e denominada Processo Federal. Quanto à competência, fora ela prevista, com relação ao Supremo Tribunal Federal, em 16 dispositivos contidos no art. 9°, e, atinente às Seções Judiciárias, em 10 dispositivos, nos arts. 15 e 19, ambos do Decreto n. 848, de 1890, sendo, por esses dispositivos definida a competência em razão da pessoa, da natureza ou do objeto da ação. Com a Constituição Federal de 24/02/1891, tem-se a manutenção da Justiça Federal nos mesmos moldes do Decreto n. 848/1890, acrescentando-se, porém, os Tribunais Federais, mas sem se delimitar o seu campo de atuação, observando-se a definição de sua competência juntamente com a dos Juízes Federais. Esta CF não define mais a quantidade de Juízes Seccionais, e nem dos Tribunais Federais, conferindo ao Congresso Nacional a criação daqueles cargos. A organização da Justiça Federal é completada pela Lei n. 221, de 20/11/1894. Dela consta a criação, em substituição ao Juiz “ad hoc”, dos cargos de Juiz Suplente do Substituto do Juiz Seccional, em número de 3 Juízes Suplentes na sede do Juiz Seccional, e, fora da sede, de acordo com a iniciativa do Juiz Seccional e criação por decreto do Governo Federal. Esses Juízes Suplentes são nomeados por indicação do Juiz Seccional, para exercício durante 4 anos. Do art. 2°, § 2°, daquela Lei observa-se que os Suplentes serão escolhidos, preferencialmente, dentre graduados em Direito, exprimindo-se, daí, não ser obrigatória tal graduação. Essa lei traz como novidade, também, a definição dos critérios de apuração de antiguidade dos Juízes Seccionais; a redução de prática forense para ingresso na magistratura federal, de 4 anos, prevista anteriormente pelo artigo 14, do Decreto n. 848, de 1890, para 2 anos, aí considerando-se tanto a advocacia, a judicatura ou o Ministério Público; a possibilidade de o Juiz Seccional nomear, pela ausência de Procurador da República no Estado, Procurador “ad hoc”; estabelece a cessação de competência delegada à Justiça do Estado, até então assegurada pelo Decreto n. 1.420-A, de 21/02/l891, e quando empossado o Juiz Suplente do Juiz Substituto na circunscrição. A Lei n. 221, de 1894, reporta-se aos Tribunais Federais, de passagem, apenas em um artigo (art. 1B, caput e § 10), mas sem qualquer explicitação quanto às suas atuações. Por sua vez, tem-se com essa lei uma ampliação substancial da competência do Supremo Tribunal Federal, dos Juízes Seccionais, e do Júri Federal, destacando-se, quanto a este, dentre outras, a sua competência para julgar os crimes de resistência, desacato e desobediência contra funcionário público federal, de falsificação de papéis públicos, de falso testemunho e de contrabando. Pelo Decreto n. 3.084, de 05/11/1898, regulamentador da Lei n. 221, de 1894, é aprovada a “Consolidação das Leis referentes à Justiça Federal”. Por esse Decreto passa-se a denominar a Justiça Federal como Justiça da União, composta pelo Supremo Tribunal Federal, Juízes Seccionais, Substitutos e Suplentes, e Tribunais do Júri Federal. Não há qualquer menção aos Tribunais Federais 17 BOOK.indb 17

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aos quais se referiam os arts. 55, 58 e 60, da Constituição de 1891, e o art. 1B, caput, e § 10, da Lei n. 221, de 20/11/1894, pelo que se deduz não terem sido efetivamente criados estes Tribunais. Tanto é que, na ausência de Ministros do Supremo Tribunal Federal para o quorum das sessões daquela Corte, os Juízes Seccionais é que seriam convocados para comporem-no, conforme observa-se pelo art. 7º do Decreto n. 3.084, de 1898. É certo que nos arts. 9°, alínea i e 270, daquele mesmo Decreto, havia remissão aos Tribunais Federais, mas esta certamente estaria se referindo aos Tribunais do Júri Federal. Esse Decreto volta a exigir a prática de 4 anos de advocacia ou magistratura para escolha de Juiz Seccional pelo STF, e não mais 2 anos como previsto pela Lei n. 221, de 1894. O exercício do cargo de Juiz Substituto mantém-se pelo período de 6 anos. Já os Juízes Seccionais e os Ministros do Supremo Tribunal Federal gozam da vitaliciedade, aposentando-se apenas por invalidez, e sendo esta, em todo o caso, presumível aos 75 anos de idade, e com proventos proporcionais após 10 anos de serviço, e integrais após 20 anos de serviço. Oportuno frisar é que, nesta época, a competência do STF também se firmava em razão da alçada, e de modo que lhe caberia julgar as causas com valor superior a 2.000 $, e se inferior, o conhecimento da causa estaria submetido ao Juiz Seccional, na forma dos arts. 80 e 66, daquele Decreto. Com o advento da Constituição Federal de 1934, o Poder Judiciário da União passa a constituir-se pela “Corte Suprema”, Juízes e Tribunais Federais, Juízes e Tribunais Militares e Juízes e Tribunais Eleitorais. Os Juízes Federais são nomeados pelo Presidente da República, em lista quíntupla elaborada pelo Supremo Tribunal Federal, dentre cidadãos de reconhecido saber jurídico e reputação ilibada, sendo, pela primeira vez, estabelecido limite de idade, no caso, entre 30 e 60 anos. A CF/34 remete à lei a criação dos Tribunais Federais e apenas para o julgamento das revisões criminais e dos conflitos de jurisdição afetos a causas da competência dos Juízes Federais. A Constituição Federal de 1937 extingue a Justiça Federal, passando o Poder Judiciário Nacional a ser formado pelo Supremo Tribunal Federal, pelos Juízes e Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, e pelos Juízes e Tribunais Militares. Não é prevista também a manutenção da Justiça Eleitoral. Os Juízes Federais com mais de 30 anos de serviço são aposentados com vencimentos integrais, e, os que não dispõem daquele tempo de serviço ficam em disponibilidade com vencimentos proporcionais. Fato relevante dá-se com a Constituição Federal de 1946, a qual restabelece a estrutura funcional da Justiça Federal, com a criação do Tribunal Federal de Recursos, passando o Poder Judiciário da União a ser formado, além deste, pelo Supremo Tribunal Federal, pelos Juízes e Tribunais Militares, pelos Juízes e Tribunais Eleitorais e pelos Juízes e Tribunais do Trabalho. A Justiça Federal de 1ª instância não é recriada com organização e composição próprias, sendo a sua jurisdição exercida pelos Juízes de Direito da Capital dos Estados e do Distrito Federal. Nas causas que estes vierem a julgar e se a União Federal for interessada corno autora, ré, assistente ou opoente, os recursos cabíveis serão 18 BOOK.indb 18

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da competência do Tribunal Federal de Recursos, cuja composição inicial fora prevista em 9 Juízes. Enquanto não instalado este, os recursos e demais ações que lhe coubessem ficavam submetidos ao Supremo Tribunal Federal. O art. 105 dessa CF/46 assegura a criação, por lei ordinária, de outros Tribunais Federais de Recursos em qualquer Estado e mediante proposta do próprio TFR, com aprovação do STF. Por esta CF/46 tem-se a criação do Recurso Extraordinário, além da fixação da aposentadoria dos magistrados, compulsória aos 70 anos, ou facultativa aos 30 anos de serviço. O TFR é instalado em 23/06/47, pelo Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra8. De acordo com a Lei n. 87, de 09/9/47, os Juízes do TFR passam a ser denominados de Ministros9. Em 27 de outubro de 1965, pelo Ato Institucional n. 2, completa-se o restabelecimento da estrutura funcional e orgânica da Justiça Federal, passando-se a prever sua recriação em 1ª instância, com quadro próprio de Juízes Federais, mantendo o Poder Judiciário da União, no mais, a estrutura prevista pela Constituição Federal de 1946. Em sua recriação, os Juízes Federais foram nomeados pelo Presidente da República em lista quíntupla formada por cidadãos de elevado saber jurídico e reputação ilibada, indicados pelo Supremo Tribunal Federal. Cada Estado e o Distrito Federal passa a compor uma Seção Judiciária, com o número de Juízes Federais definidos em lei. O Tribunal Federal de Recursos tem sua composição aumentada de 9 para 13 “Juízes”, sendo 8 dentre magistrados e 5 dentre advogados e membros do Ministério Público, escolhidos e nomeados pelo Presidente da República, com anuência do Senado Federal. Pelo mesmo AI n. 2/65 “ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e inamovibilidade” dos juízes, podendo ser demitidos, removidos, postos em disponibilidade, aposentados, desde que demonstrem incompatibilidade com os objetivos da Revolução. A competência da Justiça Federal é expressamente prevista em 9 dispositivos, e ainda definida em razão da pessoa - União ou entidade autárquica -, em razão da matéria - direito marítimo, de navegação aérea, direito de greve, e os crimes contra a organização do trabalho, - ou natureza da causa - os mandados de segurança e habeas corpus contra autoridades federais. A primeira sede própria do TFR fora na Av. Presidente Wilson. 231, no Rio de Janeiro, em 28/06/48. Em 05/06/70, passa a funcionar na Praça dos Tribunais Superiores, em Brasília/ DF, após ter-se instalado, anteriormente, no Bloco 6, da Esplanada dos Ministérios (MINISTROS DO TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS - DADOS BIBLIOGRÁFICOS. Brasília: Tribunal Federal de Recursos, n. I, 1987). 9 O primeiro Juiz do Tribunal Federal de Recursos foi o Subprocurador Fiscal Auxiliar na Procuradoria Fiscal de São Paulo, Dr. Armando da Silva Prado, nomeado em 13/05/47, tendo tomado posse em 23/06/47. Também tomam posse os Juízes Abner Carneiro Leão de Vasconcellos, Afrânio Antônio da Costa, Edmundo de Macedo Ludolf, Amando Sampaio Costa, Francisco de Paula Rocha Lagôa Filho, José Thomaz da Cunha Vasconcellos Filho, Vasco Henrique D’ Avila, Djalma Tavares da Cunha Melo, sendo escolhido como 1º Presidente do TFR o Juiz Afrânio Antônio da Costa. JUSTIÇA FEDERAL-LEGISLAÇÃO. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1993, 428 p., p. 25). 8

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Pela Emenda Constitucional n. 16, de 26/11/65, assegura-se à lei que, ações por ela definidas, sejam propostas na Justiça Estadual, com a representação judicial da União pelo Ministério Público Estadual. A mesma Emenda Constitucional n. 16/65, art. 6°, § 2°, reserva ao Presidente da República a proposta de criação de outros Tribunais Federais de Recursos. Em 30 de maio de 1966, tem-se a edição da Lei n. 5.010, que trata exclusivamente da Justiça Federal, e define cada Estado, Território e o Distrito Federal como sendo uma Seção Judiciária. Por essa lei tem-se, também, a criação do Conselho da Justiça Federal, integrado pelo Presidente, Vice-Presidente e mais 3 Ministros do Tribunal Federal de Recursos10, cabendo-lhe tratar dos assuntos disciplinares dos Juízes e funcionários, bem como de todo assunto de natureza administrativa da Justiça Federal de 1ª instância. A competência da Justiça Federal é disciplinada em 10 dispositivos, sendo prevista também a delegação de competência à Justiça Estadual para o julgamento das execuções fiscais, das vistorias, justificações, e das matérias de natureza previdenciária, quando nas comarcas do interior não funcionar Vara Federal. Essas Varas Federais do interior têm a sua instalação autorizada quando a Seção Judiciária dispuser de mais de 1 Vara na capital do Estado. Com a Lei n. 5.010/66 são criados os cargos de Juiz Federal Substituto, sendo o seu provimento por concurso público, podendo ser inscritos bacharéis em Direito com idade entre 28 e 50 anos, e com 4 anos de prática forense. Quanto aos Juízes Federais, a sua nomeação observava-se pela livre escolha do Presidente da República, de lista quíntupla formada pelo Supremo Tribunal Federal, dela constando 3 nomes de Juiz Federal Substituto escolhidos pelo Tribunal Federal de Recursos, e 2, dentre bacharéis em Direito com, no mínimo, 8 anos de exercício da advocacia, Ministério Público, magistratura ou magistério superior, daí extraindo-se que os cargos de Juiz Federal não eram reservados à promoção exclusiva dos Juízes Federais Substitutos. Não obstante o critério de concurso público para o provimento dos cargos de Juiz Federal Substituto, a própria Lei n. 5.010/66 assegurou, para aquela primeira investidura desses Juízes a sua nomeação diretamente e por livre escolha do Presidente da República, com o prévio assentimento do Senado Federal. Coube a estes Juízes instalarem a Justiça Federal de 1ª instância em todo o país. A composição inicial da Justiça Federal, a partir de então, passou a ser de 2 Varas no Distrito Federal, 3 Varas em Minas Gerais, 2 Varas em Pernambuco, 2 Varas na Bahia, 5 Varas na Guanabara, 2 Varas no Paraná, 3 Varas no Rio Grande do Sul, 7 Varas em São Paulo e 1 Vara nos demais Estados, totalizando 44 Varas Federais, todas elas dispondo de 1 cargo de Juiz Federal e 1 cargo de Juiz Federal Substituto. O Conselho de Justiça Federal-CJF fora instalado em 24/08/66, tendo a 1ª composição formada pelo Ministro América Godoy Ilha, Presidente; Oscar Saraiva, Vice-Presidente; Antônio Neder, Corregedor; Márcio Ribeiro e Moreira Rabelo.

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A Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967 mantém a mesma estrutura da Justiça Federal, inovando no que se refere à delimitação da criação dos Tribunais Federais de Recursos, por fixá-los em 2 Tribunais, um em Pernambuco e um em São Paulo, com número de Ministros inferior ao de Ministros do Tribunal Federal de Recursos com sede no Distrito Federal, e que era de 13 Ministros. Essa criação dos TFR’s passa a depender de Lei Complementar e não apenas de lei ordinária. Quanto aos cargos de Juiz Federal, tem-se o critério para o seu preenchimento reservado por concurso público, e exigindo-se idade mínima de 30 anos. A competência delegada à Justiça Estadual restringe-se às ações fiscais de interesse do fisco nacional. Inclui na competência da Justiça Federal o julgamento das causas referentes à nacionalidade e as que envolvam as empresas públicas federais. Pelo Decreto-Lei n. 253, de 28/02/67, passa-se a ter o julgamento pelo Júri Federal em observância ao Decreto-Lei n. 3.689/41, que instituiu o Código de Processo Penal. Mesmo não tendo a CF/67 referido-se aos Juízes Federais Substitutos, estes cargos mantêm-se assegurados na composição da Justiça Federal, conforme consta do art. 1°,VIII, do DL n. 253, de 28/02/67. Foi pelo referido DL 253, de 28/02/67, que a Lei 5.010/66 teve suas primeiras alterações, principalmente para dispor sobre regras processuais dos processos da Justiça Federal e para tratar de providências a tornarem efetivas a instalação das Seções Judiciárias e início do funcionamento da Justiça Federal. Quanto a esse momento, a definir o marco inicial oficial das atividades jurisdicionais da Justiça Federal, o DL 253 dispôs: “Art. 12. A instalação das Seções Judiciárias far-se-á em ato solene, presidido pelo Ministro Corregedor Geral ou por outro Ministro do Tribunal Federal de Recursos designado pelo Conselho da Justiça Federal”. Antes mesmo da instalação das Seções Judiciárias, os primeiros Juízes Federais foram nomeados pelo Presidente da República em 14/3/67 e tomaram posse em 25/4/1967, a eles cabendo as providências para concretizar a instalação das Seções Judiciárias, observando os locais das sedes e datas de instalação definidos pelo Conselho da Justiça Federal. E logo após aquelas primeiras nomeações, o Conselho da Justiça Federal, pelo Provimento 1, atribuiu competência a 05 daqueles Juízes Federais para assumirem o pleno exercício da judicatura no atendimento de casos urgentes que já cabiam à Justiça Federal e que, até então, estavam sob o crivo dos Juízes Estaduais. Esses 5 primeiros Juízes Federais a entrarem em efetivo exercício foram Otto Rocha, no Distrito Federal; Cid Flaquer Scartezzini, em São Paulo; Jorge Lafayete Pinto Guimarães, no Rio de Janeiro; Sebastião Alves dos Reis, em Minas Gerais e Orlando Cavalcanti Neves, em Pernambuco. “É difícil compreender aquele Provimento sem atentar para sua realidade fática: não era possível instalar as Seções Judiciárias imediatamente, mas alguém tinha que despachar os processos de natureza urgente.” (Freitas; 2003; p. 52)11. 11

FREITAS,Vladimir Passos. Justiça Federal – Histórico e Evolução no Brasil. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2003. 246 p.

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O primeiro quadro de servidores da Justiça Federal, num total de 755, com a respectiva nomeação, foi definido pelo Decreto 60.468, de 14/3/6712. A primeira Seção Judiciária a ser instalada foi a do Distrito Federal, em 23/5/1967, por definição do Conselho da Justiça Federal em sua sessão de 19/5/67 (DJU 07/7/67). Na sequência, foi instalada, em 29/5/67, a Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Essa definição decorreu de anterior deliberação do CJF, na sessão de 05/10/66 (DJU 14/10/66), e que estabeleceu como primeiras Seções a serem instaladas, as do DF, Rio de Janeiro e São Paulo. Fato oportuno a esclarecer é que antes do início da instalação oficial e definitiva das Seções Judiciárias, e já com os Juízes Federais nomeados e designados para as respectivas Varas, esses passaram a se reunir em Comissões de trabalho para tratar daquela instalação nos Estados e, havendo dessas reuniões os respectivos registros, algumas Seções Judiciárias passaram a considerar como marco inicial de seu funcionamento as datas daquelas reuniões e não, efetivamente, as datas em que foram definitiva e oficialmente instaladas, conforme datas definidas pelo Conselho da Justiça Federal. Em 13/12/68 é editado o AI n. 5, suspendendo as garantias constitucionais da vitaliciedade e inamovibilidade dos Juízes, e excluindo da apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com aquele Ato Institucional. Apesar de a Lei n. 5.010/66, por seu art. 12, já dispor sobre a instalação de Vara Federal no interior, somente em 1968, com o Decreto-Lei n. 384, de 26 de dezembro, é que se tem prevista a primeira Vara Federal, no caso, em Santos/SP. Com a Emenda Constitucional n. 11/69, estende-se a competência delegada à Justiça Estadual para o julgamento das causas previdenciárias, com recurso para o Tribunal Federal de Recursos. A Lei n. 5.677, de 15 de julho de 1971, regulamenta, dentre outras questões, a atinente ao provimento de cargo de Juiz Federal Substituto apenas por concurso público, reservando-se o provimento dos cargos de Juiz Federal privativamente por promoção dos Juízes Federais Substitutos, e alternadamente por antiguidade ou merecimento. Altera-se, assim, o critério de provimento do cargo de Juiz Federal anteriormente previsto pela Lei n. 5.010/66, art. 19, §10, b, e que não se destinava, exclusivamente, à promoção na carreira. Os Juízes Federais Substitutos são vinculados a uma determinada Região, e não a uma Seção Judiciária específica. Na época eram 05 as Regiões existentes. São extintas as Seções Judiciárias dos Territórios do Amapá, de Roraima e Rondônia, cabendo ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e respectivos Juízes de Direito a jurisdição anteriormente conferida à Justiça Federal. Criam-se mais 14 Varas Federais, totalizando-se, a partir daí, 55 Varas Federais. Os casos de remoção ou permuta de Juízes Federais e Juízes Federais Substitutos são decididos pelo Presidente da República. Sob o amparo desta Lei 5.677/71 é realizado o 1º concurso público para provimento dos cargos de Juiz Federal Substituto, e que fora disciplinado pela Diário Oficial de 14/3/67, retificado no DO de 21/3/67.

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Resolução n. 8, de 28/06/72, do TFR13. Sua realização dá-se entre 06/07/72 (data de abertura das inscrições) e 24/06/74 (data da homologação dos resultados), inscrevendo-se 427 candidatos, com 17 aprovados, sendo nomeados em 04/09/7414. O Poder Judiciário Nacional, e não apenas o Poder Judiciário da União, volta a ser tratado na Constituição Federal, pela Emenda Constitucional n. 7, de 13/04/77, incluindo dentre aqueles órgãos anteriormente nominados, o Conselho Nacional da Magistratura e os Tribunais e Juízes Estaduais. Pela mesma Emenda Constitucional n. 7/77 tem-se a ampliação da composição do Tribunal Federal de Recursos para 27 Ministros, e, pela primeira vez, a previsão do preenchimento dos cargos de Ministro, em número de 15, pelo critério exclusivo de promoção de Juízes Federais15. São transformados os cargos de Juiz Federal Substituto em cargos de Juiz Federal, ficando aqueles Juízes investidos neste cargo. O ingresso na carreira dá-se dentre candidatos com mais de 25 anos de idade aprovados em concurso público. Fica resguardado à lei atribuir aos Juízes Federais exclusivamente função de substituição junto às Seções Judiciárias, ou função de auxílio aos Juízes titulares de Varas. Estende-se a competência delegada à Justiça dos Estados para, além da matéria previdenciária, julgarem as causas atinentes aos executivos fiscais e outras ações previstas em lei, com recurso para o TFR. A estrutura organizacional da Justiça Federal é ratificada pela Lei Complementar n. 35, de 14/03/79, que trata da organização da magistratura nacional. A partir de então, tem-se uma extensa criação de Varas Federais e respectivos cargos de Juiz Federal. Com a Lei n. 7.007/82 são criados mais 38 cargos de Juiz Federal. A Lei n. 7.178/83 cria outras 21 Varas Federais e respectivos cargos de Juiz Federal. Pela Lei n. 7.583, de 6 de janeiro de 1987, são criadas 68 Varas Federais, dentre elas, 19 em cidades do interior do país, e com os respectivos cargos de Juiz Federal. A Lei n. 7.595, de 08/04/87, cria 30 cargos de Juiz Federal Substituto, a serem preenchidos por concursos públicos, exigindo-se, para este, idade entre 25 e 50 anos, e 2 anos de prática forense. A Lei n. 7.631/87 cria mais 8 Varas Federais com os respectivos cargos de Juiz Federal. Advindo a Constituição Federal de 1988, são criados no âmbito da Justiça Federal, em substituição ao Tribunal Federal de Recursos-TFR, 5 Tribunais A Comissão Examinadora daquele concurso fora integrada pelo Ministro Jorge Lafayete, pelo Juiz Federal Carlos Mário Velloso, pelo Professor Roberto Lyra Filho, pelo advogado Dr. Josaphat Marinho, e tendo por Secretário o Dr. José Vidigal de Oliveira. 14 São os seguintes os candidatos aprovados, pela ordem de classificação, de acordo com o Decreto Presidencial de 03/09174: Carlos David Santos Aarão Reis, Dário Abranches Viotti, Fernando Noronha, Paulo Freitas Barata, Newton Miranda de Oliveira, Agustinho Fernandes Dias da Silva, Marcio Antonio Inacarato, Sebastião de Oliveira Lima, Hugo de Brito Machado, Homar Cais, Bento Gabriel da Costa Fontoura, José Alves de Lima, Jonas Nunes de Faria, Jorge Tadeo Flaquer Scartezzini, Hélio Callado Caldeira, Julieta Lidia Machado Cunha Junior, Vicente Porto de Medeiros. 15 Antes dessa previsão o Ministro Álvaro Peçanha Martins fora o primeiro Juiz Federal a ascender ao TFR, tendo tomado posse em 04/12/69. 13

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Regionais Federais, de acordo com o art. 27, § 6°, do ADCT-CF/88, e instalados em 30/03/89. A composição de cada TRF foi definida pela Lei 7.727/89, art. 2º, nos seguintes termos:“Os Tribunais Regionais Federais terão a seguinte composição inicial: 18 (dezoito) juízes, nas 1ª e 3ª Regiões; 14 (quatorze) nas 2ª e 4ª Regiões; e 10 (dez) juízes, na 5ª Região”. A Justiça Federal de 2ª instância passou a contar, assim, com 74 membros, ao invés dos 27 da última composição do TFR, conforme art. 2° da Lei n. 7.727/89. A nomeação dos novos 75 Juízes membros dos Tribunais Regionais Federais deu-se por Decretos de 22 de março de 1989, publicados no DOU, Seção 2, de 27/3/1989, paginas 1 a 7. A definição da jurisdição e sede dos TRF’s coube ao Tribunal Federal de Recursos, pela Resolução n. 1, de 06/10/88, em cumprimento ao art. 27, § 6°, do ADCT-CF/88, da seguinte forma: TRF/1ª Região, com jurisdição no Distrito Federal e nos Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Bahia, Piauí, Maranhão, Pará, Amazonas, Tocantins, Amapá, Roraima, Rondônia, Acre, e sede em Brasília; TRF/2ª Região, com jurisdição no Rio de Janeiro e Espírito Santo e sede no Rio de Janeiro; TRF/3ª Região, com jurisdição em São Paulo e Mato Grosso do Sul e sede em São Paulo; TRF/4ª Região, com jurisdição no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e sede em Porto Alegre; TRF/5ª Região, com jurisdição em Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará, com sede em Recife. Com base no artigo 3º, §2º e artigo 4º, da Lei 7.727/89, o Tribunal Federal de Recursos expediu o Ato 131416, de 28 de março de 1989, definindo a posse dos Juízes e instalação simultânea dos 5 Tribunais Regionais Federais, para o dia 30 de março de 1989, o que fora realizado em cada uma das sedes dos TRFs. A Lei n. 7.746, de 30/03/89, dispôs sobre a instalação do Superior Tribunal de Justiça, o que se concretizou em 07/04/89, quando já instalados e em funcionamento os 5 TRFs. Outra significativa mudança da Justiça Federal é observada a partir de sua regionalização, momento em que o 1º grau passa por destacada expansão. São criadas, pela Lei n. 8.146/90, 2 Varas Federais no Rio Grande do Sul. Com a Lei n. 8.235/91 são criados 186 cargos de Juiz Federal Substituto em toda a Justiça Federal. Pela Lei n. 8.251/91 são criadas 16 Varas Federais na 1ª Região, e, também, as Seções Judiciárias de Tocantins, Amapá e Roraima. Em 1992, a Lei n. 8.416 cria 55 Varas na Justiça Federal da 3ª Região, sendo 53 Varas na Seção Judiciária de São Paulo e 02 Varas em Mato Grosso do Sul. São criadas, pela Lei n. 8.424/92, 31 Varas Federais na 4a Região. A Lei n. 8.495/92 cria 3 Varas Federais na 5a Região. A Lei n. 8.535/92 cria 35 Varas Federais na 2ª Região, exclusivamente para a Seção Judiciária do Rio de Janeiro. 16

Arquivo disponível na internet em file:///C:/Users/JFDF/Downloads/Ato%201314_1989. pdf. Acesso em 22 de maio de 2017

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Decorridos mais de 05 (cinco) anos da primeira fase de ampliação, este processo de crescimento da Justiça Federal é retomado no período de 1998 a 2003, com a Lei 9.642/98 que cria 35 Varas Federais na 1ª Região, a Lei 9.664/98 que cria 50 Varas na 4ª Região, e a Lei 9.788/99 que cria 100 Varas Federais Cíveis e de Execuções Fiscais, e os respectivos 100 cargos de Juízes Federais e Juízes Federais Substitutos, sendo 18 na 1ª Região, 15 na 2ª, 40 na 3ª, 15 na 4ª e 12 na 5ª Região. Um componente de destaque nesta Lei 9.788/99, em seu artigo 4º, é que passa a ser prevista a possibilidade de os TRFs convocarem Juízes Federais ou Juízes Federais Substitutos para função de auxílio junto aos Juízes dos TRFs, e limitada essa convocação a um magistrado por gabinete. Modificação relevante na competência, estrutura e funcionamento da Justiça Federal deu-se com a Lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Federais, para o julgamento de causas até 60 salários-mínimos, e para os crimes de menor potencial ofensivo, ou seja, aqueles com pena máxima prevista não superior a dois anos. Para a instalação dos Juizados Especiais Federais a lei previu que caberia aos TRFs definir as Varas que passariam a se vincular àquela nova competência. Dois anos mais tarde, para a consolidação dos Juizados Especiais Federais, e adoção de uma política de ampla interiorização da Justiça Federal, a Lei 10.772/03 promove uma considerável expansão na estrutura da Justiça Federal, criando 183 Varas Federais e respectivos cargos de Juiz Federal, Juiz Federal Substituto, e quadro de servidores. Uma peculiaridade desta lei é que passou a definir os locais onde as Varas seriam instaladas, medida que, até então, era reservada aos próprios Tribunais Regionais Federais. As 183 Varas foram assim distribuídas pela lei: 59 na 1ª Região; 27 na 2ª; 28 na 3ª; 36 na 4ª e 33 na 5ª. Nesta Lei 10.772, foram ainda criados 7 cargos de Juiz Federal Substituto na 2ª Região e 10 na 3ª Região, de modo a suprir a necessidade de tais cargos em razão da promoção a Juiz Federal de que trata o artigo 28, “caput”, segunda parte, do ADCT/CF88. Na mesma linha da política de expansão da Justiça Federal quanto aos Juizados Especiais Federais e à interiorização, em 2009 é editada a Lei 12.011, com a criação de mais 230 Varas Federais, e seus cargos de Juiz Federal, Juiz Federal Substituto e quadro de servidores. Uma peculiaridade desta Lei é que deixa de definir quantas Varas caberiam a cada Região, sendo que tal definição seria do Conselho da Justiça Federal, resultante dos critérios definidos pelo artigo 1º, como, por exemplo, a demanda processual, a densidade populacional e o PIB. Pela referida Lei 12.011/09, em seu artigo 7º, passou a ser previsto o cargo de Juiz-Relator de Turma Recursal, e que se daria com a transformação de parte dos 230 cargos de Juiz Federal de Varas recém-criados. Até então, os Juízes-Relatores de Turmas Recursais desempenhavam essa atribuição cumulativamente com as atribuições de Juiz Federal de Vara. Outra modificação dessa Lei 12.011 foi a delimitação de convocação aos TRFs apenas de Juízes Federais, não mais se prevendo os Juízes Federais Substitutos. 25 BOOK.indb 25

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Com a Lei 12.665/12 são criadas 75 Turmas Recursais e 225 cargos de Juiz Federal, passando-se a dar estrutura e funcionamento próprios às Turmas Recursais e que, até então, funcionavam com a designação provisória e o deslocamento de Juízes Federais ou Juízes Federais Substitutos de suas Varas para atuarem nas Turmas Recursais. A partir desta Lei 12.665/12 os cargos de Juiz Federal de Turma Recursal passaram a ter provimento específico, por remoção pelos critérios de antiguidade, e não mais apenas por mera designação de magistrados pelos TRFs. As Turmas Recursais passaram a ser 25 na 1ª Região; 10 na 2ª; 18 na 3ª; 12 na 4ª e 10 na 5ª Região. Essa Lei 12.665/12 encerra o ciclo de grande expansão da Justiça Federal, e que, em pouco menos de uma década, de 2003 (Leis 10.772/03 e 12.011/09) a 2012, criou 413 Varas Federais, 75 Turmas Recursais e 918 cargos de magistrados federais, A partir dessa grande reestruturação a Justiça Federal passou a observar sua expansão apenas pontualmente, com a criação de Vara Federal para atender a demandas específicas. Nesse novo ciclo, tem-se a Lei 12.762/12, que criou 03 Varas Federais no Estado do Amapá; a Lei 13.088/15, que criou 01 Vara Federal em Pitanga/PR; a Lei 13.251/16 com 01 Vara Federal em Rondonópolis/MT; Lei 13.252/16, criando 02 Varas no Tocantins, sendo 01 em Palmas e outra em Araguaína; Lei 13.253/16, que cria 01Vara Federal em Cascavel/PR; Lei 13.282/16 com 2Varas Federais em Gravataí/RS e a Lei 13.283/16, que criou 01Vara Federal em Ijuí/RS. E mesmo com essa relevante expansão da Justiça Federal em pouco mais de duas décadas, o número de Varas Federais e juízes ainda não atende satisfatoriamente às demandas da Justiça Federal, havendo Seções Judiciárias, como a do Distrito Federal, por exemplo, em que ainda há uma grande carência na adequação de suas necessidades, principalmente quando considerada a relação do número de juízes/processos com Varas Federais de outras Seções Judiciárias, e o fato de ser a SJDF o foro universal das causas ajuizadas contra a União. Para superar essa deficiência, a SJDF, por exemplo, em 2017, tem a necessidade de ampliar sua estrutura em mais 10 Varas Cíveis, 03 Criminais, 02 de Execução Fiscal e 04 dos Juizados Especiais Federais. Além da ampliação da Justiça Federal de 1º grau, a Justiça Federal de 2º grau também passou por processos de aumento do seu número de Juízes e até mesmo de ampliação de sua regionalização, com a criação de mais 4 TRFs, pela EC 73/13. A primeira expansão da Justiça Federal de 2º grau deu-se no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, pela Lei 8.418/92, que ampliou sua composição inicial de 18 para 27 juízes. Em 1994, foi a vez de os TRFs da 2ª e 4ª Regiões terem sua composição aumentada. A Lei 8.914/94 ampliou o Tribunal Regional da 4ª Região de 14 para 23 o número de seus Juízes. Pela Lei 8.915/94 foi ampliada a composição do TRF da 2ª Região, de 14 para 23 Juízes. No ano de 2000 observou-se a maior reestruturação da Justiça Federal de 2º Grau, alcançando os 5 TRFs, e levando-os a ter a composição atual 26 BOOK.indb 26

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do número de seus Juízes. Dessa época, tem-se a Lei 9.967/2000, que criou novos cargos de Juízes integrantes dos Tribunais Regionais Federais da 1ª, 2ª, 4ª e 5ª Regiões, e pela Lei 9.968/2000, com relação ao TRF da 3ª Região. A ampliação deu-se nos seguintes quantitativos: TRF1ª Região, aumento de 9 Juízes, passando de 18 ao total de 27 Juízes; TRF2ª Região, 4 Juízes, passando ao total de 23 a 27 Juízes;TRF3ª Região, 16 Juízes, passando de 27 ao total de 43 Juízes;TRF4ª Região, 4 Juízes, passando de 23 ao total de 27 Juízes;TRF5ª Região, 5 Juízes, passando de 10 ao total de 15 Juízes. Com a Emenda Constitucional 45, de 2004, que tratou da Reforma do Poder Judiciário, passou a ser previsto o funcionamento dos Tribunais Regionais Federais em Câmaras Descentralizadas, conforme disposição do § 3º, do artigo 107, da Constituição Federal, nestes termos: “§ 3º Os Tribunais Regionais Federais poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo”. Pela Emenda Constitucional 73/13, foram criados mais 4 Tribunais Regionais Federais, acrescentando-se ao artigo 27 do ADCT-CF/88, o § 11, com a seguinte redação: “São criados, ainda, os seguintes Tribunais Regionais Federais: o da 6ª Região, com sede em Curitiba, Estado do Paraná, e jurisdição nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul; o da 7ª Região, com sede em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, e jurisdição no Estado de Minas Gerais; o da 8ª Região, com sede em Salvador, Estado da Bahia, e jurisdição nos Estados da Bahia e Sergipe; e o da 9ª Região, com sede em Manaus, Estado do Amazonas, e jurisdição nos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima”. Não obstante a manifesta necessidade de ampliação do 2º grau da Justiça Federal, como o fez a EC 73/13, seus efeitos foram suspensos por força de liminar na ADIN nº 5017/DF, de 2013, ainda pendente de julgamento definitivo quanto ao seu mérito. Em 2014, o TRF da 1ª Região, pela Resolução Presi 23, de 1°/12/14, valendo-se do disposto no artigo 107, § 3º, da CF/88, inserido pela EC 45/04, cria as Câmaras Regionais Previdenciárías para atuar, descentralizadamente, em julgamento de feitos previdenciários nas Seções Judiciárias da Bahia e de Minas Gerais17. As Turmas Descentralizadas também passaram a ser previstas na 4ª Região, por decisão de 22/3/2017, do TRF4, e com previsão de instalação nas Seções Judiciárias do Paraná e de Santa Catarina, em matéria previdenciária. Para superar a grave distorção do número de Desembargadores Federais à quantidade de processos nos 5 Tribunais Regionais Federais, e ante os efeitos da liminar na ADIn 5017, têm sido buscadas outras alternativas, além das Câmaras Esse ato de descentralização do TRF da 1ª Região pode ser encontrado na internet em http://www.trf1.jus.br/dspace/bitstream/handle/123/44519/Resolu%C3%A7%C3%A3%20 Presi%2023%20%20Disp%3%B5e%20sobre%20a%20institui%C3%A7%C3%A3o%20de%20 C%C3%A2maras%20Regionais%20Previdenci%A2m aras%20Regionais%20Previdenci%C3%A1rias.pdf?sequence=3. Acesso em 22 de maio de 2017.

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Centralizadas, como o aumento do número de cargos de Desembargadores nos próprios e atuais 5 TRFs, com a criação daqueles novos cargos, como o PL 8132/14, que prevê mais 82 cargos, sendo 33 no TRF da 1ª Região; 12 no TRF2, 17 no TRF3, 12 no TRF4 e 8 no TRF5. Outra alternativa que tem sido buscada é a transformação de cargos de Juiz Federal Substituto em cargos de Desembargador Federal, como trata a proposta de anteprojeto de lei contida na Resolução Presi 618, de 17/2/2017, do TRF da 1ª Região, e que busca converter 24 cargos de Juiz Federal Substituto em 21 cargos de Desembargador Federal. A Justiça Federal, nesta segunda fase de sua existência, e passados 50 anos desde a instalação de sua primeira Seção Judiciária, a do Distrito Federal, em 23/5/1967, tem observado expressivo crescimento estrutural, com seu quadro atual apresentando os seguintes dados: 981 Varas Federais; 71 Turmas Recursais; 5 Turmas Regionais de Uniformização; 2.301 magistrados, sendo 165 Desembargadores Federais, 1.413 Juízes Federais e 723 Juízes Federais Substitutos19. O corpo funcional da Justiça Federal, em 2015, era de 28.296 servidores, 18.238 auxiliares contratados (terceirizados e estagiários). Com um orçamento anual no total de 9,9 bilhões de reais, para custear suas despesas com recursos humanos e materiais, na Justiça Federal os valores em recolhimentos judiciais somaram mais de 47 bilhões e 100 milhões de reais, sendo R$ 96.712.704,00 em custas judiciais, R$ 17.837.957.076,00 em execuções fiscais e R$ 29.174.392.506,00 em depósitos judiciais20. Na Justiça Federal, em 2016, foi efetuado o pagamento total em execuções judiciais de mais de 27 bilhões e 100 milhões de reais, sendo R$ 17.472.219.209,00 em Precatórios, e R$ 9.637.823.493,00 em RPVs. Esses os registros históricos a revelarem, a par de sua relevância institucional na construção de parte importante da história do país, a dimensão que tomou a Justiça Federal, principalmente nestes últimos 50 anos de trajetória após sua recriação.

Ato disponível na internet em http://www.trf1.jus.br/dspace/bitstream/handle/123/130707/ Resolu%C3%A7%C3%A3o%20Presi%206%20%20Aprova%20anteprojeto%20de%20Lei%20 para%20encaminhamento%20ao%20CJF.pdf?sequence=1. Acesso em 22 de maio de 2017. 19 Em dados de 31/12/2016, fornecidos pelo CJF, como se vê pelo Expediente CJF-ADM-2017/00127, de 07/4/2017. 20 Dados do CJF disponíveis no site http://daleth.cjf.jus.br/atlas/Internet/Receitas_Fiscais_Consolidadas.htm. Acesso em 22 de maio de 2017. 18

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GESTÃO DA COMUNICAÇÃO DA AJUFE NO BIÊNIO 2014-2016

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Antônio César Bochenek

1. AS CONTINGÊNCIAS DO MOMENTO HISTÓRICO Quando assumiu a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), a Diretoria do biênio 2014-2016 procurou estabelecer como uma de suas prioridades tornar mais efetivo o processo de comunicação da entidade, tanto a nível interno, com seus associados, quanto a nível externo, com os veículos de comunicação e com os cidadãos brasileiros. A primeira ação do plano de comunicação foi dar continuidade ao ótimo trabalho que vinha sendo desenvolvido pela gestão anterior. Entretanto, as manifestações dos associados exigiram avançar na gestão da comunicação para tornar as atividades da Associação mais participativas e transparentes para o público interno, bem como para deixar clara a pauta levantada pelo conjunto dos juízes federais em benefício de toda a sociedade. Muitas das ações da Ajufe, além de objetivar a defesa da magistratura brasileira, relacionam-se com bandeiras erguidas pela população. Essa coincidência ficou ainda mais patente naquele período que se seguiu às manifestações que marcaram as jornadas populares de junho de 2013 – quando “o gigante acordou”, e, depois de anos de completa inanição, o povo saiu às ruas para expressar sua indignação contra a corrupção, a ineficiência e os malfeitos com a Administração Pública. Atenta a esse fato histórico e ciente de seu papel no debate político nacional, a Diretoria da Ajufe percebeu que era necessário um incremento substancial das ações de comunicação da Associação, sob pena de a entidade, ou falar sozinha, ou repetir indefinidamente apenas o rol de suas reivindicações corporativas – também elas justas e necessárias. Mais do que perseverar na construção de uma imagem positiva para a entidade junto à opinião pública, era preciso moldar essa imagem às exigências do contexto histórico, em que o Poder Judiciário, devido ao vácuo de decisão 29 BOOK.indb 29

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provocado pela apatia dos Poderes Legislativo e Executivo, era impingido a assumir um protagonismo jamais visto na história do Brasil. Proteger as conquistas da magistratura – fruto de um árduo trabalho de mais de 40 anos – era fundamental, mas, defender a independência judicial dos constantes ataques que viria a sofrer no decorrer daquele biênio afigurou-se como condição imprescindível da própria existência da Ajufe enquanto entidade de classe. Para enfrentar os desafios, foi necessário planejar e executar medidas de gestão da comunicação. Algumas delas estão expostas neste texto e refletem a continuidade de boas gestões anteriores das diretorias da Associação, para além do aperfeiçoamento e da criação de práticas inovadoras e criativas que sempre nortearam a excelência das atividades da Ajufe. Dentro dessa perspectiva, a Diretoria da Ajufe buscou ombrear-se aos anseios da população, deslocando-se do papel de comando que sempre pauta a atuação de instituições de porte e representatividade nacional. Mais do que expressar-se, a entidade tencionou ouvir os seus associados, para, a partir daí, conceber os parâmetros que balizariam sua atuação participativa e integradora no âmbito político e social, sobretudo, democrática. Lafayette Batista Melo, ao analisar os enunciados produzidos naquele período de manifestações de junho de 2013, afirmou que as pessoas que participavam ativamente dos levantes, mais do que seguirem “hashtags” ou cartazes de rua, buscavam aderir a “discursos que conseguem circular”: “Além disso, considero que, para além do fato de as relações hierárquicas estarem cedendo lugar a interações em rede, há discursos aos quais as pessoas se associam para marcar sua posição social e histórica, sejam submetidas a uma hierarquia ou acreditando que são donas de seus próprios atos e dizeres” (2014, p. 312).

Essa capacidade de fazer com que suas ideias fluíssem e circulassem para públicos distintos daqueles para os quais tradicionalmente falava foi o que permitiu o sucesso da gestão da comunicação, não mais centrada em um dispositivo unilateral e horizontal, mas disposta de modo tanto a ser um polo produtor como receptor de conteúdos e mensagens. Ao defender a independência judicial – que, naquele momento, equivalia a reafirmar a prerrogativa dos juízes federais de julgarem com imparcialidade e sem comprometimento com interesses escusos criminosos que, outrora, jamais chegavam às fileiras do Judiciário – a Ajufe se coadunou, às vozes das ruas, que já estavam saturadas de ver triunfar, sempre, no caso dos réus poderosos, a impunidade.

2. PUBLICAÇÕES IMPRESSAS PARA DAR DIMENSÃO PALPÁVEL ÀS INFORMAÇÕES Dentro desse contexto de cada vez mais assíduas manifestações populares, a comunicação social da Ajufe, durante o biênio 2014-2016, atingiu resultados 30 BOOK.indb 30

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expressivos, devido, sobretudo, a dois fatores. Do ponto de vista interno: publicidade total a todos os atos associativos; da perspectiva externa: diálogo franco com os veículos de imprensa e abordagem direta ao cidadão, principalmente por meio das redes sociais. Praticamente, tudo o que foi realizado, pela Diretoria e pelos juízes federais em representação da Associação, nesse período, foi informado, em tempo real, por e-mail e em grupos de WhatsApp, aos associados: fossem reuniões internas na sede da entidade, fossem participações públicas nos mais variados fóruns de debate democrático. Com isso, além do ganho de transparência e de publicidade, conseguiu-se engajar os magistrados, com rapidez e eficiência, nas várias frentes de ação da entidade. Naquele biênio foram publicadas 11 edições do Informativo Ajufe, entre encartes principais e fac-símiles especiais, que, além da cobertura de todas as atividades institucionais da Ajufe, deram espaço aos vários fóruns de discussão realizados no período, aos Encontros Nacionais dos Juízes Federais e à Expedição da Cidadania. Com as duas edições da Revista de Cultura, a gestão abriu espaço às contribuições dos magistrados nas mais diversas áreas, desde o desenho e a pintura, até o conto e a poesia. Essas publicações exploraram as aptidões dos juízes federais que vão além da toga e da cotidiana operação do Direito. A Revista de Direito Federal confeccionada no período também teve um papel inovador: ela não apenas reuniu os artigos científicos dos associados, como aglutinou as produções acadêmicas dos alunos do doutorado implementado em convênio entre a Ajufe e a PUC/SP – o que fez com que a edição dobrasse de tamanho em relação aos números anteriores. Percebendo a necessidade do aprofundamento do diálogo da magistratura federal com representantes dos Três Poderes, a Diretoria do biênio 2014-2016 concebeu e produziu as duas primeiras edições da Agenda Político-Institucional da Ajufe. O documento, anual, reúne as principais demandas da entidade: projetos monitorados com afinco no Congresso Nacional, ações judiciais impetradas e também o cronograma de eventos a serem realizados ao longo do ano. Tal fartura de material impresso, além de ter documentado as ações empreendidas naquele período, contribuiu para que o associado tivesse uma visão mais profunda do que foi realizado, para além das reportagens online em tempo real – naturalmente menos propensas à complexidade e ao detalhamento. Mesmo com a crescente digitalização das comunicações, apenas a condição de objeto singular do caderno impresso é capaz de dar materialidade palpável à informação. Sabendo disso, a Diretoria da Ajufe também produziu livretos especiais – como o que foi distribuído no I Fórum Nacional de Administração e Gestão Estratégica (FONAGE) – e o Relatório da Gestão 2014-2016.Também foram realizados concursos pela Ajufe. O primeiro de desenhos para ilustração do Calendário da Ajufe, com a participação de filhos e netos de associados, e a reedição da Cartilha de Direito Previdenciário. 31 BOOK.indb 31

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Todos esses materiais foram responsáveis por tornar indelével o registro das muitas atividades e conquistas obtidas naqueles dois anos – as quais certamente se perderiam no mar de bits se ficassem restritas apenas à existência virtual. Sem dúvida, constituem registros históricos das diversas linhas de atuação das Diretoria da Ajufe do biênio 2014-2016. John Thompson é um dos teóricos da comunicação que atestam essa necessidade de fixação na matéria dos conteúdos simbólicos que se querem perduráveis. Na avaliação dele, a tradição, a princípio, só se mantém quando é continuamente reconstruída nas atividades cotidianas, sobretudo por meio de ritos. Tal necessidade de reavivamento prático diminui na medida em que se recorre a dispositivos midiáticos: “O cultivo de valores e crenças tradicionais se torna cada vez mais dependente de formas de interação que implicam produtos de mídia; a fixação do conteúdo simbólico nos produtos da mídia (livros, filmes, etc.) garantem uma forma de continuidade temporal que diminui a necessidade da reconstituição” (2014, p. 250).

Na impossibilidade de promover encontros presenciais com todos os seus associados, espalhados em todas as unidades da federação, não restava à Ajufe senão projetar-se por meio dos artifícios da comunicação. E nesse quesito logrou êxito, inclusive junto a profissionais de outros setores. Quando concebeu e implementou a primeira edição do Prêmio Ajufe: Boas Práticas de Gestão, a Diretoria do biênio 2014-2016 firmou um contínuo diálogo com entidades representativas de classes que lidam diretamente com a Justiça Federal: desde o Ministério Público Federal até Polícia Federal, passando pela Advocacia da União e pelos servidores do Poder Judiciário – que puderam concorrer em categorias específicas para o trabalho que realizavam. Os estudantes de Direito não foram esquecidos nessa empreitada e puderam contribuir – não com ações já em execução – mas com propostas para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Essa edição inicial do Prêmio Ajufe: Boas Práticas de Gestão, devido ao amplo trabalho de divulgação realizado – o qual lançou mão da comunicação digital e do envio dos tradicionais cartazes impressos aos locais de grande circulação do público pretendido no concurso – consolidou-se, definitivamente, no calendário de ações associativas do período seguinte, confirmando o sucesso alcançado na primeira edição. Assim sendo, o equilíbrio entre o virtual e o impresso, com atenção devida a cada tipo de comunicação, marcou a gestão da documentação da comunicação no período, notadamente delimitado por transformações de diversas ordens, que exigiram um trabalho cuidadoso para dosar na medida adequada a interface entre os associados e a sociedade.

3. DIÁLOGO PRECISO E OPORTUNO COM A MÍDIA Do ponto de vista externo, a Diretoria da Ajufe no biênio 2014-2016 soube dosar a comunicação mediada – aquela que se faz com o auxílio e 32 BOOK.indb 32

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intermédio dos veículos de imprensa – com a comunicação imediata, que é promovida diretamente junto ao público, por meio, sobretudo, das redes sociais. No período, foram publicados artigos na grande imprensa (jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Correio Braziliense, O Globo; Revistas Veja e Época), além das notas públicas emitidas que alcançaram grande repercussão nacional (Redes de Comunicação Globo, Band e Record; Rádios CBN, Band News e Jovem Pan – tanto em defesa da independência judicial. Um dos principais pontos de interlocução com a mídia foi para prestar esclarecimentos e detalhes do trabalho desenvolvido de forma séria pelo juiz federal Sérgio Moro e pelos desembargadores federais João Pedro Gebran, Leandro Paulsen e Vitor Santos Laus – responsáveis pelo processamento e julgamento dos feitos da Operação Lava Jato no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – bem como dos Ministros dos Tribunais Superiores, em especial do relatores (Félix Fischer, no STJ, Teori Albino Zavaski e Edson Fachin, no STF) que atuaram no caso em grau recursal ou nas ações ordinárias. Naqueles dias em que o combate à corrupção chegava, pela primeira vez, a criminosos antes inatingíveis – políticos, empresários, agentes públicos – o trabalho de disseminação de informações idôneas foi responsável por dar tranquilidade e amparo aos magistrados no correto cumprimento de seus deveres, haja visto os recorrentes ataques a que eram submetidos, em decorrência mesmo da resistência inercial do sistema que, então, começava a ruir. A rapidez no atendimento aos jornalistas, a clareza na exposição dos argumentos e a percepção dos momentos oportunos para posicionamento fizeram com que a Ajufe se tornasse fonte confiável e frequentemente procurada pelos principais veículos de imprensa do país. A autuação séria, responsável e prudente alçou a Ajufe a uma posição de destaque no cenário nacional. Nesse tocante, merece destaque a atuação em defesa do Projeto de Lei do Senado que estabelecia o cumprimento da pena a partir da condenação em segundo grau para aqueles que cometeram crimes considerados mais graves (PLS 402/2015). A movimentação encampada pela Ajufe gerou tamanho ressonância na opinião pública que, logo após, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) restabeleceu o entendimento por meio de jurisprudência, hoje amplamente seguida no país. Não fosse esse esforço, muitos dos criminosos de “colarinho branco” que atualmente estão atrás das grades aguardariam livres um trânsito em julgado da sentença, o qual é sempre tardio para aqueles que dispõem de recursos para contratar renomadas bancas de advogados e entrar com incontáveis recursos protelatórios nos tribunais. Essa capacidade de interlocução com a imprensa, com a sociedade civil organizada, com o governo e com o Parlamento foi extremamente relevante para o esclarecimento da opinião pública sobre temas importantes e atinentes a todo o Poder Judiciário, como o pagamento do auxílio-moradia – que, embora legítimo e legal, despertou fortes críticas de setores da imprensa – e a luta contra o Projeto de Lei do Abuso de Autoridade (PLS 280/2016), que 33 BOOK.indb 33

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visava intimidar os magistrados no exercício de suas funções constitucionais, para citarmos pelo menos dois casos entre tantos outros. Não fossem as pontes construídas com os veículos de imprensa, os quais têm o condão de influenciar agentes públicos e parlamentares, certamente os magistrados federais teriam enfrentado dificuldades maiores para obter conquistas absolutamente justas, como o reajuste dos subsídios e do valor das diárias – então há anos defasados – e a gratificação por acúmulo de funções jurisdicionais.

4. AS REDES SOCIAIS E A COMUNICAÇÃO DIRETA COM O CIDADÃO A credibilidade alcançada pela Ajufe junto aos veículos de imprensa, que passaram a dar um espaço cada vez maior às ações dos magistrados federais, gerou, inevitavelmente, um fluxo de público gigantesco para as redes sociais da entidade. O número total de curtidas da fanpage da Ajufe no Facebook saltou de 10 mil para 269 mil no período de junho de 2014 a junho de 2016, tornando-se um dos domínios online mais acessados nas redes sociais do Poder Judiciário e o mais bem colocado dentre as associações de magistrados. Além do Facebook, o uso de outras plataformas ganhou relevância, desde o Twitter até o Flickr, passando pelo Instagram. Essas mídias digitais contribuíram para o destaque, principalmente, das ações sociais da entidade, como a Expedição da Cidadania, retomada, com sucesso, naquele biênio. Aliás, todo o material de comunicação dos projetos de cunho social da Ajufe também foi criado e elaborado pelo time de comunicação, como anotou o jornalista responsável Telmo Fadul, a quem agradeço imensamente pelas valiosas contribuições na redação deste artigo. Essa simbiose entre comunicação com a imprensa e comunicação com o público via redes sociais atingiu seu ápice no dia 17 de março 2016, quando foi publicado o vídeo do Manifesto em Defesa da Independência Judicial. O vídeo, gravado em Brasília durante o Fórum Nacional de Execução Fiscal (FONEF), com a presença de duas dezenas de magistrados, alcançou 2.6 milhões de visualizações, e se mantém, ainda hoje, como o recordista entre todas as postagens da fanpage. Naquele momento, a Ajufe havia acabado de responder, via Nota à Imprensa, repercutida nos principais meios de comunicação do país, às críticas feitas por advogados dos réus à Operação Lava Jato ao juiz federal Sérgio Moro. A divulgação do vídeo nas redes sociais conjugou-se com a repercussão dada pelos veículos de comunicação e aos atos de mobilização liderados pelos diretores e representantes da Ajufe, levando ao grande alcance verificado. Desde o início dos anos 90, quando a internet deixou de ter uso exclusivamente militar pelos Estados Unidos, o mundo vem sofrendo profundas transformações, nas mais diversas áreas da sociedade, decorrente da conexão em rede. Centros de comando, então estruturados em hierarquias rígidas, 34 BOOK.indb 34

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tornaram-se cada vez mais difusos – o que gerou impacto na forma como as instituições devem se comunicar. A modernidade líquida de Zygmunt Bauman também aqui liquefez e transformou a gestão da comunicação. Veículos de comunicação tradicionais – como o rádio, a televisão e o jornal – já não detêm o controle da opinião pública, cujos componentes, agora, têm a expressão franqueada por meio das inúmeras plataformas digitais. O monopólio da informação se extinguiu e seguimentos sociais secularmente excluídos do processo comunicacional passaram a ter a possibilidade de participar do jogo democrático, de falarem e serem ouvidos em pé de igualdade com os atores que, então, tomavam o direito à expressão apenas para si. Essa percepção de que o advento da internet mudou a forma como se dão quase todos os relacionamentos no mundo vem desde o final dos anos 90. Vejamos o que diz Manuel Castells: “Atividades econômicas, sociais, políticas, e culturais essenciais por todo o planeta estão sendo estruturadas pela Internet e em torno dela, como por outras redes de computadores. De fato, ser excluído dessas redes é sofrer uma das formas mais danosas de exclusão em nossa economia e nossa cultura” (2003, p. 08).

No Manual de Gestão Judicial, publicado em Portugal pelos juízes portugueses (MATOS, LOPES, MENDES, COELHO: 2015, p. 190), os autores destacam com propriedade que grande parte das técnicas de relações públicas aplicadas em qualquer sistema de comunicação,“como press realease, conferências de imprensa, informations desk, vídeos, etc, podem ser adaptadas às necessidade de comunicação externa” dos tribunais e com maior ênfase pelas associações. A Diretoria da Ajufe no biênio 2014-2016 não se furtou de encarar o seu trabalho sob essa nova perspectiva. De um lado, implementou uma plataforma de comunicação descentralizada, que, apesar de contar com o apoio da imprensa tradicional, explorou as possibilidades nascentes com as redes sociais; de outro, soube ouvir os clamores sociais que lhe foram dirigidos, mormente neste período assinalado pelas diversas investigações policiais e ministeriais na seara criminal, em especial, a Operação Lava Jato. Além do muito planejamento e participação, o sucesso da gestão da comunicação no biênio 2014-2016, em síntese, decorreu de três principais fatores: publicidade e transparência total para o público interno dos atos associativos; rápido, eficiente, claro e oportuno diálogo com a imprensa, e franqueza e imediatismo na abordagem direta do público via plataformas digitais. Importante ressaltar que a comunicação social de uma organização é o espelho direto de sua classe diretiva. Não fosse o grau de excelência alcançado pela gestão participativa e democrática da Ajufe no biênio 2014-2016, não haveria ação de mídia que bastasse para forjar um sucesso inexistente. Se a comunicação social atingiu bons resultados, o motivo deve ser buscado, então, nos atos de seus dirigentes e diretores, que, com astúcia e coragem, souberam tomar as decisões corretas, no devido tempo. Afinal, não 35 BOOK.indb 35

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há comunicação capaz da proeza de fazer parecer bem-sucedida uma gestão administrativa ineficiente.

5. E PARA AVANÇAR MAIS Para avançar ainda mais no processo de gestão da comunicação, o II FONAGE realizado pela Ajufe, em São Paulo, em junho de 2017, reservou um painel de debates a respeito da Gestão da Comunicação nos Tribunais.Também foram abordados diversos pontos da gestão da comunicação das associações, em especial da Ajufe. As reflexões promovidas pelas palestras e debates permitiram apontar uma relação de pistas relevantes para o futuro da administração da Justiça. Um primeiro ponto de destaque é a velocidade incrível das transformações dos meios de comunicação e das ferramentas tecnológicas à disposição das pessoas.Vladimir Passos de Freitas destacou que “vivemos tempos absolutamente diferentes, tudo muda a uma velocidade espantosa e a tecnologia se encarrega de tornar obsoleto o que ontem era uma grande novidade” (2017, p. 1). Estes novos veículos permitem que cada indivíduo tenha mais possibilidade de acesso e também torna possível selecionar as informações com mais acuidade. Os meios tradicionais de comunicação estão em constante encruzilhada: adaptar-se ou sucumbir à nova realidade. Moldar-se ao novo contexto histórico é para ontem. Para hoje, é preciso antever as novas ferramentas do processo de comunicação, planejar e executar novas formas de interação e, principalmente, procurar gerar o interesse necessário para que as informações sejam acessadas e estejam disponíveis, nas mais diversas plataformas, atentas às especificidades da notícia e dos receptores, para que alcancem o maior número de pessoas. A motivação é outro fator decisivo na equalização da gestão da comunicação. Em primeiro lugar, é preciso motivar a equipe interna, com a abertura de espaços para a opinião, sempre com participação efetiva, além da execução de projetos que fujam às concepções tradicionais do trabalho da assessoria. Em segundo lugar, é necessário motivar o receptor, para que fique ávido por buscar os novos conteúdos e informações que lhe serão oferecidos. Em síntese, é preciso avançar ainda mais. A sociedade caminha e evolui a passos acelerados e largos. A gestão da comunicação, ainda incipiente, será a responsável para apresentar respostas aos desafios e enfrentar as dificuldades. A Ajufe já mergulhou neste processo.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Zigmunt (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar. CASTELLS, M. (2003) A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar. FREITAS,Vladimir Passos de. Magistrados e mídia em tempos de comunicação em tempo real. Conjur. 2 de julho de 2017. 36 BOOK.indb 36

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MATOS, José Igreja; LOPES, José Mouraz; MENDES, Luis Azevedo, COELHO, Nuno. Manual de Gestão Judicial. Coimbra: Almedina. 2015. MELO, Lafayette B (2014) Quando o gigante acorda, vai para a rua e sai do Facebook: Frases em Movimento. in. Caderno de Estudos Linguísticos. Unicamp. THOMPSON, John B (2014) A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Trad. de Wagner de Oliveira Brandão. Rev. de tradução de Leonardo Avritzer. 15. ed. Petrópolis, RJ:Vozes.

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BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS EXECUÇÕES FISCAIS AJUIZADAS POR CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL

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Bernardo Tinôco de Lima Horta1

EXECUÇÕES FISCAIS – ANOTAÇÕES INTRODUTÓRIAS

A ação de execução fiscal, com previsão expressa na Lei n. 6.830/1980 (LEF), se trata da demanda judicial destinada à cobrança, em juízo, da Dívida Ativa que seja de titularidade de entes que detenham a natureza jurídica de Direito Público. Do ponto de vista da Justiça Federal, a ação de execução fiscal goza de inegável relevo na praxe forense, tanto pelo seu escopo, quanto pelo volume de ações verificado. Por outro lado, a demanda judicial de cobrança de Dívida Ativa tem como objeto satisfazer uma crise de inadimplência – pretensão resistida – não só de tributos, mas também de valores de natureza não-tributária. Assim, para além de sua importância estatística, a demanda de execução fiscal se afigura de primordial importância para garantir-se a efetividade do direito material, eis que o não pagamento de valores se torna, em última análise, um descumprimento de norma que preveja ser devido o pagamento de determinada quantia, seja de natureza tributária ou não tributária, em favor de ente público. Em linhas gerais, é oportuno salientar que o rito da ação de execução fiscal vem previsto de forma minuciosa em sua lei própria – a LEF –, sendo-lhe aplicável, de maneira subsidiária, o Código de Processo Civil (art. 1º, “in fine”, da LEF). Trata-se de demanda cujo título executivo é, unicamente, a certidão de dívida ativa, de natureza de título executivo não judicial, eis que lastreada em atuação administrativa e pré-processual a cargo do ente público credor. Vale salientar que, por imperativo legal, a certidão de dívida ativa goza de presunção de liquidez e certeza (art. 3º da LEF), o que se soma aos princípios do Direito Administrativo de Indisponibilidade do Interesse Público e Supre Juiz Federal Titular da 1ª Vara Federal de Ji-Paraná/RO. Bacharel em Direito pela UFMG e especialista em Direito Público pela PUC/MG. E-mail: bernardo.tinoco@trf1.jus.br.

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macia do Interesse Público sobre o Privado (as chamadas “pedras de toque” do Direito Administrativo, conforme lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p.55). Por certo, a presunção de liquidez e certeza da certidão de dívida ativa (CDA) possui natureza de presunção relativa – ou juris tantum –, já que pode ser afastada por prova inequívoca em sentido contrário (art. 3º, parágrafo único, da LEF). De todo modo, contata-se que a natureza da dívida, cujo credor se trata de ente público, ganhou primordial importância no tratamento legislativo da matéria, já que o rito da execução fiscal possui peculiaridades não presentes na execução em geral. Sobre este ponto, há vozes na doutrina que apontam para o desacerto de um rito próprio e exclusivo para execuções fiscais, em detrimento das execuções de outras dívidas passíveis de cobrança judicial. Por todos, Humberto Theodoro Júnior chegou a afirmar que (THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 6): Se algumas medidas procedimentais criadas pela Lei n. 6.830 aperfeiçoam e tornam mais expedito o processo executivo de cobrança de quantia certa, razão não se encontra, por último, para que tivessem sido instituídas apenas para a execução fiscal.

E prossegue (THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 6): O lógico e o razoável, a meu ver, seria a introdução delas em caráter geral, dentro do próprio Código de Processo Civil, o que beneficiaria todo e qualquer credor, mantendo o princípio da isonomia, aperfeiçoando o Código como um todo e preservando, acima de tudo, a unidade do direito processual.

Ultrapassado este primeiro intróito, passam a ser analisadas, a seguir, as especificidades da ação de execução fiscal no que diz respeito à competência jurisdicional da Justiça Federal, bem como no que toca às peculiaridades presentes no rito quando ajuizado pelos Conselhos de Fiscalização Profissional.

1. COMPETÊNCIA JURISDICIONAL Para fins da verificação de competência jurisdicional em ações de execução fiscal, faz-se necessária uma leitura conjunta do texto constitucional, em seu art. 109, bem como da Lei n. 5.010/66, que organiza a Justiça Federal de primeira instância e dá outras providências. Adianta-se, desde logo, que, conforme será tratado no tópico seguinte deste estudo, os Conselhos de Fiscalização Profissional possuem a natureza jurídica de autarquia federal – à exceção da OAB, que possui natureza jurídica sui generis – conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade de n. 1.717 MC, que teve como relator o Ministro Sydney Sanches e foi julgada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal em 22/09/1999. 40 BOOK.indb 40

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Sendo assim, em uma primeira análise, é possível perceber-se que, tratando-se de ação proposta pelos Conselhos de Fiscalização Profissional, a competência é atribuída, como regra, à Justiça Federal de primeira instância, nos termos do art. 109, I, da Constituição da República. Neste sentido, e tratando do regramento geral sobre o tema, cumpre trazer ao debate o teor do enunciado sumular de número 66 do STJ, que dispõe competir à “justiça federal processar e julgar execução fiscal promovida por Conselho de Fiscalização Profissional”. Quanto ao tema específico das execuções fiscais, afigura-se relevante uma sucinta análise de direito intertemporal. A Lei n. 5.010/66, que rege a Justiça Federal de primeira instância, trazia previsão expressa de competência delegada à Justiça Estadual para o julgamento de ações de execução fiscal propostas na sede do domicílio do devedor em localidade que não fosse sede de órgão da Justiça Federal. Esta previsão estava normatizada no art. 15, I, da referida lei, e concretizada a possibilidade de competência delegada prevista constitucionalmente no art. 109, §3º, da Constituição da República. Assim, a referida previsão de competência foi recepcionada pela ordem constitucional instaurada pela Carta de 1988. Contudo, a previsão normativa de competência delegada à Justiça Estadual para o julgamento de execuções fiscais restou expressamente revogada pela Lei n. 13.043/2014, em seu art. 114 – de modo tal que, desde então, não mais se afigura possível o ajuizamento de execuções fiscais por ente federal perante a Justiça Estadual. Neste ponto, saliente-se, por oportuno, que, nos termos do art. 75 da Lei n. 13.043/2014, “a revogação do inciso I do art. 15 da Lei n. 5.010, de 30 de maio de 1966, constante do inciso IX do art. 114 desta Lei, não alcança as execuções fiscais da União e de suas autarquias e fundações públicas ajuizadas na Justiça Estadual antes da vigência desta Lei”. Assim, executivos fiscais ajuizados em âmbito estadual antes da revogação do art. 15, I, da Lei n. 5.010/1966 permanecem com seu trâmite na Justiça Estadual, havendo previsão legislativa expressa de perpetuatio jurisdictionis quanto às referidas ações. De todo modo, com o advento da revogação mencionada, a conclusão óbvia é a de que todas as ações de execução fiscal ajuizadas por entidade federal – aí incluídos os Conselhos de Fiscalização Profissional – passam a ser processadas e julgadas exclusivamente por órgão da Justiça Federal, excetuadas aquelas já ajuizadas anteriormente à vigência da Lei n. 13.043/2014.

2. NATUREZA JURÍDICA DOS CONSELHOS DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL E LEGITIMIDADE ATIVA A natureza jurídica dos Conselhos de Fiscalização Profissional e o regime jurídico que se lhes aplica é questão tormentosa, bastante debatida na doutri41 BOOK.indb 41

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na e jurisprudência pátrias – a título ilustrativo, sobre o tema, encontram-se pendentes de apreciação pelo STF a Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 36, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.367 e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 367. Contudo, para fins do presente estudo, a questão se limita à indagação se os ditos conselhos possuem, ou não, natureza de pessoa jurídica de Direito Público, de modo a atrair ou não a aplicação do art. 109 da Constituição da República – que, por sua vez, define a competência jurisdicional da Justiça Federal. Como já se adiantou acima, prevalece de forma uníssona na jurisprudência que os Conselhos de Fiscalização Profissional detêm a natureza de pessoa jurídica de Direito Público, sendo organizados na forma de autarquia federal – por todos, vide a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.717 MC, que teve como relator o Ministro Sydney Sanches, e foi julgada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal em 22/09/1999. A doutrina também caminha no mesmo sentido (CARVALHO, 2016, p. 176). A seguir, será demonstrado, de maneira cronológica, o entendimento prevalecente e já sedimentado a este respeito. Após a Constituição da República de 1988, foi editada a Lei n. 9.649/1998, que previu, em seu art. 58, que os Conselhos de Fiscalização Profissional teriam natureza de Direito Privado – à exceção da OAB, conforme o §9º do mesmo artigo. Trata-se de mais um dos diplomas da década de 1990 que visavam à modernização do Direito Administrativo. Contudo, a referida Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.717 MC, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, determinou a inconstitucionalidade do art. 58 da Lei n. 9.649/1998, tendo-se concluído que os Conselhos de Fiscalização Profissional possuem natureza de Direito Público – sob o fundamento de que exercem atividade típica de Estado, de forma delegada, que “abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais”. Desde então, a jurisprudência se consolidou no sentido de que os Conselhos de Fiscalização Profissional possuem a natureza jurídica de autarquia federal, conforme se vê também em julgados recentes do Supremo Tribunal Federal. A título de ilustração, segue um esclarecedor julgado neste sentido (grifou-se): 1) MANDADO DE SEGURANÇA.ADMINISTRATIVO.ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. NATUREZA JURÍDICA.AUTARQUIA FEDERAL. ENTIDADES CRIADAS POR LEI. FISCALIZAÇÃO DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL.ATIVIDADE TIPICAMENTE PÚBLICA. DEVER DE PRESTAR CONTAS. 2) EXIGÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO.ART. 37, II, DA CRFB. 3) DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA. DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO PROFERIDA MESES DEPOIS DA REALIZAÇÃO

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DA SELEÇÃO SIMPLIFICADA PELO IMPETRANTE. 4) SEGURANÇA DENEGADA. 5) EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PREJUDICADOS. 1. As autarquias, forma sob a qual atuam os conselhos de fiscalização profissional, que são criados por lei e possuem personalidade jurídica de direito público, exercendo uma atividade tipicamente pública, qual seja, a fiscalização do exercício profissional, é de rigor a obrigatoriedade da aplicação a eles da regra prevista no artigo 37, II, da CF/1988, quando da contratação de servidores. Precedentes (RE 539.224, Rel. Min. Luiz Fux, DJe18/6/2012). (...) (MS 28469, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 09/06/2015,ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 31-07-2015 PUBLIC 03-08-2015).

Vale ressaltar, por oportuno, que o Superior Tribunal de Justiça segue o mesmo entendimento, conforme se verifica, por exemplo, do julgado proferido no AgRg no AgRg no AREsp 639.899/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 05/11/2015, DJe 03/02/2016. Assim que, portanto, não há dúvidas de que os Conselhos de Fiscalização Profissional, para fins de fixação de competência jurisdicional, recebem o tratamento jurídico de autarquia federal – o que atrai a aplicação do art. 109 da Constituição Federal, e, em leitura conjugada com a revogação do art. 15, I, da Lei n. 5.010/66, determina a competência da Justiça Federal de primeira instância para processar e julgar as execuções fiscais ajuizadas pelos referidos entes. Ademais, tratando-se de entidade pública federal, resta claro que tais entes detêm a prerrogativa de inscrever em Dívida Ativa os valores que lhe sejam devidos, cabendo-lhes cobrá-los mediante o rito próprio do executivo federal previsto na LEF, que assim dispõe em seus arts. 1º e 2º, §1º (grifou-se): Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil. Art. 2º - Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. § 1º - Qualquer valor, cuja cobrança seja atribuída por lei às entidades de que trata o artigo 1º, será considerado Dívida Ativa da Fazenda Pública.

Diante de tal panorama, não resta dúvida de que os Conselhos de Fiscalização Profissional têm suas cobranças plenamente regidas pela Lei de Execuções Fiscais, sendo também certo que tais executivos fiscais devem ser ajuizados na Justiça Federal de primeira instância. De todo modo, há outras normas que trazem determinadas particularidades para o rito dos executivos fiscais propostos pelos Conselhos de Fiscalização 43 BOOK.indb 43

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Profissional, já que se traduzem em entes que possuem certas especificidades do ponto de vista jurídico. Este regime jurídico próprio será visto a seguir.

3. PARTICULARIDADES PROCESSUAIS E AS NOVIDADES TRAZIDAS PELA LEI N. 12.514/2011 Uma vez sedimentado que os Conselhos de Fiscalização Profissional detêm legitimidade ativa para ajuizar execuções fiscais perante a Justiça Federal, resta analisar quais seriam as particularidades atinentes ao rito procedimental de tais ações, considerando-se que existem normas próprias aplicáveis à situação em exame. Neste ponto, ganha relevo a Lei n. 12.514/2011, que alterou, de maneira marcante, o rito dos executivos federais propostos pelos Conselhos de Fiscalização Profissional. O primeiro aspecto a ser destacado diz respeito ao valor que será objeto de ajuizamento de executivo fiscal correspondente. De início, destaque-se o valor mínimo pecuniário que permite aos Conselhos que deixem de cobrar judicialmente determinados valores. O art. 7º da Lei n. 12.514/2011 determina que os Conselhos de Fiscalização Profissional “poderão deixar de promover a cobrança judicial de valores inferiores a 10 (dez) vezes o valor de que trata o inciso I do art. 6º” – valor que hoje corresponde ao quantum de R$50,00 (cinqüenta reais). Daí se percebe não serem aplicáveis, ao caso, os valores previstos como piso de cobrança para outros entes federais – como é o caso da Fazenda Nacional (Lei n. 10.522/2002 e Portaria nº 75, de 22 de março de 2012, que prevê o piso de R$20.000,00 – vinte mil reais) ou mesmo das execuções fiscais propostas pela Procuradoria Federal (Lei nº 9.469/96 que determina a regulamentação específica por ato infralegal). Quanto a este aspecto, é importante salientar que, embora se trate de tema que se resolva pela simples aplicação do texto legislativo, o STJ já foi instado a manifestar-se a este respeito, tendo concluído, sob a sistemática dos recursos repetitivos, pela não aplicabilidade da Lei n. 10.522/2002 no âmbito dos executivos fiscais dos Conselhos. A Corte apontou que, havendo regra específica prevista no art. 7º da Lei n. 12.514/2011, vige o princípio da especialidade (REsp 1363163/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 11/09/2013, DJe 30/09/2013). Ademais, a nova legislação também prevê um quantum em que será vedado o ajuizamento da execução fiscal por parte dos Conselhos de Fiscalização Profissional: trata-se de previsão do art. 8º da referida norma, que dispõe que os Conselhos não executarão em juízo dívidas referentes a anuidades inferiores a 4 (quatro) vezes o valor cobrado anualmente da pessoa física ou jurídica inadimplente. E é justamente neste ponto em que reside a polêmica atual da jurisprudência pátria. A primeira polêmica sobre o art. 8º da nova lei diz respeito às ações ajuizadas anteriormente a sua vigência. 44 BOOK.indb 44

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Em um primeiro momento, o Superior Tribunal de Justiça chegou a entender que a nova lei se aplicava também às ações fiscais ajuizadas mesmo antes de sua vigência, a exemplo do REsp 1.374.202-RS, julgado pela 2ª Turma, em 07/05/2013 e que teve como Relator o Ministro Humberto Martins. No entanto, em um momento posterior, a questão se pacificou em sentido diametralmente oposto, isto é, pela aplicabilidade da nova lei somente aos executivos fiscais ajuizados após a sua vigência. Este entendimento foi proferido pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgado de 26/03/2014 proferido no regime dos recursos repetitivos, (REsp 1.404.796-SP, Relator Ministro Mauro Campbell Marques) – e, portanto, vinculante. Tal entendimento se embasou na teoria dos atos processuais isolados, segundo a qual cada ato processual é regido pela lei aplicável na ocasião de sua prática – trata-se, a rigor, da aplicação pura e simples do brocardo latino do tempus regit actum, que, no âmbito processual, aplica-se justamente a cada ato de forma isolada. Ademais, a ementa do julgado traz também a acertada fundamentação de que a lei somente produz efeitos retroativos havendo previsão expressa neste sentido – e como a Lei n. 12.514/2011 foi omissa neste ponto, então, por óbvio, não há efeitos retroativos. Portanto, hoje não existe mais dúvida a este respeito, prevalecendo, de forma uníssona, o entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça em âmbito de recursos repetitivos: isto é, o art. 8ª da Lei n. 12.514/2011 somente se aplica às ações de execução fiscal propostas após a sua vigência. A segunda polêmica, a seu turno, resta ainda bastante tormentosa, e se relaciona ao conteúdo que deu lastro à Dívida Ativa. A indagação objetiva esclarecer se a vedação do art. 8º aplicar-se-ia tão-somente aos casos em que se cobram literalmente anuidades ou se a referida vedação também seria aplicável a casos em que a cobrança diga respeito a outros valores inscritos em Dívida Ativa (como sanções administrativas, por exemplo). Os Conselhos alegam que a vedação do art. 8º da Lei n. 12.514/2011 merece interpretação restrita – ou literal –, de modo que impediria a cobrança judicial tão-só de anuidades, em uma leitura literal do dispositivo. No entanto, há também posição que entende que tal leitura da vedação do art. 8º– que se trata de verdadeira condição de procedibilidade – possui maior abrangência, alcançando toda e qualquer execução fiscal proposta pelos Conselhos de Fiscalização Profissional, independentemente da natureza material do valor cobrado. Esta interpretação surge a partir da ratio essendi da própria norma, que intentou concretizar o princípio da eficiência (art. 37 da Constituição da República) em sede de execução fiscal – já que esta classe de ação apresenta um histórico de baixa relação custo-benefício no nosso país (citar IPEA). Importante salientar também que o referido art. 8º não impede a cobrança de valores – mas, tão-somente, a sua cobrança em juízo. A questão ainda resta longe de estar pacificada, conforme se pode ver a seguir. Colaciona-se uma primeira ementa, de julgado da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (grifou-se), em posição que também já foi acolhida 45 BOOK.indb 45

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em julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (na AC 000240378.2013.4.01.3602 / MT, julgada em 11/11/2016): TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. CONSELHOS PROFISSIONAIS. ART. 8º DA LEI 12.514/2011. EXIGÊNCIA DE VALOR MÍNIMO PARA AJUIZAMENTO DE EXECUÇÃO FISCAL. QUANTIA SUPERIOR AO EQUIVALENTE À SOMA DE 4 (QUATRO) ANUIDADES, E NÃO QUE SEJAM COBRADAS, AO MENOS, 4 (QUATRO) ANUIDADES. A QUANTIA AVALIADA PARA DETERMINAR A POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL COMPREENDE O VALOR DAS ANUIDADES DEVIDAS, SOMADO AOS CONSECTÁRIOS LEGAIS. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I. O art. 8º da Lei 12.514/2011, ao determinar que não será ajuizada, pelos Conselhos, execução fiscal para cobrança de dívidas referentes a anuidades inferiores a 4 (quatro) vezes o valor cobrado anualmente da pessoa física ou jurídica, não exige que sejam executadas ao menos 4 (quatro) anuidades, e, sim, que a quantia mínima necessária para o ajuizamento da execução corresponda à soma de 4 (quatro) anuidades. II. O dispositivo legal em destaque faz referência às “dívidas (...) inferiores a 4 (quatro) vezes o valor cobrado anualmente”, ou seja, a quantia a ser utilizada para configuração do valor mínimo necessário para a propositura da execução fiscal será aquele inscrito em dívida ativa. Em outras palavras, o valor das anuidades devidas, somado aos juros, correção monetária e multas, em sua totalidade, não poderá ser inferior à quantia correspondente ao somatório de quatro anuidades, na época da propositura da ação. III. Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “o art. 8º da Lei nº 12.514/2011 estabelece que: ‘Os Conselhos não executarão judicialmente dívidas referentes a anuidades inferiores a 4 (quatro) vezes o valor cobrado anualmente da pessoa física ou jurídica inadimplente’. Da leitura do dispositivo legal, extrai-se que a limitação imposta para o ajuizamento da execução fiscal refere-se ao valor da dívida na época da propositura da ação, o qual não poderá ser ‘inferior a 4 (quatro) vezes o valor cobrado anualmente da pessoa física ou jurídica inadimplente’. No caso concreto, apesar de a dívida executada referir-se a apenas 3 (três) anuidades, o valor do montante executado, ou seja, principal mais acréscimos legais, supera em muito o equivalente ‘a 4 (quatro) vezes o valor cobrado anualmente da pessoa física ou jurídica inadimplente’, não havendo, por isso, razão para se extinguir o feito” (STJ, REsp 1.425.329/PR, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 16/04/2015). Em igual sentido: STJ, REsp 1.468.126/PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 06/03/2015; STJ, REsp 1.488.203/ PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 28/11/2014. IV. Hipótese em que o acórdão do Tribunal de origem manteve sentença que extinguira a execução fiscal ajuizada por Conselho

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Profissional, por falta de interesse de agir, por cobradas apenas três anuidades e por ser o valor executado, excluídos os acréscimos legais, inferior àquele previsto no art. 8º da Lei 12.514/2011. V. Recurso Especial provido. (REsp 1466562/RS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/05/2015, DJe 02/06/2015).

Por outro lado, há também posição jurisprudencial, da mesma 2ª Turma do STJ, que acolhe a tese dos Conselhos de Fiscalização Profissional, como se observa a seguir (grifou-se): PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SUBMISSÃO À REGRA PREVISTA NO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 02/STJ. EXECUÇÃO FISCAL. MULTA ADMINISTRATIVA COBRADA POR CONSELHO PROFISSIONAL. NÃO INCIDÊNCIA DA REGRA PREVISTA NO ART. 8º DA LEI 12.514/2011. 1. Nos termos do art. 8º da Lei 12.514/2011, “os Conselhos não executarão judicialmente dívidas referentes a anuidades inferiores a 4 (quatro) vezes o valor cobrado anualmente da pessoa física ou jurídica inadimplente”, sendo que tal regra “não limitará a realização de medidas administrativas de cobrança, a aplicação de sanções por violação da ética ou a suspensão do exercício profissional”. Como se percebe, o preceito legal referido trata de dívidas decorrentes de anuidades. Em se tratando de norma que limita o exercício do direito de cobrança por parte dos conselhos profissionais, reveste-se de caráter excepcional, razão pela qual se impõe sua interpretação restritiva. 2. No caso, considerando que a execução fiscal refere-se a crédito decorrente de multa administrativa, não há falar em incidência do disposto no art. 8º da Lei 12.514/2011. 3. Recurso especial provido. (REsp 1597524/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/05/2016, DJe 23/05/2016).

A rigor, esta questão ainda há de ser pacificada pela jurisprudência, sendo essencial para garantir uma maior segurança jurídica, tanto para os próprios Conselhos quanto para os cidadãos inscritos em tais entidades. A doutrina, do mesmo modo, ainda pouco se debruçou sobre o tema. Por oportuno, cabe ressaltar que a própria lei determina que o disposto no caput do art. 8º não limitará a realização de medidas administrativas de cobrança, a aplicação de sanções por violação da ética ou a suspensão do exercício profissional. Portanto, é plenamente possível que haja outros meios de cobrança por parte dos Conselhos – o que a lei veda expressamente é o ajuizamento do executivo fiscal caso o valor esteja abaixo do montante ali previsto. Por ser questão pertinente a impugnações relativas às ações ora em comento, é também relevante apontar que a Lei n. 12.514/2011 inovou quanto à previsão do fato gerador das anuidades: dispõe o seu art. 5º que o “fato 47 BOOK.indb 47

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gerador das anuidades é a existência de inscrição no conselho, ainda que por tempo limitado, ao longo do exercício”. Veja-se que, em momento anterior, havia grande discussão a respeito da legitimidade da cobrança em relação aos associados que não exerciam de fato a profissão. Contudo, a partir da vigência da nova lei, a dúvida deixa de existir quanto às relações jurídicas travadas após a sua vigência, havendo previsão legal expressa a este respeito, da qual se presume a constitucionalidade. Ainda no estudo das particularidades das execuções fiscais ajuizadas pelos Conselhos de Fiscalização Profissional, torna-se importante enfatizar que em “execução fiscal ajuizada por Conselho de Fiscalização Profissional, seu representante judicial possui a prerrogativa de ser pessoalmente intimado, conforme disposto no art. 25 da Lei 6.830/80”.Tal conclusão também decorre de entendimento do STJ em recursos repetitivos (REsp 1330473/SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Seção, julgado em 12/06/2013, DJe 02/08/2013). E, por fim, cabe ressaltar que o novo paradigma processual de fomento da conciliação (THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA; PEDRON, 2016) vem impondo uma nova realidade prática às execuções fiscais ajuizadas pelos Conselhos de Fiscalização Profissional. Observa-se que a conciliação vem se tornando, na prática forense, um importante meio de solução de conflitos também no que diz respeito à crise de satisfação ou de adimplência: seja por meio de parcelamento – com a eventual suspensão do processo – ou por meio de pagamento dos valores em sua totalidade, tem se mostrado crescente o número de execuções fiscais solucionadas pelo acordo entre as partes, inclusive com a possibilidade de haver descontos em prol do executado.Tal observação se justifica, dentre outros aspectos, pela própria particularidade desta cobrança pelos Conselhos: existe um vínculo específico entre executados e exeqüentes, o que se soma ao fato de ser absolutamente natural a necessidade de que o profissional se mantenha regularizado perante o próprio Conselho de Fiscalização Profissional.

CONCLUSÃO No presente artigo, o estudo desenvolvido teve o objetivo de sistematizar os entendimentos pacificados a respeito das execuções fiscais ajuizadas por Conselhos de Fiscalização Profissional perante a Justiça Federal. Como se pôde observar, tais ações possuem uma relevância não somente de cunho estatístico – já que, embora representem um grande quantitativo dos processos que tramitam na Justiça Federal, possuem também inegável repercussão na satisfação ou não do direito material subjacente. Com o advento da Lei n. 12.514/2011, foram trazidas inúmeras novidades relevantes sobre o tema. Naturalmente, tratando-se de legislação ainda recente – do ponto de vista de pacificação de entendimentos jurisprudenciais e doutrinários –, ainda há uma série de questões a serem sedimentadas. Espera-se que, com o presente estudo, ganhe destaque a reflexão que o tema merece. 48 BOOK.indb 48

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BIBLIOGRAFIA BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009. CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 3ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. DOS SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil: Volume II – Execução e Processo Cautelar. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. PERRINI, Raquel Fernandez Perrini. Competência da Justiça Federal. 2ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2011. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Lei de Execução Fiscal. 11ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. _____________; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre de Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e Sistematizações. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016.

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AS DIFERENÇAS DE REGIME INDENIZATÓRIO NAS MODALIDADES DE EXPROPRIAÇÃO NO ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

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Fabio Luiz de Oliveira Bezerra1

INTRODUÇÃO Há muito verifica-se um desenvolvimento doutrinário acerca de regime geral de responsabilidade civil do Estado que não pretende, é claro, uma unificação completa dos institutos envolvidos, mas que almeja abranger, sob os mesmos princípios vetores, todas as hipóteses normativas de prestação indenizatória em sentido amplo ao particular. A propósito do tema, Canotilho (1974, p. 11) defendeu pelos idos de 1974 a inexistência de uma “bipartição radical” entre responsabilidade por ato ilícito e responsabilidade por ato lícito, bem como propugnou pela inserção da responsabilidade objetiva no mesmo patamar de dignidade da responsabilidade subjetiva. Propôs, então, àquela altura, um “sistema totalizante das prestações reparatórias”, com inclusão da responsabilidade por ato legislativo e jurisdicional (CANOTILHO, 1974, p. 18). Mais recentemente, Correia (2011, p. 144) tem referido a um “superconceito” de responsabilidade civil, que englobaria as responsabilidades civis do Estado por danos decorrentes da atuação executiva (administrativa), legislativa e judiciária, além da indenização por sacrifício (CORREIA, 2009). Permanecem, contudo, muitas diferenças substanciais, não apenas de fundamento, que, de partida, não é de todo incompatível (até porque há um fundamental geral comum), mas principalmente no que diz respeito ao regime de indenização. As distinções que grande parte da doutrina e a legislação estabelecem para as indenizações nos processos de transferência compulsória de direitos reais de propriedade estão fundamentadas ora no binômio licitude/ ilicitude do ato, ora na insuficiência financeira do Estado. 1

Juiz Federal da 7ª Vara Federal/RN, Mestre (UFPE) e Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra), fabiobezerra@jfrn.jus.br.

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Nesse contexto, pretende-se, com este ensaio, verificar se, num quadro de responsabilidade civil em sentido amplo e de alargamento do direito fundamental à propriedade, tais distinções ainda são justificáveis, e se sim, em que circunstâncias. Quanto aos atos ilícitos, analisaremos a questão proposta no âmbito de algumas modalidades de responsabilidade civil do Estado por ato lícito (expropriação, indenização de sacrifício).

1. AS MODALIDADES DE EXPROPRIAÇÃO A responsabilidade do Estado é, sem dúvida, instrumento de legalidade e de justiça material (CANOTILHO, 1974, p. 13). Enquanto no âmbito das relações particulares sempre se aplicou o princípio geral do direito consistente na obrigação de se reparar o dano; no direito público, houve uma evolução, quanto à sua aplicabilidade, que começou com a tese de irresponsabilidade do Estado, seguindo para uma admissão de responsabilidade apenas quanto aos atos de gestão, excluindo-se os de império e, pouco a pouco, a legislação foi conferindo hipóteses em que o Estado assume responsabilidade também por alguns atos antes classificados como atos de império, de forma que já se afirma, como o faz Vieira de Andrade (2011, p. 347), que já não há mais razão para a diferença entre responsabilidade por atos de gestão privada e por atos de gestão pública. O surgimento da responsabilidade civil do Estado foi marcado com as cores civilistas da culpa e da ilicitude.As hipóteses de prestação indenizatória em decorrência de atuação lícita do Estado, de que é exemplo-mor a expropriação, sempre foram tratadas de lado do tema da responsabilidade civil do Estado, sem qualquer conexão. As diferenças entre as causas da responsabilidade do Estado notam-se até hoje nas terminologias adotadas. Na doutrina italiana (SANDULLI, 1989), o termo indennizo é usado como compensação material de um prejuízo decorrente de ato lícito do Estado, ao passo que, para os casos de atos ilícitos, utiliza-se responsabilità. No direito alemão (WOLFF et al., 2006), a dicotomia parece ainda persistir, apesar de tendência verificada para tratamento jurídico numa mesma categoria: Entschädigung é restrita aos casos de reparação de danos decorrentes de atos lícitos, ao passo que Staatshaftung é reservada à situação causada por atos ilícitos e culposos. No direito inglês, há uma tendência de se utilizar responsibility para os casos de atos ilícitos e liability para os casos de responsabilidade por atos lícitos ou pelo risco (QUADROS, 1998, p. 371). No direito português, verifica-se que o termo ressarcimento refere-se usualmente à reintegração total do dano emergente de ato ilícito, ao passo que indenização estaria mais associada a uma compensação de sacrifícios decorrentes de atos lícitos.A despeito desta distinção terminológica, convém de logo ressaltar que, adotando as palavras de Canotilho (1974, p. 321), ela “não tem qualquer razoabilidade”, visto que amparada na “ultrapassada concepção de justo preço, aliás limitada historicamente ao instituto da expropriação” e na “radical separação entre indemnização de direito público, englobadora exclusivamente de danos objectivos, e uma responsabilidade por ilícito”. 52 BOOK.indb 52

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Mais recentemente, vê-se em construção uma noção mais ampla das modalidades de responsabilidade civil do Estado, como faz, por exemplo, boa parte da doutrina alemã, ao dispor sobre os parâmetros gerais do direito das prestações de ressarcimento e de indenização jurídico-públicas (MAURER, 2006). Prova dessa evolução é, no direito português, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEE), que disciplina atualmente quatro tipos de responsabilidades: responsabilidade civil por danos decorrentes da atividade administrativa (incluindo neste tipo a responsabilidade por fato ilícito e responsabilidade pelo risco), decorrentes da atividade legislativa e decorrentes da atividade jurisdicional, bem como a responsabilidade pelo sacrifício. Correia (2011, p. 145) entende que, a despeito das diferenças em termos de concretização legislativa ordinária, estas categorias consolidam o direito fundamental do cidadão à reparação dos danos.

1.1. EXPROPRIAÇÃO CLÁSSICA Em Direito Internacional Público, os atos de privação (ablação) da titularidade de direitos de propriedade assumem várias terminologias (expropriação, nacionalização, privação, desapossamento etc.), mas que, para Fausto de Quadros (1998, p. 194), podem ser englobados num conceito macro de expropriação em sentido amplo, compreendendo a expropriação (em sentido restrito), a nacionalização e atos análogos ou equivalentes à expropriação e à nacionalização (requisições, servidões, modificações, rescisões unilaterais etc.). O Direito Internacional Público, de forma mais pragmática, não coloca em relevância tanto a classificação dos atos de transmissão da propriedade, importando muito mais o regime aplicável a cada uma das realidades jurídicas, especialmente a consequência de caber ou não indenização, e se é total ou parcial (QUADROS, 1998, p. 192). Consolidado pela doutrina e jurisprudência alemã (CORREIA, 2010, p. 132), a expropriação clássica é comum a diversos Estados nacionais, incluindo Portugal e Brasil, em relação aos quais deteremos mais nossas atenções. No direito português, a expropriação por utilidade pública tem assento em vários dispositivos da Constituição da República Portuguesa (CRP): artigo 62, n. 2; artigo 165, n. 1, alínea “e”; artigo 65, n. 4. No direito brasileiro, é utilizado o termo desapropriação, em vez de expropriação, para qualificar o mesmo fenômeno jurídico. O art. 5º, XXIV, da Constituição de 1988 (CF/1988) prescreve que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”. Não se trata de instituto recente, havendo menção à desapropriação (imobiliária) desde a Constituição do Império de 1824. Além das espécies de desapropriação ordinária, a Constituição ainda se refere à desapropriação para reforma agrária (art. 184), desapropriação sanção (art. 182, §4º) e desapropriação-confisco (art. 243). A desapropriação por uti53 BOOK.indb 53

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lidade pública está regulada no Decreto-lei 3.365/1941. A desapropriação por interesse social vem disciplinada na Lei 4.132/1962. No direito brasileiro, os civilistas costumam conceituar desapropriação como perda da propriedade (RODRIGUES, 2007, 171), ao passo que os administrativistas conceituam como forma de aquisição originária da propriedade (CRETELLA JÚNIOR, 1995, p. 13).Vale anotar que os princípios fundamentais que informam e conformam a desapropriação são: a) supremacia do interesse público sobre o privado; b) legalidade; c) finalidade; d) moralidade; e) proporcionalidade; f) reserva judicial ou judicialidade; g) publicidade. As principais condições ou pressupostos da expropriação são, indubitavelmente, a declaração de utilidade pública e a indenização. Trataremos aqui da utilidade pública, deixando para dispor posteriormente sobre indenização (item 3). Canotilho (1974, p. 327) considera como dimensão teleológica dos atos impositivos de sacrifício a utilidade pública, ou interesse público, ou interesse geral, ou bem da coletividade, ou bem comum, ou interesse comum, advertindo que não é nítida a diferenciação entre tais conceitos. E em algumas ocasiões, esses conceitos aparecem com o adjetivo inadiável, imperioso ou urgente, em que se exige análise sob o ângulo do princípio da proibição do excesso (CANOTILHO, 1974, p. 329). Pereira Júnior (1997, p. 205-6) comenta que o Código de Expropriações de Portugal, aprovado pelo Decreto-Lei 845/1976, adotou “a expressão vaga e indeterminada utilidade pública, conferindo ao administrador a valoração, em cada caso concreto, dos motivos oportunizadores da gravosa interveniência na propriedade privada”. Tal deficiência não é exclusiva do direito português. Lacchè (1995, p. 387-388), analisando a expressão no domínio francês, concluiu que a utilidade pública é “terreno de conveniências sociais”, “espaço da política no âmbito da procedimentalização técnica do conflito entre direito e interesse de várias naturezas”, público e privado. No Direito Internacional, a exigência da utilidade pública remonta à doutrina de Hugo Grócio. A prática dos Estados nas relações internacionais e a doutrina de Direito Internacional Público elencam as seguintes condições de licitude da expropriação: a utilidade pública da expropriação; a não discriminação dos estrangeiros em relação aos nacionais; e a indenização. No Direito Europeu, o art. 1º do Protocolo Adicional n. 1 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem exige “causa de utilidade pública” para expropriação. Neste âmbito europeu, não é realizada uma fiscalização direta sobre a verificação da condição da utilidade pública, mas é efetuado um controle indireto, por intermédio do princípio da proporcionalidade (QUADROS, 1998, p. 281). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos casos Sporrong, Lithgow e Wiesinger, avalia o justo equilíbrio entre as exigências que ditam o interesse público e o sacrifício dos particulares. O conceito de expropriação evoluiu, em diversos sistemas jurídicos nacionais e no Direito Internacional, como decorrência da ampliação do conteúdo do direito de propriedade privada (QUADROS, 1998, p. 188), passando a 54 BOOK.indb 54

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englobar outras situações não translativas de propriedade, mas que provocam o esvaziamento ou diminuição substancial do conteúdo essencial da propriedade, como é o caso da expropriação de sacrifício.

1.2. EXPROPRIAÇÃO DE SACRIFÍCIO O conceito de expropriação de sacrifício foi desenvolvido inicialmente na doutrina germânica. Basicamente, pelo fato de o art. 19, n. 2, da Constituição Federal da Alemanha estabelecer que “em caso algum poderá ser afetado o conteúdo essencial de um direito fundamental”, conclui-se que, no que se refere ao direito de propriedade, todo ato que afete a substância ou conteúdo essencial é passível de gerar indenização ao interessado. Os atos que não afetam o conteúdo essencial do direito de propriedade não são indenizáveis. Enquadram-se neste esquema as limitações à propriedade privada (QUADROS, 1998, p. 263). No direito português, o mesmo raciocínio jurídico é aplicado, pois o art. 18, n. 3, da CRP refere-se ao conteúdo essencial dos preceitos constitucionais, dentre os quais o direito de propriedade. Com base neste conceito, Correia (2010, p. 132) assevera que expropriação por sacrifício caracteriza-se por “uma destruição ou uma afectação essencial, de uma posição jurídica garantida como propriedade pela Constituição”. No direito italiano (ASSINI; MANTINI, 1997, p. 236), a expropriação de sacrifício é conhecida por expropriação substancial ou anômala, enquanto no direito alemão corresponde a Aufopferungsenteignung. No direito francês, da mesma forma, limitações graves que desnaturam o direito de propriedade equivalem a uma expropriação (CORREIA, 2011, p. 156). No direito brasileiro, Pereira Júnior (1997, p. 204) inclui no conceito de desapropriação não apenas a perda da propriedade, mas também “o seu esvaziamento (minoração da substância)”. Ocorre que o esvaziamento da substância pode decorrer tanto de ato ilícito como de ato lícito. Outros autores brasileiros, no entanto, inserem a hipótese de esvaziamento da substância da propriedade na figura da desapropriação indireta, não reservando esta apenas aos casos de desapossamento, como se verá adiante. No âmbito do direito internacional, também nota-se que algumas situações de esvaziamento do conteúdo essencial de direitos reais são equiparadas à expropriação. O Tribunal Arbitral Irã-EUA, no caso Starrett (p. 156 da sentença), frisou que “medidas tomadas por um Estado pode interferir nos direitos reais com uma tal extensão que esses direitos ficam esvaziados como se tivessem sido expropriados, mesmo se o Estado não teve a intenção de os expropriar e o título jurídico da propriedade permaneceu formalmente no seu titular originário”. O mesmo Tribunal, no caso Tippets (p. 225 da sentença), entendeu que uma expropriação de propriedade pode ocorrer através da “interferência” do Estado no uso ou fruição da referida propriedade, mesmo sem afetar o título de propriedade. Ao contrário da expropriação clássica, não há, na expropriação de sacrifício, intuito de aquisição de bem, apenas são produzidas modificações especiais e graves na utilidade do direito de propriedade e que são enquadrados como expropriativos, gerando direito à indenização (CORREIA, 2010, p. 132 e 305). 55 BOOK.indb 55

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1.3. INDENIZAÇÃO PELO SACRIFÍCIO A primeira grande teoria sobre indenização no âmbito do direito público destinada a satisfazer determinados sacrifícios suportados pelo indivíduo e decorrentes de atuação lícita do Poder Público foi a teoria do sacrifício de Mayer (2012). Segunda essa teoria, não importa se o ato foi lícito ou ilícito, sendo relevante, para o particular fazer jus à indenização, é saber se houve um sacrifício especial, um sacrifício que onera de forma desigual o indivíduo comparativamente aos demais cidadãos. Dessa forma, a responsabilidade civil do Estado pelo sacrifício repousa no princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, dimensão específica do princípio da igualdade (CORREIA, 2011, p. 146). Utiliza-se o critério da intensidade da medida para se saber quando um ato limita substancialmente o direito real sem retirar formalmente o direito (QUADROS, 1998, p. 214). A substância do direito é o conteúdo essencial da propriedade privada da doutrina alemã, que está relacionada com uso, fruição e gozo e é avaliado conforme valor de mercado do bem (QUADROS, 1998, p. 215). A indenização pelo sacrifício está no direito português expressamente regulada no Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCEE), aprovado pela Lei 67/2007, com alteração dada pela Lei 31/2008. A diferença entre a indenização por sacrifício e as modalidades de expropriação (expropriação clássica, expropriação por sacrifício) reside, na visão de Correia (2011, p. 152), na intencionalidade do ato lícito gerador dos danos anormais e especiais. Reforça ainda seu argumento aduzindo que, nas modalidades de responsabilidade civil por atos ablativos, o dano e a indenização formam um momento constitutivo da própria atividade estatal, e, por isso, traduz-se em pressuposto de legitimidade. Se os atos forem intencionais, com resultados desejáveis, estamos diante de atos ablativos de direitos privados que estão sujeitos a um regime diferente, que são os casos da expropriação por utilidade pública (expropriação em sentido clássico), expropriação por sacrifício e nacionalização. Alves Correia (2011, p. 160) assevera ainda que, na expropriação por sacrifício, a indenização é um pressuposto de validade do ato expropriativo, e, por isso mesmo, diferencia-se da indenização por sacrifício. Acreditamos que não é integral a conciliação entre a condição de pressuposto e o fato de não haver, na expropriação de sacrifício, um procedimento administrativo formal prévio. O que diferencia expropriação em sentido clássico da expropriação de sacrifício é justamente o fato de não haver um processo prévio ao fato gerador da expropriação de sacrifício. Assim, pensamos que na expropriação por sacrifício, assim como na indenização por sacrifício, a indenização é uma consequência do ato estatal.

1.4. EXPROPRIAÇÃO POR ATO ILÍCITO A Administração Pública, não é raro, poderá descumprir algumas normas legais referentes à expropriação, seja relativa à utilidade pública, seja relativa à 56 BOOK.indb 56

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indenização. Nessas situações, estamos diante de expropriações ilícitas, como, por exemplo, a expropriação de fato no âmbito do Direito Internacional e a desapropriação indireta. No direito internacional, costuma-se denominar de expropriação ilícita ou expropriação de fato a situação em que o Poder Público, ao efetuar o processo de expropriação, descumpre as condições de licitude. O fundamento da expropriação ilícita é bem diferente do fundamento da expropriação lícita: enquanto na primeira o fundamento é o descumprimento da obrigação internacional, a segunda resulta do interesse público.Também é distinto, no âmbito do Direito Internacional, o regime da indenização devido quando decorrente de ato lícito e quando for emergente de ato ilícito. Na indenização, na hipótese de ilicitude, são incluídos, não apenas os danos emergentes, mas também os lucros cessantes. No Direito Internacional é bastante comum a ocorrência de ilicitude, como é exemplo o caso Amoco, onde o Tribunal Arbitral Irã-EUA equiparou à nacionalização a rescisão de contrato de forma ilegítima (parágrafo 173 da sentença). A desapropriação indireta, outra espécie de expropriação ilícita, possui duas acepções, no direito brasileiro. A primeira considera desapropriação indireta apenas quando a Administração Pública pratica um esbulho. Nesse particular, Meirelles (1989, p. 502) aduz que “a desapropriação indireta não passa de esbulho da propriedade particular e como tal não encontra apoio em lei”, cabendo ao proprietário opor-se através dos interditos possessórios, mas que, consumando-se o apossamento dos bens com a consequente integração ao patrimônio público, fica insuscetível de reintegração ou reivindicação, restando ao particular pleitear indenização por perdas e danos. Nessa mesma linha, Di Pietro (2000, p. 152) afirma que, na desapropriação indireta, se o proprietário não impedir o esbulho no momento oportuno,“deixando que a Administração lhe dê uma destinação pública, não mais poderá reivindicar o imóvel”, a não ser uma “indenização por perdas e danos”. A desapropriação indireta também pode ser entendida como uma forma de afetação de bens particulares ao patrimônio público, mas não deixa de ser afetação ilícita, visto que na afetação lícita “apenas alcança bens já integrados no patrimônio público, na qualidade de bens dominicais para passá-los à categoria de uso comum do povo ou de uso especial” (DI PIETRO, 2000, p. 152). Também aduzindo a apossamento, Cretella Júnior (1995, p. 26) invoca uma situação de desapropriação indireta: “quando, no decorrer de trabalho público, como consequência forçada das obras, a Administração se apossa de terreno que, no início, não se havia previsto como indispensável ao trabalho ou que tornou necessário como consequência de erro na execução”. Situação mais comum é a relatada por Costa Coelho (1999, p. 38): a Administração Pública se vale do apossamento para burlar o dispositivo constitucional que exige pagamento prévio, e propõe, para contornar esse fato, a adoção de incidente nos autos da ação de desapropriação indireta para fixação de indenização provisória. 57 BOOK.indb 57

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Na segunda acepção, incluem-se no conceito de desapropriação indireta as limitações ou servidões que inviabilizem o exercício do direito de propriedade. Neste ponto, Di Pietro (2000, p. 153) assevera que, “às vezes, a Administração não se apossa diretamente do bem, mas lhe impõe limitações ou servidões que impedem totalmente o proprietário de exercer sobre o imóvel os poderes inerentes ao domínio”, sendo que nesse caso “também se caracterizará a desapropriação indireta, já que as limitações e servidões somente podem, licitamente, afetar em parte o direito de propriedade”. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no caso da criação de Parque Nacional no Estado de São Paulo, considerou ter havido verdadeira desapropriação, e não servidão administrativa como alegado pela Administração Pública (REsp nº 154.686/SP). O STJ já condenou o Poder Público ao pagamento de indenização integral do valor do imóvel em decorrência de a servidão administrativa ter provocado supressão total ou considerável dos direitos inerentes à propriedade (REsp. 220.983/SP; REsp 397.610/SC). No direito francês, também encontramos o instituto da desapropriação indireta, sendo essencialmente reservado aos casos de atos ilícitos de apossamento. Nesse sentido, Laubadère (1953, p. 810) considera ser “o fato de apropriar-se a Administração dos bens de um particular sem o emprego dos processos legais”. Depois passou também a englobar outras situações decorrentes de ato lícito. Daí porque Rolland (1947, p. 519) conceitua desapropriação indireta como sendo a transferência da propriedade para o Estado que ocorre em condições particulares, ora como apossamento (desapropriação sem existência de processo), ora sendo consequência acessória do procedimento legal, como na operação de alinhamento, que se destina a marcação dos limites das vias públicas, quando envolve a desapropriação dos terrenos não construídos na frente.

1.5. NACIONALIZAÇÃO Para ressaltar algumas notas sobre a nacionalização, é oportuno proceder a uma comparação entre nacionalização e expropriação a partir de alguns pontos de referência: finalidade, objeto, título, reversão e procedimento. Na nacionalização, a finalidade é mais ampla do que na expropriação. A expropriação tem por propósito afetar um bem a um fim público específico, ao passo que a nacionalização pretende uma mudança estrutural na divisão da titularidade da propriedade de setores da economia. Na expropriação, como ressalta Correia (2010, p. 143-144), altera-se o domínio das situações jurídicas singulares, ao passo que, na nacionalização, objetivam-se a direção e a coordenação da economia. É certo que, embora o escopo da expropriação seja mais reduzido, também por via da expropriação, opera-se uma direção da economia, contudo, faz-se de maneira acidental, eventual, não sendo a finalidade imediata. Em relação ao objeto, sintetiza Correia (2010, p. 143) que, “enquanto a expropriação (em sentido clássico) tem, em regra, como objecto um bem singular, a nacionalização incide sobre empresas ou estabelecimentos, entendidos como uma universitas”. Dele não divergem Canotilho e Moreira (2007, p. 994), para 58 BOOK.indb 58

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quem as expropriações clássicas podem ter por objeto quaisquer bens, não necessariamente bens de produção, como na nacionalização. Quanto ao título da aquisição (ou transmissão) do bem, indaga-se se a aquisição ocorre a título originário, onde a posição jurídica do adquirente não depende da posição do proprietário anterior, ou a título derivado, onde os direitos e deveres do proprietário anterior sucedem-se ao atual proprietário. Para Katzarov (1960, p. 244), a nacionalização traz uma aquisição originária e a expropriação reflete uma aquisição derivada. Há quem entenda que a nacionalização corresponde a uma novação subjetiva coativa (CORDEIRO, 1999, p. 160).Também encontramos posicionamento no sentido de que a expropriação é transmissão derivada de propriedade, por considerar que a expropriação é válida mesmo que seja dirigida contra quem não é proprietário e porque se extinguem todas as vinculações anteriormente existentes (SANDULLI, 1989, p. 749). Por sua vez, Ascensão (1989, p. 51) considera a expropriação como sendo originária e a nacionalização, em regra, derivada. Ascensão (1989, p. 51) preleciona que a natureza da transmissão da propriedade depende do objeto da nacionalização: se for coisas, englobando nesta qualificação os estabelecimentos como universalidades de fato, a aquisição é originária; por outro lado, se o objeto consistir em empresa, a aquisição é derivada. Canotilho e Moreira (2007, p. 994) apontam que, enquanto na expropriação há direito à reversão, na nacionalização “não faz sentido a figura da reversão, porque o fim público da nacionalização se esgota em si mesmo, com a efectivação da transferência de propriedade, não havendo por definição mudança de destinação dos bens”. De fato, a justificativa para reversão na expropriação é justamente a não aplicação na finalidade pública, o que ocorre com a nacionalização. Conforme lições de Correia (2010, p. 144-146), a nacionalização é um ato político e obedece a procedimentos definidos por lei em cada caso, ao passo que a expropriação é um ato administrativo e segue um procedimento de caráter geral, que está estabelecido num diploma formalmente legislativo, em regra numa lei, “ainda que a declaração de utilidade pública, contendo a indicação do fim concreto da expropriação e a individualização dos bens a expropriar, conste de um acto legislativo ou de um regulamento”. Ascensão (1989, p. 51) não discrepa deste ponto, afirmando que a nacionalização é um “acto político de apropriação de bens por via legislativa”.

2. AS LIMITAÇÕES DA INDENIZAÇÃO NAS MODALIDADES DE EXPROPRIAÇÃO Analisaremos a questão da indenização nos diversos institutos analisados nos itens precedentes, especialmente sob os seguintes aspectos, que fundamentam relevantes diferenças dos regimes indenizatórios: a) a doutrina da justa indenização (item 3.1); b) a licitude ou ilicitude do ato (item 3.2); c) a relação entre o momento do pagamento e o seu valor (item 3.3); 4) a insuficiência financeira do Estado (item 3.4). 59 BOOK.indb 59

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2.1. A JUSTA INDENIZAÇÃO É EXTENSIVA A TODAS AS MODALIDADES Tanto na nacionalização como nas modalidades de expropriação e na indenização por sacrifício será devida indenização aos proprietários dos bens, no que se aparta do confisco, onde não há indenização (ASCENSÃO, 1989, p. 33). Os parâmetros principais do regime de cada uma dessas indenizações (na expropriação e na nacionalização) são extraídos da Constituição. Em Portugal, Correia (2010, p. 149) sustenta que não precisa haver identidade quanto a todas as características (tais como valor e momento) do regime indenizatório na expropriação e na nacionalização, ou seja, são regimes distintos, entendimento esse que foi adotado pelo Tribunal Constitucional, conforme Acórdãos 452/95, 39/88, 85/03, 148/04 e 493/09. O dispositivo constitucional referente à expropriação (art. 62. n. 2) determina que haja justa indenização, que corresponde a uma indenização total ou compensação plena dos danos sofridos (CORREIA, 2010, p. 150). Já o dispositivo constitucional da indenização em decorrência de nacionalização (art. 83) remete ao legislador a definição dos critérios de fixação da indenização. Alves Correia (2010, p. 152) aduz que o art. 83 é menos exigente, ao não fixar ele mesmo o critério da indenização, como o fez no art. 62, ao prescrever justa indenização. E acrescenta:“não vale, na indemnização por nacionalização, o princípio da indemnização total ou integral (full composition), apurado, em regra, com base no valor de mercado (Verkehrswert), também denominado valor venal, valor comum ou valor de compra e venda do bem expropriado, entendido não em sentido estrito ou rigoroso, mas sim em sentido normativo, isto é, um valor de mercado despido de elementos de valorização puramente especulativos”. No mesmo sentido, esta remissão ao legislador, para Canotilho e Moreira (2007, p. 996), traduz-se em clara distinção entre o regime das indenizações por apropriação pública dos meios de produção através da nacionalização e o regime da “justa indenização” para a expropriação do art. 62, n. 2. Acrescentam que, em que pese tal diferença de regime, a indenização por nacionalização não pode deixar de ser “razoável ou aceitável, que não pode ser irrisória ou manifestamente exígua nem desproporcionada em relação ao valor venal dos bens desapropriados” (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 996). Quanto a esta matéria, o Tribunal Constitucional assentou que os critérios previstos no art. 83 devem atender ao princípio da justiça, como subprincípio do Estado de Direito, o que será satisfeito desde que não conduza a uma indenização irrisória, manifestamente desproporcional à perda dos bens, ou com pagamentos diferidos no tempo de forma desarrazoada. Esclareceu, contudo, que, com esta diferença, não está querendo dizer que na nacionalização a indenização não deve ser justa. Ou seja, o Tribunal Constitucional, a rigor, constata o critério de avaliação desta justiça pode ser diferente do critério da indenização na expropriação. Especificamente quanto à indenização estabelecida no Regime Jurídico de Apropriação Pública por via de Nacionalização, 60 BOOK.indb 60

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estabelecido no anexo da Lei 62-A/2008, Alves Correia (2010, p. 156-160) conclui que o critério do patrimônio líquido atende ao princípio de justiça. Ascensão (1989, p. 236-238) diverge parcialmente dessa conclusão do Tribunal Constitucional, sustentando que a indenização na nacionalização também deve ser “justa indenização”, embora advirta que não precisa ser a mesma justa indenização prevista na expropriação. Para ele, justa indenização é um conceito formal, não material, e pode ser concretizado de várias formas. Conforme ainda o referido autor, o regime especial da indenização decorrente de nacionalização corresponde aos critérios diferenciados de se obter a indenização, mas que também deve ser justa. O artigo 82, ao prescrever que a lei determinará os critérios de fixação da indenização, não está abrindo espaço para que esta seja uma indenização superficial, injusta. Em reforço à sua tese, cita Giannini (1970, p. 1250-1251), para quem toda indenização garantida por lei deve ser efetiva, não simbólica, bem como Landmann, Giers e Proksch, que entendem que toda indenização deve objetivar compensar o valor substancial que foi subtraído ao particular.2 Daí porque Fausto de Quadros (1998, p. 299) considera que a expressão justa indenização é “redundante”. No direito internacional, assenta-se em norma costumeira o dever do Estado de indenizar o expropriado pela expropriação lícita (QUADROS, 1998, p. 299). A Convenção Americana dos Direito do Homem reconheceu no artigo 21 o direito a uma justa indenização em caso de expropriação. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já entendeu que o valor da indenização na nacionalização deve ser inferior ao da expropriação, conforme se observa no Acórdão Lithgow. Contudo, o Protocolo Adicional n. 1 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem – CEDH se refira à “privação”, na 2ª parte do parágrafo 1º, sem distinção entre nacionalização e expropriação. Ademais, a jurisprudência se firmou exatamente contrária a este precedente. Em nossa opinião, não faz mais sentido aplicar a doutrina da justa indenização apenas à expropriação em sentido clássico. As demais modalidades de expropriação, a indenização por sacrifício e a nacionalização têm a nota em comum de provocarem sacrifício ao particular. Este sacrifício, em atenção ao princípio fundamental da propriedade, deve ser compensado de forma mais integral possível, independentemente do instrumental utilizado pelo Estado. Assim não vemos que haja liberdade para o legislador ordinário português, apenas porque a CRP referiu a critérios definidos por lei, de escolher qualquer critério, desde que não gere um valor irrisório. O legislador deve escolher um critério adequado, que reflita o valor real do bem. E não só, deve também adotar um critério uniforme em relação a outras situações, independentemente do instituto a ser aplicado, se nacionalização, se expropriação. O critério para aferir o valor da indenização deve ser dependente do objeto do instituto jurídico, ou seja, sobre o que recai a transferência compul2

LANDMANN; GIERS; PROKSCH. Allgemeins Verwaltungsrecht. 4.ed. Müller-Albrechts-Verlag, p. 199 (apud ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos sobre expropriações e nacionalizações. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989. p. 228).

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sória dos direitos reais de propriedade. Não é razoável escolher um critério sem associação material com o objeto da avaliação.

2.2. A LICITUDE JUSTIFICA MINORAÇÃO DA INDENIZAÇÃO, MAS APENAS NO ÂMBITO LEGISLATIVO Um fundamento invocado para diferenças entre regimes indenizatórios diz respeito à licitude do ato gerador de lesão. Basicamente, diz-se que, na responsabilidade do Estado por danos decorrentes de atos ilícitos, a reparação não está limitada à especialidade (incidência desigual sobre um indivíduo ou grupo deles) e gravidade do dano, vigorando o princípio do ressarcimento de todos os danos (CANOTILHO, 1974, p. 271). Quando decorrente de atuação lícita do Estado, a regra é a inadmissibilidade da indenização de danos generalizados e de pequena gravidade, de forma que os sacrifícios leves (não graves) e normais são simples encargos sociais (CANOTILHO, 1974, p. 272). Especificamente quanto à indenização pelo sacrifício, espécie de responsabilidade civil do Estado por ato lícito, a doutrina majoritária considera que, em virtude de a atuação ser lícita e visando a não onerar demasiadamente os cofres públicos, a hipótese normativa deve se limitar aos danos sofridos que detenham especialidade e gravidade (CORREIA, 2011: 149). Sobre o âmbito de aplicação, Correia (2011, p. 150) entende que a indenização por sacrifício é aplicável aos casos de danos especiais e anormais decorrentes da atividade administrativa e da atividade legislativa, só não englobando a atividade jurisdicional. A própria questão da definição da hipótese normativa que gerará direito à indenização emergente de ato lícito já traz em si uma limitação do universo de danos. Não há cabimento para que fossem indenizados todos os danos. Para fornecer parâmetros seguros para a delimitação da área do dano indenizável, Canotilho (1974, p. 281), esclarecendo que as teorias formais (teoria do ato individual, teoria da intervenção individual) e materiais (teoria da dignidade da proteção, teoria da diminuição substancial, teoria da alienação do escopo, teoria da utilização privada) que pretendem apresentar critério para reconhecimento da especialidade acabam por acentuar a gravidade do ato lesivo, indaga sobre o porquê de autonomizar a especialidade como requisito do dano ressarcível. A anormalidade do dano não deve nem pode substituir a especialidade do dano. Torna-se necessário, pois, avaliar dois momentos: “se o cidadão ou grupo de cidadão foi, através dum encargo público, colocado em situação desigual aos outros; em segundo lugar, constatar se o ônus especial tem gravidade suficiente para ser considerado sacrifício” (CANOTILHO, 1974, p. 283). A teoria da intervenção individual, segundo Canotilho (1974, p. 283), ainda é a mais útil para apresentar um critério operativo para identificar o dano especial e anormal. A razão primeira para que a indenização, quando decorrente de ato lícito, já nasça limitada é o princípio da legalidade. Se não houvesse a diferença entre os efeitos da licitude e ilicitude, estaríamos colocando por terra esse princípio 62 BOOK.indb 62

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basilar do Estado de Direito. Outra razão catalogada na doutrina corresponde à questão financeira, abordada no item 3.3. Questão especial que se coloca nesta seara de indenização é a mais valia (aumento do valor dos bens devido à ação da coletividade, por exemplo, terrenos de urbanização). Canotilho (1974, p. 325) entende possa ser excluída pela lei da indenização, o que resultaria em redução do quantum indenizatório, mas que não se fundamentaria na licitude do ato, nem da conciliação entre interesse público e interesse privado, e sim no fato de a mais valia pertencer à coletividade, não ao proprietário. Preocupação relevante é evitar que a situação jurídica de quem não foi alvo de um procedimento formal de expropriação (ou seja, a atuação do Estado é ilícita) seja inferior aquele submetido ao processo de expropriação. Como quem toma a iniciativa para regularizar a situação é o particular, ele já parte de uma situação de desvantagem, especialmente quando o Estado se apossa indevidamente da propriedade. Por isso que Meirelles (1989: 502), no tocante à indenização na desapropriação indireta, em caso de apossamento, entende que deva ocorrer “da maneira mais completa possível, inclusive correção monetária, juros moratórios, compensatórios a contar do esbulho, e honorários de advogado, por se tratar de ato caracteristicamente ilícito da Administração”. Ou seja, as mesmas parcelas previstas para a desapropriação legal. Anota Coelho (1999, p. 34) que “a jurisprudência procurou garantir aos desapossados uma indenização em tudo e por tudo correspondente àquela devida no processo de desapropriação regular, inclusive conferindo caráter real à ação de desapropriação”. Nessa toada, o STF revogou sua Súmula 345, segundo a qual os juros compensatórios, na desapropriação indireta, contam-se da perícia, passando a dispor que os juros compensatórios são devidos a contar da ocupação, momento inicial do sacrifício do proprietário. A ilicitude também tem reflexo sobre a inércia do particular. Caso o particular não pleiteie a indenização na desapropriação indireta no prazo prescricional, a propriedade não é transferida automaticamente para a Administração Pública. Como Di Pietro (2000, p. 152) aduz, “para regularizar a situação patrimonial do imóvel, terá que recorrer à ação de usucapião, já que a simples afetação do bem particular a um fim público não constitui forma de transferência da propriedade”.

2.3. RELATIVIZAÇÃO DO ARGUMENTO DA INSUFICIÊNCIA FINANCEIRA Vieira de Andrade (2011, p. 363) traz à colação a questão da insuficiência financeira do Estado na configuração de sua responsabilidade indenizatória, afirmando que é necessário conter os excessos que possam afetar “um equilíbrio ponderado entre os direitos dos lesados e os direitos dos contribuintes”, ou seja, “um equilíbrio que, assegurando o direito à reparação e compensação de danos, não iniba a acção pública 63 BOOK.indb 63

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nem prejudique os legítimos interesses das gerações futuras”. De fato, é uma preocupação extremamente relevante. Nesse sentido, uma legislação mais ampla, no que diz respeito às hipóteses e aos valores da indenização, proporciona uma ação pública mais prudente, evitando-se a ocorrência de danos aos administrados. No âmbito da delimitação legislativa do dano a ser indenizado, Canotilho (1974, p. 272) argumenta que, “se o dano não exceder os encargos normais exigíveis como contrapartida dos benefícios emergentes da existência e funcionamento dos serviços públicos”, não seria devida indenização,“sob pena de insolúveis problemas financeiros paralisadores da actividade estadual”.Trata-se, em essência, de um argumento de insuficiência financeira, e está associada com a doutrina da reserva do possível. Não vemos óbices para a aplicação do argumento da insuficiência financeira às hipóteses de responsabilidade civil por ato lícito. Trata-se da própria configuração jurídica do instituto. Outra dimensão do problema é saber se é válida a limitação ou exclusão da indenização, mesmo que de forma legislativa, dentro do próprio conceito de dano a ser indenizável. No que diz respeito à integralidade dos danos anormais e especiais, Canotilho (1974, p. 322) defende que, assentes os dois requisitos para indenização por sacrifício,“o dano deve ser integralmente reparado”, não se admitindo uma diminuição do valor da indenização (situação em que o dano seria reparado apenas parcialmente, é dizer, apenas seriam compensados os prejuízos), hipótese em que seria violado o princípio da legalidade, “dado que o cidadão lesado contribuiria mais que os outros para a prosecução do interesse público”, é dizer que a indenização por sacrifício não pode ser instituto complementar aos impostos. Correia (2011, p. 155), com olhos voltados à configuração dogmática no direito português, não vê, no art. 16 do RRCEE, cláusula limitadora de indenização, sob pena de infringir o princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos. Daí porque propugna, com razão, pela inclusão até mesmo de lucros cessantes e danos não patrimoniais. Não obstante, Correia (2011, p. 155) concorda com a exceção prevista no próprio RRCEE (art. 16, n. 6), que limita a indenização quando o número de lesados for elevado e puder comprometer os cofres públicos. De nossa parte, acreditamos que esta limitação, fundada na insuficiência financeira, não é legítima. O legislador tem ampla margem de liberdade para delimitar a área do dano indenizável, mas não pode condicionar a indenização do dano a circunstâncias alheias e sem relação com o dano. O elevado número de prejudicados, a nosso ver, não pode justificar o não pagamento de uma indenização menor. O Poder Público deve atuar com prudência. Deve avaliar os custos e benefícios quando vai delimitar os fatos geradores da indenização decorrente de ato lícito. Se não tem dinheiro para indenizar de forma adequada os proprietários, mas quer nacionalizar (por exemplo), deve buscar outra medida para atingir a mesma finalidade. 64 BOOK.indb 64

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2.4. A RELAÇÃO ENTRE O MOMENTO DO PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO E O VALOR DA INDENIZAÇÃO No Direito Internacional, a doutrina tradicional da expropriação preconizava que a indenização deveria ser prompt, adequate and effective, ou seja, prévia, adequada e efetiva. Trata-se da conhecida fórmula Hull. Neste modelo, a expropriação somente é lícita se mediante indenização total, com base em valor de mercado. Em oposição a esta corrente, surgiu a doutrina Calvo, pela qual a expropriação de propriedade do estrangeiro não gerava indenização diferente daquela conferia pelo direito interno aos cidadãos nacionais, sendo que no caso em que o direito interno não previsse indenização a estrangeiro, a mesma não ocorria (QUADROS, 1998, p. 281). A doutrina Calvo surgiu basicamente por resoluções da ONU, principalmente a Carta de Direito e Deveres Econômicos, mas não teve êxito. A terceira tese diz respeito à fórmula da Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), que é baseada em resoluções da Assembleia Geral da ONU que não seguiram o critério adotado da doutrina Calvo, em especial a Resolução n. 1803. Referida resolução adota o adjetivo apropriada em vez de adequada, esta última utilizada na Carta dos Direitos e Deveres Econômicos. No direito português, não há exigência constitucional de que a indenização seja prévia. No que tange especificamente ao momento e a forma de pagamento da indenização, o Tribunal Constitucional português (Acórdãos 85/2003, 148/2004 e 493/2009) entendeu que na expropriação a indenização deve ser imediata e em dinheiro, ao passo que na nacionalização pode ser diferida e ser paga com títulos da dívida pública. Aderiram a esta jurisprudência, Canotilho e Moreira (2007, p. 997). No direito brasileiro, a indenização em caso de desapropriação, além de justa, deve ser também prévia. Mas uma pergunta se impõe: prévio a quê? A resposta clássica é que a indenização deve ser prévia à transferência da propriedade, que ocorre ao final do processo de desapropriação, onde tem lugar o registro da transferência do imóvel no cartório público e a imissão definitiva da posse. A legislação brasileira, contudo, permite a imissão provisória da posse, desde que o Poder Público deposite o valor conforme parâmetros do §1º do art. 15 do Decreto-Lei 3.365/1941. A jurisprudência do STF (Súmula 652; Recurso Extraordinário 91.611) e a do STJ não vinculam o depósito para fins de imissão provisória da posse à exigência constitucional de indenização justa e prévia, ou seja, somente na posse definitiva tais exigências devem ser cumpridas. Anota com razão Cavalcanti (2011, p. 115) que tal jurisprudência está em descompasso com a Constituição Federal de 1988, especialmente o princípio da moralidade e o preceito da justa e prévia indenização, propondo que seja realizada perícia prévia para fixação de um valor mais compatível com o valor real do bem. Aduz ainda que tal solução não alongaria o processo judicial e que a fixação de valor com base no IPTU para imissão provisória da 65 BOOK.indb 65

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posse não atende ao princípio da moralidade, especialmente levando em conta o orçamento público é ajustado bimestralmente para cumprir os compromissos ao sistema financeira nacional e internacional (CAVALCANTI, 2011, p. 116). Sobre esta questão, Harada (2012, p. 662) também propõe que o preço seja fixado mediante perícia prévia e acrescenta algumas outras razões para a inconstitucionalidade do §1º do art. 15 do Decreto-lei 3.365/1941. Aduz que na prática a alegação de urgência para a imissão provisória na posse virou regra, e não exceção, nos tribunais brasileiros. E que a jurisprudência do STF pressupõe um “regime de normalidade da Justiça”, o que não está ocorrendo, no que tange aos aspectos da duração do processo e do cumprimento do precatório no prazo constitucional. Por fim, conclui, com razão, que o preceito constitucional do inciso XXIV do artigo 5º da CF/88 impõe “o reconhecimento de que a indenização deve ser prévia ao sacrifício de quaisquer direitos ao proprietário”. Nesta linha, que adotamos, o sacrifício é, portanto, a referência ao pagamento da indenização.

CONCLUSÃO A responsabilidade civil do Estado está sendo objeto de desenvolvimento doutrinário tendente a um regime geral de responsabilidade civil do Estado, onde, respeitando-se as peculiaridades de cada instituto, se assentem parâmetros comuns sobre as diversas modalidades de institutos de natureza indenizatória, o que acaba de vez com o abismo que havia entre os regimes de responsabilidade decorrente de ato lícito e de ato ilícito. É nesse contexto de adoção de sistema totalizante das prestações reparatórias ou indenizatórias que se constata que o conceito de justo preço ou justa indenização, historicamente nascido no âmbito do instituto de expropriação clássica, e que não era aplicado a outras hipóteses de responsabilidade por ato lícito, definitivamente extravaza as fronteiras de suas origens nos dias de hoje, alcançando outros institutos de natureza indenizatória ou que tenham contornos indenizatórios. Sustentamos que, dentro das modalidades de responsabilidade por atos lícitos (expropriação, nacionalização, indenização pelo sacrifício), não há razão para a diferença entre regimes de indenização. Os critérios para apuração do valor devem depender do objeto a ser avaliado, mas não do instituto jurídico em questão.

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BENEFÍCIOS NÃOCONTRIBUTIVOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL E REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS NO MEIO RURAL

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Fabio Luiz de Oliveira Bezerra1

INTRODUÇÃO Em regra, benefício previdenciário demanda contribuição dos segurados, ao passo que benefício assistencial é independente de contribuição. No Brasil, contudo, são tantas as normas de exclusão da tributação (isenção, imunidade etc.) que muitas vezes não se distingue com clareza se um benefício é assistencial ou previdenciário. Um caso bem típico são os benefícios dos segurados especiais, que são os trabalhadores rurais, garimpeiros, pescadores, que trabalham com sua família para prover o próprio sustento. Os benefícios são concedidos sem necessidade de contribuição, bastando comprovação do exercício da atividade por um determinado período (atualmente de 15 anos) e de idade mínima (60 anos para homem e 55 anos para mulher). Muitos defendem a existência desses benefícios com base nos efeitos favoráveis que eles trazem para a retirada de muitas pessoas da linha da indigência e da pobreza e com base na solidariedade entre os segurados que podem contribuir e os que não podem. Outros, principalmente dentre aqueles trabalhadores que contribuem para a Previdência Social, não concordam com esses benefícios, por considerar que oneram todo o sistema, o que tem impedido, por falta de orçamento, que haja revisão dos benefícios previdenciários com índices mais elevados. Sob esse contexto, realiza-se um estudo sobre os benefícios da Seguridade Social não-contributivos, ou seja, aqueles concedidos aos beneficiários sem necessidade de contribuição, particularmente os benefícios previdenciários dos segurados especiais, avaliando os aspectos legais, sociais e econômicos associados à matéria. Pretende-se responder basicamente às seguintes questões: a) se há correlação direta entre estes benefícios e a redução da pobreza e das desigualdades na área rural; b) se a solidariedade justifica a própria exclusão da contribuição para categoria de segurado durante todo o período contributivo; c) qual, enfim, o regime destes benefícios, se é previdenciário ou assistencial. Juiz Federal da 7ª Vara Federal/RN, Mestre (UFPE) e Doutorando em Direito Público (Universidade de Coimbra), fabiobezerra@jfrn.jus.br.

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1. EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA: DA LEI ELOY CHAVES À LEI 8.213/1991 Considera-se que o berço do sistema previdenciário brasileiro ocorreu com a promulgação do Decreto 4.682/1923, conhecida como Lei Eloy Chaves, que criou caixas de previdência e pensão para os empregados das empresas de estradas de ferro no Brasil. O sistema era custeado com contribuição dos empregados, da empresa e dos usuários dos serviços (taxas adicionais nas tarifas). A Constituição Federal de 1937, no artigo 137, estabeleceu que a legislação do trabalho observaria a “instituição de seguros de velhice, de invalidez, de vida e para os casos de acidentes do trabalho”. Após a segunda guerra mundial, a maioria dos países capitalistas adotou as idéias do Lord inglês William Beveridge, que propunha uma política de seguridade social mais abrangente do que a simples previdência social que dependia de contribuição, para incluir qualquer cidadão que necessitasse de assistência, mesmo que não tivesse condições para contribuir. Como destacam Santos e Mesquita (2008, p. 845), o sistema de seguridade social proposto por Beveridge idealizou também “a previdência complementar facultativa e a instituição da assistência social de caráter não contributivo, em favor de todo e qualquer cidadão que se encontre em estado de necessidade”. No Brasil, não se adotou de imediato tal doutrina. Deu-se de forma gradativa. Com efeito, primeiramente foi promulgado o Decreto-lei 7.526/1945 (Lei Orgânica dos Serviços Sociais do Brasil), estabelecendo os serviços sociais, que abrangiam a previdência social e assistência social. Segundo essa legislação, as prestações concedidas pela previdência social e pela assistência social tinham a denominação genérica de benefícios, e seriam custeadas por contribuições dos empregados e dos empregadores, contribuições de trabalhadores autônomos, bem como de contribuição dos entes federados (União, Estados e Municípios).Apesar de englobar no mesmo sistema de serviço social a previdência e a assistência, a Lei Orgânica prescreveu que as contribuições dos trabalhadores e dos empregadores seriam, a princípio, destinadas ao custeio dos serviços de previdência e gerais de assistência, ao passo que os aportes dos entes federados destinavam-se aos benefícios especiais de assistência. A lei não definiu o que era serviço geral e o que era serviço especial de assistência, deixando tal missão à Comissão Organizadora, órgão do Instituto dos Serviços Sociais do Brasil, criado pela lei, e responsável pela elaboração dos planos de benefícios e de custeio. Como assinalam Beltrão et al (2004, p. 24), essa foi a primeira iniciativa de universalizar a Seguridade Social, contudo, “el gobierno que llegó al poder en 1946 hizo enteramente caso omiso del presupuesto asignado para la instalación del ISSB, y el instituto jamás llegó a existir”. Na sequência, a Constituição Federal de 1946 não mencionou o termo seguridade social, apenas assistência e previdência social, conforme se vê no artigo 157. Posteriormente, foi criada a fundação Serviço Social Rural por meio da Lei 2.613/1955 que tinha por finalidade, entre outras, a prestação de serviços sociais no meio rural, visando à melhoria das condições de vida da sua 70 BOOK.indb 70

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população; fomento no meio rural da economia das pequenas propriedades e atividades domésticas. Não foi criado especificamente benefício em dinheiro que substituísse a remuneração ou renda do trabalhador rural. Somente com a Lei 4.214/1963, denominada Estatuto do Trabalhador Rural, os empregados rurais foram incluídos na Previdência Social. Foi criado o Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural. Resta observar que se consideravam segurados obrigatórios os trabalhadores rurais com vínculo empregatício e os pequenos proprietários rurais com até 5 (cinco) empregados (artigo 160). A contribuição para o Fundo de Assistência e Previdência Social ficava a cargo do produtor e correspondia a 1% sobre a colocação (comercialização) dos produtos agrícolas. Os demais trabalhadores que não eram segurados obrigatórios (empregadores rurais com mais de cinco empregados, trabalhadores rurais sem vínculo empregatício) podiam se inscrever como segurados facultativos do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) e tinham que contribuir sobre percentual do salário mínimo (art. 161). Os benefícios correspondiam à assistência à maternidade; auxílio-doença; aposentadoria por invalidez ou velhice; pensão aos beneficiários em caso de morte; assistência médica; e auxílio-funeral. Como se vê, até aqui, o sistema era nitidamente contributivo, não havendo previsão para a concessão de benefícios em dinheiro para aquele que não tenha contribuído. Em 1967, foi editado o Decreto-lei 276, alterando dispositivos da Lei 4.214/1963, com finalidade de tornar imediata e efetiva a extensão da assistência médico-social ao trabalhador rural. O novo artigo 158 manteve a contribuição devida sobre a comercialização da produção rural no percentual de 1%. Contudo, a responsabilidade pelo recolhimento passou a ser do adquirente, sendo do produtor apenas quando ele próprio industrializava os produtos. A nova redação do artigo 160 especificou como segurados os trabalhadores rurais e os pequenos produtores rurais, na qualidade de cultivadores ou criadores, diretos e pessoais, definidos em regulamento. O referido decreto-lei batizou o Fundo de Assistência e Previdência Social de FUNRURAL e estabeleceu, em seu artigo 2º, que a prestação de assistência médico-social ao trabalhador rural e seus dependentes far-se-ia na medida das possibilidades financeiras do FUNRURAL e consistiria em assistência médica, assistência à maternidade, por ocasião do parto e assistência social. Por sua vez, o Decreto-lei 564/1969 criou o Plano Básico da Previdência Social, alterado posteriormente pelo Decreto-lei 704/1969, e depois extinto pela Lei Complementar 11/1971, que criou o PRORURAL – Programa de Assistência ao Trabalhador Rural. Ficaram ressalvados os direitos daqueles que, contribuindo para o INPS pelo referido Plano, cumpriam período de carência até 30 de junho de 1971 (artigo 27 da Lei Complementar 11/1971). A Lei Complementar 11/1971 concedeu personalidade jurídica de natureza autárquica ao FUNRURAL. Os benefícios previstos eram aposentadoria por velhice; aposentadoria por invalidez; pensão; auxílio-funeral; serviço de saúde; e serviço social. Conforme artigo 13, “o Serviço Social visa a propiciar aos beneficiários melhoria de seus hábitos e de suas condições de existência, mediante ajuda pessoal, nos desajustamentos individuais e da unidade familiar e, 71 BOOK.indb 71

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predominantemente, em suas diversas necessidades ligadas à assistência prevista nesta Lei”. A aposentadoria por velhice era concedida apenas a um componente da unidade familiar (chefe ou arrimo de família) aos 65 anos de idade. Os beneficiários na categoria de trabalhadores rurais eram: a) a pessoa física que presta serviços de natureza rural a empregador, mediante remuneração de qualquer espécie; b) o produtor, proprietário ou não, que, sem empregado, trabalhe na atividade rural, individualmente ou em regime de economia familiar, assim entendido o trabalho dos membros da família indispensável à própria subsistência e exercido em condições de mútua dependência e colaboração. A Lei Complementar 11/1971, ao contrário das legislações pretéritas, incluiu como beneficiário o trabalhador rural que labora com sua família para a própria subsistência, hoje denominado de segurado especial. Este foi o grande avanço. Estabeleceu ainda que “o ingresso do trabalhador rural e dependentes, abrangidos por esta Lei Complementar, no regime de qualquer entidade de previdência social não lhes acarretará a perda do direito as prestações do Programa de Assistência, enquanto não decorrer o período de carência a que se condicionar a concessão dos benefícios pelo novo regime” (artigo 14). A fonte de custeio principal do PRORURAL correspondia à contribuição de 2% (dois por cento) devida pelo produtor sobre o valor comercial dos produtos rurais, e recolhida: a) pelo adquirente, consignatário ou cooperativa que ficavam sub-rogados, para esse fim, em todas as obrigações do produtor; b) pelo produtor, quando ele próprio industrializava seus produtos e vendia-os, no varejo, diretamente ao consumidor; e à contribuição de que trata o artigo 3º do Decreto-lei 1.146/1970, a qual ficou elevada para 2,6% (dois e seis décimos por cento), cabendo 2,4% (dois e quatro décimos por cento) ao FUNRURAL. A preocupação com o equilíbrio do sistema previdenciário já se apresentava na Lei Complementar 11/1971, quando, em seu artigo 20, prescrevia que para efeito de sua atualização,“os benefícios instituídos por esta Lei Complementar, bem como o respectivo sistema de custeio, serão revistos de dois em dois anos pelo Poder Executivo, mediante proposta do Serviço Atuarial do Ministério do Trabalho e Previdência Social”. Por outro lado, no artigo 19, foram cancelados os débitos dos produtores rurais para com o FUNRURAL, correspondentes ao período de fevereiro de 1964 a fevereiro de 1967. O Decreto 71.498/1972 incluiu, como beneficiários do PRORURAL, os “pescadores” que, sem vínculo empregatício, na condição de pequeno produtor, trabalhando individualmente ou em regime de economia familiar, faziam da pessoa sua profissão habitual ou meio principal de vida e estavam matriculados na repartição competente. A Lei 6.179/1974 instituiu o denominado “amparo previdenciário” para maiores de 70 anos e para inválidos que não exerciam mais atividade remunerada, nem auferiam rendimento, mas que tiveram anteriormente vínculo com a Previdência Social. O benefício era renda mensal vitalícia. Observe-se, com Beltrão et al (2004, p. 26), que, em relação a este específico benefício, “no se tomaron medidas destinadas a garantizar los medios para financiar estas prestaciones 72 BOOK.indb 72

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de seguridad social”, o que indica a natureza de benefícios assistenciais, aqueles custeados pelo Tesouro Nacional, a partir da arrecadação de impostos. Na sequência, a Lei 6.195/1974 criou o seguro de acidente de trabalho rural, estabelecendo uma contribuição adicional de 0,5% sobre a comercialização da produção rural. O Decreto 75.208/1975, por seu turno, estendeu os benefícios do PRORURAL aos garimpeiros. Já a Lei 6.260/1975 instituiu benefícios de assistência e previdência social para os empregadores rurais, exigindo contribuição anual correspondente a 12% (doze por cento): I - de um décimo do valor da produção rural do ano anterior, já vendida ou avaliada segundo as cotações do mercado; e II - de um vigésimo do valor da parte da propriedade rural porventura mantida sem cultivo, segundo a última avaliação efetuada pelo INCRA. No artigo 7º, § 2º, prescreveu que “não haverá incidência de (vetado) multa e mora quando ocorrerem condições climáticas adversas que comprovadamente afetem a produção”, o que demonstra sensibilidade do legislador aos momentos de impossibilidade de se levar a efeito uma produção mínima que possa gerar renda suficiente para verter contribuição para Previdência Social. A Lei 6.439/1977 instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, integrando, em relação aos trabalhadores rurais e urbanos, concessão e manutenção de benefícios, e prestação de serviços; custeio de atividades e programas; gestão administrativa, financeira e patrimonial, embora mantidos os regimes de benefícios e custeio para os trabalhadores urbanos e rurais. Em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, adotou-se substancialmente o conceito de Seguridade Social proposto por William Beveridge. Entre vários preceitos, convém, para o âmbito deste ensaio, destacar que foi estabelecida isonomia entre trabalhadora e trabalhador rural, eliminando a figura do chefe de família, e foi reduzida em cinco anos a aposentadoria para os trabalhadores rurais. Por duas razões justifica-se a diminuição em cinco anos para os trabalhadores rurais. Primeiro, significou reconhecimento de que o trabalho na agricultura é trabalho penoso, que desgasta o trabalhador de forma muito mais acentuada do que a maioria das atividades urbanas. Segundo, correspondeu à instituição de incentivo para que não haja êxodo rural, ou seja, incentivo para que os trabalhadores do campo continuem no campo e nele retirem renda para sustento de sua família. De acordo com a CF/1988, o segurado especial deve contribuir sobre a comercialização (artigo 195, § 8º), não havendo imunidade expressa. A Lei 8.213/1991, que veio concretizar o novo sistema da Seguridade Social preconizado pela CF/1988, reproduziu a norma constitucional do artigo 195, § 8º, não eximindo o agricultor de subsistência de recolher contribuição sobre a comercialização de seus produtos, como, aliás, já fazia o regime anterior (PRORURAL). A Lei 8.213/1991, contudo, deu um passo a mais, e previu que, caso não ocorra a comercialização, o trabalhador rural de subsistência fica dispensado da contribuição, permanecendo com direito aos benefícios previstos na referida lei aos trabalhadores rurais. Na prática, tem-se constatado, em audiências judiciais presididas pelo autor como magistrado federal, que quase todos os segurados 73 BOOK.indb 73

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especiais comercializam parte de sua produção, até porque precisam de dinheiro em espécie para pagamento de algumas contas pessoais (contas de energia elétrica, por exemplo), mas não contribuem sobre tal comercialização. Esta comercialização, embora artesanalmente, ocorre de forma contínua. O financiamento dos benefícios rurais é tema delicado. A propósito, a Conferência Internacional de Seguridade Social, segundo relatado por Santos et al (2003, p. 40), enumerou como dificuldades históricas para a proteção previdenciária dos trabalhadores rurais:“a debilidade de organização e representação política; as características próprias do trabalho agrícola; a heterogeneidade da agricultura e do mercado de trabalho e as dificuldades técnicas e políticas para estruturar uma base de financiamento e um sistema de arrecadação adequados”. E o financiamento dos benefícios previdenciários está também ligado à questão da vinculação dos benefícios assistenciais ao salário mínimo, conforme impõe a CF/1988 (artigo 203,V). Não há como elevar o valor mínimo de benefício previdenciário sem aumentar o valor mínimo dos benefícios assistenciais.

2. ALGUNS INDICADORES ECONÔMICO-SOCIAIS DO IMPACTO DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS NA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES REGIONAIS A população rural tem-se mantido quase constante do ano de 2000 a 2007. E desde o ano de 1991, em que foi implantado o regime geral da previdência social pela Lei 8.213/1991, houve até uma diminuição da população rural, em termos absolutos. Outra conclusão a que se chega com a tabela 1 sobre a distribuição da população brasileira na área urbana e rural, abaixo colacionada, é que, com a implantação da Lei 8.213/1991, houve uma diminuição acentuada do crescimento do grau de urbanização, o que quer dizer que diminuiu o êxodo rural. Ano 1940 1950 1960 1970 1980 1991 1996 2000 2005 2006 2007

População urbana População rural 12.880.182 28.356.133 18.782.891 33.161.506 31.303.034 38.767.423 52.084.964 41.054.053 80.436.409 38.586.297 110.990.990 35.834.485 123.076.831 33.993.332 137.953.959 31.845.211 152.892.198 31.708.536 155.933.826 31.293.966 158.452.558 31.367.772

População total 41.236.315 51.944.397 70.070.457 93.139.017 119.022.706 146.825.475 157.070.163 169.799.170 184.600.734 187.227.792 189.820.330

Grau de urbanização 31,24% 36,16% 44,67% 55,92% 67,58% 75,59% 78,36% 81,25% 82,82% 83,29% 83,48%

Tabela 1. Grau de urbanização da população brasileira Fonte: Anuário da Previdência Social

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Apesar de a população rural ter-se mantido constante nos últimos dez anos, o número de beneficiários rurais está aumentando gradativamente, conforme se percebe da tabela 2.

Ano 1980 1985 1990 1991 1996 2005 2007 2008

População rural 39.790.738 38.586.297 37.299.659 36.074.622 34.353.835 31.845.211 31.293.966 31.367.772

Beneficiários 1.477.148 2.391.253 3.658.711 4.329.345 6.402.741 7.082.638 7.498.821 7.682.833

Tabela 2. Crescimento do número de benefícios rurais Fonte: Beltrão et al (2004) e Anuário da Previdência Social Constata-se também que houve um aumento significativo do número de benefícios rurais logo após a CF/1988 e Lei 8.213/1991, que pode ser atribuído à inclusão da mulher como beneficiário e à diminuição da idade para aposentadoria por idade. Nos últimos cinco anos, o aumento do número de beneficiários corresponde aos novos trabalhadores que estão atingindo a idade e demais requisitos para a aposentadoria rural. Como assinalam Beltrão et al (2004, p. 49), “esta baja tasa de crecimiento guarda relación con: a) la tasa de mortalidad más alta de la población rural contra la de la población urbana; y b) la migración rural/urbana, que implica una tasa de crecimiento bien inferior al promedio nacional de la población rural en su conjunto. La nueva población con derecho a reclamar prestaciones incluye ahora solamente a las nuevas cohortes que alcanzan el limite de edad y aumenta a un termo más lento”.

Os benefícios previdenciários ultrapassam a arrecadação municipal e o valor do fundo de participação em 4.323 municípios brasileiros (FRANÇA, 2000, p. XV), sendo de vital importância para a economia no âmbito dos municípios brasileiros. A distribuição de renda é mais efetiva nos benefícios previdenciários, porque chegam diretamente nas mãos dos cidadãos, e não repassados para prefeituras para que essas dêem a destinação pública devida. Nas palavras de França (2000, p. XIII), a Previdência Social “é uma das poucas políticas públicas que funcionam no Brasil, reduzindo as desigualdades sociais e exercendo influência extraordinária na economia de um incontável número de municípios brasileiros”. Em relação aos benefícios rurais, França (2000, p. XIV) comenta que “essas pessoas pouco ou nada contribuíram para a Previdência Social, o que 75 BOOK.indb 75

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remete à conclusão óbvia de que, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, a instituição acaba funcionando como um verdadeiro programa de renda mínima para os idosos no Brasil”. E como apontado por Santos et al (2003, p. 63), “conforme os estudos elaborados pela Assessoria Econômica da ANFIP, do total geral de benefícios assistenciais e rurais de pouca ou nenhuma contribuição e que já representam 41,6% do total de 18,8 milhões. Tais benefícios são de três tipos: rurais; Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, que cobre os idosos e os inválidos; e a Renda Mensal Vitalícia – RMV. Esses dados demonstram a importância social dos benefícios assistenciais e rurais que os transformou num dos maiores programas de renda mínima do mundo, contemplando quase a totalidade dos municípios brasileiros e impulsionando as economias locais, já que são beneficiados aproximadamente 20 milhões de pessoas no campo, em uma população de 34 milhões”.

A relação direta entre os benefícios rurais e a melhor distribuição de renda no Brasil, sinalizada pela doutrina especializada, pode ser aferida através do índice ou coeficiente Gini. Tal coeficiente é uma medida de desigualdade de distribuição de renda desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini, e publicada no documento “Variabilità e mutabilità” em 1912.Varia de 0 (zero) a 1 (um), onde 0 (zero) corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 (um) corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm). O gráfico a seguir exibe a distribuição de renda rurícola no Brasil de 1988 a 2001 de acordo com o índice Gini.

Gráfico 1. Índice Gini de distribuição de renda na área rural (Fonte: IBGE)

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Percebe-se pelo Gráfico 1 que, desde a implantação de um sistema mais amplo de previdência social, o índice Gini está diminuindo, o que corresponde a uma melhor distribuição de renda no meio rural. Ante estes dados estatísticos, estamos de acordo com a assertiva de Beltrão et al (2004, p. 22), no sentido de que “la expansión de la cobertura de la población rural ha representado un considerable logro en pos de la universalización del sistema, reduciendo la desigualdad y erradicando la pobreza absoluta en el Brasil rural”. No entanto, ainda estamos longe de atingir um nível adequado de distribuição de renda. Apesar dos avanços da previdência social, conforme Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio do IBGE, em 1998, ainda havia 38 milhões de brasileiros sem a proteção da previdência social. Esse número, como aponta França (2000, p. XVI), “é mais do dobro dos atuais beneficiários do sistema previdenciário. Essas pessoas não possuem qualquer vínculo com a Previdência Social, trabalham na ilegalidade em seu próprio país”.

3. A EXCLUSÃO TOTAL DA CONTRIBUIÇÃO POR TODO PERÍODO CONTRIBUTIVO FRENTE AOS PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE E DO EQUILÍBRIO ATUARIAL Em que pese posição contrária de grande parte da doutrina e da jurisprudência, entendemos que o benefício previdenciário rural somente é previdenciário se tiver havido contribuição. Se não tiver havido, o benefício é assistencial. O artigo 201 da CF/1988, com redação dada pela EC 20/1988, prescreve o caráter contributivo da Previdência Social. A Constituição Federal não exime os trabalhadores rurais em regime de economia familiar de contribuição previdenciária. O §8º do artigo 195 determina que “contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei”. Assim, quando a lei ordinária (Lei 8.213/1991) menciona que o trabalhador rural em regime de economia familiar tem direito ao benefício previdenciário sem nenhuma contribuição, a rigor, está criando benefício assistencial, visto que a CF/1988 exige contribuição para os previdenciários. Poderia ser sustentado que o trabalhador rural que não chega a comercializar sua produção agrícola não tem capacidade contributiva, de forma que tal norma seria uma imunidade (implícita), e isto afirmaria o caráter previdenciário do benefício. Contudo, há instituição dentro da Seguridade Social, que é Assistência Social, que serve exatamente para esse fim, o de amparar aquele cidadão, trabalhador ou não, que tenha trabalhado ou não, em caso de severas necessidades. Observe que o artigo 203 da CF/1988 não tem rol exaustivo, não impedindo que se criem por lei ordinária programas assistenciais que não seja o do item V, que é o benefício assistencial ao idoso e à pessoa portadora de deficiência. E por outro lado, não há impedimento para que uma lei que verse 77 BOOK.indb 77

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sobre Previdência Social crie um benefício assistencial, ou seja, a CF/1988 não impõe a necessidade de lei específica para a criação de benefício assistencial. Outra razão reforça a tese da natureza assistencial dos benefícios de segurado especial. E esta razão é a menos discutida pelos que defendem o oposto. Está vinculada ao princípio do equilíbrio atuarial. A receita da Previdência Social prevista no artigo 195, I,“a” e II, é verba “carimbada”, somente podendo ser utilizada para pagamento de benefícios previdenciários, conforme dispõe o §8º do artigo 195 da CF/1988, incluído pela EC 20/1998. Qual o sentido dessa norma, já que há várias receitas para a Seguridade Social, mas somente essas são destinadas com exclusividade para a Previdência Social? Conjugando o referido dispositivo constitucional com a cabeça do artigo 195, que exige equilíbrio atuarial do sistema previdenciário, chegamos a duas conclusões. A primeira é a de que a receita das contribuições do artigo 195, I, “a” e II, da CF/1988 deveria ser suficiente para manter os benefícios previdenciários. Ao passo que as demais receitas da Seguridade Social serviriam para o custeio da Assistência Social e Saúde. A segunda conclusão decorre da primeira. As exclusões da tributação destas contribuições (artigo 195, I, “a” e II, da CF/1988) não devem chegar ao ponto de afetar o próprio equilíbrio atuarial das contas previdenciárias. As exclusões podem ocorrer transversalmente, é dizer, para todas ou ao menos para a maioria das espécies de segurados da Previdência, como também podem ser específicas para um determinado tipo de segurado. O que justifica as normas de exclusões para apenas um grupo de segurados é o princípio da solidariedade. Contudo, o princípio da solidariedade possibilita apenas a adoção de critérios diferenciados (mais benéficos para os segurados), conforme a situação peculiar de cada categoria, nos estritos termos do §1º do artigo 195 da CF/1988, ou seja, nos casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, mas não a exclusão por completa de toda contribuição durante todo o período contributivo, sob pena de descaracterizar a natureza previdenciária do benefício. Também em razão do princípio da transparência, o orçamento da seguridade social deve separar muito bem os benefícios de assistência social dos benefícios da previdência social. Os benefícios “previdenciários” não contributivos devem continuar existindo, mas devem compor o orçamento da assistência social, desvinculando-se da previdência social. Não obstante essa caracterização como benefício assistencial, nada impede que seja estimulada a contribuição por parte dos segurados especiais. A contribuição presume o exercício da atividade rural, diminuindo a exigência de provas do exercício de atividade rural. Sugere-se, de lege ferenda, que haja uma contribuição periódica, no mínimo anual, nos moldes do que já houve. Essa contribuição além de facilitar a prova junto ao órgão concessor e em juízo, se houver necessidade de demanda judicial, evita a fraude por parte daqueles que não são da agricultura de subsistência. O fato de as estatísticas indicarem 78 BOOK.indb 78

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que os benefícios previdenciários (não contributivos) são instrumentos efetivos para redução da desigualdade de renda não infirma a conclusão de que, sem contribuição mínima, o benefício é assistencial, visto que não é efeito exclusivo dos benefícios previdenciários. Estamos de acordo com Santos e Mesquita (2008, p. 852) quando, preocupados com a elevação dos gastos previdenciários em percentual do PIB em razão da vinculação dos benefícios ao salário mínimo, afirmam que “a mudança no curso dos acontecimentos depende da implementação de uma nítida separação entre os regimes de previdência e assistência que formam o sistema constitucional de seguridade social”. Discutível, em nosso entender, é a proposta de desvinculação do piso previdenciário ao salário mínimo.Agora, numa primeira análise, fazer essa separação (benefício previdenciário e benefício assistencial) não traz muito efeito, porque ambos os benefícios (assistencial e previdenciário estrito senso) têm como valor mínimo o salário mínimo. Por outro lado, essa separação nítida é condição para que o valor mínimo de um benefício previdenciário possa ser mais elevado que o salário mínimo, o que depende da quantidade de pessoas economicamente ativas que estejam contribuindo, em suma, depende do equilíbrio atuarial do sistema previdenciário. E se o benefício mínimo pudesse ser acima do salário mínimo, isto seria um estímulo para que as pessoas que estejam trabalhando, mas não contribuindo, voltem a se filiar e contribuir regularmente com a Previdência Social. É certo que a despesa está elevada, sendo já difícil para a Previdência pagar o salário mínimo, de forma que essa possibilidade de o valor mínimo do benefício ser maior que o salário mínimo deve exigir maior aporte de contribuição, maior carga tributária. Mas trará efeito benéfico de estimular os trabalhadores (segurados especiais e autônomos) que não contribuem a se filiarem ao sistema, uma vez que com isso terão um piso maior para seu futuro benefício. Outro ponto relevante diz respeito à assertiva de que a vinculação dos benefícios previdenciários e assistenciais ao salário mínimo acaba prejudicando a política salarial, pois impede que se aumente muito o salário mínimo. Deve-se ponderar, contudo, que o salário mínimo é a remuneração para a função de menor complexidade dentro do mercado de trabalho. Para todas as demais, é possível por lei se estabelecer um piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho, como prescreve o inciso V do artigo 7º da CF/1988. A criação do piso salarial pode ser utilizada para desvincular o salário da maioria dos trabalhadores ao salário mínimo. O salário mínimo ficaria apenas para os benefícios assistenciais e para as funções de menor complexidade no mercado de trabalho.

CONCLUSÃO As regras introduzidas pela CF /1988, quanto à inclusão do trabalhador rural no sistema de seguridade social e à diminuição da idade para a aposentadoria rural, têm contribuído efetivamente para a redução da pobreza e da desigualdade da população rural, conforme indica o índice Gini para o meio rural. 79 BOOK.indb 79

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Os benefícios previdenciários que não necessitam de contribuição em nenhum momento temporal (como os do segurado especial) têm natureza assistencial, haja vista (a) o caráter contributivo da Previdência Social, nos contornos dados pelo artigo 201 da CF/1988, com redação dada pela EC 20/1988; (b) o fato de o §8º do artigo 195 da CF/1988 não ter eximido os trabalhadores rurais em regime de economia familiar de contribuição previdenciária, pelo contrário, exigindo contribuição sobre o resultado da comercialização; (c) existência de uma política pública de Assistência Social para os que não podem contribuir para a Previdência Social, a qual também tem o efeito redutor das desigualdades sociais; (d) permissão constitucional de lei não específica (no caso, a Lei 8.213/1991, que versa sobre benefício previdenciário) criar benefício assistencial; (d) impossibilidade de utilização da receita das contribuições previstas no artigo 195, I, “a” e II, da CF/1988 para outros fins que não seja o pagamento de benefício previdenciário; (e) e o fato de a exclusão de contribuição por todo o período contributivo de benefício previdenciário atentar contra o princípio do equilíbrio atuarial e o próprio princípio da solidariedade, que permite apenas adoção de critérios diferenciados.

REFERÊNCIAS FRANÇA, Álvaro Sólon. A previdência social e a economia dos municípios. 2. ed. Brasília: ANFIP, 2000. SANTOS, Carolina Cassia Batista; MACHADO, Gardênia A. Scapim;VARJÃO, Karolina Vanessa Carlos; LEVYSKI, Ludmila Weizmann Suaid; MUNIZ, Patrícia Paulino. O impacto da previdência social como fator de desenvolvimento socioeconômico dos municípios brasileiros – o caso específico de Macururé – Bahia. Revista de Administração Municipal, ano 48, n. 240, p. 37-43, mar./abr. 2003. BELTRÃO, Kaizô Iwakami; PINHEIRO, Sonoe Sugahara; OLIVEIRA, Francisco Eduardo Barreto de. La población rural y la seguridad social en Brasil: um análisis em el que los câmbios constitucionales se ponen de relieve. Revista Internacional de Seguridad Social, v. 57, n. 4, p. 21-54, 2004. SANTOS, Marco Fridolin Sommer; MESQUITA, Riovaldo Alves de. Crise e reforma da previdência: a vinculação de benefícios ao salário mínimo e a evolução de gastos previdenciários no Brasil. Revista da Previdência Social, São Paulo, ano 32, n. 336, p. 845-853, nov. 2008.

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IMPACTO NOS CENÁRIOS POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL APÓS A ATUAÇÃO DAS VARAS FEDERAIS CRIMINAIS ESPECIALIZADAS EM LAVAGEM DE DINHEIRO E CRIMES FINANCEIROS

6 Fausto De Sanctis1

INTRODUÇÃO O Brasil, num processo pendular, ao longo das últimas décadas, oscilou momentos de profundo desconforto diante da sucessão de escândalos envolvendo corrupção no ambiente político com algumas esparsas manifestações populares, as mais contundentes aconteceram no impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello em 19922 e nos meses de junho e julho de 2013, em abril de 2015 e em março de 2016, quando do impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Seguramente o peso histórico de um evento é determinado pelo que lhe sucede,3 mas ainda é cedo para que o Brasil avalie os resultados da avassaladora manifestação popular que ocorreu em 2013, 2015 e 2016, fruto do péssimo serviço público oferecido e dos reiterados escândalos de corrupção.4 Desembargador Federal do TRF3 e escritor Após anos de ditadura militar e eleições indiretas para presidente (1964-1985), uma campanha popular tomou as ruas do Brasil para pleitear o afastamento do cargo do presidente Fernando Collor de Melo assumido em 1990. Acusado de corrupção, tráfico de influência e esquemas ilegais em seu governo, a campanha “Fora Collor” mobilizou milhares de estudantes que saíram às ruas com as caras pintadas para protestar. Em 29.09.1992, o Congresso Nacional aprovou o impeachment do presidente. 3 Cf. Gustavo Ioschpe. Ética na escola e na vida. Revista Veja, ed. 18.12.2013, p. 36/38. 4 “Existem no Brasil muitas palavras para caracterizar a corrupção: cervejinha, molhar a mão, lubrificar, lambileda, mata-bicho, jabaculê, jabá, capilê, conto-do-paco, conto-do-vigário, jeitinho, mamata, negociata, por fora, taxa de urgência, propina, rolo, esquema, peita, falcatrua, maracutaia, etc. A quantidade de palavras disponíveis parece ser maior no Brasil e em países onde a corrupção é visualizada cotidianamente. Originalmente, a palavra corrupção provém do latim Corruptione e significa corrompimento, decomposição, devassidão, depravação, suborno, perversão, peita.” Acrescentaria pixuleco, oxigênio, acarajé (in Antônio Inácio Andrioli, Monografias.com, Causas estruturais da corrupção no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, n.º 64 - set./2006 - Mensal, ISSN 1519.6186, Ano VI - http://br.monografias.com/trabalhos906/ causas-estruturais-corrupcao/causas-estruturais-corrupcao.shtml, acessado em 12.07.2017). 1 2

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Diversas têm sido as reivindicações da sociedade civil. A primeira delas foi a tentativa de evitar o aumento das tarifas de ônibus nas capitais dos estados do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro (inclusive objeto de persecução neste último estado por ser, em tese, meio de corrupção). Impelidos pelo impactante número de pessoas que saiu às ruas para protestar, os governos municipais e estaduais recuaram rapidamente a fim de impedir ou, ao menos, postergar o aumento. Na sequência, o Projeto de Emenda à Constituição - PEC nº 37/2011, conhecido como “PEC da impunidade”, que tramitava no Congresso Nacional até junho de 2013, foi arquivado em 25.06.2013, após a onda de protestos contra a corrupção. Esta proposta retirava do Ministério Público o poder de investigação ao tentar acrescentar ao artigo 144 da Constituição Federal o parágrafo 10, para atribuir a competência privativa para a investigação criminal às polícias federal e civil dos Estados e do Distrito Federal. Além destes dois tópicos – aumento de tarifas de ônibus urbanos e a PEC nº 37/2011– foram diversos os apelos populares, destacando-se a solicitação de “passe livre” para estudantes no transporte coletivo, a normatização de projetos como a “ficha limpa” para servidor público, a transformação da corrupção em crime hediondo, o fim das aposentadorias de juízes e promotores punidos administrativamente etc., num contexto em que se incluem medidas anticorrupção com apoio popular de mais de dois milhões de pessoas.5 Cf. Seguintes propostas apontadas por deputados e senadores como resposta ao clamor das ruas, cujas votações foram postergadas para o ano de 2014, destacando-se as seguintes: 1) SENADO: a) Projeto de Lei do Senado Federal – Passe livre nacional para estudantes; b) Proposta de Emenda à Constituição 10/2013 – acaba com o foro privilegiado para crimes comuns; c) Proposta de Emenda à Constituição 33/2013 – acaba com o auxílio-reclusão concedido pelo INSS a presidiários. 2) CÂMARA DOS DEPUTADOS: a) Projeto de Lei 4850/2016 – reúne 20 anteprojetos de lei que visam regulamentar as dez medidas contra a corrupção, entre elas a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos e do caixa 2, o aumento das penas, a transformação da corrupção de altos valores em crime hediondo e a responsabilização dos partidos políticos; b) Projeto de Lei 6.953/02 – estabelece regras de proteção e defesa do usuário dos serviços públicos; c) Projeto de Lei do Senado Federal 204/2011 – torna corrupção como crime hediondo; d) Proposta de Emenda à Constituição 6/2012 – ficha limpa para servidores públicos; e) Proposta de Emenda à Constituição 11/2003 – reduz de dois para um o número de suplentes de senador; f) Projeto de Lei 8.035/10 – Plano Nacional de Educação; g) Projeto de Lei 8.039/12 – cria a lei de responsabilidade educacional; h) Projeto de Lei Complementar 202/89 – imposto para as grandes fortunas; i) Projeto de Lei Complementar 123/12 – 10% do PIB para a saúde; j) Projeto de Lei Complementar 92/07 – autoriza o poder público a instituir fundação estatal sem fins lucrativos; k) Projeto de Lei 5141/13 – isenta empresas de transporte público do pagamento da CIDE (contribuição de intervenção no domínio econômico) ; l) Projeto de Lei 4.881/12 – cria o pacto de mobilidade urbana; m) Projeto de Lei 1151/95 – disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo; n) Projeto de Lei 478/07 – estatuto do nascituro; o) Projeto de Lei 5139/09 – disciplina a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; p) Projeto de Lei 3465/12 – tramitação prioritária na Justiça em crimes de corrupção; q) Proposta de Emenda à Constituição 11/11 – proíbe nomeação de inelegíveis para ministro ou cargo equiparado e outras funções comissionadas (in Congresso em Foco. Os projetos da pauta prioritária ainda não votados, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/ os-projetos-da-pauta-prioritaria-ainda-nao-votados. Acesso em 12.07.2017).

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Passados os atos iniciais de insurgência da população, as manifestações enfraqueceram-se após sucessivos atos de vandalismo de grupos conhecidos como black blocs6 nas duas principais cidades brasileiras - São Paulo e Rio de Janeiro -, já que, valendo-se do anonimato, porque protegidos por máscaras pretas, deturparam a legitimidade do movimento e fragilizaram a organização popular. O brasileiro, por excelência, é um povo cordato e não se viu representado por este tipo de manifestante, razão pela qual a pauta inicial de reivindicações se desfez diante da radicalização de seus integrantes e dos métodos de atuação (depredação de agências bancárias, lojas e concessionárias de carros de luxo e ataques a policiais), ceifando as possibilidades de se aproveitar a força propulsora da população gerada pelas manifestações de junho e julho de 2013 que poderiam ter contribuído para fomentar uma discussão maior e uma mobilização social para gerar novas perspectivas de ação política no Brasil. A despeito do seu desfecho, um eixo muito claro foi apontado pelas manifestações: a exigência por qualidade da prestação dos serviços públicos em áreas diversas com saúde, educação, transporte e segurança. Portanto, o tema corrupção tem uma profunda ligação com os motivos que levaram as pessoas a se manifestarem. No Brasil, as instituições públicas têm historicamente sido utilizadas para os mais variados interesses privados, sendo permitida toda sorte de artimanhas para a obtenção de ganhos ilícitos, numa constante troca de favores, desmandos e descaso com o erário. No cerne do descontentamento da população brasileira está a reiterada apropriação espúria de recursos públicos, o emprego de cargo público para enriquecimento privado e o tráfico de influência que têm fomentado a percepção de que a impunidade é quase sempre a regra e que o bem público está sendo solapado por fortes interesses privados. O desvio de verbas públicas enfraquece uma série de medidas, dentre as quais a adoção de políticas que reduzam a mortalidade infantil, que garantam saúde e educação públicas de qualidade, que assegurem o fornecimento de água potável, rede de esgoto, saneamento urbano e infraestrutura, além da segurança pública. Em que pese a corrupção atinja frontalmente a Administração Pública, de modo oblíquo resvala em toda a coletividade, prejudicando a satisfação das Como descreveu André Takahashi, em seu artigo O black bloc e a resposta à violência social, paralelo a essa estratégia - e independente do Movimento Passe Livre (MPL) e congêneres - se manifestou nesse período a tática do Black Bloc, em grande parte como resposta à violência policial. O Black Bloc é composto por pequenos grupos de afinidade, muitas vezes feitos na hora, que atuam de forma independente dentro das manifestações. Mas, ao contrário do MPL, o Black Bloc não é uma organização ou coletivo e sim uma ideia, uma tática de autodefesa contra a violência policial, além de forma de protesto estética baseada na depredação dos símbolos do estado e do capitalismo. A dinâmica Black Bloc lembra mais uma rede descentralizada como o Anonymous do que um movimento orgânico e coeso (http:// www.cartacapital.com.br/sociedade/o-black-bloc-e-a-resposta-a-violencia-policial-1690. html - acesso em 12.07.2017).

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necessidades de um número indeterminado de pessoas. Além disso, estabelece verdadeira concorrência desleal para as empresas que adotam práticas justas em suas transações, solapa a possibilidade de pessoas jurídicas estrangeiras investirem no país e impede, por consequência, o avanço do crescimento no Brasil, deixando um rastro de miséria e desigualdade. Como salientou Ban Ki-moon, então Secretário-Geral da ONU, em mensagem7 por ocasião do Dia Internacional contra a Corrupção8, em 2010, a corrupção funciona como um custo oculto que faz subir os preços e baixar a qualidade, sem que os produtores ou consumidores retirem daí qualquer benefício. No ano de 2013, o Secretário-Geral da ONU destacou em sua mensagem que o crime de corrupção impede o crescimento econômico, mina o gerenciamento sustentável dos recursos naturais de vários países, sendo os seus efeitos maléficos sentidos por bilhões de pessoas em todo o mundo9. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) estima que os países em desenvolvimento perdem anualmente até R$ 40 bilhões com a corrupção10. Na década de 70, o Brasil viu emergir a denominada “Lei de Gérson”11, numa alusão ao comportamento de se perseguir vantagem a qualquer preço, pressupondo que as pessoas devem auferir o máximo de benefício próprio sem se preocuparem com a forma empregada para a sua obtenção. Contudo, a sociedade não pode perder o referencial do certo ou do errado, da necessária presença das autoridades governamentais e da sustentação do aparelho público, sob pena “de fazer nascer gambiarras comportamentais conhecidas folcloricamente como o ‘jeitinho brasileiro’. Este jeitinho ajuda a sobreviver, deixa mais atenta a esperteza de alguns e vai aos poucos criando ONU, Centro de Informação, UNIC RIO, http://www.unicrio.org.br/dia-internacional-contra-a-corrupcao. Acesso em 10.07.2017. 8 Em 09 de dezembro de 2003, o Brasil e mais 110 países se uniram na cidade de Mérida (México) para assinar a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção que passou a ser celebrado como o Dia Internacional Contra a Corrupção. 9 Mônica Villela Grayley, ONU diz que corrupção piora situação de pobreza e desigualdade no mundo. Notícias e Mídia Rádio ONU. Nova York – NY, EUA, dez. 2013. Disponível em http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2013/12/onu-diz-que-corrupcao-piora-situacao-de-pobreza-e-desigualdade-no-mundo/, acessado em 07.07.2017. 10 Nações Unidas no Brasil, endereço eletrônico, http://www.onu.org.br/corrupcao-tira-40-bilhoes-de-dolares-de-paises-em-desenvolvimento-todo-ano-afirma-onu. Acesso em 12.07.2017. 11 Teve origem em uma propaganda comercial de 1976 em que o meia armador, Gérson, da Seleção Brasileira de Futebol campeã da Copa do Mundo de 1970, anunciava uma marca de cigarros em que dizia “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica”. Esta mensagem ficou impregnada na cultura brasileira, a “Lei de Gérson” como um princípio em que determinada empresa deve cumprir as ofertas que anuncia, e não se recusar a cumpri-las, sem se importar com questões éticas ou morais (Viva a Lei de Gérson!. Hélio GUROVITZ. Superinteressante. [S..l.], fev. 2004. Disponível em < http://super.abril.com. br/superarquivo/2004/conteudo_313516.shtml >. Acesso em 06.07.2017). 7

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regras marginais para driblar os óbices, inclusive os legais. Cria-se assim uma segunda ordem comportamental não escrita, conhecida jocosamente como a ‘Lei de Gérson”.12 Tal modo de pensar ficou tão impregnado no inconsciente coletivo que se poderia dizer que a inércia da sociedade civil brasileira frente a inúmeros atos de corrupção ocorridos nas últimas décadas é, em certa medida, originária da aceitação dessa tese: cala-se por se acreditar que a regra é que políticos sejam desonestos e por não se identificar qualquer esboço de reação possível frente a tais atos. Obviamente, em uma sociedade como a brasileira, marcada por desigualdades sociais, esse fenômeno atinge níveis alarmantes. Nossa recente história está impregnada de atos de corrupção no governo federal, nos municípios, em hospitais públicos, em secretarias de ensino, em licitações de grandes obras públicas, na distribuição de medicamentos, em órgãos responsáveis pela fiscalização ambiental e na previdência social, em bancos de fomento, exigindo, para o seu enfrentamento, além de uma atuação repressiva, uma ação preventiva por parte do Estado que deve promover a integridade e prevenir a improbidade, os desvios e a corrupção. O Estado brasileiro tem sido considerado um estado forte demais para conceder favores e fraco demais para estabelecer com clareza os limites entre o público e o privado.13 Parece-nos, no entanto, que algumas questões devem ser repensadas para reverter esta percepção: transparência no serviço público; educação de qualidade; reforma política, notadamente no sistema de financiamento de campanha política; reforma no sistema de punição dos delitos, em especial dos delitos cometidos por políticos, e a reforma tributária, a fim de desburocratizar o serviço público e melhorar a competitividade da economia brasileira. Como os recursos públicos destinados ao sistema de campanha eleitoral são insuficientes, propicia-se toda sorte de negociações para garantir a sustentabilidade dos governos, seja no âmbito federal, estadual e municipal. A sensação de impunidade diante da morosidade do Poder Judiciário também é um fator que impede a redução de atos de corrupção, talvez por isso a incidência de tais práticas seja tão expressiva. A presunção de inocência e a infinidade de recursos têm garantido a corruptos e corruptores a perpetuação de suas ações, já que dificilmente as ações penais obtêm um resultado final, com o seu trânsito em julgado e com a efetiva prisão dos culpados. Entretanto, a partir da criação das Varas especializadas em lavagem de dinheiro e crimes financeiros como decorrência do esforço nacional para tratar a questão da impunidade, pode-se vislumbrar um importante impacto nos cenários político, econômico e social, algo a ser contemplado neste artigo. O jeitinho brasileiro. Eliana Calmon, Ministra do Superior Tribunal de Justiça. Revista ETCO - Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, abril de 2013/nº 20 - Ano 10, p. 24/25. 13 Cf. Leonardo Avritzer. A realidade política brasileira. Revista Carta Capital. Publicada em 01.06.2011 (http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-realidade-politica-brasileira.Acesso em 08.07.2017). 12

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Apesar de não determinarem necessariamente a prática de corrupção, a presença de alguns fatores deve estimular uma atenção especial, sendo de registro alguns elencados pela ONG Transparência Brasil:14 histórico comprometedor da autoridade eleita e de seus auxiliares; falta de transparência nos atos administrativos do governante; ausência de controles administrativos e financeiros; subserviência do Legislativo e dos Conselhos municipais; baixo nível de capacitação técnica dos colaboradores; ausência de treinamento de funcionários públicos e alheamento da comunidade quanto ao processo orçamentário e, o que aqui importa é o papel da Justiça Federal como fator preponderante para a mudança sentida, esperada e reclamada pelos cidadãos brasileiros.

1. COMBATE À CORRUPÇÃO E À LAVAGEM DE DINHEIRO 1.1. ESTRATÉGIA NACIONAL DE COMBATE À CORRUPÇÃO E À LAVAGEM DE DINHEIRO – ENCCLA A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro tem por objetivo a articulação e a atuação conjunta entre órgãos públicos brasileiros que atuam na fiscalização, no controle e na inteligência como mecanismos para aperfeiçoar a prevenção e o combate sistemático à corrupção e à lavagem de dinheiro. É uma estratégia de articulação integrada por aproximadamente 70 órgãos e entidades, dentre eles, Ministérios Públicos, Policiais, Poder Judiciário, órgãos de controle e supervisão: Controladoria Geral da União - CGU, Tribunal de Contas da União - TCU, Comissão de Valores Mobiliários - CVM, Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, Superintendência Nacional de Previdência Complementar - PREVIC, SUSEP, Banco Central do Brasil BACEN, Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, Advocacia Geral da União - AGU, Federação Brasileira de Bancos - FEBRABAN, etc. A inserção do tema relacionado à corrupção ocorreu a partir de uma observação do Tribunal de Contas da União que, em seu relatório anual do ano de 2005, sugeriu a organização de uma estratégia nacional que fosse voltada ao combate a esta modalidade delitiva nos mesmos moldes da estratégia nacional relacionada ao combate à lavagem de dinheiro. Cf. CHIZZOTTI, Antonio; CHIZZOTTI, José; IANHEZ, João Alberto; TREVISAN, Antoninho Marmo; VERILLO, Josmar. Transparência Brasil. O Combate à corrupção nas prefeituras do Brasil,“A Transparência Brasil é uma organização não governamental brasileira dedicada exclusivamente a combater a corrupção. Para isso, desenvolve um leque de programas destinados a melhorar os mecanismos de prevenção, a fortalecer o papel das organizações da sociedade no acompanhamento e controle da atuação do Estado e a sistematizar o conhecimento a respeito da corrupção no país” (in http://www.transparencia.org.br/docs/Cartilha. html. Acesso em 08.07.2017).

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O Brasil certamente seguiu uma tendência da comunidade internacional que tenta frear esta prática deletéria a toda a sociedade. A Comissão Europeia responsável pelo combate ao crime organizado, tráfico de pessoas e corrupção tem entendido que:“corruption is one of the particularly serious crimes with a cross-border dimension. It is often linked to other forms of serious crime, such as trafficking in drugs and human beings, and cannot be adequately addressed by EU States alone.”15 Atos de corrupção que impliquem na obtenção de vantagens indevidas ou subtração de verbas públicas por agentes públicos ou por terceiros e o estudo de políticas públicas para o enfrentamento destes crimes e os de lavagem de dinheiro, notadamente as dificuldades e vulnerabilidades do sistema brasileiro, são temas de constante abordagem pela Estratégia. Entretanto e exemplificativamente, os riscos de corrupção nas licitações e contratações de obras e serviços vinculados à Copa de 2014 e às Olimpíadas de 2016 tiveram tímida preocupação. Assim, a detecção de áreas, mercados e setores econômicos que necessitem de adequações operacionais, regulamentares ou legislativas deve estar permanentemente dentre as ações da Estratégia. De qualquer sorte, as ações empreendidas pelos integrantes da ENCCLA ao longo dos anos têm demonstrado que a reunião e a aproximação de instituições diversas e representativas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são eficazes. A corrupção e os desvios éticos no setor público e mesmo nas corporações privadas estão sob constante vigilância. Há um sério compromisso para o aperfeiçoamento das instituições brasileiras, fomentando uma aproximação ideológica e conceitual numa tendência inspiradora para o desenvolvimento das políticas de segurança. A ENCCLA, na 11ª Reunião Plenária Anual, realizada de 25 a 28 de novembro de 2013, emitiu diversas Recomendações e Declarações, destacando-se a de número 3:16 “A ENCCLA recomenda que as atividades de controle, fiscalização e persecução penal, especialmente aquelas relacionadas ao combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, sejam consideradas prioritárias e preservadas em sua efetividade diante da necessidade de adequação orçamentária”. A criação das Varas Especializadas em lavagem de dinheiro e em crimes financeiros, em 2003, é considerado o grande passo para o desenrolar de efetivas ações no âmbito do Poder Judiciário, com reflexo nos demais poderes, podendo, ainda, ser destacados importantes resultados já obtidos:17 European Commission. Boosting anti-corruption policy at EU level. Disponível em http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/what-we-do/policies/organized-crime-and-human-trafficking/ corruption/index-eu, acessado em 11 julho 2017. 16 ENCCLA. Ações de 2013, endereço eletrônico, in http://enccla.camara.leg.br/acoes/ acoes-2013, acessado em 11.07.2017. 17 ENCCLA. Resultados Obtidos, in http://enccla.camara.leg.br/resultados, acessado em 12.07.2017. 15

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1. Criação do Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD) - milhares de agentes públicos foram capacitados em todas as regiões do País; 2. Implementação do Cadastro Nacional de Clientes do Sistema Financeiro (CCS), sob gestão do Banco Central do Brasil (BACEN) - o Brasil como um dos países mais avançados na área de prevenção à lavagem de dinheiro; 3. Padronização da forma de solicitação/resposta de quebras de sigilo bancário e respectivos rastreamentos e desenvolvimento do Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias (SIMBA) - celeridade e economicidade nas investigações e persecuções penais; 4. Criação do Laboratório de Tecnologia contra a Lavagem de Dinheiro e replicação do modelo nas unidades de federação com a formação de uma rede integrada de tecnologia, voltada para o enfrentamento à corrupção e à lavagem de dinheiro - otimização das investigações e ações penais, simplificando a análise de dados de grande volume; 5. Elaboração do anteprojeto de sindicância patrimonial, para regulamentar a declaração de bens e valores que compõem o patrimônio privado do agente público. O anteprojeto culminou com a edição do Decreto n.º 5.483/2005 e instituiu tal procedimento - maior controle da corrupção; 6. Regulamentação de acesso dos órgãos de controle à documentação contábil das entidades contratadas pela administração pública, culminando na edição da Portaria Interministerial n.º 127/2008 - maior transparência e controle da corrupção; 7. Aperfeiçoamento do cadastro de entrada e saída de pessoas do território nacional - modernização e maior controle transfronteiriço; 8. Criação do Sistema Nacional de Bens Apreendidos (SNBA), gerido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o fomento à alienação antecipada de bens, resultando no aprimoramento do instituto, posteriormente modificado pela Lei n.º 12.683/2012 e Lei n.º 12.694/2012 - maior efetividade no corte dos fluxos financeiros das organizações criminosas; 9. Informatização do acesso ao Poder Judiciário às informações da Receita Federal, com a criação do Sistema de Fornecimento de Informações ao Poder Judiciário (INFOJUD) - maior celeridade no fluxo de informações; 10. Criação do Cadastro de Entidades Inidôneas e Suspeitas (CEIS), mantido pela Controladoria-Geral da União - publicidade, transparência e controle social; 11. Criação do Cadastro Nacional de Entidades (CNEs), sob gestão do Ministério da Justiça - publicidade, transparência e controle social; 12. Criação das Delegacias Especializadas em Crimes Financeiros, no âmbito do Departamento de Polícia Federal - maior efetividade na investigação e persecução dos crimes financeiros; 13. Estruturação do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, no âmbito dos Ministérios Públicos Estaduais - especialização das autoridades brasileiras no combate à criminalidade organizada;

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14. Informatização das declarações de porte e valores quando do ingresso e saída do país - maior efetividade no controle da movimentação transfronteiriça de valores; 15. Criação do rol eletrônico de culpados da Justiça Federal e recomendação ao CNJ da criação do rol no âmbito das Justiças Estaduais maior transparência e controle; 16. Definição das Pessoas Politicamente Expostas (PEPs) e regulamentação das obrigações do sistema financeiro em relação às mesmas - adequação do Brasil aos padrões internacionais de prevenção à lavagem de dinheiro; 17. Consolidação de uma autoridade central para fins de cooperação jurídica internacional - maior efetividade da justiça com a possibilidade de se buscar provas no exterior; 18. Regulamentação da aquisição e utilização de cartões bancários pré-pagos ou similares, para fins de prevenção de ilícitos e identificação de movimentações financeiras suspeitas - maior controle de um setor vulnerável; 19. Criação da WICCLA, enciclopédia Wiki de combate à lavagem de dinheiro e corrupção, com informações sobre padrões de atuação utilizados pelos criminosos na prática de crimes, legislação referente a referidos temas, informações das bases de dados disponíveis nos órgãos, dentre outras - difusão de conhecimento; 20. Elaboração de diversos anteprojetos e propostas de alterações a projetos de lei, alguns já aprovados e outros em andamento, nos seguintes temas: organizações criminosas, Lei n.º 12.850/2013 (com disciplinamento das técnicas especiais de investigação, com destaque à delação premiada, à ação controlada e à figura do agente infiltrado); responsabilidade das empresas pela corrupção, Lei Anticorrupção n.º 12.846/2013; lavagem de dinheiro, Lei n.º 12.683/2012, extinção de domínio (perdimento civil de bens relacionados a atos ilícitos), prescrição penal, intermediação de interesses (lobby), sigilo bancário e fiscal, improbidade administrativa, responsabilização da pessoa jurídica, dentre outros - aprimoramento do sistema normativo.

1.2. LEGISLAÇÃO E PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS A corrupção obviamente possui uma abrangência transnacional, não sendo um mal inerente apenas à sociedade brasileira, o que motivou a comunidade internacional a adotar Tratados e Convenções, tendo o Brasil sido signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), promulgada pelo Decreto n.º 5.687, de 31.01.2006, marco legal do combate a esta modalidade delitiva. No âmbito da Organização dos Estados Americanos - OEA, o Brasil também é signatário da Convenção Interamericana contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto n.º 4.410, de 7.10.2002, sendo parte, ainda, da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Convenção da OCDE), promulgada pelo Decreto n.º 3.678, de 30.11.2000. 89 BOOK.indb 89

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O Brasil foi o primeiro país convidado a integrar a Open Government Partnership (OGP) ou Parceria para Governo Aberto. Uma iniciativa internacional lançada em 2010, pelo então presidente americano Barack Obama, que busca assegurar compromissos concretos de governos nas áreas de promoção da transparência, luta contra a corrupção, participação social e de fomento ao desenvolvimento de novas tecnologias, de maneira a tornar os governos mais abertos, efetivos e responsáveis.18 No âmbito legislativo, a regulamentação da responsabilização civil e administrativa das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública (a Lei Anticorrupção n.º 12.846, de 01.08.2013) teve sua sanção motivada em parte por conta de grandes manifestações populares, a partir de junho de 2013, que evidenciaram a rejeição da sociedade a atos de corrupção e o descrédito das instituições pátrias. Esse diploma legal, que já se encontrava na Câmara dos Deputados, buscou frear a corrupção e outras práticas atentatórias que assolam o setor público brasileiro e foi remetido ao Senado, em regime de urgência, seguramente em razão das manifestações da sociedade civil. A elaboração da nova lei anticorrupção brasileira valeu-se em boa medida de instrumentos internacionais de combate à corrupção, dentre eles, a Foreign Corrupt Practices Act – FCPA (Lei de Práticas Corruptas no Exterior), criada nos Estados Unidos da América, inovadora legislação americana, em vigor desde 1977, que proíbe o suborno de funcionários públicos estrangeiros por empresas americanas, e a lei britânica UK Bribery Act, de 2011. Justamente inserido num contexto crítico, de quebra de compromissos nacionais de responsabilidade e transparência, o Projeto de Lei n.º 6.826/2001 foi convalidado na denominada Lei Anticorrupção, visando atender aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, cuja principal singularidade foi a adoção da responsabilização objetiva (administrativa e civil) das pessoas jurídicas pela prática de atos perpetrados contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. A nova legislação não eximiu a responsabilidade individual dos dirigentes e administradores das empresas ou de qualquer outro indivíduo que venha a atuar na condição de coautor ou partícipe do ato ilícito, mas procurou penalizar as próprias empresas que atuem em desfavor da Administração Pública. Basta, portanto, que qualquer funcionário da empresa tenha perpetrado a infração. Passou-se a responsabilizar as empresas pelo pagamento de subornos a agentes públicos, assegurando a aplicação de sanções que possam dissuadir a prática de Vide endereço eletrônico da Open Governement Partnership, que revela que “as one of OGP’s co-founders, Brazil is strongly committed to strengthening transparency of government actions, preventing and fighting corruption, fostering the democratic ideals with citizen participation in decision making and improving public services. Over the last 10 years, the country developed several initiatives to improve its legal framework, foster citizen participation and use technology for more openness”, https://www.opengovpartnership.org/countries/ brazil; e da CGU a respeito: http://www.governoaberto.cgu.gov.br/, ambos acessados em 12.07.2017.

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tais condutas. Esse diploma legal possui mecanismos eficazes de recuperação do patrimônio público na medida em que impõe sanções que atingem o faturamento da empresa, o perdimento de bens, dentre outros, sinalizando uma maior probabilidade de recuperação de ativos. A transparência e o acesso à informação estão previstos como direito do cidadão e dever do estado na Constituição Federal do Brasil, possuem o objetivo de repelir atos de corrupção e estão inseridos em diversas leis, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101, de 04.05.2000), que disciplina como devem ser as despesas públicas para que a verba pública seja empregada com prioridade em programas sociais e para manutenção e desenvolvimento da saúde, educação e segurança; a Lei da Transparência (Lei Complementar n.º 131, de 27.05.2009) e a Lei de Acesso à Informação (Lei n.º 12.527, de 18.11.2011). O Brasil dispõe ainda da Lei n.º 8.429, de 02.06.1992 (Lei que versa sobre atos de improbidade administrativa), que tem como foco as sanções a serem impostas a agentes públicos nas hipóteses de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta ou indireta e tão-somente por extensão pode dar ensejo a punição das pessoas jurídicas envolvidas em tais situações. Alcança todo agente que mantenha contato com o dinheiro público, ainda que sua atividade seja estritamente privada, bem como os detentores de mandato eletivo e não afasta as demais esferas de responsabilidade penal, administrativa e política, permitindo que um juiz com competência cível aplique as penalidades que comina. Há de ser citada também a Lei n.º 8.666, de 21.06.1993 (Lei de Licitações), que tipifica a conduta criminosa pelo gestor ou servidor contra a administração pública nas hipóteses de licitações e contratos. A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n.º 135, de 04.06.2010) pode ser considerada um marco para a democracia e a luta contra a corrupção e a impunidade no país. Torna inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado, ainda que haja possibilidade de recursos. O Brasil também tem avançado no combate à lavagem de dinheiro. O mapeamento e a identificação dos mecanismos que transformam recursos oriundos de práticas delitivas de organizações criminosas em recursos lícitos se inserem dentre uma das principais medidas de repressão a esta modalidade delitiva. A Lei n.º 12.683, de 09.07.2012, que alterou a Lei n.º 9.613, de 03.03.1998, lei que criminaliza a Lavagem de Dinheiro, retirou o rol de crimes antecedentes e criminalizou a lavagem, a dissimulação ou ocultação da origem de recursos provenientes de qualquer crime ou contravenção penal (ex.: o jogo do bicho, a exploração de máquinas caça níqueis etc). As novas regras inseridas na alteração legislativa ocorrida em julho de 2012 procuraram aumentar a eficiência do Estado como importante ferramenta para o combate ao crime organizado. A Lei que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o proce91 BOOK.indb 91

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dimento criminal (Lei n.º 12.850, de 02.08.2013) representa outro avanço da legislação brasileira, notadamente ao regular as técnicas especiais de investigação com destaque às delações premiadas e a infiltração de agentes. A Controladoria-Geral da União criou o programa Brasil Transparente para auxiliar Estados e Municípios na implementação das medidas de governo transparente previstas na Lei de Acesso à Informação. O Portal da Transparência do Governo Federal é uma iniciativa da Controladoria-Geral da União, lançada em novembro de 2004, para assegurar a boa e correta aplicação dos recursos públicos. O objetivo é aumentar a transparência da gestão pública, permitindo que o cidadão acompanhe como o dinheiro público está sendo utilizado e ajude a fiscalizar.19 Esta iniciativa considera a transparência o melhor antídoto contra corrupção, por ser ela um mecanismo indutor de que os gestores públicos ajam com responsabilidade e propicia que a sociedade, com informações, colabore com o controle das ações de seus governantes, no intuito de checar se os recursos públicos estão sendo usados como deveriam. Merece registro as considerações de Jorge Hage, Ex-ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União, ao destacar os avanços verificados no Brasil: “a ênfase na abertura dos atos e gastos públicos ao amplo escrutínio da sociedade, por meio de medidas concretas e até mesmo radicais (se considerada a tradição secular de segredo e obscuridade da nossa administração pública), como o Portal da Transparência; a construção de um Sistema de Corregedorias em todos os setores do governo federal, que está sepultando a sensação de impunidade que sempre prevaleceu, e hoje já contabiliza mais de quatro mil servidores expulsos da Administração por condutas inaceitáveis; a articulação entre os órgãos de controle interno do Poder Executivo e as autoridades policiais e o Ministério Público, que tem resultado em milhares de ações judiciais por atos de improbidade ou condutas francamente criminosas.”20

1.3. VARAS ESPECIALIZADAS EM CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL E EM LAVAGEM DE DINHEIRO A par dos diplomas legais e das iniciativas governamentais visando o combate à corrupção, a especialização de Varas Federais em Crimes Financeiros e em Lavagem de Dinheiro, a partir de 2003, determinada pela Resolução nº 314/2003 do Conselho da Justiça Federal, trouxe grande contribuição à agilidade da persecução penal. A Resolução nº 517/2006 ampliou essa competência, permitindo a inclusão de crimes praticados por organizações criminosas. Vide Controladoria-Geral da União, Portal da Transparência, http://www.portaltransparencia. gov.br/sobre/. Acesso em 12.07.2017. 20 In A força da Transparência. Revista ETCO - Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, abril de 2013/nº 20 - Ano 10, p. 22/23. 19

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A especialização representou ganho de qualidade das decisões diante do necessário aprimoramento e intercâmbio com os diversos órgãos de investigação e maior interação no uso dos mecanismos de controle das atividades financeiras e bancárias. Os crimes de competência desses juízos especializados são usualmente transnacionais e determinam uma maior especialização das autoridades envolvidas. Frequentemente são realizadas cooperações jurídicas em matéria penal visando a recuperação de ativos, quebras de sigilos bancário e fiscal, além do que há uma maior apreensão de bens, sequestros e arrestos diante dos valores envolvidos. A alienação antecipada de bens e valores ocorre com mais regularidade por ser, muitas vezes, inviável a conservação dos bens pela Justiça Federal e para assegurar o direito dos envolvidos na hipótese de uma sentença favorável ante a notória deterioração dos bens. Além disso, a legitimação das delações premiadas tem proporcionado desde 2008 grande sucesso na apuração da corrupção institucionalizada. Conhecendo os fatos na sua magnitude, detendo a capacidade técnica de bem interpretá-los, possui o Poder Judiciário a condição de fazer face à criminalidade organizada que, para se perpetuar, tem realizado seus voos tortuosos em todas as direções. A investigação e o processamento das ações penais envolvendo estes crimes geram volumes e mais volumes de papéis e/ou arquivos eletrônicos que devem merecer atenção redobrada.Verdadeiros casos artesanais que exigem, a um, uma correta manipulação, a dois, criteriosa classificação, a três, condições de interpretação e, finalmente, exata compreensão e dimensão da dificuldade inerente ao delito sob apreciação que, necessariamente, demanda tempo. Doutra parte, requer-se agilidade, isto é, verdadeira resposta às angústias que o passar dos anos provoca na comunidade, bem ainda produção correspondente ao volume (“magistratura de massa”), apesar de os pormenores exigirem verificação passo a passo. A máxima “tudo vale para atingir a produção” somente possui sentido se significar trabalho, seriedade, honestidade e condições adequadas. Encontra-se hoje o magistrado mergulhado neste cenário, numa angústia que se eleva à medida que a tomada de decisões exige rapidez acentuada em decisões de relevância ponderando valores já consagrados, agora revisitados, sempre na busca de dar eficácia a um futuro processo com a obtenção da prova no tempo e condições devidos, emergindo primeiro momento de apreensão. O sentimento de subjetivismo e arbítrio das decisões criminais, já corrente e existente entre nós, dificilmente restará arredado se não se adequar e equacionar as dificuldades de revelação, processamento e julgamento, sob pena de deslegitimação da persecução penal, com riscos enormes à segurança institucional dado o descrédito reinante. A Justiça penal corre sério risco caso não sejam minoradas, ou, de preferência, debeladas, as desigualdades que historicamente subsistem no seu funcionamento (os agentes que concluíram o ensino superior, os empregados, aqueles que não têm antecedentes, beneficiam-se de um tra93 BOOK.indb 93

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tamento privilegiado ao longo de todo o processo, mais, especialmente, na sua fase inicial, o que se reflete no número de casos proporcionalmente menor).21

1.4. CENÁRIOS POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL EM FACE DA ATUAÇÃO DAS VARAS ESPECIALIZADAS Já se observa o impacto nos cenários político, econômico e social proporcionado pela atuação da Justiça Federal com as Varas especializadas. Na primeira hipótese, não se pode deixar de nos remeter ao conceito de bem jurídico, caracterizado, segundo Claus Roxin, como sendo pressuposto inafastável “de um convívio pacífico entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade”, enquanto que a subsidiariedade, tão propalada no direito penal significa, também nas palavras do ilustre professor alemão, “a preferência a medidas sócio-políticas menos gravosas”.22 Não se trata de estabelecimento de norma penal simbólica, previsivelmente ineficaz, mas de reconhecimento da imprescindibilidade da intervenção estatal manifestada na proteção de um bem jurídico autêntico. Evita-se, assim, que se perpetue o dano jurídico primário, com a ilusão das autoridades incumbidas da repressão e prevenção, legitimado pela evidente ressonância social. Não cabe, pois, alegar-se abstração impalpável porquanto já se verifica na consciência dos cidadãos o repúdio a tal prática, o que afastaria valer-se apenas das pretensões indenizatórias (direito civil) ou de caráter público (direito administrativo). A importância da atuação das Varas especializadas em lavagem de dinheiro e em delitos financeiros resta evidente já que demonstra o reconhecimento da dificuldade em desvendar verdadeira engenharia financeira de ocultação de graves delitos, a menos que se busque de alguma forma a familiarização de operações financeiras jamais aprofundadas na graduação, revelando-se imperiosa a necessidade de atualização diante da criatividade que sempre envolve a sua prática. Imprescindível, pois, a aproximação das autoridades encarregadas da repressão de tais ilícitos, possibilitando a aquisição de um know-how que Apesar da enorme visibilidade alcançada pela Declaração dos Direitos do Homem de 1789, onde se podia ler que “les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits”, a primeira previsão jurídica da igualdade deu-se no Virginia Bill of Rights, de 1776, de Madison, referindo-se aí que “all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights”. Tais formulações foram concebidas de forma abstrata. Mesmo durante o período medieval, havia a existência de reflexões sobre a importância da igualdade, nomeadamente na obra de São Tomás de Aquino e, de modo geral, em todo o repensar da filosofia aristotélica, onde se identificava a justiça com o tratamento igualitário (igualdade e justiça são sinônimos). Ser justo é ser igual, ser injusto é ser desigual. Não bastou a consagração do preceito da igualdade, na sua vertente formal, que sofreu, então, o mais duro reverso, com a consagração da dimensão relativa da igualdade. 22 Cf. Que comportamentos pode o Estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. Texto traduzido por Luís Greco, entregue no seminário de Direito Penal econômico, ocorrido em Porto Alegre, de 18 a 20 de março de 2004, p.02. 21

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capacita todos (delegados, procuradores, servidores e magistrados federais) a enfrentar esse tipo de criminalidade. Como impacto político, tem-se o de motivar as instâncias formais de poder (Polícia, Ministério Público Federal, Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF e outras) para a persecução desses delitos, havendo, por exemplo, um remanejamento de membros interessados na sua repressão, criação de forças-tarefas (tão necessárias), além de uma maior atenção e cooperação de todos. A coordenação das instituições acaba contribuindo para um crescente número de servidores com conhecimento na área, viabilizando o desvendamento da vinculação de valores ilícitos com o crime antecedente (problema de campo). Evita-se, com a especialização, investigações paralelas, quando não conflitantes, diante da falta de coordenação. Sabe-se a quem e onde requerer (não somente com relação ao Judiciário) já que antes da especialização tudo era diferente e difuso. As instituições, pois, estariam adequadas para o tamanho do enfrentamento ao crime organizado. No que tange ao cenário econômico, urge esclarecer que a atuação da Justiça Federal tem propiciado a obtenção de bens adquiridos ilicitamente, de forma que eles não circulem no mercado, funcionando este de forma transparente, preservando-se os investidores. Logo, a desafetação da livre concorrência, que apesar de já possuir a proteção dos delitos econômicos, resta sensivelmente abalada com o fluxo de capitais ilícitos investidos em empresas para dar aparência de licitude (fase de integração da lavagem de dinheiro). Neste ponto, assume demasiada relevância a Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), na tentativa de rastrear, congelar e reaver os valores obtidos com a prática das infrações antecedentes. Quanto ao cenário social, há evidente insatisfação popular, manifestada fora dos canais formais de ação política, a democracia informal, quanto à atuação dos políticos, daí o estado atual de vigilância, de denúncias e de (des) qualificação das ações públicas e de desconfiança. A constatação da ausência daquilo que esperam as pessoas como respostas adequadas, no tempo e no espaço, tem gerado indignação. Entretanto, apesar de inexistir verdadeiro plano de transformação progressivo da sociedade, ou seja, uma decisão firme que passe a mensagem de que desejamos de fato melhorar o combate ao crime organizado, o panorama tem se alterado porquanto, graças à atuação da Justiça Federal, existe, hoje, na consciência de todos a necessidade da repressão aos delitos de corrução, lavagem de dinheiro e aos crimes financeiros, inclusive da importância em bem arquitetar o seu combate – para não se render ao poder paralelo que representa o crime organizado – munindo o Estado com todos os meios para a persecução.23 Também, começa surgir confiança nas instituições que estariam à altura da criminalidade sistêmica. Pode-se antever uma melhoria da segurança pública, desde que, de forma consistente, a atuação determinada 23

Mudança de postura. Mário de Magalhões Papaterra Limongi Procurador de Justiça.Artigo publicado na edição de 14.01.2013 jornal O Estado de S. Paulo.

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da Justiça Federal Criminal acarrete a inviabilização financeira de organizações criminosas e a consequente desmotivação para a prática de crime. Ora, tais cenários (político, econômico e social) exigem estruturação compatível com as expectativas geradas com a atuação das Varas especializadas, levando-se em conta que frequentemente lhes é exigida adequada entrega da tutela jurisdicional, apesar da apreciação de número elevado de pedidos de quebra de sigilo (fiscal e bancário), interceptações telefônicas, sequestros, buscas e apreensões, circunstância que tem demandado constante e imediata atuação do magistrado em casos extremamente delicados que não poderiam merecer leitura apressada apesar da urgência requerida. A Recomendação n.º 31 do Grupo de Ação Financeira Internacional – GAFI deixa evidente que “os países deveriam assegurar que as autoridades competentes ao conduzirem investigação tenham acesso a uma grande variedade de técnicas investigativas adequadas às investigações de lavagem de dinheiro, crimes antecedentes e financiamento do terrorismo. Tais técnicas incluem: operações encobertas, interceptação de comunicações, acesso a sistemas computacionais e entrega controlada. Além disso, os países deveriam possuir mecanismos efetivos para identificar rapidamente se pessoas físicas ou jurídicas são titulares ou controlam contas”, enquanto que a de n.º 37 descreve que “as autoridades responsáveis pela assistência jurídica mútua (por exemplo, a autoridade central) deveriam possuir recursos financeiros, humanos e técnicos adequados. Os países deveriam ter processos para garantir que os funcionários dessas autoridades mantenham alto padrão profissional, inclusive padrão de confidencialidade, além de terem integridade e serem devidamente qualificados.”24 Todas essas assertivas valem para a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e as Cortes Superiores, que devem possuir meios e condições efetivas de investigação, apuração e processamento, evitando-se a prescrição da ação penal. Com as Varas especializadas, agrega-se, pois, sentimento de que a lei vale para todos e afigura-se adequada para o combate da criminalidade (traz a idéia da utilidade e legitimação dos diplomas normativos). Por sua vez, propiciam o resgate da credibilidade dos Poderes nacionais, com reforço das instituições democráticas que lastreiam o Estado de Direito. Em 2010, o Relatório elaborado pelo GAFI demonstrou que o Brasil melhorou significativamente a capacidade de persecução de crimes de lavagem de dinheiro e financeiros (aí podendo se incluir também os de corrupção) por meio da atuação de um sistema de Varas Federais Especializadas, com grande apoio da sociedade.25 Vide GAFI. Recomendações, endereço eletrônico: http://www.fatf-gafi.org/publications/ fatfrecommendations/documents/fatf-recommendations.html, acessado em 12.07.2017. 25 O mais luxuoso dos crimes: legislação avança no combate à lavagem de dinheiro, mas criminosos inovam nas formas de omitir os ganhos e de explicar o enriquecimento ilícito. Rafania Almeida. Revista A República – Associação Nacional dos Procuradores da República, Ano III, n.º 08 – dez./2013, p. 10-13. 24

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CONCLUSÕES Não há dúvidas de que o Brasil dispõe de razoáveis instrumentos legislativos e políticas públicas suficientes ao enfrentamento da corrupção, da lavagem de dinheiro e dos crimes financeiros. Diversos órgãos têm se reunido na tentativa de se organizar e criar medidas que sejam aptas a fazer frente à criminalidade arrojada. O julgamento dos casos da “Lavajato” (envolvendo a Petrobrás, a Odebrecht, a JBS e outras em crimes de corrupção, financeiros e de lavagem de dinheiro) vem coroando uma atuação criteriosa e determinada da Justiça Federal já há algum tempo, desde a implementação das Varas Especializadas em Lavagem de Dinheiro e Crimes Financeiros, sem desmerecer a atuação do Supremo Tribunal Federal no “Mensalão”/Ação Penal n.º 470 (esquema de arrecadação ilegal de dinheiro para ser distribuído a parlamentares da base governista), que representou um marco no Brasil quanto ao resultado pontual do foro por prerrogativa de função em casos de corrupção e lavagem de dinheiro. As recentes prisões dos acusados demonstraram a seriedade com que a Polícia Federal, Receita Federal, Ministério Público Federal e Poder Judiciário agiram e revelam que o país está agindo com correção de rumos. As condenações têm deixado evidentes o arrojo, a volúpia e o descaso com que grupos atuam na busca a qualquer preço de seus objetivos. Reduzir a corrupção no Brasil representa uma necessidade de ordem prática: a produtividade e o desenvolvimento do país estão umbelicalmente ligados à demonstração de que o país é capaz de se superar. Nas palavras de Marilza M. Benevides, “lembremos, mais uma vez, que organizações são feitas por pessoas e que não há regras de condutas que possam dar conta da criatividade humana quando as debilidades morais ou de ordem mais complexa vêm à tona. Daí a necessidade da intervenção por parte de legisladores e de reguladores e da mobilização por parte da sociedade organizada, como forma de mitigar riscos. Dos primeiros esperam-se leis e regulamentos claros, além de monitoramento, fiscalização e um sistema de penalidades consistente. Por parte dos demais players do mercado espera-se mobilização e ativismo. Quando todas essas partes se juntam as luzes no fim do túnel começam a brilhar.”26 A Justiça Federal, via Varas Especializadas, tem legitimado a sua atuação diante da compreensão da realidade e de sua utilidade, não desmerecendo a necessidade de revisar e implementar políticas públicas (normatividade, operabilidade e efetividade) para que sejam evitadas ou desestimuladas práticas ilícitas. A busca por uma atuação correta é a todos essencial, notadamente “em um mundo onde quase tudo é público, a ética é um ativo oculto que possibilita a superação de crises como nenhum outro. Como se fosse mágica: com pouco, In Marilza M. Benevides. É a ética do mercado! Que ética? Há enormes desafios a serem enfrentados até que o Brasil avance no combate à corrupção. Publicado em 01.04.2012 (LogWeb, http:// www.logweb.com.br/artigo/e-a-etica-do-mercado-que-etica/, acessado em 12.07.2017).

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ela permite se conseguir muito. E deve ser gerida com a mesma dedicação com que se gerem os melhores ativos. Porque é capital.”27 Assim, deficiências e vulnerabilidades hoje existentes e que são objeto de grande insatisfação pública deverão ser corrigidas na medida em que órgãos de controle, fiscalização e intervenção em políticas públicas - essenciais para aferição da efetividade do combate à corrupção e às medidas antilavagem de dinheiro - estejam em seu pleno funcionamento. Uma forte sensação na resolução eficaz dos conflitos nacionais pode-se vislumbrar. A experiência brasileira da atuação de Varas especializadas tem se mostrado exitosa, representando a esperança num Direito, o criminal, como instrumento de solucionamento e apaziguamento dos conflitos sociais porquanto, como visto anteriormente, já provou impactos relevantes nos cenários político, social e econômico; daí sua legitimação. Deve-se esperar daqueles que pensam o direito uma honestidade intelectual, uma sintonia com o momento crítico que passamos, no qual o cidadão consciente possa, juntamente com a imprensa, cumprir o papel fiscalizador que lhe corresponda, mormente quando inoperantes os canais formais de controle. Que exista verdadeira política pública contra a corrupção que assegure transparência e integridade, e dê um rumo certo país. Que se instrumentalize a sociedade, já transformada e aperfeiçoada, e que se discuta, além da questão econômica, trabalhista, e previdenciária, uma luta eficaz contra o crime.

REFERÊNCIAS ALMEIDA. Rafania. O mais luxuoso dos crimes: legislação avança no combate à lavagem de dinheiro, mas criminosos inovam nas formas de omitir os ganhos e de explicar o enriquecimento ilícito. Revista A República - Associação Nacional dos Procuradores da República, Ano III, n.º 08 - dez./2013, p. 10-13. ANDRIOLI.Antônio Inácio. Monografias.com, Causas estruturais da corrupção no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, n.º 64 - set./2006 - Mensal, ISSN 1519.6186, Ano VI - http://br.monografias.com/trabalhos906/causas-estruturais-corrupcao/causas-estruturais-corrupcao.shtml, acessado em 12.07.2017. Causas estruturais da corrupção no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, n.º 64 set./2006 - Mensal, ISSN 1519.6186, Ano VI. Disponível em http://www. espacoacademico.com.br/064/64andrioli.ht. Acesso em 06.12.2013. AVRITZER. Leonardo. A realidade política brasileira. Revista Carta Capital. Publicada em 01.06.2011. Disponível em http://www.cartacapital.com.br/ sociedade/a-realidade-politica-brasileira. Acesso em 08.07.2017. BENEVIDES, Marilza M. É a ética do mercado! Que ética? Há enormes desafios a serem enfrentados até que o Brasil avance no combate à corrupção. Publicado em A mágica oculta. Ricardo Young, empresário, socioambientalista e vereador do Município de São Paulo, Revista ETCO - Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, abril de 2013/nº 20 - Ano 10, p. 28/29.

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01.04.2012 (LogWeb, http://www.logweb.com.br/artigo/e-a-etica-do-mercado-que-etica/, acessado em 12.07.2017). CALMON, Eliana, Ministra do Superior Tribunal de Justiça. O jeitinho brasileiro. Revista ETCO - Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, abril de 2013/ nº 20 - Ano 10, p. 24/25. CHIZZOTTI, Antonio; CHIZZOTTI, José; IANHEZ, João Alberto;TREVISAN, Antoninho Marmo;VERILLO, Josmar.Transparência Brasil. O Combate à corrupção nas prefeituras do Brasil, in http://www.transparencia.org.br/docs/ Cartilha.html. Acesso em 08.07.2017. CONGRESSO em Foco. Os projetos da pauta prioritária ainda não votados, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/os-projetos-da-pauta-prioritaria-ainda-nao-votados. Acesso em 12.07.2017. CONTROLADORIA-GERAL da União. [S.l.]. Governo Aberto, http:// www.governoaberto.cgu.gov.br/, acessado em 12.07.2017. ______. Portal da Transparência, http://www.portaltransparencia.gov.br/sobre/. Acesso em 12.07.2017. CONGRESSO em Foco. Os projetos da pauta prioritária ainda não votados, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/os-projetos-da-pauta-prioritaria-ainda-nao-votados. Acesso em 12.07.2017. ENCCLA. Ações de 2013, endereço eletrônico, in http://enccla.camara.leg. br/acoes/acoes-2013, acessado em 11.07.2017. ______. Resultados Obtidos, in http://enccla.camara.leg.br/resultados, acessado em 12.07.2017. EUROPEAN Commission. Boosting anti-corruption policy at EU level. Disponível em http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/what-we-do/policies/organized-crime-and-human-trafficking/corruption/index-eu, acessado em 11 julho 2017. GODINHO, Jorge Alexandre Fernandes. Do crime de ‘branqueamento’ de capitais: introdução e tipicidade. Coimbra: Almedina Ed., 2001. GRAYLEY, Mônica Villela. ONU diz que corrupção piora situação de pobreza e desigualdade no mundo. Notícias e Mídia Rádio ONU. Nova York - NY, EUA, dez. 2013. Disponível em <http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2013/12/onu-diz-que-corrupcao-piora-situacao-de-pobreza-e-desigualdade-no-mundo/> Acesso em 07.07.2017. GRECO. Luís. Que comportamentos pode o Estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. Texto traduzido e entregue no seminário de Direito Penal econômico, ocorrido em Porto Alegre, de 18 a 20 de março de 2004, p.02. GRUPO de Ação Financeira Internacional – GAFI, Recomendações, endereço eletrônico: http://www.fatf-gafi.org/publications/fatfrecommendations/ documents/fatf-recommendations.html, acessado em 12.07.2017. 99 BOOK.indb 99

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GUROVITZ, Hélio. Viva a Lei de Gérson!. Superinteressante. [S..l.], fev. 2004. Disponível em < http://super.abril.com.br/superarquivo/2004/conteudo_313516.shtml > Acesso em 06.07.2017. HAGE, Jorge. A força da Transparência. Revista ETCO - Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, abril de 2013/nº 20 - Ano 10, p. 22/23. IOSCHPE. Gustavo. Ética na escola e na vida. Revista Veja, ed. 18.12.2013, p. 36/38. LIMONGI. Mário de Magalhães Papaterra. Mudança de postura. Artigo publicado na edição de 14.01.2013 jornal O Estado de S. Paulo. NAÇÕES UNIDAS no Brasil, endereço eletrônico, http://www.onu.org.br/ corrupcao-tira-40-bilhoes-de-dolares-de-paises-em-desenvolvimento-todo-ano-afirma-onu. Acesso em 12.07.2017. ONU, Centro de Informação, UNIC RIO, http://www.unicrio.org.br/dia-internacional-contra-a-corrupcao. Acesso em 10.07.2017. OPEN Governement Partnership, https://www.opengovpartnership.org/countries/brazil; acessado em 12.07.2017. TAKAHASHI. André. O black bloc e a resposta à violência social. Disponível em http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-black-bloc-e-a-resposta-a-violencia-policial-1690.html. Acesso em 12.07.2017. YOUNG, Ricardo, empresário, socioambientalista e vereador do Município de São Paulo. A mágica oculta. Revista ETCO - Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, abril de 2013/nº 20 - Ano 10, p. 28/29.

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O SISTEMA DE PRECEDENTES VINCULANTES E O INCREMENTO DA EFICIÊNCIA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: APLICAR A RATIO DECIDENDI SEM REDISCUTI-LA

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Frederico Augusto Leopoldino Koehler1

INTRODUÇÃO Com a entrada em vigor do NCPC, surgem vários questionamentos da comunidade jurídica, especialmente sobre sua real contribuição para uma maior efetividade da prestação jurisdicional e para que a tramitação dos processos se dê em prazo razoável, cumprindo-se, afinal, a determinação do art. 5º, inc. LXXVIII, da Constituição Federal. O presente artigo visa a analisar o impacto positivo que o sistema de precedentes vinculantes pode trazer para o processo civil brasileiro. O foco será a análise do momento de aplicação dos precedentes – não o de sua formação –, a fim de aferir se há algum aumento de eficiência derivado dessa nova sistemática. Procederemos a uma análise, portanto, de como a fundamentação da decisão, nos casos de aplicação de precedente obrigatório, difere da motivação elaborada em um processo em que não haja a vinculação a precedente, e como isso irá impactar o trabalho cotidiano dos magistrados brasileiros.

1. A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS NO CPC/2015 (O ART. 489, §1º) A questão que se coloca nesse artigo é a seguinte: a prolatação de uma decisão judicial baseada em precedente obrigatório exige o mesmo nível de

Juiz Federal com lotação na 2ª Turma Recusal da Seção Judiciária de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Membro e Secretário-Geral Adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Membro e Diretor da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo – ANNEP. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPRO. E-mail: koehler_koehler@yahoo.com.br.

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fundamentação de uma decisão que não esteja aplicando um precedente dessa natureza? Formulando de outra maneira: ao transpor para um caso concreto a ratio decidendi contida no precedente, deve o magistrado enfrentar a argumentação jurídica que já fora apreciada no momento de sua formação? Vejamos. O art. 489, §1º, do CPC/2015, prescreve: “§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Como se vê, houve uma enorme preocupação do legislador em explicitar, de forma detalhada, os equívocos que uma decisão judicial não deve cometer, sob pena de considerar-se não fundamentada e, portanto, nula, com base no art. 93, inc. IX, da CF/1988 e no art. 11 do CPC/2015. Boa parte da magistratura nacional receia que o dispositivo transcrito traga mais demora à tramitação dos feitos, na medida em que exigirá um maior trabalho de fundamentação, acompanhado de um possível aumento da oposição de embargos declaratórios2. É o que demonstra o teor de alguns dos enunciados aprovados no seminário “O Poder Judiciário e o novo CPC”, realizado pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados3: “Enunciado 47: “O art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizados especiais”; Enunciado 9: “É ônus da parte, para os fins do disposto no art. 489, § 1º,V e VI, do CPC/2015, identificar os fundamentos determinantes ou demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do Defendendo a inaplicabilidade do art. 489, §1º, ao sistema dos juizados especiais, confira-se OLIVEIRA, 2015, p. 101-103. 3 A ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados promoveu o seminário “O Poder Judiciário e o novo CPC”, com a participação de cerca de 500 juízes estaduais e federais de todo o país, no período de 26 a 28 de agosto de 2015, em que foram aprovados 62 enunciados interpretativos sobre o NCPC. O quórum de aprovação era de 2/3 (dois terços) dos participantes. 2

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entendimento, sempre que invocar jurisprudência, precedente ou enunciado de súmula”; Enunciado 12: “Não ofende a norma extraível do inciso IV do § 1º do art. 489 do CPC/2015 a decisão que deixar de apreciar questões cujo exame tenha ficado prejudicado em razão da análise anterior de questão subordinante”. Entendemos, contudo, que tal receio não se justifica. O art. 489, §1º, do CPC/2015, na verdade, apenas esmiuça os deveres de fundamentação que todo magistrado já deveria ter sob a égide do CPC/1973. O inc. IV – de longe, o que mais polêmica tem gerado –, que prevê a nulidade para a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, nada inova em relação à sistemática do CPC/1973, uma vez que o magistrado jamais poderia deixar de enfrentar um argumento capaz de infirmar a conclusão da sua decisão.

2. A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS COM BASE EM PRECEDENTES OBRIGATÓRIOS Avançando para responder à pergunta central do presente artigo, podemos afirmar: não há sentido em obrigar que, no instante em que aplica o precedente vinculante, o juiz novamente - e sempre – tenha que (re)enfrentar toda a argumentação jurídica que já fora apreciada no momento de formação do precedente. O enunciado 524 do Fórum Permanente de Processualistas Civis - FPPC dispõe exatamente nesse sentido4:“O art. 489, §1º, IV, não obriga o órgão julgador a enfrentar os fundamentos jurídicos deduzidos no processo e já enfrentados na formação da decisão paradigma, sendo necessário demonstrar a correlação fática e jurídica entre o caso concreto e aquele já apreciado”. O enunciado 13 da ENFAM segue a mesma senda: “O art. 489, § 1º, IV, do CPC/2015 não obriga o juiz a enfrentar os fundamentos jurídicos invocados pela parte, quando já tenham sido enfrentados na formação dos precedentes obrigatórios”. Fique bem claro, no entanto, que não se está defendendo que o funcionamento de um sistema de precedentes seja menos complexo do que o sistema atual. Pelo contrário, os cuidados necessários na formação e na aplicação dos precedentes são inúmeros. Defende-se, isto sim, que, em um sistema abarrotado de demandas repetitivas e de conflitos de massa, o ganho operacional em virtude da aplicação do sistema de precedentes é inegável. Poupa-se retrabalho em todos os processos em que o juiz teria que reforçar a argumentação já enfrentada e esgotada pela corte superior. 4

O FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis consiste em um encontro semestral (a partir de 2016 será anual) que conta com a participação de professores de processo de várias carreiras jurídicas (no último encontro, em Curitiba, estiveram presentes mais de 300 participantes de todo o país), e que tem como objetivo a elaboração de enunciados interpretativos sobre o NCPC. Para aprovação de um enunciado, exige-se a concordância da unanimidade dos participantes.

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Importante a lição de Marinoni, de que é imprescindível justificar-se sempre a aplicação de um precedente, impondo-se identificar a ratio decidendi, isto é, os fundamentos determinantes do precedente que se deseja aplicar, bem como os fatos subjacentes no precedente, a fim de verificar-se a correlação fática e jurídica entre o paradigma e o caso concreto (MARINONI, 2015, p. 2077). Corroborando o afirmando, colhe-se o enunciado 19 da ENFAM: “A decisão que aplica a tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos não precisa enfrentar os fundamentos já analisados na decisão paradigma, sendo suficiente, para fins de atendimento das exigências constantes no art. 489, § 1º, do CPC/2015, a correlação fática e jurídica entre o caso concreto e aquele apreciado no incidente de solução concentrada”. Note-se que examinar a correlação fática e jurídica do caso concreto nem sempre é tarefa fácil, pois cada processo singular possui peculiaridades e ostenta situações diferenciadas. Porém, um campo onde esse mister é facilitado é o das demandas de massa, as quais, via de regra, tratam de situações idênticas e de fácil cotejo com o paradigma. Perceba-se que o art. 489, §1º, inc. V, do CPC/2015 visa a combater a prática das pseudofundamentações, isto é, das decisões que, a pretexto de analisarem as razões que ensejaram a aplicação dos precedentes, limitam-se a mencionar apenas ementas de julgados ou de enunciados de súmulas, sem fazer a imprescindível correlação fática e jurídica do caso paradigma com o caso concreto (CAMBI e HELLMAN, 2015, p. 654). Quando o precedente vinculante é aplicado de forma tecnicamente correta, o julgamento torna-se mais rápido, sendo até mesmo possível que seja feito por decisão monocrática do relator, conforme previsto no art. 932, inc. IV e V do CPC/20155. Gustavo Nogueira fornece o relato de Benjamin Cardozo, Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos da América entre 1932 e 1938, de que o trabalho dos juízes seria imensamente maior caso não pudessem assentar suas decisões em precedentes em que já houve discussão exaustiva dos argumentos pertinentes à causa (NOGUEIRA, 2015, p. 89). “Art. 932. Incumbe ao relator: (...). IV – negar provimento a recurso que for contrário a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; V – depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;” 5

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Como visto, a aplicação da tese firmada em precedente vinculante (a exemplo do julgamento de casos repetitivos6) retira a necessidade de argumentação complementar em relação aos fundamentos que formam a ratio decidendi. É por isso que o CPC/2015 cria os princípios da comparticipação, coerência, integridade, estabilidade e da busca do resgate da efetiva colegialidade na formação do precedente, para, com esta medida, evitar-se o retrabalho no momento de sua aplicação. O cuidado na formação do precedente evita reanálises dos tribunais, como ocorre atualmente, em que constantemente se impõe o exame de argumentos negligenciados no momento de formação da ratio decidendi (THEODORO JÚNIOR et al., 2015, p. 298). Ou seja, um precedente formado às pressas, sem a atenção devida e sem o respeito ao contraditório ampliado, não terá esse efeito positivo de redução do retrabalho no momento de aplicação da ratio decidendi. De fato, motivação é o núcleo forte do sistema de precedentes – até porque é nela que reside a ratio decidendi – o que impõe maior qualidade no momento da elaboração dos precedentes (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2015, p. 470). Daí a grande relevância de se distinguir um sistema de precedentes funcionando corretamente de um mero sistema de elaboração e aplicação de enunciados de súmulas, tal como ocorreu até hoje no processo brasileiro. Não se pode olvidar que, por mais que se tente esgotar a discussão a partir de um enunciado de súmula, o fato é que este é um texto e, como tal, possui o mesmo pathos da lei: estão sempre sujeitos à interpretação no momento de aplicação (THEODORO JÚNIOR et al., 2015, p. 298). A aplicação de um precedente não consiste em uma operação subsuntiva com uma submissão mecânica e cega. Não se dispensa, por óbvio, algum grau de interpretação para a aplicação do acórdão paradigma. Lênio Streck e Georges Abboud alertam sobre os perigos de uma aplicação dos precedentes de forma dedutiva-subsuntiva-mecânica, como um silogismo, e alertando ser indispensável – e inescapável –, também nesses casos, a intepretação por parte do julgador. As decisões que utilizarão como base a ratio decidendi de um precedente vinculante não serão frutos de silogismo. Pelo contrário, elas também constituem atos hermenêuticos (STRECK; ABBOUD, 2015, p. 175-182; SEDLACEK, 2015, p. 380-381). Há que se ter sempre o cuidado de não se utilizar os precedentes de forma irrefletida, isto é, sem que se faça a comparação dos fatos do caso concreto com a situação fática que compõe a ratio decidendi.Viola a igualdade o comportamento do tribunal que aplica um precedente a uma situação substancialmente distinta daquela que gerou a ratio decidendi. Por isso o NCPC prevê a técnica da distinção (arts. 489, §1º,V e VI, e 927, §1º), por meio da qual o julgador deve verificar se Conforme o art. 928, a expressão “julgamento de casos repetitivos” abrange os recursos extraordinários e especiais julgados em regime de recursos repetitivos e o julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas - IRDR.

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há similitude fática entre o caso paradigma e o caso em julgamento, de modo a fazer incidir ou não a ratio decidendi. Deve o julgador delinear, também, e de forma explícita, a tese jurídica adotada para se chegar à conclusão exposta na parte dispositiva. Isso para que as partes possam submeter a aplicação da ratio decidendi a eventual controle recursal (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2015, p. 469 e 471). Logo, não se afirma aqui que o magistrado deva seguir os precedentes de forma acrítica. Apesar da possibilidade de uma fundamentação mais concisa nesse caso, tal fato não exime o magistrado de, como dito acima, comprovar a a correlação fática e jurídica entre o caso concreto e aquele apreciado no processo paradigma. Em verificando não existir essa correlação fática e jurídica, deverá o julgador operar a distinção, desvinculando a solução do caso concreto daquela solução obtida no precedente. Nesse sentido dispõem o enunciado 306 do FPPC: “O precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa” e o enunciado 20 da ENFAM: “O pedido fundado em tese aprovada em IRDR deverá ser julgado procedente, respeitados o contraditório e a ampla defesa, salvo se for o caso de distinção ou se houver superação do entendimento pelo tribunal competente”. Sobre o tema, pede-se vênia para transcrever um trecho esclarecedor de artigo de Dierle Nunes (NUNES, 2015): “Julgar melhor para julgar menos à medida que um precedente que aborde todos os fundamentos, favoráveis ou contrários (dever de consideração: artigo 489, §1º, IV), em contraditório amplo, com participação de amici curiae, oitiva de argumentos em audiências públicas e respeito a um dever de congruência entre o que se fixou para julgamento e o que se efetivamente julgou, poderá induzir uma efetiva redução do retrabalho e, inclusive, diminuição da litigiosidade pela existência de uma verdadeira opinião da corte sobre o caso, de modo a se assegurar uma jurisprudência coerente, íntegra e estável (artigo 926). Este precedente serviria como fundamento de julgamento (artigo 489, §1º,V e VI) em: a) julgamentos liminares de improcedência (artigo 332); b) tutelas antecipadas da evidência (artigo 311, II); c) decisões monocráticas (artigo 932, IV e V); d) resolução de conflitos de competência (artigo 955, parágrafo único, I e II); e) obtenção de executividade imediata de sentenças (artigo 1.012, V); f) impedimento de reexame necessário (artigo 496, §4º, II). Não se olvidando de potenciais funções rescindentes (artigos 525, §15 e 535, §§5º e 8º).” (grifou-se)

Como visto, há inúmeras situações processuais – como o julgamento liminar de improcedência (artigo 332), a tutela antecipada de evidência (artigo 311, inc. II), e as decisões monocráticas (artigo 932, inc. IV e V) – em que a existência de precedentes vinculantes poderá abreviar o trâmite processual e tornar a jurisdição mais eficiente. 106 BOOK.indb 106

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No que tange ao julgamento liminar de improcedência do pedido, por exemplo, é permitida a sua aplicação desde que embasada na existência de precedentes vinculantes, e desde que não seja necessária a produção de provas sobre os fatos alegados pelo autor, o que resultará na prolatação imediata da sentença, com a dispensa da citação do réu (CAVALCANTI, 2015, p. 469). Fenômeno análogo ocorrerá com o julgamento de demandas de massa embasadas em um precedente formado no âmbito do incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR, o que deverá contribuir para a razoável duração dos processos. O juiz, com respaldo no precedente, irá transpor ao julgamento do caso concreto a razão de decidir já assentada, podendo: a) julgar a demanda liminarmente improcedente, com base no art. 332, inc. III, do CPC/2015; ou b) conceder liminarmente a tutela de evidência, com espeque no art. 311, inc. II, quando as alegações de fato puderem ser comprovadas integralmente pela via documental.Tal sistemática, como se nota, abreviará a resolução do processo (STEINBERG, 2015, p. 563). A propósito, o enunciado 31 da ENFAM propõe que: “A concessão da tutela de evidência prevista no art. 311, II, do CPC/2015 independe do trânsito em julgado da decisão paradigma”. A aplicação dos precedentes vinculantes também contribui para combater uma péssima praxe solidificada em nosso direito, qual seja, a coexistência de julgamentos díspares para situações idênticas, em afronta à igualdade, imparcialidade e à segurança jurídica. De fato, o Poder Judiciário não pode ser reduzido à soma dos valores e opiniões individuais de seus membros, não se podendo olvidar que os juízes e tribunais fazem parte de um só sistema e Poder, o que caracteriza o aspecto institucional das decisões judiciais. O juiz não está submetido apenas à lei em abstrato, mas também à norma jurídica que os tribunais extraem da lei ao interpretá-la (MARINONI, 2015, p. 2073). O desafio do momento é a superação do individualismo nas decisões judiciais, avançando-se para um modelo mais institucionalista, obedecendo-se ao dever de autorreferência, ou seja, de um maior respeito aos precedentes. Só isso permitirá que os litigantes sejam tratados de forma isonômica, com maior previsibilidade e segurança jurídica (PEIXOTO, 2016, p. 311). O solipsismo (julgamento autocentrado, sem observância à doutrina e à jurisprudência), o panprincipiologismo (uso exacerbado de princípios, sem a fundamentação adequada) e o sistemático desrespeito aos precedentes, no Brasil, tem comprometido o próprio Estado de Direito, na medida em que as coisas passam a ocorrer como se houvesse várias leis regendo a mesma conduta, o que gera um clima de insegurança jurídica e ausência de previsibilidade (ATAÍDE JR., 2016, p. 323). Esse estado de coisas é o que Eduardo Cambi chamou de jurisprudência lotérica (CAMBI, 2001, p. 111). A jurisprudência lotérica afronta a coerência jurídica e a integridade do Direito, e deslegitima a prestação jurisdicional, uma vez que as normas são aplicadas de maneira diferente para casos similares. A isonomia só será cumprida quando situações análogas forem decididas da mesma maneira. Caso contrário, 107 BOOK.indb 107

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teremos imprevisibilidade, instabilidade e dificuldade do cidadão em saber como se portar em suas relações jurídicas (CAMBI; MARGRAF, 2016, p. 363). Os precedentes não são formados tão somente para a solução do caso concreto, mas sim de todos os casos em situação análoga, conferindo a todo o sistema, assim, um controle de racionalidade decorrente da regra de universalização (ZANETI JR., 2015, p. 353). O afastamento da regra de universalização deve ser feito apenas excepcionalmente, e tem que ser fortemente justificado. Aí que entra a ideia de uma argumentação qualificada, uma espécie de ônus argumentativo do órgão julgador para quando seja o caso de se apartar do precedente. Tal ônus não está presente quando seja o caso de seguir o precedente, hipótese em que a tarefa de fundamentação estará facilitada. Chaim Perelman leciona sobre o princípio da inércia, segundo o qual um precedente somente pode ser modificado se existirem razões suficientes, pesando em seu favor o ônus argumentativo. O princípio da inércia não é a principal justificação racional para o sistema de precedentes, cabendo tal lugar de destaque à regra de universalização, acima mencionada. A inércia vale apenas como ônus argumentativo, ou seja, a presunção a favor dos precedentes (ZANETI JR., 2015, p. 357). O princípio da inércia argumentativa é concretizado art. 489, §1º, incisos V e VI, do CPC/2015, cujo conteúdo consiste em dispensar de uma ampla argumentação o magistrado que, no julgamento de caso posterior, segue precedente firmado em caso análogo. Por outro lado, exige-se uma carga argumentativa qualificada ao magistrado que pretenda se afastar da ratio decidendi de precedente aplicável ao caso em julgamento. Exige-se do julgador uma fundamentação qualificada, com pesado ônus argumentativo, do qual se desincumbirá apenas se demonstrar superação (overruling) do precedente – o que só poderá ser feito pelo tribunal que formou o precedente ou por tribunal superior – ou a distinção (distinguishing) (ATAÍDE JR., 2016, p. 345). O juiz pode – e isso é desejável, sempre que possível – acrescentar novos argumentos para seguir o precedente, mas não desafiá-lo em sua ratio decidendi. As partes podem trazer argumentos novos na tentativa de superar o precedente – e isso costuma acontecer bastante nas demandas de massa – mas quem terá de enfrentá-los é somente e, se for o caso, o tribunal que criou o precedente. A superação, repita-se, só pode ser feita por quem criou o precedente ou por tribunal superior. O papel mais importante, nos casos de aplicação de precedentes, é verificar se é ou não o caso de distinção, essa sim uma atribuição de todos os magistrados que julgarem o feito, mesmo que não componham o órgão responsável pela formação do precedente (GOUVEIA; BREITENBACH, 2015, p. 513; PEIXOTO, 2015, p. 546). Portanto, a obrigatoriedade de obediência ao precedente isenta o juiz de responsabilidade pelo teor da decisão paradigma. O julgador, ao aplicar o precedente, pode, justificadamente, diminuir a carga de argumentação jurídica empregada no caso concreto. Como diz Frederick Schauer, o produto líquido disso será uma redução substancial no esforço decisório, e é precisamente aí que 108 BOOK.indb 108

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a eficiência pode justificar a adoção de um sistema de precedentes vinculantes (SCHAUER, 2015, p. 80). Além de evitar o retrabalho, a aplicação da ratio decidendi dos precedentes vinculantes possui, ainda, um outro fator positivo. Isso porque o costume atual dos tribunais, de sempre reenfrentar a mesma questão jurídica, leva a frequentes mudanças de entendimento, até pela tentação de cada novo julgador querer reexaminar a questão com sua própria ideologia (ATAÍDE JR., 2012, p. 136-8). Note-se que o juiz, embora não esteja autorizado a realizar a superação, poderá, sem sombra de dúvidas, influenciar a corte formadora do precedente por meio da técnica de ressalva de entendimento.Tal técnica consiste em curvar-se ao posicionamento cristalizado no precedente sem abrir mão de argumentar de acordo com o ponto de vista contrário, possibilitando ao tribunal, no momento adequado, realizar eventual superação. A propósito, colaciona-se o enunciado 172 do FPPC:“A decisão que aplica precedentes, com a ressalva de entendimento do julgador, não é contraditória”. Por fim, conclui-se que a paz social não se atinge por um utópico consenso em torno das decisões estatais, mas sim pela imunização contra os ataques dos contrariados, ou seja, os jurisdicionados precisam se conformar com a resposta dada pelo Poder Judiciário. Essa resignação se dá em virtude da obediência ao devido processo legal e à possibilidade de exaurimento de todas as instâncias, mesmo quando a decisão for contrária aos seus interesses imediatos (CAMBI; HELLMAN, 2015, p. 654). A imunização, portanto, ocorre no momento da fixação do precedente vinculante, ocasião em que contraditório deve ser ampliado, de modo a permitir ampla participação da sociedade nesse instante fundamental. Não caberá, assim, a rediscussão do precedente em casos futuros, pois o litígio em questão já se encontra imunizado.

CONCLUSÃO Conclui-se que o sistema de precedentes obrigatórios, se corretamente aplicado, representará, além da concretização da isonomia e de mais segurança jurídica na aplicação da norma – o que não foi o tema central deste ensaio –, uma prestação jurisdicional mais efetiva e uma redução no tempo de tramitação dos processos. Isso decorrerá, como visto, da racionalização do ônus argumentativo do juiz no momento do julgamento, com a transposição para o caso concreto da ratio decidendi contida no precedente. Com isso, economiza-se o tempo que o magistrado perderia enfrentando novamente toda a argumentação jurídica que já fora apreciada no momento de formação do precedente. Como doutrina Frederick Schauer, a subordinação aos precedentes acarreta uma padronização e uma estabilidade de decisões, e um consequente aumento da consistência interna do sistema jurisdicional, emprestando maior credibilidade ao Poder Judiciário, o que o fortalece como instituição (SCHAUER, 2015, p. 81). 109 BOOK.indb 109

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José Henrique Mouta Araújo, por sua vez, leciona que estamos diante de um caminho sem volta, qual seja, a otimização do tempo e das decisões dos tribunais, especialmente em matérias repetitivas, que geralmente envolvem litigantes habituais. A liberdade de criação dos juízes estará restringida nos casos análogos já julgados em precedentes vinculantes, estimulando-se a fundamentação per relationem. Há, neste sentido, a necessidade de ser repensado o próprio princípio da motivação judicial e, consequentemente, o papel do juiz e sua liberdade na criação e aplicação do direito (ARAÚJO, 2015, p. 431 e 435). Estamos cientes, entretanto, de que o pleno funcionamento do sistema de precedentes no Brasil deve demorar alguns anos, até que se modifique a cultura atual de formação e aplicação da jurisprudência das cortes judiciárias em nosso país.

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SALSICHAS, PÃES E MINISTROS: UMA REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE O PROCESSO DE ESCOLHA DOS MEMBROS DO STF

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George Marmelstein1

INTRODUÇÃO O presente texto, escrito para compor o livro de homenagem aos 45 anos da Associação dos Juízes Federal do Brasil - AJUFE, pretende analisar criticamente o processo de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Não posso, porém, deixar de registrar a importância da AJUFE como instituição responsável pelo aprimoramento da Justiça Federal brasileira. A busca de soluções normativas capazes de melhorar o funcionamento do Poder Judiciário merece sinceros elogios. A criação dos Juizados Especiais Federais, do processo eletrônico, do Conselho Nacional de Justiça são apenas alguns exemplos em que a atuação da AJUFE foi decisiva para a implementação de mudanças estruturais essenciais para o aprimoramento da justiça. É em grande parte motivado por este espírito de mudança e de aprimoramento institucional que se fará a análise sobre o processo de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal. A ideia é compreender o «funcionamento interno» do sistema atual de escolha para propor algumas mudanças a fim de tornar o processo mais rico, plural e democrático. Vejamos, primeiramente, como se faz um ministro.

1. COMO SE FAZ UM MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Tornar-se ministro do STF é relativamente fácil do ponto de vista das exigências constitucionais. À luz do modelo da Constituição Federal de 1988, basta ser brasileiro nato, possuir entre 35 e 65 anos, notório saber jurídico, reputação ilibada e ter a sorte de cair nas graças do(a) Presidente da República. 1

Juiz Federal da 3a Vara Federal/CE; doutor em direito pela Universidade de Coimbra, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Ceará, professor de direito da UNI7 - Centro Universitário 7 de Setembro. Email: georgemlima@yahoo.com.br

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O notório saber jurídico e a reputação ilibada não possuem uma definição precisa. Na prática, não se trata de uma exigência rigorosa. A ausência de títulos acadêmicos ou a condenação não-definitiva em eventuais improbidades administrativas ou ações criminais não têm sido suficientes para descaracterizá-los. Com isso, o notório saber jurídico e a reputação ilibada acaba sendo um chavão genérico que abrange praticamente qualquer pessoa que tenha um diploma de bacharel em direito, embora, a rigor, sequer seja necessário que a pessoa seja formada em direito. Por sua vez, a indicação pelo Presidente da República é essencialmente política, sendo comum serem indicadas pessoas que possuem compromisso pessoal ou mesmo profissional com o titular do poder executivo. A sabatina no Senado pode ser considerada, na prática, como uma exigência meramente simbólica, funcionando mais como um constrangimento prévio do que propriamente como um processo de censura posterior. Em geral, quando o candidato tende a ser rejeitado sequer é indicado. A indicação tende a ser precedida de um compromisso político prévio com senadores influentes a fim de garantir a aprovação do nome pelo plenário do Senado. Caso o potencial candidato seja aprovado na sabatina, passará a ocupar o posto máximo do Judiciário brasileiro. Nesse jogo aleatório, às vezes surgem excelentes nomes, embora o oposto também possa ocorrer. Esse processo de escolha foi praticamente copiado do modelo norte-americano desde a Proclamação da República. Já na Exposição de Motivos do Decreto 848/1890, apresentada pelo então Ministro Campos Salles, que instituiu a Justiça Federal, havia uma explícita indicação que o sistema de justiça seria inspirado no modelo estadunidense. Porém, o mecanismo de escolha de juízes nos Estados Unidos seguiu uma tradição bem diferente, com muito mais controle social. Como há alternância política constante entre dois grupos políticos (os Democratas e os Republicanos), há uma tendência de haver um equilíbrio ideológico decorrente de um processo natural de pesos e contra pesos. Toda indicação é tratada como um evento de suma importância para a nação. Há um amplo debate na véspera da nomeação e toda a população conhece de antemão o perfil dos potenciais indicados. No caso brasileiro, o processo de escolha é um processo essencialmente de bastidores, que segue a lógica da fabricação das salsichas: é melhor não saber como são feitas. Na prática, o que se têm são potenciais candidatos que se engajam na conquista de apoio político capaz de fortalecer o seu nome, e trabalham junto a parlamentares, membros do governo, ministros, governadores para tentar convencê-los a apoiar sua indicação. Muitas vezes, a população de um modo geral sequer sabe quem são esses potenciais candidatos, nem seus apoiadores, a não ser por meio de conversas de corredor, de forma especulativa. No percurso até a indicação, o candidato precisa assumir alguns compromissos políticos que podem afetar sensivelmente a sua futura independência. Veja-se, por exemplo, o processo de escolha de um ministro do STJ para a vaga de advogado, que é diferente do processo de escolha de um ministro do STF, 114 BOOK.indb 114

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mas também envolve a formação de diversas alianças. Numa primeira etapa, o candidato há de angariar o apoio de seus pares para conseguir ingressar na lista sêxtupla elaborada pela OAB. Após a lista sêxtupla, o candidato submete-se ao crivo nada transparente da lista tríplice elaborada pelos ministros do STJ. Aqui, o candidato terá que escolher um dos grupos que dividem o STJ, a fim de conquistar a maior soma de votos possíveis. Depois, há o processo político propriamente dito, em que o candidato terá que obter a simpatia do governo (e dos políticos da base do governo). Em cada uma dessas etapas, são firmados diversos acordos de cavalheiros, cuja fatura poderá ser cobrada na hora devida. O resto é intuitivo. Em função do aumento de poder provocado pela ascensão da jurisdição constitucional, tem-se percebido, ao mesmo tempo, um aumento da cobiça política pelos cargos judiciais e a respectiva captura dos juízes constitucionais pelos grupos de poder. Dito de modo mais claro: há um perigo concreto de aparelhamento político, econômico e ideológico dos postos estratégicos do poder judiciário e, com isso, os julgadores também passarão a adquirir algumas características próprias do ambiente político. Grupos de interesse, para vencerem a disputa judicial, passarão a ambicionar cargos no judiciário e lutarão para os preencherem com aqueles que se identificam com a sua ideologia e estejam dispostos a decidirem conforme sua vontade. Afinal, como sugeriu Beard, “if five lawyers can negative the will of 100,000,000 of men, then the art of government is reduced to the selection of those five lawyers”2. Com o passar do tempo, isso certamente acarretará a politização da juridicidade3: os próprios juízes tornar-se-ão partidários ou defensores de ideologias específicas e usarão todas as artimanhas do jogo político para vencerem uma discussão. Caso isso venha a ocorrer, a solução dos problemas jurídicos passará a ser obtida não com base nas razões que melhor espelhem a ideia de direito (fundada em princípios), mas sim pela conformação do grupo politicamente mais fraco, que terá que conceder em alguns pontos, ainda que seus argumentos sejam melhores, exatamente como ocorre no meio político-partidário.Assim, a suposta “independência e imparcialidade” e a busca de uma intencionalidade de justeza das decisões, que eram as notas características do judiciário e o que dava uma suposta vantagem qualitativa em relação aos demais poderes, desapareceriam e, uma vez ocorrendo isso, a jurisdição perderia toda a sua razão de ser, já que teria se tornado tão cheia de vícios quanto as instituições políticas que ela se propõe a controlar. A influência política no processo de escolha poderá desestimular os melhores candidatos ao posto, que se sentirão constrangidos a participarem BEARD, Charles. The Supreme Court and The Constitution. Nova Iorque: Macmillan, 1912, p. 6. 3 A expressão é de Castanheira Neves, que certamente incluiria o fenômeno dentro do que ele chama de funcionalismo político, onde o direito perderia a sua autonomia intencional para assumir uma instrumentalidade política, seja nos critérios e objetivos, seja na função e fundamentos. A perspectiva jurisprudencialista defendida por Castanheira Neves critica fortemente o funcionalismo político, por retirar do direito todo o seu sentido ético. 2

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do jogo de bastidores que costuma estar por trás das nomeações4. Afinal, em um modelo institucional (tal qual o brasileiro) onde o que mais conta para ser nomeado a um alto cargo do judiciário é o “capital político”, é óbvio que aqueles que possuem mais “afinidades” com os que estão no poder terão mais chances de ser indicados5. E essas “afinidades”, numa perspectiva realista, não consistem apenas em admiração intelectual pelo notório saber do candidato, mas sim nos compromissos que o futuro magistrado estará disposto a honrar. Com isso, o acesso aos mais relevantes cargos judiciais, aqueles que justamente terão a “última palavra” sobre as matérias mais importantes, torna-se um jogo sujo que poucas pessoas virtuosas estão dispostas a enfrentar. Nessa jornada “rumo ao poder”, os idealistas “fracos” e “ingênuos” ficam pelo caminho, encerrando suas pretensões precocemente. Por outro lado, aqueles que estão dispostos a tudo para alçar vôos mais altos não terão qualquer pudor em usar a sua carreira para realizar suas ambições. Para esses magistrados, a meta não é bem julgar, nem mesmo construir uma história de vida, nem serem reconhecidos pelas virtudes de independência, imparcialidade e equidade tão caras à judicatura. Alcançar o poder já é o ponto de chegada, e uma vez alcançado o objetivo, só resta aproveitar a situação. Não se está aqui lançando nenhuma crítica individual a qualquer pessoa em particular, mas sim ao sistema de indicação como um todo, que tende a favorecer os mais ambiciosos e politicamente engajados6. A esse respeito, Hayek, Ressalte-se que essa crítica não se aplica, no modelo brasileiro, aos juízes de primeira instância, cuja nomeação independe de fatores políticos, já que decorre de um concurso público de provas e títulos. Mesmo havendo vários problemas nesse processo seletivo, não se pode questionar que a investidura mediante concurso público garante uma maior independência funcional do que a investidura mediante nomeação política. Isso não nos impede de reconhecer problemas na carreira – como as promoções por merecimento, para ficar apenas com um ponto menos polêmico – que podem gerar uma fissura na independência judicial. Também não nos impede de reconhecer que até mesmo o modelo de concurso tem um seu viés elitista (e excludente), sobretudo quando se sabe que, para alcançar êxito, não basta apenas ter talento, mas também tempo para desenvolver a habilidade necessária a dominar as técnicas de avaliação. Esse tempo é tanto mais bem aproveitado quanto maior for a capacidade de investimento em educação específica (cursos preparatórios), compra de livros e tranquilidade material e psicológica para realizar um bom teste, o que demanda não apenas esforço intelectual, mas também disponibilidade econômica. 5 De acordo com o artigo 101, da CF/88, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal são “escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”. A escolha compete ao Presidente da República, devendo o candidato ser submetido a uma sabatina prévia no Senado Federal. 6 A crítica não é pontual, nem específica, mas sistemática. Confira-se, a esse respeito, uma descrição do processo de nomeação dos juízes seccionais no início do século XX, quando ainda não havia concurso público para a magistratura de primeira instância: “Os juízes seccionais eram nomeados pelo presidente da República a partir de lista tríplice elaborada pelo STF. O processo de nomeação dos juízes seccionais abria um campo de negociação entre as oligarquias estaduais, o presidente da República e os ministros do STF. A escolha do candidato pelo presidente era parte do compromisso da Política dos Governadores, pela qual a oligarquia dominante no estado controlava os cargos federais. (...) Após a entrada em vigor da Constituição, os juízes seccionais passaram a ser nomeados pelo presidente da República a partir de lista tríplice elaborada pelo STF. O processo de nomeação era basicamente o 4

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no seu “The Road to Serfdom”, já alertava que, em regimes pouco democráticos e que valorizam o aspecto político no preenchimento dos cargos públicos, os mais descarados e os pouco escrupulosos tendem a ser bem-sucedidos, pois são capazes de tudo, inclusive a renunciarem a seus princípios éticos, para agradarem aos que estão no poder. Os mais independentes, com fortes convicções morais e dispostos a enfrentar os poderosos em nome de seus ideais, dificilmente serão atraídos para as posições estratégicas, pois não estão dispostos a fazer coisas contrárias à sua consciência para se promoverem7. É claro que esse processo, além de afastar de antemão excelentes nomes da disputa, pode tornar os potenciais candidatos (isto é, aqueles que estão dispostos a aceitar as regras desse sistema) reféns de um jogo de poder totalmente incompatível com os valores éticos que hão de pautar a atuação jurisdicional, sobretudo a independência. Mas o pior de tudo é que todo o processo se desenvolve em função dos humores daqueles que participam do processo de escolha, à margem de qualquer controle popular. Problemas jurídicos de alta relevância social serão decididos por pessoas que a maioria da população sequer conhece e não faz a menor ideia de como chegaram ali. seguinte: aberta a vaga, o presidente da República comunicava ao presidente do STF, que publicava edital nos principais jornais do país. O prazo para as inscrições era de trinta dias, a partir dos quais era sorteada uma comissão de três ministros para examinar os documentos e classificar os candidatos. A classificação era votada secretamente no STF e o presidente do STF encaminhava a lista com os nomes dos três candidatos mais votados para o presidente da República, que nomearia um deles. As listas elaboradas pelo STF eram criticadas pela imprensa, porque eram colocados os dois candidatos mais qualificados, mas também o candidato indicado pela oligarquia dominante do estado, o qual era nomeado. (...) Ao controle das nomeações pelas oligarquias estaduais, como parte da Política dos Governadores, somavam-se a organização bastante precária dos juízes seccionais e restrições impostas legalmente ao seu papel de servirem de garantia aos direitos políticos, enquanto intérpretes da Constituição. Assim, se algum juiz seccional tivesse a veleidade de afrontar alguma das oligarquias estaduais sem o apoio de outra, ou do governo federal, sua ação seria inútil, devido à ausência de meios materiais com que pudesse contar para efetivá-la. Além disso, os seus suplentes, leigos e sem remuneração, eram nomeados pelo presidente, a partir da indicação das próprias oligarquias, o que garantia a ineficácia da ação da Justiça Federal no interior do país (KOERNER, Andrei. O Poder Judiciário no Sistema Político da Primeira República. In: Revista da USP n. 21, São Paulo: USP, 1994, pp. 58/69). No contexto brasileiro contemporâneo, há uma peculiaridade que agrava ainda mais o problema: não existe uma mobilização social em torno da indicação de um membro do Supremo Tribunal Federal, muito menos dos tribunais superiores. Em regra, o processo de escolha ocorre nos bastidores do poder, seguindo a lógica da fabricação das salsichas (“Laws, like sausages, cease to inspire respect in proportion as we know how they are made”, citação atribuída a John Godfrey Saxe). Até mesmo a sabatina do candidato no Senado Federal, que deveria ser o momento de questionamento crítico da indicação e de aferição das qualidades éticas e intelectuais do candidato, não passa de um procedimento simbólico, como um acordo de cavalheiros, sem qualquer função efetiva de controle. Para mudar esse quadro, seria preciso realizar reformar estruturais radicais no modelo existente a fim de diminuir a influência política e econômica nas nomeações e, por conseguinte, nas deliberações judiciais. Isso implica uma mudança radical do sistema de escolha de ministros e na estrutura judicial como um todo, desde a base até a cúpula, o que está longe de ser factível. 7 HAYEK, Friedrich. A Caminho da Servidão (The Road to Serfdom, 1944). Trad: Marcelino Amaral. Lisboa: Edições 70, 2009, especialmente capítulo 10 (“Porque os piores estão no topo”), pp. 169/187.

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A não-eletividade dos membros do Judiciário pode ser considerada, de certo modo, como uma virtude da atividade jurisdicional.Afinal, seria desastroso para o direito se as decisões judiciais fossem tomadas para agradar os eventuais eleitores dos juízes. Por isso, em um Estado de Direito, espera-se que os juízes decidam com imparcialidade e independência, o que significa garantir um ambiente de deliberação livre de qualquer pressão político-eleitoral. Porém, a não-eletividade não deveria significar a total ausência de participação popular no processo de escolha. Ao povo interessa e muito saber quem serão os membros do Poder Judiciário, sobretudo em uma realidade como a nossa, onde, em nome da “guarda da Constituição”, tem havido uma transferência do centro decisório de inúmeras questões sensíveis para os órgãos judiciais de cúpula. Mas como deveria ser um processo de escolha mais democrático? Antes de responder a essa pergunta, é importante traçar algumas linhas gerais sobre o papel do juiz no modelo constitucional contemporâneo.

2. O PAPEL DO JUIZ NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO O poder judiciário tem assumido para si a tarefa de concretizar a constituição. Sob o argumento de que está agindo em nome da constituição, em favor da proteção de direitos ou da concretização de princípios, tem exercido, consciente e deliberadamente, uma função muito diferente daquela imaginada pelos pensadores iluministas, deixando de ser apenas a “boca da lei” (“bouche de la loi”) para se tornar um agente ativo e central no processo de realização do direito, mais especificamente dos direitos fundamentais. O juiz garantidor dos direitos, nesse sentido, exerce uma função catalisadora das aspirações constitucionais e constitutiva do direito vivo, usando seu poder decisório não apenas para eliminar do sistema jurídico aqueles critérios normativos incompatíveis com a constituição, mas também para densificar e dar concretização a certos princípios que emanam das declarações de direitos fundamentais8. E assim age independentemente de qualquer autorização legislativa, invocando sua autoridade diretamente da constituição. É possível identificar algumas consequências práticas causadas por essa ascensão do constitucionalismo: (a) em primeiro lugar, ocorreu uma clara redução do grau de vinculação dos juízes à lei, uma vez que as próprias leis passaram a ser “julgadas” “à luz da Constituição”, tanto sob os seus aspectos Nesse sentido, Ricardo Guastini sugere que os juízes constitucionais criam direito em pelo menos de três formas: (a) invalidando as normas inconstitucionais (mediante as “sentenze ‘di accoglimento’); (b) eliminando interpretações incompatíveis com a constituição (mediante as “sentenze ‘interpretative di accoglimento’); (c) acrescentando ao ordenamento novos critérios normativos ou substituindo os critérios normativos existentes por novos critérios (mediante as “sentenze ‘additive’ e ‘sotitutive’”, respectivamente). V. GUASTINI, Ricardo. Se I Giudici Creino Diritto. In: FERRER MAC-GREGOR, Eduardo & LARREA, Arturo Zaldívar Lelo de (coord.). La Ciencia Del Derecho Procesal Constitucional. México: Marcial Pons, 2008, pp. 169/180.

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formais, quanto sob seus aspectos ético-materiais (conformidade aos princípios) e racionais (proporcionalidade); (b) em segundo lugar, houve uma abertura dos critérios de julgamento, possibilitando que os juízes justifiquem suas decisões com argumentos produzidos por outros campos que não a legislação, podendo invocar princípios axiológicos, argumentos de razão prática, de filosofia moral etc., pois, na busca dos significados vagos contidos nas frases constitucionais, os juristas precisam, de fato, olhar além da constituição9; (c) em terceiro lugar e como consequência direta da ideia acima, operou-se uma diminuição do papel do órgão legislativo como órgão de soberania popular (“crepúsculo da legislação”) e um aumento da esfera de atuação da jurisdição constitucional (“ascensão do constitucionalismo10”), a quem foi conferido um amplo poder normativo-constitutivo11; (d) por fim, houve um aumento da importância da argumentação na solução dos problemas jurídicos, uma vez que se passou a exigir dos juízes um nível muito mais elevado de justificação de suas decisões, especialmente daquelas que se afastem da orientação legislativa ou que se baseiem em normas constitucionais muito vagas12. A mais óbvia discussão acadêmica que esse fenômeno poderia levantar é, sem dúvida, sobre a legitimidade democrática dos juízes para decidirem “…in spelling out the meaning of vague constitutional phrases, justices must indeed look beyond the Constitution” (TRIBE, Laurence & DORF, Michel. On Reading the Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 69). 10 ACKERMAN, Bruce. The Rise of World Constitutionalism (1996). In: Occasional Papers. Paper 4. Disponível em: http://tinyurl.com/422ugo8 (Consultado em 21/5/2010). 11 Certamente, ainda existem algumas áreas do direito em que prevalece uma forte idéia de reserva de legislação, especialmente naqueles temas tradicionalmente submetidos ao princípio da legalidade estrita, como o direito penal ou o direito tributário. Nessas zonas, a lei continua a exercer a importante função de limitar juridicamente o poder político potencialmente abusivo. Em princípio, não cabe à jurisdição constitucional tipificar crimes ou criar tributos, por exemplo. Isso seria uma clara afronta à reserva legal. Mesmo aqueles que defendem a jurisdição constitucional entendem que o máximo que os juízes constitucionais podem fazer é determinar que o parlamento proteja um determinado bem, ainda que, para isso, tenha que tipificar condutas criminosas (p. ex.: caso Aborto I, na Alemanha). Porém, é muito mais pacífico aceitar que a jurisdição constitucional pode servir como barreira de proteção do cidadão contra o estado, mesmo em matéria penal ou tributária. Desse modo, ainda que os juízes constitucionais não possam ampliar o rol de condutas passíveis de sanção criminal ou então estabelecer novas hipóteses de incidência tributária, certamente podem declarar a inconstitucionalidade de leis criminais ou fiscais que exorbitem as garantias constitucionais. No Brasil, em matéria fiscal, é muito freqüente esse fenômeno (do reconhecimento da inconstitucionalidade de leis tributárias). Também é possível citar casos no mundo todo em que determinados tipos penais foram declarados incompatíveis com os direitos fundamentais e, portanto, foram “descriminalizados” na via judicial. A descriminalização, por juízes constitucionais, do homossexualismo ou do consumo de pequenas quantidades de drogas é uma demonstração desse fenômeno. 12 O fato de se exigir dos julgadores um maior dever de consistência e coerência argumentativa não significa, obviamente, defender que houve necessariamente uma melhora no nível dos debates forenses. Uma das críticas a serem desenvolvidas ao longo deste trabalho refere-se precisamente à baixa carga argumentativa de determinadas decisões envolvendo direitos fundamentais (Capítulo 4). 9

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questões tão sensíveis13. Afinal, por que assuntos tão relevantes para a sociedade, que interferirão no destino de milhares de pessoas, estão sendo julgados por um punhado de indivíduos, vestidos com suas togas pretas, que, por incrível que pareça, não estão ocupando seus cargos por escolha popular? O que dá aos “juízes constitucionais” o direito de terem a palavra decisiva em temas tão importantes, podendo até mesmo invalidar as escolhas políticas tomadas pelos demais poderes? O que faz com que a vontade de uns poucos seres “iluminados” tenha mais força do que a vontade dos parlamentares ou dos governantes eleitos pelo povo ou até mesmo do próprio povo? Qual deve ser o papel da jurisdição constitucional em um estado de direito que leva a sério a democracia e o princípio de autolegislação que a fundamenta? A discussão acerca da legitimidade democrática da jurisdição tem sido um tema central na filosofia política contemporânea e é, de fato, um tema instigante e, ao mesmo tempo, constrangedor, pois coloca em xeque o próprio fundamento da democracia ou, pelo menos, do princípio majoritário que lhe dá suporte, bem como da própria concepção clássica da separação de poderes, desenvolvida pelos pensadores iluministas, que, há mais de trezentos anos, tem sido a base do chamado “estado democrático de direito”. Uma das questões que circundam esse debate é justamente o processo de escolha dos juízes constitucionais. No tópico seguinte, serão apresentadas, de um modo sintético, algumas propostas de mudanças e de aprimoramento do sistema atual.

3. ALGUMAS PROPOSTAS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO PROCESSO ESCOLHA É difícil estabelecer um modelo ideal de escolha de ministros da alta cúpula do Judiciário, sobretudo pela existência de inúmeras possibilidades e experiências existentes pelo mundo afora. Como ponto de partida, parece interessante um modelo “multiportas”, ou seja, um modelo em que existam vários caminhos de acesso e não apenas a via política, em que a via-crúcis a ser percorrida passa pelo constante beija-mão de inúmeras autoridades constituídas (muitas delas a serem julgadas pelo potencial candidato futuramente!). Um sistema de múltiplas portas pressuporia algumas instituições-chave que teriam cadeira cativa na Suprema Corte: universidades, advocacia, câmara dos deputados, senado federal, presidência da república, representações da sociedade civil. O ideal é que fosse um sistema de entrada plural e diversificado, que representasse muitos setores da sociedade brasileira. Em cada uma dessas vias de acesso, há de ser previsto um processo aberto à participação popular. Essa participação não precisa ocorrer necessariamente pela via eleitoral. Aliás, talvez seja possível ampliar a participação popular nesse processo independentemente de qualquer mudança constitucional específica, A palavra legitimidade está sendo utilizada aqui para se referir ao grau de respeito, confiança, aceitação e aprovação que a sociedade sente em relação ao exercício do poder heterônomo.

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embora também seja possível imaginar vários melhoramentos no sistema atual que precisariam de alteração na ordem constitucional. Por exemplo, para citar algumas propostas que precisariam de mudança constitucional, poder-se-ia estabelecer uma maior representatividade e pluralidade na composição dos tribunais, prevendo-se a participação de não-juristas, de variados setores da sociedade (acadêmicos, médicos, economistas, engenheiros, ambientalistas, jornalistas etc) capazes de enriquecer os debates. O sistema de mandato também seria uma boa solução, sobretudo para eliminar o sentimento de apropriação e perpetuação do poder que a vitaliciedade provoca. Do mesmo modo, o incremento da democracia interna traria novos ares ao Judiciário, possibilitando que os membros da base participem dos rumos da instituição, inclusive da escolha dos órgãos dirigentes, o que traria um maior engajamento coletivo em favor da causa da justiça. Enfim, a criatividade é o limite quando se está conjecturando mudanças na Constituição. Porém, para além de mudanças constitucionais formais, é possível também imaginar algumas mudanças culturais que poderiam ser implementadas desde já, sem a necessidade de qualquer emenda constitucional. Em primeiro lugar, seria preciso lançar luzes nesse processo de escolha, retirando-o da obscuridade que circunda os bastidores do poder. Os nomes dos “indicáveis” devem vir à tona antes da indicação. Ou seja, o Executivo deveria, de algum modo, apresentar uma lista de possíveis candidatos ao público para que tais nomes possam ser submetidos a algum tipo de controle popular. Os candidatos convidados, a partir daí, participariam de debates em universidades, entrevistas em programas de televisão, visitas a instituições públicas e privadas, sempre no intuito de se apresentarem à população. Certamente, tal participação popular não seria capaz de gerar qualquer tipo de obrigação forte para o Executivo, que ainda teria a liberdade de indicar aquele que mais agrada ao governo. Porém, não há dúvida de que alguns constrangimentos podem surgir dessa abertura, o que será bastante saudável para a democracia. Além disso, é fundamental pensar em um modelo de sabatina no Senado mais efetivo e mais próximo da sociedade. Com um nome já escolhido pela Presidência da República, o Senado deveria assumir um papel ativo no intuito de ampliar a participação popular no processo de escolha. A realização de audiências públicas com o candidato em diferentes centros urbanos, respondendo perguntas formuladas não só por parlamentares, mas também por membros da sociedade civil, certamente poderia ampliar a sensação de participação popular, ainda que timidamente. O candidato deveria ser compelido a expor suas ideias em alguns pontos de interesse público, permitindo uma comparação com a sua futura atuação jurisdicional. Afora isso, o candidato deveria ser estimulado a apresentar o nome dos seus apoiadores, a fim de que se possa verificar se a atividade jurisdicional será usada para beneficiá-los. Os autos do processo de indicação deveria ser acessível ao público, a fim de que todos possam consultá-lo e analisar quem formalizou apoio ao candidato. Enfim, como diria Brandeis, quando o poder está em jogo, a luz do sol continua sendo o melhor desinfetante. 121 BOOK.indb 121

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CONCLUSÃO O que se infere de tudo o que foi dito é que o modelo atual de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal e de outros tribunais não é adequado. Trata-se, em verdade, de um processo viciado, onde há um risco para a independência judicial, uma grande ingerência política e econômica no processo de indicação e uma eliminação de bons candidatos que preferem não entrar no jogo das disputas de poder. Mais grave ainda: é um processo com praticamente nenhum tipo de participação popular, nem mesmo em um mero nível de controle social. Ou seja, o modelo atual precisa ser mudado para possibilitar um maior controle popular nesse processo de indicação dos membros do Poder Judiciário. Não queremos que a escolha de um ministro seja como o processo de fabricação de salsichas. Melhor que seja como a fabricação de pães, feita pelo povo ou, pelo menos, acompanhada pelo povo. Afinal, se a justiça é o pão do povo, como já anunciava Brecht, quem deve prepará-lo é povo. E o pão há de ser “bastante, saudável diário”.

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A CONCILIAÇÃO COMO FORMA CONSENSUAL DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS E DE ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA E EFETIVA

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Gustavo Catunda Mendes

INTRODUÇÃO A partir da evolução que tem se observado nas relações socioeconômicas, com a intensificação dos contatos interpessoais e as novas formas de contratação comercial, tem sido cada vez mais frequente a procura dos cidadãos pelo Poder Judiciário, para através de ações judiciais diversas verem seus direitos e garantias restabelecidos, concretizados ou mesmo preservados mediante atuação do Estado-juiz. Ocorre que, em razão da maior conscientização da população, do constante estímulo para que haja a afirmação da cidadania, bem como das maiores facilidades proporcionadas pelos benefícios da assistência judiciária gratuita e pelas causas repetitivas, o aumento da propositura de ações judiciais tem provocado sério congestionamento de processos, vindo a desvelar a denominada crise do Poder Judiciário. E, diante dos problemas relativos ao acesso à justiça, sobretudo decorrentes do alto custo dos processos judiciais para as partes e para o Estado, do formalismo excessivo e do longo tempo para se terminar uma ação judicial, tem se sobressaído com destaque os meios consensuais de resolução de conflitos, tais como a conciliação, como forma de se efetivar a pacificação social sem que haja necessariamente a provocação do Estado-juiz. Através dos meios de resolução de controvérsias classificados como autocompositivos, dentre os quais a conciliação, as próprias partes propõem formas de resolução de suas divergências ou constroem elas mesmas a solução que melhor atenda aos interesses contrapostos. Diferenciam-se os métodos autocompositivos, tais como a conciliação e a mediação, dos heterocompositivos, em que já existe a atuação de um terceiro a impor a solução do conflito entre as partes, como se observa na arbitragem e no exercício da jurisdição. 123 BOOK.indb 123

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No Brasil, a solução pacífica dos conflitos está prevista no preâmbulo da Constituição Federal e constitui princípio republicano nas relações internacionais. A conciliação encontra referência expressa no ordenamento jurídico a partir da Constituição Federal, do Código de Processo Civil, Código Civil, Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, legislação correlata e normas do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Para que de fato os meios consensuais de resolução de conflitos alcancem a efetividade que se necessita e que se espera, faz-se necessária verdadeira mudança da cultura do litígio para a cultura das formas alternativas de solução de controvérsias, como a conciliação. De fato, a maior transformação para que seja alcançada a efetiva pacificação dos conflitos deve passar necessariamente pela mudança de cultura sociedade em geral, ou seja, pela mudança da cultura da litigiosidade para a cultura dos meios consensuais de solução de conflitos. E, no propósito de que os métodos não adversariais passem a ser mais utilizados e acreditados não se faz suficiente a implementação de normas no ordenamento jurídico que as regulamentem, mas sobretudo a maior conscientização da população acerca dos benefícios da conciliação como forma de se alcançar a pacificação social pelas próprias partes, em menor custo, menos formalidades e dentro de um tempo razoável. Com efeito, tem sido geral e recorrente o incentivo aos métodos consensuais de solução de conflitos, seja previamente à instauração do processo judicial (extraprocessual) ou em seu curso (endoprocessual), inclusive como via de acesso da população à ordem jurídica justa, célere e efetiva, e também como forma de desobstrução do Poder Judiciário. E os meios não adversariais de solução de controvérsias tem sido uma realidade sobretudo em países estrangeiros, que há tempos tiveram que enfrentar os malefícios de um Poder Judiciário abarrotado e ineficiente à função precípua a que se destina, qual seja, a de resolver efetivamente os conflitos para se atingir a pacificação social. A propósito, dispõe a Carta das Nações Unidas, de 1945, no sentido de que os meios pacíficos devem ser utilizados de forma prioritária pelos Estados para que sejam resolvidas suas controvérsias, sobretudo para que “não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais” (artigo 2º, item 3). Assim, diante da problemática que envolve a resolução dos conflitos de forma célere e efetiva somente através do Poder Judiciário, a conciliação, como forma consensual de solução de disputas, vem propor uma modificação de cenário, para que os interesses em conflito não continuem a ser enfrentados somente como uma questão de ordem pública e um problema a ser resolvido pelo Estado-juiz, mas sobretudo como uma questão social que deve ser tratada a partir de meios efetivos de solução e da participação ativa das partes contrapostas, sobretudo para a verdadeira manutenção da paz na sociedade. 124 BOOK.indb 124

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1. O PROBLEMA DO ACESSO À JUSTIÇA E A CONCILIAÇÃO COMO FORMA CONSENSUAL DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Os conflitos fazem parte da história da humanidade desde o início dos tempos, sendo fenômeno sociológico tanto nas relações familiares quanto nas relações sociais. No Brasil, o acesso ao Poder Judiciário para se procurar resolver as controvérsias através de ações judiciais é frequente e cada vez mais comum entre a população, não sendo a utilização das formas consensuais de resolução de conflitos um costume. A realização da justiça tem a sua origem na esfera da vida privada, tendo o Estado aos poucos se apropriado dessa atividade, disseminando a ideia de ser a prestação jurisdicional seu monopólio. Contudo, a utilização das denominadas formas consensuais de solução de conflitos no sistema judicial brasileiro já conta com algum tempo, havendo previsão legal para sua utilização desde a Constituição do Império. E as denominadas formas alternativas de solução de conflito, ou Alternative Dispute Resolution (ADR), ou ainda Métodos Alternativos de Solução de Conflitos (MASC), tiveram sua importância elevada justamente a partir da chamada crise do processo, que tem atraído a atenção de diversos países e tem motivado investimentos e o estímulo para maior utilização de maneiras autocompositivas de solução de conflitos, sobretudo no propósito do desafogamento do Poder Judiciário. A respeito do surgimento das formas de resolução de controvérsias alternativas à via jurisdicional, ante a crise da legislação e da máquina estatal, podendo inclusive representar uma justiça mais humana e mais acessível, assevera Mauro Cappelletti que: É esta reação contra o mito da onipotência e onipresença da lei e contra o gigantismo do-aparelho de Estado, o que tem estimulado o surgimento deste novo fenômeno de uma justiça deslegalizada, conciliativa, deprofissionalizada e descentralizada, que também é, ou pode ser, aos olhos de muitos uma justiça mais humana e mais acessível (...). (CAPPELLETTI, Mauro. In Rivista Trimistrale di Diritto e Procedura Civile – v. 35 – n. 1. Appunti su conciliatore e conciliazione. Itália: Milano: Giuffre, 198, p. 55 - Tradução: Disponível em: <https://translate.google.com.br/#it/pt>. Acesso em: 14/07/2017).

Muito tem se discutido acerca do acesso à justiça e da celeridade e eficiência da prestação jurisdicional, principalmente com o advento da chamada reforma do Judiciário, inserida no ordenamento jurídico nacional pela Emenda Constitucional nº 45/2004. A partir das normas que se encontram previstas no ordenamento jurídico brasileiro, é possível se verificar a constante preocupação do constituinte e do legislador em dispor ao cidadão direitos e garantias voltados para o exercício de seu direito de ação. 125 BOOK.indb 125

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Na Constituição Federal de 1988, na legislação ordinária e mesmo em disposições infralegais e súmulas de jurisprudência emanadas dos Tribunais pátrios, infere-se o arcabouço normativo de que dispõe a sociedade brasileira para que seus direitos sejam preservados, reconhecidos ou mesmo restabelecidos através da provocação da atividade jurisdicional prestada pelo Poder Judiciário. Sobretudo em virtude do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal — segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” —, têm sido cada vez mais recorrentes os casos em que a concretização de direitos, a solução de controvérsias e a definição de condutas são objeto de litígios submetidos à apreciação e julgamento pelo Poder Judiciário. É certo que a pacificação social constitui objetivo superior que se visa alcançar através da atuação do Poder Judiciário, que, no exercício da jurisdição que lhe compete e mediante a evolução da marcha processual e suas formalidades, possui como função precípua a resolução de controvérsias e a aplicação do direito. Ocorre que, não obstante o Poder Judiciário tenha dentre os fundamentos legitimadores de sua existência e atuação, inclusive, a pacificação social, tem sido crescente na sociedade a consciência de que tal propósito não é alcançável, nem se faz presente, tão somente por intermédio de sentenças, que, muitas vezes, são proferidas após longas e desgastantes batalhas judiciais. Por tais razões, os institutos cooperativos como a conciliação têm crescentemente se revelado mecanismo de solução de controvérsias hábil e efetivo a conferir às partes aquilo que de fato almejam quando do ingresso em Juízo: seu direito reconhecido ou mesmo seu caso definitivamente resolvido. A conciliação consiste em um ato em que dois ou mais sujeitos colocam termo a uma controvérsia de forma consensual. Exige-se na conciliação que as partes tenham uma postura ativa e participem da elaboração da melhor solução para o conflito instalado, de modo que sejam atingidos interesses em comum e estabelecidas formas de se equalizar as diferenças entre os envolvidos. Na conciliação, de fato se permite que os sujeitos em inicial disputa encontrem um denominador comum, podendo contar com a atuação de um agente externo. O conciliador terá por missão aproximar as partes, prestar informações e elucidar sobre as condições e os reflexos do compromisso a ser assumido, não detendo poder de impor determinada solução de forma coercitiva. Trata-se a conciliação de método não adversarial de resolução de controvérsias, em que as partes agem em colaboração e no objetivo comum de se encontrar a melhor forma de ser resolvida certa controvérsia, não obstante sejam apresentados os interesses contrapostos, mas com a disponibilidade de se encontrar o ponto de equilíbrio entre as posições inicialmente defendidas. A conciliação possui previsão no ordenamento jurídico brasileiro, com ampla aplicabilidade nas diversas fases do processo judicial, podendo ocorrer previamente ao ajuizamento da ação judicial (extraprocessual), durante seu curso (endoprocessual), ou mesmo após proferida sentença de mérito e inclusive com 126 BOOK.indb 126

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seu trânsito em julgado, ou seja, na fase de execução da sentença, exigindo-se sempre o acordo de vontades entre as partes para sua viabilidade. A Emenda Constitucional nº 45/2004 introduziu na Constituição Federal o princípio da duração razoável do processo no inciso LXXVIII, do art. 5º, o que implica sobremaneira o incentivo à cultura da conciliação como forma de resolução dos conflitos judiciais para a abreviação de seu tempo de duração. Em, em relação às leis especiais, no ordenamento jurídico brasileiro constam as seguintes disposições sobre a conciliação: • Lei nº 10.259/2001, art. 10, parágrafo único: Os representantes judiciais da União, das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais, bem como os indicados na forma do caput, ficam autorizados a conciliar, transigir ou desistir nos processos da competência dos Juizados Especiais Federais. • Lei nº 9.099/1995, art. 2º: O processo orientar-se-á pelos critérios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, ciente da importância da conciliação, em 2006 lançou o “Movimento pela Conciliação”, instituiu o Programa “Conciliar é Legal” e criou o “Dia Nacional da Conciliação”, celebrado em todo país aos 8 (oito) de dezembro, data em que os tribunais e juízes participam de um mutirão pela conciliação. O CNJ, junto com os juízes e tribunais em todo Brasil, também mantém o projeto “Semana Nacional da Conciliação”, em que diversas controvérsias são rapidamente solucionadas, sem necessidade de processo judicial. Em 2010 o CNJ ainda lançou o prêmio “Conciliar é Legal”, incentivando magistrados e Tribunais a apresentarem práticas de conciliação individuais ou em grupos. De fato, a prestação jurisdicional lenta e onerosa representa importante causa da dificuldade de acesso do cidadão à justiça efetiva e concreta que se busca a partir do processo. Por oportuno, a Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, ao dispor sobre o “direito a um processo equitativo” no art. 6o, item 1 prevê que: Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (...).

Sobre a morosidade da justiça, Rui Barbosa pontuou de forma assertiva em seu discurso aos bacharelandos de 1920 da Faculdade de São Paulo: Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes,

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e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente. (BARBOSA, Rui. Rui Barbosa: escritos e discursos seletivos. 1ª ed. 3ª reimp. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 675).

De fato, o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Todavia, tal previsão não determina que, a toda e qualquer disputa de interesses, devam os cidadãos se valer do Poder Judiciário para obter a pacificação dos conflitos instalados. A Constituição Federal, ao prever o princípio da inafastabilidade da jurisdição, apenas garante o direito de acesso à justiça, mas não impõe qualquer exclusividade quanto à forma de solução de controvérsias, podendo se inferir do preâmbulo da Carta Magna que, o quanto possível, deve-se buscar a solução pacífica de controvérsias ao se referir a uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. O acesso à justiça é um direito do cidadão, independentemente de sua condição social, não apenas do ponto de vista do direito ao ajuizamento da ação, mas também no sentido amplo que o termo tem, devendo representar verdadeira pacificação social, ou seja, o acesso a uma ordem jurídica justa e efetiva, o que tem sido o principal alvo das práticas conciliatórias, tanto extraprocessuais quanto endoprocessuais. O recurso às formas não adversariais de resolução de controvérsias não afasta em nenhum momento a possibilidade de a parte acionar o Estado-Juiz para buscar satisfazer seus interesses, sobretudo quando verificado eventual descumprimento de obrigações ou o desrespeito a direitos expressamente previstos no ordenamento jurídico pátrio, não havendo que se falar em qualquer inconstitucionalidade das maneiras consensuais de resolução de conflitos. Em verdade, o incentivo à conciliação não se destina de maneira alguma a ofuscar o relevante papel social atribuído ao Poder Judiciário de exercício da jurisdição. Cuida-se a promoção da conciliação e a existência de litígio de realidades que podem conviver na mais perfeita harmonia, sobretudo considerando que todos visam, em última ratio, que de fato os conflitos sejam dirimidos e a paz prevaleça na sociedade. A respeito da importante influência da conciliação como meio para se permitir que pelas partes haja maior conscientização sobre seu importante papel para a efetiva paz nas relações, afirma Ellen Gracie Northfleet: A conciliação, assim, (...) delimita um novo tempo para o Judiciário brasileiro. Um tempo de maior agilidade e efetividade, de diálogo e contato com o cidadão comum, de conscientização mútua do papel das partes na busca de uma cultura da paz. (NORTHFLEET, Ellen Gracie. O Judiciário como

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vetor de transformação social. In Consulex - Revista Juridica - v. 11 n. 240 jan. 2007. São Paulo: Consulex, 2007, p. 17).

Contudo, o que se verifica é resistente manutenção no meio social de uma cultura voltada para o litígio, para a instalação de demandas e o embate em Juízo na medida em que surgem controvérsias das mais diversas modalidades e sobre diferentes matérias, enquanto a tentativa de conciliação entre as partes de um processo judicial acaba por ficar em segundo plano e sendo realizada tão somente em decorrência da existência de disposições legais que a estabelecem como formalidade a ser observada no curso da ação. A atuação forense tem demonstrado que nem mesmo as sentenças mais completas possuem maior alcance que os mais singelos dos acordos. Com efeito, o exercício da jurisdição pelo do Estado-Juiz pode até eliminar o litígio enquanto processo formal, mas, ao contrário do que inicialmente se pretende, não afasta o real conflito existente entre as partes, podendo até inflamar ainda mais o ânimo dos envolvidos diante da nociva rivalidade inerente ao processo judicial. Através de sentenças que julgam pela procedência ou não de demandas judiciais nem sempre se proporciona, mesmo à parte exitosa, a plena satisfação de seus interesses. E isto porque, ao obter o provimento jurisdicional desfavorável aos seus interesses, a parte sucumbente dificilmente reconhece como justa e razoável a solução lhe imposta no processo, vindo ainda a atribuir ao Poder Judiciário a responsabilidade pela frustração de suas expectativas. A tal estado de descontentamento dá-se o nome de “litigiosidade remanescente”, que persiste entre as partes mesmo após o término de uma demanda em razão da existência de conflitos de interesses que não foram tratados no processo judicial.Trata-se de uma sensação de descontentamento que acomete a parte mesmo tendo logrado êxito em uma ação judicial, em virtude da negativa bagagem emocional que persiste em relação à parte contrária. Por conseguinte, a parte vencida na demanda juridical raramente se convence do acerto da sentença e o ressentimento que fica vem a alimentar novos embates, gerando um verdadeiro círculo vicioso que afasta a paz que se espera. Muito tem se discutido sobre o problema do acesso à Justiça e a crise do Poder Judiciário em razão do crescente volume de processos, do alto custo das demandas judiciais, do excessivo tempo para resolução das ações judiciais e do formalismo excessivo que distancia as partes de uma solução célere e efetiva. Na verdade, pode-se concluir que, tais entraves à obtenção de uma prestação jurisdicional justa e em tempo razoável significa a própria denegação da justiça, que necessariamente deve ser contornada a partir das mudanças e aperfeiçoamentos, seja nos mecanismos processuais, seja na cultura da população em pretender atribuir a todo momento ao Estado a responsabilidade pela resolução de seus problemas diários. Diferentemente do que ocorre nos processos jurisdicionais, na conciliação, enquanto forma pacífica de resolução de controvérsias a partir da autocomposição, não se verifica a presença de vencedores nem perdedores. 129 BOOK.indb 129

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Pelo fato de os próprios envolvidos alcançarem a melhor forma de resolverem suas diferenças, a partir da análise de propostas abertas e flexíveis, passam a responder diretamente pelos compromissos e comportamentos assumidos de maneira consensual e sem qualquer imposição, permitindo inclusive o resgate de uma relação pessoal ou profissional até então desgastada em virtude dos interesses contrapostos que foram resolvidos. Frise-se que, mesmo em atuação nas formas alternativas de resolução de controvérsias, a importância do juiz permanece e este atinge o escopo de alcançar efetivamente a pacificação social, mediante a aproximação das partes já não mais em disputa. A conciliação tem sido permanentemente estimulada pra resolução dos feitos processuais (conciliação endoprocessual), quando já foi instaurada a lide, inclusive com a proposta de que seja elevada a utilização de acordos pré-processuais (conciliação extraprocessual), ou seja, nas hipóteses de conflitos ainda não jurisdicionalizados. De fato, à medida que as necessidades sociais vão se modificando exige-se do Poder Judiciário que acompanhe as evoluções e implemente positivas mudanças para seu melhor aparelhamento e a modernização da administração da Justiça, sobretudo visando à otimização da prestação jurisdicional efetiva e dentro de tempo razoável. A independência e a autonomia do Judiciário enquanto Poder destinado à resolução de conflitos deve ser valorizada, mas a contribuição dos entes privados e públicos no sentido do intercâmbio de experiências, boas práticas e ações conjuntas no sentido da conciliação certamente favorecerá o aperfeiçoamento da função precípua de pacificação social e de garantia dos direitos. Na verdade, o objetivo do estímulo dessas formas autocompositivas de resolução de conflitos, tais como a conciliação, não é esvaziar o Poder Judiciário, tampouco substituí-lo, mas fazer com que tais mecanismos consensuais de solução de controvérsias caminhem juntamente com a atividade jurisdicional, para que o verdadeiro acesso à justiça e a pacificação social sejam efetivamente alcançados.

2. A MUDANÇA DA CULTURA DO LITÍGIO PARA A CULTURA DAS FORMAS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS A sociedade está em evolução, a realidade social tem exigido soluções mais eficazes para se resolverem os problemas do cotidiano, e, para isso ocorrer de fato, faz-se necessário, além do incremento da legislação, o incentivo concreto para que as pessoas realmente contem com os métodos consensuais de resolução de disputas. De fato, tão somente a previsão legal da conciliação e da mediação como métodos de solução de conflitos não se faz suficiente para que tais mecanismos passem a ser incorporados com naturalidade no mundo jurídico. Há a necessi130 BOOK.indb 130

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dade de que alguns conceitos sejam repensados para efetivamente se estimular a adoção da conciliação como forma eficiente de resolução de disputas, inclusive a partir da própria formação dos profissionais do direito. Assim, deve haver reflexão sobre alguns dogmas arraigados à forma jurisdicional de solução de controvérsias por parte dos profissionais do direito como os magistrados, advogados, membros do Ministério Público e inclusive dos representantes dos órgãos públicos federais e estaduais, que constantemente despontam como os maiores litigantes do país. Os ensinamentos acerca do acesso aos métodos consensuais de solução de disputas não são comum na formação acadêmica e profissional dos juristas, sendo recente a inclusão de disciplinas relacionadas aos meios não adversariais de solução de controvérsias nos programas curriculares das faculdades de Direito brasileiras, e em muitas delas ainda não são obrigatórias. Nota-se o evidente culto à litigiosidade, a partir da disseminação das técnicas processuais diversas relacionadas ao estrito exercício do contraditório e da ampla defesa, bem como à reiterada interposição de recursos para se fazer valer as pretensões deduzidas em juízo, através da movimentação da máquina estatal. E o recurso às formas convencionais de resolução de controvérsias, através do acionamento do Poder Judiciário, também é recorrente pela Administração Pública e seus representantes. Remota é a possibilidade de algum conflito originário da esfera administrativa não migrar para a subsequente propositura da respectiva ação judicial pela parte tida por insatisfeita com o desfecho administrativo, mesmo após longos anos de tramitação das defesas e recursos não jurisdicionais. Por parte da Administração Pública, ainda remanesce a resistência à resolução dos conflitos pela forma não adversarial, justamente sob a justificativa da indisponibilidade do interesse público. Ocorre que, com relativa frequência, a renitente insurgência dos representantes dos órgãos públicos em face das decisões judiciais, no exercício indiscriminado do direito de recurso e em nítida oposição à realização de conciliação que atenda ao interesse de ambas as partes, muitas das vezes vem a malferir o próprio interesse público e o erário. Sob alegação de obediência ao princípio da legalidade, observa-se que os órgãos públicos deixam de transigir em juízo quando a realização da conciliação variavelmente proporcionaria a otimização do tempo e de recursos públicos, sem que houvesse qualquer inobservância aos termos da lei e ainda fosse atendido o princípio da eficiência previsto na Constituição Federal (CF, art. 37, caput). Quando algum representante ou procurador de órgão público deixa de promover a conciliação ou a mediação quando poderia fazê-lo, para que a demanda judicial fosse evitada ou abreviada, e à parte fosse reconhecido o que de direito, certamente se verificará prejuízo ao patrimônio público na medida em que haverá o investimento desnecessário de recursos humanos para o patrocínio da ação judicial, perda de tempo que poderia ser concentrado em medidas efetivamente necessárias ao interesse público, e ainda, o dispêndio de 131 BOOK.indb 131

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recursos financeiros para suportar o pagamento de verbas relativas à correção monetária dos valores devidos, à incidência de juros e à sucumbência da Administração Pública na esfera judicial. Portanto, ao contrário do que por vezes se sustenta, a promoção da conciliação, seja extrajudicial ou judicialmente, não representa necessariamente ofensa ao interesse público. Aliás, não há qualquer previsão legal que afaste o reconhecimento de direitos, seja em juízo ou fora dele, em nome do interesse público. Pelo contrário, a partir da Lei nº 10.259/2001, que dispõe sobre os Juizados Especiais Federais, passou a haver no ordenamento jurídico brasileiro previsão expressa autorizando os representantes legais dos órgãos públicos a realizarem a conciliação (art. 10, parágrafo único). Assim, cabe aos administradores e aos procuradores dos órgãos públicos avaliar, inteligentemente e em caráter permanente, sobre a conveniência, os riscos e os ônus da continuidade de uma ação judicial que pode ser abreviada e resolvida a partir dos mecanismos consensuais de solução de controvérsias, tal como ocorre com a conciliação. E tal exame se faz necessário inclusive para se evitar que o patrimônio público seja ainda mais onerado com o pagamento das verbas acessórias de sucumbência e de mora, que se elevam ao tempo das demandas judiciais. Por conseguinte, infere-se que o argumento da indisponibilidade do interesse público não se sustenta como instrumento para que os administradores e representantes de órgãos públicos se oponham à conciliação para o reconhecimento de erros e de direitos. E tal fato se comprova na medida em que o reconhecimento de erros cometidos pela Administração Pública e de direitos das partes pode, pelo contrário, justamente salvaguardar o patrimônio público de gastos ainda maiores decorrentes da persistência de ações judiciais fadadas ao insucesso, o que muitas vezes pode se identificar no início da ação ou mesmo antes dela, mas se concretiza após longas e inúteis batalhas judiciais. Ressalta-se que os métodos não adversariais de solução de controvérsias devem ser estimulados não apenas porque trazem maiores benefícios às partes e à efetividade às demandas judiciais, mas também porque têm fundamento na lei (Lei nº 10.259/2001, art. 10, caput) e na Constituição Federal (CF, Prefácio; 5º, inciso LXXVIII e art. 37, caput), sendo, por conseguinte, dever do Poder Judiciário brasileiro apoiar as iniciativas de adoção de vias alternativas de resolução de conflitos. São diversas as razões que levam à conclusão de que deve haver uma mudança significativa no panorama caótico e aflitivo que acomete o Poder Judiciário em sua função precípua de entregar a prestação jurisdicional com qualidade, de forma célere e efetiva, o que tem gerado profícuas discussões sobre a denominada crise do processo e as formas de contorna-la na sociedade moderna. Em virtude dos reflexos da globalização e do aperfeiçoamento da economia de mercado, as relações humanas, comerciais e jurídicas tem se mostrado cada vez mais complexas e carentes de soluções céleres e eficazes. Esses 132 BOOK.indb 132

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fenômenos certamente têm exigido do Poder Judiciário resposta à altura das necessidades, o que imprime a necessidade de aprimoramento técnico e estrutural para que se torne viável a prestação jurisdicional compatível com a crescente demanda e o volume exacerbado de processo que encontram-se em tramitação na primeira instância e nos tribunais. Há que se pontuar que o aumento considerável do número de feitos distribuídos também decorre do maior acesso da população à informação e à maior pulverização da estrutura do Poder Judiciário perante as cidades brasileiras, que contam cada vez mais com os serviços de assistência judiciária gratuita, inclusive através de convênios com universidades, e com o efeito multiplicador das demandas repetitivas. Tais fatores têm favorecido a propositura desenfreada de ações judiciais de toda sorte, ainda que não se tenha ao menos tentado previamente solucionar os conflitos na esfera administrativa, que os pedidos estejam destituídos de qualquer fundamento, ou que não estejam presentes todos os pressupostos e condições para o regular andamento do processo. De fato, o incentivo ao cidadão para que exercite sua cidadania tem contribuído em muito para o aumento do contingente de ações judiciais em tramitação, impondo-se, além da otimização dos trabalhos jurisdicionais, o estímulo à utilização das medidas alternativas para a resolução dos conflitos sociais, como a conciliação e a mediação. A deficiência na prestação jurisdicional, que decorre muitas vezes do formalismo excessivo e do longo tempo das ações judiciais e da inefetividade, provoca instintos primitivos de se procurar fazer a justiça pelas próprias mãos, no olho por olho e dente por dente, gerando desequilíbrios comportamentais. A falta de um acesso efetivo à ordem jurídica justa e efetiva e o crescente acúmulo de demandas em tramitação têm gerado reflexos negativas na sociedade, passando os cidadãos a vivenciar sentimentos de desesperança, angústia e insatisfação com o Poder Público. Sabe-se que, nem sempre as formas alternativas de resolução de controvérsias serão instrumentos hábeis a resolver todos os conflitos existentes no convívio social, em sede judicial ou mesmo ainda por surgirem. Certamente existem situações em que a intervenção do Estado-juiz para que o conflito seja dirimido será realmente necessária para se fazer valer a lei e os direitos. Ocorre que, o que se propõe é que as formas não adversariais de solução de conflitos, tais como a conciliação e a mediação, passem a ser o primeiro recurso para a resolução de eventuais controvérsias, como alternativa à provocação imediata do Poder Judiciário, sobretudo em razão do alto potencial desses métodos para o alcance da pacificação social e a manutenção da harmonia nas relações. No que se refere à legislação sobre os métodos não adversariais, verifica-se que não bastam apenas leis estipulando a prática conciliatória. Além dos programas nacionais vigentes em favor da conciliação, tais como o Programa “Conciliar é Legal” e a Semana da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, deve-se estimular também a instalação de programas regionais e 133 BOOK.indb 133

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locais de estímulo à conciliação, de acordo com as demandas e peculiaridades apresentadas. A conciliação como mecanismo de resolução de controvérsia, seja extraprocessual seja endoprocessual, não atingirá seu escopo superior, qual seja, a efetividade da pacificação social, tão somente em virtude da existência do maior número de disposições legais e infralegais a respeito da matéria, mas, certamente, na medida em que houver a adoção de uma nova forma de pensar na sociedade, através da quebra dos paradigmas de litigiosidade e, enfim, a partir da mudança da cultura do litígio para a da conciliação. Como formas de se implementar as mudanças necessárias em favor da conciliacao, as instituições de ensino superior podem instituir Centros de Conciliação, sob a coordenação dos respectivos Núcleos de Prática Jurídica, com intuito de auxiliar as pessoas a terem solucionadas suas controvérsias pela via amistosa. Ademais, as faculdades de Direito, tal como gradativamente já se observa, devem atualizar seus programas curriculares para que sejam as formas consensuais de resolução de controvérsias inseridas como disciplinas obrigatórias, e não somente como mero item integrante de outras disciplinas autônomas como a de Processo Civil. Dessa maneira, os futuros profissionais do direito seriam já estimulados desde a academia a recorrerem em um primeiro momento aos métodos consensuais de resolução de disputas, relativizando a litiosidade para um plano subsidiário, apenas para a hipótese de não ser obtido êxito na via conciliatória para se dissipar o conflito instalado. Faz-se importante que sejam implementadas mudanças, sobretudo na formação e na conscientização dos operadores do direito, para que os conflitos não sejam administrados diretamente como uma questão de ordem judicial, mas, sobretudo, como uma questão social a ser dirimida, daí a preocupação de que sejam colocados em prática meios alternativos mais efetivos, céleres e também menos onerosos, seja para a população, seja para o Poder Público. Outra forma de solução que tem se proposto para maior utilização da prática da conciliação e da mediação é a partir da maior atuação das agências reguladoras, autarquias especiais que têm o papel de entes fiscalizadores das empresas concessionárias de serviços públicos, como entidades conciliadoras e mediadoras no âmbito administrativo, nas demandas originárias dos segmentos regulados entre concessionárias e usuários/consumidores. Dessa maneira, esses órgãos da administração pública contribuiriam mais intensamente com a sociedade, evitando a judicialização desses temas, naturalmente com devido preparo técnico e aprimoramento para a atividade conciliadora a partir de trabalho conjunto e convênios de cooperação com o Poder Judiciário, para que os objetivos de prevenção da judicialização de conflitos sejam efetivamente alcançados. Outrossim, numa sociedade com crescente demanda por bens e serviços, seria muito importante a maior orientação e defesa de estratégias preventivas 134 BOOK.indb 134

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pelas empresas em geral, associações, escolas, universidades, hospitais etc., para que se evite a chegada dos conflitos consumeristas à esfera judicial. Dessa forma, se estimularia a solução de demandas em outra esfera que não a do Poder Judiciário, como forma de cumprimento das responsabilidades sociais corporativas e de se enfrentar os problemas do alto contingente de processos judiciais também a partir de sua causa, em benefício dos próprios consumidores, do Poder Judiciário e, em última análise, da sociedade. Por isso, faz-se importante a efetivação de práticas multi-institucionais para se concretizar a conscientização da população em geral relativa à utilidade e eficácia da conciliação e da mediação como formas de resolução de conflitos. Assim, a pretendida mudança de perspectiva deve passar necessariamente por uma revolução de mentalidade e pela assunção de uma nova postura de todos os membros dos vários segmentos jurídicos e da própria sociedade. Impõe-se a conscientização de que o conciliador e o mediador, munidos do devido preparo técnico, também são capazes de solucionar conflitos sem que seja necessária sua submissão a um magistrado investido nas funções jurisdicionais. Daí a importância do estímulo ao instituto da conciliação, procedimento autocompositivos mais informal, simples e ágil, e que privilegia a livre comunicação entre os interesses em conflito, desarmando o espírito de beligerância, proporcionando um ambiente mais ameno para inclusive se resgatar as relações entre os envolvidos e se desvelando importante mecanismo de pacificação social. Como se observa, as exigências modernas apontam para a imperiosa necessidade de modificação da forma tradicional de se enfrentar as controvérsias, tanto a partir dos entes públicos quanto dos privados, e sobretudo dos profissionais do direito em geral, para que sejam evitadas o quanto possível as formas adversarias de solução de conflitos. O estímulo da conciliação como mecanismo de solução de controvérsias certamente amplia os focos de esperança para a maior harmonização das relações em todos os níveis sociais, visto que permite a concretização de direitos e garantias de forma menos onerosa, em menor espaço de tempo e sem o recorrente excesso de formalismo inerente às formas tradicionais e adversarias de solução de conflitos, com a consequente efetivação da cidadania. Portanto, faz-se premente a necessidade de mudança da cultura do litígio para a dos meios consensuais de resolução de controvérsias, tendo em vista se tratar de mecanismos que produzem resultados efetivos e que permitem se atingir a tão almejada pacificação social. É preciso mudar, mudar para melhor, mudar para resolver, mudar para se conciliar e se mediar, mudar para que seja efetivamente alcançada a tão almejada pacificação social e fazer com que seja concretizada a sociedade fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias referida no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, que inaugurou a ordem jurídica vigente. Justamente em virtude dos inúmeros benefícios relativos às formas consensuais de dissolução de disputas — sejam elas realizadas antes da instalação 135 BOOK.indb 135

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do litígio (extraprocessual) ou mesmo no curso da ação já existente (endoprocessual) —, é que se propõe referida mudança da cultura do litígio para a da conciliação, que tem recebido constantes incentivos dos Tribunais e sido atualmente a tônica quando se debate questões diversas relacionadas ao futuro e à efetividade do Poder Judiciário em atender sua função constitucional. A partir da mudança da cultura do litígio para a das formas alternativas de resolução de controvérsias, como a conciliação, certamente se fará mais próximo o almejado alcance da pacificação social, devendo se ter sempre presente que tal propósito exige mudanças significativas na mente e no coração, para que seja possível se pensar na verdadeira humanização da justiça.

CONCLUSÃO A existência de conflitos de interesses entre partes privadas e públicas faz parte do convívio em coletividade, sendo constantes as formas de controvérsias pelas mais diversas razões, tanto em decorrência dos avanços da sociedade, quanto do aperfeiçoamento das relações sociais e comerciais. Ocorre que, na medida em que se multiplicam os conflitos em virtude dos novos desafios das relações pessoais e comerciais, impõe-se que na mesma proporção, o quanto possível, sejam implementadas formas de resolução de controvérsias que sejam compatíveis com o volume e com as técnicas necessárias para se manter a ordem e a estabilidade na sociedade. Pelo fato de deter o monopólio do exercício da jurisdição, o Poder Judiciário brasileiro tem sido o destino de boa parte, senão quase a totalidade, dos cidadãos e entidades públicas e privadas que procuram fazer valer seus direitos e garantias em um Estado democrático de Direito. Sobretudo em um país em que se verifica um arcabouço normativo considerável, em que se dispõe sobre direitos e deveres de toda a espécie, mas não se observa igual vocação para o estrito cumprimento de obrigações e acordos assumidos, e não se vêem tão respeitados direitos e garantias como deveria de se esperar de uma sociedade madura, o recurso ao poder público para salvaguarda de direitos e a busca de reparos a danos e prejuízos é cada vez mais recorrente. Ocorre que, debitar tão somente no Poder Judiciário a responsabilidade pela resolução de conflitos entre partes privadas e públicas, a partir do conhecimento e julgamento de ações judiciais de naturezas diversas, trouxe reflexos um tanto alarmantes para o bom e regular funcionamento do Estado-juiz no cumprimento de seus propósitos institucionais. Em razão do aumento crescente na propositura de ações judiciais, para se resolver através do Poder Judiciário controvérsias das mais diferentes origens, tanto entre pessoas físicas e jurídicas, quanto entre entes públicos e privados, verifica-se já há algum tempo um estado de congestionamento de processos judiciais inversamente proporcional à qualidade, à celeridade e à efetividade que se espera da prestação jurisdicional. Por conseguinte, passou-se a questionar sobre a denominada crise do Poder Judiciário, que tem dentre suas causas o grande volume de processos em 136 BOOK.indb 136

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tramitação, o excesso de atos e de formalismo nos andamentos processuais e o demasiado tempo que se dispende para o término de uma demanda judicial. E, de fato, diante da crise do processo e do nocivo congestionamento do Poder Judiciário, os meios consensuais de resolução de conflitos, tais como a conciliação, surgem como profícuas ferramentas que permitem às partes alcançarem a pacificação de seus conflitos sem obrigatória dependência da máquina estatal. A conciliação, forma de resolução de conflitos classificada como autocompositiva, em razão de as próprias partes construírem a melhor solução para o embate instalado, representa não o afastamento da possibilidade de ajuizamento de determinada controvérsia, sobretudo em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal (CF, art. 5º, inciso XXXV), mas mecanismo prioritário a ser adotado nos casos de iminência ou deflagração de conflitos sociais. Dentre os inúmeros benefícios da submissão dos conflitos às formas não adversariais, identifica-se o menor custo tanto aos interessados quanto ao poder público, o menor tempo para a efetiva resolução da controvérsia, a informalidade dos atos, a ausência de interesse em recursos reiterados e que delongam as ações judiciais e, sobretudo, a maior participação dos envolvidos no conflito na busca da melhor solução, o que afasta inclusive a chamada litigiosidade remanescente, que consiste no estado de insatisfação da parte ante suas angústias e frustrações pessoais, mesmo quanto exitosa em um litígio. Ocorre que, conclui-se que, definitivamente, a maior utilização da conciliação como método de solução de disputas não depende tão somente de previsão legal ou normativa que institucionalize e regulamente tais institutos como meios preventivos ou resolutivos de conflitos. Na verdade, impõe-se que haja na sociedade efetiva mudança da cultura do litígio para a cultura das formas alternativas de resolução de controvérsias. É preciso que se implemente positiva mudança na mentalidade das pessoas e das instituições para que a conciliação passe a ser encarada como eficiente mecanismo de pacificação social, sem que haja a necessidade de provocação do Estado-juiz a cada conflito de interesses instalado. Com efeito, além da implementação de normas no ordenamento jurídico que viabilizem a realização da conciliação, impõe-se, sobretudo, uma mudança de cultura da litigiosidade e do antagonismo, para que a as controvérsias não sejam enfrentadas somente como uma questão de ordem pública e de responsabilidade do Estado-juiz, mas uma questão social. Note-se que não se pretende a obrigatoriedade de as partes se submeterem à conciliação, em substituição e afastamento em definitivo do Estado-juiz para a solução de seus conflitos. O que se propõe é a adoção dos meios consensuais como primeira alternativa quando se pretender a resolução de determinada controvérsia, permanecendo o acionamento do Poder Judiciário como recurso posterior e subsidiário para a solução de conflitos, ou seja, para os casos em que não houver êxito na tentativa conciliatória, e ainda para as situações em que não se admite a transação entre as partes, ante a efetiva indisponibilidade dos direitos envolvidos. 137 BOOK.indb 137

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E, dentre as formas de se implementar a mudança da cultura do litígio, verificou-se que se faz importante a quebra de paradigmas a partir da formação dos próprios profissionais do Direito. As faculdades de Direito podem passar a tornar obrigatórias matérias que tratem especificamente das vias consensuais de solução de conflitos, e também instituir centros de conciliação, tudo no sentido de se promover a solução de disputas pela forma amistosa. Conforme visto, a maior orientação e defesa de estratégias preventivas por parte das empresas em geral, associações, escolas, hospitais e entidades de classe, para que seja evitada a migração de conflitos consumeristas à esfera judicial, bem como a atuação das agências reguladoras como intermediadoras de conflitos, certamente poderia implementar a maior prática das técnicas de conciliação e de mediação como alternativas ao acesso imediato ao Poder Judiciário. Faz-se importante o maior estímulo a programas regionais e locais de conciliação, bem como a efetivação de práticas multi-institucionais para se concretizar a conscientização da população em geral relativa à utilidade e eficácia da conciliação como forma de resolução de conflitos. Quanto aos órgãos públicos, verificou-se que disposição legal expressa (Lei nº 10.259/2001, no art. 10, parágrafo único) autoriza a realização da conciliação pelos seus representantes, de maneira que deve haver maior conscientização de que a propositura ou manutenção de uma ação judicial, sem que se permita a conciliação, poder muitas vezes vir a provocar sérios prejuízos ao patrimônio público, que ao depois deverá dispor de recursos para suportar verbas relativas a juros, correção monetária e condenação por sucumbência em juízo. Em observância à Carta da ONU de 1948, observou-se que os meios pacíficos de solução de conflitos, dentre os quais a conciliação, também constituem mecanismos prioritários de resolução de divergências no direito internacional público. Assim, ante os inúmeros fatores positivos a favor das técnicas autocompositivas de resolução de controvérsias, como a conciliação, faz-se premente sua promoção para se contornar a crise do congestionamento alarmante de processos que abarrotam o Poder Judiciário. E, através da mudança da cultura da litigiosidade para a cultura das formas consensuais de solução de controvérsias, certamente se verificará maiores benefícios aos cidadãos na concretização de seus interesses, direitos e garantias. Isto porque, poderão de fato ter acesso à pacificação de suas relações sociais com menor custo, em prazo razoável e sem a obrigatoriedade de terem de se submeter aos formalismos e ônus de um processo judicial.

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A JUSTIÇA FEDERAL EM AÇÃO NA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:

A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA COBRANÇA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DO SEGURADO APOSENTADO

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Luciano Tertuliano da Silva1 É notória a importância conquistada pela Justiça Federal em razão do desempenho obtido na garantia dos direitos fundamentais, vindo a se emblematizar, atualmente, como instrumento eficiente e confiável de reafirmação do Estado Democrático de Direito, mormente neste momento em que luzes são jogadas sobre atos praticados por representantes eleitos pelo povo, os quais acreditam estar acima da lei em virtude de altos cargos políticos ocupados. A aparente superioridade que aflige os gestores públicos desencadeia uma série infindável de consequências nefastas aos administrados nos mais variados setores sociais. No entanto, o objeto deste trabalho reside na análise do desvirtuamento retórico no controle da atividade legiferante na seara da seguridade social, mais especificamente na cobrança de contribuição previdenciária de segurados que optaram por permanecer trabalhando e, portanto, vinculados ao Regime Geral de Previdência Social, mesmo já tendo obtido aposentadoria por esse sistema. Discute-se na presente demanda a exigibilidade das contribuições destinadas ao custeio da seguridade social, incidente sobre a folha de pagamentos e salários, por parte do trabalhador aposentado que mantém vínculo laboral submetido ao Regime Geral da Previdência Social. A solução da crise de direito em apreço perpassa, portanto, pela análise da compatibilidade vertical do contido no artigo § 2º do artigo 18 da Lei n. 8.213/91, com a Constituição Federal. O teor de referido ato normativo Juiz Federal Substituto na 1º Vara Federal de Assis/SP – 16ª Subseção Judiciária. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor Coordenador da Pós-Graduação, nível Especialização, em Direito Previdenciário e em Direito Penal e Processual Penal na Faculdade de Direito da Fundação Educacional do Município de Assis – FEMA, onde também leciona as disciplinas de Filosofia e Antropologia e Direito Processual Penal no curso de graduação.

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preconiza que “o aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social - RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado”. A análise amiúde revela, inevitavelmente, a inconstitucionalidade material do referido parágrafo 2º do artigo 18 da Lei n. 8.213/91, isso porque afronta ao caráter substantivo do princípio constitucional da isonomia - tanto na sua vertente da universalidade prevista no artigo 194, I, da Constituição Federal, como no princípio da proibição da proteção insuficiente como viés positivo do princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 5º, LIV, CF) -; ofende a regra fundante da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) ao esvaziar o direito fundamental ao seguro social, distanciando-se o segurado da finalidade protetiva de qualquer regime previdenciário; e avilta o princípio constitucional da moralidade pública (artigo 37, CF) ao propiciar situação de enriquecimento sem causa por parte da União, porquanto a cobrança de contribuição previdenciária, neste caso, carece de racionalidade ao não oferecer ao segurado a garantia previdenciária material mínima, amparando-se unicamente no afã tributário estatal. A constatação da incompatibilidade vertical com a Constituição Federal requer, indispensavelmente, a reminiscência para compreender como a proteção previdenciária evoluiu no tempo. A segurança protetiva, obtida através da respectiva contribuição previdenciária obrigatória sobre a folha de pagamentos e salários (artigo 195, I,“a”), tem natureza jurídica de direito social. Logo, a fruição de direitos previdenciários decorrentes do contrato de trabalho goza de índole fundamental, daí a razão de José Joaquim Gomes Canotilho asseverar que “bastaria o legislador e todos os órgãos responsáveis pela concretização ficarem silentes para se negar a existência de um núcleo essencial de prestação social. Afinal, a direção da Constituição, ou melhor, a direção dos direitos sociais constitucionalmente garantidos ficaria neutralizada pelas omissões legislativas e executivas” (Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 408). Não por acaso o artigo 6º da Constituição Federal de 1988 empresta fundamentalidade ao direito à previdência social, dentre outros, e preconiza como crime de responsabilidade qualquer atentado a ele (artigo 85, III, CF). Imperioso, assim, conhecer o conteúdo de um regime previdenciário, ou seja, as características mínimas necessárias para que se digne intitular como “previdenciário” determinado sistema. A contribução previdenciária possui dimensão fundamental justamente por ser direito especial relativo à vida, daí porque deve ser vertida a um regime suficiente a garantir, no mínimo, cobertura securitária nos casos de doença, velhice, invalidez e morte. É o que se vê do histórico do sistema constitucional brasileiro. A primeira Constituição Federal a expressar claramente o direito previdenciário foi a de 1934, a qual previa, em seu artigo 121, § 1º, “h”, o direito à 140 BOOK.indb 140

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“instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidente de trabalho ou de morte”. Trilhando o mesmo norte, o artigo 157, XVI, da Constituição Federal de 1946 enfatizou o caráter teleológico do sistema previdenciário contributivo para garantir a previdência em favor “da maternidade e contra as consequências da doença, da velhice, da invalidez e da morte”, no que foi seguida igualmente pelo artigo 158, XVI, da Constituição Federal de 1967. A Constituição Federal de 1988 recebeu o rótulo de “Constituição cidadã” justamente por ressaltar o indivíduo como base antropológica do seu discurso, daí a clareza solar ao estabelecer a previdência social para atender, principalmente, a “cobertura de eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada” (artigo 201, I). O histórico constitucional revela que o direito à cobertura previdenciária, como todo e qualquer outro caracterizado como fundamental, foi fruto de lenta evolução social até atingir as fases de positivação, generalização, internacionalização e especialização (SILVA, Luciano Tertuliano da. Manipulação Discursiva e Crise de Estado como obstáculos à institucionalização dos Direitos Fundamentais no Brasil. Lumens Juris, Rio de Janeiro, 2017, pg. 144). A positivação foi a consagração desse direito nos textos jurídicos, eis que antes projetado apenas no campo da filosofia política, vindo acompanhada da “fundamentação” atribuidora de precisão e segurança, deixando de ser fruto de evidência ou dedicação racional para serem empunhados pela certeza da declaração expressa, identificação da titularidade passiva, alcance espacial e natureza jurídica. A generalização, como consequência da positivação, foi a difusão do reconhecimento mais dilatado dos direitos fundamentais, fato sucedido tanto no viés histórico como no teórico-filosófico-jurídico, vindo a ser temário constitucional. Ao ganhar espaço nas declarações, tratados e convenções para além das fronteiras internas, os direitos fundamentais passaram a ostentar o rótulo internacional. Por fim, a especificação dos direitos fundamentais, mormente o previdenciário, ocorreu com a definição de seu conteúdo, identificação dos sujeitos ativos e, principalmente, do sujeito passivo atribuído pelas normas como o responsável pela respectiva concretização. Todas as citadas fases de desenvolvimento do direito fundamental são relevantes. No entanto, a fase de especificação é que mais vincula o gestor público justamente por se valer da delimitação e procedimentalização de determinado direito, acabando por esvaziar qualquer tentativa do administrador de não concretizá-lo, comissiva ou omissivamente, porque a garantia para tanto - consubstanciada nos critérios e mecanismos necessários - já está expressamente positivada, não dando margem de liberalidade ao responsável pela concretização e institucionalização do direito tido por fundamental. 141 BOOK.indb 141

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A última fase do sistema previdenciário no Brasil, como direito fundamental, somente foi concretizada com a Constituição Federal de 1934, porquanto as anteriores não atendiam ao critério da especificação justamente por não tratar direta e expressamente, e, tão pouco, delimitar seu conteúdo mínimo. Portanto, desde a Carta Magna de 1934 os elementos mínimos do direito previdenciário, a garantia de seu exercício, foram estabelecidos para uma cobertura nos casos de doença, velhice, invalidez ou morte. Nessa linha intelectiva, qualquer regime, seja público ou privado, somente obterá o status de “previdenciário” se ofertar, no mínimo, cobertura securitária para os casos de doença, velhice, invalidez ou morte. Assim, quando o inciso I do artigo 201 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu que “a previdência social atenderá... I - a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte ou idade avançada.. nos termos da lei...”, quis o legislador constitucional originário densificar as diretrizes que a lei deveria seguir ao regulamentar a questão, ou seja, definiu os nortes principiológicos dos quais não poderia o legislador distanciar-se à concretização do direito fundamental à cobertura previdenciária, até porque essa é a única interpretação capaz de atender ao critério da máxima efetividade da norma constitucional ante as circunstâncias do caso concreto. Interpretação contrária será impassível de aptidão à produção dos efeitos esperados e ao alcance da finalidade para a qual a norma foi gerada. Ao legislador infraconstitucional foi permitido editar a respectiva lei regulamentando os mecanismos necessários a permitir, contributivamente, a garantia de acesso a regime previdenciário que assegurasse, no mínimo, “cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte ou idade avança”. O cumprimento desse mister legislativo não pode olvidar, obviamente, o princípio da universalidade de cobertura e atendimento delineado expressamente no parágrafo único do artigo 194 da Constituição Federal, o qual preconiza “que se deve proteger todas as pessoas, que toda a comunidade deve estar amparada pelo sistema.Toda pessoa, sem discriminação por causa sua nacionalidade, idade, raça, tipo de atividade que exerce, renda, tem direito à cobertura de suas contingências. É denominado de universalidade porque a disciplina se expande ou estende a cobertura das diferentes contingências à maior quantidade de pessoas possível. A seguridade vai desbordando da restrição classista, já que a necessidade da cobertura das contingências não se admite como privativa de certas categorias sociais, mas sim como um direito que deve ser estendido aos assalariados e, finalmente, ao conjunto da população, sem nenhum tipo de exclusão” (BOSIO, Rosa Elena. Lineamentos Básicos de Seguridad Social. Córdoba, Argentina, Editora Advocatus, 2005, in SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. Saraiva, São Paulo, 2011, pg. 27). O princípio constitucional da universalidade da cobertura (artigo 194, parágrafo único, I, CF) serve, portanto, de instrumento à concretização do direito também constitucional à igualdade de tratamento (artigo 5º, caput, CF). Portanto, à efetiva concretização da igualdade, no plano previdenciário, não pode haver exclusão da cobertura daqueles que efetivamente contri142 BOOK.indb 142

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buem ao sistema. Logo, quando aludida norma sibila que “o aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social - RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade” está inegavelmente impondo um condição de discriminação e, portanto, absolutamente excluidora por tratar diferentemente segurados sem qualquer argumento justificante, mormente porque ambos encontram-se em idêntica situação de “segurados obrigatórios contribuintes do sistema”. Obviamente, a deleteriedade dos efeitos dessa discriminação injustificada lhes permite atingir patamares transponentes da mera formalidade, isso porque acabam, verdadeiramente, por excluir de qualquer proteção previdenciária àqueles que continuaram a contribuir para o Regime Geral de Previdência Social nas mesmas condições e efeitos de todo e qualquer contribuinte, e pelo simples fato de já terem obtido uma aposentadoria. Continuidade essa, realce-se, imposta por lei, e não fruto de mera liberalidade do trabalhador. Elegeu-se o termo “excluir de qualquer proteção” em atenção ao seu caráter substantivo, já que o parágrafo 2º do artigo 8.213/91 coloca a salvo os benefícios de “reabilitação profissional” e “salário-família”. Ocorre, no entanto, que esses “benefícios” são previstos apenas formalmente porque não chegam a ser concretizados aos contribuintes nessa situação (já aposentados e que continuam trabalhando e contribuindo como segurados obrigatórios). Isso porque o “salário-família” é pago limitadamente àqueles que, inserindo-se no conceito de “baixa renda”, possuam filhos de até 14 anos de idade (artigo 66 da Lei nº 8.213/91). Logo, é extremamente difícil, senão impossível na grande maioria dos casos, que o segurado atinja o período necessário de contribuição (30 ou 35 anos) com idade hábil a possuir filhos menores de 14 anos. Por outro lado, assegurar “reabilitação profissional” tão somente, sem prévia concessão de auxílio-doença ou outro benefício que permita ao segurado obter os medicamentos ou tratamentos indispensáveis à sua melhora sem necessitar abater de seus vencimentos - que de tão parcos exigiram a continuidade no trabalho mesmo depois de obtida a aposentação - equivale a colocar o segurado obrigatório em situação altamente iníqua por absoluto abandono em estado doentio, relegando-o à própria sorte, e, se sobrevier a cura da doença, por si mesmo, aí sim terá direito à reabilitação. Reabilitação sem prévia concessão de oportunidade de tratamento é um engodo, uma situação absolutamente inviável no contexto social por revelar a despreocupação do sistema previdenciário público com a efetiva cura ou consolidação da doença, situação que beira a verdadeira irresponsabilidade estatal. Evidente, portanto, que a cobrança contributiva, nessa forma, esvazia o princípio constitucional da universalidade da cobertura previdenciária por excluir da proteção securitária determinadas pessoas mediante eleição, sem justificativa racional, da obtenção de aposentadoria como causa de discriminação quando a essência da regra fundante da igualdade estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º, CF). 143 BOOK.indb 143

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Ao impor à determinada a pessoa a condição de segurado obrigatório, exigindo-lhe a canalização de contribuições previdenciárias sem, contudo, assegurar-lhe a contrapartida da cobertura previdenciária, a Administração Pública esmaga a dignidade da pessoa humana desse contribuinte por lhe tolher um conjunto de benefícios imprescindíveis a assegurar-lhe a existência digna, livre e igual, mormente por não lhe blindar, através da proteção social, dos riscos e mazelas típicas a que sujeito pelo mero exercício de atividade laboral. Retirando do segurado obrigatório aposentado qualquer grau mínimo de segurança previdenciária, o Estado olvida a condição intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o fez merecedor de respeito e consideração, impondo-lhe um tratamento discriminatório, degradante e desumano que lhe retira as condições mínimas à manutenção de uma vida saudável da ponto de vista da segurança protetiva, esvaziando o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF). A regra fundante da universalidade da cobertura, mais precisamente da previdenciária, tem sua eficácia condicionada à dilatação de sua dimensão para servir não apenas de instrumento de realização do direito constitucional à igualdade de tratamento, mas também, e principalmente, de concretização do princípio da vedação da proteção insuficiente. Intitulado como o aspecto positivo da proporcionalidade, o princípio da proteção insuficiente assegura que o direito fundamental social prestacional não pode ser iludido pelo Poder Público, quer omissiva - através inércia no dever de implementar as políticas públicas necessárias à satisfação desses direitos - ou comissivamente - adoção de política pública inadequada ou insuficiente, como o é a opção por norma infraconstitucional excluidora. O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Reclamação nº 4374, cujo tema em análise concernia à concessão de benefício assistencial, expressamente reconheceu a eficácia normativa do princípio da proibição da proteção deficiente como orientação ao julgador com vistas a assegurar a proteção de direito fundamental. O valor do julgado exige sua transcrição parcial: “Além de uma dimensão subjetiva, portanto, esse direito fundamental também possui uma complementar objetiva. Nessa dimensão, o direito fundamental à assistência social assume o importante papel de norma constitucional vinculante do Estado, especificamente, para os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Ela assim impõe um dever constitucional de legislar, o qual deve ser cumprido de forma adequada, segundo os termos do comando normativo previsto no inciso V do art. 203 da Constituição. O não cumprimento total ou parcial desse dever constitucional de legislar gera, impreterivelmente, um estado de proteção insuficiente do direito fundamental. Destarte, como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot). A violação, pelo legislador, dessa proibição de proteção insuficiente decorrente do direito fundamental gera um estado de omissão 144 BOOK.indb 144

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inconstitucional submetido ao controle do Supremo Tribunal Federal. Isso ocorre não exatamente em razão da ausência de legislação, ou tendo em vista eventual mora do legislador em regulamentar determinada norma constitucional, mas quando o legislador atua de forma insuficiente, isto é, edita lei que cumpre apenas de forma parcial o comando constitucional” (Min. Gilmar Mendes, Relator - sem grifo no original). Trilhando o norte dessas considerações principiológicas, salta à evidência a inconstitucionalidade material do texto contido no parágrafo 2º do artigo 18 da Lei nº 8.213/91 quando sentencia que “o aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social - RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado”. Essa incompatibilidade vertical ocorre porque o legislador infraconstitucional, a pretexto de regulamentar o comando contido no artigo 201, I, da Carta Política, houve por bem excluir de qualquer cobertura previdenciária aquele que, logrando aposentar-se, continua trabalhando e vertendo contribuições ao sistema, como todo e qualquer segurado. Assim delineando-se a atividade legiferante apreciada, aos segurados obrigatórios já aposentados, que continuam contribuindo ao RGPS, não é franqueado um regime hábil a ser intitulado minimamente como “previdenciário”, isso porque os exclui da cobertura decorrente de eventos como doença, velhice, invalidez ou morte, a despeito de continuarem expondo-se a todo e qualquer risco inerente ao exercício da atividade laboral, ofendendo o princípio da vedação da proteção insuficiente ao desrespeitar toda a evolução já analisada do direito fundamental à cobertura previdenciária . Não se pode olvidar o caráter humanístico daquele que continua a trabalhar mesmo já tendo obtido a aposentação, isso porque certamente o faz por absoluta necessidade de manter a mesma qualidade no padrão de vida, quer em virtude de os proventos oriundos da aposentação serem invariavelmente menores do que a remuneração mensal obtida ao longo da vida, quer pela obrigatoriedade de inserir em seu orçamento familiar o necessário gasto com medicamentos para fazer frente às mazelas típicas da elevação etária. Mas, independentemente do motivo convincente da continuidade no trabalho, o fato é que, continuando a trabalhar, a lei lhe confere a situação de “segurado obrigatório” imposta pelo artigo 11, alínea “a”, da Lei nº 8.213/91 e, como tal, de “contribuinte obrigatório”, consoante o artigo 11, parágrafo único, alínea “c”, da Lei nº 8.212/91. Logo, se continua sendo contribuinte, deve continuar tendo direito a uma proteção previdenciária suficiente a fazer frente às contingência de situação laboral, ou seja, deve ter direito a toda e qualquer espécie de cobertura típica de regime materialmente previdenciário. Excluir, pura e simplesmente, esse contribuinte de toda e qualquer proteção previdenciária é negar vigência comando constitucional previsto no artigo 204, I, da CF, segundo o qual é direito fundamental seu, enquanto contribuinte obrigatório do Regime Geral de Previdência Social, “a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte ou idade avança..”. 145 BOOK.indb 145

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Uma cobertura previdenciária inadequada e meramente formal não satisfaz as exigências do princípio constitucional da proteção da proibição insuficiente simplesmente porque a previdência social deve atuar quando é verificada a necessidade, ou seja, diante da ocorrência ou permanência de uma contingência social, e não em virtude da obtenção de uma aposentadoria por tempo de contribuição. . A própria Lei 8.213/91 traz em seu bojo mecanismo de proteção previdenciária suficiente quando dispõe que mantém a qualidade de segurado, independente de contribuições, “sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício” (art. 15, I). Se o segurado, ainda que aposentado, mantém a qualidade de segurado e cumpre todos os requisitos necessários, continuará fazendo jus à proteção previdenciária. A obtenção de uma aposentadoria espontânea não pode importar na caducidade dos direitos inerentes à qualidade de segurado obrigatório. O elementar direito à qualidade de segurado é justamente o abrigo contra eventos casuais que têm possibilidade para subverter a normalidade com que se conduz a vida. Essas contingências, a despeito de individuais, jamais puderem ser prevenidas ou remediadas, daí a importância da proteção social. Destarte, excluir esse contribuinte, simplesmente em função de sua situação pessoal de “aposentado”, de todo e qualquer benefício, mesmo contribuindo para tanto, implica em ofensa letal ao próprio princípio constitucional da universalidade na medida em que o retira do “universo” previdenciário. Avilta, por outro lado, a essência da moralidade administrativa (artigo 37 caput da Constituição Federal) o ato legal de emprestar a determinada pessoa, imperativamente submetida a regime previdenciário de natureza pública, o status apenas de contribuinte, sem que dessa contribuição nenhum benefício previdenciário material seja possível obter, mormente em um regime previdenciário no qual o contributivo deve ter, em contrapartida, direito a determinados benefícios tão apenas por ter contribuído ao RGPS. A partir do momento em que o órgão previdenciário despoja-se, ainda que mediante lei, de qualquer responsabilidade previdenciária sobre determinado segurado obrigatório e, porém, continua recebendo em seus cofres a respectiva contribuição imperativamente imposta ao trabalhador, inegavelmente haverá um enriquecimento sem causa em favor da Administração Pública, violentando o princípio constitucional da moralidade administrativa, o qual impõe aos órgãos públicos e seus agentes o dever de atuar na conformidade dos princípios éticos. Compreendem-se, inserto na moralidade administrativa, os princípios da lealdade e da boa-fé, os quais impõem à Administração o dever de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo vedado qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direito por parte dos cidadãos (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 31ª edição, pg. 123). 146 BOOK.indb 146

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Esse comportamento malicioso, regado de astúcia, é bem ressaltado na ausência de racionalidade no ato de retirar toda e qualquer cobertura previdenciária daquele que, aposentado, continua exercendo atividade laboral e contribuindo para o Regime Geral da Previdência Social. Exercer a administração pública é atribuição que exige capacidade de decisão, a qual não pode ser interpretada senão em associação com a racionalidade, que nada mais é senão a capacidade de ordenar preferências de modo consistente em face da realidade social em que elas são aplicadas, porquanto a escolha não é apenas uma questão de consistência e de maximização da utilidade, mas depende do contexto da ação e de outras variáveis, em especial as considerações éticas e sociais. Como já tive oportunidade de demonstrar (SILVA, Luciano Tertuliano da. Manipulação Discursiva e Crise de Estado como obstáculos à institucionalização dos Direitos Fundamentais no Brasil. Lumens Juris, Rio de Janeiro, 2017, pg. 71), no domínio da ética, a racionalidade tem um papel significativo na aprovação intersubjetiva de padrões de comportamento, daí porque ela impõe aos comportamentos dos governantes públicos a necessária consistência para qualquer atitude na qual estejam envolvidos os interesses dos administrados, implicando em que as preferências governamentais estabelecidas obedeçam às leis, principalmente a da probabilidade e da coerência. Coerência e consistência, na atividade legiferante previdenciária, indica ausência de contradição ou prefeita conformação entre a preferência estatal estabelecida e a efetiva concretização do direito fundamental à cobertura previdenciária. Consistência e coerência são, portanto, características de um conjunto de escolhas racionais. Racionalidade emblema a existência de justificativa plausível na eleição de um meio adotado à busca de um fim, de modo que inexistirá racionalidade em atos governamentais pretendentes a proteger interesses de determinados grupos ou naqueles veiculados mediante desvirtuamento retórico voltado a esconder ou pardar a verdadeira intenção. A ausência de racionalidade traz consigo a dificuldade de aceitação diante do raciocínio do homem médio, porquanto a aceitação, que ocorre na vontade e é pautada em premissas e princípios, é baseada na crença que, por sua vez, é sensível à verdade. Logo, descoberta a inverdade, carente se mostra a crença e refutável a aceitação, estabelecendo-se o desequilíbrio reflexivo. A vedação imposta pelo parágrafo 2º do artigo 18 da Lei n. 8.213/91 carece de coerência e consistência. Logo, falece-lhe a racionalidade. Com efeito, a contestação da União não foi capaz de apresentar qualquer argumento justificante da exclusão de cobertura previdenciária daquele que continua trabalhando e contribuindo para o sistema RGPS, ainda que aposentado. Logo, esse comportamento administrativo ilícito pauta-se tão somente no dogmatismo típico do positivismo. No contexto social brasileiro, no qual a Renda Mensal Inicial - RMI do benefício previdenciário de aposentadoria por tempo de contribuição 147 BOOK.indb 147

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não representa, nem de longe, o quantum pago pelo autor ao longo da vida contributiva, exigindo-lhe a manutenção da atividade laboral para assegurar a dignidade de seus vencimentos, não há consistência a amparar a preferência legislativa discriminatória e excludente emprestada ao segurado obrigatório aposentado. Isso porque ele, como qualquer outro contribuinte obrigatório, verte contribuições normais que permitem aferir sua carência, qualidade de segurado e outros requisitos mais necessários à aquisição de benefícios previdenciários. Logo, a eleição normativa não encontra amparo na realidade social previdenciária. Essa inconsistência é ainda mais ressaltada à luz da natureza jurídica vinculada da contribuição previdenciária, pela qual os valores recolhidos devem ser aplicados exclusivamente na seara previdenciária. Logo, retirar desse contribuinte a cobertura previdenciária se contribuiu previdenciariamente equivale, em último grau, a desviar tal recurso daquele que efetivamente o originou mediante contribuição. De outro modo, é patente a incoerência dessa exclusão se o segurado obrigatório, mesmo aposentado, efetiva e indiscutivelmente continua a contribuir, a verter valores, mensalmente para manter o próprio Regime Geral de Previdência Social que, agora, pretende excluí-lo por causas, ressalte-se, supervenientes à aposentação e absolutamente normais a toda e qualquer pessoas em situação laboral. Essa incoerência é maior porque os órgãos previdenciários não hesitam em cobrar e nem em receber em seus cofres os valores dessas contribuições vertidas pelo segurado aposentado e, mesmo assim, pretendem fugir de qualquer responsabilidade previdenciária sobre esses contribuintes. Não havendo racionalidade entre cobrar contribuição previdenciária do segurado aposentado e excluí-lo de toda e qualquer cobertura de igual natureza, a aceitação constitucional desse comportamento legislativo é absolutamente inviável. Essa não aceitação, ademais, é oriunda do fato de que a Administração Pública, sobre o pretexto de “equilibrar o sistema”, tem o enriquecimento sem causa por verdadeira intenção, fazendo do segurado obrigatório aposentado instrumento unicamente de arrecadação, comportamento absolutamente desconsiderante da sua condição humana. O princípio constitucional da proporcionalidade, até mesmo para emprestar eficácia ao caráter substantivo do princípio constitucional da moralidade administrativa, impõe se coloque aquele que mantém a contribuição ao Regime Geral de Previdência Social, mesmo depois de aposentado, numa nova relação previdenciária, já que a primeira exauriu-se com o júbilo. Iniciando uma nova relação previdenciária, poder-se-ia exigir desse contribuinte, segurado obrigatório, os mesmos requisitos necessários à concessão de qualquer outro benefício, como tempo de contribuição, carência, manutenção da qualidade de segurado e, principalmente, o afastamento de eventual preexistência da doença ao início da nova relação jurídico-previdenciária. A solução em tablado encontra fundamento de validade no próprio texto Constitucional na medida em que o princípio da universalidade da proteção 148 BOOK.indb 148

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social (Constituição Federal, artigo 194, inciso I), enquanto objetivo fundamental desta política social, não pode ser iludido por norma infraconstitucional que culmine por proteger insuficientemente o direito fundamental aos meios de subsistência em situação de adversidade. Se a política pública de proteção social protege insuficientemente o direito fundamental, torna-se necessária a intervenção judicial com vistas à sua correção, de modo a assegurar ao indivíduo os recursos necessários para sua existência digna em sociedade. É elementar que uma política social destinada a garantir condições dignas de subsistência à pessoa atingida por determinada contingência adversa deva orientar-se pelo critério da abolição de todas as formas de privação de recursos para subsistência, mormente a discriminação injustificada. Se uma dada contingência social, como a incapacidade para o trabalho, por exemplo, transforma-se em fator com potencialidade para suprimir da pessoa as condições de obter recursos a partir de seus esforços pessoais, a imediata compensação social se justifica em nome da preservação da vida humana e com vistas à promoção da autonomia pessoal, elementos constitutivos da dignidade humana. Quando o direito fundamental aos meios de subsistência em situação de adversidade encontra-se esvaziado porque o sistema normativo oferece proteção insuficiente a este direito fundamental, restam violados o princípio da proibição da proteção insuficiente, o princípio da universalidade da proteção humana contra riscos sociais e, ainda, o princípio da moralidade administrativa. Sendo assim, na medida em que a própria Lei nº 8.213/91, em seu artigo 18, §2º, veda ao aposentado empregado o acesso a toda e qualquer prestação da Previdência Social, excetuando tão somente o salário-família e a reabilitação profissional, o faz em flagrante ofensa ao princípio da proibição da proteção insuficiente e ao próprio princípio constitucional da isonomia, dando tratamento discricionário entre o contribuinte aposentado e o não aposentado, sem razão lógica que o justifique. A universalidade da cobertura constitui-se, em última razão, na dimensão do princípio da isonomia na Ordem Social – garantida pelo artigo 5º da Constituição Federal -, assegurando proteção igual a todos os contribuintes, sem qualquer distinção. Com todo respeito aos posicionamentos em sentido contrário, não se vislumbra qualquer justificativa plausível para a discriminação na concessão de benefícios aos segurados que se encontrem afetados por idêntica contingência social, sejam aposentados ou não, razão pela qual a opção legislativa incompatibiliza-se com a Constituição Federal. Se não há por parte da Previdência Social uma contraprestação apta a conferir aos segurados que se encontrem em idêntica situação uma proteção suficiente e adequada a todas as contingências sociais, indistintamente, não há razão para se exigir dos contribuintes aposentados empregados, segurados obrigatórios, as contribuições sociais incidentes sobre sua remuneração. 149 BOOK.indb 149

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Trata-se, mutatis mutandis, de dar aplicabilidade à mesma ratio decidendi daquela adotada pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 580.963-PR, ocasião em que foi declarada a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do artigo 34, parágrafo único, da Lei nº 10.741/20003 (Estatuto do Idoso). Nesse significativo precedente, a Suprema Corte reconheceu a omissão parcial inconstitucional do aludido dispositivo legal, ante a “inexistência de justificativa plausível para a discriminação dos portadores de deficiência em relação aos idosos, bem como dos idosos beneficiários da assistência social em relação aos idosos titulares de benefícios previdenciários no valor de até um salário mínimo”. Por tais razões, o reconhecimento da medida imperiosa, com consequente cessação imediata da cobrança da contribuição previdenciária prevista no artigo 195, I, “a”, sobre a folha de salários e rendimentos do segurado já aposentado, bem como a devolução dos valores já cobrados, respeitada a prescrição quinquenal.

REFERÊNCIAS BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo. São Paulo. Malheiros, 31ª edição, 2014; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo. Saraiva, 2010; SILVA, Luciano Tertuliano da. Manipulação Discursiva e Crise de Estado como Obstáculos à Institucionalização dos Direitos Fundamentais no Brasil. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2017.

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TUTELA DE EVIDÊNCIA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO FEDERAL:

NOTAS SOBRE A INDISPONIBILIDADE DE BENS E PENHORA ELETRÔNICA

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Marcelo Barbi Gonçalves1

INTRODUÇÃO O Novo Código de Processo Civil tem como um de seus principais objetivos o combate à morosidade processual, tendo, para tanto, instituído, entre outros institutos, a tutela de evidência. A lógica desse mecanismo é muito simples: nas hipóteses em que o direito do autor é dotado de alto grau de verossimilhança, o ônus do tempo ínsito ao procedimento deve ser carreado à parte que, provavelmente, terá deferida contra si a tutela jurisdicional.2 É fundamental perceber, porém que essa lógica de dinamização dos riscos processuais deve se dar não apenas nas hipóteses previstas nos incisos do artigo 311, senão em todas aquelas em que o juiz verificar que a espera pela formação da cognição exauriente pode retardar a satisfação da justiça, lesando desnecessariamente a parte que, provavelmente, tem razão. Cuida-se, assim, de entender que, para além da avaliação dos riscos levada a efeito pelo legislador, há que se reconhecer a possibilidade de o magistrado, no caso concreto, o fazer. A defesa de uma gestão judiciária dos riscos inerentes ao tempo do processo traz como consequencia a possibilidade de tutelas atípicas da evidência, isto é, tutela de situações nas quais o direito do autor se mostra altamente verossímil para além das hipóteses antevistas pelo legislador. Nessa linha de convicções, é preciso destacar que a tese que se vem de expor possui grande campo de aplicação na execução fiscal, a qual, como é cediço, constitui um dos principais gargalos do sistema judiciário brasileiro. Doutorando em Direito Processual (UERJ). Mestre em Direito. Juiz Federal na 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Email: goncalves1marcelo@gmail.com 2 “Se considerarmos que, nos casos em que o direito do autor é bastante provável, o risco de produção de uma injustiça pela mora na prestação jurisdicional é muito maior do que o risco de erro judiciário (sendo este o principal perigo da cognição sumária), é imperioso concluir, nessas hipóteses, pela concessão da tutela em favor do demandante”. (BODART, Bruno V. da Rós. Tutela de evidência. Teoria da cognição, análise econômica do direito processual e comentários sobre o novo CPC. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2015, p. 112). 1

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Segundo o Relatório Justiça em Números de 2016 do CNJ, constava no Poder Judiciário um acervo de quase 74 milhões de processos pendentes de baixa no final do ano de 2015, dentre os quais, mais da metade (51,9%) se referiam à fase de execução. O impacto da execução é significativo não somente no âmbito do Poder Judiciário, como também nos três principais segmentos de justiça, e representam, 53,7%, 50% e 41,9% do acervo das Justiças Estadual, Federal e do Trabalho, respectivamente. Dentre as execuções pendentes, 82,7% (32 milhões) estão na Justiça Estadual, 11,8% (4,5 milhões) estão na Justiça Federal e 5,5% (2,1 milhões), na Justiça do Trabalho. Com efeito, os processos de execução fiscal são os grandes responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Poder Judiciário, tendo em vista que representam aproximadamente 39% do total de casos pendentes e apresentaram congestionamento de 91,9%, o maior dentre os tipos de processos analisados neste relatório. Além disso, os processos desta classe apresentam alta taxa de congestionamento (91,9%), ou seja, de cada 100 processos de execução fiscal que tramitaram no ano de 2015, apenas 8 foram baixados. Desconsiderando estes processos, a taxa de congestionamento do Poder Judiciário cairia de 72,2% para 63,4% no ano de 2015 (redução de 9 pontos percentuais). A maior taxa de congestionamento de execução fiscal está na Justiça Federal (93,9%), e a menor, na Justiça do Trabalho (75,8%). À vista desse quadro é que se deve estudar a atipicidade da tutela de evidência como mecanismo adequado para combater a morosidade processual. Antes de ingressar especificamente no ponto, porém, é preciso fazer uma distinção conceitual, a qual será traçado no próximo item.

1. A INDISPONIBILIDADE DE BENS DO ART. 185-A DO CTN X PENHORA ON LINE: ASPECTOS DISTINTIVOS O processo, concebido como instrumento de realização dos direitos materiais, passou, no limiar de um novo século, a se submeter ao desafio da efetividade, postulado moderno que exige a aptidão dos instrumentos de tutela à consecução dos fins para os quais foram constituídos. Sob essa ótica, fartam as críticas acerca da natural demora da prestação jurisdicional, gerando insatisfação prática e jurídica para aqueles que se veem compelidos a recorrer ao Judiciário na busca da solução de seus conflitos. Esse fenômeno, no campo da arrecadação fiscal, recebeu novas luzes com a edição da LC 118/2005. Por um lado, este diploma - editado com o escopo de adequar a disciplina da cobrança do crédito fiscal às alterações introduzidas pela Lei de Falência - flexibilizou várias garantias do crédito público em prol da reestruturação econômica da unidade produtiva. Por outro, e de forma a contrabalançar esse regime de mitigação das prerrogativas tributárias, trouxe a figura da indisponibilidade dos bens do executado no art. 185-A do Código Tributário Nacional. 152 BOOK.indb 152

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É imprescindível destacar, logo de plano, a sua finalidade conservativa. Esse ponto é sobremaneira relevante, pois parcela significativa da doutrina sustenta que a LC 118/05 inova o ordenamento ao prever a possibilidade de o Fisco se utilizar da penhora eletrônica nas execuções fiscais.3 É importante perceber que a LC 118/05 não regulamenta a penhora on line no âmbito tributário, pois cada qual dessas medidas possui natureza jurídica, requisitos e momento procedimental específicos. A indisponibilidade de bens e direitos consubstancia uma medida instrumental à futura penhora a ser realizada no processo executivo, ostentando natureza cautelar.4 Cuida-se, portanto, de uma tutela vocacionada a garantir a eventual frutuosidade da execução fiscal, ou seja, não implica a satisfação antecipada do direito do Fisco. Da mesma forma, a indisponibilidade não gera direito de prelação em favor daquele que obteve a medida, ou seja, não outorga primazia no caso de concurso de credores. Percebe-se, assim, que a medida prevista no art. 185-A do CTN possui natureza cautelar, da mesma forma que aquela instituída pelo art. 4° da Lei 8.397/1992, segundo o qual a decretação da medida cautelar fiscal produzirá, de imediato, a indisponibilidade dos bens do requerido. Destarte, não há como confundi-los com a penhora, que é ato de constrição judicial sobre patrimônio específico da parte executada, ou seja, tem por objeto bem certo e individualizado (recursos financeiros aplicados em instituições bancárias). Em virtude de seu caráter cautelar, não há perda da titularidade sobre os bens. Não há que se falar, também, em perda da posse, pois, à diferença da penhora, não ocorre transferência da posse direta para o depositário.5 Como SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 765; CATUNDA, Camila Vergueiro. A penhora on-line – o Código Tributário Nacional, o Código de Processo Civil e o Diálogo das Fontes. Revista Tributária das Américas vol. 6, jul./2012, p. 2 (formato eletrônico); CHAGAS, Gustavo Luís Teixeira das. Comentários à penhora on line aplicada às execuções fiscais. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo n. 5, 2006, p. 53; TAKANO, Caio Augusto. A penhora eletrônica nas execuções fiscais à luz da Teoria dos Direitos Fundamentais. Revista Direito Tributário Atual n. 28, 2012, p. 14; _____; Penhora eletrônica nas execuções ficais: limites normativos. Revista Dialética de Direito Tributário n. 215, ago./2013, p. 26. 4 Igualmente: DADICO, Cláudia Maria. A indisponibilidade patrimonial do executado do art. 185-A do CTN - Contribuição para o esboço de um regime jurídico. Revista da AJUFERGS n.5, 2008, p. 73; BANDEIRA NETO, Milton. Medida cautelar fiscal versus indisponibilidade do art. 185-A do CTN: um paralelo sobre a convivência dos institutos no ordenamento jurídico brasileiro. In: PAVIONE, Lucas dos Santos; AMORIM SILVA, Luiz Antonio. Temas Aprofundados - AGU. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 360; MENDES DA SILVA, Márcio Henrique; BEGO, Thiago Pucci; OLIVEIRA, Danilo Mendes de; Considerações acerca das principais alterações no processo de execução de título extrajudicial trazidas pela Lei 11.382/2006 e seus reflexos perante a Lei de Execuções Fiscais. Revista de Processo n. 156, fev./2008, p. 19 (formato eletrônico). 5 “De outro lado, um outro efeito decorrente da penhora é a apreensão física e desapossamento do bem em face do devedor. O devedor perde a posse imediata sobre a coisa penhorada e, ainda que nomeado seu depositário, exercerá a posse sob outro título, já na condição de auxiliar do juízo. Havendo risco de desaparecimento ou deterioração dos bens, a lei faculta a guarda em estabelecimentos oficiais de crédito ou em depositário judicial ou particular, 3

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não possui natureza executiva, a indisponibilidade não individualiza a responsabilidade patrimonial do executado, ou seja, não destaca o bem sobre o qual irão recair os atos expropriativos. Nessa linha de entendimento, intuitivo que o ato que decreta a indisponibilidade patrimonial não pode ser confundido com aquele que determina a penhora. Veja-se que, nos termos do § 5º do art. 854, NCPC, a indisponibilidade do valor executado apenas se converterá em penhora caso rejeitada ou não apresentada a manifestação do executado. Ora, se a indisponibilidade converte-se em penhora na hipótese de malogro da irresignação do executado, é evidente que aquela e esta são institutos distintos. O ponto no qual a penhora e a indisponibilidade se irmanam refere-se à ineficácia relativa dos negócios jurídicos de oneração/alienação do bem sobre o qual recai o ato satisfativo ou cautelar. Significa dizer que em ambos há uma limitação ao direito de disposição, subtraindo do titular do domínio a faculdade jurídica de, eficazmente, dispor do bem penhorado ou indisponível. Não há qualquer mácula no plano da validade da transmissão, mas esta não opera os seus efeitos perante a execução na qual a penhora ou a indisponibilidade foi decretada.6 Dessa forma, registre-se que a afirmação de que a indisponibilidade patrimonial presta uma tutela jurisdicional cautelar traz como exigência para a sua concessão a presença dos requisitos previstos no art. 300 do CPC/15, segundo o qual a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. O periculum in mora exigível refere-se à futura tutela: há um risco de malogro da prestação jurisdicional principal e definitiva. De sua parte, o fumus boni juris é a cognição sumária levada a efeito pelo juiz no caso de urgência; não é, porém, requisito que autorize o demandante a demonstrar de forma insuficiente a sua pretensão, mas antes situa-se norma in procedendo que admite o julgar pelas aparências. No caso da indisponibilidade fiscal, os requisitos legalmente estipulados são: (i) citação do executado; (ii) inexistência de pagamento ou de oferecimento de bens à penhora no prazo legal; e, por fim, nos termos do Enunciado n. 560 da Súmula de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,7 (iii) a não localização de bens penhoráveis após esgotamento das diligências realizadas pela Fazenda. dependendo da natureza dos bens penhorados (art. 666 do CPC). Na indisponibilidade, conceitualmente, não há perda da posse, mas tão somente do direito de disposição”. (DADICO, Cláudia Maria. Op. cit., p. 58). 6 “Por fim, não é demais repisar que a indisponibilidade não retira do devedor a propriedade nem a posse dos bens, somente impede que tais bens sejam alienados eficazmente, resguardando futura constrição de bens para fins de penhora, não sendo medida satisfativa”. (BANDEIRA NETO, Milton. Op. cit., p. 378). 7 Súmula 560 do STJ: “A decretação da indisponibilidade de bens e direitos, na forma do art. 185 - A do CTN, pressupõe o exaurimento das diligências na busca por bens penhoráveis, o qual fica caracterizado quando infrutíferos o pedido de constrição sobre ativos financeiros e a expedição de ofícios aos registros públicos do domicílio do executado, ao Denatran ou Detran”.

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Fácil perceber que, nessa hipótese, o fumus boni juris é representado pela existência de um título executivo extrajudicial (CDA) que goza da presunção de certeza e liquidez (art. 3º, Lei 6.830/80), isto é, mais do que probabilidade, há uma certeza relativa do direito vindicado pelo Fisco. A urgência decorrente do periculum in mora, por sua vez, vincula-se à constatação cumulativa de elementos de cariz subjetivo (comportamento omissivo do devedor que, mesmo citado, não paga ou nomeia bens à penhora) e objetivo (inexistência de bens penhoráveis).8 A constatação da probabilidade do direito é uma exigência prevista no art. 798, CPC/15 ao dispor que, ao propor a execução, incumbe ao exequente instruir a petição inicial com o título executivo extrajudicial. Ou seja, o fumus boni juris decorre, ipso facto, da propositura regular da ação executiva. O risco ao resultado útil do processo, todavia, pressupõe que o magistrado, previamente à decretação da medida cautelar, averigue a presença do elemento objetivo, ou seja, se existem outros bens livres do devedor para garantia da dívida. Há, portanto, o dever de o Fisco esgotar as diligências para localização de bens do devedor.9 Nesse sentido, veja-se o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que se verifica o esgotamento das diligências quando demonstradas as seguintes medidas: (i) acionamento do Bacen Jud; e (ii) expedição de ofícios aos registros públicos do domicílio do executado e ao Departamento Nacional ou Estadual de Trânsito - DENATRAN ou DETRAN.10 “(...) O legislador erigiu a ausência de indicação de bens à penhora pelo executado, bem como a busca não exitosa de bens no patrimônio do devedor como uma hipótese de perigo presumido, abstratamente norma do pelo legislador”. (DADICO, Cláudia Maria. Op. cit., p. 74). 9 Por todos: “Cabe ao Fisco, pois, enquanto exequente, demonstrar a prévia realização de diligências (verificação de bens junto ao registro de imóveis e ao departamento de trânsito) e a frustração daquelas realizadas pelo oficial de justiça no domicílio do executado”. (PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 4ª ed., Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2009, p. 205). 10 TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. EXECUÇÃO FISCAL.ART. 185-A DO CTN. INDISPONIBILIDADE DE BENS E DIREITOS DO DEVEDOR. ANÁLISE RAZOÁVEL DO ESGOTAMENTO DE DILIGÊNCIAS PARA LOCALIZAÇÃO DE BENS DO DEVEDOR. NECESSIDADE. 1. Para efeitos de aplicação do disposto no art. 543-C do CPC, e levando em consideração o entendimento consolidado por esta Corte Superior de Justiça, firma-se compreensão no sentido de que a indisponibilidade de bens e direitos autorizada pelo art. 185-A do CTN depende da observância dos seguintes requisitos: (i) citação do devedor tributário; (ii) inexistência de pagamento ou apresentação de bens à penhora no prazo legal; e (iii) a não localização de bens penhoráveis após esgotamento das diligências realizadas pela Fazenda, caracterizado quando houver nos autos (a) pedido de acionamento do Bacen Jud e consequente determinação pelo magistrado e (b) a expedição de ofícios aos registros públicos do domicílio do executado e ao Departamento Nacional ou Estadual de Trânsito - DENATRAN ou DETRAN. 2. O bloqueio universal de bens e de direitos previsto no art. 185-A do CTN não se confunde com a penhora de dinheiro aplicado em instituições financeiras, por meio do Sistema BacenJud, disciplinada no art. 655-A do CPC. 3. As disposições do art. 185-A do CTN abrangerão todo e qualquer bem ou direito do devedor, observado como limite o valor do crédito tributário, e dependerão do preenchimento dos seguintes requisitos: (i) citação do executado; (ii) inexistência de pagamento ou de oferecimento de bens à penhora no prazo legal; e, por fim, (iii) não forem encontrados bens penhoráveis. 4. A aplicação da referida prerrogativa da Fazenda Pública 8

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Essa disciplina, porém, conforme evidenciam os números apresentados na segunda seção, é insuficiente aos desígnios de uma justiça tributária embasada em um procedimento efetivo de arrecadação fiscal. Com efeito, o módulo procedimental executivo não tem apresentado os efeitos esperados. E isso é ainda mais grave quando se tem em linha de consideração que a inefetividade da execução fiscal afronta o interesse público, eis que o recolhimento de tributos serve à satisfação das necessidades coletivas em um Estado Social de Direito. Desse modo, urge que, dentro do arcabouço normativo, novas alternativas sejam aventadas. A atividade acadêmica crítica, que questiona dogmas e práticas enraizadas, possui inegável importância. Sem embargo, a desconstrução pela desconstrução pouco acrescenta ao Direito quando não acompanhada por novas propostas. Daí surge a necessidade de refundação do novo. Horizontes precisam ser anunciados para que sejam alcançados. A sociedade carece de um processo de execução fiscal efetivo. Como não se prescinde de um instrumental viabilizador do crédito fazendário, quem investe contra algo que mal funciona tem o dever de propor algo que o faça melhor. Por essas razões, entende-se que o instituto da tutela da evidência deve projetar luz sobre o processo fiscal a fim de que novas alternativas processuais sejam testadas.

2. DA TUTELA DA EVIDÊNCIA DO CRÉDITO FISCAL A prática judiciária indica casos em que não se revela justa a demora da prestação jurisdicional, mercê de inexistir qualquer situação de perigo. Cuida-se de casos de evidência, diametralmente distintos das hipóteses de verossimilhança que se descortinam nas providências cautelares. Para o direito evidente, a inadequação do procedimento ordinarizado revela-se de plano, uma vez que esboçado para servir de instrumento a uma morosa averiguação do direito dos contendores, o que, in casu, se torna desnecessária pela própria “evidência” da pressupõe a comprovação de que, em relação ao último requisito, houve o esgotamento das diligências para localização de bens do devedor. 5. Resta saber, apenas, se as diligências realizadas pela exequente e infrutíferas para o que se destinavam podem ser consideradas suficientes a permitir que se afirme, com segurança, que não foram encontrados bens penhoráveis, e, por consequência, determinar a indisponibilidade de bens. 6. O deslinde de controvérsias idênticas à dos autos exige do magistrado ponderação a respeito das diligências levadas a efeito pelo exequente, para saber se elas correspondem, razoavelmente, a todas aquelas que poderiam ser realizadas antes da constrição consistente na indisponibilidade de bens. 7. A análise razoável dos instrumentos que se encontram à disposição da Fazenda permite concluir que houve o esgotamento das diligências quando demonstradas as seguintes medidas: (i) acionamento do Bacen Jud; e (ii) expedição de ofícios aos registros públicos do domicílio do executado e ao Departamento Nacional ou Estadual de Trânsito - DENATRAN ou DETRAN. 8. No caso concreto, o Tribunal de origem não apreciou a demanda à luz da tese repetitiva, exigindo-se, portanto, o retorno dos autos à origem para, diante dos fatos que lhe forem demonstrados, aplicar a orientação jurisprudencial que este Tribunal Superior adota neste recurso. 9. Recurso especial a que se dá provimento para anular o acórdão impugnado, no sentido de que outro seja proferido em seu lugar, observando as orientações delineadas na presente decisão. (Resp nº 1.377.507/SP, Rel. Min. Og Fernandes, Primeira Seção, j. 26.11.2014).

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pretensão. São situações, portanto, em que se opera mais do que o fumus boni juris e há grave risco de desprestígio para o Poder Judiciário, já que injusta a espera determinada.11 Nesse contexto, o novo Código de Processo Civil previu, de forma inovadora, um regime geral regulador da tutela de evidência, a qual é concedida independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo (art. 311).Vê-se, desse modo, que não apenas a urgência deve fundamentar a concessão de uma tutela provisória destinada a disciplinar os impactos do tempo no processo. Mas é preciso perceber que existem hipóteses de evidência para além daquelas típicas detectadas pelo legislador nos incisos do art. 311 do CPC. Aliás, mesmo nesse diploma processual, vislumbram-se situações esparsas em que o estado de robustez com que as afirmações se apresentam em juízo justificam uma tutela diferenciada. Pense-se, a respeito, na liminar na ação possessória de força nova (art. 562, NCPC); na liminar dos embargos de terceiro (art. 678); no mandado de pagamento expedido com base em cognição sumária face à apresentação de uma prova documental na ação injuncional (art. 700). Outro tanto não se passa com a legislação extravagante. É a macroscópica juridicidade da pretensão que, ante o direito líquido e certo, autoriza a concessão da ordem no mandado de segurança (art. 7, Lei 12.016/09); a ordem de despejo prevista na Lei de Locações (art. 59, § 1º, Lei 8.245/91); a execução extrajudicial do imóvel objeto do crédito hipotecário submetido ao regime do Sistema Financeiro de Habitação (art. 32, Dec.-lei 70, de 21.11.1966); a busca e apreensão liminar do bem alienado fiduciariamente (art. 3º, Dec.-lei 911, de 01.10.1969). Essas hipóteses nominadas não podem, todavia, exaurir todas as situações em que, na práxis, a pretensão autoral ostenta um fulgor de juridicidade praticamente incontrastável pelo demandado. Por essa razão, é importante reconhecer ao art. 311, CPC uma dupla funcionalidade, quais sejam: (i) preceptiva, ou seja, traz um dever-ser no sentido de que, verificada alguma situação que se subsuma no suporte fático, deve a tutela provisória ser concedida; e (ii) orientativa, isto é, traz hipóteses-guia que devem nortear o intérprete no trabalho de verificação de pretensões inominadas fundadas na evidência que devem receber pronta resposta jurisdicional independentemente de perigo de dano. Essa segunda dimensão vincula-se diretamente com o princípio da adequação, o qual que deve nortear a eleição do procedimento, da cognição, dos atos executivos e das técnicas decisórias à luz das necessidades de tutela do direito 11

“A problemática é tanto mais relevante, posto que o processo hodiernamente se encontra sob o crivo da “efetividade” dos direitos, que reclama realizabilidade prática, satisfatividade plena e celeridade. Essa dissintonia entre o processo e as novas exigências revela uma “crise” capaz de ser solucionada com ‘novos instrumentos’, diante desse fenômeno dos ‘novos direitos’ ou ‘novos anseios’. Assim como nos primórdios o anseio era da justiça institucionalizada contra a justiça privada, hoje a aspiração social é a da ‘justiça urgente’ em confronto com a ‘justiça ordinária e ritual’.” (FUX. Luiz. Tutela de Segurança e Tutela da Evidência. (Fundamentos da tutela antecipada). São Paulo: Saraiva, 1996, p. 305/306).

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substancial por parte do legislador e, também, pelo magistrado. Em palavras outras, a conformação do iter processual de acordo com a situação jurídica de direito material subjacente ao litígio é um imperativo que se impõe, seja na fase de elaboração legislativa, seja na de aplicação do direito pelo intérprete.12 Por isso, e tendo em vista que a evidência é um fato jurídico processual caracterizado pelo “estado em que as afirmações de fato estão comprovadas”,13 a prestação de tutela jurisdicional célere independentemente da demonstração de perigo é um imperativo decorrente do art. 5º, XXXV, CRFB/1988. A realização pecuniária fiscal representa, nesse contexto, uma hipótese em que a pretensão executiva encontra suporte em um título executivo dotado de uma presunção de certeza que somente pode ser ilidida por prova inequívoca, a cargo do executado ou de terceiro (art. 3º, § único, Lei 6.830/80). Isso porque a formação da Certidão de Dívida Ativa pressupõe a manifestação volitiva do contribuinte (declarações de rendimentos, DCTF, GFIP), ou, ainda, a ultimação de um processo administrativo em que lhe são asseguradas as garantias do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Nodal somar, a esse registro, a afirmação de que a execução fiscal consubstancia o modo de impor compulsoriamente o adimplemento dos tributos àqueles que não cumprem espontaneamente com suas obrigações legais, já que concretiza o princípio da capacidade contributiva na medida em que confere efetividade à relação jurídica tributária. Nessa linha de considerações, as peculiaridades dessa situação jurídica de direito substancial devem influenciar o iter procedimental de modo a autorizar a concessão de uma tutela de evidência executiva a fim de se antecipar a penhora dos bens do executado. Em palavras outras, a CDA é um documento que legitima a inversão do ônus do tempo no processo, adiantando cronologicamente a realização de atos executivos a fim de se garantir a efetividade da execução fiscal. Com efeito, a posposição da penhora à integração do devedor à relação processual tem acarretado graves consequências à efetividade do processo executivo fiscal. Conforme anteriormente salientado, de acordo com a pesquisa A execução fiscal no Brasil e o impacto no Judiciário, em 15% dos processos fiscais há penhora de bens, e somente um terço dessas resulta da apresentação voluntária de bens pelo devedor. Trata-se, pois, de uma realidade que favorece exclusivamente o devedor contumaz que se vale da ineficácia do Poder Judiciário para lograr ilegítimas vantagens competitivas em um ambiente de livre mercado. E é justamente com os olhos postos no princípio segundo o qual a execução deve ser feita no interesse do credor que o Superior Tribunal de No sentido de que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva não se limita a incidir em face do legislador, exigindo postura proativa do Judiciário, notadamente nas hipóteses em que não há regra processual expressa definindo a técnica processual adequada, ver: MARINONI, op. cit., p. 29 passim. 13 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.Vol. 2. 10ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 617. 12

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Justiça validou a penhora por meio do sistema do BACEN-JUD sem a prévia citação do executado.14 É fulcral assentar, mais uma vez, que a antecipação da penhora é uma tutela satisfativa que não se confunde com a cautelar de indisponibilidade de bens prevista no art. 185-A CTN. Dessa forma, os requisitos legais previstos para esta última não podem ser mutuados para a tutela de evidência, que prescinde da demonstração do perigo na demora e está vocacionada a redistribuir o dano marginal decorrente do decurso do tempo subjacente ao arco procedimental. Essa afirmativa é particularmente importante no que se refere a dois requisitos. O primeiro refere-se à exigência de localização de bens penhoráveis após esgotamento das diligências realizadas pela Fazenda, a qual é pressuposto apenas para a medida de indisponibilidade patrimonial. A penhora eletrônica, por sua vez, não demanda a prova, por parte do credor, de exaurimento de vias extrajudiciais na busca de bens a serem penhorados.15 O segundo relaciona-se à necessidade de prévia citação do executado, a qual é requisito apenas da indisponibilidade.Veja-se que, no âmbito federal, a penhora eletrônica simultânea à citação do executado já possui previsão no art. 53 da Lei 8.212/1991. Inobstante este dispositivo, a jurisprudência majoritária dos tribunais regionais federais persiste sustentando que a citação válida é requisito essencial para o deferimento da penhora eletrônica.16 “De fato, esta Segunda Turma já teve a oportunidade de se pronunciar sobre a questão, ocasião em que se decidiu pela possibilidade de se efetuar a penhora por meio do sistema do BACEN-JUD, sem a prévia citação do executado. Tal medida se justifica, a fim de garantir maior eficácia à medida, que não tem se mostrado eficiente quando posterior à citação do executado”. (AgRg no Agravo em Resp nº 118.578/BA, Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, j. 12.04.2013). O precedente citado é o Resp nº 1.166.842/BA, Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 23.03.2010. 15 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO CIVIL. PENHORA. ART. 655-A DO CPC. SISTEMA BACEN-JUD. ADVENTO DA LEI N.º 11.382/2006. INCIDENTE DE PROCESSO REPETITIVO. I - JULGAMENTO DAS QUESTÕES IDÊNTICAS QUE CARACTERIZAM A MULTIPLICIDADE. ORIENTAÇÃO – PENHORA ON LINE. a) A penhora on line, antes da entrada em vigor da Lei n.º 11.382/2006, configura-se como medida excepcional, cuja efetivação está condicionada à comprovação de que o credor tenha tomado todas as diligências no sentido de localizar bens livres e desembaraçados de titularidade do devedor. b) Após o advento da Lei n.º 11.382/2006, o Juiz, ao decidir acerca da realização da penhora on line, não pode mais exigir a prova, por parte do credor, de exaurimento de vias extrajudiciais na busca de bens a serem penhorados. (Resp 1.112.943/MA, Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, j. 15.09.2010). 16 No Tribunal Regional Federal da 1ª Região: AG 0070331-56.2011.4.01.0000/MG, Sétima Turma, Rel. Des. Fed. Luciano Tolentino Amaral, e-DJF1 27/04/2012; AG 001558027.2008.4.01.0000/PA, Oitava Turma, Rel. Juiz Federal Cleberson José Rocha (Conv.), e-DJF1 25/03/2011; AGA 0076438-82.2012.4.01.0000/BA, Sétima Turma, Rel. Des. Fed. Reynaldo Fonseca, e-DJF1 13/12/2013. No Tribunal Regional Federal da 2ª Região: AG 2012.02.01.016827-6, Rel. Des. Fed. Guilherme Couto de Castro, j. 17/12/2012; AG 2012.02.01.004504-0, Rel. Juíza Fed. Conv. Carmen Silvia Lima de Arruda, j. 10/5/2012; AG 201402010036459, Rel. Des. Fed. Claudia Maria Bastos Neiva,Terceira Turma, j.12/08/2014; AG 201402010022242, Rel. Des. Fed. Vera Lucia Lima, Oitava Turma, j. 02/07/2014, j. 15/07/2014. No Tribunal Regional Federal da 3ª Região: AI 00339185320124030000 Rel. Des. Fed. Nery Junior,Terceira Turma, j. 26/04/2013; AI 00155278420114030000, Rel. Des. 14

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O ponto comum a esses julgados é a referência a três acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, os quais devem ser aqui analisados a fim de se perquirir se a aplicação da ratio decidendi está correta. No Resp. 1.044.823/PR, Rel. Min. Francisco Falcão, Dje 15.09.2008, afirmou-se que “conforme preceitua o art. 185-A do Código Tributário Nacional, apenas o executado validamente citado que não pagar e nem nomear bens à penhora é que poderá ter seus ativos financeiros indisponibilizados por meio do BACEN-JUD”. No AgRg no Resp. 1.218.988/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 30.05.2011, por sua vez, a tese jurídica debatida referia-se à possibilidade de penhora de ofício, veja-se:“A constrição de ativos financeiros da executada por meio do Sistema Bacen Jud depende de requerimento expresso da exequente, não podendo ser determinada ex officio pelo magistrado”. Por fim, no AgRg no Resp. 1.296.737/BA, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 20.02.2013, faz-se alusão aos dois “precedentes” supracitados para fim de se afirmar que a penhora eletrônica, nos termos do art. 185-A do CTN exige que o executado tenha sido validamente citado.17 Ora, é cristalino que a aplicação desses julgamentos à discussão concernente à necessidade de ultimação da citação antes da penhora é manifestamente descabida. Isso porque os julgados tratam de temas absolutamente distintos ao tema ora versado: possibilidade de penhora de ofício e requisitos para a concessão de tutela cautelar de indisponibilidade. Além disso, destaque-se que o dinheiro sempre recebeu tratamento privilegiado no que diz respeito à classificação como bem sobre o qual, preferencialmente, deve recair a penhora. O que é acaciano à vista de sua liquidez. Se Fed. Regina Costa, Sexta Turma, j. 29/09/2011; AI 00619625820074030000, Rel. Des. Fed. Cecília Marcondes,Terceira Turma, j. 07/10/2011. No Tribunal Regional Federal da 4ª Região: AG 00095987720104040000, Rel. Des. Fed. Otávio Roberto Pamplona, Segunda Turma, j. 19/05/2010; No Tribunal Regional Federal da 5ª Região: AG 00096864920144050000, Rel. Des. Fed. Marcelo Navarro,Terceira Turma, j. 06/03/2015; AG 00009158220144050000, Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano, Terceira Turma, j. 10/06/2014. 17 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. BACEN-JUD (PENHORA ON LINE). ART. 185-A DO CTN. POSSIBILIDADE DE BLOQUEIO DE ATIVOS FINANCEIROS EM DEPÓSITO DESDE QUE O EXECUTADO,VALIDAMENTE CITADO, DEIXE DE PAGAR A DÍVIDA OU NOMEAR BENS PASSÍVEIS DE PENHORA. PRECEDENTE: RESP. 1.044.823/PR, REL. MIN. FRANCISCO FALCÃO, DJE 15.09.2008. AGRAVO REGIMENTAL DA FAZENDA NACIONAL DESPROVIDO. 1. O entendimento desta Corte Superior orienta-se no sentido de que apenas o executado validamente citado que não pagar nem nomear bens à penhora é que poderá ter seus ativos financeiros bloqueados por meio do sistema conhecido como BACEN-JUD, sob pena de violação ao princípio do devido processo legal 2. A constrição de ativos financeiros da executada por meio do Sistema Bacen Jud depende de requerimento expresso da exequente, não podendo ser determinada ex officio pelo magistrado. Inteligência do artigo 655-A do Código de Processo Civil. 3. Precedentes: REsp. 1.044.823/PR, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe 15.09.2008 e AgRg no REsp. 1.218.988/ RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 30/05/2011. 4. Agravo Regimental da Fazenda Nacional desprovido. (AgRg no REsp. 1.296.737/BA, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 20.02.2013).

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assim o é, não se pode olvidar que a penhora mediante BACENJUD deve ser estimulada pelo sistema, pois é o meio por excelência para acessar os depósitos em instituições financeiras. Registre-se, por fim, que, prevalecendo a orientação em sentido contrário à ora defendida, o art. 53 da Lei 8.212/1991 jamais atingirá o seu escopo de conferir maior celeridade à execução fiscal, pois o executado terá sempre a oportunidade de subtrair seus bens à futura constrição patrimonial.18

CONCLUSÃO É assente na doutrina, jurisprudência e institutos de pesquisa que o processo de execução fiscal, tal como atualmente praticado, precisa ser aprimorado.Trata-se, conforme constatado pelos dados estatísticos acostados, de um dos módulos procedimentais mais inefetivos da processualística brasileira. Não fosse por esse motivo, é igualmente pacífico que a higidez da arrecadação tributária representa um instrumento essencial ao Estado de Direito. Sim, porque representa o modo de impor compulsoriamente o adimplemento da carga tributária àqueles que não cumprem espontaneamente com suas obrigações legais, violando, com esse comportamento, o princípio da capacidade contributiva. Por essas razões, entende-se que a decretação da penhora eletrônica inaudita altera pars, a partir do fato processual da evidência consubstanciada na certidão de dívida ativa, é medida que se impõe em prol de um processo civil voltado à efetividade da relação jurídica tributária.

REFERÊNCIAS BANDEIRA NETO, Milton. Medida cautelar fiscal versus indisponibilidade do art. 185-A do CTN: um paralelo sobre a convivência dos institutos no ordenamento jurídico brasileiro. In: PAVIONE, Lucas dos Santos; AMORIM SILVA, Luiz Antonio. Temas Aprofundados - AGU. Salvador: Juspodivm, 2012. BODART, Bruno V. da Rós. Tutela de evidência.Teoria da cognição, análise econômica do direito processual e comentários sobre o novo CPC. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2015. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo nº 105, jan.-mar./2002. CATUNDA, Camila Vergueiro. A penhora on-line – o Código Tributário Nacional, o Código de Processo Civil e o Diálogo das Fontes. Revista Tributária das Américas vol. 6, jul./2012. Consigne-se, ainda, que até a presente data, apenas o Ministro Herman Benjamin se manifestou expressamente quanto ao art. 53 da Lei 8.212/1991, e o fez nos seguintes termos: “A penhora deve ser realizada concomitantemente à citação, e não antes desse ato processual. Portanto, ao contrário do que alega a parte recorrente, a norma não autoriza a efetivação da penhora antes da citação”. (Resp 1287915/BA, Segunda Turma, DJe 11/09/2012). No mesmo sentido: AgRg no Agravo em Resp nº 507.114/PE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 05/08/2014.

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CHAGAS, Gustavo Luís Teixeira das. Comentários à penhora on line aplicada às execuções fiscais. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo n. 5, 2006. DADICO, Cláudia Maria. A indisponibilidade patrimonial do executado do art. 185-A do CTN - Contribuição para o esboço de um regime jurídico. Revista da AJUFERGS n.5, 2008. DENTI,Vittorio. La giustizia civile. Bologna: Il Mulino, 1989. DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil.Vol. 2. 10ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015. FUX. Luiz. Tutela de Segurança e Tutela da Evidência. (Fundamentos da tutela antecipada). São Paulo: Saraiva, 1996. MENDES DA SILVA, Márcio Henrique; BEGO, Thiago Pucci; OLIVEIRA, Danilo Mendes de; Considerações acerca das principais alterações no processo de execução de título extrajudicial trazidas pela Lei 11.382/2006 e seus reflexos perante a Lei de Execuções Fiscais. Revista de Processo n. 156, fev./2008. PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 4ª ed., Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2009. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. TAKANO, Caio Augusto. A penhora eletrônica nas execuções fiscais à luz da Teoria dos Direitos Fundamentais. Revista Direito Tributário Atual n. 28, 2012. ______; Penhora eletrônica nas execuções ficais: limites normativos. Revista Dialética de Direito Tributário n. 215, ago./2013.

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ANÁLISE ECONÔMICA DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

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Marcelo Guerra Martins1

INTRODUÇÃO No presente texto, elaborado especialmente para marcar os 45 (quarenta e cinco) anos da fundação da AJUFE, prestigiosa associação de magistrados federais que tenho a honra de pertencer desde que ingressei na magistratura há quase 20 (vinte) anos, deixaremos a dogmática pura em segundo plano para tratarmos de um tema que, em nossa visão, representa uma visão estratégica do sistema processual civil. Nossa proposta é, em suma, tecer considerações sobre a dinâmica do sistema processual no mundo real (law in action), identificando causas e consequências da utilização oportunista ou desviante do Poder Judiciário, quer dizer, o emprego das vias judiciais não como uma maneira de buscar a satisfação de um direito desrespeitado, mas como mecanismo para, dentre outros objetivos, “tentar a sorte”, fraudar credores, protelar o cumprimento de obrigações assumidas ou forçar um acordo benévolo em favor do devedor. Ousaremos também efetuar algumas propostas que, em nosso sentir, podem auxiliar na correção da dessa utilização irregular que, dentre outros males, gera desperdício de recursos públicos e inchaço da máquina judicial, obrigando os “bons litigantes” a enfrentarem longa fila na busca por seus direitos. Em nosso socorro, chamamos os quase 20 (vinte) anos de magistratura, com experiência em todas as competências da Justiça Federal e como juiz auxiliar e instrutor no Supremo Tribunal Federal entre os anos de 2009 a 2012. Chamamos também algum estudo acadêmico que realizamos com enfoque interdisciplinar, ocasião em que pudemos navegar um pouco, modestamente é preciso reconhecer, por áreas como a economia e as finanças públicas. 1

Juiz Federal, titular da 17ª Vara de São Paulo. Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo. Professor do Mestrado em Direito da Sociedade da Informação do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU, São Paulo, Brasil. Email: mgmartin@trf3.jus.br

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Advertimos que a ideia é pensar o sistema processual civil em termos macro, isso é, em seu conjunto, de modo a identificar os incentivos que a legislação e a jurisprudência vêm proporcionando aos litigantes, e não voltar a atenção para os casos individuais. Advertimos que não pretendemos deitar palavras finais sobre o tema, muito menos verdades absolutas. Ao contrário, críticas e sugestões são muito bem-vindas.

1. ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO VERSUS INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO DIREITO É comum uma certa resistência dos juristas à chamada Análise Econômica do Direito (AED), também denominada de Direito e Economia ou Law and Economics. A causa, em nossa visão, geralmente é o temor de que os postulados da economia ou do mercado venham sobrepujar não apenas o conhecimento jurídico, mas a própria aplicação das leis. Porém, a AED é somente uma técnica de análise do sistema jurídico, técnica essa que se serve de alguns postulados básicos da ciência econômica para, desse modo, descrever os efeitos esperados de uma norma qualquer e, dependendo do resultado (positivo ou negativo), realizar proposições para melhorar o sistema. Portanto, a AED não ignora os preceitos jurídicos, ao contrário, necessita deles para que seja corretamente empregada.Trata-se, em suma, de verificar quais incentivos (ou desincentivos) que uma determina norma jurídica (lei, decreto, regulamento, etc.) provoca no meio social, levando em conta precipuamente os reflexos e consequências que envolvem a sua aplicação. Nessa linha, a AED pode ser empregada em praticamente todos os ramos do direito. Assim, por exemplo, se for exigido que os fabricantes de automóveis forneçam uma garantia mínima de 10 (dez) anos, certamente haverá uma notável elevação do preço cobrado do consumidor face à necessidade do emprego nos carros de peças e componentes de muito melhor qualidade. Logo, ao impor as regras de garantia, deve o legislador realizar um balanceamento entre os interesses dos fabricantes e dos consumidores, de modo que o automóvel não fique tão caro a ponto de somente poder ser adquirido por uma elite economicamente privilegiada, mas que também não seja uma carroça que coloque a vida humana em risco na primeira curva. Ao se exigir que os seguro de saúde cubram qualquer tipo de evento, independentemente das previsões contratuais ajustadas em cada caso, é esperado que os prêmios exigidos dos novos segurados subam consideravelmente, de modo proporcional à majoração do risco decorrente da imprevisibilidade. Noutro giro, ainda que para determinado crime a pena seja elevada, ela não produzirá um efeito dissuasório relevante se, na prática, o delinquente não vislumbrar uma real possibilidade de ser apanhado. Os exemplos acima citados, que podem se multiplicar aos milhares, nada mais são do que um exercício de AED. O que se fez foi simplesmente contrapor determinados regimes jurídicos a postulados básicos da economia que, em 164 BOOK.indb 164

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síntese, refletem o comportamento humano usual ou médio. Afinal, conforme Richard Posner: “A economia se ocupa de explicar e prognosticar tendências e conjuntos, antes que o comportamento individual de cada pessoa, e numa amostra razoavelmente grande, os desvios aleatórios do comportamento racional normal se cancelam reciprocamente”2. Pois bem, então, quais seriam esses postulados econômicos utilizados pela AED? O primeiro deles é constatação da escassez de bens e recursos em geral, o que força todas as pessoas a diuturnamente efetuarem escolhas para satisfazerem suas necessidades ou desejos. Assim, é normal que ao adquirirmos certos bens abramos mão de usufruir de outros. Cada escolha feita representa algo que deixou de ser realizado ou adquirido. Com efeito, a “lei da escassez é uma lei férrea e incontornável, tendo submetido os homens a seu jugo desde sempre”3. O segundo postulado é a constatação de que o ser humano age racionalmente para satisfazer seu próprio interesse. Não quer dizer que não existam pessoas altruístas que frequentemente deixem os próprios interesses de lado. Porém, não é o que ocorre na maioria das vezes.Tanto é que o desprendimento material chega a ser noticiado em jornais ou televisão, dada a raridade do evento4. Na verdade, esse “agir racionalmente” significa muito mais a construção de estratégias voltadas à obtenção de um prazer ou uma satisfação pessoal do que uma ação precedida de minuciosa reflexão em torno da melhor opção objetivamente considerada. Trata-se, desse modo, do sopesamento que as pessoas fazem, muitas vezes sem perceber, em torno da adequação dos meios disponíveis para o atingimento dos fins perseguidos. Por exemplo, no campo dos delitos, “o criminoso racional calcula o valor esperado da apropriação indébita, que é igual ao ganho menos a pena, multiplicada pela probabilidade de ser pego e condenado”5. O terceiro postulado é o de que o mercado em livre concorrência (leia-se, sem as distorções eventualmente causadas por monopólios ou oligopólios) promove a melhor alocação possível dos bens produzidos, pois, conforme explica Gregory Mankiw, “Uma vez que o mercado atinja seu equilíbrio, todos El análisis económico del derecho. 2ª ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 48. Richard Posner foi um dos precursores da Análise Econômica do Direito nos Estados Unidos da América. Em 1981, nomeado pelo Presidente Ronald Regan, tornou-se Juiz Federal da U.S. Court of Appeals for the Seventh Circuit, da qual foi presidente (Chief Justice) entre 1993 e 2000. 3 Fábio Nusdeo. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 27. 4 Ainda no século XVII, ao edificar as bases do utilitarismo, Jeremy Bentham já afirmava que o ser humano sempre está às voltas e sob o domínio da dor e do prazer, elementos estes que “nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para sacudir este senhorio outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo” (Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Os pensadores. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1974, vol. XXXIV, p. 09). 5 COOTER, Robert; ULEN,Thomas. Direito & economia. Porto Alegre: Bookman, 2010, p. 476. 2

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os compradores e vendedores ficam satisfeitos e não há pressão nem para cima nem para baixo sobre o preço”6. Com efeito, numa economia de mercado, os bens tendem a acabar nas mãos de quem mais os valorize, pois caso contrário a avença não ocorreria por falta de interesse de uma das partes (v.g. caso o comprador discorde do preço pedido e o vendedor se recuse a baixá-lo)7. Além disso, como em situações de livre concorrência os preços são o resultado da competição travada entre produtores pela preferência dos consumidores, aqueles primeiros auferem um lucro “normal” enquanto que os segundos pagam o “preço justo”. Por tais motivos, José Paschoal Rossetti8 considera a livre concorrência como a “estrutura de mercado que melhor parece compatibilizar os interesses privados com os da sociedade”. Nessa toada, em princípio e como regra geral, é possível afirmar, na esteira da lição de Vasco Rodrigues que “o primeiro teorema da Economia do bem-estar, afirma precisamente que, respeitadas determinadas condições, o resultado do funcionamento do mercado é eficiente”9. O quarto postulado prega que a demanda (a procura) por um determinado bem ou serviço é inversamente proporcional ao seu preço. Quanto menor o preço maior a demanda e vice-versa. É o que geralmente ocorre na maioria dos casos, salvo se estiverem em cena produtos essenciais que não possam deixar de serem consumidos ou que não encontrem substitutos próximos no mercado. Trata-se aqui da velha e conhecida “lei da oferta e demanda”. Evidentemente, a ciência da economia trabalha com variações e nuances complexas dos postulados acima, sendo certo inclusive que existem outros. Todavia, fins de uma visão sumária e prefacial da Análise Econômica do Direito, acreditamos ser suficiente o acima exposto. É importante ficar claro que Análise Econômica do Direito não se confunde com a chamada Interpretação Econômica do Direito. A primeira, como visto, se revela como uma técnica de, a partir de conhecimentos desenvolvidos pela economia, procurar identificar os efeitos de determinada norma no meio social e, se for o caso, propor modificações ou adaptações. Em suma, a AED não desconhece (nem poderia) os preceitos jurídicos, ao contrário, os utiliza como matéria prima para suas análises. Já a Interpretação Econômica do Direito consiste em dar um significado econômico a uma determinada situação jurídica, independentemente dessa MANKIN, N. Gregory. Introdução à economia. São Paulo: Thomson, 2007, p. 77. Nesse sentido: RODRIGUES,Vasco. Análise económica do direito. Coimbra: Almeidina, 2007, p. 56. Na indagação formulada por Richad Posner: “?Por qué el agricultor A oferece comprar la granja de B a un precio mayor que el precio mínimo de B por la propriedad? Porque la propriedad vale más para A que para B, lo que significa que A puede usarla para producir un bien más valioso medido por los precios que los consumidores están dispuetos a pagar” (POSNER, Richard, ob. cit., p. 34-35). 8 Introdução à economia. 12ª ed., São Paulo: Atlas, 1987, p. 303. 9 Ob. cit., p. 33. 6 7

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situação possuir tratamento normativo específico. É o que ocorre, por exemplo, quando alguém identifica o contrato de leasing com uma espécie de compra e venda ou de locação. Ora, como bem sabido, o leasing possui um tratamento jurídico próprio, constituindo-se num tipo de negócio jurídico autônomo e independente da mera locação ou mesmo da compra e venda. Dessa forma, Interpretação Econômica do Direito somente pode ser utilizada para estudos pertencentes à ciência da economia, uma vez que é capaz de simplificar situações jurídicas complexas (v.g. o contrato de leasing) tornando-as compreensíveis ao universo de conhecimento dos economistas, sem que tal simplificação represente perda relevante da acuidade dos resultados da pesquisa econômica. Portanto, não se deve confundir a Análise Econômica do Direito, ferramenta muito útil para antever efeitos e consequências das normas jurídicas, com a Interpretação Econômica do Direito, técnica que somente deve utilizada exclusivamente pelos economistas como meio de simplificação das hipóteses e observações com que trabalham10.

2. DA UTILIZAÇÃO DESVINTE DO PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL Recursos comuns tender a ser “superutilizados” o que gera desperdício e ineficiência. É o que os economistas denominam de tragédia dos comuns. Esse fenômeno geralmente se manifesta quando não há uma definição clara do direito de propriedade ou do uso de certos bens ou direitos. Por exemplo, nos edifícios onde o registro de consumo de água não é individual (ou seja, é comum), há uma clara tendência ao desperdício, na medida em que cada condômino não tem como controlar a quantidade de água que os demais gastam. Desse modo, como todos podem consumir à vontade e ninguém quer ser a única pessoa do prédio a fazer um esforço para controlar a água utilizada no chuveiro, etc., o gasto geral aumenta desnecessariamente. Em suma, como não há uma definição clara do direito, limites e ônus de utilização da água, não há incentivos para que esse recurso seja utilizado com parcimônia. Guardadas as devidas proporções, é o que, infelizmente, vem ocorrendo com o Poder Judiciário no Brasil. Melhor esclarecendo, indaga-se: qual a função primordial e mais relevante do Poder Judiciário? A resposta, ainda que com certa variação dependendo do enfoque, necessariamente deve girar sobre algo como resolver conflitos jurídicos, fazer valer direitos desrespeitados, garantir a Aos poucos, a Análise Econômica do Direito começa a ser utilizada nos Tribunais brasileiros como elemento capaz de auxiliar o juiz na tomada de uma decisão, principalmente em situações que a própria lei deixa margem ao julgador atuar, tais como: fixação de penas, multas ou valor do dano moral; ajuste de cláusulas contratuais tidas por abusivas; dilação de certos prazos, etc. (vide: COURA, Kalleo. Análise econômica do direito chega aos tribunais do país. JOTA, 01 jul. 2017. Disponível em: <https://jota.info/especiais/analise-economica-do-direito-chega-aos-tribunais-do-pais-01072017>. Acesso em: 13 jul. 2017).

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aplicação das leis, etc. Não é função da jurisdição (nem poderia ser, aliás) servir de instrumento para, dentre outras finalidades, fraudar credores, protelar o pagamento de dívidas (inclusive as estatais), forçar acordos que sejam prejudiciais a uma das partes, arriscar um resultado ou “tentar a sorte” por meio de uma demanda ou recurso qualquer. Ocorre que existem fortes indícios de que uma parcela considerável das ações que tramitam pelo Poder Judiciário brasileiro, quiçá a maioria, não tem como objetivo a reparação de um direito violado, mas, ao contrário, representa uma utilização desviante do aparato judicial. E por que isso ocorre? Provavelmente porque, além de custar pouco aos usuários, o serviço público de jurisdição no Brasil apresenta, em muitas hipóteses, baixos riscos aos litigantes oportunistas. É o que passamos a expor.

2.1. DOS RELATÓRIOS DO CNJ ACERCA DA MOROSIDADE DA JUSTIÇA CIVIL BRASILEIRA O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juntamente com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em março de 2011, divulgaram um estudo acerca das causas da morosidade judicial civil no Brasil. Trata-se de um estudo empírico que, dentre outros elementos, baseou-se em entrevistas a usuários da Justiça realizadas nos Estados do Pará, Rio Grande do Sul e São Paulo. Foram ouvidos juízes, advogados e partes, tanto pessoas físicas quanto jurídicas. O estudo menciona que no “Pará e no Rio Grande do Sul foram realizadas 40 (quarenta) entrevistas e em São Paulo foram realizadas 32 (trinta e duas) entrevistas, totalizando 112 entrevistas. Optou-se por esses 3 (três) Estados por representarem realidades sociais e econômicas distintas, o que eventualmente poderia apresentar diferenças substantivas nos resultados11, o que não se revelou ao final12. No que se refere às motivações para acionar o Poder Judiciário, a pesquisa traz resultados muito interessantes, para que não se diga preocupantes. Nesse sentido, in verbis: Aquelas motivações que surgiram nas entrevistas podem ser agrupadas em pelo menos quatro tipos distintos: ausência ou baixo nível dos BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Demandas repetitivas e morosidade da justiça civil brasileira, março de 2011, p. 48. Quanto ao método das entrevistas é informado o seguinte: “As entrevistas com os operadores internos (Juízes) e externos (advogados) do sistema judiciário foram conduzidas seguindo-se o roteiro de questões abaixo, fazendo-se pequenas alterações dependendo do tipo de entrevistado, se operador interno ou externo. Já as entrevistas com os stakeholders propriamente ditos (demandantes: pessoa física e pessoa jurídica), foram conduzidas com um roteiro aberto, iniciando-se pela narração da experiência ou experiências diretas com a justiça estadual. A partir dessa experiência foram colocadas questões pertinentes à experiência e que versavam sobre as motivações para ingressar com ação e motivação para acordo ou recurso”. 12 Segundo o estudo (p. 51): “Cabe esclarecer que, na análise das entrevistas, não foram identificadas diferenças substantivas quanto às motivações para o uso de serviços judiciários entre respondentes dos três estados analisados (Rio Grande do Sul, São Paulo e Pará)”. 11

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custos, incluindo aqui também o baixo risco; a busca de um ganho; busca do Judiciário como meio, por exemplo, para postergar responsabilidades (uso instrumental); e a percepção de ter sido lesado moral, financeira ou fisicamente. Dentre todas essas motivações, sobressaem-se em muito, na percepção dos diversos grupos de entrevistados, a conjugação de baixos custos com baixa exposição a riscos13.

Verifica-se que, dentre as diversas motivações encontradas, apenas um grupo se coaduna com a função para a qual o Poder Judiciário deveria ser realmente utilizado, ou seja,“a percepção de ter sido lesado moral, financeira ou fisicamente”. Todos os demais objetivos representam um uso desviante ou irregular. E, dentre as motivações para que alguém interponha um recurso, o estudo em foco destaca “um efeito de ‘loteria’ ou de ‘roleta russa’ nos recursos: a previsibilidade do resultado do recurso em muitos casos é muito baixa, possibilitando ao sucumbente sempre ainda uma esperança de reversão da sentença em questão”14. A morosidade da Justiça é mencionada como uma das principais causas que levam algum litigante a celebrar um acordo em juízo. Nesse quesito, o estudo informa que: “Há quem perceba que na fase de execução a demora do judiciário levaria a uma propensão de algumas partes vencedoras a aceitarem acordo. Em certa medida, a parte perdedora oferece ‘tempo’ em troca de ‘desconto’, de dinheiro na solução do caso”15. Pouco tempo depois, em julho de 2011, o CNJ divulgou outro estudo igualmente de cunho empírico e com a mesma temática, cujo conteúdo condensou pesquisas levadas a efeito por três instituições de ensino jurídico: a já referida Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)16. Dentre as diversas constatações, a FGV-SP indicou que “existem no Brasil vários canais de incentivo à judicialização dos conflitos, tais como: o próprio setor público, a advocacia e a mídia”. No caso, o setor público contribui “ao criar ou violar direitos já existentes”; a advocacia, ao propor teses novas e, em muitos casos, contratar ad exitum, o que minimiza o risco do jurisdicionado, principalmente se houver a concessão da Assistência Judiciária Gratuita. Por fim, a mídia, “incentivando o ingresso em juízo de pretensões descabidas ou que atravancam o funcionamento da máquina judiciária, sobretudo quando são divulgadas notícias incompletas ou sem o devido respaldo legal ou jurisprudencial”17. 15 16

Ob. cit., p. 07. Idem, p. 07. Ibidem, p. 07-08. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Demandas repetitivas e morosidade da justiça civil brasileira, julho de 2011. 17 Ob. cit., p. 06. 13 14

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Na mesma linha, em relação às demandas judiciais que tratem de direito do consumidor, a FGV-SP verificou que: existem muitos incentivos para o aumento da judicialização dos conflitos na área de direito do consumidor: o baixo custo de ingressar com ações aliado a uma grande possibilidade de sucesso, especialmente nos Juizados Especiais [...] a legislação processual que estimula o tratamento individual de demandas de massa ao invés de tratá-las coletivamente e evitar a proliferação de casos repetitivos; e a freqüente ausência de uniformização jurisprudencial dos Tribunais Superiores a respeito de matérias envolvendo conflitos entre o consumidor e instituições financeiras, acompanhada da constante variação da jurisprudência nos Tribunais Estaduais de todo o país.18

Resta agora considerar as possíveis causas que têm levado à utilização inadequada do Poder Judiciário no Brasil que, em nosso entendimento, são as seguintes: baixo custo para litigar, baixo risco de resultado adverso a certos postulantes, divergência jurisprudencial e morosidade do sistema. É o que passamos a discorrer, desde já ficando consignado que essas causas atuam de forma conjunta, quer dizer, cada uma estimula e é, ao mesmo tempo, estimulada pelas demais.

2.2. DOS BAIXOS CUSTOS E RISCOS PARA SE LITIGAR NO BRASIL (SETOR PÚBLICO E PRIVADO) Litigar judicialmente no Brasil é barato. Com efeito, o preço cobrado pelo serviço de jurisdição, de um modo geral, é relativamente baixo e, em alguns casos, inexistente. Dessa forma, como demanda e preço são fatores inversamente proporcionais, sendo o preço baixo a demanda naturalmente é alta, o que, por conseguinte, gera congestionamento de todo o sistema. A isso deve ser aliada a circunstância de, para certos litigantes, não haver risco de condenação em verbas sucumbenciais em caso de derrota. Primeiramente, é bem sabido que os órgãos estatais, tanto da administração direta quanto da indireta, quase sempre se encontram isentos de recolherem as taxas judiciárias quando em litígio, e isso é válido para todo o desenrolar do processo, seja para propor a petição inicial, seja para agravar ou apelar ou mesmo para interpor recursos especiais ou extraordinários19. Dessa forma, como usualmente litigam “de graça”, é pouco necessário realizarem profundos juízos de custo-benefício a respeito da oportunidade (ou viabilidade) de adentrar ou permanecer em determinado litígio. Idem, p. 07. Exemplos: art. 39 da Lei 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal): “A Fazenda Pública não está sujeita ao pagamento de custas e emolumentos. A prática dos atos judiciais de seu interesse independerá de preparo ou de prévio depósito”; art. 1007, §1º do CPC “§ 1o São dispensados de preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, os recursos interpostos pelo Ministério Público, pela União, pelo Distrito Federal, pelos Estados, pelos Municípios, e respectivas autarquias, e pelos que gozam de isenção legal”.

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É certo também que as Fazendas Públicas sempre contaram com um sistema sucumbencial amigável se comparado aos litigantes privados. Assim, sob a égide do CPC de 1973, enquanto a parte vencida era submetida a uma sucumbência que variava entre 10 (dez) e 20 (vinte) por cento da condenação (art. 20, §3º), à Fazenda Pública aplicava-se o §4º do art. 20, sendo os honorários fixados “consoante apreciação eqüitativa do juiz”, o que, na prática, sempre resultou num tratamento bastante favorecido em termos de imposição sucumbencial. Sistemática semelhante, menos benevolente é preciso reconhecer, é prevista pelo atual CPC de 2015, que, em suma, traz um escalonamento da verba sucumbencial fazendária segundo o valor da condenação (art. 85, §3º). Ainda que o objetivo seja a preservação do erário (o que é legítimo), o efeito colateral negativo é permitir que os órgãos estatais litiguem mais livremente, sem grandes preocupações com os valores de sucumbência em caso de eventual derrota.Tanto é que os órgãos estatais aparecem como os “campeões” em litigiosidade no Brasil20. Não se pode deixar de mencionar também uma certa tolerância histórica do Poder Judiciário com eventuais improbidades processuais, não tão raras assim, praticadas pelas Fazendas Públicas em juízo, como, por exemplo, a interposição de recursos com propósito manifestamente protelatório. Raramente essas atitudes merecem uma condenação mais dura nas penas por litigância de má-fé. Nesse cenário, a postura mais racional é justamente adentrar ou permanecer em litígio, visto que os benefícios dessa atitude fazem valer a pena o risco incorrido. Apenas mais recentemente é que se tem notado uma crescente preocupação dos Tribunais para coibir situações dessa espécie21. Em relação ao setor privado, é certo o sistema processual brasileiro, em muitas hipóteses, representa um custo bastante baixo e risco desprezível aos litigantes. De início, merece destaque (de cunho negativo) o valor-limite da taxa judiciária cobrada na Justiça Federal. A teor da Lei 9.289/1996, independentemente do benefício econômico ansiado pelo autor da causa, o teto a ser recolhido é de 1.800 UFIRs, equivalente a R$ 1.915,38. Se por um lado, esse limite privilegia o princípio do acesso facilitado ao Poder Judiciário, por outro dispensa um sopesamento mais profundo a respeito dos custos de adentrar no sistema, principalmente se a demanda envolver valor expressivo. SCOCUGLIA, Lívia. AMB mostra quem são os maiores litigantes do país. JOTA, 11 ago. 2015. Disponível em: <https://jota.info/justica/amb-mostra-quem-sao-os-maiores-litigantes-pais-11082015>. Acesso em: 12 jul. 2017. 21 Como exemplo, cita-se julgado da 6ª Turma do TRF-3ª Região: “(...) III. Decisão recorrida que está em conformidade com a jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça, adotada sob o rito dos recursos repetitivos (REsp nº 1.352.882/SP). IV. As hipóteses de interposição do agravo interno demandam impropriedade ou ausência de coincidência entre o caso concreto e o caso paradigmático que embasa a decisão agravada. Hipótese não vislumbrada nos autos.V. Recurso manifestamente protelatório. Litigância de má-fé caracterizada. Incidência da multa prevista no artigo 17, incisos IV, V e VII, c.c. 18, caput, todos do CPC/1973” (AI 00037608320104030000, DJ 15/05/2017, Rel. Des. Fed.Vice-Presidente). 20

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Outro ponto a ser levantado é a Assistência Judiciária Gratuita, benefício a ser concedido a “pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios” (CPC, art. 98, caput). O problema não é o benefício em si, mas a frouxidão dos requisitos para sua concessão. Nesse ponto, o §2º do art. 85 do CPC determina que o “juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade”. Porém, o §3º do mesmo artigo preceitua que “Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”. Além disso, a “assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade da justiça” (§4º do art. 85). Na prática, apenas as pessoas jurídicas necessitam demonstrar ao juiz a insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios, visto que, para as pessoas naturais, é suficiente a mera afirmação, ainda que desprovida de qualquer elemento demonstrativo. É de se convir tratar-se de um preço significativamente baixo a ser pago pelo interessado e, como já visto acima, quando o preço é baixo a tendência é um estímulo à demanda. Aliás, a facilidade para a concessão da Assistência Judiciária Gratuita já era a regra da Lei nº 1060, de 05 de fevereiro de 1950, cujo art. 4º, com a redação dada pela Lei nº 7.510/86, previa que “A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”. Ao menos a jurisprudência vem entendendo que essa presunção não é absoluta, ou seja, é lícito ao juiz, invocando fundadas razões, indeferir a pretensão. Com efeito, “Segundo orientação desta Corte, a declaração de pobreza, para fins de obtenção da assistência judiciária gratuita, gera presunção juris tantum de necessidade do benefício” (STJ, 3ª Turma, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 201600449270, DJ 21/6/2016, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze)22. Ainda dentro do tema da Assistência Judiciária, em que pese o §2º do art. 98 do CPC estipular que o beneficiário não fica isento das despesas processuais e honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência, o §3º neutraliza a eficácia desse mandamento ao suspender a execução dessas verbas pelo prazo máximo de 5 (cinco) anos, podendo a execução ser retomada se o credor demonstrar “que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que Na qualidade de convocado perante a 4ª Turma do TRF-3ª Região, tive a oportunidade de decidir: “As apelantes, intimadas para comprovar que não suportavam as despesas da demanda, se limitaram a juntar aos autos as declarações de pobreza (fls. 24 e 26). Não lograram comprovar a condição de miserabilidade que a Lei nº 1.060/50 pretende proteger, não produzindo qualquer prova sobre a envergadura da dificuldade financeira, de modo que não prospera a pretensão de gratuidade. Apelação desprovida” (AC 00096131020144039999, DJ 23/01/2017, Rel. Juiz Fed. Convoc. Marcelo Guerra).

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justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário”. Em termos práticos, sem qualquer sombra de dúvida, o §3º em foco isenta os beneficiários da Assistência Judiciária do pagamento das verbas relativas às custas processuais e sucumbência quando perderem as demandas que ajuizaram. Com efeito, em quase 20 (vinte) anos de magistratura, nunca soubemos de credor que tenha conseguido executar essas verbas. Portanto, o beneficiário da Assistência Judiciária não corre os riscos do processo, quer dizer, a demanda somente pode lhe trazer resultados positivos ou, no máximo, permanecerá ele no ponto de partida. Não é necessário que a tese jurídica envolvida tenha sequer plausibilidade ou aceitação jurisprudencial. Essa circunstância, aliada à frouxidão para a concessão do benefício, faz com que não ajuizar uma ou mais demandas seja um comportamento contrário à racionalidade. Noutras palavras, não litigar num cenário tão benevolente é irracional. A impossibilidade de condenação em honorários advocatícios do postulante perdedor também é regra em outros tipos de ação, o que igualmente afasta o risco sucumbencial e, por conseguinte, cria um ambiente favorável ao litígio. São os casos: (i) do mandado de segurança (Súmulas 512 do STF e 105 do STJ e art. 25 da Lei nº 12.016/2009); (ii) das ações trabalhistas em relação ao trabalhador (Súmula nº 219 do TST); (iii) das demandas relativas aos Juizados Especiais, apenas em primeiro grau de jurisdição (art. 55 da Lei nº 9.099/95 c/c art. 1º da Lei 10.259/2001)23.

2.3. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL A divergência jurisprudencial, aliada aos baixos custos e riscos acima relatados, é outro fator que contribui para o aumento da litigância, notadamente no que se refere ao estímulo para a interposição de agravos e apelações. É que, se houver aproximadamente a mesma probabilidade de ter ou não um recurso provido, dependendo da Câmara ou Turma à qual couber a análise, faz todo sentido “tentar a sorte”, ainda mais se a taxa judiciária de preparo for modesta24 em comparação ao valor econômico envolvido na demanda. Quanto mais divergente for a jurisprudência maior será o incentivo para recorrer. Apenas como exemplo do que se fala, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, antes do Supremo decidir, em sede de repercussão geral, que o Não se está aqui discutindo as razões que levaram o legislador ou a jurisprudência a instituir a isenção da verba honorária nas hipóteses acima indicadas. Apenas está-se retratando situações que neutralizam o risco da sucumbência em caso de perda da ação, o que, como já dito, gera o efeito de estimular o litígio, dispensando-se inclusive uma maior reflexão a respeito da viabilidade jurídica da postulação. 24 É sabido que “no Brasil o valor da taxa judiciária a ser paga quando do recurso não é, via de regra, substancialmente elevado a ponto de evitar a interposição do recurso – sem falar no grande número de casos em que a parte nada paga ao recorrer” (MACHADO, Rafael Bica; DIAS, Jean Caros. Análise econômica do processo. In: TIMM, Luciano Benetti (org.). Direito e economia no Brasil. 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 402). 23

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ICMS não deve compor a base de cálculo do PIS e da COFINS, o entendimento encontrava-se bastante sedimentado, com Turmas adotando posicionamentos diametralmente opostos, citando-se como exemplos os julgados abaixo: 1.Recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a quem cabe o exame definitivo da matéria constitucional, posiciona-se no sentido da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, conforme constou do Boletim de Notícias nº 762 de 06 a 11 de Outubro de 2014 (RE 240.785-2/MG). 2.Com base no precedente citado, foi adotado, recentemente, novo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em que se afastou, inclusive, a incidência das respectivas Súmulas 68 e 94. Portanto, o ICMS deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS (...)” (3ª Turma, AI 00169110920164030000, DJ 06/03/2017, Rel. Des. Fed. Nery Júnior). CONSTITCIONAL - MANDADO DE SEGURANÇA - TRIBUTÁRIO - ISS - BASE DE CÁLCULO - PIS E COFINS - INCIDÊNCIA. 1. Não há entendimento vinculante da Suprema Corte acerca da inclusão do ICMS, na base de cálculo das contribuições sociais. Foi reconhecida a repercussão geral do tema, no Supremo Tribunal Federal (RE 574.707 e ADC 18), ainda não julgada. 2. O julgamento do RE nº. 240.785/MG ocorreu em controle difuso de constitucionalidade, sem efeito vinculante (...) Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no regime de que tratava o artigo 543-C, do Código de Processo Civil de 1973. 5. Agravo interno improvido” (6ª Turma, AMS 00195454520154036100, DJ 28/03/2017, Rel. Des. Fed. Fábio Prieto).

2.4. MOROSIDADE JUDICIAL As circunstâncias relatadas nos itens acima, ao incentivarem a utilização do Poder Judiciário por motivos irregulares ou questionáveis, geram um grande e notório acúmulo de processos, cuja consequência é a não menos notória morosidade processual. Cria-se, destarte, um círculo vicioso, ou seja, o elevado número de processos induz ao congestionamento25 que, por sua vez, é visto por muitos litigantes como uma oportunidade para, por exemplo, protelar o cumprimento de uma obrigação legitimamente assumida ou, ainda, forçar o credor a ultimar um acordo benévolo ao devedor. O problema da morosidade no Brasil é tão grave que o poder constituinte derivado chegou a inserir no inciso LXXVII no art. 5º da Constituição de 1988 o direito fundamental à duração razoável do processo, por meio da Emenda Constitucional 42/2004. Muitas medidas têm sido engendradas desde então com o intuito de minorar o problema, com destaque para a implantação 25

A taxa de congestionamento de processos no Brasil é de 70% (setenta por cento), significando dizer que, para cada 100 (cem) casos novos que ingressam no Judiciário, apenas 30 (trinta) são resolvidos anualmente, o que gera um expressivo do estoque de processos pendentes (SCOCUGLIA, Lívia, ob. cit.).

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do processo eletrônico que, todavia, dificilmente conseguirá grandes êxitos se não forem devidamente neutralizados os fatores que estimulam a utilização desviante do Poder Judiciário.

3. POR UMA LITIGÂNCIA RESPONSÁVEL A partir de agora passa-se a aventar possíveis medidas que, em nossa opinião, são capazes de auxiliar na neutralização dos fatores que estimulam a utilização desviante do Poder Judiciário.Tratam-se, em suma, de sugestões de lege ferenda, bem como de posturas de jurisprudência, advertindo-se não se tratar de um rol exaustivo e muito menos imune à críticas. Primeiramente, com relação aos baixos custos e riscos para se litigar no Brasil, pensamos ser importante reduzir (ou mesmo extinguir) a isenção das taxas judiciárias que beneficiam órgãos estatais, de preferência para sujeitá-los ao regime comum dos agentes privados, o mesmo valendo para o sistema sucumbencial das Fazendas Públicas, inclusive como medida de isonomia. Sempre tendo como mote induzir o postulante a uma maior reflexão em torno dos custos, riscos e benefícios de uma demanda judicial, entendemos que igualmente é de rigor: (i) agravar o regime da taxa judiciária da Justiça Federal, de maneira a que o valor cobrado seja proporcional ao benefício econômico ansiado pelo demandante26; (ii) inserir a possibilidade de condenação por sucumbência, ao menos para as pessoas jurídicas, no mandado de segurança em casos de denegação da ordem; (iii) prever a mesma possibilidade na Justiça do Trabalho e nos Juizados Especiais, ainda que se trate de um sistema sucumbencial menos rigoroso, em atenção ao lado social que essas especializações da Justiça atendem.

Em todas as hipóteses, pensamos ser de crucial importância estarem os juízes atentos à utilização oportunista (ou ímproba) do processo, de modo a aplicar com rigor as penas por litigância de má-fé, inclusive quando uma pretensão conflitar com súmula vinculante ou decisões tomadas em sede de repercussão geral, recursos repetitivos, incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. Acreditamos que o art. 77, II, c/c arts. 79 e 80, todos do CPC, dão margem a esse entendimento. Não se desconhece que a Assistência Judiciária é um tema delicado. Porém, é de se convir que a concessão do benefício mediante simples afirmação 26

Aqui há uma questão adicional, mas cuja complexidade não recomenda o seu enfrentamento nesse texto. Trata-se dos chamados “grandes litigantes”, sejam órgãos públicos ou empresas privadas. Fica a indagação: não poderia ser criada um tipo de taxa (ou tarifa) para aqueles que utilizarem o sistema judicial (como autor ou réu) em proporções elevadas? Não é o que se faz com algumas tarifas públicas para grandes consumidores de água ou energia elétrica?

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da parte interessada se releva num preço muito baixo para litigar, o mesmo valendo para a não existência do risco sucumbencial (conforme acima visto). Mesmo que, em homenagem ao princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário, não se mexa nos requisitos para a concessão do benefício, pensamos que deva haver algum nível de risco processual ao postulante, o que se manifesta na possibilidade de vir a ser condenado na verba de sucumbência em caso de derrota. Evidentemente, considerando o lado social envolvido, deve o legislador edificar um sistema compatível com a situação econômica precária do beneficiário, quiçá não prevendo o pagamento da sucumbência em dinheiro, mas, talvez, para determinar a possibilidade de o juiz fixar uma pena alternativa como, por exemplo, a prestação de um ou dois dias de trabalho em favor de instituições designadas pelo magistrado. Ainda que ideia necessite de um maior amadurecimento, nos parece que alguma modificação legislativa é essencial. Por fim, é necessário, cada vez mais, que os juízes atentem para a necessidade da uniformização jurisprudencial, não apenas como medida para desestimular novos litígios, mas, sobretudo, em homenagem à isonomia, valor muito relevante na maioria das sociedades ocidentais, inclusive no Brasil27. No âmbito judicial, isso significa que as questões de direito devem receber interpretação uniforme por parte dos Tribunais28, notadamente a partir da observância do já decidido em casos precedentes, assim considerados aqueles que envolvam a mesma normatização jurídica. Em outras palavras, ubi eadem ratio ibi eadem ius. Com isso privilegia-se também a impessoalidade nos julgamentos29. Além disso, o respeito aos precedentes majora o nível de previsibilidade do comportamento dos Tribunais, o que, em outras palavras, robustece a segurança jurídica, outro valor de relevo inserido na Constituição de 1988 (v.g. art. 5º, XXXVI). Desse modo, é certo que “os jurisdicionados passam a confiar nas Aliás, a fim de solapar os alicerces do ancien régime, o art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preceituou que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Com efeito, a isonomia “é como que a pedra de toque do regime republicano” (ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2ª ed. – 4ª tir. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 160). 28 Conforme expõe Gustavo Amaral, a “justiça do caso concreto deve ser sempre aquela que possa ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em situação similar, sob pena de quebrar-se a isonomia” (AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 39). 29 O respeito aos precedentes pelos Tribunais dificulta a utilização do sistema de modo oportunista, seja pelo aproveitamento de contestáveis relações de amizade ou compadrio, seja pelo emprego de mecanismos perturbadoramente ilícitos. Nesse tópico, adverte Luiz Guilherme Marinoni que “determinados litigantes não têm qualquer preocupação com a previsibilidade. Preferem acreditar nas relações de simpatia, estima e influências pessoais, reproduzindo a ‘mentalidade cordial’ que marcou o sujeito que, provindo de família patriarcal, passou a ocupar o espaço público sem abandonar os seus hábitos” (MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.96). 27

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decisões proferidas pelo Judiciário, acreditando que os casos similares terão o mesmo tratamento”30. Em suma, segundo Regina Helena Costa31, decidir de modo uniforme proporciona: estabilidade, irretroatividade e uniformidade, o que não pode ser ignorado pelo sistema jurídico, pois é muito difícil que haja “desenvolvimento da sociedade que não esteja ancorado num quadro institucional baseado em regras estáveis e legítimas, que propiciem segurança jurídica e recebam aceitabilidade social”32. Evidências empíricas sugerem que países com menor grau de segurança jurídica crescem mais devagar33. É que em ambientes jurídico-institucionais não previsíveis, onde predomina receio e desconfiança em relação ao arcabouço normativo, as pessoas deixam de criar, sentem-se pouco estimuladas a empreender, preferem ficar “quietas em seu canto” a se arriscarem na criação de riqueza nova. Em nosso sentir, os efeitos positivos gerados por uma cultura judicial que acolha a força dos precedentes (isonomia, impessoalidade, previsibilidade, estabilidade, irretroatividade e reflexos no crescimento econômico), são suficientes para legitimar a criação de mecanismos jurídicos que fortaleçam esse tipo de atenção e comportamento por parte dos juízes. Nos países que seguem a linha do common law, o respeito ao precedente (também chamado de stare decisis)34 é muito mais natural, não sendo necessário editar normas que obriguem os magistrados acompanharem as decisões emanadas dos órgãos superiores do sistema judicial. A própria cultura do common law gerou esse tipo de postura. Noutra ponta, nos sistemas em que a civil law predomina, como é o caso do Brasil, o juiz sempre foi encarado mais como alguém que não cria o CUNHA, Leonardo Carneiro da. A função do Supremo Tribunal Federal e a força de seus precedentes: enfoque das causas repetitivas. In: PAULSEN, Leandro (coord.). Repercussão geral no recurso extraordinário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 62. 31 COSTA, Regina Helena. Repercussão geral em matéria tributária: primeiras reflexões. In: PAULSEN, Leandro (coord.). Repercussão geral no recurso extraordinário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 109-110. 32 MICHELS, Gilson Wessler. Desenvolvimento e sistema tributário. In: BARRAL, Welber (org.). Direito e desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005, p. 226. 33 PINHEIRO, Armando Castelar. PIB potencial e segurança jurídica no Brasil. In: Crescimento econômico: estratégias e instituições (SICSÚ, João; MIRANDA, Pedro - orgs.). Rio de Janeiro: IPEA, 2009, p. 39. 34 É bom esclarecer que o stare decisis não é uma amarra inexpugnável ao juiz. Conforme decidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos da América no caso Payne v. Tennessee, 501 U.S. 808 (1991): “Although adherence to the doctrine of stare decisis is usually the best policy, the doctrine is not an inexorable command.This Court has never felt constrained to follow precedent when governing decisions are unworkable or badly reasoned, Smith v. Allwright, 321 U.S. 649, 321 U.S. 655, particularly in constitutional cases, where correction through legislative action is practically impossible, Burnet v. Coronado Oil & Gas Co., 285 U.S. 393, 285 U.S. 407 (Brandeis, J., dissenting), and in cases involving procedural”. 30

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direito, mas, ao contrário, somente o aplica. Trata-se, de certa forma, da concepção francesa do juiz como mera bouche de la loi. Nesse contexto, apenas as disposições constitucionais e legais seriam capazes de obrigar os juízes e não as interpretações dadas a essas normas pelos diversos Tribunais. Mesmo que essa concepção, ao menos em teoria, reverencie o princípio democrático, na medida em que os juízes são obrigados a respeitar tão somente os preceitos emanados pelos representantes eleitos pelo povo, na prática acabou redundando num comportamento judicial de baixa previsibilidade, pouca ou nenhuma estabilidade e, sobretudo, flagrantemente contrário à isonomia. Além do mais, o “direito brasileiro, ao admitir o controle difuso de constitucionalidade – típico do direito estadunidense -, tornou-se incompatível com a sua prática jurídica, em que os tribunais ordinários não se curvam à autoridade dos precedentes constitucionais”35. Daí ser intuitivo perceber a necessidade de existirem órgãos decisórios superiores que fechem o sistema, isso é, que especifiquem o alcance e os significados possíveis e aceitáveis das disposições constitucionais e legais, principalmente aquelas de maior generalidade36.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O que se procurou demonstrar no presente texto foi a necessidade de os operadores do direito (advogados, juízes, membros do MP, serventuários, etc.) terem uma visão estratégica e realista do sistema processual civil brasileiro, de maneira a atentarem aos efeitos e incentivos trazidos aos litigantes (inclusive aqueles potenciais) pela legislação e pela jurisprudência. Em nossa opinião, esse tipo de enfoque pode ser aperfeiçoado pelo emprego da Análise Econômica do Direito, técnica que, como visto, não se confunde com a Interpretação Econômica do Direito, essa última utilizável apenas por economistas em suas pesquisas. Pensamos que esse tipo de ferramenta pode auxiliar a identificar e, se possível repelir, a utilização desviante do Poder Judiciário, isso é, não como uma ferramenta para fazer valer um direito violado ou para garantir a aplicação da lei, mas com o intuito de protelar o cumprimento de obrigações, aproveitar-se da morosidade para obter acordos benévolos, ou mesmo “tentar a sorte” em demandas juridicamente temerárias. Infelizmente, estudos levados a efeito pelo CNJ, em parceria com respeitáveis instituições de ensino jurídico, indicam que o sistema processual não está coibindo satisfatoriamente essa utilização desviante. MARINONI, Luiz Guilherme, ob. cit., p. 57. No Brasil, isso começou a ser pensado de modo mais realístico apenas por ocasião do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, que criou as súmulas vinculantes e a repercussão geral no STF, seguidas dos recursos repetitivos no STJ, arguições de inconstitucionalidade e, mais recentemente, com o atual CPC de 2015, com os incidentes de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.

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Alcançar um ambiente de litigância responsável e conscienciosa requer que os postulantes se sujeitem ao risco de arcar com algum tipo de ônus caso venha perder as demandas. Para isso são necessárias medidas legislativas como a inserção da condenação por sucumbência no mandado de segurança, devendo algo semelhante ocorrer na Justiça do Trabalho e nos Juizados Especiais, ainda que, nessas duas últimas hipóteses, de maneira mais abrandada dado o interesse social envolvido. É igualmente importante repensar (quiçá extinguir) a isenção das taxas judiciárias aos órgãos estatais, além de revisar o sistema privilegiado de sucumbência aplicável às Fazendas Públicas. É necessário, ainda, agravar o regime da taxa judiciária da Justiça Federal, de modo a ser devida segundo o valor da causa, sem um teto-limite tão pouco expressivo. Em qualquer situação, é crucial que os juízes fiquem atentos à utilização desviante do processo, aplicando, sempre que cabível e de modo rigoroso, as penas e multas por litigância de má-fé, devendo ser considerada má conduta processual a postulação contrária ao teor de súmulas vinculantes, decisões tomadas em sede de repercussão geral, recursos repetitivos ou incidentes de resolução de demandas repetitivas ou assunção de competência. Por fim, devem os juízes e Tribunais esforçarem-se para pacificar a jurisprudência, utilizando-se dos vários instrumentos disponíveis na legislação para esse desiderato, com vistas a fortalecer a previsibilidade jurisdicional, segurança jurídica, irretroatividade e isonomia, bem como tornar desinteressante o ajuizamento de demandas ou a oferta de recursos apenas como instrumento para “tentar a sorte”.

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A JUSTIÇA RESTAURATIVA SOB A PERSPECTIVA DOS CRIMES DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL:

CONSIDERAÇÕES A PARTIR DO CASO PARADIGMÁTICO DA 7ª VARA FEDERAL DE FLORIANÓPOLIS

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Micheli Polippo1 Cristiane Martins de Paula Luz2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS A concepção da Justiça Restaurativa vem sendo incorporada ao Sistema de Justiça do Brasil há mais de 13 anos. No ano de 2004, especificamente, o Ministério da Justiça, por meio de sua Secretaria de Reforma do Judiciário - SRJ, iniciou a implementação do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”3. No biênio 2015/2016, a gestão da Presidência do Conselho Nacional de Justiça – CNJ - apresentou a Justiça Restaurativa como diretriz estratégica, momento em que se instituiu um grupo de trabalho formado por juízes com experiência em práticas restaurativas, cuja missão era a de elaborar uma proposta de ato normativo para implementar essa iniciativa em âmbito nacional. Como resultado desse trabalho, aprovou-se a Resolução nº 225/2016, cujo texto foi elaborado com fundamento nas recomendações da Organização das Nações Unidas – ONU4. Nesse contexto, com fulcro na Resolução de 16 de fevereiro de 2015 do Conselho Nacional de Justiça, estabeleceu-se a Meta nº 8 para todos os Tribunais de Justiça, a qual foi redigida nos seguintes termos5: Juíza Federal Substituta, lotada e em exercício na 7ª Vara Federal de Florianópolis/SC. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali. E-mail: michelip@trf4.jus.br. 2 Analista Judiciário, lotada e em exercício na 7ª Vara Federal de Florianópolis/SC. Especialista em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. E-mail: cns@jfsc.jus.br. 3 FLORES, Ana Paula Pereira; ROLIANO, Mariana Gonçalves. O programa justiça restaurativa para o século 21 do tribunal de justiça do Estado do Rio Grande do Sul: um ponto de partida ou de chegada?, 2016, p. 2. 4 SALMOSO, Marcelo Nalesso. Uma mudança de paradigma e o ideal voltado à construção de uma cultura de paz. In: Justiça restaurativa: horizontes a partir da Resolução CNJ 225, Coordenação: Fabrício Bittencourt da Cruz - Brasília: CNJ, 2016, p. 21. 5 SALMOSO, Marcelo Nalesso. Op.cit, p. 21. 1

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Implementar práticas de Justiça Restaurativa – Justiça Estadual: Implementar projeto com equipe capacitada para oferecer práticas de Justiça Restaurativa, implantando ou qualificando pelo menos uma unidade para esse fim, até 31.12.2016.

Como se pode observar, a meta foi dirigida exclusivamente à Justiça Estadual e, a partir da referida meta, as práticas restaurativas foram implementadas nos Tribunais de Justiça em vários estados do Brasil ou por eles foram incrementadas6. Em Santa Catarina, a Coordenadoria Estadual da Infância e da Juventude implantou, a partir de abril de 2012, portanto em momento anterior à edição da Resolução nº 225/16 do CNJ, um projeto-piloto de Justiça Restaurativa, no âmbito da Vara da Infância e da Juventude da comarca da Capital, mediante a criação do Centro de Justiça Restaurativa. Esse projeto oferece atendimento fundamentado em práticas autocompositivas aos adolescentes que cometeram infrações de menor potencial ofensivo, assim como às pessoas envolvidas direta ou indiretamente no conflito. Nessa perspectiva, o projeto busca estimular a reflexão sobre o motivo da transgressão, restabelecer os vínculos familiares e comunitários, recuperar a cidadania e reparar o dano gerado no conflito7. No âmbito da Justiça Federal em Santa Catarina, contudo, a Justiça Restaurativa é uma realidade embrionária. Diante desse enfoque, a Justiça Restaurativa apresenta-se como uma tentativa de resposta àqueles que não têm voz no sistema penal, uma forma de apaziguar as dores e garantir maior responsabilização daqueles que as causaram em outros. Para tanto, busca-se irradiar a aplicação das práticas restaurativas para outros polos. Sob essa perspectiva, por que não irradiar a Justiça Restaurativa para a realidade da Justiça Federal? Assim, pretende-se avaliar, a partir do caso paradigmático que será descrito, a aplicabilidade das práticas restaurativas quanto aos crimes de competência criminal, projetando-as, no que for compatível, à realidade da jurisdição criminal federal, especificamente aos crimes de competência da 7ª Vara Federal de Florianópolis. O tema é relevante, atual e propositivo. Busca-se, com o seu estudo, estabelecer novas diretrizes de trabalho. Dentro da ácida realidade criminal, o presente artigo representará a partida para uma visão ampliada do fato criminoso, nele incluindo não apenas o ofensor, mas também as vítimas e a própria comunidade.

1. A CRISE DO MODELO RETRIBUTIVO Em relação aos seus fins oficiais, o sistema de justiça penal mostra-se dissonante, pois, em vez de combater a criminalidade e defender a população, a O acompanhamento do cumprimento da Meta nº 8 de 2016, pelos Tribunais de Justiça, pode ser verificado no site do CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/ arquivo/2017/04/bfffc27bc60f77f2850b4a22f525d992.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2017. 7 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Disponível em: <https://www.tjsc.jus. br/web/infancia-e-juventude/acoes-e-projetos/justica-restaurativa>. Acesso em: 18 maio 2017. 6

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seletividade nele identificada e as penas cruéis por ele impostas desencadeiam um incremento da violência e, por consequência, o desamparo da população. A história dos povos e da sociedade apresenta-se como a história da contínua violação dos direitos humanos. Reprimem-se as necessidades reais humanas e gera-se injustiça social, a qual é identificada como violência estrutural. Além disso, dedica-se o sistema a administrar reduzida parcela das infrações. Sob esse enfoque, a imunidade e a criminalização estão direta e inversamente relacionadas à lógica das desigualdades, especialmente presentes nas relações de propriedade e poder. Assim, a pena apresenta-se como violência institucional, repressiva das necessidades reais. A suspensão dos correspondentes direitos humanos dos ofensores é justificada pela própria responsabilização penal. A pena, portanto, representa local de concentração extrema de outras formas de violência8. Dessa forma, ao estabelecer um diagnóstico dos problemas enfrentados pelo sistema retributivo, identifica-se que o controle penal intervém: (a) sobre os efeitos e não sobre as causas da violência; (a) sobre pessoas e não sobre situações. Além disso, ele atua de forma reativa e não preventiva e o resultado da intervenção não ocorre imediatamente após a prática do delito9 Assim, a resposta penal é uma resposta simbólica. O modelo punitivo não se presta ao que declaradamente se propõe. Nele não há tratamento e não há ressocialização, uma vez que é ambiente propício para o agravamento da violência e da criminalidade10. Sob essa perspectiva, chega-se, inclusive, à concepção de que o controle penal apresenta uma eficácia instrumental invertida sustentada por uma eficácia simbólica. Assim, outras funções reais, não demonstradas no discurso oficial, contribuem para a reprodução de relações de desigualdade11. Nesse enfoque: A eficácia invertida significa, pois, que a função latente e real do sistema não é combater a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica mas, ao invés, construir seletivamente a criminalidade e, neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de classe, gênero, raça)12.

No Brasil, a situação carcerária, especificamente, apresenta-se como o grande desafio para justiça penal, a política criminal e a política de segurança pública. Conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre violência estrutural e violência penal. Fascículos de Ciências penais. Porto Alegre: 1993, p. 47-49. 9 BARATTA, Alessandro. Op. cit. p. 50-51. 10 BARATTA, Alessandro. Op. cit. p. 50. 11 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima. Códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 133. 12 ANDRADE,Vera Regina Pereira de. Op. cit. p.133. 8

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INFOPEN, cujos últimos dados coletados são de junho de 2014, a população prisional brasileira chegou a 607.731 pessoas. O número de pessoas privadas de liberdade em 2014 é 6,7 vezes maior do que em 1990. O déficit de vagas é de 231.062, a taxa de ocupação de 161% e a taxa de aprisionamento 299,7. Dos presos, 41% encontram-se em prisão provisória e o perfil das pessoas presas é majoritariamente formado por jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda13. Além disso, os dados coletados demonstram que: Desde 2008, os Estados Unidos, a China e, principalmente, a Rússia, estão reduzindo seu ritmo de encarceramento, ao passo que o Brasil vem acelerando o ritmo. Entre 2008 e 2013, os Estados Unidos reduziram a taxa de pessoas presas de 755 para 698 presos para cada cem mil habitantes, uma redução de 8%. A China, por sua vez, reduziu, no mesmo período, de 131 para 119 a taxa (-9%). O caso russo é o que mais se destaca: o país reduziu em, aproximadamente, um quarto (24%) a taxa de pessoas presas para cada cem mil habitantes. Mantida essa tendência, pode-se projetar que a população privada de liberdade do Brasil ultrapassará a da Rússia em 201814.

Como se observa, o modelo adotado ostenta um caráter violento de controle social. A realidade demonstra que não se busca a efetiva “solução do conflito”. Os custos sociais a serem pagos pela manutenção desse sistema de punição pela vingança são inestimáveis ou mesmo irrecuperáveis. Os resultados são contraproducentes. As vítimas são esquecidas ou duplamente vitimadas pelo próprio sistema. Por isso, é preciso repensar o modelo adotado. Mas qual será a realidade dos condenados pela prática dos crimes de competência da Justiça Federal? Ostentam o mesmo perfil encontrado no sistema judicial presente na Justiça Estadual? É possível identificar diferenças nos perfis criminológicos que pairam sobre as duas realidades?

2. O MODELO RESTAURATIVO Como destacado no item anterior, o sistema jurídico ocidental, especialmente o criminal, encontra-se limitado.Vítimas, ofensores e a própria comunidade não são por ele atendidos. Muitos dos profissionais que atuam na área evidenciam sua frustração com o sistema. Para eles, o processo judicial agrava os conflitos sociais, em detrimento da pacificação15. É nesse cenário que surge a Justiça Restaurativa. Com ela, busca-se tratar algumas dessas necessidades e limitações do modelo retributivo vigente. No momento atual, as práticas e as abordagens restaurativas, que nasceram das antigas INFOPEN, 2004, p. 6-16. INFOPEN, 2004, p. 15. 15 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Teoria e Prática. Série da reflexão à Ação. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2015, p. 11. 13 14

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práticas aborígenes, estão ultrapassando o sistema de justiça criminal e alcançam as escolas, universidades, ambientes institucionais e as relações de trabalho16. A busca pela resolução dos conflitos vem dos primórdios da humanidade. Nesse enfoque, a Linguagem exerceu um importante papel ao permitir o diálogo como forma de resolver os problemas. Percebe-se que o modelo restaurativo é tão antigo quanto a própria humanidade. O modelo dogmático-positivista encontra-se falido e, assim, em cada país, o modelo restaurativo ganha novo enfoque17. Haword Zerh apresenta premissas que iluminam a busca pela identificação das concepções da Justiça Restaurativa. Segundo o autor, ela não tem como objetivo principal o perdão ou a reconciliação, embora seja possível que eles ocorram; não implica necessariamente a volta às circunstâncias anteriores, pois busca que a situação seja transformada e não restaurada; as abordagens restaurativas não se resumem ao encontro, à mediação entre ofensor e vítima, uma vez que podem ser realizadas mesmo quando o ofensor não for identificado; não tem como objeto principal a redução da reincidência; não se limita a ofensas menores ou a ofensores primários; não é alternativa ao aprisionamento e não se contrapõe à Justiça Retributiva, pois ambas podem coexistir18. Com base nessas premissas,Vera Regina Pereira de Andrade apresentou o seminário inaugural do curso de Pós-Graduação em Sistema de Justiça da Unisul, sustentando que a Justiça Restaurativa é identificada como aquela que proporciona o encontro de todas as partes envolvidas em uma situação-problema, não apenas o crime. Pode ser desenvolvida em todos os âmbitos sociais, não apenas o da Justiça. As pessoas buscam resolver suas diferenças, com a conexão daquilo que foi rompido. É possível estabelecer a reparação dos danos e das relações e a reconstrução da conectividade. As partes e comunidade são o núcleo do protagonismo da Justiça restaurativa. É um processo de vida, projetado para o futuro. Não há necessariamente a busca pelo perdão. Não se resume à mediação, nem à conciliação. Não tem como objetivo principal evitar a reincidência. Serve a qualquer crime, inclusive os mais graves. Pode ser avaliada como um novo modelo de sociabilidade e não é monopólio do judiciário19. A Justiça Restaurativa tem por base a preocupação especial com as vítimas, figuras relegadas no processo de justiça criminal. Dentro dessa perspectiva, a Justiça Restaurativa propõe-se a reconhecer as necessidades das vítimas, especialmente: a obtenção de informações; a oportunidade de narrar os fatos, transcendendo essa vivência para a narração da história em contexto significativo, ZEHR, Howard. Op.cit. p. 12. FAGUNDEZ, Paulo Roney Ávila. O Modelo Restaurativo, o Sistema Multiportas e a Advocacia Pública: novos paradigmas para a ciência jurídica. Revista da Procuradoria Geral do Estado: 2016, p. 140. 18 ZEHR, Howard. Op.cit. p. 19-26. 19 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cuIaBdc5Ty4>, publicado em 8 dez. 2016. Acesso em: 12 jul. 2017. 16

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inclusive para contá-la àquele que causou o dano, fazendo-o compreender as dores que ocasionou; o empoderamento e a restituição patrimonial20. No que toca ao ofensor, Zehr aborda a necessidade de que aquele que causou danos a outro receba da justiça: a responsabilização, a qual envolve o cuidado dos danos resultantes, com a estimulação da empatia e da responsabilidade; o estímulo para a transformação pessoal e o apoio para sua reintegração à comunidade. Nesse enfoque, salienta que: A Justiça Restaurativa requer, no mínimo, que cuidemos dos danos sofridos pela vítima e de suas necessidades, que seja atribuída ao ofensor a responsabilidade de corrigir aqueles danos, e que as vítimas, ofensores e comunidades sejam envolvidos nesse processo21.

Além disso, acrescenta-se à Justiça Restaurativa a concepção de proposta de construção da paz, com o desenvolvimento de uma nova cultura, na qual deverá estar envolvida a própria comunidade. Para tanto, os processos de construção da paz envolvem quatro categorias: respostas não violentas ao conflito, intervenções institucionais para a redução da violência, ações transformativas para construção relacional e criação de estruturas para dar sustentabilidade a essa nova cultura22.

3. AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS As práticas restaurativas consubstanciam processos formais ou informais que apresentam resposta aos crimes ou atos infracionais ou, ainda, processos anteriores à prática delituosa, como um processo de construção das relações e do senso comunitário23. No Brasil, o documento intitulado Carta de Araçatuba foi elaborado no I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, no mês de abril de 2005, posteriormente ratificado na Conferência internacional Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, realizada em Brasília em junho de 2005, o qual foi considerado o marco para o sistema restaurativo24. Nesse documento, foram traçados os princípios norteadores das práticas restaurativas, a seguir relacionados: 1. Plenas e precedentes informações sobre as práticas restaurativas e os procedimentos em que se envolveram os participantes; ZEHR, Howard. Op.cit. p. 26-29. ZEHR, Howard. Op.cit. p. 41. 22 ASSUNÇÃO, Cecília Pereira de Almeida Assumpção; YAZBEK, Vania Curi. Justiça Restaurativa: um conceito em desenvolvimento. In: GRECO, AIMÉE e Outros. Justiça restaurativa em ação: práticas e reflexões. São Paulo: Dash, 2014, p. 56. 23 ASSUNÇÃO, Cecília Pereira de Almeida Assumpção;YAZBEK,Vania Curi. Op. cit., p. 56. 24 ASSUNÇÃO, Cecília Pereira de Almeida Assumpção;YAZBEK,Vania Curi. Op. cit., p. 56. 20 21

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2. Autonomia e voluntariedade na participação em práticas restaurativas, em todas as suas fases; 3. Respeito mútuo entre os participantes do encontro; 4. Corresponsabilidade ativa dos participantes; 5. Atenção às pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas necessidades e possibilidades; 6. Envolvimento da comunidade pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação; 7. Interdisciplinaridade da intervenção; 8. Atenção às diferenças e peculiaridades socioeconômicas e culturais entre os participantes e comunidade, com respeito à diversidade; 9. Garantia irrestrita dos direitos humanos e do direito à dignidade dos participantes; 10. Promoção de relações equânimes e não hierárquicas; 11. Expressão participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito; 12. Facilitação feita por pessoas devidamente capacitadas em procedimentos restaurativos; 13. Direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo; 14. Integração com a rede de políticas sociais em todos os níveis da federação; 15. Desenvolvimento de políticas públicas integradas; 16. Interação com o sistema de Justiça, sem prejuízo do desenvolvimento de práticas com base comunitária; 17. Promoção da transformação de padrões culturais e a inserção social das pessoas envolvidas; 18. Monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do interesse dos usuários internos e externos.

Atualmente, identificam-se como principais práticas restaurativas adotadas no Brasil: as conferências de grupos familiares, a mediação penal e os círculos restaurativos ou processos circulares. Especificamente sobre o Círculo de Construção de Paz, apresenta-se como um dos métodos da Justiça Restaurativa que prioriza o diálogo entre os participantes e a criação de um espaço seguro de fala e de escuta ativa. A geometria circular traz a ideia de horizontalidade, igualdade, conexão e inclusão25. A cartilha Práticas Restaurativas: o empoderamento por meio do diálogo, elaborada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em conjunto com o Instituto Mundo Melhor, apresenta os três princípios que balizam a prática do círculo restaurativo26: Disponível em: <http://www.institutomm.com.br/arquivos/Cartilha_Praticas_Restaurativas_2016.pdf>. Acesso em: 16 maio 2017, p. 6. 26 Disponível em: <http://www.institutomm.com.br/arquivos/Cartilha_Praticas_Restaurativas_2016.pdf>. Acesso em: 16 maio 2017, p. 4. 25

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Voluntariedade: a Justiça Restaurativa apenas pode ser aplicada com a concordância dos interessados, a qual inclusive pode ser retirada a qualquer tempo durante o procedimento. Confidencialidade: as situações e histórias contadas são confidenciais. Caso não haja acordo, o conteúdo dos encontros não poderá ser usado como prova em eventual processo. Consenso: as partes envolvidas devem estar cientes e de acordo com seus direitos e obrigações.

Nesse enfoque, os círculos restaurativos não consubstanciam invenção atual. Eles representam um resgate de práticas antigas, originariamente experienciadas em vivências indígenas. Dessa forma, converge-se para a busca de uma Justiça Comunitária, em que o diálogo, a exposição das dores e a responsabilização dos autores podem ser determinantes para a busca da pacificação social e para amenização dos conflitos sociais. As práticas restaurativas, portanto, propõem um novo olhar e uma nova forma de resolver esses conflitos, enaltecendo o diálogo, a inclusão, a conexão, a responsabilidade e o empoderamento dos atores sociais27.

4. DISPOSITIVOS LEGAIS COMPATÍVEIS COM AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS NO BRASIL Dentre os princípios que regem o Brasil em suas relações internacionais destaca-se a adoção na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) da busca pela solução pacífica dos conflitos (art. 4º,VII). Tendo por base as práticas restaurativas adotadas no Brasil, constata-se que Infância é seu locus por excelência, com amparo legal no artigo 35, incisos II, III e IX da Lei nº 12.594/2012: Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: II - Excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; IX- fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo.

No âmbito dos Juizados Especiais Criminais ou nos Juízos Criminais é possível a inserção dessas práticas no seio dos institutos da transação penal ou da suspensão condicional do processo, de acordo com o disposto nos artigos 76 e 89 da Lei nº 9.099/95. Disponível em: <http://www.institutomm.com.br/arquivos/Cartilha_Praticas_Restaurativas_2016.pdf>. Acesso em: 16 maio 2017, p. 7.

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A Lei nº 11.340/06, Lei Maria da Penha, prevê, no art. 29, a possibilidade de os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que vierem a ser criados, contarem com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Tal dispositivo, por certo, espelha as práticas restaurativas. Damásio de Jesus afirma que as penas restritivas de direitos previstas no Código Penal representam institutos jurídicos que constituem práticas parcialmente restaurativas: O Código Penal (CP) brasileiro foi instituído pelo Dec.-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e alterado por diversas leis posteriores. Em 1984, a Parte Geral do CP sofreu profunda alteração, destacando-se a criação das penas restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana). Em 1998, por meio da Lei n. 9.714, ampliou-se consideravelmente o sistema das penas alternativas, não só admitindo sua aplicação a um número maior de infrações penais (crimes culposos e dolosos, cuja pena não ultrapasse 4 anos, cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa), mas também aumentando a quantidade de penas restritivas de direitos: prestação pecuniária, prestação inominada, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas, interdições temporárias de direitos (com acréscimo, dentre essas, da proibição de frequentar determinados lugares) e limitação de fim de semana (arts. 45 a 48 do CP)28.

Desde a reforma de 2008, há determinação no Código de Processo Penal de que o juiz deverá fixar em sentença condenatória o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido (art. 387, IV, com redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). Sobre a fixação do valor mínimo, calha mencionar a Súmula nº 131 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “Para que o juiz possa fixar o valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, é necessário que a denúncia contenha pedido expresso nesse sentido ou que controvérsia dessa natureza tenha sido submetida ao contraditório da instrução criminal”. Como um regulamento específico, cumpre referir que o Conselho Nacional de Justiça aprovou, em 31 de maio de 2016, a Resolução nº 225, que trata da política criminal da Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Por fim, alude-se ao PL nº 7006/2006, apresentado em 10/5/2006, que propõe alterações no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais. O JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Revista Jus Navegandi, ISSN 1518-4862,Teresina, ano 10, n. 819, 30 set. 2005. Disponível em: <http://www.jus.com.br/ artigos/7359>. Acesso em: 17 maio 2017.

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referido projeto de lei encontra-se atualmente apensando ao PL 8045/2010, que trata do projeto do novo Código de Processo Penal. Assim, os dispositivos legais referenciados apresentam a base para aplicação das práticas restaurativas no Brasil. Os projetos de lei, por sua vez, representam a possibilidade de ampliação da Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal.

5. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CRIMES DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL No âmbito da Justiça Federal, a competência criminal é definida expressamente no art. 109 da CRFB/88: Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; VII - os “habeas-corpus”, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; VIII - os mandados de segurança e os “habeas-data” contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar; X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o “exequatur”, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização; XI - a disputa sobre direitos indígenas. “ (...) § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Como se observa, em relação aos crimes de competência da Justiça Federal, a descrição constitucional seguiu o critério material, que foi definido pela natureza da infração; o critério subjetivo, tendo por base a pessoa atingida 192 BOOK.indb 192

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pelo delito; e o critério derivado de circunstâncias especiais, a exemplo dos crimes praticados a bordo de navios ou aeronaves. Portanto, a competência criminal constitucionalmente desenhada para a Justiça Federal mostra-se variada, ampla e complexa, a qual está sujeita a inúmeras combinações. O art. 109, inciso IV, da CRFB/88, apresenta a competência genérica, com a exigência dos seguintes requisitos: 1) presença de ente federal privilegiado no polo passivo da lide criminal (União, empresa pública ou autarquia); 2) reflexo do delito em bem, serviço ou interesse; 3) dano ou prejuízo a ente federal29. Os incisos IV, primeira parte,V,VI, IX e X do art. 109 da CRFB/88, por sua vez, apresentam a competência criminal específica da Justiça Criminal. Nesse sentido: Os crimes políticos, os crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira dependem de lei infraconstitucional para defini-los e apontá-los. Outras infrações, já existindo como norma, exigem a escolha em tratados e convenções internacionais para figurar na competência criminal da Justiça Federal. Daí formarem a competência criminal específica. Por sua vez, os crimes contra a organização do trabalho, já previstos individualmente na lei penal comum, dependem, para a configuração da competência da Justiça Federal, do alcance e efeitos da conduta delituosa, tarefa que a construção pretoriana vai desenvolver. Outras infrações, embora rotinas e capituladas em qualquer lei penal, comum ou especial, só são julgados na Justiça Federal se ocorrerem a bordo de navio ou aeronave, dentro do que a jurisprudência, com respaldo da doutrina, estabelece o sentido que a Constituição emprega a navio e aeronave30.

O perfil criminológico encontrado nas ações penais que tramitam na Justiça Federal diferencia-se daquele encontrado nos crimes de competência da Justiça Estadual. Embora não se possa apresentar, neste momento, dados concretos, os quais serão coletados com uma pesquisa aprofundada sobre o tema, o exercício laboral no âmbito da 7ª Federal de Florianópolis, com competência criminal, permite a identificação de que as pessoas que respondem por crimes nessa unidade apresentam, em grande parte, um bom nível de escolaridade e condição social média à alta. Além disso, pode-se constatar que a grande maioria dos “crimes federais” não envolve sangue ou sêmen, embora seja possível a identificação de casos com uso de violência. Considerando a diversidade dos tipos penais que são encontrados em varas criminais federais e o perfil criminológico nessas unidades identificado CARVALHO, Wladimir Souza. Competência da Justiça Federal. 8. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 347. 30 CARVALHO, Wladimir Souza. Op.cit, p. 467. 29

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é que se busca analisar a Justiça Restaurativa sob a perspectiva dos crimes de competência da justiça federal.

6. CASO PARADIGMÁTICO O primeiro caso resolvido com fundamento na concepção da Justiça Restaurativa envolve um feito que foi ajuizado como Embargos de Terceiros nº 5018338-91.2015.4.04.7200, distribuídos por dependência aos autos de ação penal originária da denominada Operação Pequeno Príncipe, relacionada a crimes de tráfico transnacional de drogas e lavagem de dinheiro. Conforme narração dos fatos, em 14 de março de 2012, os embargantes da referida ação firmaram contrato de compra e venda de seu único imóvel, cujo comprador foi posteriormente identificado como um dos réus da referida ação penal, que ofereceu o valor de R$ 506.000,00 (quinhentos e seis mil reais), a ser pago em duas parcelas. Contudo, em setembro de 2012, antes do adimplemento da segunda e última parcela, os vendedores foram surpreendidos com notícias acerca da Operação Pequeno Príncipe, especificamente sobre a prisão de suposto traficante no imóvel alienado pelos embargantes. A partir da referida prisão e do inadimplemento da segunda parcela, os embargantes expediram notificação extrajudicial pela qual solicitavam o adimplemento da última parcela do contrato de compra e venda, sem êxito, contudo. Posteriormente, ajuizaram a Ação de Reparação de Danos e Rescisão Contratual, que culminou na rescisão do contrato de compra e venda do imóvel, com a determinação do retorno ao status quo em benefício deles; e, ainda, na condenação do comprador ao pagamento de danos materiais e morais, os quais foram majorados pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina para o montante de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Concomitantemente, o bem do casal foi objeto de constrição pelo juízo da antiga 1ª Vara Federal Criminal e, posteriormente, objeto de perdimento em favor da União. Os embargantes, contudo, não foram intimados dos atos de constrição sobre o bem. Após a procedência dos pedidos formulados perante a Justiça Estadual, os proprietários do bem descobriram a constrição que recaía sobre o imóvel. Por essa razão, opuseram, em 2 de setembro de 2015, os Embargos de Terceiro, os quais foram distribuídos na 7ª Vara Federal de Florianópolis. Ciente da necessidade de dar voz aos terceiros prejudicados, foi determinada pela 7ª Vara Federal a realização de audiência de conciliação. No ato, salientou-se que a audiência havia sido designada com fundamento nas premissas que regem as técnicas para resoluções de conflitos, especialmente as adotadas na conciliação e na Justiça Restaurativa. Salientou que a Justiça Restaurativa, utilizada em âmbito criminal, refletia um procedimento de consenso, o qual é estabelecido notadamente entre vítima e o infrator, podendo envolver, ainda, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, cujo objetivo 194 BOOK.indb 194

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é a atenuação dos traumas causados pelos seus efeitos deletérios e a diminuição das perdas por ele ocasionadas. Na audiência, embora não tenha havido o acordo, foi possível “dar voz” aos embargantes, vítimas indiretas do crime. No ato, elas puderam demonstrar suas razões, suas dores e os prejuízos morais e econômicos suportados. Nos termos da fundamentação da sentença proferida em 5 de abril de 2017: Os prejuízos amargados pelos embargantes os colocaram em situação próxima a de vítimas, por isso esse Juízo buscou uma solução com enfoque na Justiça Restaurativa. Embora o ofensor não tenha participado da prática realizada em audiência, essa oportunidade conferida aos ofendidos permitiu com que eles expusessem suas angústias e seus dissabores. Evidenciou seus prejuízos e comprovou que desconheciam a constrição de seu bem. Como Juíza criminal, reconheço a importância de dar voz àqueles que são, por tantas vezes, esquecidos, não obstante sofram os efeitos diretos ou indiretos do crime31.

Dessa forma, os pedidos formulados na inicial dos embargos foram julgados procedentes, ao contrário da tendência inicial que caminhava para a parcial procedência. A sentença transitou em julgado, sem qualquer recurso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS No âmbito da 7ª Vara Federal de Florianópolis, as práticas restaurativas são objeto de avaliação e a aplicação destas ainda se mostra incipiente. Dentro dessa perspectiva, questiona-se o porquê de os projetos de implementação da Justiça Restaurativa no Brasil não terem sido estendidos para o âmbito dos crimes de competência da Justiça Federal. Sob esse enfoque, embora a Justiça Estadual represente o local em que as concepções da Justiça Restaurativa encontrem absoluta simetria, é preciso conceber que os denominados “crimes federais” não se restringem aos popularmente identificados “crimes de colarinho branco”, tendo em vista a ampla competência estabelecida pelo art. 109 da Constituição Federal de 1988 à Justiça Federal em matéria criminal. Portanto, é possível eleger a Justiça Federal também como um campo propício para a implementação de práticas restaurativas. Para tanto, mostra-se necessário conhecê-las plenamente, concebendo-as como uma experiência plural, um caminho, um novo acesso, estritamente vinculado à cultura da não perpetuação da violência. Dentro desse aspecto, ainda que considerável parte dos crimes de natureza federal tenha como vítima o próprio Estado, a gama de crimes que orbita pelas Varas Federais Criminais é ampla e pode envolver vítimas variadas, diretas ou Disponível em: <https://eproc.jfsc.jus.br/eprocV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=721491359080535260230561644192&evento=721491359080535260230561684491&key=801104eb8378c8083f9ee7f4f125657aca3b6fafa7ac243ddd93985055800a05 >. Acesso em: 9 jul. 2017.

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indiretas do crime, danos patrimoniais diversos, assim como uma menor potencialidade ofensiva ou mesmo severas violações a direitos humanos. Assim, sob a luz das três concepções da Justiça Restaurativa: a concepção do encontro, concepção da reparação do dano e concepção da transformação, a partir da análise do caso paradigmático, é possível estabelecer um ponto de partida para um estudo acerca da viabilidade das práticas no âmbito da 7ª Vara Federal de Florianópolis, realidade laboral das pesquisadoras. A Justiça Restaurativa encontrará ressonância na Justiça Federal a partir do estabelecimento de um novo olhar sobre o sistema penal, de modo a torná-lo mais preparado para a realização dos fins a que se propõe. Um olhar que agrega vítima, sociedade, reparação do dano e a responsabilização do ofensor. Um olhar em que, às vítimas e à sociedade, seja garantido o acesso à Justiça. Um modo de atuar em que o ofensor sinta a efetiva responsabilização, que não se confunde com o simples cumprimento de pena, e compreenda o fato por ele praticado, a repercussão do crime na vida de terceiros e a necessidade de reparação do dano.

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SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Justiça restaurativa com adolescentes em conflito com a lei. Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br/ infjuv/documentos/acoeseprojetos/Justi%C3%A7a%20Restaurativa/JRTribunalSCsite.pdf>. Acesso em: 7 maio 2017. ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Teoria e Prática. Série da reflexão à Ação. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2015.

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A TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA: BREVES REFLEXÕES SOBRE SUA CONCESSÃO DE OFICIO NA JUSTIÇA FEDERAL

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Mônica Lúcia do Nascimento Alcantara Botelho1

INTRODUÇÃO Nas últimas décadas o Direito Processo Civil assumiu uma nova postura; novos valores, como a instrumentalidade e a efetividade, tornaram-se a inspiração de institutos processuais2 que procuram evitar os danos causados por um procedimento caro e moroso como o atual rito ordinário, que no CPC/2015 é denominado de procedimento comum, e a doutrina apelidou de procedimento único 3. Esta nova faceta do Direito Processual Civil surgiu após inúmeras transformações, sobretudo por influência de um novo cenário constitucional consagrador do acesso à Jurisdição como garantia individual no artigo 5º, inciso XXXV4. Após mais de quatro anos de tramitação foi aprovado o CPC/2015, o primeiro ‘cujo processo legislativo se deu totalmente em regime democrático5, em razão disso recebeu Professora e Juíza Federal Titular da Vara de Macaé-RJ, Mestre em Direito, especialista em Direito Público e Privado pela EMERJ-UNESA, Especialista em Direito Civil e Processo Civil, instrutora de cursos na Seção judiciária do RJ e ES-TRF2, professora de cursos de pós-graduação de direito civil, processo civil e responsabilidade civil na UNESA-RJ, OAB-Barra da tijuca, UCAM-RJ e EMERJ. 2 Por exemplo, a Antecipação da tutela (art.273 do CPC), o Poder Geral de Cautela do Juiz (art.798 do CPC), o procedimento sumaríssimo (Lei 9.099/95). 3 “Relevante à inovação do Código quanto ao procedimento comum, que a doutrina vem denominando de procedimento único, pois consistir na unificação dos ritos ordinário e sumário do Código de 1973, com algumas alterações relevantes, e com a característica de ter aplicação mais ampla, abrangendo pedidos que na sistemática anterior eram disciplinados em procedimento especiais. Contudo continuam a existir procedimentos especiais, tanto no novo Código, quanto na legislação extravagante.” MACHADO JUNIOR, Daria Ribeiro e outros. Coordenação Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, Humberto Dalla Bernardina de Pinho. Novo código de processo civil: anotado e comparado: lei 13.105, de 16 de março de 2015. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.180. 4 “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” 5 DIDIER JR, Fredie et al. Curso de direito processual civil.Vol. 1. 10 ed. Salvador: Podivm, 2015, p.21. 1

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influência de vários setores da sociedade na sua elaboração. Como toda obra humana possui suas imperfeições, mas no geral, o CPC/2015 possui muitas inovações positivas tanto sob a ótica dos advogados, como pela ótica dos juízes. Nesse contexto, o CPC/2015 dedica seu livro V, as disposições gerais da tutela provisória, compreendida em tutela de urgência e tutela de evidência, regradas a partir do art. 294, e no art.300, unificam-se os requisitos para concessão da tutela de urgência cautelar e antecipada, e não há mais necessidade de esforço interpretativo para expressões como “prova inequívoca” e “verossimilhança da alegação”. A tutela provisória de urgência é um poderoso instrumento de garantia da efetividade processual, pois possibilita a inversão do ônus do tempo no processo, quando preenchidos seus requisitos legais (art.300): a probabilidade da existência do direito (é provável que a parte tenha o direito alegado), o perigo de dano ao direito provável ou o risco ao resultado útil do processo (do direito que se acautela) e a reversibilidade dos efeitos fáticos do provimento. Da mesma forma que a tutela cautelar, a tutela antecipada também pode fundamentar-se no requisito urgência. A tutela de urgência subdivide-se em tutela de urgência satisfativa e tutela de urgência cautelar, que podem ser requeridas e concedidas em caráter antecedente ou incidental (art. 294, parágrafo único)6. Este artigo tem por objetivo analisar a possibilidade de concessão de oficio de tutela provisória de urgência, notadamente quando houver perigo de irreversibilidade dos seus efeitos práticos.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O Direito Processual Civil, como ramo do Direito Público, vem sendo revisitado, estudado, interpretado e aplicado na atualidade, a partir de uma visão instrumentalista, que procura enfatizar o seu papel de meio para a consecução do direito material, e de garantidor do real acesso à Justiça e à efetividade da prestação jurisdicional com a resolução dos conflitos no âmbito judicial e extrajudicial. É forçoso reconhecer que, hodiernamente, os pleitos judiciais causam angústia pela longa espera na entrega ao jurisdicionado de uma decisão final sobre o mérito da causa, provocando desprestígio da magistratura e sofrimento pessoal dos que necessitam da tutela estatal. É de comum sabença que nenhum método eficiente de gestão de acervo é capaz de evitar que processos aguardem mais de seis meses por uma sentença, seja em razão do volume excessivo de processos distribuídos mensamente, além da diversidade dos temas a serem julgados nasVaras Federais das subseções de diversos municípios do interior do Estado, que possuem ampla competência, julgando desde as demandas dos juizados adjuntos, as ações cíveis, tributárias e criminais. É evidente que acelerar os resultados do processo sem comprometer a qualidade dos julgamentos, bem como o cumprimento de todas as decisões ALVIM, Rafael. Fonte: http://www.cpcnovo.com.br/blog/2015/06/17/tutela-provisoria-no-novo-cpc/. Acesso: 22 de jun de 2014.

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que nele se processam, é quase uma obsessão nos modernos estudos sobre a tutela jurisdicional. Para obter resultados mais efetivos do processo é necessária uma postura menos passiva dos juízes, comprometida com a concretização das políticas públicas. Essa atuação é denominada pela doutrina e jurisprudência de ativismo judicial. Em que pese os calorosos debates contra e a favor dessa prática7, impossível negar a sua importância na preservação dos direitos fundamentais, e percebe-se claramente a opção do legislador do CPC/2015 (Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015) por esse modelo de jurisdição comprometida com a realização de políticas públicas, na qual o juiz com base em princípios como a proporcionalidade e dignidade da pessoa humana deve valer-se dos meios necessários à efetivação da tutela jurisdicional. Sobre o tema confira-se a doutrina: “...uma hipótese de antecipação de uma condenação de obrigação de pagar, fundada numa urgência agônica, como a necessidade de custeio imediato de um tratamento de saúde vital para o paciente. Nessa situação, somente o prazo de 15 (quinze) dias previsto no art.523 para “pagamento voluntário” já teria o condão de conduzir à total ineficácia da medida. Em casos tais- excepcionalíssimos, por assim dizer- diante da urgência e dos bens em jogo, é facultado ao juiz afastar-se do modelo executivo previsto para as obrigações de pagar, utilizando-se do instrumental para cumprimento das tutelas especificas (obrigações de fazer/não fazer e entrega de coisa), efetivando a tutela provisória de pagamento per officium iudicis, com a expedição de mandado de pagamento, sob pena de medidas coercitivas (multa, configuração de crime de desobediência etc.), ou mesmo com a adoção de medidas sub-rogatórias, e.g., bloqueio e entrega imediata de numerário existente em conta-corrente e aplicações financeiras etc. Não se trata, frise-se, de “transformar” uma obrigação de pagar numa obrigação de fazer, mas sim de executar uma obrigação de pagar com os meios executivos previstos em outro modelo executivo, numa verdadeira fungibilidade de meios executivos. Essas espécies de fungibilidade, segundo pensamos, está expressamente permitida no NCPC, quando no art.139, inciso IV, permite-se ao “Com efeito, fato é que, queiramos ou não, o ativismo se tem implementado por algumas razões. A primeira, pelo fato de haver clara e evidente omissão dos demais Poderes, por exemplo, do Executivo, que deveria implementar e realizar políticas públicas. Diante da omissão de aludido Poder nesse contexto, tem-se que cada vez mais os cidadãos têm recorrido ao Judiciário na busca da solução adequada para seu caso. A segunda, sustenta-se que não é dado ao Judiciário simplesmente furtar-se ao julgamento de ação que a ele tenha sido submetida sob o fundamento que não pode se imiscuir na esfera dos outros Poderes. Enfim, não cabe ao Judiciário lavar as mãos, sobretudo, diante da falta de solução legislativa adequada ou de omissão do executivo quanto à implementação de direitos fundamentais. A terceira, em decorrência da necessidade de implementar e realizar políticas públicas que são direitos dos cidadãos que contribuem e não têm a respectiva e adequada contraprestação do Poder Público.” TESHEINER, José Maria Rosa et al. Teoria Geral do Processo em conformidade com o novo CPC. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.272.

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juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento da ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”8

A partir dessa ordem de ideias, o CPC/2015, trata do gênero tutela provisória (art.294), do qual são espécies a tutela de urgência e a tutela de evidência, que podem ser cautelares ou antecipatórias, com o escopo de possibilitar a entrega total ou parcial do que se pretende, driblando, portanto, o aspecto temporal inerente aos procedimentos judiciais. Percebemos que a busca de um divisor de águas entre a segurança jurídica e a efetividade processual é uma das maiores preocupações dos processualistas, e que tal dilema deve ser resolvido, tendo como base algumas premissas básicas, como por exemplo: o processo é um instrumento e não um fim em si mesmo; o Judiciário deve assegurar o acesso à justiça a todos os jurisdicionados, travando uma luta sem tréguas contra o tempo. O decurso do tempo só favorece a parte que não tem razão, e prejudica aquele que tem o direito material objeto da lide. Assim, surge um novo paradigma de antecipação dos efeitos da tutela, dividida em duas espécies: a tutela antecipada de urgência e a tutela antecipada de evidência do direito, ambas têm como fundamento comum a probabilidade do direito invocado, como forma de afastar o ônus do tempo no processo, diferenciando-se pelo fato de que na tutela provisória de evidência não é necessária à demonstração do periculum in mora exigido para tutela provisória de urgência. É por isso que não há previsão de tutela de evidência antecedente, que pressupõe como requisito a urgência da tutela com base em cognição sumária.

2. REQUISITOS DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA O CPC/2015 dedica o Título I (artigos 294 a 299) as disposições gerais da tutela provisória, o Título II (artigos 300 a 310) a tutela de urgência e o Título III (artigo 311) a tutela da evidência. Veja-se que em contramão com a doutrina o legislador no Senado optou pelo gênero “tutela provisória”, reservando o termo “tutela antecipada” para as tutelas provisórias de caráter satisfativo. “Na versão do Projeto do CPC de 2015 aprovada na Câmara de Deputados, o instituto fora denominado de “Tutela Antecipada”, designação que nos parece tecnicamente mais adequada, que inclusive foi o título dado ao Livro V dedicado à matéria. Entretanto, quando o referido projeto voltou para o Senado, substitui-se o termo “Tutela Antecipada” por “Tutela Provisória”, reservando-se a expressão “Tutela Antecipada” exclusivamente para aquelas tutelas provisórias de caráter WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros Comentários ao novo código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.492.

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satisfativo. Não foi a opção mais adequada, como se verá, pois não há uma tutela antecipada definitiva, que se oporia à tutela antecipada provisória. Antecipar é técnica. Satisfazer tem a ver com o tipo de tutela. A tutela provisória é, isso sim, uma técnica processual de antecipação provisória de antecipação dos efeitos finais da tutela definitiva, sendo está última ( a tutela definitiva) que goza da autonomia necessária para ser designada de “tutela”, representando funções jurisdicionais próprias de certificação, a efetivação e o acautelamento do direito. E essa tutela antecipada tanto pode ser satisfativa como não satisfativa. Confirma essa visão o enunciado 25 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Tutela antecipada é uma técnica de julgamento que serve para adiantar efeitos de qualquer tipo de provimento, de natureza cautelar ou satisfativa, de conhecimento ou executiva.” 9 Grifei

Como observou Fredie Didier Júnior, na fundamentada critica retro, foi um equivoco a opção terminológica do legislador pela expressão “Tutela Provisória”, na medida em que não há uma tutela antecipada definitiva, que se oporia a tutela antecipada provisória, uma vez que antecipação de tutela é técnica de julgamento aplicável a qualquer tipo de provimento, inclusive o cautelar. Ainda nesse diapasão, Marinoni, Arenhart e Mitidiero, asseveram: “Se o Código acertou em ver a técnica antecipatória como um meio de distribuição isonômica do ônus do tempo no processo, ligando-a tanto à urgência como à evidência (art.294, CPC), errou em denomina-la a partir de um critério puramente interno ao processo, chamando-a conservadoramente de tutela provisória. Essa terminologia obscurece a relação entre técnica processual e tutela do direito, turvando os pressupostos que são necessários para prestar diferentes tutelas mediante a técnica antecipatória: a tutela inibitória contra o ilícito, que o Código igualmente consagra no art.497, parágrafo único, CPC, certamente atende a pressupostos distintos da tutela ressarcitória contra o dano. A organização do tema na perspectiva da técnica antecipatória poderia ter colaborado para o melhor equacionamento das relações entre direito e processo.” 10 Grifei

Portanto, corretas as criticas da doutrina à opção legislativa pelo termo “tutela provisória”, quando o mais técnico seria a expressão “tutela antecipada”. Registrem-se, por oportuno, as sempre valiosas lições de José Carlos Barbosa Moreira ao esclarecer, com sua peculiar clareza solar, que tutela é a proteção conferida pelo Estado-Juiz ao jurisdicionado, portanto é o objeto de antecipação11. DIDIER JR, Fredie et al. Curso de direito processual civil.Vol. 2. 10 ed. Salvador : Podivm, 2015, p.568. 10 MARINONI, Luiz Guilherme et al. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.306. 11 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual: oitava série. Antecipação da tutela: algumas questões controvertidas São Paulo: Saraiva, 2004, p.77/78. 9

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Sobre o assunto, Marinoni, Arenhart e Mitidiero asseveram que o “legislador teria andado melhor se tivesse percebido que a antecipação é apenas uma técnica processual que serve para viabilizar a prolação de uma decisão provisória capaz de outorgar tutela satisfativa ou tutela cautelar fundada em cognição sumária 12.” Pontue-se, no entanto, que usaremos ao longo do trabalho a expressão adotada pelo CPC/15, em que pese às fundamentadas criticas doutrinárias. A propósito, a tutela provisória pode ser conceituada como espécie de tutela baseada em cognição sumária (não exauriente), portanto revogável durante o curso do processo e uma vez concedida produz seus efeitos até ser revogada por outra decisão interlocutória (o que é mais raro na prática) ou por sentença de improcedência. A tutela provisória tem duas finalidades, são elas a preservação do resultado útil do processo (natureza cautelar)13 ou a satisfação do direito pleiteado (natureza de medida antecipatória do provimento final de mérito). De forma brilhante a doutrina de Teresa Arruda Alvim Wambier sintetiza os objetivos da tutela cautelar e da tutela antecipada afirmando que “na cautelar protege-se para satisfazer, enquanto na tutela antecipada satisfaz-se para proteger14.” A respeito dos requisitos da tutela provisória de urgência confira-se a conclusão estampada no Enunciado nº 143 do Fórum Permanente de Processualistas Civis15: “A redação do art. 300, caput, superou a distinção entre os requisitos da concessão para a tutela cautelar e para a tutela satisfativa de urgência, erigindo a probabilidade e o perigo na demora a requisitos comuns para a prestação de ambas as tutelas de forma antecipada.”.

É verdade que o CPC/2015 não faz mais a distinção de requisitos existente no CPC/1973, porquanto unificou os requisitos da tutela antecipada e da cautelar, com a necessária comprovação da probabilidade da existência do direito alegado e o perigo na demora do curso do processo (art.300 CPC/15), não menos correto é que não suprimiu completamente a diferenciação entre MARINONI, Luiz Guilherme et al. Op. cit., p.312. Em sentido contrário:“A tutela cautelar é referível à tutela satisfativa, porque está preordenada à sua conservação. É importante perceber, nessa linha, que também inexiste uma relação de instrumentalidade processual. A tutela satisfativa e a tutela cautelar são tutelas do direito. Em outras palavras, a tutela cautelar não é um instrumento do instrumento, embora seja um endereço doutrinário comum no direito brasileiro. A tutela cautelar presta tutela ao direito material.” MARINONI, Luiz Guilherme et al. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.309. 14 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros Comentários ao novo código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.488. 15 Fonte: http://www.academia.edu/. Acesso: 22 de jun de 2014. 12 13

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tutela cautelar e tutela antecipada16, máxime pela possibilidade de estabilização dos efeitos da tutela antecipada previsto no art.304 do CPC/15. Esse efeito não foi previsto expressamente para a tutela cautelar. Quanto à fungibilidade entre as tutelas provisórias o parágrafo único do art.305 do CPC/15 estabelece que, quando o autor, a título de tutela cautelar antecedente, formular requerimento cuja natureza seja, na realidade, de tutela antecipada (satisfativa) antecedente, deverá o juiz- após decisão que submeta o tema ao contraditório e possibilite a emenda, por interpretação sistemática dos arts.10 e 321 ajustar o procedimento à sistemática do art.303 todos do CPC/2015. Essa técnica de convertibilidade17 entre as duas tutelas provisórias é mais conhecida por fungibilidade é exatamente o oposto da prevista no art.273, §7º do CPC/73, que previa apenas a fungibilidade quando for requerida antecipação da tutela medida de natureza cautelar. A jurisprudência tem se posicionado de forma favorável a aplicação da fungibilidade em mão dupla, da mesma forma deverá ocorrer com a entrada em vigor do CPC/15, para que o requerimento de tutela antecipada antecedente equivocamente pleiteada seja convertida no procedimento adequado de tutela cautelar antedente. Nesse sentido tem-se posicionado a doutrina: “Se o legislador admite essa fungibilidade progressiva (da cautelar para a satisfativa), deve-se admitir, por analogia, a fungibilidade regressiva da satisfativa para a cautelar (da mais para a menos agressiva e rigorosa). Dessa forma, uma vez que requerida tutela provisória satisfativa (antecipada) em caráter antecedente, caso o juiz entenda que sua natureza é cautelar, poderá assim recebe-la, desde que seguindo o rito para ela previsto em lei” 18 “Este dispositivo, registre-se, deve ser entendido de forma ampla, capaz de englobar também a situação inversa (isto é, tendo o demandante se valido da técnica prevista no art.303 para postular uma medida de urgência antecedente que o juiz repute cautelar, deverá o magistrado, depois de ouvir o demandante, determinar que se observe o regime previsto no art.305, como se vê no enunciado 502 do FPPC:“Caso o juiz entenda que o pedido de tutela antecipada em caráter antecedente tenha natureza cautelar, observará o disposto no art.305 e seguintes).19

3. A TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA EX OFFICIO Uma questão prática controvertida surge em razão da inexistência de previsão legal no CPC/15 quanto a possibilidade do julgador conceder uma tutela provisória WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al., op. cit., p.499. Não se trata de fungibilidade, porque não será o caso de se admitir-se o emprego de uma técnica em substituição a outra. Cf. CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo, 2016, 165/166. 18 DIDIER JR, Fredie et al. op. cit., p.616/617. 19 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 160. 16 17

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de urgência ex officio, nem mesmo quando tratar-se de tutela cautelar, como previa o art.797 do CPC/73. O CPC/2015 não traz na redação aprovada na Câmara dos Deputados a previsão que constava do projeto aprovado no Senado, em seu artigo 27720, que tratava da possibilidade de concessão de medidas de urgência ex officio. Em decorrência dessa falta de previsão legal a posição que tem prevalecido na doutrina e jurisprudência é pela impossibilidade de concessão de qualquer espécie de tutela provisória ex officio. Sendo a tutela satisfativa e a tutela cautelar tutelas do direito, a sua obtenção pela parte está condicionada à existência de pedido ( principio da demanda, arts.2 e 141, CPC). Ao tempo em que se admitia a prestação de tutela cautelar de oficio, pressupunha-se que a sua concessão não prestava tutela ao direito da parte, sendo apenas providência no interesse do processo- e, portanto, ligada exclusivamente ao interesse público e ao exercício de uma função de policia do processo. Trata-se de preposição superada pela doutrina, já que ninguém ainda hoje pode supor que o interesse da parte que obtém, por exemplo, um arresto, é tutelar o processo e não proteger o cautelarmente o próprio direito de crédito de que seja titular. No entanto, tendo em conta a estrutura cooperativa do novo processo civil, pode o juiz, percebendo que é possível tutelar a parte provisoriamente, consultá-la a respeito de seu interesse na obtenção de uma tutela sumária (art.6, do CPC). Não pode, porém, antecipar a tutela de ofício (seja satisfativa, seja cautelar), dado o regime de responsabilidade objetiva inerente à sua fruição (art.302, CPC), o qual a parte pode não ter interesse em submeter-se. 21”

Interessante reflexão retro, feita pelos autores da referida obra coletiva, eis que o principio da cooperação no CPC/2015 deve ser observado por todos os sujeitos o processo. Desta forma, o julgador deverá, sempre que possível, consultar a parte antes de conceder a tutela provisória de urgência ex officio. Outrossim, entendemos que essa consulta ao autor deve ser feita “sempre que possível”, porque em muitas demandas essa providência enfrentaria óbices práticos, v.g., deferimento no momento da prolação da sentença de procedência. De outra banda, o ilustre professor Fredie Didier Júnior22 defende a impossibilidade de concessão de qualquer tipo de tutela provisória ex officio, sob o argumento de que não há nem mais espaço para a concessão de tutela cautelar ex officio, como era “Art.277. Em casos excepcionais ou expressamente autorizados por lei, o juiz poderá conceder medidas de urgência de ofício.’ A proposta do Senado traz à tona o art.797 do atual CPC e não encontra similar no Projeto da Câmara.” BUENO. Cássio Scarpinella. Projetos de novo código de processo civil comparados e anotados. São Paulo: Saraiva, 2014, p.160. 21 MARINONI, Luiz Guilherme et al. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015., p.307. 22 “Assim, para Daniel Mitidiero, dentre outras coisas, que não haveria violação, pois ‘envolve questões da própria causa, plantadas evidentemente pela própria parte.’ (MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil, cit., t.3, p.49-50). Com a mesma 20

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previsto no art.797 do CPC/1973, máxime porque seria o autor quem responderia no caso da revogação da decisão concessiva da tutela. “Assim, concedida ex officio, sem pedido da parte, quem arcaria com os prejuízos, se a decisão fosse revista? A parte que se beneficiou sem pedir a providência? É preciso que a parte requeira a sua concessão, exatamente porque, assim, conscientemente assume o risco de ter de reparar a outra parte, se restar vencida no processo.” 23

Com razão Didier ao concluir pela existência de uma regra geral de impossibilidade de concessão de qualquer tipo de tutela provisória ex officio, por ausência de previsão expressa no CPC/2015. No entanto, em algumas demandas previdenciárias e assistências, nas quais a parte esperou por um longo período a concessão e implantação de seu beneficio, em regra com valores mensais de um salário-mínimo ( como o LOAS), e no momento da sentença com base em cognição completa é reconhecido o direito ao beneficio requerido. Nesses casos seria possível a concessão da tutela provisória no corpo da sentença, por considerar que em casos excepcionais a mitigação da impossibilidade de tutela ex officio é a medida capaz de proporcionar efetividade a atividade jurisdicional. Vejamos. Em processos nos quais não foi requerida a tutela provisória de urgência, mesmo aqueles que tramitam nos juizados especiais federais adjuntos a efetivação do direito pode algumas vezes chegar tardiamente, até mesmo após o óbito do autor da ação. Essa morosidade nos juizados federais se dá por vários fatores, notadamente pela limitação de seu corpo técnico, máxime nesses juizados aonde a equipe de servidores é formado por um número ínfimo de servidores, já presenciei casos como da Vara Federal de Colatina-ES no ano de 2015, ou seja, com apenas dois esforçados e competentes servidores. Portanto, essa carência de recursos humanos inviabiliza a almejada celeridade desses juizados, em que pese todo esforço físico e mental depreendidos por seus servidores e juízes, que tentam dar conta de centenas de processos que aguardam processamento de despachos, decisões, sentenças, ofícios, intimações, dentre outros tramites cartorários. Some-se a isso o fato de mais da metade desse acervo ser composto por ações que buscam a concessão de benefícios previdenciários ou assistenciais, na sua maioria nos quais as partes não têm patrocínio de um advogado, e batem as portas do Judiciário requerendo um beneficio indeferido administrativamente indevidamente, com a esperança de garantir o mínimo de dignidade para suas vidas. Dentro desse contexto fático, entendemos que nesses casos o perigo da demora é muito maior para a parte hipossuficiente, devendo o magistrado excepcionar a regra da impossibilidade da tutela provisória de ofício, por ser uma medida necessária a assegurar a dignidade da pessoa humana, e um processo justo. Isso, porque seria a principal opinião, só que baseada em fundamentos distintos, Cássio Scarpinella Bueno. DIDIER JR, Fredie et al. Curso de direito processual civil. Vol. 2. 10 ed. Salvador: Podivm, 2015, p.593. 23 DIDIER JR, Fredie et al. Curso de direito processual civil. Vol. 2. 10 ed. Salvador: Podivm, 2015, p.594.

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utilidade da concessão da tutela de urgência de oficio, consiste no fato de que eventual recurso interposto pelo INSS não teria á efeito suspensivo, possibilitando ao autor a fruição imediata da implantação do beneficio concedido na sentença24.

CONCLUSÃO O princípio da efetividade da prestação jurisdicional advém do acesso à ordem jurídica justa, como corolário da inafastabilidade do controle judiciário (artigo 5º, inciso XXXV da CRFB/88). Assim, o Estado tem o dever de prestar efetiva, adequada e tempestiva tutela jurisdicional. Sem embargo, a exigência de celeridade na prestação jurisdicional não pode fulminar as garantias constitucionais do devido processo legal. Portanto, soluções de urgência devem utilizadas com parcimônia. Por conseguinte, o grande paradoxo do processo civil moderno reside em encontrar a solução que atenda às exigências de segurança e efetividade. Logo, para solucionar a tensão entre o direito do jurisdicionado à efetividade processual versus segurança jurídica25, não se pode esquecer que a efetividade processual constitui elemento essencial do Estado Democrático de Direito, pois o processo é um instrumento de realização dos direitos fundamentais. Assim, absolutamente nada adianta assegurar contraditório, ampla defesa e imparcialidade, se o processo não tem aptidão para produzir os efeitos úteis ao jurisdicionado26. A tutela provisória tem duas finalidades, são elas a preservação do resultado útil do processo (natureza cautelar)27 ou a satisfação do direito pleiteado (natureza de medida antecipatória do provimento final de mérito). A antecipação de tutela tem por objetivo a imediata outorga de parte dos efeitos práticos que seriam alcançados, em regra, após o trânsito em julgado da “A situação fica bem mais interessante quando se pensa na sentença, contra a qual cabe apelação que prevê, como regra, o efeito suspensivo. O capítulo da sentença que diz respeito à tutela provisória – seja para confirma-la, concedê-la ou revogá-la- não estará sujeito ao efeito suspensivo, produzindo efeitos imediatos.(art.1012, inciso V)”. WANBIER, Tereza Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 489. 25 “(...) o legislador ordinário está, sem dúvida, estabelecendo restrição ao direito à segurança jurídica, consagrado pelo artigo 5º, inciso LIV, da Constituição. Justamente por isso, e conforme evidenciam os incisos do artigo, tal restrição somente será admitida quando outro direito fundamental (o da efetividade da jurisdição) estiver em vias de se desprestigiado.” ZAVASCKI,Teori Albino. Antecipação da Tutela e Colisão de Direitos Fundamentais. Revista do Advogado, SP, 95 (46): 27-38, agosto de 1995, p.30. 26 PINTO, Nelson Luiz. A Antecipação de Tutela Como Instrumento de Efetividade do Processo e de Isonomia Processual Revista de Processo, SP, 27 (105): 43-63, jan.-mar de 2002, p.47. 27 Em sentido contrário:“A tutela cautelar é referível à tutela satisfativa, porque está preordenada à sua conservação. É importante perceber, nessa linha, que também inexiste uma relação de instrumentalidade processual. A tutela satisfativa e a tutela cautelar são tutelas do direito. Em outras palavras, a tutela cautelar não é um instrumento do instrumento, embora seja um endereço doutrinário comum no direito brasileiro. A tutela cautelar presta tutela ao direito material.” MARINONI, Luiz Guilherme et al. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.309. 24

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sentença de mérito. É uma forma de tutela diferenciada que pode ter como fundamento a urgência na obtenção do resultado prático pleiteado, em função do abuso do direito de defesa da parte contrária, ou pela incontrovérsia dos fatos relevantes ao julgamento de parte do pedido do demandante. Em suma, a construção de formas de tutelas diferenciadas, baseadas em cognição sumária, notadamente com a previsão da tutela provisória, fundada na urgência ou na evidência (art.294, do Novo Código de Processo Civil) concretizam o direito fundamental do acesso à justiça, e devem ser interpretadas de forma a garantir a maior efetividade dos direitos fundamentais, notadamente da dignidade da pessoa humana. Logo, conclui-se pela possibilidade de concessão de tutela provisória satisfativa de urgência ex officio, quando presentes seus requisitos, desde que sua concessão seja necessária para garantir a efetividade da tutela jurisdicional garantindo a fruição de direitos da personalidade. Por fim, ficará a cargo da doutrina e dos Tribunais a reflexão sobre a possibilidade de concessão de tutela provisória satisfativa de urgência ex officio, considerando que o fato do art.295 do CPC/2015 dispor que “a tutela provisória será requerida”, é uma regra geral que pode ser afastada no caso concreto para a concessão da tutela provisória em casos que seus requisitos estiverem presentes, mas não tenha sido formulado pedido pelo autor, e sua concessão seja necessária para garantir a efetividade da tutela jurisdicional.

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APONTAMENTOS SOBRE A COISA JULGADA NO NOVO CPC

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Newton Pereira Ramos Neto1

INTRODUÇÃO Os sistemas de justiça em geral tratam do tema “coisa julgada” de forma a conferir eficácia prática à segurança jurídica e, por conseguinte, garantir a estabilização das relações judicializadas2. Sendo assim, a coisa julgada é primado evocado para afastar as instabilidades que gravitam em torno das decisões judiciais, já que a ordem jurídica protege a afirmação da autoridade das relações jurídicas construídas sob o pálio do devido processo legal. Na tentativa de conceituá-la, o CPC/73 considerou a coisa julgada como a eficácia capaz de tornar imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (art. 467). No novo sistema processual (Lei nº. 13.105/2015) o instituto é caracterizado como “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (art. 502). Note-se que o novel regramento, ao substituir o termo “eficácia” pelo termo “autoridade”, deixou de dar margem à interpretação segundo a qual há uma correlação estreita entre coisa julgada e eficácia ou efeito da decisão3. Ao longo do presente ensaio teremos a oportunidade de demonstrar que os sistemas jurídicos contemporâneos trabalham com estabilidades processuais de intensidade distinta da coisa julgada. Além disso, a própria coisa julgada não Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Professor Assistente na Universidade Federal do Maranhão. Membro da ABDPro – Associação Brasileira de Direito Processual. Membro da ABPC – Associação Brasiliense de Direito Processual Civil. Ex-presidente da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região – Ajufer. Juiz Federal. 2 “A coisa julgada, enquanto instituto jurídico, tutela o princípio da segurança em sua dimensão objetiva, deixando claro que as decisões judiciais são definitivas e imodificáveis. Frisa-se que a coisa julgada expressa a necessidade de estabilidade das decisões judiciais.” MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa Julgada Inconstitucional. 2. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 67. 3 Criticando a alteração, vide os comentários de Antônio do Passo Cabral ao art. 502 in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie;TALAMINI, Eduardo; e DANTAS, Bruno. (coord.) Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1281. 1

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pode ser concebida modernamente como imutável e indiscutível, uma vez que o grau de sua estabilidade está sujeito a diversas vicissitudes processuais, inclusive sob o aspecto temporal4. Pretende-se aqui traçar um quadro geral das questões mais sensíveis acerca do disciplinamento da “coisa julgada” no novo Código de Processo Civil. Para tanto, deve-se levar em conta aspectos relativos (i) à oscilação jurisprudencial e suas repercussões na coisa julgada; (ii) à necessidade de se proceder à modulação de efeitos das decisões que se constituam em overruling na matéria, em razão da primazia da proteção da confiança5; e (iii) a estruturação de um sistema de precedentes – fenômeno que se materializa desde o início da década de 90 no Brasil, com notáveis exemplos tal qual a introdução da súmula vinculante (art. 103-A, CF/88) e da técnica de julgamento de recursos repetitivos (art. 543-A e seguintes do CPC/73) -, de maneira a se conferir previsibilidade e harmonia ao nosso sistema de justiça. É o que se passa a fazer doravante.

1. COISA JULGADA MATERIAL E FORMAL: A QUESTÃO DA COISA JULGADA DE NATUREZA PROCESSUAL A expressão coisa julgada formal, estranha ao ordenamento jurídico-positivo vigente, é objeto de severas críticas na doutrina, que considera se tratar o fenômeno de uma simples espécie de preclusão6. Outra parte da doutrina, porém, defende que a coisa julgada formal refere-se à autoridade que torna indiscutível e imutável as decisões de conteúdo processual, enquanto que coisa julgada material alude às decisões de mérito. Ambas, assim, projetar-se-iam para fora do processo, centrando-se a distinção no conteúdo do ato jurisdicional7. Da dicção do art. 502 infere-se, primeiro, que a coisa julgada abrange todos os tipos de decisão e, segundo, que ela só atinge a dimensão da matéria de fundo posta a exame no caso concreto, excluindo-se os aspectos processuais. Na doutrina, há duas correntes sobre o tema: a primeira (i), que considera que o novo CPC criou uma estabilidade diferenciada para algumas decisões que extinguem o processo sem resolução de mérito, como se infere do art. 486, § 1º8, a qual, todavia, não se confunde com coisa julgada, até mesmo em Na mesma linha, Antônio do Passo Cabral aponta a inadequação da expressão “imutabilidade” em vista dos paradigmas atuais do direito processual, que permitem a flexibilização das estabilidades processuais (Op. cit., p. 1282) 5 Art. 927. (....) § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. 6 Essa é a posição de MARINONI, Luiz Guilherme;ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 200 e ss. 7 Nesse sentido, MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006.Vide especialmente o Capítulo 4 em sua integralidade. 8 Art. 486. O pronunciamento judicial que não resolve o mérito não obsta a que a parte proponha de novo a ação. 4

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virtude do conteúdo semântico do art. 502 (o dispositivo alude expressamente a “decisão de mérito”)9; a segunda (ii), que entende que o novo CPC criou uma modalidade de coisa julgada processual, alinhando-se ao entendimento que justifica a razão de ser da distinção entre coisa julgada formal e material10. Filiamo-nos à primeira corrente porque do novo diploma é possível extrair estabilidades distintas.Tais estabilidades, embora guardem similitude com a coisa julgada, com ela não se confundem. Esse é o caso da decisão terminativa nas hipóteses do art. 486, § 1º.Veja-se que o entendimento contrário parte da premissa de que toda estabilidade em regra definitiva seria coisa julgada. Contudo, a estabilidade do referido dispositivo é mais “fraca” que a coisa julgada, tanto que a rescindibilidade desta está sujeita a requisitos rigorosíssimos, a partir de hipóteses taxativas (art. 966), por exigência da garantia constitucional da segurança jurídica. Por sua vez, a decisão de conteúdo exclusivamente processual pode ser revista a partir da mudança, sic et simpliciter, dos elementos fáticos ou jurídicos que nortearam o primeiro ajuizamento, isto é, sem forma e critérios rígidos pré-definidos (mera correção do vício que levou à extinção). O fato do legislador de 2015 ter admitido o ajuizamento de ação rescisória contra decisões processuais (art. 966, § 2º) 11 não altera o entendimento acima esboçado. Com efeito, embora essa modalidade de ação esteja classicamente ligada a decisões de mérito, trata-se de mera opção legislativa, cujo cabimento pode ser modificado sem que se desnaturem os elementos característicos da ação. “Rescindir” é revogar, invalidar, infirmar ou anular, na sua melhor compreensão denotativa. Aqui se insere, pois, a possibilidade de se rever o conteúdo de qualquer decisão que não mais desafie recurso, desde que haja autorização legislativa para tanto. A rescisão não é privilégio das decisões que analisam o mérito. Há para o interessado, portanto, duas opções: (i) submeter-se à decisão judicial terminativa da qual não caiba mais recurso, corrigindo o vício que levou à extinção do processo a partir da propositura de nova demanda; e (ii) § 1º No caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos I, IV, VI e VII do art. 485, a propositura da nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito. 9 Essa é a posição de Antônio do Passo Cabral. Sobre a questão do cabimento da ação rescisória contra decisões terminativas, defende o autor que a mudança diz respeito ao cabimento da ação, não havendo modificação no que tange à concepção de coisa julgada.Vide:WAMBIER,Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie;TALAMINI, Eduardo; e DANTAS, Bruno. (coord.) Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil., p. 1285-1287. 10 Sobre o tema, vide DIDIER JR. Fredie et. al. Curso de Direito Processual Civil. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 530. DELFINO, Lúcio; e MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Novo CPC aumenta segurança jurídica ao mudar regras da coisa julgada formal. Disponível em: http:// www.conjur.com.br/2015-abr-12/cpc-aumenta-seguranca-juridica-mudar-regras-coisa-julgada. Acesso em: 16 out. 2015. 11 Art. 966 (...) § 2º Nas hipóteses previstas nos incisos do caput, será rescindível a decisão transitada em julgado que, embora não seja de mérito, impeça: I – nova propositura da demanda; ou II – admissibilidade do recurso correspondente.

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impugnar a referida decisão via ação rescisória, apontando o enquadramento da hipótese fática nos incisos do art. 966 do CPC. Além disso, a coisa julgada se caracteriza não apenas pelo seu efeito negativo, que impede a repropositura da ação, mas também pelo seu efeito positivo, que permite a transcendência do seu conteúdo declaratório – a relação jurídica estabilizada – para demandas futuras. Daí porque, “debatidas as questões de mérito em sede de Exceção de Pré-Executividade, não é possível renovar as mesmas argumentações em posteriores Embargos à Execução, sob pena de ofensa ao instituto da coisa julgada.”12. Tal circunstância inexiste na estabilidade prevista no art. 486, § 1º, do novo CPC, que cuida, em verdade, de uma modalidade de preclusão extraprocessual13.

2. A COISA JULGADA TOTAL E PARCIAL Dispõe o caput do art. 503, do novo CPC, que “a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”.Vê-se que há discreta mudança em relação ao que dispõe o art. 468 do CPC/73. No novo dispositivo é o mérito, e não a lide, que é passível de julgamento total ou parcial, dando-se ênfase à circunstância de que é a coisa julgada material que as partes perseguem quando apresentam uma lide ao Estado-juiz. A formação da coisa julgada parcial tem sido amplamente aceita pela doutrina, a fim de se emprestar maior efetividade à tutela jurisdicional, permitindo seja antecipada, ao menos em parte, a prestação requerida. Nessa linha, uma vez que se torne incontroversa parcela da questão principal à vista da ausência de impugnação, o acertamento do direito terá força de lei nos limites parcial e expressamente decididos, ainda que pendente a resolução integral da demanda. O novo CPC, nesse contexto, rompe definitivamente com o dogma da indivisibilidade da sentença, classicamente arraigado em nossa cultura jurídica devido à influência da doutrina italiana, na qual sempre predominou o princípio chiovendiano “della unità e unicità della decisione”14. Com efeito, os artigos 354, parágrafo único15, e 356, caput16, admitiram expressamente a possibilidade de julgamento antecipado parcial do mérito, STJ, AgRg no REsp 1223128/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/06/2016, DJe 29/06/2016. 13 Essa é a linha de raciocínio defendida brilhantemente por Antônio do Passo Cabral. Op. cit., p. 1286. 14 Nesse sentido, DORIA, Rogéria Dotti. A tutela antecipada em relação à parte incontroversa da demanda. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 92. 15 Art. 354. Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas nos arts. 485 e 487, incisos II e III, o juiz proferirá sentença. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput pode dizer respeito a apenas parcela do processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento. 16 Art. 356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: I – mostrar-se incontroverso; II – estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355. 12

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incorporando aqui, juntamente com a tutela de evidência (art. 311)17, a outrora denominada tutela antecipada da parcela incontroversa do pedido (art. 273, § 6º, do CPC/73). Essa modalidade de tutela antecipada era objeto de críticas na doutrina quanto à sua definição semântica, que em seu sentido conotativo sempre esteve ligada a um juízo de valor precário, muito embora fosse externada a partir de uma cognição exauriente, tendo o condão de levar à formação de coisa julgada material. Tratava-se, portanto, de verdadeira sentença parcial. Curioso que, a partir do critério adotado pelo legislador, esses atos dotados da natureza de “sentença parcial” não se consideram efetivamente como tais. Com efeito, importa ressaltar aqui algumas modificações sofridas pelo conceito de sentença no novo CPC, que encontra agora o seu fundamento nos art. 485 e 487. Nesse tema, devem ser considerados dois fatores substanciais desse ato judicial: o seu conteúdo e a sua finalidade. Não basta, pois, a existência do caráter ontológico da sentença – isto é, a análise dos temas constantes nos artigos antes mencionados -, devendo tal pronunciamento ter a finalidade precípua de por fim à fase cognitiva do procedimento comum ou a extinção da execução. É o que se infere do art. 203, §1º18, do novo estatuto processual. O § 5º do art. 356 reforça esse entendimento ao prever o cabimento de recurso de agravo de instrumento dessa decisão. Sendo assim, embora na essência se trate de sentença parcial, o legislador atribui a esse ato jurisdicional a condição exclusiva de decisão interlocutória de mérito. Não obstante, é de bom alvitre deduzir que o conceito de sentença levado a efeito no novo código nada mais é do que uma definição tecnicamente estrutural, dada a circunstância de ser a sentença sinônimo da prestação jurisdicional por excelência. Todavia, não se extirpou da sistemática processual a possibilidade de haver antecipação de mérito por decisão interlocutória com conteúdo de sentença satisfativa liminar. Pelo contrário. Essa técnica de aceleração tem como fundamento a redistribuição equânime do tempo do processo, uma vez que não é razoável que o autor, em favor de quem já há elementos probatórios robustos, tenha de aguardar o desfecho Embora semelhantes, a tutela de evidência não se confunde com os julgamentos parciais autorizados pelo novo CPC.Veja-se que a primeira é feita sob juízo de probabilidade mais frágil que os segundos, inclusive estando submetida a requisitos mais restritivos (Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; III – se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.) 18 Art. 203. § 1o . Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução. 17

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final da lide para efetivamente ver a entrega do bem da vida perseguido19.Trata-se de mecanismo de correção de desigualdade processual que se insere no caráter cooperativo do processo contemporâneo, garantindo-se notável nível de estabilidade a pronunciamentos formados a partir de juízo de “certeza”. Por outro lado, ao conceituar a coisa julgada, o art. 502 menciona expressamente a possibilidade de que esta venha a se formar a partir de decisões interlocutórias de mérito. Sem prejuízo disso, é assente também a ideia de que o recurso interposto pode ser parcial (art. 1.002), ensejando a formação da coisa julgada sobre os capítulos da sentença não impugnados. Para alguns, ter-se-ia aqui a chamada “coisa julgada progressiva”20, mas, na verdade, o que se sucede é a formação autônoma de diversas coisas julgadas sobre parcelas independentes do objeto da lide21. Essa fragmentação, pois, poderá surgir seja em virtude do julgamento antecipado parcial não recorrido ou com recurso desprovido, seja em razão da não impugnação de parte da sentença. Maior reflexo dessa cindibilidade da coisa julgada diz respeito à contagem do prazo para a ação rescisória. Daí exsurgem duas possibilidades: (i) para cada coisa julgada há um prazo autônomo; (ii) há um prazo único, que começa a fluir a partir do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo. Na vigência do CPC/73, prevalecia, a princípio, a segunda orientação, conforme enunciado 401 da Súmula do STJ22. Essa exegese partia da consi Sobre o tema, vide MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória e julgamento antecipado: parte incontroversa da demanda. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 20 SILVA, Beclaute Oliveira. Capítulos de sentença e a prescrição na execução de pagar contra a Fazenda Pública. ARAÚJO, José Henrique Mouta; e CUNHA, Leonardo Carneiro da. (org.) Coleção Repercussões do novo CPC. Advocacia Pública. Salvador: Juspodvm, 2015, p. 29 21 No mesmo sentido, DIDIER JR. Fredie et. al. Op. cit., p. 527. 22 “O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial”. PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA. ART. 485,V, DO CPC. IPI. CREDITAMENTO. INSUMO E MATÉRIA-PRIMA TRIBUTADOS. PRODUTO FINAL ISENTO OU SUJEITO À ALÍQUOTA ZERO. ART. 11 DA LEI 9.779/99. DISCUSSÃO EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL. INTERPRETAÇÃO CONTROVERTIDA À ÉPOCA DA PROLAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 343/STF. NOVEL ORIENTAÇÃO DO STF EM REPERCUSSÃO GERAL. 1. Ação rescisória que busca desconstituir acórdão que assegurou à contribuinte o creditamento do IPI incidente sobre insumos e matéria-prima utilizados na fabricação de produtos isentos e sujeitos à alíquota zero em período anterior à vigência da Lei 9.779/99. 2. A Corte Especial, ao julgar os EREsp 1.352.730/AM, firmou entendimento de que o termo inicial do prazo decadencial da ação rescisória conta-se do julgamento do último recurso, ainda que intempestivo, ressalvada a hipótese de má-fé do recorrente (EREsp 1.352.730/ AM, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, CORTE ESPECIAL, julgado em 5/8/2015, DJe 10/9/2015). 3. O STF, por ocasião do julgamento do RE 590.809/RS, posicionou-se no sentido de que “O verbete n.º 343 da Súmula do Supremo deve ser observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da norma, mormente quando o Supremo tenha sinalizado, num primeiro passo, óptica coincidente com a revelada na decisão rescindenda”. 19

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deração de que a sentença é um ato indivisível, sendo, pois, insuscetível de fracionamento, muito embora possam existir capítulos distintos. A partir dessa linha de entendimento, entendia-se, não sem crítica de boa parte da doutrina, que o prazo para a rescisória somente se iniciava quando não houvesse mais recurso a interpor, isto é, uma vez caracterizada a preclusão temporal no julgamento do último recurso ou decisão não recorrida. Esse verbete originou-se, entre outros, de julgamento ocorrido na 1ª Seção do STJ nos Embargos de Divergência 404.777-DF, de relatoria do ministro Peçanha Martins, tendo sido impugnado pelo Recurso Extraordinário 666.589-DF, distribuído, no STF, ao ministro Marco Aurélio. A 1ª Turma, ao julgar em 25 de junho de 2014 tal impugnação, sob o fundamento de ofensa ao disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, proveu o recurso, à unanimidade, ressaltando que “os capítulos autônomos do pronunciamento judicial precluem no que não atacados por meio de recurso, surgindo, ante o fenômeno, o termo inicial do biênio decadencial para a propositura da rescisória”. No novo CPC, a matéria está regulada no art. 975, segundo o qual o direito à rescisão se extingue dois anos após o trânsito em julgado da última decisão proferida no processo. A orientação do STF foi acolhida apenas em parte, já que o termo a quo para o ajuizamento da ação rescisória não encontra mais óbice na necessidade de aguardar-se o último pronunciamento do processo. Nesse ponto, acolhe-se a possibilidade de formação da coisa julgada parcial e da consequente impugnação autônoma. Porém, no tocante ao término do prazo, a redação do dispositivo parece seguir a linha do enunciado 401 da Súmula do STJ. Essa diretriz poderá gerar situações no mínimo curiosas: imaginem que, no ano de 2015, o juiz acolha um dos pedidos mediante julgamento antecipado parcial de mérito, restando a decisão irrecorrida. Da sentença final, prolatada em 2020, há interposição de recurso até as instâncias extraordinárias, sobrevindo o trânsito em julgado do último pronunciamento apenas em 2025. Ou seja, em relação à primeira decisão prolatada haverá, na prática, um prazo de 12 (doze) anos para ajuizamento da rescisória, já que o prazo desta somente se encerrará em 2027. Uma vez ocorrido o trânsito em julgado, contra o credor começará a correr o prazo de prescrição da pretensão executiva, mas, em relação ao devedor, não estará em curso o prazo para rescisória. Há quem defenda uma interpretação alternativa do art. 975: última decisão do processo refere-se à última decisão proferida em relação àquela

4. No caso concreto, justifica-se a aplicação do referido verbete pois o acórdão rescindendo foi proferido sob enfoque constitucional e era controvertido o entendimento no STF, à época do julgamento da demanda rescindenda, no sentido de se admitir o creditamento em questão. 5. Ação rescisória julgada improcedente, revogando-se a antecipação de tutela anteriormente concedida. (AR 5.059/CE, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/06/2016, DJe 30/06/2016)

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questão específica que se tornou indiscutível pela coisa julgada23. Isso geraria, na prática, a contagem autônoma do prazo para a rescisória em relação a cada decisão proferida no processo e alcançada pela coisa julgada. Embora essa seja a interpretação mais afinada com a exigência de segurança jurídica e paridade de armas, não nos parece que os limites semânticos do texto normativo permitam dali se extrair essa compreensão.

3. EFICÁCIA DA COISA JULGADA 3.1. OS LIMITES OBJETIVOS Em tema de limites objetivos, cabe analisar a extensão da coisa julgada sobre o objeto da demanda, isto é, qual o conteúdo que permanecerá estabilizado por força da sua incidência. No particular, a tradição do direito brasileiro sempre fora no sentido de estender os efeitos da coisa julgada apenas sobre o pedido ou, mais precisamente, sobre o dispositivo da sentença, no qual aquele pedido é apreciado. O que define, assim, o objeto litigioso, como regra, é o pedido contextualizado a partir da causa de pedir24. Daí os motivos ou fundamentos25 não estarem abrangidos, a princípio, pela coisa julgada (art. 504, CPC/2015). O art. 503 estabelece que a coisa julgada recai sobre a questão expressamente decidida. Longe de se tratar de preciosismo semântico, a menção clara à necessidade de resolução expressa do objeto litigioso tem o objetivo de afastar eventuais considerações quanto à possibilidade de existir coisa julgada implícita. No mesmo sentido é a disposição do art. 85, § 18, do CPC/2015, que permite a cobrança de honorários em novo processo no caso de ausência de decisão sobre o ponto, o que necessariamente leva ao esvaziamento do enunciado 453 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça26. O novo CPC dinamizou a expansão da eficácia objetiva da coisa julgada. Primeiramente, porque permite a ampliação do objeto litigioso a partir de demandas “informais”. E isso é assim porque, no novo sistema, a resposta DIDIER JR. Fredie et. al. Op. cit., p. 529. Valendo ressaltar que o CPC/2015 determina que “a interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé” (art. 322, § 2º). 25 Como é cediço, na construção da norma geral oriunda do precedente a interpretação dos fundamentos torna-se de extrema importância, uma vez que é a ratio decidendi que vinculará terceiros estranhos à lide original, como se infere do art. 489, § 1º,V (Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos) e do art. 979, § 2º (Para possibilitar a identificação dos processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados), ambos do CPC/2015. 26 “Os honorários sucumbenciais, quando omitidos em decisão transitada em julgado, não podem ser cobrados em execução ou em ação própria.” 23 24

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do réu está concentrada em uma manifestação única – salvo a alegação de impedimento ou suspeição -, na qual poderá ser formulada a reconvenção27. No modelo anterior a ampliação do objeto de cognição definitiva para abranger a questão prejudicial pressupunha o ajuizamento de ação declaratória incidental. No novo modelo, que prima sobretudo por um formalismo mais mitigado, a inclusão da questão prejudicial no objeto da coisa julgada pressupõe tão somente o cumprimento dos requisitos do art. 50328. Questões prejudiciais são aquelas que inserem no âmbito da cognição do magistrado, porque sua resolução é fundamento para a solução das questões principais, mas que, em regra, não se inserem no objeto litigioso do processo. Seu exame condiciona o direcionamento da decisão de mérito a ser prolatada. Veja-se que essa questão prejudicial pode ser colocada desde o início da ação como questão principal, quando ocorrem pedidos cumulados (e.g., declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária cumulada com repetição de indébito29). O dispositivo tem sido objeto de críticas porque, a despeito de primar por uma dinâmica mais informal, pode ensejar controvérsias quanto aos contornos objetivos da coisa julgada em um dado caso concreto, depondo, pois, contra a segurança jurídica30. No cenário passado, de fato, a questão se subsumia Art. 343. Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa. 28 Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se: I – dessa resolução depender o julgamento do mérito; II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal. 29 TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. REPETIÇÃO DE INDÉBITO TRIBUTÁRIO. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. NULIDADE DA NFLD. QUESTÃO PREJUDICIAL. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. I- O reconhecimento da inexistência de relação jurídico-tributária e, como consectário lógico, da nulidade da NFLD que consubstancia débitos tributários inexistentes, e que ensejaram o pagamento alegado como indevido, das exações, constitui, na verdade, questão prejudicial ao julgamento do meritum causae da ação de repetição de indébito. II- Constitui faculdade das partes, o requerimento para que o magistrado decida sobre a questão prejudicial, como objeto de ação declaratória incidental, e não uma obrigatoriedade, como se infere do artigo 5º, 325 e 470 ordenamento processual civil pátrio. Não há qualquer imposição legal, noutro eito, para que a questão prejudicial seja cumulada com outros pedidos na ação principal. III- Não se revela, pois, inadequado, ou até mesmo julgamento extra petita, se o juiz da causa se pronuncia acerca da questão prejudicial atinente à existência ou inexistência do débito tributário consubstanciado na NFLD e, como consectário lógico, sobre a validade, ou não, desta última, para se chegar à conclusão acerca da procedência, ou não, da pretensão autoral de repetição de indébito tributário, ou seja, se a parte Autora estava obrigada ou não ao recolhimento das contribuições previdenciárias. IV- Apelo da Autora a que se dá provimento para cassar a sentença e determinar o prosseguimento do feito com a produção de prova pericial. (TRF-2 - AC: 200751010234700, Relator: Desembargador Federal THEOPHILO MIGUEL, Data de Julgamento: 29/03/2011, TERCEIRA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 26/04/2011) 30 Nesse sentido, MACHADO, Marcelo Pacheco. Novo CPC: Que coisa julgada é essa? Disponível em: http://jota.info/novo-cpc-que-coisa-julgada-e-essa. Acesso em: 16 out. 2015. 27

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exclusivamente a um único dado objetivo: saber se foi ou não ajuizada a ação declaratória incidental. Uma primeira observação pertinente é que o dispositivo não extinguiu a possibilidade de ajuizamento da referida ação declaratória. Ora, o que viabiliza o ajuizamento da referida ação é a existência de legitimidade e interesse. Embora a lei preveja a possibilidade de que a coisa julgada atinja a questão prejudicial a depender das condições concretas de condução da demanda pelas partes e pelo juiz no ambiente comparticipativo31, exatamente porque se trata de uma situação indefinida, que somente poderá ser aferida em termos definitivos ao final da lide, nada obsta que o interessado ajuíze a ação declaratória para garantir a extensão da coisa julgada sobre a questão prejudicial, permitindo um incremento na estabilização das relações jurídicas daí decorrentes32. Esta é uma diretriz que pode minimizar o risco de insegurança jurídica apontado pelos críticos do dispositivo legal. Em sentido um pouco mais restrito, há quem admita a ação declaratória apenas nas hipóteses que visam a declarar o “modo de ser” da relação jurídica (art. 19, I) – ex., a correta interpretação de uma cláusula contratual (Enunciado 181 da Súmula do STJ) -, porque nesses casos a questão não seria um itinerário lógico e necessário para o deslinde do ponto principal da lide, de modo que sobre ela a sentença não tem o condão de gerar imutabilidade. Caberia a declaratória, ainda, quando verificado que não foram preenchidos os requisitos do art. 50333. Como já ressaltado, entendemos a questão de uma maneira um pouco mais ampla: o interesse processual no ajuizamento da ação declaratória subsiste simplesmente em virtude da circunstância de que a parte não tem controle sobre a dinâmica do processo, de modo que a formação da coisa julgada sobre a questão prejudicial dependerá de circunstâncias alheias à sua vontade. E dizemos isso especialmente em virtude da cláusula do contraditório prévio e efetivo, cuja materialização depende das condições concretas do debate, bem como no tocante à vinculação lógica e indispensável entre a questão prejudicial e a questão principal, que, como será visto, em muitos casos só poderá ser aferida com segurança após a sentença. Noutras palavras, apenas alguns dos requisitos são estáticos, podendo ser aferidos de plano (competência e restrição cognitiva e probatória). Considerando os requisitos dinâmicos, portanto, e dada a incerteza do resultado do processo no tocante à questão prejudicial, a parte está autorizada a ajuizar a ação declaratória em qualquer caso. Para isso é desinfluente ter essa Sobre o tema, vide THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; e PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015. 32 Enunciado 111 do FPPC: “Persiste o interesse no ajuizamento de ação declaratória quanto à questão prejudicial incidental”. 33 Nesse sentido, Antônio do Passo Cabral, Op. cit., p. 1295-1296. 31

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ação objeto idêntico àquele em relação ao qual há potencialidade concreta de formação da coisa julgada no âmbito do processo principal, ou, ainda, a necessidade de verificação concreta do preenchimento ou não dos requisitos do art. 503. Por outro lado, cumpre examinar os requisitos previstos no art. 503, ressaltando que se trata de pressupostos cumulativos34. Primeiramente, (i) o dispositivo exige que a resolução da lide dependa da solução expressa35 da questão prejudicial. É possível criticar-se o dispositivo sob o argumento de que toda questão dessa natureza é prejudicial exatamente porque há vínculo de subordinação entre ela e a questão principal. Não nos parece ser assim, entretanto. A questão veiculada como prejudicial pode ser um ponto de passagem para a solução da lide, mas que, na prática, venha a ser olvidado na decisão judicial, tornando-se, pois, facultativa a análise no caso concreto (e.g., na ação anulatória de parcelamento tributário em que há alegação de nulidade do acordo por vício de consentimento e prescrição36, o magistrado pode decidir julgar improcedente o pedido em razão do segundo fundamento, sem enfrentar o primeiro37). Nesse contexto, cabe referir que toda questão prejudicial, analisada abstratamente, é um antecedente lógico da resolução da questão principal. Do ponto de vista prático ou da dinâmica concreta do processo, pode a prejudicial transformar-se em objeto de cognição facultativa. Portanto, o código se refere a um vínculo de dependência necessário e não apenas importante, a ser aferido no caso concreto38. Sobre esse ponto, cabem ainda duas colocações. Deve-se levar em consideração que a questão prejudicial poderá ser examinada apenas como obter dictum – isto nos casos em que ela é relevante, mas não um pressuposto lógico do exame da questão principal. Nessa hipótese, sua análise não ensejará a formação da coisa julgada em face da restrição normativa, Conforme Enunciado 313 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). O sistema do novo código é no sentido de evitar a formação de coisa julgada sobre questões que não tenham sido objeto de decisão judicial efetiva, como visto antes. 36 “O parcelamento de crédito tributário após o transcurso do prazo prescricional não implica restabelecimento da exigibilidade” (AgRg no REsp 1.336.187-DF, r. Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma/STJ, de 20.06.2013). 37 Nesse ponto, em comentário ao art. 489, § 1º, IV, do CPC/2015, tivemos oportunidade de asseverar que: “(...) o dispositivo não se aplica, por razões óbvias, à parte vencedora na lide. Uma vez que o magistrado já encontrou fundamento para decidir a favor de certa tese, não há necessidade de exame de eventuais aspectos outros que pudessem conduzir ao mesmo resultado final (sejam estes elementos componentes da causa de pedir – acolhimento do pleito -, sejam componentes da defesa – não acolhimento do pedido)”. (RAMOS NETO, Newton Pereira. Fundamentação das decisões judiciais no novo CPC: a tarefa de (re)construção do Direito no âmbito dos tribunais. In: DIDIER JR., Fredie; NUNES, Dierle; e FREIRE, Alexandre (coord.). Normas fundamentais. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Salvador: Juspodivm, 2016, v. 8, p. 469. 38 No ponto, parece-nos que essa assertiva diverge um pouco da posição de Marcelo Pacheco Machado, para quem toda questão prejudicial é um antecedente lógico do julgamento principal. Op. cit. 34 35

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que exige a existência de vínculo de dependência indeclinável com a questão principal. O mesmo se aplica às questões preliminares, que possuem feição meramente processual. Nesse contexto, é possível afirmar que a dependência lógica e determinante pressupõe que a questão prejudicial seja decidida na mesma diretriz da questão principal. O vínculo de dependência estrita pressupõe harmonização quanto ao destino de ambas as questões. Isto é, somente haverá a relação de dependência estrita quando a questão prejudicial for decidida em favor do vencedor. Com efeito, se o magistrado decide a questão prejudicial em favor do autor, mas a questão principal em favor do réu, não se configura o liame exigido pelo legislador, já que a solução da questão prejudicial revelou-se prescindível para o desfecho da lide. Por outro lado, a formação da coisa julgada sobre a questão prejudicial pressupõe sua análise no contexto da eficácia preclusiva da coisa julgada (art. 508). Isto é, uma vez formada a coisa julgada sobre a questão prejudicial, “considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento como à rejeição do pedido.” Todavia, havendo modificação da causa de pedir – isto é, a alegação de novo fundamento fático -, nada impede que a questão seja novamente enfrentada em lide posterior39. Assim, uma vez rejeitada a alegação de nulidade contratual em virtude de vício de consentimento, nada obsta que essa questão seja deduzida em nova demanda, agora em virtude de eventual incapacidade da parte. Não por outro motivo o precedente abaixo, ao invocar a Súmula 239 do STF, deve ser interpretado cum grano salis, isto é, a depender das circunstâncias do caso concreto, especialmente se há questões fáticas antes não deduzidas ou questões jurídicas supervenientes que afastem a existência de identidade entre as demandas: TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. MERO INCONFORMISMO. ICMS. OPERAÇÕES INTERESTADUAIS. COMBUSTÍEIS E LUBRIFICANTES. LC 87/96. COISA JULGADA. OFENSA. NÃO CONFIGURAÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DE NOVA LEGISLAÇÃO QUE MODIFICA RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. SÚMULA 239/STF. 1. Não ocorre ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal de origem dirime, fundamentadamente, as questões que lhe são submetidas, apreciando integralmente a controvérsia posta nos presentes autos. 2. Nos termos da Súmula 239/STF: “decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício, não faz coisa julgada em relação aos posteriores”. 3. A jurisprudência desta Corte Superior se firmou no sentido de que “não há ofensa à coisa julgada quando na relação jurídica continuativa ocorre alteração no estado de fato ou de direito” (AgRg no REsp 888.834/RJ, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 12/11/2007, p. 179). Precedentes: AgRg no AREsp 411.045/DF, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, DJe 03/12/2014; AgRg no AgRg no REsp 1446036/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe 20/10/2014; AgRg no REsp 1194372/RS, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, DJe 16/12/2010; REsp 605.953/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, DJ 01/08/2005. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp 421.151/DF, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/03/2015, DJe 26/03/2015) 39

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Segundo (ii), o dispositivo exige contraditório prévio e efetivo, o que leva à conclusão de que não basta oportunizar às partes o direito de se manifestar sobre a questão, sendo imprescindível que efetivamente tenha havido debate sobre o ponto. E tal se justifica a fim evitar o “efeito surpresa” da formação de coisa julgada sobre questão que, a princípio, não estava abrangida pelo objeto da demanda. O dispositivo se alinha ao modelo democrático de processo que se pretende construir, no qual o contraditório é visto como direito de influência e vedação do “efeito surpresa” (artigos 9º e 10 do CPC/2015)40. Nesse contexto, não basta assegurar o contraditório abstratamente considerado. Faz-se imprescindível o diálogo real sobre a questão prejudicial41. Aliás, chega-se a essa conclusão até mesmo a partir de uma interpretação meramente semântica: ao usar a expressão “contraditório prévio e efetivo” como requisito para a formação da coisa julgada, obviamente que o legislador estabeleceu um plus, querendo algo mais que a simples observância da garantia do contraditório como elemento básico de construção legítima das decisões judiciais. Não fosse assim a menção ao contraditório seria desnecessária, já que sua observância deriva do próprio art. 10 do CPC/2015, cujos efeitos se estendem a todo o sistema processual42. Daí o dispositivo ter vedado expressamente a formação de coisa julgada sobre a questão prejudicial nos casos de revelia. Terceiro (iii), o magistrado deve ser absolutamente competente para o enfrentamento da questão. O dispositivo se justifica porque, ausente a competência em razão da matéria ou da pessoa, há impossibilidade jurídica de formação da coisa julgada na medida em que, em casos tais, o legislador reservou, a partir de critério de interesse público e, portanto, indisponível, a cognição definitiva da matéria a juízo diverso. Numa demanda que envolva pedido de repetição de indébito de ITCMD (imposto de transmissão causa mortis e doações de quaisquer bens e direitos – art. 155, II, CF/88) em razão da ineficácia da doação, o eventual exame da nulidade do ato jurídico em juízo privativo da Fazenda Pública não fará coisa julgada, uma vez que não é ele competente para o exame do tema como questão principal. Assim, embora a formação de coisa julgada sobre a questão principal em juízo incompetente enseje a rescisão do julgado (art. 966, II), no caso da questão prejudicial há verdadeira impossibilidade jurídica de configuração da referida estabilidade. Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701. Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. 41 No mesmo sentido, DIDIER JR. Fredie et. al. Op. cit., p. 537. 42 Nesse ponto discordamos da posição de Antônio do Passo Cabral. Op. cit., p. 1292. O autor considera que houve uma postura excessivamente protetora do legislador, já que, mesmo nos casos de revelia, o contraditório é assegurado. De lege lata, não vislumbramos outro aproveitamento hermenêutico para o dispositivo legal que não o ora defendido. 40

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Além disso (iv), a dinâmica da ampliação dos limites objetivos da coisa julgada deixa claro que tal circunstância independe de provocação das partes43. Noutras palavras, a extensão da coisa julgada sobre a questão prejudicial pressupõe exclusivamente o exame das condições fáticas em que se dá a cognição da matéria, sendo irrelevante, para tanto, um impulso formal específico das partes. Daí a necessidade de que o magistrado, no ambiente cooperativo do novo sistema processual, esteja atento ao asseguramento do contraditório efetivo, de maneira que, uma vez detectada a questão prejudicial, seja estimulado o debate sobre a temática. Por razão semelhante, a extensão da coisa julgada sobre a questão prejudicial independe de sua resolução no dispositivo da sentença. O importante é que a decisão judicial tenha efetivamente enfrentado a matéria, independentemente da localização topográfica na estrutura do ato jurisdicional. Finalmente (v), o dispositivo exige como requisito que o debate sobre a questão prejudicial se dê em ambiente de cognição plena – nas palavras do legislador, sem restrições probatórias. Sendo assim, em procedimentos específicos dotados de estreitamento quanto ao exame da matéria fática deduzida – mandado de segurança, desapropriação, juizados especiais, negócio processual que limite o material probatório (art. 19044) etc. -, torna-se inviável a extensão da coisa julgada sobre a questão prejudicial.A exigência se insere no novo desenho legal do contraditório, uma vez que as limitações probatórias configuram expressão dos limites eventualmente impostos ao contraditório ampliado. Por razões óbvias, cabe aqui lembrar que, nos casos de tutela antecipada de urgência em caráter antecedente que venha a se estabilizar de modo definitivo, a estabilidade não se estende à questão prejudicial eventualmente examinada. Essa nos parece a única exegese capaz de atribuir coerência ao sistema. No tocante aos meios de impugnação específicos, a formação de coisa julgada sobre a questão prejudicial desafia tanto a interposição dos recursos cabíveis como o ajuizamento de ação rescisória45. Nesse ponto, é importante notar que o ajuizamento de ação rescisória pressupõe formação de coisa julgada sobre a questão prejudicial. Nos casos em que inexistente a coisa julgada pelo não preenchimento dos requisitos do art. 503, a matéria deverá ser suscitada pelo autor ou réu em processo futuro, independentemente de forma especial. Na dúvida, porém, há de se admitir o uso daquele meio autônomo de impugnação das decisões de mérito.

3.2. OS LIMITES SUBJETIVOS Outro ponto que promete suscitar sérias controvérsias no tocante à coisa julgada no novo CPC diz respeito à sua eficácia subjetiva. O CPC/73 previa Enunciado 165 do FPPC. Art. 190.Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. 45 Enunciado 338 do FPPC. 43 44

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que a sentença faz coisa julgada entre as partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros (art. 472). Já o art. 506 do novo estatuto prevê que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Do ponto de vista prático, há alguma mudança substancial a considerar? Deve-se registrar que o art. 506 suprimiu a menção às ações de estado. No ponto, o legislador limitou-se a corrigir uma impropriedade do ordenamento jurídico, uma vez que, sendo citados os interessados ali mencionados, a coisa julgada os atinge não em virtude de serem terceiros, mas porque, a partir do chamamento à lide, passam a integrar a relação como sujeitos do processo. Por outro lado, o tema da coisa julgada e sua relação com terceiros encontrava-se, até então, relativamente pacificado no direito brasileiro. Já era assente a ideia, por exemplo, de que a coisa julgada se estende ao substituído processual e ao adquirente de bem litigioso (art. 109, § 3º), uma vez que estes se qualificam, em verdade, como sujeitos devidamente representados no processo por força de lei. Ponto de maior controvérsia, no entanto, consiste na definição da repercussão da coisa julgada na esfera de terceiros propriamente ditos, por assim dizer. A partir da distinção elaborada por Liebman entre eficácia e autoridade da sentença46, compreendia-se que, a despeito da dicção do art. 472 do CPC/73, era possível a extensão da eficácia reflexa da sentença a terceiros. Ou seja, embora terceiros não sejam atingidos, via de regra, pela autoridade da coisa julgada – no sentido de estar vedada a rediscussão da res in judicium deducta -, eles podem sofrer os efeitos naturais ou fáticos da sentença (vizinhos, condôminos, sublocatário etc.). Dependendo da qualificação do terceiro e da existência de eventual vínculo jurídico com a parte, o grau de estabilidade da decisão em relação à sua pessoa poderá ser maior ou menor. No tocante aos terceiros que mantêm vínculo com a parte ao ponto de possuírem interesse jurídico qualificado na lide, o ordenamento jurídico autoriza sua intervenção, seja no curso do processo (art. 11947), seja para fins de controle da decisão judicial por meio do recurso cabível (art. 99648). Para esses, a lei prevê uma outra forma de estabilidade em caso de intervenção. É o que o art. 123 chama de “eficácia da intervenção”, que impede a rediscussão em lide posterior das alegações que poderiam ser apresentadas pelo terceiro interveniente na primeira demanda49. LIEBMAN, E.T. Eficácia e Autoridade da Sentença e outros Escritos sobre a Coisa Julgada, p. 165. Art. 119. Pendendo causa entre 2 (duas) ou mais pessoas, o terceiro juridicamente interessado em que a sentença seja favorável a uma delas poderá intervir no processo para assisti-la. 48 Art. 996. O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público, como parte ou como fiscal da ordem jurídica. 49 Art. 123. Transitada em julgado a sentença no processo em que interveio o assistente, este não poderá, em processo posterior, discutir a justiça da decisão, salvo se alegar e provar que: I – pelo estado em que recebeu o processo ou pelas declarações e pelos atos do assistido, foi impedido de produzir provas suscetíveis de influir na sentença; II – desconhecia a existência de alegações ou de provas das quais o assistido, por dolo ou culpa, não se valeu. 46 47

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De há muito já se apontava na doutrina a necessidade de flexibilização dos limites subjetivos nos casos em que a situação jurídica apresenta caráter indivisível. Assim, em uma ação ajuizada por um condômino para anular uma assembléia do condomínio, a sentença de procedência atinge os demais condôminos, já que a materialização do comando judicial implicará desfazimento do ato jurídico. Isto é, em se tratando de objeto indivisível, que atribui aos titulares do direito a condição de litisconsortes unitários, a coisa julgada estende seus efeitos para fora do processo seja para beneficiar, seja para prejudicar terceiros. Mas o que muda com o art. 506 do novo CPC, que permite, contrario sensu, a extensão da coisa julgada para beneficiar terceiros? Cabe ponderar que a vedação da eficácia em relação a terceiro se dá como mecanismo de proteção dele mesmo, que não participou da lide exercitando plenamente o contraditório. Portanto, como regra a limitação subjetiva visa a impedir que o terceiro seja prejudicado pela coisa julgada. Assim, não há grande dificuldade em reconhecer a conveniência de que o terceiro possa opor o conteúdo estabilizado da lide às partes que integraram a relação processual originária. É o que ocorre, por exemplo, com o devedor solidário ou o fiador beneficiado pelo reconhecimento da prescrição da dívida50. De outro giro, esse mesmo terceiro não poderia invocar a coisa julgada que o beneficia em relação a um quarto sujeito pela simples razão de que, em relação a este, estar-se-ia a autorizar a utilização de coisa julgada que o prejudica. Mas essa seria a única aplicabilidade do dispositivo? Em verdade, a controvérsia ganha agora ares de novidade. Numa primeira leitura, seria possível vislumbrar já algumas correntes interpretativas dessa eficácia expandida da coisa julgada in utilibus: Primeiramente (i), a coisa julgada se aplicaria apenas ao terceiro que mantém relação jurídica conexa com a que é objeto da coisa julgada, como ocorre com os devedores solidários, o sublocatário, os condôminos e os sócios de uma sociedade. Note-se que, aqui, esses não são titulares da mesma relação jurídica, mas de relações jurídicas umbilicalmente relacionadas. Segundo (ii), ela abrangeria as hipóteses de afinidade de questões, ensejando, pois, sua aplicação a demandas repetitivas (rectius, demanda semelhante por pontos de fato e de direito)51. Nesses casos, nosso sistema tradicionalmente teria duas técnicas para lidar com as demandas repetitivas: uma, denominada representativa, na qual a coisa julgada se estende a terceiros por força de sua eficácia erga omnes ou ultra partes. É exemplo dessa modalidade a ação coletiva Em relação aos credores solidários, o novo CPC, em seu art. 1.068, aperfeiçoou a redação do art. 274 do CC. 51 Carlos Alberto de Salles defende essa tese, limitando-a, porém, às demandas ajuizadas em face do Poder Público nas quais se postula direito fundamental (SALLES, Carlos Alberto. Coisa julgada e extensão dos efeitos da sentença em matéria de direitos sociais constitucionais, In: GOZZOLI, Maria Clara; CIANCI, Mirna; CALMON, Petrônio; e QUARTIERI, Rita. (org.). Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrine Grinover. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 01, p. 143-158.). 50

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que visa a tutela de interesses individuais homogêneos; outra, denominada de não-representativa, na qual se utiliza uma decisão paradigma em inúmeros processos posteriores (recursos excepcionais repetitivos – art. 1.036 - e incidente de resolução de demandas repetitivas – art. 976). Para essa corrente, o art. 506 abre uma terceira via nessa tendência de expansão da coisa julgada52. Terceiro (iii), o dispositivo só teria aplicação no âmbito dos processos coletivos, em razão da coisa julgada secundum eventus litis. Não haveria aqui nenhuma modificação de relevo, mas apenas uma espécie de adequação do regime da coisa julgada no CPC ao sistema de tutela coletiva de direitos. Nesse caso, a extensão da coisa julgada é permitida ex vi legis, hipótese em que não se exige a tríplice identidade entre os elementos da demanda (partes, causa de pedir e pedido), bastando, para os propósitos legais, o liame entre pedido e causa de pedir. Quarto (iv), o dispositivo teria mirado a relação do litisconsórcio unitário facultativo (quanto ao necessário, a não participação enseja nulidade do julgamento), quando um destes não participou da lide, uma vez que a decisão deve ser uniforme para todos. À semelhança da hipótese anterior, afasta-se aqui também a exigência de identidade de partes em razão da legitimação extraordinária autorizada pelo ordenamento jurídico, que permite que um dos titulares da relação jurídica atue em juízo em defesa do interesse de todos. Quinto (v), há ainda na doutrina quem, com boas razões, defenda que o dispositivo se dirige ao terceiro que poderia ter atuado no processo na condição de assistente litisconsorcial, como ocorre com o adquirente da coisa litigiosa, uma vez que este é titular do direito discutido em juízo53. Ao que parece, o dispositivo trará mais problemas que soluções. De todo modo, é preciso verificar que a interpretação no sentido de que não há mudança prática não parece a melhor. Ao se prever expressamente a eficácia in utilibus obviamente que há necessidade de buscar o efeito concreto pensado pelo legislador. A posição que autoriza a eficácia expandida da coisa julgada como técnica não-representativa (ii) não parece ser a melhor interpretação. Autorizar a extensão da coisa julgada para demandas afins esvaziaria, de certo modo, o modelo pluri-individual concebido para combater as demandas repetitivas como alternativa às ações coletivas. Com efeito, para essas situações o legislador previu um tipo de estabilidade distinta da coisa julgada, como ocorre a partir do uso do incidente de resolução de demandas repetitivas e dos recursos extraordinários e especial submetidos ao regime dos repetitivos. Em relação à hipótese (v), essa não nos parece a melhor interpretação também, na medida em que o terceiro que pode atuar na condição de assis Nesse sentido, DESTEFENNI, Marcos. Eficácia expandida da coisa julgada individual. Disponível em: http://estadodedireito.com.br/eficacia/. Acesso em: 25 out. 2015. 53 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; e MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 834. 52

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tente litisconsorcial não é atingido pela coisa julgada nos limites estreitos do dispositivo – leia-se, eficácia in utilibus -, mas sim no sentido de ser beneficiado ou prejudicado pelo comando judicial transitado em julgado, como já defendia a doutrina mesmo antes do novo CPC. Desse modo, o dispositivo parece não se limitar às situações antes ventiladas pela doutrina como de ampliação dos limites subjetivos, mas também não chega ao ponto de autorizar a expansão da coisa julgada para terceiros que não guardam qualquer tipo de relação conexa com as partes do litígio originário. Sendo assim, queremos crer que o dispositivo tem como destinatários os terceiros que mantêm relação jurídica conexa com a certificada anteriormente, desde que o vínculo jurídico entre as demandas seja de tal modo que exija soluções comuns a partir da lógica de coerência e uniformidade do sistema preconizada no novo CPC (v.g., art. 926). Exemplificativamente, o art. 506 abriga as situações do sublocatário beneficiado pela improcedência do pedido de anulação do contrato originário, bem como do devedor solidário e do fiador (vínculo subordinado) beneficiado pelo reconhecimento da prescrição da dívida54. O mesmo se poderia dizer, em regra, dos casos de responsabilidade tributária por substituição ou transferência (art. 128 a 138 do CTN). Assim, ao que parece o dispositivo cria uma hipótese em que a coisa julgada se dirige a terceiros que não estão inseridos no âmbito da relação jurídica que deu ensejo à pretensão deduzida em juízo. De todo modo, a partir da coerência do sistema, entende-se que o terceiro alcançado pela eficácia in utilibus da coisa julgada deve ser titular de relação jurídica subordinada, uma vez que a eficácia expandida da coisa julgada independente de qualquer vínculo jurídico já é assegurada no sistema a partir de técnicas de julgamento de casos repetitivos – incidente de resolução de demandas repetitivas e recurso especial e extraordinário repetitivos (art. 928, CPC/2015). Por outro lado, a eficácia da coisa julgada que lhe é favorável somente pode ser invocada em face daqueles que figuraram como partes na lide originária. Sem prejuízo disso, o mesmo se pode dizer nos casos de litisconsórcio unitário, embora a doutrina já defendesse esse posicionamento no regime anterior.

4. O PROBLEMA DA ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA E SUA RELAÇÃO COM A COISA JULGADA Tema também dos mais intricados no novo CPC diz respeito à estabilização da tutela antecipada e a possibilidade de formação ou não da coisa julgada a partir da decisão estabilizada. Nesse sentido, nos casos de tutela antecipada requerida em caráter antecedente (art. 303), a decisão torna-se estável se dela não for interposto o Enunciado 234 do FPPC: “A decisão de improcedência na ação proposta pelo credor beneficia todos os devedores solidários, mesmo os que não foram partes no processo, exceto se fundada em defesa pessoal.”

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respectivo recurso (art. 304, caput). Uma vez estabilizada, qualquer das partes pode requerer a revisão, reforma ou invalidação da tutela antecipada, desde que o faça no prazo de até 02 (dois) anos), contados da ciência da decisão que extinguiu o processo (§§ 2º e 5º)55. Sucede que o código não regulou as consequências jurídicas decorrentes da inércia das partes em solicitar a modificação dos efeitos da tutela antecipada estabilizada no prazo assinalado. O § 1º limita-se a dizer que, no caso de estabilização da tutela antecipada antecedente, “o processo será extinto [com ou sem resolução de mérito?]”. No cerne da controvérsia, o § 6º é emblemático, ao dizer que a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade de seus efeitos só pode ser alterada em sede de ação ajuizada com fundamento no § 2º. Trata-se de mero jogo de palavras, sendo equivalentes a coisa julgada e a estabilização após o decurso do prazo de 02 (dois) anos do ponto de vista pragmático? Ou, de fato, é possível apartar os dois institutos no plano jurídico e fático? A partir dessa polêmica, vão-se formando na doutrina algumas correntes: (i) há formação de coisa julgada56, cabendo, consequentemente, o ajuizamento de ação rescisória, ante a ausência de óbice constitucional à imutabilidade de decisões sumárias; (ii) há uma tutela antecipada estabilizada “em grau extraordinário” (superestabilização), com a imutabilidade da eficácia antecipada57, Art. 303. Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo. Art. 304. A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso. § 1º No caso previsto no caput, o processo será extinto. § 2º Qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada nos termos do caput. § 3º A tutela antecipada conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito proferida na ação de que trata o § 2º. § 4º Qualquer das partes poderá requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida, para instruir a petição inicial da ação a que se refere o § 2º, prevento o juízo em que a tutela antecipada foi concedida. § 5º O direito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada, previsto no § 2º deste artigo, extingue-se após 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo, nos termos do § 1º. § 6º A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2º deste artigo. 56 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 217. GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; E OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo – comentários ao CPC de 2015. Parte Geral. São Paulo: Forense, 2015, p. 903. 57 No sentido de que apenas se antecipam as eficácias mandamental e executiva. Nessa linha, vide COSTA, Eduardo José da Fonseca; PEIXOTO, Ravi; e GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. A estabilização e a imutabilidade das eficácias antecipadas. Disponível em: http:// 55

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funcionando como um pressuposto processual negativo autônomo em relação à coisa julgada, sendo possível, porém, em procedimento comum, nova discussão sobre as demais eficácias. Para essa corrente, essa modalidade de estabilização incide sobre os efeitos da decisão, e não sobre o conteúdo, como ocorre com a coisa julgada. Assim, para além de não caber ação rescisória mesmo após o decurso do prazo de 02 anos58, não é possível que a parte beneficiada pela estabilização da tutela tente dela extrair efeitos positivos a possuírem reflexos em demandas futuras, à semelhança do que ocorre com a coisa julgada. Os defensores da diferenciação entre tutela estabilizada e coisa julgada valem-se, no geral, dos seguintes fundamentos: (i) a estabilização da tutela dá-se em ambiente de cognição sumária, óbice ao reconhecimento da coisa julgada, sob pena de violação da garantia do contraditório; (ii) a coisa julgada incide sobre a eficácia declaratória da decisão, donde exsurge a nota de imutabilidade, enquanto que a tutela antecipada estabilizada incide apenas sobre a indiscutibilidade. Com efeito, a coisa julgada pressupõe cognição exauriente; já a tutela estabilizada cognição sumária. E, até por coerência lógica, o legislador não poderia atribuir o mesmo status a provimentos jurisdicionais exteriorizados em planos cognitivos distintos.Além disso, o entendimento contrário redunda em inconstitucionalidade por violação ao devido processo legal, notadamente quando o legislador do novo CPC trabalha a partir de um critério de contraditório forte e mais efetivo (arts. 9º e 10). Nesse sentido, à luz do regramento da matéria no direito italiano e francês, entende-se que a estabilização consiste em uma técnica monitória - de aceleração do processo – completamente distinta da coisa julgada, somente se assemelhando a esta em razão da afinidade de efeitos no mundo fenomênico. Mas, então, como se justifica o fato de que a decisão estabilizada não poderá ser modificada após o decurso do prazo de 02 (dois) anos? No primeiro momento, a tutela antecipada estaria sujeita a uma revisão naquele prazo de natureza decadencial. No segundo, não sendo adotadas as providências pertinentes, a tutela antecipada se estabiliza permanentemente em face da extinção do direito de modificação da tutela. Porém, ainda restam algumas dúvidas: a ação do § 2º não equivale a uma ação rescisória especial, sujeita a requisitos específicos (e, no caso, mais flexíveis)? Do ponto de vista prático, qual a distinção entre essa inafastabilidade dos efeitos da estabilidade e a coisa julgada? Por outro lado, admitindo-se que se trata de institutos diversos, contraditoriamente a estabilização não passa a ter mais força do que a coisa julgada (uma vez que esta, após sua formação, admite sua revisão via ação rescisória, além das diversas hipóteses de relativização previstas no ordenamento)? O argumento relativo à impossibilidade de formação de coisa julgada a partir de cognição exauriente pode, a princípio, ser rebatido com o exemplo da justificando.com/2015/10/16/a-estabilizacao-e-a-imutabilidade-das-eficacias-antecipadas/. Acesso em: 03 nov. 2015. 58 Nesse sentido, o Enunciado 35 do FPPC.

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coisa julgada formada nos casos de incidência dos efeitos da revelia.Veja-se que, na tutela antecipada antecedente, o legislador abre a oportunidade para que o réu discuta, sob cognição exauriente, a decisão liminar. Nos casos de revelia, com a incidência de seus efeitos materiais, o contraditório somente se forma sob o prisma formal, não havendo efetivamente debate relativo às questões fáticas e jurídicas suscitadas. Nesse caso, admite-se a prolação de uma sentença de procedência, em sede de julgamento antecipado da lide, a partir de um juízo de presunção jurídica, de modo que, do ponto de vista prático, não há efetivamente cognição profunda sobre a matéria, sem que isso seja óbice à formação da coisa julgada. Nesse ponto, a dicção do § 6º seria no sentido de excluir a formação de coisa julgada apenas durante o prazo para ajuizamento da ação revisional. Sendo assim, para extrair diferenciação dos modelos de estabilidade é preciso considerar a existência de regimes jurídicos diversos para as consequências fáticas do advento de cada um dos institutos. Sob esse prisma, é possível dizer que a estabilização atinge os efeitos e não qualquer conteúdo declarativo, como ocorre com a coisa julgada, de modo que, por exemplo, não há eficácia preclusiva na decisão de estabilização, como sucede na coisa julgada. Além disso, embora estáveis os efeitos da decisão proferida em sede de tutela antecipada, não há impedimento para a rediscussão do conteúdo declaratório em lide posterior (de forma semelhante ao que acontece com a questão prejudicial sobre a qual não se formou coisa julgada). Assim, numa decisão estabilizada que determina a devolução de parcelas pagas sob o fundamento de invalidade do contrato, nada impede a rediscussão da licitude deste em demanda posterior. Em outro exemplo, no caso de uma tutela inibitória antecipada, a determinação material de não fazer estabilizada não pode se rediscutida, mas seria possível discutir eventual direito à indenização em favor do réu decorrente de uma eventual inexistência do direito abstrato (obrigação) que ensejou aquela medida jurisdicional de conteúdo prático. Por outro lado, como fica a hipótese em que a tutela antecipada visa exatamente incidir sobre o conteúdo declaratório (ex., tutela liminar para declarar a inexistência de relação jurídico-tributária)59? É possível, em demanda posterior, discutir novamente a existência da relação jurídica (liame tributário)? Nesse último caso, para estabelecer-se a diferenciação, é forçoso reconhecer que, mesmo nas tutelas antecipadas de cunho declaratório, a decisão se volta apenas à eficácia executiva do pedido (ex., impedimento para o lançamento do crédito fiscal). Embora o tema seja controverso, parece necessário concluir que, de fato, o legislador do CPC/2015 trabalha como diversos graus de estabilidade jurídica, como já dito alhures, sendo a coisa julgada apenas uma delas. Por assim dizer, seria ela a estabilização por excelência, o que não exclui a possibilidade de serem previstos normativamente outros mecanismos processuais capazes de gerar algum tipo de indiscutibilidade para os atos jurisdicionais em geral60. Abstraindo-se aqui a discussão sobre a irreversibilidade da medida. Sobre o tema, entre outros, recomendamos a leitura dos seguintes textos recentemente publicados: GRECO, Leonardo. A tutela da urgência e a tutela da evidência no código de

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5. A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA Como visto, a imutabilidade do conteúdo da sentença alcançada pela coisa julgada é concebida como mecanismo de garantia da segurança jurídica. Nas últimas décadas, contudo, a doutrina, percebendo a necessidade de superar-se o dogma da inalterabilidade em razão de situações fáticas e jurídicas verificáveis posteriormente à formação da coisa julgada, concebeu a tese da relativização da coisa julgada. Durante muito tempo o direito brasileiro careceu de uma regulamentação mais específica da matéria61, entregando-se aos tribunais essa tarefa, que acaba sendo exercida, não raro, sob a ótica do decisionismo judicial. Numa primeira linha, defendia-se a relativização sempre que a coisa julgada importasse em afronta à moralidade, razoabilidade etc., ou estivesse em total desarmonia com os fatos subjacentes62. Essa perspectiva, todavia, permitia espaços incontroláveis do poder de revisão. O novo CPC avança na regulamentação da matéria, reduzindo o espectro de atuação da relativização atípica da coisa julgada. É o que se extrai dos artigos 525, §§12 e 15, e 535, do referido diploma63.

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processo civil de 2015. MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre. (org.) Doutrina Selecionada: Procedimentos Especiais, Tutela Provisória e Direito Transitório. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 4; REDONDO, Bruno Garcia. Estabilização, modificação e negociação da tutela de urgência antecipada antecedente: principais controvérsias. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, n. 244; GOMES, Frederico Augusto; e RUDINIKI NETO, Rogério. Estabilização da tutela de urgência: algumas questões controvertidas. MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre. (org.) Doutrina Selecionada: Procedimentos Especiais, Tutela Provisória e Direito Transitório. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 4; NUNES, Dierle; ANDRADE, Érico. Os contornos da estabilização da tutela provisória de urgência antecipatória no novo CPC e o mistério da ausência de formação da coisa julgada. MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre. (org.) Doutrina Selecionada: Procedimentos Especiais, Tutela Provisória e Direito Transitório. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 4; CAVALCANTI NETO, Antônio de Moura. Estabilização da tutela antecipada antecedente: tentativa de sistematização. Disponível em: https://www.academia. edu/12283645/Estabiliza%C3%A7%C3%A3o_da_tutela_antecipada_antecedente_tentativa_de_sistematiza%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 04 nov. 2015. Em sentido semelhante, CRAMER, Ronaldo. Ação rescisória por violação da norma jurídica. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 120 e ss. DELGADO, José. Pontos polêmicos das ações indenizatórias de áreas naturais protegidas – efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, n. 103. DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, n. 109. Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação. § 1º Na impugnação, o executado poderá alegar: (...) III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação; § 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como

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A interpretação isolada do art. 966,V, do novo CPC, ao tratar das hipóteses de cabimento da ação rescisória, pode conduzir a entendimento diverso. É que o art. 485, V, do CPC/73, referia-se ao cabimento de ação rescisória quando a decisão “violar literal disposição de lei”, de maneira que o conteúdo semântico da expressão contida no dispositivo do novo código (“violar manifestamente norma jurídica”) leva, a priori, a uma ampliação do cabimento dessa modalidade de ação. Com efeito, sob a égide do CPC/73, e a fim de evitar a compreensão do dispositivo como uma cláusula capaz de criar um mecanismo generalizado de desconsideração da coisa julgada, inclusive por meio de nova interpretação constitucional com efeitos pretéritos, o STF editou o enunciado 343 de Súmula, segundo o qual não cabe ação rescisória “quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.” A expressão “violar manifestamente norma jurídica” permitiria a mitigação dos efeitos restritivos do referido enunciado? A princípio pensamos que não, uma vez que a expressão “manifestamente” equivale, no plano pragmático, à ideia de literalidade contida no CPC/73. Desse modo, em relações jurídicas de trato continuado, a mera oscilação da jurisprudência não admite o uso da rescisória, quando muito permitindo a rediscussão do tema com efeitos prospectivos, em homenagem à proteção da confiança, com fundamento no art. 505, I, do CPC/201564. Em se tratando, porém, de discussão acerca da “coisa julgada inconstitucional” a questão ganha novos contornos. Por analogia ao critério de cabimento da rescisória, parte da doutrina entende que o disposto nos artigos 525, §§12 e 15, e 535, § 5º, do novo CPC, somente tem aplicação quando ausente controvérsia jurisprudencial sobre a questão constitucional65. Outra parte, porém, compreende que a limitação da Súmula 343 é inaplicável neste caso exatamente por se tratar de matéria constitucional66.

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incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. § 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica. § 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda. § 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. v. 2. p. 649. BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 357.

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O § 14 do art. 525, por seu turno, prescreve que a decisão do STF que autoriza a inexigibilidade da obrigação deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da decisão exequenda. Se a decisão é posterior, a hipótese é de ação rescisória com fundamento no art. 966,V. Pensamos que, à míngua de restrição normativa, o critério da ausência de controvérsia não se aplica à alegação de inexigibilidade na fase de execução do título (art. 525, § 12), mas seria perfeitamente cabível como fundamento para a rescisória, em razão da necessidade de violação “manifesta”. Esse argumento é reforçado pelo fato de que a rescisória é cabível em caráter excepcional, já que se baseia em decisão do STF ocorrida em momento posterior ao trânsito em julgado da decisão rescindenda, além de ser o que melhor se coaduna ao postulado da segurança jurídica. O novo regramento traz clara limitação à possibilidade de alegação da inexigibilidade do título judicial: se a decisão é anterior, ela pode ser deduzida na fase de execução; se posterior, fica sujeita ao prazo decadencial da ação rescisória, cuja contagem se dá a partir do trânsito em julgado da decisão do STF (§ 15 do mesmo dispositivo). Já o § 12 autoriza a relativização a partir de decisão no controle concentrado ou difuso, esclarecendo um ponto omisso da legislação anterior. No caso de decisão de inconstitucionalidade proferida em sede de controle difuso, embora o legislador de 2015 tenha deixado clara sua admissibilidade como fundamento da relativização, sua utilização permanece exigindo a ampliação de sua eficácia por ato do Senado Federal, na forma do art. 52, X, da CF. Além disso, a decisão deve ser oriunda do plenário daquela corte67. A norma, pois, em que pese mantenha em aberto a hipótese de relativização da coisa julgada, estabelece marcos temporais mais claros. Com efeito, doravante a desconsideração do título em fase de execução pressupõe que a decisão de inconstitucionalidade tenha sido proferida antes da constituição definitiva daquele título. Caso contrário a parte ficará sujeita ao prazo decadencial da ação rescisória para tentar desconstituir o título transitado em julgado. Sendo assim, ultrapassado o prazo de dois anos, mesmo com decisão do STF em sentido contrário, a coisa julgada prevalecerá. Com isso se sedimenta entendimento jurisprudencial já prevalecente no âmbito da Suprema Corte68. Porém, quanto à possibilidade de se ajuizar a rescisória até dois anos após a decisão do STF, é possível levantar-se a crítica de que o tema permanecerá em aberto indefinidamente, já que o referido precedente que autoriza a rescisão da coisa julgada poderá sobrevir a qualquer tempo. Daí começar a se desenhar, na doutrina, o entendimento de que há inconstitucionalidade na formulação desse marco temporal69. Enunciado 58 do FPPC. RE 730462, Relator(a): Min.TEORI ZAVASCKI,Tribunal Pleno, julgado em 28/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-177 DIVULG 08-09-2015 PUBLIC 09-09-2015. 69 Vide, entre outros, NUNES, Jorge Amaury Maia; NÓBREGA, Guilherme Pupe. Segurança jurídica e a rescisória fundada em inconstitucionalidade superveniente no novo CPC. Disponível em: 67 68

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Em relação às hipóteses de relativização fundada em prova nova – caso clássico do exame de DNA confeccionado após o trânsito em julgado -, é possível vislumbrar-se uma óbvia limitação no novo CPC. É que o art. 975, § 2º, estabelece que, “se fundada a ação no inciso VII do art. 966, o termo inicial do prazo será a data de descoberta da prova nova, observado o prazo máximo de 5 (cinco) anos, contado do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.” Desse modo, embora se mantenha o cabimento da rediscussão da matéria como historicamente restou sedimentado na jurisprudência pátria, há agora um marco temporal a partir de quando a decisão se torna estabilizada permanentemente70.

CONCLUSÃO Pelo que se pode perceber, o tema da coisa julgada permanece sendo um dos mais complexos do processo contemporâneo. Equacionar a balança entre uma decisão adequada e a segurança jurídica continua a desafiar a doutrina, os tribunais e o legislador. De todo modo, o novo CPC buscou desmistificar algumas questões relacionadas à coisa julgada, criando diversos mecanismos de estabilização a partir das realidades diferentes de cada fase processual. Em um ambiente de construção de um processo mais democrático e legítimo, que produza decisões melhor fundamentadas, permitiu-se a ampliação do objeto da lide a partir de uma perspectiva mais dinâmica, bem como a formação de coisas julgadas independentes no curso processo e, finalmente, deu-se maior objetividade aos critérios que ensejam o afastamento excepcional da nota de imutabilidade das decisões judiciais. Nesse cenário, espera-se que as modificações contribuam efetivamente para a pacificação social, um dos fins últimos da dimensão política do processo contemporâneo. O tempo dirá.

REFERÊNCIAS BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015. CAVALCANTI NETO, Antônio de Moura. Estabilização da tutela antecipada antecedente: tentativa de sistematização. Disponível em: https://www.academia. edu/12283645/Estabiliza%C3%A7%C3%A3o_da_tutela_antecipada_antecedente_tentativa_de_sistematiza%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 04 nov. 2015. COSTA, Eduardo José da Fonseca; PEIXOTO, Ravi; e GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. A estabilização e a imutabilidade das eficácias antecipadas. http://www.migalhas.com.br/ProcessoeProcedimento/106,MI222202,11049 Seguranca+juridica+e+a+rescisoria+fundada+em+inconstitucionalidade. Acesso em 13 jul. 2017. 70 No mesmo sentido, DELLORE, Luiz. O fim da relativização da coisa julgada no Novo CPC. Disponível em: http://jota.info/o-fim-da-relativizacao-da-coisa-julgada-no-novo-cpc#_ftn15. Acesso em: 04 nov. 2015.

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A COMPETÊNCIA CÍVEL DA JUSTIÇA FEDERAL E A CUMULAÇÃO DE PEDIDOS:

COMENTÁRIOS AO ART. 45 DO CPC/2015

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Oscar Valente Cardoso1

INTRODUÇÃO A competência é regulada na Constituição, em tratados internacionais, no Código de Processo Civil e em leis especiais, entre outras normas (especialmente os as leis de organização judiciária e os regimentos internos dos tribunais). Nesse sentido, o art. 44 do CPC/2015 dispõe que, “obedecidos os limites estabelecidos pela Constituição Federal, a competência é determinada pelas normas previstas neste Código ou em legislação especial, pelas normas de organização judiciária e, ainda, no que couber, pelas constituições dos Estados”. Em virtude dessa ampla variedade normativa, o conhecimento das regras de definição da competência é essencial para definir o juiz natural de cada caso. Entretanto, a aparente simplicidade das regras nem sempre permite a definição, com clareza e segurança, do juízo competente. A escolha equivocada pode levar à invalidade dos atos processuais praticados, à paralisação do processo para definição da competência e, especialmente, ao atraso na efetividade do direito material controvertido. Pretende-se, neste artigo, examinar as regras do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) acerca da determinação da competência nos processos com pedidos cumulados, contendo controvérsias de diferentes competências materiais. Dessa forma, serão abordadas, na sequência, as distinções entre jurisdição e competência, a delimitação da competência da Justiça Federal na Constituição de 1988 e a distribuição da competência interna no CPC/2015, para analisar as regras do art. 45 do CPC/2015 e definição nos processos com pedidos cumulados de competências materiais diversas (especialmente da Justiça Federal e da Justiça Estadual). Doutor em Direito (UFRGS). Mestre em Direito e Relações Internacionais (UFSC). Juiz Federal na 1ª Vara Federal de Capão da Canoa/RS. Professor de Direito Processual Civil em cursos de pós-graduação.

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1. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA Inicialmente, recordam-se as distinções existentes entre jurisdição e competência. Em primeiro lugar, a jurisdição é a capacidade abstrata e genérica de declarar e aplicar o direito de forma definitiva.Trata da existência de um órgão regularmente investido da função jurisdicional.Via de regra (mas não necessariamente), a jurisdição é atribuída aos órgãos do Poder Judiciário. Em caráter atípico, os órgãos do Legislativo e do Executivo também podem exercer a jurisdição (por exemplo, o Senado Federal no julgamento de crime de responsabilidade praticado pelo Presidente da República – art. 52, I, da Constituição). Ademais, há quem defenda que a arbitragem, além de uma forma de composição do litígio, também consiste no exercício da jurisdição: o árbitro ou o tribunal arbitral declara e aplica o direito, compõe a lide de forma definitiva, substituindo a vontade das partes, e o Poder Judiciário não revê o mérito da decisão arbitral. Contudo, falta à arbitragem a coercibilidade para o cumprimento das decisões. O novo CPC faz menção à arbitragem em seu art. 3º, permitindo a sua escolha pelas partes, sem que isso viole o princípio da indeclinabilidade da jurisdição (o que reforçaria o caráter de jurisdição da arbitragem)2. Todo integrante do Judiciário brasileiro tem jurisdição, trata-se de um poder nacional. Contudo, essa afirmação não significa que cada juiz pode exercer a jurisdição em todo o território nacional e em qualquer matéria. A extensão da jurisdição exige a divisão de trabalho entre os órgãos que a exercem e que compõem o Poder Judiciário. Tendo em vista que a jurisdição contém o poder de atuação da vontade concreta da lei, de exercer efetivamente a capacidade de declarar e impor a norma jurídica ao caso concreto, é preciso determinar previamente quem exercerá a jurisdição em cada caso. Para tanto, existem órgãos do Poder Judiciário competentes para o exercício da jurisdição em cada caso. Por isso, a competência também envolve a capacidade de declarar e aplicar o direito de forma definitiva, mas no caso concreto. Em outras palavras, milhares de juízes e tribunais têm jurisdição no território brasileiro, mas apenas um juiz tem a competência para o caso. A competência consiste em uma divisão administrativa do exercício da função jurisdicional. As normas de competência têm a principal finalidade de organizar o sistema judiciário nacional e evitar que mais de um juízo decida a mesma controvérsia. Para evitar conflitos no exercício da jurisdição, sua distribuição entre os juízes e tribunais deve observar critérios pré-definidos. Portanto, as regras de competência servem para atribuir concretamente o exercício da jurisdição aos órgãos do Poder Judiciário nacional. 2

Em complemento, o art. 42 do CPC/2015 dispõe:“Art. 42. As causas cíveis serão processadas e decididas pelo juiz nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei”. Isso significa que, desde que o direito seja disponível, as partes podem submeter seu conflito à arbitragem, retirando-o do Poder Judiciário, em princípio.

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Em suma, a competência do juízo decorre da distribuição da jurisdição em frações, trata-se de uma unidade de medida da jurisdição. Enquanto a jurisdição atribui poder aos juízes, a competência distribui esse poder entre os juízes. A competência é a concretização da jurisdição. A jurisdição é abstrata, o poder do Estado de declarar e impor o direito ao caso concreto. As regras de competência partem da abstração para, no caso prático, indicar o órgão competente. Assim, essas regras estão dispostas em uma ampla variedade normativa, tais como a Constituição Federal (competência material dos ramos do Judiciário e dos tribunais superiores), as leis federais (competência territorial), as Constituições Estaduais (competência dos tribunais estaduais), as leis de organização judiciária e os regimentos internos (competência de juízo e interna). Contudo, deve ficar claro que não são as regras de competência que atribuem o poder jurisdicional ao juiz. Ao contrário, o juiz é previamente investido desse poder jurisdicional e a competência limita o seu exercício, ao determinar a fração da jurisdição desempenhada em cada órgão do Judiciário. A competência estabelece a parcela de poder jurisdicional que o juiz pode utilizar. Por essa razão, o juiz federal tem competência para conciliar, processar e julgar casos previamente determinados. Portanto, as regras de competência regulamentam o poder jurisdicional. Essa distinção é importante, porque, se as regras de competência atribuíssem algum poder ao juiz, ele não teria poder jurisdicional, logo, a sentença por ele proferida seria inexistente (não transitaria em julgado, poderia ser questionada na impugnação ao cumprimento de sentença e não impediria novos processos sobre a mesma controvérsia, inclusive a sua impugnação por meio da ação declaratória de inexistência, que é imprescritível). Contudo, tendo em vista que o juiz é investido do poder jurisdicional, a sentença proferida por juiz absolutamente incompetente é nula (e não inexistente), logo, existe no ordenamento jurídico e pode ser impugnada por recursos e pela ação rescisória. Por isso (e de forma diversa do CPC/73), o § 4º do art. 64 do novo CPC determina que “salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente”. Logo, a regra é a preservação da eficácia de todos os atos (inclusive os decisórios) praticados pelo juízo incompetente. A divisão da competência no CPC/2015 é realizada, em primeiro lugar, entre: (a) a jurisdição internacional, que contém os limites da jurisdição nacional e está regulamentada nos arts. 21/25, de acordo com três critérios de Direito Internacional (principalmente a efetividade e, em menor escala, o interesse e a submissão) e com a distinção entre jurisdição exclusiva (art. 23) e concorrente (art. 21/22), a partir das quais se define a competência – ou não – do Judiciário brasileiro; (b) e a competência interna (arts. 42/53), que, a partir da definição da jurisdição brasileira, define qual o juízo competente, com base em quatro 243 BOOK.indb 243

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critérios principais (funcional ou hierárquico, material, valorativo e territorial), desenvolvidos por Chiovenda3. O critério material de definição da competência interna é o que interessa a este texto, por ser o critério preponderante na definição de qual ramo do Judiciário será competente (Eleitoral,Trabalhista, Federal, Estadual ou Militar). Assim, o item seguinte destina-se à delimitação da competência constitucional da Justiça Federal.

2. A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL NA CONSTITUIÇÃO A competência da Justiça Federal tem sua primeira e principal definição na Constituição. Nela, a norma primordial está no art. 109, que se fundamenta em dois elementos da ação: (a) a parte; (b) e a causa de pedir4. Em regra, a competência cível da Justiça Federal decorre da parte, ou seja, quando a União, autarquia ou empresa pública federal for interessada na condição de autora, ré, assistente ou opoente, com exceção dos processos de falência, de acidentes de trabalho ou de competência da Justiça Eleitoral ou da Justiça do Trabalho (art. 109, I). Logo, observadas as exceções, a presença de determinada pessoa jurídica de direito público como parte ou terceira atrai a competência da Justiça Federal, independentemente da matéria. Ademais, a causa de pedir também pode determinar a competência da Justiça Federal (independentemente das partes), como ocorre com os litígios fundados em tratado internacional ou em contrato da República Federativa do Brasil com outro país ou com organismo internacional (art. 109, III). Na fixação da competência com fundamento na parte, recorda-se que as Súmulas nº 42 do STJ e 556 do STF estabelecem que não compete à Justiça Federal julgar sociedade de economia mista federal, porque essa hipótese não está prevista na Constituição5. Por essa razão, litígios envolvendo o Banco do Brasil e a Petrobrás não determinam, apenas pela presença dessas partes, a competência dos juízes e tribunais federais. Ainda, o art. 109, I, da Constituição, contém quatro exceções, que afastam a competência da Justiça Federal mesmo que as pessoas nele referidas sejam partes: matéria trabalhista (competência da Justiça do Trabalho), matéria eleitoral (competência da Justiça Eleitoral), falência e recuperação judicial (competência Há classificações que dividem a competência em três critérios: territorial, o funcional e o objetivo (subdividido em valor e matéria). Nos termos do 62 do novo CPC,“a competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função é inderrogável por convenção das partes”. 4 Sobre o assunto: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência cível da Justiça Federal. São Paulo: Saraiva, 1998. 5 Conforme a Súmula nº 42 do STJ: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento”. Por sua vez, prevê a Súmula nº 556 do STF “É competente a Justiça comum para julgar as causas em que é parte sociedade de economia mista”. 3

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da Justiça Estadual), e acidente de trabalho (competência da Justiça Estadual). Essas exceções são repetidas pelo novo CPC, em seu art. 45, I, como se verá adiante. Por sua vez, a competência da Justiça Estadual é residual, ou seja, compete a ela processar e julgar os casos que não forem de competência dos demais ramos do Judiciário. Destaca, excepcionalmente, a existência da competência material delegada, que é uma delegação da competência material da Justiça Federal para a Estadual (por força do art. 109, § 3º, da Constituição6, em matéria de benefícios previdenciários, nos foros que não sejam sede de Subseção Judiciária da Justiça Federal, o que pode ser ampliado por lei federal – a previsão das execuções fiscais no art. 15, I, da Lei nº 5.010/66 foi revogada pela Lei nº 13.043/2014). Em tese, também pode haver competência material delegada da Justiça do Trabalho para a Justiça Estadual, quando não existir Vara do Trabalho e nos termos da lei (art. 112, da Constituição)7. Por se tratar de norma não autoaplicável, não há lei infraconstitucional atualmente para esse fim. Ressalta-se também que o art. 381, § 4º, do CPC/2015 cria uma nova hipótese de competência delegada, na produção antecipada de provas contra a União ou outro ente federal, que pode ser processada na Justiça Estadual: “O juízo estadual tem competência para produção antecipada de prova requerida em face da União, de entidade autárquica ou de empresa pública federal se, na localidade, não houver vara federal”. Relembradas as principais normas constitucionais de competência da Justiça Federal, passa-se à análise dos critérios de fixação de competência interna no CPC/2015 para, em seguida, analisar a determinação da competência em processo contendo pedidos cumulados.

3. CRITÉRIOS DE COMPETÊNCIA INTERNA NO PROCESSO CIVIL A regra do momento de concretização da competência (equivocadamente denominada de perpetuatio jurisdictionis) e de estabilização de demanda no CPC/2015 está no art. 43, segundo o qual “determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta”. Logo, não é mais a decisão inicial do juiz (prevista nos arts. 87 ou 263 do “Art. 109. (...) § 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. § 4º Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau”. 7 “Art. 112. A lei criará varas da Justiça do Trabalho, podendo, nas comarcas não abrangidas por sua jurisdição, atribuí-la aos juízes de direito, com recurso para o respectivo Tribunal Regional do Trabalho”. 6

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CPC/73), mas apenas a data do registro ou distribuição da demanda que leva à fixação da competência. As alterações posteriores nos elementos da ação são irrelevantes e não influenciam a fixação da competência (salvo as hipóteses de modificação da competência). Como visto, a competência interna é regulamentada, principalmente, pelos arts. 42/53 do CPC/2015. A partir daqui, pressupõe-se que o Brasil tem jurisdição sobre o caso e se define quem, em todo o Judiciário do país, deve processar e julgar a controvérsia. Os critérios de definição da competência interna principais devem ser analisados na sequência (funcional ou hierárquico, material, valorativo e territorial) para a definição do juízo competente e se, ao final, existir mais de um juiz, a competência é fixada pela distribuição, ou seja, pelo sorteio. Ademais, existem regras diferentes para a definição (e o descumprimento) das hipóteses de competência absoluta e relativa. Na competência absoluta o vício é insanável, logo, não há preclusão (para as partes e o juiz) e a matéria pode ser conhecida em qualquer tempo e grau de jurisdição, inclusive de ofício, além de poder ser utilizada como fundamento da ação rescisória (art. 966, II, CPC). Na competência relativa o vício é sanável, logo, deve ser alegado em um determinado prazo, sob pena de preclusão, razão pela qual não pode ser conhecida de ofício pelo juiz (Súmula nº 33 do STJ)8, tampouco ser utilizada como base para a ação rescisória. Ademais, as regras de competência relativa podem ser modificadas de comum acordo pelas partes (por exemplo, a cláusula de eleição de foro).

4. DEFINIÇÃO DA COMPETÊNCIA NA CUMULAÇÃO DE PEDIDOS O caput do art. 45 insere no novo CPC a regra de competência da Justiça Federal em razão da parte prevista no art. 109, I, da Constituição: “Art. 45. Tramitando o processo perante outro juízo, os autos serão remetidos ao juízo federal competente se nele intervier a União, suas empresas públicas, entidades autárquicas e fundações, ou conselho de fiscalização de atividade profissional, na qualidade de parte ou de terceiro interveniente, exceto as ações: I - de recuperação judicial, falência, insolvência civil e acidente de trabalho; II - sujeitas à justiça eleitoral e à justiça do trabalho”.

Contudo, o art. 45 do novo CPC não se limita a reproduzir a regra constitucional de fixação de competência. Os §§ 1º a 3º do dispositivo inserem regras de definição de competência em litígios com pedidos cumulados. Recorda-se que o pedido e a causa de pedir compõem os elementos objetivos da ação, que se complementam pelo elemento subjetivo (partes e outros “A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício”.

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sujeitos eventuais). Além de ser um dos requisitos essenciais da petição inicial (art. 319, IV, do novo CPC9), o pedido consiste na medida ou providência que a parte requer ao Judiciário. O pedido é denominado de bipartido (ou bifronte), porque se divide, de acordo com as providencias pretendidas nos direitos processual e material, em mediato e imediato (também identificados com o objeto do pedido)10, da seguinte forma: (a) o pedido imediato se refere à sentença de mérito pretendida, à espécie de tutela buscada; (b) e o pedido mediato (ou remoto) dirige-se ao bem jurídico pretendido pela parte, que será satisfeito por meio da prestação jurisdicional11. Ambos os pedidos são dirigidos ao Judiciário. Em outras palavras, o pedido é bifronte porque abrange a obtenção do provimento jurisdicional e o bem da vida pleiteado, sendo aquela instrumental a esta: pode ser satisfeita somente a primeira pretensão (na hipótese de improcedência do pedido inicial), ambas (quando o pedido é julgado procedente), ou nenhuma (quando o processo é extinto sem resolução de mérito)12. Os pedidos podem ser cumulados, ou seja, é possível a apresentação de mais de um pedido (mediato), de forma própria (simples ou sucessiva) ou imprópria (subsidiária ou alternativa). A cumulação própria ocorre quando a parte formula mais de um pedido e pretende que todos sejam acolhidos, enquanto há cumulação imprópria quando a parte formula mais de um pedido e pretende que um deles seja acolhido13. Nesse sentido, sobre a cumulação própria, o art. 327 do novo CPC dispõe que “é lícita a cumulação, em um único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão”, observados os requisitos exigidos pelos §§ 1º e 2º do dispositivo14. De acordo com o § 1º do art. 45 do CPC/2015, “os autos não serão remetidos se houver pedido cuja apreciação seja de competência do juízo perante o qual foi proposta a ação”. Em outras palavras, não se remete o “Art. 319. A petição inicial indicará: (...) IV - o pedido com as suas especificações”. Nesse sentido: MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 10. 11 BERMUDES, Sergio. Introdução ao processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, pp. 3839. 12 CARMONA, Carlos Alberto. Em torno da petição inicial. Revista de Processo, São Paulo, nº 119, pp. 11-34, jan. 2005. 13 Sobre o assunto: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, pp. 567-572. A cumulação imprópria é referida no art. 326 do CPC/2015: “É lícito formular mais de um pedido em ordem subsidiária, a fim de que o juiz conheça do posterior, quando não acolher o anterior. Parágrafo único. É lícito formular mais de um pedido, alternativamente, para que o juiz acolha um deles”. 14 “Art. 327. (...) § 1o São requisitos de admissibilidade da cumulação que: I - os pedidos sejam compatíveis entre si; II - seja competente para conhecer deles o mesmo juízo; III - seja adequado para todos os pedidos o tipo de procedimento. § 2o Quando, para cada pedido, corresponder tipo diverso de procedimento, será admitida a cumulação se o autor empregar o procedimento comum, sem prejuízo do emprego das técnicas processuais diferenciadas previstas nos procedimentos especiais a que se sujeitam um ou mais pedidos cumulados, que não forem incompatíveis com as disposições sobre o procedimento comum”. 9

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processo para o juiz federal quando, diante de cumulação própria de pedidos, o juiz estadual for competente para apreciar pelo menos um dos pedidos. Assim, compete ao juiz encerrar o processo sem resolução de mérito para os pedidos que não forem de sua competência e prosseguir em relação aos demais. Essa é a dada pelo § 2º do art. 45 do novo CPC: “Na hipótese do § 1o, o juiz, ao não admitir a cumulação de pedidos em razão da incompetência para apreciar qualquer deles, não examinará o mérito daquele em que exista interesse da União, de suas entidades autárquicas ou de suas empresas públicas”. Por outro lado, pode-se afirmar que, se o processo tramitar na Justiça Federal, deve o juiz federal prosseguir apenas quanto ao(s) pedido(s) de sua competência, encerrando parcialmente o processo (sem resolução de mérito) em relação ao(s) pedido(s) não abrangidos pela competência dos juízes federais. Por fim, o § 3º do art. 45 do CPC/2015 trata da devolução do processo pelo juiz federal, quando entender que não há interesse do ente federal (sem suscitar conflito de competência): “O juízo federal restituirá os autos ao juízo estadual sem suscitar conflito se o ente federal cuja presença ensejou a remessa for excluído do processo”. Isso significa que compete exclusivamente ao juiz federal decidir sobre a existência – ou não – de competência da Justiça Federal em razão da parte. O novo CPC incorpora o entendimento fixado em dois enunciados do Superior Tribunal de Justiça: o primeiro é a Súmula nº 150 do STJ (publicada em 13/02/1996): “Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas”. Da mesma forma, dispõe a Súmula nº 224 do STJ (publicada em 25/08/1999): “Excluído do feito o ente federal, cuja presença levara o Juiz Estadual a declinar da competência, deve o Juiz Federal restituir os autos e não suscitar conflito”. Em outras palavras, não há conflito de competência quando o juiz federal decidir sobre a existência – ou não – das pessoas jurídicas de direito público na esfera federal, porque, de acordo com a regra prevista no art. 109, I, da Constituição (e no caput do art. 45 do novo CPC), compete exclusivamente ao juiz federal decidir sobre a existência – ou não – de interesse da União, de autarquia, fundação ou empresa pública federal na causa. Desse modo, havendo intervenção no processo de ente público federal, o juiz estadual deve remeter o processo para a Justiça Federal, a fim de que o juiz federal decida se há – ou não – o interesse alegado. Caso o juiz federal exclua o ente federal, deve devolver para o juiz estadual prosseguir, não sendo caso de conflito de competência.

CONCLUSÕES Como visto, o juiz federal não suscita conflito pela exclusão da União (ou de outra pessoa jurídica de direito público federal entre as previstas na norma constitucional) do processo, porque ele é exclusivamente competente 248 BOOK.indb 248

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para isso (art. 45, § 3º, CPC). Não há competência do juiz estadual (ou de qualquer outro) para decidir sobre o interesse de pessoa jurídica de direito público inserida na Administração Pública federal. Por outro lado, existindo o interesse da União, autarquia, fundação ou empresa pública federal, o processo deve ser remetido para a Justiça Federal (art. 45, caput). Excepcionalmente, o processo não deve ser remetido quando, diante da cumulação (própria) de pedidos, existir pedido de competência do juízo em que proposta a ação (art. 45, § 1º, CPC). Nessas hipóteses, o Código prevê o indeferimento da cumulação de pedidos de competências diversas, com o encerramento do processo sem resolução de mérito para o pedido que não for da competência do juízo processante (art. 45, § 2º, CPC). Há, portanto, o indeferimento da cumulação de pedidos de competências diversas. Assim, quando a parte autora formular mais de um pedido (em cumulação própria) e o juiz for incompetente para um deles, deve (art. 45, § 1º, CPC): (a) não admitir a cumulação; (b) e processar apenas o pedido para o qual tem competência. Incumbe à parte interessada promover a propositura de nova ação contendo o pedido excluído para o juízo competente, seguindo os processos separadamente e de forma independente. Em resumo: (a) quando houver ingresso ou pedido de ingresso da União, de autarquia, fundação ou empresa pública federal no processo, o juiz estadual deve remeter o processo ao juiz federal competente (em tese) para a apreciação desse interesse; (b) se o juiz federal excluir o ente federal, devolverá o processo à Justiça Estadual, sem suscitar conflito (que não pode ser suscitado por nenhum sujeito processual nessa hipóteses, por não existir conflito de competência); (c) se houver cumulação de pedidos e um deles for de competência da Justiça Estadual, a cumulação é indevida e o juiz estadual deve apreciar o pedido da sua competência, sem prosseguir em relação ao(s) outro(s) de competência da Justiça Federal. Como consequência desses dispositivos, pode-se afirmar ainda que o novo Código evita que a cumulação de pedidos seja utilizada para atrair a competência da Justiça Federal para casos que não são de sua competência. Nesse caso, o processo deve seguir apenas no que for de competência do judiciário federal, sem a análise de outros pedidos.

REFERÊNCIAS BERMUDES, Sergio. Introdução ao processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. CARMONA, Carlos Alberto. Em torno da petição inicial. Revista de Processo, São Paulo, nº 119, pp. 11-34, jan. 2005. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. 249 BOOK.indb 249

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MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência cível da Justiça Federal. São Paulo: Saraiva, 1998. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

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CONFLITOS, HUMANISMO E JURISDIÇÃO: A CONCILIAÇÃO NA JUSTIÇA FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO

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Reynaldo Soares da Fonseca1 Gabriel Campos Soares da Fonseca2

INTRODUÇÃO O presente artigo busca elucidar, em linhas gerais, um aporte teórico acerca do problema da explosão de litigância no Brasil. Assim, visualiza a conciliação como um método crucial para a solução pacífica dos conflitos de forma a aliviar o aparato jurisdicional brasileiro e fomentar uma sociedade plural e fraterna. O intento fundamental é o de demonstrar a conciliação como resultado de um viés humanista do Direito e expressá-la como uma forma de concretizar o princípio da fraternidade de modo que cristaliza o apaziguamento social e a solução consensual dos conflitos. Para tanto, busca-se expor a experiência bem sucedida da Justiça Federal da 1ª Região como exemplo real deste recorte teórico. A partir da análise metodológica de vasta revisão bibliográfica, este trabalho, em sua primeira parte, expõe sucintamente as bases do jus humanismo normativo de modo a apresenta-lo como aporte teórico para a construção do pensamento desenvolvido ao longo deste texto. Dessa forma, busca-se a compreensão do Direito como um vetor de transformação social e assim, para os fins deste trabalho, intentar melhor solucionar os anseios e os conflitos dos jurisdicionados. Na segunda parte deste trabalho, almeja-se expor o princípio da fraternidade como fonte constitucional e moral para a construção de uma cultura Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Professor licenciado da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutorando em Direito Constitucional na Faculdade Autônoma de São Paulo (FADISP) com pesquisa realizada na Università degli Studi di Siena. Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). 2 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Visiting Student (2016) em “Democracia e Desenvolvimento” pela Università degli Studi di Siena (UniSi – Itália). Pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Constitucional Comparado da UnB. Editor Chefe da Revista dos Estudantes de Direito da UnB (RED|UnB). 1

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de conciliação. Destarte, primeiramente, reconstrói-se o seu marco histórico calcado na Revolução Francesa para demonstrar um certo desinteresse e um certo esquecimento do princípio da fraternidade no debate político e jurídico. No entanto, posteriormente, demonstra-se a insuficiência dos corolários da liberdade e da igualdade para tratar da concretização do Estado Democrático de Direito, bem como para cuidar das relações da vida em comunidade. Por fim, busca-se representar a densidade deste princípio em diversos ordenamentos jurídicos, na doutrina e na jurisprudência. Na terceira parte deste trabalho, a intenção é introduzir algumas das causas e das origens dos conflitos interpessoais e judiciais. Desse modo, apresenta-se a difusão dos métodos alternativos de resolução de disputa ao redor do mundo para explicitá-los como importantes meios para perpassar pela explosão de litigância na sociedade brasileira. No entanto, o foco deste trabalho é a conciliação lato sensu – englobando tanto a mediação quanto a conciliação strictu sensu. Por isso, entende-se que ela deve ser percebida como um meio para se alcançar uma sociedade mais fraterna à luz dos mandamentos do nosso próprio preâmbulo. Por fim, na última parte deste trabalho, tenta-se demonstrar, por meio de alguns dados, a concretização desses referenciais teóricos no âmbito da Justiça Federal da primeira região para concluir que os métodos alternativos de resolução de disputas são a chave para ultrapassar a explosão de litigância no país, assim como para concretizar o princípio da fraternidade e consolidar um viés do Direito mais humanista, na prática.

1. O JUS HUMANISMO NORMATIVO: UM BREVE OLHAR O conceito de Direito continua sendo disputado até os dias de hoje. Não obstante os mais diversos autores e as mais diversas linhas de pensamento jusfilosófico, o juspositivismo, o jusnaturalismo e o realismo jurídico se apresentaram como as três linhas clássicas principais. A despeito da complexidade do tema e dos contínuos debates acerca das mais variadas vertentes de cada linha, é importante perceber que, com o advento da modernidade, o Direito deve ser repensado para além dos questionamentos tradicionais. Destarte, urge a necessidade de se repensar um aporte teórico e metodológico do Direito que permita a consolidação dos meios técnicos e axiológicos para um juízo acerca da justiça das normas. Na linha do professor português Paulo Ferreira da Cunha, a injustiça evidencia-se a partir da violação de algum destes preceitos jurídicos: viver retamente, não prejudicar ninguém e atribuir a cada um o que é seu3. O jus humanismo normativo surge a partir dessa perspectiva, então, inspirando-se nas postulações do jurista mexicano, Eduardo Garcia Maynes, e do francês, Michel CUNHA, Paulo Ferreira da. Síntese de Filosofia do Direito. Coimbra: Almedina, 2009. p. 141

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Villey. Partindo-se disso, visualiza-se como necessário entrelaçar as principais constatações do jusnaturalismo, do juspositivismo e do realismo jurídico. Criada pelo professor Ricardo Sayeg e sistematizada em conjunto com o professor Wagner Balera nos debates relativos ao Direito Econômico4, esta corrente teórica, aplicada à teoria do Direito à luz de sua universalidade e de sua transversalidade, defende a intersecção do texto (direito positivo) com o metatexto (realismo jurídico) e com o intratexto (jusnaturalismo à luz dos direitos humanos). É importante ressaltar, no entanto, que o marco teórico do jus humanismo diz respeito à fraternidade. Sob essa égide, busca-se instituir uma sociedade plural e fraterna alicerçando-se nos direitos humanos para tanto. A apresentação breve e sucinta desta teoria serve, para fins deste trabalho, para reconhecer o princípio da fraternidade como elemento norteador de uma prática jurídica atenta aos anseios sociais e em busca da solução pacífica dos conflitos. Este novo olhar percebe a necessidade de se agregar elementos das três principais vertentes jusfilosóficas clássicas para, então, reconhecer uma multidimensionalidade intrínseca à vida social e à concretização do Direito como um todo. Objetiva-se, portanto, sob a consciência de uma atual explosão conflitiva e litigiosa, a satisfação do ser humano no que tange às dimensões objetivas da dignidade da pessoa humana, da democracia e da paz. O Direito, assim, não pode ser observado sob desdobramentos e rótulos simplistas de modelos de teoria do direito. Em verdade, diferentemente, deve ser reflexo de um sistema complexo que busca solucionar os anseios dos jurisdicionados - densificando a “justiça” no caso em concreto. Porém, mantendo, ao mesmo tempo, a sua consistência interna de objetividade e de previsibilidade – formatando suas bases racionais autônomas.

2 O PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE COMO CATEGORIA JURÍDICA Em consonância com a visão humanista do Direito, depreende-se que a fraternidade se evidencia como um princípio crucial e norteador para a aplicação do Direito. Como é bem sabido, o evento histórico da Revolução Francesa, em 1789, proliferou mudanças incontornáveis para todas as searas do conhecimento e, assim, inclui-se o Direito. Tal contexto político-social-cultural tinha como sua bandeira três princípios: liberdade, igualdade e fraternidade. Com o desenvolvimento da sociedade sob esse novo paradigma pós revolucionário, posteriormente, muito se discutiu acerca das ingerências (recíprocas ou não) entre a liberdade e a igualdade, todavia esqueceu-se da fraternidade. Destarte, é preciso reconhecer a dimensão política e 4

Tal teoria foi constituída, primeiramente, à vista de uma concepção jus humanista de regência jurídica do mercado e da economia, assim articulando uma estrutura saudável e balanceada entre mercado e vida humana. Ver: SAYEG, Ricardo; BALERA, Wagner. O Capitalismo Humanista: Filosofia Humanista de Direito Econômico. Petrópolis: KBR, 2011. p. 17

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jurídica da fraternidade5 a fim de, posteriormente, utilizá-la na busca da construção de uma sociedade mais atenta aos perigos da litigiosidade nociva e excessiva.

2.1. RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA: LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE No pano de fundo de um Estado de Direito liberal, a liberdade tomou as rédeas da aspiração social frente às mazelas causadas pelo absolutismo. Assim, o Estado ideal era visto como mínimo, um mal necessário. A autonomia privada seria, então, preponderante e deveria condicionar a autonomia pública. Consequentemente, o papel do Estado, dos direitos fundamentais e da própria Constituição estava condicionado à garantia das liberdades individuais em face de uma possível intromissão do Estado nessa esfera. Dessa forma, liberdade e igualdade eram tidas como direitos negativos, verdadeiras salvaguardas do indivíduo em face de uma possível intervenção inapropriada do Estado. Malgrado, no âmbito do segundo paradigma Constitucional, isto é, o Estado Social, começou-se a buscar a materialização desses direitos fundamentais, principalmente no que tange à liberdade e à igualdade, pois não se demonstravam reais na prática. Para tanto, o Estado demonstrar-se-ia mais presente e mais ativo defendendo as partes mais fracas e concedendo direitos aos cidadãos. Iniciou-se, assim, por parte do Estado, a realização de prestações positivas nas áreas de bens e de serviços tidos como sociais. Em consequência disso, muda-se a “seta valorativa”6 em relação ao papel do Estado firmando a autonomia pública como delimitadora, a partir do ideal do bem comum, dos limites da autonomia privada sob uma burocracia tecnocrata. Liberdade e igualdade, sob o ponto de vista liberal, eram conceitos chave, porém tidos sob uma perspectiva meramente formal e pela qual a liberdade se sobressaía. Assim, permitiu-se uma exploração dos economicamente mais vulneráveis de forma espantosa. A ascensão do Welfare State buscou responder os anseios de tal segmento social materializando esses direitos de forma positiva, retirando-os do “papel”. Porém, diferentemente da retórica manipuladora da época, fixou-se um verdadeiro clientelismo no qual os indivíduos não eram verdadeiros cidadãos, mas, sim, reféns de políticas populistas. No paradigma do Estado Democrático de Direito, começa-se a repensar a questão com a devida complexidade articulando autonomia pública e privada. Percebe-se a relação equiprimordial entre forma e matéria. Assim, a materialização da liberdade e da igualdade perpassa, antes, por uma afirmação formal dos sujeitos e do estabelecimento de salvaguardas processuais e individuais. Fixa-se, então, uma relação de complementariedade entre liberdade e igualdade. BAGGIO, Antonio Maria. The Forgotten Principle: Fraternity in Its Public Dimension. West Lafayette: Claritas – Journal of Dialogue and Culture, vol. 2, n. 2, 2013. p. 35 6 CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtividade das tensões principiológicas e a superação do sistema de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011. pp. 108-109 5

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No entanto, a fraternidade foi esquecida, de certa forma, como categoria jurídica, porém, este esquecimento não pode mais ser tolerado. Como já aludido, ambas experiências permitiram a ascensão de experiências político-constitucionais nocivas ao regime democrático e ao cumprimento sensato da ordem constitucional.Tendo em vista as experiências que prezaram pela realização da igualdade à custa da liberdade (totalitarismo) ou vice-versa (lógica exploradora do mercado), é possível notar que uma transformação social não sustentada pela fraternidade é, simplesmente, catastrófica. A reinserção da fraternidade no âmbito do debate jurídico, político e moral – campos necessariamente distintos, porém que dialogam constantemente – tornou-se uma questão fundamental para sustentação do próprio Estado Democrático de Direito. A complexidade dos problemas sociais, estruturais e jurídicos das democracias ocidentais demandam a redescoberta do princípio da fraternidade como uma categoria jurídica inerente7.

2.2. A NORMATIVIDADE DO PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE Cabe ressaltar, ao menos de forma breve, que os princípios não podem ser meros vazios retóricos sob pena de se recair em uma argumentação utópica. A despeito de uma aplicação manipuladora ou de uma banalização da função dos princípios no ordenamento jurídico, eles devem ser vistos como oriundos das escolhas políticas de uma comunidade composta por indivíduos livres e autônomos8. À vista das possíveis críticas da falta de previsão do princípio da fraternidade e da possível vagueza que ele, aparentemente, transpassaria, é preciso analisar sua expressa previsão em não só ordenamentos constitucionais e internacionais, mas, também, na doutrina e na jurisprudência. Como exemplo de normatividade internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos ressalta, em seu artigo 1°, com clareza solar, a fraternidade como valor universal: “Todas as pessoas são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade9”

Na Constituição lusitana vigente desde 1976, o constituinte registrou, logo no preâmbulo, o significativo comprometimento do povo português: SOARES DA FONSECA, Reynaldo. A Conciliação à Luz do Princípio Constitucional da Fraternidade: A Experiência da Justiça Federal da Primeira Região. São Paulo: Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/ SP), 2014. p. 19 8 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito.Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 227 9 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: ONU, 1948. (Grifos nossos) 7

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“A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno10”.

No plano nacional, na mesma linha, o preâmbulo da Constituição brasileira de 1998 expõe que: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias11” [...].

Apesar de o preâmbulo não ser dotado de força normativa, ele representa uma orientação para interpretação e aplicação das normas constitucionais12. Como bem aponta a Ministra Carmen Lúcia, o preâmbulo apresenta, em verdade, a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 198813. Em consequência disso, é possível afirmar que o princípio da fraternidade, ao lado dos demais valores supremos, é condição basilar para uma leitura coerente da Carta Maior de 198814 e irradia-se nas normas constitucionais brasileiras. Apesar de não ser possível uma análise pormenorizada da jurisprudência a respeito do tema sob pena de alargar o escopo deste trabalho, cabe ainda ressaltar alguns julgados que densificaram este princípio nos respectivos casos em concreto. A argumentação do Ministro Gilmar Mendes na ADPF 186-2/ DF15 afirmou que “No limiar deste século XXI, liberdade e igualdade devem ser (re) pensadas segundo o valor fundamental da fraternidade.” Na mesma linha, o Ministro PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Lisboa: Assembleia da República, 1976. (Grifos nossos) 11 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. (Grifos nossos) 12 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 22 13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8/5/2008. DJE de 17/10/2008. p. 41 14 LAZZARIN, Sonilde K. O princípio da fraternidade na Constituição Federal Brasileira de 1988. Porto Alegre: Direito & Justiça, v. 41, n.1, 2015. p. 93 15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC na ADPF nº 186-2. Min. Gilmar Mendes. Dj. 31/07/2009. p. 7 10

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Carlos Ayres Britto nos ensinou na ADI 3.12816, em seu brilhante voto, que “a solidariedade, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, em verdade, é fraternidade, aquele terceiro valor fundante, ou inspirador da Revolução Francesa”. No âmbito doutrinário, respeitáveis vozes já se manifestaram acerca do assunto. No entanto, como bem ressaltado pelo ilustríssimo Peter Häberle17, pouco se falou da fraternidade após a Revolução Francesa de 1789. A despeito disso, o jurista português Paulo Ferreira da Cunha, expoente no tema, ressurge com tal discussão expondo que o Direito Fraterno Humanista18 representa uma aglutinação de movimentos e de tendências de vários campos de estudo. Todavia, ele preza, de maneira geral, por se postar como um novo paradigma definido como o “paradigma jurídico-político dos Direitos Humanos” propondo, assim, que o Direito deve atuar “tanto nas fronteiras da realidade dos homens, quanto nos limites do individual, e configurar-se em função desses dois universos integrados, sempre ao encalço de uma atribuição justa19”. Por fim, o douto Carlos Ayres Britto afirma a existência do constitucionalismo fraternal isto é, o constitucionalismo que ultrapassou a mera feição liberal e social para assim consubstanciar uma feição fraternal e emancipatória em um verdadeiro sentido de comunhão. Ademais, a fraternidade se apresenta, portanto, como “o ponto de unidade a que se chega pela conciliação possível entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro, da Igualdade” 20. Destarte, a fraternidade representa um passo para além da insuficiência do caráter individualista do Direito. Ela intenta em permitir a fruição dos direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico por todas as camadas sociais, firmando-se assim como um valor fundamental para assegurar a própria vida em comunidade21 e para efetivar o próprio Estado Democrático de Direito22.

3. CONFLITOS, CONCILIAÇÃO E FRATERNIDADE A vida em sociedade pressupõe a existência inerente de conflitos intersubjetivos de interesses. Com o advento do convívio social, pessoas diferentes começam a se interessar por um mesmo bem da vida fazendo com que, por conseguinte, haja um conflito entre elas. Antes da prática da resolução dos conflitos BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3.218. Voto Min. Carlos Ayres Britto. Dj 05/09/2011. 17 HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad: 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madrid: Trotta, 1998. 18 CUNHA, Paulo Ferreira da. Do Direito Fraterno Humanista: diálogos e vetores. Montes Claros: Revista Brasileira de Estudos Jurídicos, v.11, n.1, jan./jun. 2016, p. 14 19 CUNHA, Paulo Ferreira da. Do Direito Natural ao Direito Fraterno. São Leopoldo: RECHTD, v.1, n.1, 2009. p. 78 20 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 218 21 MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A Fraternidade como Categoria Jurídico-Constitucional. Aracaju: Portal Ciclo, 2008. p. 14 22 NICKNICH, Mônica. O Direito e o princípio da fraternidade. Joinville: Revista de Direito da Univille, 2012. p. 174 16

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por meio do processo, existiam, de modo geral, três formas de se resolvê-los: (i) a solução por violência; (ii) a solução moral; e (iii) a solução contratual/consensual. Entretanto, com a introdução e o posterior desenvolvimento da prática de um terceiro resolvendo tais conflitos de outras pessoas, o processo emergiu como uma maneira racional para a composição de litígios. Sendo assim, o processo firma-se como resultado da função jurisdicional do Estado e dessa forma, sob um conceito amplo, ele se evidencia como o meio e o instrumento de que se vale o Estado para, no exercício de sua função jurisdicional, compor as lides. Uma cultura político-constitucional saudável carrega dentro de si o dito “direito à diferença”23, isso implica em reafirmar a existência de um pluralismo social que permita a convivência de diversos valores morais e políticos no mesmo tecido social. Em decorrência dessa interação de visões de mundo heterogêneas e até, por vezes, incompatíveis, a propagação de inúmeros conflitos se torna inevitável. Não obstante, depreende-se logicamente que não convém, aos desígnios do Estado, uma sociedade litigiosa, pois esse deve buscar o apaziguamento social e consequentemente prezar pela autocomposição dos litígios, isto é, estimulando que eles sejam resolvidos sem a necessidade de se mover o aparato jurisdicional do Estado. No Direito Processual, identificam-se três ondas de acesso à Justiça, tendo em vista que essas ondas estariam no sentido da remoção dos obstáculos à resolução de litígios. A primeira onda referiu-se à remoção de obstáculos econômicos, tendo como marco a assistência jurídica gratuita. Seguidamente, a segunda onda se traduz na remoção de obstáculos de cunho individualista, logo se criaram mecanismos de proteção de interesses transindividuais. Por fim, a terceira onda é referente aos obstáculos qualitativos, assim gerando a reforma e reinvenção do Poder Judiciário, a sua desformalização e a introdução dos meios alternativos de resolução de conflitos. Demais disso, diante da problemática hodierna de carência de recursos, com causas de cunho estrutural, conjuntural, processual e cultural, torna-se inevitável desautorizar o velho dogma de que o monopólio estatal da jurisdição emana da manifestação do juiz no processo via procedimento ordinário, em geral. Nesse diapasão, entretanto, noticia-se a imprescindibilidade das resoluções alternativas de disputa para a manutenção do Poder Judiciário como instituição funcional na dinâmica do Estado e da sociedade civil. Recentemente, diversas mudanças substanciais ocorreram na maneira de se abordar o conflito em si. Assim, ao redor do mundo, buscou-se desenvolver estratégias mais eficientes, menos onerosas e mais satisfatórias, para as partes e para o Estado, de se resolver tais conflitos de modo a expandir os métodos de “Alternative Dispute Resolution (ADR)”24. De maneira geral, os ditos métodos BITTAR, Eduardo C. B. Reconhecimento e Direito à Diferença: Teoria Crítica, Diversidade e a Cultura dos Direitos Humanos. São Paulo: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, 2009. p. 552 24 STIPANOWICH, Thomas J. ADR and the “Vanishing Trial”: The Growth and Impact of “Alternative Dispute Resolution”. New Jersey: Journal of Empirical Legal Studies, v. 1, n. 3, 2004. p. 843. 23

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de resolução alternativa de disputa podem englobar (i) a negociação, (ii) a mediação, (iii) a conciliação e (iv) a arbitragem. No entanto, para os fins deste trabalho, é importante focar no âmbito da conciliação como um conceito mais amplo envolvendo tanto a conciliação strictu sensu quanto a mediação. A mediação e a conciliação representam formas de solução de conflito nas quais um terceiro interfere no processo negocial visando auxiliar as partes a fim de se chegar à auto composição do litigio. Assim, as duas técnicas são norteadas por princípios como informalidade, simplicidade, economia processual, celeridade, oralidade e flexibilidade processual. Os mediadores e o conciliadores, portanto, exercem um papel de catalisadores da solução negocial do conflito de modo que a eles não cabe resolver o problema25 em si. Na realidade, eles devem agir com uma postura assertiva trazendo propostas concretas para conjugar os interesses envolvidos e, então, pôr fim ao litigio. Todavia, é importante diferenciá-las de modo que a mediação é uma forma de solução de conflitos na qual uma terceira pessoa, neutra e imparcial, facilita o diálogo entre as partes, para que elas construam, com autonomia e solidariedade, a melhor solução para o problema. Em regra, ela é utilizada em conflitos multidimensionais, ou complexos por ser um procedimento estruturado, assim não tendo um prazo definido e podendo terminar ou não em acordo, pois as partes têm autonomia para buscar soluções que compatibilizem seus interesses e necessidades. Por outro lado, a conciliação strictu sensu é um método utilizado em conflitos mais simples, ou restritos, no qual o terceiro facilitador pode adotar uma posição mais ativa, porém neutra em relação ao conflito. É, portanto, um processo consensual breve, que busca uma efetiva harmonização social e a restauração, dentro dos limites possíveis, da relação social das partes26. O exercício da jurisdição, como atividade substitutiva do Estado, resolve a disputa, o litígio, porém não consegue eliminar por completo o conflito subjetivo entre as partes, isto é, as respectivas mágoas, a animosidade ou o ressentimento entre as partes. Assim, há sempre vencedor e vencido, nos termos da lei que ali foi aplicada. Por outro lado, tem-se a conciliação que, em conceito amplo, por assim dizer, deve ser percebida como um meio para se alcançar uma sociedade mais fraterna à luz de seu caráter autocompositivo. Portanto, na linha do já exposto, tem-se a função precípua de demonstrar que a conciliação, de maneira geral, ainda representa uma possível concretização do princípio da fraternidade na medida em que busca o apaziguamento social, a construção de uma sociedade dialógica e o abrandamento da cultura de litigiosidade.

4. A EXPERIÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL DA 1ª REGIÃO Após a reflexão teórica exposta, com o intuito de conferir uma expressão mínima de empiria a este trabalho, é preciso analisar como tais postulações DIDIER, Freddie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17ª edição. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 275 26 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Mediação e Conciliação, qual a diferença? Brasília: CNJ, 2016. 25

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teóricas são aplicáveis na prática. Para tanto, o breve relato da experiência da Justiça Federal da 1ª Região demonstra um exemplo memorável no âmbito da conciliação. O Judiciário percebeu a necessidade de estimular e contribuir para a consolidação da cultura da conciliação no meio da sociedade civil, como forma efetiva de pacificação social e de tornar excepcional a via judicial. São, atualmente, mais de 92 milhões de processos em tramitação no Brasil, sendo mais de 11 milhões nos órgãos da Justiça Federal. A partir de 2002, os Juízes Federais de primeiro grau passaram a desenvolver iniciativas na perspectiva da conciliação, especialmente nos processos do Sistema Financeiro da Habitação (financiamento da casa própria). Contaram com o decisivo apoio da Empresa Gestora de Ativos – EMGEA e da Caixa Econômica Federal Os resultados alcançados especialmente em Minas Gerais, no Pará, no Maranhão e no Distrito Federal foram extremamente positivos e estimularam a reflexão do Tribunal para a sistematização de um projeto maior de conciliação Em maio de 2005, a Presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região editou a Resolução n. 100-14, de 25/05/2005, autorizando a sistematização e implantação de um projeto de conciliação na Primeira Região, inclusive quanto aos processos em grau de recurso, nos quais se discutem contratos de mútuo vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação. No ano seguinte (2006), a então Presidente, hoje Ministra Assusete Magalhães, elegeu como uma das prioridades de sua administração a efetiva implantação da cultura da conciliação na Primeira Região, obtendo resultados impressionantes (mais de 70% de acordos, com a ajuda de mais de 100 magistrados voluntários). Sua Excelência ampliou, ainda, o projeto, enveredando pela área previdenciária, em parceria com o INSS (Resolução PRESI n. 600-04, de 06/03/2008). Assim, quando a eminente Ministra Ellen Gracie, então Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, lançou, em 2006, o Movimento Nacional pela Conciliação, o TRF da 1ª Região tornou-se, de imediato, parceiro do Conselho Nacional de Justiça, colaborando muito para a consolidação da cultura da conciliação no país. Apenas para ilustrar, no período 2010/2014 (junho), a Primeira Região homologou mais de 420 mil acordos cíveis, o que alcançou mais de dois milhões de pessoas, se considerarmos a média da família brasileira (5 membros). Na última semana do mês de março/2013, 50 novos Juízes Federais implementaram em dois dias, como parte do seu curso de treinamento e formação, 1.000 audiências agendadas. No último mutirão dos JEFs do Maranhão (maio/2014 – São Luís - 2 semanas) foram realizadas cerca de 8.000 audiências e mais de 5.000 acordos previdenciários, nota-se assim que a conciliação permitiu ainda, em não raras vezes, o desenvolvimento social e a resolução dos conflitos de forma mais humana. É importante registar ainda, a propósito, que, a partir de 2006, o Conselho Nacional de Justiça instituiu o Movimento Nacional de Conciliação e, nessa linha de ação, estabeleceu uma simbologia importante: uma vez ao ano, todo o Judiciário realiza, em conjunto, uma Semana Nacional 260 BOOK.indb 260

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de Conciliação. Para a Primeira Região, que venceu três prêmios nacionais “Conciliar é legal”, os resultados foram extraordinários. Foram alcançados no período de 2006/2013 (uma semana anual) mais de 41 mil acordos e cerca de 500.000.000, 00 (quinhentos milhões de reais) em valores negociados.Tal movimento em prol da conciliação é tão forte que, hoje, já se fala em conciliação até mesmo pré-processual, isso tudo à vista de melhor solucionar os litígios e anseios dos jurisdicionados, dar maior celeridade aos julgamentos e permitir um maior filtro para se chegar ao Judiciário preferindo, antes, o diálogo e as variadas formas alternativas de resolução de disputa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante o exposto, conclui-se pela necessidade de se consolidar uma nova cultura no Poder Judiciário e na própria sociedade: uma cultura dialógica e fraterna. Isso é extremamente relevante no que diz respeito aos conflitos interpessoais, pois pode influir no aumento da solução desses fora do âmbito judicial. A despeito disso, é importante ressaltar que existem conflitos que devem, de fato, ser resolvidos na via judicial. No entanto, o meio judicial costuma gerar, na maioria dos casos, uma alta carga de insatisfação, tendo em vista que propaga um vencedor e um vencido, porém um tremendo estresse para ambos. Outrossim, gera um desgaste muito grande do próprio Estado-jurisdição, pois o incha de demandas e, ao fim, leva à prestação jurisdicional insuficiente por parte do Estado, porque não consegue, no mais das vezes, extinguir com celeridade e qualidade as diversas lides. Desse modo, é sempre necessário relembrar que “criticar o que é naturalizado é, gradualmente, alterar as bases que moldam nossa realidade e, assim, construir um novo contexto27”. Para isso, os métodos alternativos de resolução de disputa aparecem como uma importante saída para além do velho dogma que enche o Judiciário de demandas: “o juiz deve decidir e a única decisão válida emana dele”. Nessa linha, a conciliação lato sensu evidencia uma tentativa de se mudar essa realidade de explosão de litigância para concretizar o mandamento do Poder Constituinte de que devemos buscar a solução pacífica de controvérsias por meio da construção de uma sociedade fraterna e solidária, ainda resolvendo o processo de forma satisfatória e célere. A partir do já elucidado, cabe relembrar que o jus humanismo normativo serve de base fundamental para a reintrodução da fraternidade no imaginário jurídico. A partir desse adensamento teórico, é possível buscar um Direito mais humano e preocupado com os anseios da população que o busca para solucionar seus mais diversos conflitos. A fraternidade, da mesma forma, figura como uma importante categoria político-jurídica especialmente no que diz respeito à vivência em comunidade, apesar de esquecida, caso comparada com FONSECA, Gabriel C. Soares da. O Dilema da Última Palavra: Cortes Constitucionais, Democracia e Deliberação. Juiz de Fora: Periódico Alethes – UFJF, v. 06, n. 12, set/dez, 2016. p. 328

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os outros dois membros da tríade – liberdade e igualdade. Urge-se, então, a reintrodução deste importante princípio no debate constitucional para fins de um constitucionalismo que ultrapasse as amarras meramente liberais ou sociais. A partir de sua previsão em inúmeros ordenamentos nacionais e internacionais, bem como aceitação doutrinária e jurisprudencial, a fraternidade figura como um importante valor constitucional a ser alcançado. Portanto, a conciliação deve ser enxergada a partir do princípio constitucional da fraternidade e de um viés humanista do Direito, porém, concomitantemente, necessita ser vista como um instrumento que possa concretizá-los à luz da busca pelo apaziguamento social, do fim da cultura de litigiosidade e da construção de uma cultura pautada no diálogo.

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O ACIDENTE ECOLÓGICO OCORRIDO EM AGOSTO DE 1998 NO COMPLEXO PORTUÁRIO DA CIDADE DE RIO GRANDE COM O AFUNDAMENTO DO NAVIO MALTÊS “BAHAMAS”

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Ricardo Nüske1

INTRODUÇÃO No presente artigo buscamos registrar um caso realmente complexo trazido a Justiça Federal em 12 de setembro de 1998 pelo Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul tendo em vista o acidente ecológico de grandes proporções verificado a partir do afundamento do navio-tanque “BAHAMAS”, ocorrido no canal que liga a Lagoa dos Patos ao Oceano Atlântico, no cais do Porto Novo do complexo portuário da cidade de Rio Grande, no sul do Brasil. O navio “ BAHAMAS “, à época do acidente que levou ao seu afundamento nas águas da Lagoa dos Patos, estava carregado com 12 mil toneladas de acido sulfúrico para descarga nas industrias de adubo em Rio Grande. Com pedido para cessação do lançamento da mistura ácida, contida nos tanques do navio “Bahamas”, nas águas da Lagos dos Patos, iniciada em 02 de setembro de 1998, foi deferida medida liminar em ação cautelar para fosse cessado o bombeamento da mistura ácida, para as águas do canal de acesso ao Porto Novo com o objetivo de minimizar as graves conseqüências ecológicas geradas pelo bombeamento do ácido. Com a determinação judicial para cessação do lançamento do ácido sulfúrico nas águas do canal de acesso do Porto Novo várias providencias foram adotadas buscando uma solução menos gravosa ao meio ambiente, já que havia noticias (mais tarde confirmada) da presença de metais como chumbo, cromo, ferro, níquel e zinco na mistura ácida, fora dos limites da Resolução do CONAMA de 23 de setembro de 1998. 1

Juiz Federal; Lotação: 13ª Vara Federal de Porto Alegre, Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com especialização em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul; e-mail: ricardonuske@ trf4.jus.br

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Para viabilizar o descarte da mistura ácida que estava no navio “ BAHAMAS“, após inúmeras outras tentativas, foi requisitado judicialmente o navio-tanque panamenho “YEROS” que estava no Porto de Rio Grande para descarga de ácido sulfúrico nas industrias de adubo da cidade. Após tumultuado bombeamento da mistura ácida para os tanques do navio “YEROS”, a mistura passou a ser transportada e descartada (por meio de navio de alivio) em área do mar internacional, onde comprovadamente as conseqüências para o meio ambiente seriam bem mais reduzidas (a área definida para o descarte da mistura liquida, por orientação dos técnicos em oceanografia, foi numa região com película de água de 3.000 metros de profundidade desprovida de vida marinha ). Destaca-se que todas as medidas observaram a Convenção Internacional sobre Prevenção da Poluição Marinha por Alijamento de Resíduos e outros matérias de 1972), com acompanhamento da Capitania dos Portos e Costas e Policia Federal e órgãos ambientais. Com o descarte da mistura ácida no mar internacional mediante a realização de inúmeras viagens utilizando o navio tanque “Yeros” foi possível agilizar a retirada do casco do navio “BAHAMAS” e minimizar as conseqüências ecológicas decorrentes do lançamento da mistura ácida nas águas da Lagoa dos Patos, no sul do Brasil. No caso concreto, a grande preocupação era a possibilidade de dano ambiental, decorrente do lançamento dos resíduos de ácido no canal de acesso a Lagoa dos Patos, que provocaria serio comprometimento da cadeia alimentar existente na região da Lagoa dos Patos. Os fatos apresentados no presente artigo ocorreram ao tempo em que estive exercendo a jurisdição na 1ª Vara Federal de Rio Grande ( até o final descarte da mistura ácida contida no navio-tanque no mar internacional ) mostram as dimensões que podem envolver as questões ambientais e em que extremos medidas preventivas/protetivas do meio ambiente precisam ser adotadas no sistema portuário para evitar graves riscos ambientais.

1. OS FATOS QUE LEVARAM AO AJUIZAMENTO DA AÇÃO CAUTELAR INOMINADA E DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Em 31 de agosto de 1998, no canal que liga a Lagoa dos Patos ao Oceano Atlântico, no cais do Porto Novo do Complexo Portuário da cidade de Rio Grande, no sul do Brasil ocorreu acidente ecológico de grandes proporções, com o afundamento do navio-tanque maltes “BAHAMAS”, que à época transportava uma carga de 12 mil toneladas de ácido sulfúrico que seria descarregada nas indústrias de adubo da cidade. 266 BOOK.indb 266

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Com o afundamento do navio “BAHAMAS” no cais do Porto Novo as águas da Lagoa dos Patos imediatamente invadiram a casa de máquinas do navio e os tanques com a carga de ácido sulfúrico, provocando intensa reação química com a produção de mistura liquida altamente corrosiva. Referida mistura passou imediatamente a corroer o metal dos tanques e do casco do navio. Com o acidente ocorrido foi celebrado o “Termo de Aceitação de Decisão dos Órgãos Ambientais” onde os participantes anuíram em lançar a mistura acida contida nos tanques do navio BAHAMAS nas águas do canal que liga a Lagoa dos Patos ao Oceano Atlântico. Paralelamente a preocupação com a presença da mistura corrosiva no interior do navio BAHAMAS, as Autoridades ambientais buscavam retirar mais de 100 toneladas de óleo combustível que existia no navio ao tempo da sua chegada ao Porto Novo de Rio Grande. Com a possibilidade de rachamento do casco do navio este óleo se espalharia pelas águas da Lagoa dos Patos causando dano ambiental ainda maior. Dias após o afundamento do navio a mistura ácida contida no interior do navio passou a ser bombeada para as águas do canal de acesso ao Porto Novo em Rio Grande. Em 4 de setembro de 1998 a imprensa ja registrava que: ( .... ) a decisão de bombear as 12 mil toneladas de ácido misturado com água foi tomado com base no risco iminente de rachadura do casco do navio, devido na baixa concentração do ácido sulfúrico, que o torna altamente corrosivo, o que iria gerar um desastre ecológico de maiores proporções...” ( Jornal da Cidade....( Jornal AGORA de Rio Grande; 4.09.1998, p. 3 )

Na mesma matéria era registrada a preocupação dos ambientalistas com as conseqüências do lançamento da mistura ácida nas águas da Lagoa dos Patos, com a contaminação da cadeia alimentar. Neste sentido os técnicos da Fundação Universidade de Rio Grande assim se manifestava ( .... ) já o chefe do Departamento de Química da FURG ( Universidade de Rio Grande ), Henrique Bernardelli, disse que nesta área “ vai haver um impacto muito grande, apesar das ações visarem minimizar os danos”. “ As condições do meio serão alteradas, inviabilizando a vida no local” frisou Bernardelli. Há ambientalistas que acreditam que esta ação vai inviabilizar a pesca na Lagoa dos Patos por 10 anos....( Jornal AGORA de Rio Grande, 4.09.1998, p. 3 )

O bombeamento do liquido corrosivo para as águas do canal de acesso gerava grandes preocupações em toda região do Porto de Rio Grande sendo destacado pela imprensa o que acontecia na cidade naquele momento. ( ... ) o bombeamento é controlado com o monitoramento constante do pH da água do canal ( área de encontro do mar com a Lagoa ) desde o Porto Novo até o Terminal da Trevo, e que a

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operação só tem continuidade enquanto o pH esta normal. O controle é feito pelo técnicos da FURG e da Fertisul. Até o inicio da tarde, segundo os técnicos a corrente era vazante e favorecia a diluição progressiva do ácido sulfúrico com água. . Por volta das 14 horas o vento mudou e diminuiu bastante a velocidade da corrente . O pH da água chegou a 2,4 e o bombeamento foi interrompido temporariamente. ( ...) “ existe um plano de auxilio mutuo entre o porto e todos os terminais da área, através do qual um supre as necessidade dos outros em termos de equipamentos. Mas este fato é inédito e nas proporções em que ocorreu não há outra alternativa” afirmou Ronaldo Morgado da Defesa Civil. A Barra do Rio Grande permanece fechada para a entrada e saída de navios. Na tarde de ontem, nove navios estavam atracados forra da Barra, impedidos de entrar. Os bombeiros permanecem no porto como diversos policiais civis e militares. O clima é de tensão até nos terminais próximos. .... ( Jornal AGORA de Rio Grande; 4.09.1998, p 3 )

Ainda sobre a questão do bombeamento da mistura ácida contida no interior do navio “BAHAMAS” o oceanógrafo Antonio Libório Philomena assim se manifestou na imprensa: (... ) Não considero correta a medida adotada. Isto deveria ter sido feito em mar aberto – avaliou ontem o Professor da Fundação Universidade de Rio Grande ( FURG ) oceanógrafo Antonio Libório Philomena. De acordo com Philomena, que tem doutorado em Ecologia nos Estados Unidos, as 12 mil toneladas de ácido deveria ser despejada aos poucos, no prazo mínimo de ano, para evitar maiores riscos ao ambiente marinho. Mas Philomena reconhece que o porto teria de dispor de um outro navio-tanque e de bombas para realizar a transferência do ácido. A falta de equipamentos adequados também impediu o bombeamento para caminhões-tanque. O oceanógrafo ressalta ainda que o ácido em contato com a água poderá matar todos os seres vivos - peixes, , moluscos, algas e caranguejos – existentes no canal. Os danos ambientais podem durar quatro meses e, conforme Philomena, atingem também o solo no fundo do canal ja que o ácido libera enxofre, um produto tóxico. Ele não descarta a necessidade de, no futuro, ser necessária uma dragagem no local para remover o solo contaminado.... ( Jornal ZERO HORA;4.09.1998;p 4 )

Dentro deste contexto o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, em 12 de setembro de 1998, ajuizaram ação cautelar inominada requerendo a imediata sustação do bombeamento da mistura acida que se encontrava nos tanques do navio Bahamas para as águas da Lagoa dos Patos e seu descarte de forma a minimizar os danos ao meio ambiente com prosseguimento da retirada de mais de 100 toneladas de óleo lubrificante do navio, que havia afundado no cais do porto novo do Complexo Portuário de Rio Grande. 268 BOOK.indb 268

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2. A CESSAÇÃO DO BOMBEAMENTO DA MISTURA CORROSIVA DOS TANQUES DO NAVIO “BAHAMAS” PARA AS ÁGUAS DO COMPLEXO PORTUÁRIO DE RIO GRANDE Em 13 de setembro de 1998 foi proferida decisão da Ação Cautelar Inominada, ajuizada pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, determinando a cessação do bombeamento da mistura ácida contidas nos tanques do navio Bahamas para as águas do canal de acesso ao Porto de Rio Grande.Ao tempo da publicação da decisão ficou pendente o pedido de retirada da mistura ácida do navio Bahamas de forma a causar os menores danos possíveis ao meio ambiente. Na mesma decisão foi mantida a retirada dos mais de 100.000 litros de óleo combustível que ainda se encontravam no interior do cargueiro. O momento em que foi determinada a sustação do bombeamento da mistura ácida, contida no interior do navio, já restava configurada a ocorrência de dano ecológico de enormes proporções com total falta de meios para adoção de solução que minimizasse a ocorrência de danos ao meio ambiente.A situação vivida naquele momento foi muito bem sintetizada na imprensa enfatizando que: “Os técnicos da Fundação Universidade de Rio Grande haviam solicitado na sexta-feira a suspensão do processo (de bombeamento do ácido). O professor Luis Felipe Nencheski diz que a proposta levou em conta o fato de que os riscos de explosão da embarcação estarem controlados. A Universidade sugeriu em documento assinado pelo chefe do Departamento de Química, Henrique Bernardelli, que houvesse ainda avaliação das condições estruturais do navio e o transbordo do produto para outro cargueiro. Houve tentativa de colocar o ácido no navio Araucária (que chegou a Rio Grande para descarregar ácido sulfúrico , mas o armador negou-se a autorizar sob argumento de que os tanques do cargueiro poderiam ficar danificados.” ( Jornal FOLHA DA CIDADE de Rio Grande, 15.09.1998, p 7 )

Na mesma noticia, tratando da questão do descarte da mistura ácida para o mar internacional, foi registrado que: “A legislação internacional estabelece que em caso de acidentes como o que ocorreu com o BAHAMAS é possível as embarcações lançar o produto a uma velocidade de 7 nós, profundidade de 25 metros e descarga de 20 metros cúbicos por segundo. Nenchelski lembra que o ácido Sulfúrico se dilui na água e não é tóxico. Além disso, o pH da água em alto mar é de 8,2 e há carbonato e bicarbonato o que ameniza os efeitos do produto na água.” ( Jornal FOLHA DA CIDADE de Rio Grande, 15.09.1998, p 7 )

Por fim o mesmo jornal apresenta um registro dos professores da FURG ( (Universidade de Rio Grande ) no sentido da existência de enormes dificuldades para o descarte da mistura ácida em alto mar, enfatizando que: 269 BOOK.indb 269

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“o laudo do casco (do Bahamas) indicaria as condições da estrutura. Se forem precárias, há necessidade mais imediata de remoção do produto. O BAHAMAS não deve flutuar pois há risco de rachar o casco. Se fosse aceito pelo armador o Araucária faria de quatro a cinco viagem para levar o produto ao mar. O total de liquido (ácido misturado com água) seria de 75 mil toneladas. Pelas avaliações da Universidade o ácido sulfúrico representa apenas 18% da solução que esta nos tanques do navio...” ( Jornal FOLHA DA CIDADE de Rio Grande, 15.09.1998, p 7 )

A situação evidenciava a necessidade de uma rápida solução para retirada da mistura ácida dos tanques do navio-tanque “BAHAMAS”, mediante transbordo da mistura ácida para outro navio tanque que promoveria o descarte no mar internacional, observando as regras de proteção ambiental. Para efetivação das medidas foi nomeado um corpo de peritos, com especialização em química e na área marítima, determinado-se um monitoramento técnico continuo da situação da mistura ácida contida no navio “BAHAMAS “ e especialmente das condições das águas do canal de acesso da Lagoa dos Patos ao Oceano Atlântico.

3. A COMPROVAÇÃO DA PRESENÇA DE METAIS PESADOS NA MISTURA ÁCIDA CONTIDA NOS TANQUES DO NAVIO “BAHAMAS” Enquanto eram encaminhadas as providencias para a viabilização do descarte da mistura ácida contida nos tanques do navio “BAHAMAS” para o mar internacional surgiram as primeiras noticias da presença de metais e metais pesados além dos limites máximos estabelecidos pela Resolução 20/86 Conselho Nacional do Meio Ambiente -CONAMA. A noticia da presença de metais pesados na mistura ácida foi trazida pelo Laboratório de Hidroquimica da Fundação Universidade de Rio Grande e restou enfatizada pela imprensa informando que: “a mistura acida do navio BAHAMAS bombeada para o canal de Rio Grande continha metais pesados. A informação foi dada por técnicos do Laboratório de Hidroquimica da FURG em depoimento da Procuradoria da Republica...” ( Jornal AGORA de Rio Grande, 18.09.1998, p 3 )

Ademias, descrevendo a informação foi apresentado que: “os técnicos da FURG analisaram uma amostra colhida na saída da bomba, no dia 11 de setembro, e encontraram na mistura ácida percentuais elevados de metais, originários do processo de corrosão dos tanques do navio, sobressaindo-se ferro, cromo, zinco, alumínio, chumbo, cobre e cádmio. Segundo os pesquisadores da FURG Luis Felipe Niencheski e Maria da Graça Baumgarten as concentrações de ferro, cromo chumbo e zinco estão em desacordo com os limites

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máximos estabelecidos pelo CONAMA /1986. Além disso o chumbo e o cromo são altamente tóxicos para os organismos mesmo em baixas concentrações no ambiente porque podem ser bioacumuláveis e transferidos ao longo da cadeia trófica.” ( Jornal AGORA de Rio Grande, 18.09.1998, p 3 )

No final o registro de que: “Com a mistura ácida lançada no canal com ferro foi 169 vezes maior do permitido pelo CONAMA. Quanto a quantidade de cromo, foi 97,71 vezes mais do que o permitido. A analise da presença de mercúrio ainda não foi concluída. Os técnicos da FURG ressaltaram a urgente necessidade de que sejam avaliadas as consequências do despejo desta carga de metais no canal. Alertam que devem ser feitas analises na água, nos sedimentos e nas principais espécies comercializáveis na região afetada pelo acidente do BAHAMAS”. ( Jornal AGORA de Rio Grande; 18.09.1998; p. 3 )

Com a noticia da existência de altos níveis de metais pesados no liquido contido nos taques do navio foi imediatamente suspensa a hipótese de transbordo da mistura ácida para descarte no mar internacional até que fosse feita nova apuração da composição da mistura. A hipótese de descarte da mistura ácida em mar internacional ficaria prejudicada em caso de confirmação dos altos níveis de metais pesados. Tal medida exigiria o perfeito conhecimento da composição da mistura. Se confirmada a presença de metais pesados, em alta concentração, o descarte no mar internacional exigiria um tratamento prévio da mistura acida. Naquele momento tínhamos ainda outros dois aspectos importantes. O primeiro era saber de onde surgia a alta concentração de chumbo, já que o casco de navios não apresenta este metal em sua composição ( aqui a duvida se havia no navio outro tipo de carga não comunicado as autoridades ) e, também, saber se havia ou não a presença de mercúrio na composição do líquido contido no interior do navio, totalizando, aproximadamente, 75 mil metros cúbicos. Sobre a presença de metais pesados na composição da mistura ácida produzida com o afundamento do navio-tanque “BAHAMAS” foi importante a manifestação dos técnicos da FURG na imprensa enfatizando que ( ... ) de acordo com os professores Luis Felipe Niencheskie Maria da Graça Baumgarten, houve intensa contaminação de metais na mistura ácida durante o acidente causando processo de corrosão dos tanques do cargueiro. As concentrações de ferro, cromo, chumbo, e de zinco na mistura ácida lançada no estuário estão em desacordo com as concentrações consideradas como limites máximos recomendadas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente ( CONAMA )para o lançamento direto ou indireto de fontes poluidoras nos recursos hídricos. “ O chumbo e o cromo são altamente tóxicos e podem ser transferidos para a cadeia alimentar marinha” dizem os pesquisadores. O mercúrio também foi encontrado mas ainda esta sendo analisado.

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Há recomendação de análises na água, nos sedimentos e nas principais espécies comerciáveis da região afetada pelo acidente com o BAHAMAS. O risco de contaminação não atinge apenas o canal, mas toda a região para onde se dirigem as espécies que passam pelo local. ( Jornal FOLHA DA CIDADE de Rio Grande, 18.09.1998, P 3 )

Foi lembrado ainda pela Promotora de Defesa Comunitária que ( .... ) A legislação impede o lançamento de materiais na água que provoquem e redução do pH para menos de 5. De acordo com a promotora de Defesa Comunitária Miriam Balestro o índice logo no inicio do bombeamento do ácido sulfúrico chegou a 1,5. Para ela não há duvida de que ocorreu crime ambiental. “ ( Jornal FOLHA DA CIDADE de Rio Grande, 18.09.1998, p 3 )

Por fim, importante registrar, quanto a concentração dos metais na mistura ácida contida no interior do navio BAHAMAS é que “o despejo da mistura em alto mar está previsto no plano apresentado pela empresa de salvatagem Smit Tak ( Holandesa ) para retirada das quase quatro mil toneladas de produto ainda existentes na embarcação, através do transbordo para o navio tanque apropriado. No parecer entregue ao Juiz, Eduardo Torres, disse que deve ser verificado ainda o motivo da concentração de ácido sulfúrico estar diminuindo se é por causa da reação do ácido com metais ou por efeito da entrada de água no navio.” ( Jornal AGORA de Rio Grande, 18.09.1998; p 3 )

Certo é que a mistura ácida contida no navio ”BAHAMAS” estava vazando para o canal da Lagoa dos Patos. A questão estava em saber em que níveis ocorria o vazamento. Com o monitoramento da mistura acida ainda existente no interior dos tanques do navio “BAHAMAS” e redução dos níveis dos metais presentes do liquido, foi retomado o procedimento para efetivação do descarte da mistura no mar internacional. Foi determinado às empresas responsáveis pelo cargueiro que apresentassem, no prazo de 48 horas, o navio-tanque “ de alivio “ para efetivação descarte sob pena de aplicação de pena pecuniária diária de 5 milhões de reais. A multa levava em consideração o preço que um navio tanque cobraria para fazer o descarte da mistura no mar internacional, com as responsabilidades inerentes ao procedimento.

4. A NECESSIDADE DE UM NAVIO DE ALIVIO E A REQUISIÇÃO JUDICIAL DO NAVIO-TANQUE PANAMENHO “YEROS” Em que pese as diversas tentativas adotadas para contratação de um navio tanque para promover o descarte da mistura ácida em águas internacionai, até 19.10.1998 a empresa Chemoil International, companhia suíça responsável 272 BOOK.indb 272

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pelo navio “BAHAMAS” e a seguradora inglesa Liverpool & London, ainda não haviam definido a contratação do navio tanque para fazer a retirada da mistura ácida que se encontrava no interior do navio Bahamas. Na ocasião estava no Porto de Rio Grande o navio-tanque panamenho “YEROS” que descarregava uma carga de ácido sulfúrico nas fabricas de adubo que operam na cidade. O navio “YEROS” era o terceiro navio-tanque que atracava no porto de Rio Grande com negativa de contratação para retirada da mistura ácida contida no navio “Bahamas”. Diante das circunstancias, as empresas responsáveis pelo navio “BAHAMAS” pediram a prorrogação do prazo para contratação de um navio tanque e fazer a retirada do acido, até 15 de outubro de 1998. O pedido foi negado sob fundamento de que a carga do navio “Bahamas” estava vazando para as águas da Lagoa dos Patos comprometendo o meio ambiente. Diante da indefinição de solução para o problema ambiental criado com o afundamento do navio-tanque “BAHAMAS”, em 22.10.1998, a pedido da Procuradoria da Republica e da Promotoria da Defesa Comunitária do RS, foi ajuizada Ação Civil Publica com pedido de proibição de saída do navio-tanque “ YEROS” do Porto de Rio Grande e a requisição do navio para o descarte da mistura ácida em alto mar. O pedido foi deferido. Relativamente a medida judicial que requisitou o navio tanque YEROS para retirada da mistura ácida que se encontrava no navio BAHAMAS, foi registrado pelo jornal Correio do Povo de Porto Alegre que “o juiz da 1ª Vara Federal de Rio Grande, Ricardo Nüske, requisitou judicialmente ontem o navio–tanque panamenho YEROS, que chegou domingo a Rio Grande, para retirada do acido sulfúrico ainda existente no BAHAMAS. A transferência das 6 mil toneladas de mistura ácida e água poderá começar neste fim de semana. Ontem o navio YEROS seguiu para o mar para lavar os tanques. A limpeza deverá durar dois dias. Ao retornar o cargueiro poderá começar a receber o ácido. A expectativa é de que a operação coloque fim ao impasse do Bahamas atracado desde 25 de agosto no Porto Novo. Nüske requisitou o YEROS alegando ser essa a ultima alternativa para cumprir a determinação de lançar o produto tóxico em alto-mar.” (Jornal Correio do Povo de Porto Alegre; 23.10.1998; p 42).

Dentro do procedimento de requisição do navio-tanque “ YEROS “ destacou-se a necessidade do navio voltar ao mar depois da descarga da carga de ácido sulfúrico nas empresas de adubos em Rio Grande, por um período de dois dias, para lavagem dos seus tanques. Considerando que o navio-tanque já havia sido requisitado judicialmente, a saída do navio foi autorizada com acompanhamento da Policia Federal. O retorno do navio após a lavagem dos tanques ainda foi retardado em razão do navio ter enfrentado enfrentado violento temporal em alto mar, inclusive com avarias que tiveram recuperação operacionalizada no mar. Em 25.10.1998, finalmente, começou o bombeamento da mistura ácida para o navio “YEROS” no porto de Rio Grande. 273 BOOK.indb 273

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5. O DESCARTE DA MISTURA ÁCIDA NO MAR INTERNACIONAL Com a requisição do navio-tanque panamenho “YEROS” para o descarte da mistura ácida contida no interior do navio “BAHAMAS” deferida nos autos da Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul contra a União Federal e outros, várias questões, sobre o procedimento adotado, merecem registro. Dentre os procedimentos merecem destaque 1. A transferência da mistura ácida para o navio “ YEROS “ foi realizada no cais do Porto Novo de Rio Grande por meio de bombas de sucção; 2. A previsão inicial foi de que seria necessária a retirada de 130 mil toneladas de liquido para baixar a concentração de ácido existente no interior do navio “BAHAMAS”. ( Do total de liquido retirado do navio Bahamas deve ser observado que com as sucessivas cargas retiradas do navio a água da Lagoa dos Patos iria manter o nível de liquido que ia sendo retirado ); 3. A previsão inicial é de seriam necessárias 15 viagens do navio “YEROS” para alto-mar; 4. O descarte da mistura liquida foi realizada em local pré definido com auxilio de técnicos da Fundação Universidade de Rio Grande. O local possuía 3.000 metros de profundidade sem a presença de vida marinha; 5. O descarte foi operacionalizado mediante “ permissão especial de alijamento “fornecida pela Capitania dos Portos e Costas em Rio Grande; 6. O descarte da mistura ácida foi custeado pelos responsáveis pelo navio BAHAMAS e deverá durou aproximadamente dois meses; 7. O descarte em alto-mar seguiu as regras estabelecidas pelos tratados internacionais que regulam o descarte de substancias no mar internacional. 8. O descarte da mistura ácida no mar-internacional foi fiscalizado pela Capitania dos Portos e Costas, pela Policia Federal e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis. A transferência da mistura ácida do navio “ BAHAMAS “ para os tanques do navio “ YEROS e seu descarte no mar internacional foi realizada sob forte tensão pelos riscos e responsabilidades daí decorrentes e acompanhada pela Justiça Federal através da 1ª Vara Federal de Rio Grande. A retirada da mistura ácida contida no navio-tanque “BAHAMAS”, que se encontrava no cais do Porto Novo do Complexo Portuário de Rio Grande no sul do Brasil, e seu descarte no mar internacional teve desdobramentos especiais que restaram bem registrados no Jornal do Tribunal Regional Federal de novembro de 1998 enfatizando que “ face a noticiada inviabilidade da utilização do navio “ YEROS “ para iniciar a retirada da mistura ácida do navio “ BAHAMAS “ o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizaram Ação Civil Pública contra a União Federal e outros objetivando que o navio “ YEROS “ fosse impedido de sair do Porto de Rio Grande e, após audiência das partes, fosse requisitado nos termos do artigo 5, inciso XXV, da Constituição Federal para proceder a retirada do ácido ainda contido no navio “ BAHAMAS “

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e proceder o alijamento da mistura no mar internacional nos termos da “ permissão especial de alijamento “ concedida pela Capitania dos Portos e Costas. O pedido de medida liminar foi deferido, com a requisição do navio “ YEROS “ para retirada da mistura ácida ainda existente no navio “ BAHAMAS “por conta e risco das empresas CHEMOIL INTERNATIONAL LTD e sua seguradora LIVERPOOL AND LONDON PROTECTION AND INDEMNITY ASSOCIATION LIMITED sob o fundamento da ocorrência de iminente perigo ecológico por se encontrar a mistura ácida contida no navio “ BAHAMAS “ vazando para o recurso hídrico e para a própria navegação no canal de acesso que liga a Lagoa dos Patos ao Oceano Atlântico e em razão das empresas estrangeiras , responsáveis pelo navio “ BAHAMAS “ se encontrarem na condição de descumpridoras de decisão proferida pela Justiça Brasileira. Nestes termos foi iniciada da mistura ácida ainda contida no navio “ BAHAMAS “ , bem como seu descarte no mar internacional, tornando possível, assim, minimizar as graves conseqüências ecológicas decorrentes do lançamento da mistura ácida nas águas da Lagoa dos Patos. “ ( Jornal do Tribunal Regional Federal da 4 Região; novembro de 1998; p 10 )

6. A RETIRADA DO NAVIO-TANQUE “BAHAMAS” DO PORTO DE RIO GRANDE Com a retirada da mistura ácida do interior do navio BAHAMAS foi possível adotar os procedimentos necessários para retirada do navio que se encontrava no cais do Porto Novo do Complexo Portuário de Rio Grande. Após 7 meses a equipe holandesa de salvatagem conseguiu erguer o navio com auxilio de 28 bóias infláveis. A partir daí o navio “BAHAMAS” foi será retirado do Porto de Rio Grande. Com a retirada da mistura ácida do interior do navio-tanque BAHAMAS e o seu resgate no Porto de Rio Grande prosseguiram os encaminhamentos para aferição dos danos ambientais gerados pela mistura ácida descartada no canal do Porto Novo do Complexo Portuário de Rio Grande

CONCLUSÃO O afundamento do navio-tanque “BAHAMAS” no Porto Novo do complexo portuário da cidade de Rio Grande, no sul do Brasil, com 12 mil toneladas de ácido sulfúrico, com todas as suas implicações processuais e ambientais bem demonstra a complexidade e os riscos decorrentes das atividades comerciais portuárias para o meio ambiente. A adoção de medidas que permitam maior segurança e controle para entrada de embarcações em território brasileiro se impõe. O único controle possível está na prevenção, de modo a impedir que danos ambientais de grande monta venham a se repetir. Estruturas de segurança que possam ser acionadas em caso de graves danos ambientais ficam comprometidas pelos altos custos envolvidos. Com a experiência vivida pelo afundamento do navio-tanque “BAHAMAS” num dos maiores portos brasileiros, e os danos ambientais daí decorrentes certa275 BOOK.indb 275

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mente, entraremos numa nova fase para reavaliação dos sistemas de controle e aperfeiçoamento de medidas que permitam maior agilidade em tais situações. Ficam assim registrados alguns dos principais fatos ocorridos num processo judicial de alta complexidade que tramitou perante a 1ª Vara Federal de Rio Grande a partir de 1988.

REFERÊNCIA - Jornal AGORA de Rio Grande de 4.09.1998; - Jornal ZERO HORA de Porto Alegre de 4.09.1998. - Jornal FOLHA DA CIDADE de Rio Grande de 15.09.1998. - Jornal AGORA de Rio Grande de 18.09.1998 - Jornal FOLHA DA CIDADE de Rio Grande de 18.09.1998 - Jornal CORREIO DO POVO de Porto Alegre de 23.10.1998 - Jornal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região de novembro de 1998

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APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO LIMITAÇÃO AO DIREITO DE PUNIR

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Roberto Carvalho Veloso 1

INTRODUÇÃO Este artigo tem por finalidade a discussão a respeito do princípio da proporcionalidade e sua aplicação no Direito Penal. A justificativa para o estudo se dá a partir da tentativa sempre presente de transformar o Direito Penal na solução de todos os males. A preocupação com a humanidade das penas é talvez o antecedente histórico para o que conhecemos hoje como princípio da proporcionalidade. É inegável o papel do liberalismo no desenvolvimento do princípio, pois a partir das leis escritas foi possível se impor limites claros à atuação estatal. O princípio da proporcionalidade só recentemente atingiu clara expressão nos quadros peculiares do Direito Constitucional. Este é hodiernamente entendido como uma limitação do poder estatal em favor da garantia de integridade física e moral dos seus destinatários, embora, no seu início, tenha sido concebido como produto do moderno Estado de Direito, baseado em uma Constituição escrita, na qual estariam asseguradas as prerrogativas fundamentais do homem. Um precedente histórico das Constituições escritas atuais, comumente apontado, é a Magna Carta de 1215, na qual foi estabelecido que “o homem livre não deve ser punido por um delito menor, senão na medida desse delito, e por um grave delito ele deve ser punido de acordo com a gravidade do delito”. Tal dispositivo é, também, o antecedente do Bill of Rights, de 1689. O trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro trata da aplicação do princípio da proporcionalidade no Direito Administrativo. O segundo sobre sua aplicação no Direito Constitucional e o terceiro no Direito Penal. 1

Juiz Federal. Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE). Professor adjunto da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor doutor da UniCeuma. Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

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1. APLICAÇÃO NO DIREITO ADMINISTRATIVO No Direito português, segundo Albuquerque (1993, p. 34), a problemática da proporcionalidade da lei em face da dicotomia lei-privilégio ganhou fundas raízes pela leitura das autoridades do direito comum, passadas então em revista, sem embargo dos textos de referência. A Sumística, por exemplo, ensina que a lei só é justa quanto à forma se impõe os encargos aos súditos em ordem ao bem-comum, conforme a igualdade de proporção. Diz ainda o citado autor que esta influência de Santo Tomás, na Summa Caetana, consigna: “Lex injusta mortale peccatum est, nex meretur lex, vel statutum appellari, sed corruptio legis [...] ut cum mandatur fieri malum aliquod praecipue mortale, ut adorare idolum, et huiusmodi, vel ex forma ut quando est contra justitian distributivam, aggravans in aequaliter súbditos [...]” Foi, porém, na França que se desenvolveu, em primeiro lugar, o princípio da proporcionalidade, uma decorrência do princípio da legalidade. Reporta, nesse sentido, Barros (2003, p. 42), que o artigo 3º da Constituição Francesa de 1791 dispunha que “não há na França autoridade superior à lei e o rei não reina mais senão por ela e só em nome da lei pode exigir obediência.” O controle da legalidade dos atos administrativos se passou a fazer, então, por meio do Consei’l D’État, que exercia um juízo de adequação e proporcionalidade das medidas administrativas restritivas. Canotilho (2008, p. 266) traz excelente referência a esse tema, ao tratar sobre a proporcionalidade como um princípio de proibição de excesso. Com efeito, cita ele que übermassverbot2 foi erigido à dignidade de princípio constitucional (arts. 18.°/2, 19.°/4, 265.° e 266.°/2), “embora tomassem registro que discutido é o seu fundamento constitucional, pois, enquanto alguns autores pretendem derivá-lo do princípio do Estado de Direito, outros acentuam que ele está intimamente conexionado com os direitos fundamentais (Ac TC 364/91, DR, 1, de 23/8 - Caso das inelegibilidades locais)”.

2. APLICAÇÃO NO DIREITO CONSTITUCIONAL Na Alemanha, o princípio da proporcionalidade foi alçado do Direito Administrativo para o Constitucional graças ao trabalho do Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht), apesar de a Constituição de Weimar, de 1919, que representava um documento moderno, ter sido corrompida pelo nacional-socialismo de Hitler. Com a queda do nazismo e entrada em vigor da Lei Fundamental, de 23 de maio de 1949, dá-se, com força e vigor, o desenvolvimento do princípio da proporcionalidade. 2

² Cujo contrário é “untermassverbot”, que significa proibição da proteção deficiente. Analogamente, também pode-se considerar haver íntima relação deste com os direitos fundamentais, uma vez que a lei não excluirá da apreciação do Judiciário nenhuma lesão ao ameaça à direito, de acordo com o art. 5º, XXXV da Constituição da República de 1988. Dessa forma, o princípio da inafastabilidade da jurisdição é um corolário de untermassverbot.

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No Direito Constitucional português, segundo Canotilho (2008, p. 384), o princípio da proporcionalidade tem caráter normativo. Para ele, a Constituição portuguesa, ao exigir o respeito ao princípio da proporcionalidade e limitar-se no que se refere à sua extensão e aos instrumentos utilizados, ao estritamente necessário ao restabelecimento da normalidade, quando da decretação do estado de sítio ou estado de emergência, expressamente reconheceu o caráter normativo do princípio. O princípio da proporcionalidade na América foi desenvolvido mais de meio século antes que na Alemanha, correspondendo ao da razoabilidade, com a consagração, em texto positivo, ocorrendo por meio das Emendas 5ª e 14ª à Constituição Americana. O princípio do devido processo legal, consoante Barroso (2009, p. 225), é marcado, nos Estados Unidos, por duas grandes fases: a primeira, em que se revestiu de caráter estritamente processual (procedural due process), e a segunda, de cunho substantivo (substantive due process), que se tornou o fundamento de um criativo exercício de jurisdição constitucional.

3. APLICAÇÃO NO DIREITO PENAL O Direito Penal não pode servir para a solução de todos os conflitos sociais devendo a intervenção penal restringir-se a casos de lesões graves a bens jurídicos, não solucionáveis por outros ramos do Direito. Essa limitação do Direito Penal se extrai do princípio da proporcionalidade, uma vez que, de fato, através dele ocorrem as mais duras de todas as intromissões estatais na liberdade do cidadão. Estar-se-ia, então, violando a proibição de excesso se o Estado lançasse mão da espada afiada do Direito Penal quando as medidas de política social protegerem, com igual ou até mais eficácia, um certo bem jurídico. Roxin (1997, p. 65) afirma, por exemplo, que as infrações contratuais habituais podem ser compensadas por meio da ação civil e das medidas de execução forçada, inadequado sendo ao Estado intervir, nesses casos, por via do Direito Penal.

3.1. PROPORCIONALIDADE NO DIREITO DE PUNIR NA IDADE MÉDIA Do direito de punir, da Idade Média até o início da Moderna, cuidou a Igreja, os Senhores Feudais e os Governos Absolutos ou Monárquicos, num período em que o Direito Penal era exageradamente cruel, desumano e desproporcional. Nos idos de 476, logo no início do Medievo, o Ocidente, com a queda do Império Romano, passou a sofrer forte influência do Direito Germânico, tanto que o Direito Penal principiou a basear-se nas chamadas “ordálias”. Estas tinham práticas marcadas pelas superstições e a crueldade, sem chances de defesa para os acusados: para provar inocência, deviam caminhar sobre o fogo ou mergulhar em água fervente, poucos escapando, nesse passo, da punição. 279 BOOK.indb 279

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A Igreja, é certo, tentou a humanização das penas por meio da Doutrina Cristã, mas as práticas supersticiosas perduraram por séculos3. No dizer de Marques (2000, p. 29), a reconstrução dos valores humanos, pregada pelo Cristianismo, influenciou diretamente as práticas penais, já que o homem era visto como imagem e semelhança de um Deus único, antípoda do politeísmo. Na verdade, para o homem medieval teocêntrico, não só o poder, mas todas as coisas derivavam de Deus, de modo que o direito de punir, por consequência, não fugia à regra geral dessa espécie de delegação divina. A pena, na Idade Média, por crime ou por pecado, consubstanciava-se na vingança pública, exercida como uma espécie de represália à violação da ordem divina, e tinha como finalidade a penitência, uma forma de salvação da alma para a vida eterna. Ora, quando a Igreja uniu-se ao poder civil, passou a ter influência decisiva nas questões estatais, de sorte que, entre os séculos VIII e XV, o Cristianismo se estabeleceu em toda a Europa Ocidental e o Direito Canônico foi praticamente o único posto em escrito durante quase todo o medievo. A aproximação da Igreja com o poder secular gerou, com efeito, um dos períodos de maior terror já vividos pela humanidade: da Inquisição. Conforme Gonzaga (1993, p. 98), através da Inquisição unem-se mais fortemente os dois poderes e reafirma-se a doutrina política baseada na idéia das ‘duas espadas’: a da Igreja e a do Rei, delegadas, ambas, por Deus, para o exercício da autoridade nas duas esferas, a espiritual e a temporal, com supremacia da primeira. Tanto a Justiça comum quanto a Canônica deviam trabalhar conjugadamente, somando esforços no sentido de manter a fé, a ordem e a moralidade públicas.

3.2. PROPORCIONALIDADE SEGUNDO SANTO AGOSTINHO Na chamada Alta Idade Média, como em todo esse período, o direito de punir sofreu grande influência da filosofia cristã, cuja primeira fase foi marcada pelo pensamento de Santo Agostinho (354-430). Em A Cidade de Deus, pregava Santo Agostinho (1990, p. 426) a retribuição divina, segundo a qual a justiça feita na Terra não significa nada mais que uma parcela mínima da Para Woods Jr., a Igreja contribui valorosamente com a construção do Direito Ocidental. Muitos pressupostos religiosos moldaram institutos normativos, como por exemplo, a suspensão do processo até que o acusado se reestabeleça em casos de insanidade mental posterior ao fato delituoso, uma vez que, segundo o autor (2008, p. 177), “o motivo para essa medida de exceção é totalmente teológica: só se um homem estiver no seu perfeito juízo poderá fazer uma boa confissão, receber o perdão dos seus pecados e ter a esperança de salvar a sua alma”. Pode-se citar também, quanto às provas em juízo, a supressão do julgamento por meio de ordálias de fogo e água (2008, p. 182): “os procedimentos racionais estabelecidos pela lei canônica apressaram o fim desse e de outros métodos igualmente primitivos, em que a inocência e a culpa eram determinadas com demasiada frequência por meios supersticiosos”. O matrimônio, a propriedade, a herança, as circunstâncias atenuantes da responsabilidade penal e a proporcionalidade das penas, como já citado neste livro, também desenvolveram-se a partir do conteúdo do Direito Canônico.

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Justiça Absoluta, mencionando inclusive, o retorno de Cristo, no dia do Juízo Final, quando “aparecerá, então, a autêntica felicidade dos bons e a irrevogável e merecida infelicidade dos maus”. Para Santo Agostinho, cujo pensamento predominou na época medieval, a punição terrena significava uma espécie de penitência que conduzia o pecador ao arrependimento, antes de submeter-se ao Juízo Final. No seu entendimento, existem três tipos de penalidades: a condenação, a purgação e a correção, a primeira atingindo o próprio gênero humano, a partir do pecado original, porque o primeiro culpado foi castigado junto com a posteridade inteira, nele latente. A segunda seria temporária, nesta vida ou na outra, após a morte, enquanto a terceira, a pena corretiva, objetiva à emenda do transgressor. A retribuição penal, a seu ver, deveria ser proporcional ao mal praticado pelo infrator, baseada, tal proposição, não no tempo de duração do crime, mas na sua intensidade. Nesse sentido, Santo Agostinho (1990, p. 502) sublinha que “a medida de que aí se fala não implica de nenhum modo a igualdade de duração entre o crime e o suplício, mas o legítimo rigor das represálias, pois, em outros termos, é preciso que o mal da ação seja expiado pelo mal da pena”. O ideário de Santo Agostinho baseia-se, assim, na idéia de proporcionalidade entre o crime e a intensidade do castigo. A pena possui, em Santo Agostinho, um caráter medicinal. Não procura uma finalidade em si mesma, mas a salvação futura do criminoso, sendo, portanto, um ato de compaixão e caridade. Ademais, defende o filósofo que a pena influenciará positivamente o meio social, fortalecendo a fé dos demais cristãos, o que revela o sentido de prevenção geral e especial do sistema penal por ele preconizado, numa filosofia que, ouça-se, serviu de base para as ações da Inquisição.

3.3. PROPORCIONALIDADE SEGUNDO SANTO TOMÁS DE AQUINO A segunda fase da filosofia cristã da Idade Média foi marcada pela obra de Santo Tomás de Aquino, que considerava que Deus investiu a Autoridade Civil do direito de castigar e, por isso, o exercício de tal direito devia ajustar-se, o máximo possível, à Justiça divina, disto decorrendo a chamada teoria da delegação divina, utilizada, posteriormente, no Absolutismo. A pena, para Santo Tomás, nada mais era que a justa retribuição, segundo o exemplo divino, para a promoção do fim moral, um pensamento que se identifica com a visão medieval segundo a qual é perante Deus que o soberano se responsabiliza pela realização da Justiça. Santo Tomás defendia uma justiça penal retributiva e comutativa, conceito muito difundido na Idade Média. De acordo com esse princípio, deveria haver uma proporção entre a infração e a pena imposta, não se devendo esquecer, contudo, o atributo, à pena, do caráter intimidativo. Com efeito, a lei, para ser obedecida, deve incutir temor, pela ameaça de um mal, fazendo com que os 281 BOOK.indb 281

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homens permaneçam distantes das infrações e se tornem melhores. Para Santo Tomás (1997, p. 59), “o fato de alguém começar a acostumar-se a evitar o mal e praticar o bem por medo da pena é por vezes levado a fazê-lo com deleite e por vontade própria. Eis como a lei, mesmo punindo, conduz os homens a serem bons”. Pregava ele, assim, uma disciplina a ser seguida pelos homens para a vida em sociedade, voltada para o bem, a qual se impunha pelo temor do castigo, à força do poder coercitivo do Estado. Na Summa Teológica, chega Santo Tomás (1980, p. 2540) a defender a pena de morte para aquele que se tornasse perigoso para a comunidade, assinalando ser “louvável e salutar a amputação de um membro gangrenado, causa da corrupção de outros membros.” É que, para ele, cada indivíduo está para a comunidade como a parte para o todo, sendo recomendável, para a conservação do bem comum, “pôr à morte aquele que se tornar perigoso para a comunidade e causa de perdição para ela”.Todavia, na mesma Summa, enfatizava o filósofo que “a justiça humana se conforma com a justiça divina” e citava a Escritura, que dizia “eu não quero a morte do ímpio, mas que se converta e viva”. Santo Agostinho e Santo Tomás sublinham, como se vê, a necessidade do castigo, gerada pelo sentimento de revolta contra todo aquele que se insurgisse contra os preceitos religiosos. Como o homem medieval era guiado quase exclusivamente pela fé cristã, seu maior inimigo era o herege, sobre o qual recaía a vingança, coordenada pelo poder central. Contudo, não se pode deixar de realçar que àquela época crime e pecado andavam juntos, punidos pela mesma lei. Em razão de, na Idade Média, predominar a fé como guia dos homens, vigorava o castigo, aplicado, principalmente, aos hereges, verdadeiros inimigos do homem medieval.

3.4. PROPORCIONALIDADE NO DIREITO DE PUNIR, NA IDADE MODERNA Na Idade Moderna houve, entre os séculos XV e XVIII, uma série de transformações na estrutura da sociedade européia ocidental, devido, principalmente, à transição do feudalismo para o capitalismo. No campo político, deu-se a formação dos Estados Nacionais, com os feudos substituídos pelas monarquias absolutas, de direito divino, cujo apogeu ocorreu sob o reinado de Luís XIV. As célebres frases de Luis XIV, “L’Etat c‘est mo,i” e “Le Juge c‘est moi”, caracterizavam bem a época. Nas mãos dos monarcas absolutos o suplício infligido aos criminosos não tinha por finalidade o restabelecimento da Justiça, mas a reafirmação do poder do soberano, e a pena, sem qualquer proporção com o crime cometido, não possuía nenhum conteúdo jurídico, nem qualquer objetivo de emenda do condenado, pois que sua aplicação tinha, nesse contexto, a função utilitária de intimidação da população por meio do castigo e do sofrimento imposto ao culpado. 282 BOOK.indb 282

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4. PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL ATUAL Atualmente, discute-se na doutrina nacional e na alienígena quais os fins da pena. Para uns, a finalidade deve ser preventiva especial, no sentido de ressocializar o condenado e evitar a reincidência4, pelo cometimento de novos crimes, sendo Von Listz o principal idealizador dessa teoria. Para outros, o fim da pena deve ser o de prevenção geral negativa, na direção de influenciar a comunidade mediante a ameaça de punição a crimes graves, sendo Feuerbach o principal formulador desta corrente (v. cap. 1,7). Finalmente, há os que defendem a prevenção geral positiva, como modelo de uma pena cuja função é garantir a confiança na norma. A teoria da prevenção é entendida, de forma, diferente, por dois autores alemães: Jakobs e Roxin. Jakobs (1997, p. 12) diz que a infração da norma não representa um conflito penalmente relevante em razão de suas conseqüências externas, já que o Direito Penal não pode reparar o dano causado pelo crime. Para ele, a pena não determina a reparação do dano, pois muitas infrações se completam antes mesmo que se produza um dano exterior, como acontece, por exemplo, com os delitos tentados. A função da pena é antes a confirmação da vigência da norma, vigência, aqui, como significado de reconhecimento. Segundo Andrade (1991, p. 115), “a pena há-de, nesta medida, prosseguir um exercício de confiança na norma”. Jakobs (1997, p. 13) procura, a seu termo, construir um novo sistema dogmático jurídico-penal a partir da teoria sociológica de Luhmann (1980, p. 37), que diz que no desenvolvimento das mais modernas teorias sociológicas, às quais se deve também ligar a sociologia do direito, conceito como os de ação, situação ou relação parecem estar assimilados ao conceito de sistema social e desta forma integrados na teoria. O procedimento também pode ser compreendido como um sistema social de ação, de tipo especial.

Jakobs (1997, p. 13) encara o Direito Penal como um sistema específico de que se espera a estabilização social, a orientação da ação e a institucionalização das expectativas, pela via da restauração da confiança na vigência das normas. Observa-se, assim, que em Jakobs (1997, p. 46) há uma mudança no sentido da proteção do Direito Penal, o qual deixa de se centrar no bem jurídico para dar lugar ao estabelecimento da norma. Explica ele que o que causa a lesão de um bem jurídico não é a provocação de uma morte, mas a oposição à norma correspondente ao tipo penal de homicídio. Conforme o autor, o bem jurídico, nos delitos contra o patrimônio, não é a coisa alheia ou a relação do proprietário com a coisa, mas a validade do conteúdo da norma que protege o patrimônio. 4

Para uma análise crítica sobre a função ressocializadora da pena, ver O mito da função ressocializadora da pena: a intervenção do sistema penal como fator de estigmatização do indivíduo criminalizado, de Cláudio Luiz Frazão Ribeiro.

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Tem, portanto, a pena, nessa concepção, uma função educativa, a de formar a consciência ética e valorativa da sociedade, por isso que a prevenção positiva dirige-se a todos os cidadãos e não apenas aos delinqüentes potenciais. Tal finalidade, contudo, não afasta, consoante a lição de Jakobs (1997, p. 26), o efeito secundário da pena perante terceiros, pelo medo de sua imposição ante uma transgressão. Em outras palavras, não se afastam os efeitos da chamada prevenção geral negativa, que atua pela intimidação. Nesse sentido, o meio pelo qual se pretende alcançar a prevenção geral, segundo Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 95), é o exemplo, pois, seguindo essa via, se chegará à repressão intimidatória e, por último, à vingança. É que, quando se elege o caminho da prevenção geral, o passo diferenciado da repressão exemplar à vingança é muito sutil e difícil de identificar. É esta, aliás, a crítica de que a proposição de Jakobs não possui limites liberais materiais à intervenção penal. A fim de minimizar os efeitos de uma teoria normativista levada às últimas conseqüências, surgiu a teoria da prevenção geral positiva limitadora, com o objetivo de restringir a intervenção penal do Estado, sem afastar os efeitos, já referidos, da prevenção fundamentadora. Com efeito, para Roxin (1997, p. 99), um elemento decisivo da teoria retribucionista deve integrar a teoria da prevenção, que é o princípio da culpabilidade como meio de limitação da pena. O interesse de o Estado aplicar a pena tem como contraponto o direito à liberdade do acusado, o qual se deve submeter às exigências estatais, mas nunca ao seu arbítrio, ampliando sua função preventiva no âmbito penal além dos limites da reprovabilidade da conduta do infrator, sob pena de ofender a dignidade humana. De fato, o indivíduo não pode servir de meio para a prevenção geral, dirigida a terceiros, respondendo além de sua culpabilidade. Ademais, no entender de Roxin (1997, p. 91), a pena deve almejar fins socialmente construtivos, com utilização de medidas que propiciem o desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Por isso, na realidade, o direito penal só pode fortalecer a consciência jurídica no sentido da prevenção geral se ao mesmo tempo preservar a individualidade de quem está sujeito a ela. Assim, a prevenção geral positiva encontra limites na culpa e na eficácia da prevenção especial socializadora. Roxin (1997, p. 103) defende, então, uma teoria mista ou unificadora, explicando que a pena serve para os fins de prevenção especial e geral. Isso se dá porque, segundo Hassemer (1998, p. 19), o Direito Penal dispõe das sanções mais severas, como conseqüência de um procedimento, frente às lesões normativas: privação da liberdade, desapossamento patrimonial na forma de penas de multa, proibição de dirigir veículos, inabilitação para o exercício de cargos públicos, suspensão dos direitos políticos, entre outros. Ora, o uso de instrumentos assim tão incisivos, numa sociedade civilizada, deve assegurar meios de que sejam utilizados de forma cuidadosa, igualitária e proporcional. Na mesma posição, Sánchez (1992, p. 37) afirma que deve haver uma conciliação entre os princípios preventivos da pena e os de proporcionalidade, humanidade e ressocialização. Sustenta ele, em síntese, que tais princípios estão entranhados na consciência do povo, motivo pelo qual o legislador 284 BOOK.indb 284

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não pode deles se abster, sob o pretexto de alcançar a eficácia preventiva e orientadora das sanções. Na lição de Puig (1994, p. 99), não é só preciso que se culpe o autor do fato, mas também que a gravidade da pena resulte proporcionada à do fato cometido, já que o princípio de culpabilidade não basta para assegurar a necessária proporcionalidade entre o delito e a pena. É que, para Puig, duas exigências devem nortear a aplicação da proporcionalidade da pena: a necessidade de que seja proporcional ao delito e o requisito de que a medida da culpabilidade se estabeleça com base na importância social do fato. Defende, ainda, Puig, o princípio da ressocialização, segundo o qual a exigência democrática da possibilidade de participação de todos os cidadãos na vida social exige que o Direito Penal evite a marginalização indevida do condenado a uma pena. Isto porque, em primeiro lugar, não se pode pretender dele o caráter aflitivo e negativo da pena, embora, no seu entender, não seja ela imposta para o bem do delinquente, mas para a necessidade de proteção social. Nessa ótica, a única justificativa da ressocialização é a ajuda voluntária do condenado, para a sua ulterior reinscrição social. Sustenta, ademais, Puig (1994, p. 100), que a intervenção penal só se justifica quando efetivamente necessária à proteção dos cidadãos, porque na verdade há, hoje, uma tendência à utilização do Direito Penal como instrumento meramente sancionador, de apoio a normas não penais (civil, administrativa, mercantil, etc). Como sanção tão grave como a pena requer o pressuposto de uma infração igualmente grave, somente as proibições e mandamentos fundamentais para a vida social merecem adotar o estatuto de normas penais. Como se observa, são importantes as bases da teoria da prevenção geral positiva limitadora, amparada no Direito Penal garantista, que restringe a intervenção penal tanto na necessidade de proteção aos bens jurídicos essências à vida coletiva, quanto nos princípios de humanidade, socialização e culpabilidade. Não obstante a linha progressista dessa teoria, destina-se ela, todavia, unicamente a justificar a intervenção penal e a estabelecer os limites dessa intervenção, com influência mais sentida no âmbito legislativo, quer na escolha dos bens jurídicos a serem penalmente protegidos, quer na imposição de restrições ao arbítrio judicial. A pena mesma, em sua realidade ontológica, não sofre alteração, ainda que se levem em conta os limites fixados pelo Direito Penal garantista, propostos, pela prevenção geral positiva. Ao contrário, como comenta Sánchez (1992, p. 39), a adoção da prevenção geral como base da construção político-criminal, devolve a aplicação da pena como um mal, conclamando-nos a refletir dobre a necessidade desse mal. Mas a matéria não é tão pacífica assim. Hirsch (1998, p. 141) afirma que nas décadas de 1970 e 1980 tem aumentado o conservadorismo penal, em especial nos Estados Unidos. Os políticos incrementaram suas campanhas sob o lema da “lei e ordem”, demonstrando pouco entusiasmo em relação ao princípio da proporcionalidade, cujos opositores dizem que se a incapacitação dos delinquentes de alto risco estaria vetada pela proporcionalidade, assim também o seriam as penas severas aos consumidores e pequenos vendedores de drogas. 285 BOOK.indb 285

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Porém, relata o autor que, na Europa, alguns países adotaram, na lei penal, o princípio da proporcionalidade, como na Finlândia, onde se estabeleceu no Código Penal que a pena deve estar em “justa proporção”, e na Suécia, onde se assentou que a pena se determinará, fundamentalmente, pelo “valor penal”. No Brasil, o Código Penal faz expressa referência à proporcionalidade, ao dizer sobre o estado de necessidade52. Quando o art. 24 do Código Penal brasileiro estabelece que não será razoável exigir-se o sacrifício do bem protegido está ele, claramente, no âmbito da proporcionalidade. A falta desta, ou seja, o sacrificar um bem de maior valor que o que se pretende proteger descaracteriza a causa de justificação, podendo, no Direito brasileiro, ensejar apenas uma causa de diminuição da pena, conforme o parágrafo único do mesmo artigo.

4.1. PROPORCIONALIDADE E CULPABILIDADE É, porém, pacífico que o princípio da proporcionalidade, norteador da sanção penal como uma relação justa entre o mal cometido e a punição, não substitui a culpabilidade na individualização da pena, dirigida a cada um dos condenados. Diante, portanto, da vinculação da pena ao princípio da culpabilidade, defende Roxin (1997, p. 102) que se eliminem as objeções da busca de fins preventivos e se trate o acusado como “meio para o fim”, se isto lhe prejudica a dignidade como pessoa humana. É que em algumas ocasiões, tenta-se excluir da aplicação da pena o princípio da culpabilidade, substituindo-o pelo da proporcionalidade, sob a alegação de sua vinculação à teoria retributivista. Porém, conforme defende Roxin (1997, p. 103), esta não é a melhor solução para o problema, pois, segundo o Direito vigente, as medidas de segurança encontram limite no princípio da proporcionalidade, porque representam intervenções muito mais fortes, na liberdade do acusado, que as penas. O princípio da proporcionalidade não deve, por isso, substituir, na aplicação da pena, a culpabilidade, uma vez que aquele significa uma proibição de excesso na duração de uma determinada sanção aplicada preventivamente, mas não oferece, tanto quanto o princípio da culpabilidade, uma limitação coercitiva do Estado no que tange à liberdade individual dos acusados.

4.2. PROPORCIONALIDADE E SUBSIDIARIEDADE A subsidiariedade do Direito Penal consiste na sua aplicação apenas quando não houver possibilidade de solução por meio de outras medidas protetoras da sociedade, de modo que somente se pode utilizá-lo, em uma sociedade moderna, sob Estado de Direito, se todas as outras alternativas falharem. É que o princípio da subsidiariedade, conforme Jakobs (1996, p. 61), constitui a variante penal do princípio constitucional da proporcionalidade, em virtude do qual não “Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. (CPB, 1941)

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se permite a intervenção penal se a finalidade for alcançável mediante outras medidas, menos drásticas. Na verdade, o princípio da proporcionalidade vige ainda que os custos de uma medida alternativa afetem uma pessoa responsável pelo conflito a resolver, nos quais se inclui a possibilidade da renúncia ao contrato social. O Direito Penal deve conter os impulsos que tornem a pena a solução de todos os conflitos, com a criminalização de todas as condutas ilícitas. O instrumento que a isto evita é a subsidiariedade, princípio que origina outros dois, denominados de fragmentariedade e insignificância, bases da utilização do Direito Penal apenas como meio de tutela de bens jurídicos enquanto se demonstrem insuficientes as vias de controle social, como o Direito Civil, o Direito Administrativo, e Direito Comercial, etc.

CONCLUSÃO Seja qual for a posição adotada, o Direito Penal não pode nem deve servir para a solução de todos os conflitos. Em um Estado Democrático de Direito, a pena, em especial a privativa de liberdade, somente deve ser aplicada se adequada, necessária e proporcional. É que a intervenção do Direito Penal, pelo princípio da proporcionalidade, apenas se justifica quando outros meios menos gravosos são insuficientes para a solução do conflito. Constitui-se, porém, em ofensa ao Estado Democrático de Direito e à dignidade da pessoa humana a aplicação da norma Penal quando se protegem, por outros meios, e com melhor eficácia, os bens jurídicos. Com efeito, dentre todas as medidas protetoras, a pena deve ser a última utilizada, somente sendo ela considerada quando os outros meios falharem (sanções civis, administrativas, etc). Em razão deste seu caráter subsidiário e fragmentário, o Direito Penal é denominado a ultima ratio.Aliás, a subsidiariedade e a fragmentariedade se constituem em dois princípios, derivados do princípio da proporcionalidade, que limitam o poder punitivo estatal, e significam que o Direito Penal não deve aplicar sanções a todas as condutas, mas unicamente àquelas de maior danosidade social.

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CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2008. GONZAGA, João Bernadino. A inquisição em seu mundo. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1993. HASSEMER,Winfried. Crítica del Derecho Penal de hoy. Colômbia: Universidad Externato de Colombia, 1998. HIRSCH, Andrew von. Censurar y castigar. Valladolid: Simancas, 1998. JAKOBS, Günther. Fundamentos del Derecho Penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1996. ______. Derecho Penal: parte general. 2 ed. Madri: Marcial Pons, 1997. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: EDUnB, 1980. MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000. PUIG, Santiago Mir. El Derecho Penal en el Estado Social y Democrático de Derecho. Barcelona: Ariel Derecho, 1994. ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. 2 ed., t. 1. Madri: Marcial Pons, 1997. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 1992. SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus contra os pagãos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1990. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica: escritos políticos. Petrópolis: Vozes, 1997. ______. Suma Teológica. segunda parte da segunda parte, questões de 1-79. Caxias do Sul: Sulina, 1980. ZAFFARONI, Eugenio Raul, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. WOODS JR,Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. São Paulo: Quadrante, 2008

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LIMITES JURÍDICOS DA DELAÇÃO PREMIADA E A NECESSIDADE DE CONTROLE RECURSAL CONTRA A SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA

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Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar1

INTRODUÇÃO A processualística penal brasileira tem tecido muitas reflexões sobre delação premiada. Estudos de Afrânio Silva Jardim2, dentre os de outros renomados Doutor em Direito (PUC/SP). Mestre em Direito (UFBA). Especialista em Direito Processual Penal (FESMP/RN). Professor Adjunto da Faculdade de Direito de Alagoas (UFAL). Professor Titular do Centro Universitário Tiradentes (UNIT-AL). Professor de Direito Processual Penal (SEUNE E ESMAL). Juiz Federal (AL). 2 JARDIM, Afrânio Silva. Delatando (sem prêmio) as delações premiadas. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/delatando-sem-premio-as-delacoes-premiadas-por-afranio-silva-jardim>. Acesso em: 17 jul. 2017. Para o fim deste artigo, outros estudos do aludido processualista foram objeto de reflexão, dentre eles: Delação premiada: o sistema de justiça criminal sendo substituído por um contrato. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/delacao-premiada-o-sistema-de-justica-criminal-sendo-substituido-por-um-contrato-por-afranio-silva-jardim>.Acesso em: 17 jul. 2017; Supremo Tribunal Federal. Quando o mau exemplo vem de cima. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-quando-o-mau-exemplo-vem-de-cima-por-afranio-silva-jardim>. Acesso em: 17 jul. 2017; Ainda sobre os acordos de cooperação premiada: não irei ao enterro do nosso sistema de justiça criminal. Nego-me a comparecer ao seu velório e a carregar o seu caixão (parodiando o Ministro H. Benjamin). Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/ainda-sobre-os-acordos-de-cooperacao-premiada-nao-irei-ao-enterro-do-nosso-sistema-de-justica-criminal-nego-me-a-comparecer-ao-seu-velorio-e-a-carregar-o-seu-caixao-parodiando-o-ministro-h-benjami>. Acesso em: 17 jul. 2017; Delações premiadas: será que agora existe execução penal por título extrajudicial. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito. com.br/delacoes-premiadas-sera-que-agora-existe-execucao-penal-por-titulo-extrajudicial-por-afranio-silva-jardim>. Acesso em: 17 jul. 2017; Os acordos de cooperação premiada e a aplicação da pena. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com. br/os-acordos-de-cooperacao-premiada-e-a-aplicacao-da-pena>. Acesso em: 17 jul. 2017; Discricionariedade no sistema de justiça criminal. Ainda não me cansei de criticar. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/discricionariedade-no-sistema-de-justica-criminal-ainda-nao-me-cansei-de-criticar>. Acesso em: 17 jul. 2017; A ética dos órgãos públicos que atuam no processo penal. Empório do Direito. Disponível em: <http:// emporiododireito.com.br/a-etica-dos-orgaos-publicos-que-atuam-no-processo-penal>. 1

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autores3, denunciam que acordos de colaboração premiada estão sendo firmados sem atendimento ao direito positivo, vale dizer, sem obedecer à Constituição e às leis do país de tradição continental. O direito estatal teria sofrido mutação indevida em virtude da aceitação de negócios processuais, com assimilação de institutos da common law (sistema adversarial4 ou acusatório puro), sem que isso seja compatível com a ordem constitucional brasileira. A acusação de setor doutrinário prestigiado é a de que os órgãos envolvidos na persecução penal têm incidido em exercício de poder que não lhes foi sufragado pela ordem jurídica brasileira vigente. Como consequência, o Estado Democrático de Direito estaria fragilizado5. As discussões em torno Acesso em: 17 jul. 2017; Novas reflexões sobre temas atuais. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/novas-reflexoes-sobre-temas-atuais>. Acesso em: 17 jul. 2017; Nefasta tendência a privatização do processo civil e do processo penal. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/nefasta-tendencia-a-privatizacao-do-processo-civil-e-do-processo-penal>. Acesso em: 17 jul. 2017. 3 PACELLI, Eugênio. De delações, de premiações e outras perplexidades: o julgamento do STF sobre competência do relator para homologação de colaborações premiadas. Jota. Disponível em: <https://jota.info/artigos/de-delacoes-de-premiacoes-e-outras-perplexidades-30062017>. Acesso em: 17 jul. 2017; NUCCI, Guilherme. Há limites para o prêmio da colaboração premiada? Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-jul-03/guilherme-nucci-limites-premio-colaboracao-premiada>. Acesso em: 17 jul. 2017; LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Limite penal. A pena fixada na delação premiada vincula o julgador na sentença? Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mar-03/ limite-penal-pena-fixada-delacao-premiada-vincula-julgador-sentenca>. Acesso em: 17 jul. 2017; STRECK, Lenio Luiz. Senso incomum. O processo penal brasileiro pós delação segue o modelo do publicitário cool. Conjur. Disponível em: <www.conjur.com.br/2017-abr-27/ segunda-leitura-processo-penal-pos-delacao-segue-modelo-publicitario-cool>. Acesso em: 17 jul. 2017; MOREIRA, Rômulo Andrade. A gorjeta do Ministério Público. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-gorjeta-do-ministerio-publico/>. Acesso em 17 jul. 2017; PRADO, Geraldo. Justificando. Uma vez homologada a delação, pode a justiça voltar atrás e rever o acordo? Carta Capital. Disponível em: <http://justificando. cartacapital.com.br/2017/06/28/colaboracao-premiada-acordo-atuacao-do-ministerio-publico-e-homologacao-judicial/>. Acesso em: 17 jul. 2017. 4 Bem distinto do sistema brasileiro, como pontifica Marcos Paulo Dutra Santos, no adversary system, “não se concebe qualquer controle jurisdicional no tocante ao exercício da ação penal pela promotoria, notabilizado pela absoluta discricionariedade – prosecutorial discretion –, irradiada às atividades policial e jurisdicional, e mesmo à execução da pena – probation –, guiando-se por vetores políticos e utilitaristas: descartar os delitos irrelevantes, concentrando-se os esforços na criminalidade de vulto, cuja repressão rende visibilidade social, e, exatamente por isso, é a que interessa combater. Não por acaso apenas de cinco a dez por cento das demandas criminais chegam a julgamento – trial –, terminando as demais no pretrial, a revelar ser a justiça penal norte-americana inteiramente pautada na barganha” (SANTOS, Marcos P. D. Colaboração unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 3, n. 1, p.136, jan./abr. 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.22197/rbdpp.v3i1.49>. Acesso em: 17 jul. 2017). 5 Por todos, a seguinte passagem de Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr. representa o sentimento dos juristas que manifestam tal discordância: “estamos testemunhando acontecimentos extremamente preocupantes nos últimos tempos no direito penal brasileiro. Não se trata de alarmismo. Quem dera fosse o caso. Estamos diante de fatos extremamente graves, que atentam de forma explícita contra o Estado Democrático de Direito e que estão

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do poder do Estado são antigas e, ao mesmo tempo, atuais. O exercício do poder tem se volvido em questão central, não só da Teoria Geral do Estado6, mas também do Direito Processual Penal, notadamente porque a dogmática da disciplina não logrou impedir extravasamento de seus limites pelos órgãos envolvidos no jus puniendi estatal. O assunto tomou maior repercussão em razão do uso reiterado do instituto “delação premiada” e da sua divulgação instantânea pelos meios de comunicação (grande imprensa – trial by media – e redes sociais), tendo, como temática, o discurso de combate à corrupção7. Nesse cenário, ganhou predominância os conhecidos argumentos relacionados à redução da impunidade, à celeridade processual, à eficiência e ao endurecimento da lei penal, como tábua de salvação dos problemas humanos. A Lei nº 12.850/2013, que inseriu a disciplina aplicável à criminalidade organizada, com novas regras cuja visibilidade foi realçada com a conhecida investigação denominada “operação lava jato”. No presente estudo, louvando-se dos trabalhos referidos acima que possibilitaram aproximações e esclarecimentos de pontos ambíguos ou lacunosos, serão relacionados os conceitos positivados naquele diploma legal, com algumas questões debatidas atualmente.

1. O CONCEITO COMO PONTO DE PARTIDA Há uma série de leis que preveem colaboração premiada em matéria penal (Leis nos 7.492/1986, 8.072/1990, 8.137/1990, 9.269/1996, 9.807/1999, 11.343/2006, 12.529/2011 e 12.850/2013). São veículos de introdução de conceitos, material que será usado para a aplicação do direito, mediante insendo perpetrados por instituições que deveriam estar a serviço dele, comprometidos com ele. Fatos que causam mais do que perplexidade. Causam revolta acadêmica, no desejo de construir espaços de crítica. Nem mesmo na Ditadura se viu algo semelhante enquanto prática punitiva taticamente exercida de forma organizada e coordenada por agências de persecução do sistema penal” (ROSA; Alexandre Morais da; KHALED JR., Salah. In dubio pro hell I: profanando o sistema penal. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p.33). 6 Da leitura de Dalmo de Abreu Dallari, colhe-se que “o verdadeiro sentido de poder ou dominação estatal não é o de que uns homens estão submetidos a outros, mas sim o de que todos os homens estão submetidos às normas”. Confrontando poder político e poder jurídico, o jurista pondera, a partir de Kelsen e Miguel Reale, que “quando se diz que o poder é jurídico isso está relacionado a uma graduação de juridicidade, que vai de um mínimo, representado pela força ordenadamente exercida como um meio para atingir certos fins, até a um máximo, que é a força empregada exclusivamente como um meio de realização do direito e segundo normas jurídicas”. Apesar de reconhecer a possibilidade de consecução de fins não jurídicos por meio de poder de natureza política, este deverá estar, de igual maneira, atrelado, em maior ou menor grau, a uma natureza jurídica (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p.114-116). 7 Aduzindo que o direito à informação não deve transferir a sede da jurisdição ao “Jornal Nacional”, Alexandre Morais da Rosa exemplifica que, na conhecida “operação lava jato”, “o uso fragmentado de informações vazadas é tática importante, manejada com a finalidade de sustentar a legitimação da operação e das ações dos jogadores” (ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p.186-187).

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terpretação, construção de normas jurídicas e documentação de definições de seus contornos. Para ser possível firmar acordo de delação premiada por termo, o alicerce de direito estatal deve ser o conceito estampado na lei. O conceito, sendo difuso, deve ser contornado pelo trabalho do intérprete: a delimitação é a definição que deve considerar conceitos (legais e constitucionais) como pontos de partida. Em poucas palavras, essa cautela evita que se conclua colaborações premiadas sem amparo em conceito legal, com desvirtuamento do sistema brasileiro, que é de tradição continental e arrimado em compromissos internacionais de proteção de direitos humanos processuais fundamentais8. Este estudo colocará ênfase na hipótese legal de colaboração premiada disciplinada pela Lei nº 12.850/2013.

1.1. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA O ordenamento jurídico brasileiro tem balizas rígidas para a disciplina da persecução penal estatal. Essa premissa indica que o negócio jurídico processual previsto na Lei nº 12.850/2013 não deve ser compreendido como regra geral para a apuração dos crimes alcançados por aquele documento legislativo. Como se trata de excepcionalidade, somente se existente base empírica válida dos elementos do conceito legal de organização criminosa é que se pode firmar o termo de acordo. A aferição daqueles elementos deve ser relacionada com outras notas conceituais, que se interlaçam, de antecedentes a consequentes normativos9. As infrações penais compreendidas devem ser acompanhadas de elementos de informação que as impute à organização criminosa ou terrorista, cuja pena seja superior (não somente igual) a quatro anos, salvo quando tenha caráter transnacional ou quando seja delito previsto em tratado ou convenção internacional, com resultado possível no estrangeiro ou reciprocamente (art. 1º, e parágrafos, da Lei nº 12.850/2013). Essa disciplina legal não deve ser aplicada a outros delitos, que não se encontrem na sua órbita de incidência. Para que um delito seja alcançado por ela, deflagrando a possibilidade de termo de acordo de delação premiada, deve ser, por exemplo, imputado a organização criminosa ou terrorista. Se o crime não se enquadrar sob a sua égide, ele não deve ser objeto do acordo de colaboração premiada. Com raciocínio semelhante, deve ser entendido como ineficaz o acordo firmado com base na Lei de Organizações Criminosas toda vez que, na sentença final condenatória, restar constatada a insuficiência de elementos para afirmar a existência da ilustrada organização. A ineficácia do A fundamentação histórica dos direitos humanos é narrada por Fábio Konder Comparato (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p.37). 9 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2013. p.216. 8

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termo deve, correlatamente, suprimir o valor do deste meio de obtenção de prova, porque a sua base foi assentada sobre premissa ausente quando ajustadas suas condições iniciais (ilegitimidade das provas produzidas a partir da delação premiada sem supedâneo normativo autorizador). Sob outro prisma, as regras de conexão e de continência, previstas no art. 76 e 77, do CPP, somente devem ter alcance para inclusão de outras infrações não imputadas à organização criminosa como um todo, se o delito objeto da conexão ou da continência com outra infração penal imputada a organização criminosa se inserir na atribuição ministerial e na competência do órgão para homologar o termo de colaboração premiada. Esse cuidado é indispensável para que não sejam violadas as regras de atribuição do Ministério Público e de competência do órgão jurisdicional10, o que contaminaria as cláusulas afetadas com nulidade absoluta11. Por exemplo, imagine-se o cometimento de homicídio doloso contra testemunha do crime imputado a organização criminosa, com o objetivo de ocultação deste (art. 76, II, CPP). Caso o autor do crime de homicídio doloso resolva colaborar, no âmbito da vara que não tenha competência para julgamento de crimes do júri, o termo de acordo de colaboração premiada não deve ser homologado por aquele órgão, notadamente quanto à parte relativa ao delito que não tem competência para julgar. Entender diversamente pode significar supressão da competência constitucional do tribunal popular. Do mesmo modo, as cláusulas do acordo não devem afetar fatos que sejam de competência de órgão de grau superior (prerrogativa de função). Em suma, a incidência das normas construídas a partir da Lei nº 12.850/2013 deve se submeter à Constituição e ser acompanhada por elementos empíricos suficientes, alijando a sua aplicação generalizada, sem respaldo material mínimo (base fático-probatória). Tal deve ser verificado em consonância com o estado de afirmação (em estado de asserção, in status assertionis) e com suporte probatório válido que consubstancie indícios de autoria e de materialidade dos delitos abrangidos12. Constatando problema de invasão da competência de órgão jurisdicional de grau superior relativamente ao modo de cumprimento da pena, cometida por juiz de primeiro grau, enquanto pendente recurso de apelação de condenado, extrai-se de ementa de acórdão do TRF da 4ª Região: “questão de ordem solvida, por maioria, para reconhecer descabida a suspensão da ação penal para réu colaborador, quando ainda não alcançado o requisito temporal da sanção unificada (previsto na cláusula 5ª do acordo) com decisões transitadas em julgado para ambas as partes” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 5012331-04.2015.4.04.7000/PR. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/ acordao-trf4-vaccari.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2017).. 11 Cuida-se de “reação do sistema de direito positivo contra produção ilícita de normas jurídicas. Normas criadas sem fundamento de validade ajustam-se às normas sancionatórias de competência” (GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2011. p.LV). 12 Em estudo anterior, foi realçada a necessidade de lastro de fato para a aplicação da Lei nº 12.850/2013: ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Indiciamento e persecução penal das organi10

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1.2. COLABORAÇÃO PREMIADA E CHAMAMENTO DE COAUTOR O ordenamento jurídico brasileiro prevê, sob o rótulo colaboração premiada, algo mais restrito: a delação premiada. Essa observação é relevante não somente para se dar preferência por termos mais técnicos, mais precisos, na legislação nacional. Vai mais além. De conformidade com o sistema brasileiro, somente pode firmar acordo de colaboração premiada o agente que se qualificar como imputado, independentemente da fase da persecução penal estatal. No ponto, o instituto de colaboração premiada é autêntico chamamento de coautor do delito objeto da delação premiada. Deve exigir infrações penais cometidas em coautoria e, em acréscimo, que sejam objeto de confissão. Delação, nesse sentido, deve significar admissão, pelo delator, de verdade de fatos que lhe sejam previamente atribuídos e, em arremate, contribuição com a indicação de coautor de delito. A colaboração premiada é expressão que deveria designar instituto mais amplo, envolvendo colaboração de um réu em um processo, para esclarecimento de fato de outro processo, no bojo do qual foi arrolado como testemunha13. A colaboração premiada, a rigor, designa a possibilidade de colaboração em geral, sem que se exija a qualidade de indiciado, denunciado, acusado, sentenciado ou apenado da pessoa que se coloca na qualidade de colaborador. Algo similar ao instituto do “reportante”, denominado whistleblower (soprador de apito) que, nos Estados Unidos, admite a qualquer pessoa noticiar crimes e receber recompensas14.

2. CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE À DELAÇÃO PREMIADA Como se depreende, a colaboração premiada brasileira tem natureza jurídica de confissão, acrescida de atribuição de autoria de agentes implicados no delito perpetrado em coautoria. Daí ser mais apropriada a expressão delação premiada. De tal modo, o exame da fonte, fática e jurídica, da delação premiada não prescinde do perpassar pelos requisitos da confissão. Se houver vício no meio probatório da confissão, os atos subsequentes que integram sua qualificação premial devem ser considerados contaminados por nulidade. zações criminosas: limites conceituais à incidência das normas. In: Paulo de Barros Carvalho; Robson Maia Lins (Orgs.). Ensaios sobre jurisdição federal. São Paulo: Noeses, 2014. p. 933-975. 13 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p.695. 14 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Federal. Revista de Doutrina traz subsídios para programas de whistleblower no Brasil. Jusbrasil. Disponível: <https://trf-4.jusbrasil.com.br/ noticias/415961951/revista-de-doutrina-traz-subsidios-para-programas-de-whistleblower-no-brasil>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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2.1. REQUISITOS DA CONFISSÃO A confissão é ato jurídico processual probatório. Deve ser examinado a partir do seu aspecto volitivo, seguindo-se com o exame do seu conteúdo e de sua forma. O ato de confessar deve ser livre, englobando voluntariedade e espontâneo de pessoa capaz. O conteúdo deve envolver objeto lícito, seguindo-se de forma admitida legalmente, com descrição das tratativas que precederam o termo de acordo de colaboração premiada. Sobre o objeto lícito, tudo o que se disse sobre os limites dos conceitos alçados na legislação deve ser rigorosamente atendido. Afinal, o regime de barganha (plea bargain) deve ser excepcional no direito brasileiro e não deve permitir desvio da legalidade estrita. As tratativas e os atos que a documentam não devem contar com a participação ou a interferência do magistrado. As autoridades indicadas no § 6º, do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013, com atribuição para as negociações são o Ministério Público e o delegado de polícia, desde que este conte com a interveniência daquele, titular da ação penal pública (art. 129, I, CF/1988). A liberdade de expressão e a higidez mental do confitente devem restar asseguradas, isentas de pressões. Não é impossível confessar e apontar coautoria do fato estando o imputado com a liberdade de ir e vir cerceada, com prisão em flagrante convertida em preventiva, por exemplo. Todavia, há casos em que a privação excessiva da liberdade indica coação indevida, com a sugestão ao agente para colaborar sob promessa de prêmio. Nesse contexto, deverá ser reconhecido vício que atinge o aspecto volitivo e espontâneo que o ato exige15.

2.2. COLABORAÇÃO UNILATERAL VERSUS COLABORAÇÃO BILATERAL Na doutrina, fala-se em colaboração unilateral (cooperação do imputado lato sensu) e em colaboração bilateral (acordo de cooperação premiada, com natureza de negócio jurídico processual)16. A primeira dispensa negócio jurídico formalizado entre Ministério Público e imputado, devendo o juiz aferir se a colaboração por parte do acusado ocorreu de acordo com os ditames da lei de regência. Nessa perspectiva, é dever do juiz concretizar os benefícios previstos em lei toda vez que a colaboração, também preconizada por lei, revelar-se efetiva. Sendo afirmativa a constatação, deve ser aplicada, pelo juiz, a benesse gizada no texto, ainda que não o queira Por todos os que criticam a possibilidade de prisão cautelar com desvio de finalidade, para obter confissão: NUCCI, Guilherme. Prisão provisória e delação premiada: compatíveis? Guilherme Nucci. Disponível em: <http://www.guilhermenucci.com.br/artigo/prisao-provisoria-e-delacao-premiada-compativeis>. Acesso em: 18 jul. 2017. 16 JARDIM, Afrânio Silva. Poder judiciário não deve ser refém de acordos de delação premiada do MP. Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-18/afranio-jardim-judiciario-nao-refem-acordos-delacao-premiada>. Acesso em: 18 jul. 2017. 15

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o órgão ministerial, a vítima ou o corréu17. Essa possibilidade está em todos os diplomas legais referidos, à exceção da Lei nº 12.850/2013. Todavia, embora não esteja expressa no conceito deste diploma legal, a possibilidade deve decorrer de interpretação (definição) que considere o texto constitucional, em compasso com a finalidade de proteção da liberdade que deve ter o direito processual penal (favor rei). A segunda espécie de colaboração premiada, bilateral, deve ser precedida de tratativas (negociação a respeito da qual não deve participar o juiz) e acordo prévio formalizado, com cláusulas descritas estritamente em compasso com o modelo legal (Lei nº 12.850/2013), levando-se o termo respectivo ao crivo do Judiciário para homologação.

3. O TERMO DE ACORDO DE DELAÇÃO PREMIADA O termo de acordo de cooperação entre imputado e Ministério Público (ou delegado de polícia, seguida de manifestação daquele órgão) deve ser de incidência estreita, isto é, somente nas hipóteses subsumidas pela Lei nº 12.850/2013. Não há previsão legal para seu uso para os demais casos de colaboração unilateral. Todavia, indaga-se: o que fazer caso o Ministério Público firme esse acordo no âmbito de persecuções penais que veiculem outros delitos que não aqueles atribuídos à criminalidade organizada? É possível bilateralizar a colaboração premiada gizada nos demais diplomas legais? O Ministério Público ou o delegado de polícia pode prever benefícios de qualquer diploma legal, inclusive da Lei nº 12.850/2013, mesmo sendo o caso de delito que não preencha os pressupostos nela exigidos? Para responder, parte-se da seguinte constatação: a incidência de técnica de negócio jurídico processual em matéria penal é excepcional. Mitiga-se, em certa medida, não somente o jus puniendi, mas também, em maior ou menor grau, a disponibilidade da ação penal.Trata-se de técnica que afeta não somente direitos, mas também deveres fundamentais. Os direitos dos imputados envolvidos, não raramente, estarão em conflito. Diante da complexidade do instituto, e das restrições a direitos, constitucionais, penais e processuais penais, que ele envolve, entende-se que a sua incidência é restrita aos casos alcançados pela Lei 12.850/2013. Para melhor explicar essa conclusão, será feita análise considerando problemas relacionados com a sua natureza jurídica, a coisa julgada eventualmente formada, o primado da legalidade, a tradição continental do sistema brasileiro e o regime de nulidades processuais penais, considerando, inclusive, o confronto entre as sentenças de homologação do acordo e final (de extinção de punibilidade, de absolvição ou de condenação). Nesse sentido: SANTOS, Marcos P. D. Colaboração unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 3, n. 1, p. 152-155, jan./abr. 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.22197/rbdpp.v3i1.49>. Acesso em: 17 jul. 2017.

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3.1. NATUREZA JURÍDICA DO TERMO DE ACORDO DE DELAÇÃO PREMIADA O acordo de colaboração premiada tem natureza jurídica de negócio jurídico complexo condicional (administrativo e processual), porque lavrado por órgão do Poder Executivo e submetido à apreciação do Poder Judiciário18. (1) As tratativas são realizadas na esfera administrativa, do Ministério Público ou da polícia, no âmbito da persecução penal estatal; (2) O termo de acordo documenta cláusulas que, por sua vez, sofrem interferência forte do sistema legislado, haja vista que devem obedecer às leis de regência e à Constituição.Vale dizer, há “dirigismo contratual”, não estando Ministério Público, delegado de polícia e imputado livres para combinarem quaisquer conteúdos de cláusulas que destoem do direito positivo. Argumentos como “quem pode o mais” (perdão judicial), “pode o menos” (qualquer coisa que esteja ou não na lei) são inadequados à relação lógica estabelecida pela Lei nº 12.850/2013, que cria implicação necessária entre prótase (norma jurídica primária, antecedente) e apódose (norma jurídica secundária, consequente). Reputar que inexistem de lindes impostos pelo sistema, é atitude tendente ao ferimento da legalidade estrita e da Constituição, descurando do fato de que há princípios que compelem os órgãos da persecução penal a uma atuação regrada (o Ministério Público, por exemplo, deve estar vinculado à obrigatoriedade da ação penal); (3) O termo de cooperação processual é, por um lado, documentação de negócio jurídico sob condição suspensiva19. As benesses estipuladas são consequentes normativos que devem decorrer da comprovação cabal da eficácia dos antecedentes aos quais estão atreladas por juízo implicacional. Enquanto pendente o procedimento certificador da cooperação, os benefícios estipulados não devem produzir os efeitos que lhe são próprios. Na maior parte das vezes, a certificação de que a colaboração se revelou eficaz deve se dar por ocasião da sentença penal condenatória do corréu delatado e/ou do colaborador. Nada obstante, não é impossível a incidência de algum benefício antes desse momento, desde que autorizado por lei expressa20, ainda que haja possibilidade de reversão O Supremo Tribunal Federal, por seu órgão pleno, afirmou a natureza jurídica de negócio jurídico processual em 27/8/2015, ao julgar o Habeas Corpus 127483. Considerou que a Lei nº 12.850/2013, o qualifica como “meio de obtenção de prova”, que o seu objeto é a cooperação do agente com a persecução penal estatal (investigação preliminar e processo penal) e que ele produz efeitos de direito material (sanção premial). 19 Subordina a eficácia do ato à fato futuro e incerto. 20 Lei nº 12.850/2013: art. 4º [...] § 4o: “Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I – não for o líder da organização criminosa; II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo”. Conquanto não especifique o texto legal, a atuação do Ministério Público, ao deixar de oferecer denúncia, depende de atendimento de outras disposições do ordenamento jurídico e documentação específica que não deve estar inserida no termo de colaboração premiada do imputado considerado “líder”. Note-se que a ação penal pública é obrigatória. Daí que a 18

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de tal situação jurídica. Não há respaldo no ordenamento jurídico para fixação de quantidade determinada de pena no acordo de colaboração premiada. A Lei nº 12.850/2013 não chega a esse disparate. Cláusula que, equivocadamente, fixe pena de dez anos ao imputado deve ser reputada inexistente juridicamente (viola elemento estrutural do processo penal21), com possibilidade de ser sindicada a qualquer tempo, ainda que homologado o acordo de colaboração premiada, seja por habeas corpus, seja por ocasião da sentença que julgue coautor (quando não operada preclusão pro judicato da decisão de homologação), seja ainda em grau de recurso. (4) Segundo outro ponto de vista, o termo de delação premiada é documentação de negócio jurídico sob condição resolutiva22. A sentença que o homologa, aferindo regularidade, legalidade e voluntariedade, é o marco a partir do qual aquele ganha aptidão para produzir efeitos jurídicos (operatividade). No entanto, essa operatividade pode ser desfeita, seja porque se trata de ato jurídico retratável (§ 10, do art. 4º, da Lei nº 12.850/201323), seja porque o prometido quando da celebração do acordo pode não ser, ao final, honrado. Faltando efetividade à colaboração, aferida por procedimento com contraditório e ampla defesa, opera-se o implemento da condição dita aqui resolutiva, cessando a possibilidade de produção de efeitos jurídicos. (5) Ainda no que concerne à iniciativa das negociações e do pedido de homologação do termo, entende-se que o § 2º, do art. 4º, da Lei 12.850/201324,

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deliberação por deixar de oferecer denúncia deve ser submetida ao Judiciário, para fins de homologação e deferimento do pedido de arquivamento, com aferição de sua juridicidade. Se advier, em momento posterior, prova nova que evidencie que o beneficiado era líder da organização criminosa por exemplo, deve ser admissível desarquivamento do fato, com a declaração de ineficácia da decisão que homologou a deliberação do Ministério Público pelo não oferecimento de denúncia (Súmula 524, STF). Caso o juiz discorde de tal deliberação, caberá invocar, por analogia (art. 3º, CPP), o art. 28, do CPP, remetendo os autos à chefia do Parquet. No âmbito do TJ e do STF, em que o Ministério Público é representado pelo chefe da instituição, a deliberação ministerial deve ser soberana, somente cabendo negativa de homologação para os casos de ilegalidade ou de inconstitucionalidade. Nesse sentido: JARDIM, Afrânio Silva. Delação premiada: o sistema de justiça criminal sendo substituído por um contrato. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/ delacao-premiada-o-sistema-de-justica-criminal-sendo-substituido-por-um-contrato-por-afranio-silva-jardim>. Acesso em: 17 jul. 2017. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. p.193. Acontecimento incerto e futuro que, se advir, faz cessar os efeitos jurídicos do ajuste. “As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”. De acordo com a letra do supradito dispositivo da Lei da Criminalidade Organizada, “considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)”.

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deve receber interpretação conforme a Constituição a fim de que o Ministério Público possa intervir nas negociações conduzidas pelo delegado de polícia, em razão deste carecer de legitimidade para oferecer ação penal. Sem embargo, é de ver que se noticiou conflito de entendimentos entre a polícia federal e a Procuradoria Geral da República acerca do método e da extensão do acordo de cooperação premiada25. Cotejando os posicionamentos dos órgãos referidos, forçoso reconhecer que o sustentado pela Polícia Federal encontra melhor respaldo constitucional e legal, alinhando-se com o que leciona Afrânio Silva Jardim26. Importante conferir as duas teses. (5.a) Segundo o entendimento da Chefia do Ministério Público Federal, seria possível, por exemplo, a imediata concessão de perdão judicial ao delator, sem prévia aferição do conteúdo das declarações prestadas em juízo, com a possibilidade de gozar imediatamente dos benefícios propostos no termo de delação premiada (sem checagem prévia e exaustiva das informações prestadas). (5.b) A polícia federal, por outro lado, reputou que não seria possível aplicação antecipada de pena, nem concessão liminar de perdão judicial (extinção da punibilidade), devendo tal matéria ser definida em juízo, com a interveniência do Ministério Público, ao final do processo. Aduziu ainda que seria necessária investigação para validação dos dados obtidos através das declarações do colaborador, demonstrando que não se cuidam de meras suspeitas ou insinuações. (6) É por sentença declaratória que o juiz deve homologar o termo.Trata-se de sentença com força de definitiva, amoldando-se à hipótese recursal do art. 593, II, do CPP. A sentença encampa (traz para si) nulidade ocorrida no acordo (nulidade extrínseca ou por decorrência)27. A apelação pode ser interposta, Conferir:VALENTE, Rubens. Poder. Delação de Marcos Valério exacerba diferenças entre PGR e PF. Folha de S. Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/07/ 1903023-delacao-de-marcos-valerio-exacerba-diferencas-entre-pgr-e-pf.shtml>. Acesso em: 21 jul. 2017. 26 Na dicção precisa do jurista Afrânio Silva Jardim, reiterando a discordância de que o contrato em processo penal é lei entre as partes, bem como a necessidade de submeter o Ministério Público a controle de legalidade pelo Judiciário (§ 8º, do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013), “o prêmio de ‘não denunciar’ é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública e deve ser efetivado através de um requerimento de arquivamento do inquérito ou peças de informação”. Esclarece ainda que “mesmo que seja mantida a homologação deste acordo, tendo ele efeitos de arquivamento do inquérito, poderá o Ministério Público exercer o direito de ação penal ou serem retomadas as investigações nas hipóteses previstas, respectivamente, na Súmula 524 do S.T.F. e no art. 18 do Cod.Proc.Penal”. Ademais, frisa que “o prêmio de não denunciar não acarreta extinção de punibilidade e não tem a imutabilidade da chamada coisa julgada material, pois aqui não haverá ação, processo e jurisdição” (JARDIM, Afrânio Silva. Delação premiada: o sistema de justiça criminal sendo substituído por um contrato. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito. com.br/delacao-premiada-o-sistema-de-justica-criminal-sendo-substituido-por-um-contrato-por-afranio-silva-jardim>. Acesso em: 17 jul. 2017). 27 Como fundamentamos, em trabalho anterior, “uma vez proferida sentença, os vícios que eventualmente tenham ocorrido no curso do procedimento são por ela absorvidas. Em razão desse fenômeno de encampação das nulidades da persecução penal pela sentença, as impugnações contra aquelas devem ser dirigidas contra a sentença, por intermédio do recurso 25

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por exemplo, pelo coautor delatado, sob cuja esfera jurídica recaem os efeitos do ajuste (tal apelo não deve ter amplitude para fustigar a prova produzida ou as declarações do colaborador que prejudiquem o coautor, mas deve lhe ser assegurado, por exemplo, questionar ilegalidades e inconstitucionalidades, permitindo-se controle do homologado eivado de nulidades)28. Também o Ministério Público e o agente colaborador têm a possibilidade de interpor apelação contra a aludida sentença homologatória, a exemplo do caso do juiz somente homologar parcialmente o acordo, em virtude de considerar alguma cláusula irregular, ilegal ou celebrada sem vontade livre do delator.

3.2. SENTENÇA DE HOMOLOGAÇÃO VERSUS COISA JULGADA: APELAÇÃO (ART. 593, II, CPP) E PRECLUSÃO PRO JUDICATO A sentença homologatória é ato processual que recai sobre o termo de acordo de delação premiada. Este, por sua vez, é o instrumento que documenta um negócio jurídico processual, precedido de tratativas que representam um sinalagma (reciprocidade de deveres).Vale dizer, de um lado, presentes os requisitos legais, o agente se propõe a colaborar, em maior ou menor grau, com o Estado-acusação. De outro, o Estado-acusação fixa balizas, dentro dos limites do ordenamento jurídico, com a previsão de criação de um compromisso ao Estado-juiz, pendente de homologação e de cumprimento do pactuado pelo delator. Verificado o atendimento das condições estipuladas, quando da sentença final que julga o mérito da ação penal, impõe-se o dever jurídico ao magistrado de aplicar sanção mais branda, dentre outros benefícios penais e/ ou processuais penais previstos na Lei nº 12.850/2013, consoante o fixado específico” (ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. p.551-552). 28 Em sentido contrário, apesar de não fazer menção à sentença de homologação como parâmetro de possível impugnação, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o coautor não tem legitimidade para apresentar impugnação contra o acordo de colaboração premiada. Em sede de julgamento de habeas corpus avivou que, “por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no ‘relato da colaboração e seus possíveis resultados’ (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13)”. Em acréscimo, asseverou que,“nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados – no exercício do contraditório – poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. HC 127483. Rel. Min. Dias Toffoli. j. 27 ago. 2015). De fato, contra o acordo em si não há previsão de recurso. Em verdade, o recurso deve ser dirigido contra a sentença de homologação do acordo que, por exemplo, sufragou nulidades (a exemplo de previsão de benefícios não previstos em lei que encorajou o delator, indevidamente, a produzir prova contra o corréu). Ainda que se entenda que o coautor delatado não tenha recurso específico (art. 593, II, CPP), o habeas corpus deve ser reputado instituto igualmente apto à deflagração do controle de regularidade de sentença que homologou acordo de delação premiada prejudicial a corréu e ao arrepio do sistema jurídico.

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no acordo homologado e de acordo com as regras do sistema legislado e constitucional. O dever jurídico do Estado-juiz, de honrar o pactuado, é submetido a condição, exigindo-se que se demonstre, no curso de processo, que a cooperação tenha sido efetiva, mediante resultados evidenciados nos autos. A produção de efeitos jurídicos do termo de delação premiada tem termo inicial a partir da prolação da sentença homologatória do juiz com competência para julgar os delitos abrangidos na avença. A homologação judicial é sentença de natureza declaratória e constitutiva: (1) declara a correção do respectivo termo de acordo, aferida pela sua adequação ao sistema constitucional, sem aprofundar-se na apreciação do eventual conteúdo probatório; (2) constitui a possibilidade de operatividade jurídica dos compromissos firmados, pendentes de sentença de mérito, ao final do processo criminal. Para homologar, por sentença, o ajuste, a cognição exercida pelo magistrado não é exauriente, isto é, não deve tecer considerações meritórias sobre eventual reconhecimento de culpa por parte do colaborador confitente. A atuação cognitiva judicial deve se restringir aos aspectos sintáticos (estrutura), semânticos (sentido) e pragmáticos (função) das cláusulas, valendo-se do seu exame confrontado com os textos constitucionais e infraconstitucionais penais. Tal aferição do termo pelo juiz deve envolver, portanto, tríplice análise (§ 7º, do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013): regularidade, legalidade e voluntariedade. Ao exigir a apreciação a partir desses três prismas, o legislador incorreu em redundância, apesar de parcial. Isso porque o termo “regularidade”, qualidade de “regular”, remete ao sentido de “legalidade”, por significar algo que é conforme às leis, à praxe e à natureza29. (1) Regularidade indica que o acordo deve ser conforme às regras, dotado de juridicidade (adequação às leis, à Constituição, às fontes do direito estatal). (2) Legalidade é vocábulo cujo teor está abrangido pela regularidade. No entanto, a sua menção tem importância para além do pleonasmo quando se compreende sua finalidade de frisar que o termo de colaboração premiada deve se ater à legalidade estrita, princípio caro ao direito penal e processual penal. (3) Voluntariedade: o ato volitivo, de anuência do delator capaz, deve ser livre, isento de pressões, aferido pelo registro das negociações (por meio de áudio, de áudio e vídeo e/ou de escritos). O termo abrange os requisitos intrínsecos e formais da confissão, meio de prova que tem por espécie a delação premiada. O tema é relevante. O Supremo Tribunal Federal, por seu órgão pleno, aduziu, em 27/8/2015, ao julgar o Habeas Corpus 127483, que “a homologação judicial do acordo de colaboração, por consistir em exercício de atividade de delibação, limita-se a aferir a regularidade, a voluntariedade e a legalidade do acordo, não havendo qualquer juízo de valor a respeito das declarações do colaborador” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. HC 127483. Rel. Min. Dias Toffoli. j. 27 ago. 2015). Note-se, entrementes, que a impossibilidade de recair cognição sobre o valor da prova ou do meio de obtenção de prova não deve significar óbice para o exame da constitucionalidade e da legalidade das cláusulas do acordo.

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Debateu-se no STF duas questões principais30. (1) A primeira, se o relator tem competência para proferir decisão de homologação do termo de acordo de colaboração premiada: a Corte deliberou, por maioria, que não é necessária a submissão do acordo de delação premiada ao órgão colegiado. Esse posicionamento não se revela compatível com a lógica do funcionamento colegiado dos tribunais. Sem embargo, homologado o acordo por decisão monocrática, entende-se possível o manejo de agravo interno (regimental), por um dos pactuantes ou por coautor do delito cuja esfera jurídica se veja afetada pelo teor das cláusulas. A preclusão pro judicato da decisão homologatória do termo de acordo, com óbice à revisibilidade de suas condições, deve se subordinar à necessidade de intimação dos sujeitos que possam sofrer prejuízo jurídico, com o fito de não se tornar imutável benefícios fixados sem obediência ao Código Penal e à Lei de Execução Penal. A ilicitude da vantagem (excessiva, ilegal ou inconstitucional) conferida ao delator, quando homologada pelo juiz, tem como decorrência necessária a criação de prova (ilegítima) contra o corréu, obtida mediante ato configurador de abuso do poder de barganha. O questionamento de cláusula assim viciada, pelo corréu prejudicado, deve ser admitido em sede de apelação ou de outro recurso cabível contra a sentença ou a decisão homologatória, pondo obstáculo à sua imutabilidade31, como avivado acima. (2) A segunda questão enfrentada no apontado julgado do STF consiste em saber se é possível, depois de preclusa a decisão homologatória do acordo de cooperação premiada, a revisão das cláusulas pelo mesmo órgão judicial ou pelas instâncias superiores quando da decisão condenatória final. Sobre o BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. PET 7074 QO/DF. Rel Min. Edson Fachin. j. 29 jun. 2017. 31 A necessidade de intimação de corréu mencionado no acordo de colaboração premiada, com o objetivo de assegurar recurso de fundamentação limitada (restrito ao controle da legalidade, regularidade e voluntariedade do ajuste), justifica a conclusão de que o teor das promessas consignadas nas cláusulas do acordo de colaboração premiada não podem ser reexaminadas. Sem essa cautela, a barganha pode ganhar caráter de discricionariedade, arbítrio e abusos, como, por exemplo, a fixação de penas bem aquém do mínimo legal e aquém da redução autorizada por lei em razão da colaboração (excesso de vantagens ao delator em detrimento da liberdade do coautor). A propósito, o STF destacou que “os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. HC 127483. Rel. Min. Dias Toffoli. j. 27 ago. 2015). O impedimento de revisar a brandura concedida (como contrapartida do regime de suspensão pactuada das garantias do delator), depois de sentença de homologação preclusa, encontra respaldo no ordenamento jurídico, afinal, são regras estatuídas no sistema brasileiro as do favor rei, da vedação de reformatio in pejus (ainda que indireta), da coisa julgada e a de que ninguém deve ser processado duas vezes pelo mesmo fato (ne bis in idem). Para dar plausibilidade a essas garantias, há de ser reconhecido o direito de intimação dos delatados com legitimidade para interposição de recurso de fundamentação vinculada aos aspectos lógico-formais do acordo homologado (regularidade, legalidade e voluntariedade). Sem isso, cria-se sistema negociado processual penal suplantador do sistema legislado de tradição continental, em afronta à Constituição. 30

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tema, o STF já havia se manifestado negativamente32: depois de homologado o acordo, o instituto deve ser preservado, para se assegurar sua viabilidade, salvo nulidade tão somente superveniente (e não contemporânea ao acordo ou à homologação). O juízo sobre o mérito, que relaciona os benefícios de forma proporcional, correlata à efetiva contribuição, permanece reservado à sentença condenatória, segundo a Suprema Corte, no referido julgado (sem eficácia geral, ao menos por enquanto)33. Colocada a problemática que envolve o instituto da cooperação premiada, pergunta-se: a sentença de homologação de termo de colaboração premiada produz coisa julgada material? O caráter retratável da cooperação premiada, mesmo depois de homologada, indica não ser possível formação de coisa julgada material, com o qualitativo de imutabilidade. Ademais, os efeitos do acordo somente devem ser completados depois da certificação sobre a efetividade da colaboração prometida no ajuste. É o que se depreende do § 10, do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013, ao destacar que “as partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”, e do § 11, do mesmo dispositivo legal, ao frisar que a sentença (logicamente, a final, condenatória ou absolutória) “apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia”. Seguindo os passos de doutrina abalizada, pode-se assentar que o acordo de colaboração premiada não constitui um processo sob o crivo do contraditório, razão pela qual a sua sentença homologatória não tem aptidão para produzir coisa julgada material. James Goldschmidt, nesse diapasão, explica que “el proceso es el procedimiento cuyo fin es la constitución de la cosa juzgada, es decir, del efecto de que la pretensión del actor valga en el porvenir ante los Geraldo Prado pontua, apropriadamente, que “preservar o acordo homologado, desde que o colaborador cumpra com a sua parte, é a maneira de assegurar que a ‘suspensão pactuada de garantias’ não seja uma fraude estatal por meio da qual, aí sim, o Estado Policial estaria a se infiltrar” (PRADO, Geraldo. Justificando. Uma vez homologada a delação, pode a justiça voltar atrás e rever o acordo? Carta Capital. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com. br/2017/06/28/colaboracao-premiada-acordo-atuacao-do-ministerio-publico-e-homologacao-judicial/>.Acesso em: 17 jul. 2017).A ressalva que pode ser oposta, sem discordância com o entendimento do autorizado jurista, é o de que se assegure direito ao recurso dos envolvidos na delação (recurso de fundamentação restrita, como se disse acima, em nota de rodapé, a fim de se coibir inversão do ordenamento jurídico pátrio), viabilizando controle efetivo de regularidade, legalidade e voluntariedade do ajuste. Harmoniza-se tal controle com o dever do Estado de preservar seus compromissos e inadmite-se abuso de plea bargain ou aplicação do direito norte americano no Brasil, sem respeito as fontes de cognição do direito estatal. 33 Extrai-se do Informativo nº 870, de 19 a 30 de junho de 2017, do STF: “A Corte destacou, no ponto, que esse provimento interlocutório — o qual não julga o mérito da pretensão acusatória, mas resolve uma questão incidente — tem natureza meramente homologatória, limitando-se ao pronunciamento sobre a regularidade, legalidade e voluntariedade do negociado (art. 4º, § 7º, da Lei 12.850/2013). O juiz, ao homologar o acordo de colaboração, não emite juízo de valor a respeito das declarações eventualmente prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao Ministério Público, nem confere o signo da idoneidade a seus depoimentos posteriores” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. PET 7074 QO/DF. Rel Min. Edson Fachin. j. 29 jun. 2017). 32

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tribunales como jurídicamente fundada o no fundada”34. O processo, dialético, é situação jurídica indispensável à formação da res judicata (material), não se amoldando a ele procedimentos de natureza investigativa. A sentença homologatória se submete a um regime preclusivo. Ocorre preclusão para os signatários do acordo de colaboração premiada depois que decorrido prazo recursal. Não deve se operar preclusão relativamente aos prejudicados (corréus delatados), enquanto eles não tiverem sido intimados de seus termos, notadamente quando o pactuado com o delator permanecer sob sigilo35. Depois de cientes estes últimos, e decorrido o prazo recursal, haverá preclusão máxima impeditiva de revisão das cláusulas do termo homologado36. Os efeitos do negócio processual serão perfazidos, ao final, depois de atestada a efetividade da colaboração prometida. Na sentença final do processo criminal, aliás, o juiz deverá confrontar os termos do acordo homologado com a prova, a fim de analisar e descrever o grau de efetividade da colaboração pactuada. Esse o sentido do § 11, do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013:“A sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia”. Isso equivale a afirmar que o juiz poderá declarar a ineficácia do acordo homologado quando se verificar que não foi demonstrada a eficácia da suposta colaboração, quando poderá, justificada e fundamentadamente, negar a aplicação dos benefícios naquele previstos. Cabe, a propósito, alusão à Súmula Vinculante nº 35, do STF, aplicável à transação penal, do rito dos juizados especiais criminais. Não porque se concorde integralmente com o posicionamento nela cristalizado, mas em face dela realçar a inaptidão para coisa julgada material de uma sentença homologatória. Em compasso com seu teor, caso desatendidas as condições fixadas na transação penal homologada, retorna-se ao status quo ante, possibilitando oferecimento de denúncia37. GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso: teoria general del proceso. 2. ed. Buenos Aires: EJEA, 1961. p.37. 35 O § 3º, do art. 7º, da Lei nº 12.850/2013, dita que “o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observado o disposto no art. 5º”. Pondere-se que a supressão de sigilo não deve autorizar publicidade ampla e irrestrita, própria de trial by media ou apta a afetar a imagem, a honra e a intimidade de investigados. A garantia de liberdade de imprensa e o direito à informação não devem chegar a esse ponto. O levantamento do segredo tem como destinatários os demais investigados, que devem ser intimados para fins recursais ou impugnativos. 36 Aplicável, à hipótese, raciocínio análogo à Súmula nº 160, do Supremo Tribunal Federal, que pontificar ser “nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício”. Dessa forma, uma vez homologado o acordo, o Poder Judiciário somente poderá revisar suas cláusulas mediante impugnação de prejudicado pelos efeitos defluentes da decisão homologatória. Transcorrido in albis o prazo recursal, após ciência dos interessados, a preclusão quanto à reanálise do conteúdo para o juiz deve ser máxima. Em outras palavras, a não incidência das cláusulas ajustadas deverão depender da verificação de ineficácia do pactuado por ocasião da sentença penal de mérito. 37 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 35.“A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a conti34

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3.3. CLÁUSULAS DO TERMO DE ACORDO DE DELAÇÃO PREMIADA, LEGALIDADE E NULIDADE: A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O SISTEMA CIVIL LAW BRASILEIRO Com o aquecimento dos debates em torno dos seguidos termos de delação premiada firmados no âmbito da batizada “operação lava jato”, boa parte da doutrina processual penal passou a dedicar atenção ao teor das suas cláusulas, sob o ponto de vista da constitucionalidade e da legalidade, apontando a inadequação com o sistema brasileiro, eis que de tradição continental (civil law)38. (1) Na tentativa de evitar que se resvale em inconsistências, as cláusulas devem seguir estritamente os lindes impostos pelos enunciados da Lei nº 12.850/201339. Em outros termos, entende-se que as tratativas e a formalização das cláusulas não devem suplantar a legislação penal e processual penal. É indispensável que a normatividade seja observada, para que não se desague em utilitarismo, como ilustra Rosivaldo Toscano40. O discurso eficientista, de combate à impunidade, de guerra à corrupção, não deve autorizar punição a qualquer preço, sem acatamento ao legislado, com prevalência do negociado. Esse proceder não é valioso ao Estado Democrático de Direito41.

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nuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial”. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario. asp?sumula=1953>. Acesso em 21 jul. 2017. Em trabalho anterior, o problema relativo aos efeitos negativos de introdução de institutos estrangeiros em sistema de tradição diversa já havia sido enfatizado, ao destacarmos que “essa incorporação, pelo Brasil – país de tradição continental –, de institutos próprios da common law é realizada, por muitas vezes, sem cautelas importantes no que toca ao contexto de origem em cotejo com as desigualdades sociais e a cultura jurídica formalista pátria. Isso implica em, pelo menos, duas possibilidades. A primeira é a de que sejam introduzidos mecanismos jurídicos de maneira desvirtuada, sem que se cuide para que seu controle ocorra adequadamente. A segunda é a da inserção de institutos incompatíveis com a forma de funcionamento do direito em local de nuanças diferenciadas. Daí que a importação do direito alienígena não pode ser feita sem os devidos cuidados, especialmente levando em consideração os contextos históricos, culturais e sociais do país de destino” (ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Efeito vinculante e concretização do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009. p.25). Advertimos para essa necessidade no estudo: ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Indiciamento e persecução penal das organizações criminosas: limites conceituais à incidência das normas. In: Paulo de Barros Carvalho; Robson Maia Lins (Orgs.). Ensaios sobre jurisdição federal. Sao Paulo: Noeses, 2014. p. 933-975. Nas palavras do autor, alertando sobre os riscos de uma eficiência sem normatividade, “esse discurso fluido e tentador ainda paira sobre boa parcela dos atores jurídicos, e sua adoção inautêntica corrompe a prática judiciária, transformando-a em utilitarismo. Esvazia-se moralmente o direito, e sua autonomia é corrompida” (SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. A guerra ao crime e os crimes da guerra: uma crítica descolonial às políticas beligerantes no sistema de justiça criminal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p.398). JARDIM, Afrânio Silva. Garantismo no processo penal: breve e parcial reflexão. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de janeiro (UERJ), a.8, n.14, p.10, jul.-dez. 2014. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/issue/view/936>. Acesso em: 22 abr. 2015.

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(2) Com essa premissa, não é admitido pelo ordenamento jurídico brasileiro, no âmbito das tratativas, da lavratura do termo de delação premiada e da respectiva homologação, que os órgãos oficiais da persecução penal hajam sem que estejam estrita e expressamente autorizados por lei. O uso de medidas cerceadoras da liberdade deve se adequar ao art. 312, do CPP. Não há autorizativo à aplicação do “dilema do prisioneiro”, a fim de empurrar o investigado a delatar. Nesse diapasão, Alexandre Morais da Rosa ensina que essa tática foi criada por Merrill Flood e Melvin Dresher, em 1950, com reflexos no campo das delações premiadas, haja vista que “o manejo de prisões cautelares procura colocar os investigados/acusados em situação de déficit de informações”. Limita-se a comunicação entre acusados, de forma que o primeiro a confessar ganha quantidade considerável de diminuição da pena42. Note-se que, além de inapropriado ao contexto constitucional, as cláusulas de redução de pena devem se submeter aos limites da própria Lei nº 12.850/2013. (3) Os limites legais devem ser cogentes, retratando constrangimentos dogmáticos aos personagens jurídicos do Estado43. O Ministério Público deve estar adstrito à estrita letra do ordenamento posto, observando o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública (art. 129, I, CF), suas mitigações excepcionais dentro dos espaços expressamente gizados por diploma legal (lei em sentido formal e material), acatando a cláusula do devido processo legal44. Afrânio Silva Jardim, a propósito, denunciou, em vários estudos, que cláusulas de termos de delações premiadas extrapolaram o autorizado pelo direito posto45.Veja-se que, na hipótese, aponta-se que, através de termos de cooperação premiada, foram constituídos meios de obtenção de prova (as delações documentadas nos termos), em prejuízo de terceiros (supostos corréus), a partir da promessa de vantagens excedentes ao autorizado por lei (capaz de tornar ilegítima a prova obtida a partir daí). (4) As cláusulas viciadas não devem estar imunes a controle, notadamente dos prejudicados pela delação obtida com negociação contrária à Lei nº ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p.48. Na esteira do autor, o Estado deve agir com boa-fé objetiva:“não pode praticar ilegalidades, omitir informações desfavoráveis, valer-se de métodos não autorizados em lei, potencializar inescrupulosamente elementos probatórios, mesmo que os agentes pensem que seja por bons motivos, aumentando a capacidade de obter vitórias processuais” (Idem. p. 192). 43 João Maurício Adeodato, ao aludir aos “constrangimentos dogmáticos”, evidencia a indispensabilidade de um procedimento que estabeleça a forma de produção de normas: “é preciso antes de tudo fixar as regras de base, aquelas que definem quem vai e como vai fixar outras regras para decidir casos individuais. Não pode haver dogmática sem um sistema de regras (supostamente) explícitas” (ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011. p.116-117). 44 JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: Estudos e pareceres. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p.362. 45 Conferir, dentre outros: JARDIM, Afrânio Silva. Delação premiada: o sistema de justiça criminal sendo substituído por um contrato. Empório do Direito. Disponível em: <http:// emporiododireito.com.br/delacao-premiada-o-sistema-de-justica-criminal-sendo-substituido-por-um-contrato-por-afranio-silva-jardim>. Acesso em: 17 jul. 2017. 42

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12.850/2013, ao Código Penal e à Lei de Execução Penal. O proceder eivado de nulidade não deve precluir em favor do delator até que se dê ciência aos delatados e lhes seja autorizado impugnar por meio de recurso (apelação, se perante juiz de primeiro grau, a teor do art. 393, II, CPP). Note-se que, uma vez homologado, o Judiciário não pode revisar as cláusulas ex officio contra o delator, mas poderá fazê-lo se houver recurso do corréu prejudicado, evidenciando vícios quanto ao exame de regularidade, legalidade e voluntariedade da avença. Somente se nenhum interessado recorrer é que surgirá para o Estado-juiz o dever respeitar os limites impostos por ele mesmo, por ter homologado termo de delação premiada. Ao cabo, visa-se evitar contradição lógica: de um lado, a produção de efeitos de termo de colaboração premiada contra legem, com validade para o delator beneficiado, limitando, em certa medida, a cognição do juiz quanto à imposição de pena; de outro, o aproveitamento de prova obtida com base naquele termo, a partir de delação viciada (prova ilegítima, porque se alcançou confissão sem respeito ao regrado pela Lei nº 12.850/2013). A incidência de controle sobre a decisão homologatória, mediante a possibilidade de impugnação dos interessados, por meio dos recursos previstos no ordenamento jurídico, tem o propósito de impedir tal contradição. (5) O regime de nulidades deve ser aplicado à sentença de homologação e ao termo de colaboração premiada46. A luz do § 8º, do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013,“o juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto”. A recusa deve ser fundamentada, descrevendo a espécie de nulidade (vício), da qual decorre a decretação de invalidação do ajuste. Por exemplo, é hipótese de nulidade absoluta o acordo firmado sem respeito aos ditames do § 15, daquele dispositivo legal, por não estar o colaborador regularmente assistido por defensor de sua livre escolha47.

CONCLUSÕES De tudo que foi examinado neste estudo, apresentado como ponto inicial para outras reflexões sobre a colaboração premiada aplicável à criminalidade organizada, são deduzidas as seguintes ilações. a) A colaboração premiada prevista na Lei nº 12.850/2013 exige respaldo empírico de delito imputável a pessoas que estejam sob o seu âmbito de incidência, com elementos de informação que preencham o conceito legal de organização criminosa. Caso se verifique o não atendimento desses requisitos, deve-se entender pela ineficácia da colaboração. b) O direito brasileiro não admite cooperação premiada de pessoa sobre a qual não recai imputação. A colaboração premiada deve ter sentido ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. p.515-516. 47 O indigitado enunciado reza que “em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor”. 46

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estrito de delação premiada (chamamento de coautor), sendo exigível investigação formal contra o colaborador. Delação premiada é confissão composta: o colaborador afirma fato desfavorável a si e aponta coautoria. Vale afirmar, antes de indicar corréu, o colaborador produz um meio de prova (fonte de prova) e um ato probatório (afirma fato contra si mesmo). Deve a confissão atender aos seus requisitos formais (extrínsecos) e materiais (intrínsecos), consoante reiterada lição doutrinária. O termo de acordo de delação premiada documenta negócio jurídico (bilateral), de natureza complexa e condicional. De um lado, sujeita-se à condição suspensiva porque, enquanto não verificada a eficácia da colaboração por procedimento contraditório, não deve se operar os efeitos benéficos em favor do colaborador, a exemplo do perdão judicial, que não se impõe de imediato, dependendo de processo de conhecimento e de sentença de mérito. De outra vertente, o termo também está submetido à condição resolutiva, por ser possível seu desfazimento pelo implemento da vontade dos pactuantes (é retratável) ou pela verificação de ineficácia da cooperação. A sentença de homologação de termo de delação premiada não faz coisa julgada material. Sobre ela, apenas se opera a preclusão, observadas as regras de comunicação processual. Depois de levantado o sigilo, deve ser assegurada a intimação dos investigados delatados, que poderão impugná-la por meio dos recursos gizados no ordenamento jurídico. Não havendo impugnação dos acordantes ou de qualquer interessado, com a preclusão para os corréus, ou exauridos os recursos, o Estado-juiz deverá respeitar o aventado no acordo, sem possibilidade de revisão de cláusulas, submetendo-as à aferição de efetividade quando da sentença final. As cláusulas do acordo de colaboração premiada e a correspondente sentença de homologação devem se submeter ao princípio da legalidade, atender ao sistema constitucional brasileiro (tradição continental), bem como se sujeitar ao regime de nulidades, com vistas a assegurar garantias fundamentais do colaborador e dos delatados.

REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria da nulidade no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. ______. Indiciamento e persecução penal das organizações criminosas: limites conceituais à incidência das normas. In: Paulo de Barros Carvalho; Robson Maia Lins (Orgs.). Ensaios sobre jurisdição federal. Sao Paulo: Noeses, 2014. p. 933-975. ______. Efeito vinculante e concretização do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2009. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. HC 127483. Rel. Min. Dias Toffoli. j. 27 ago. 2015. 308 BOOK.indb 308

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POR TRÁS DAS DECISÕES DE JUÍZES: ALGUMAS BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE MODELOS DE DECISÃO JUDICIAL

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Sergio Nojiri1

INTRODUÇÃO Não há sombra de dúvida que o Poder Judiciário brasileiro ocupa hoje uma posição de relevância política e institucional jamais vista na história deste país. Decisões judiciais, tidas como “ativistas”, acusadas de interferência na ordem política e com sérias consequências não somente jurídicas, mas também sociais e econômicas, se tornaram quase um lugar-comum. Pense, por exemplo, nos recentes julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as uniões homoafetivas, a questão da fidelidade partidária, as cotas em universidades públicas, os royalties do petróleo, o julgamento do Mensalão e o financiamento das campanhas eleitorais. Boa parte do que ocorreu de mais expressivo nos últimos anos na vida pública brasileira passou pelo plenário do STF ou de alguma outra corte ou, ainda, em algum juízo de 1a instância (a Operação Lava-Jato é o exemplo mais evidente). Recentemente, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) absolveu o Presidente Michel Temer no processo de cassação da chapa formada por ele e a ex-Presidente Dilma Rousseff. Foram quatro votos a três contra a cassação no processo aberto a pedido do PSDB, derrotado naquela disputa. Com o resultado do julgamento, Michel Temer, que concorreu como vice de Dilma, se manteve no cargo. O voto decisivo, a favor de Temer, surgiu da lavra do Ministro Gilmar Mendes, que muitos consideraram um voto de natureza “política”. Para o reforço dessa impressão basta ler os jornais de então, que noticiaram uma fala do ministro que aparentemente estaria, a partir de uma análise política (e não jurídica), justificando o seu voto: “Se a chapa fosse cassada, o país seria jogado numa outra crise, seria lançado a um quadro de incógnita”.2 Juiz Federal, Titular da 9ª Vara de Execuções Fiscais de Ribeirão Preto. Professor Doutor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Email: snojiri@ trf3.jus.br; nojiri@usp.br 2 http://www.jb.com.br/opiniao/noticias/2017/06/19/o-voto-de-gilmar-mendes-e-o-julgamento-de-aecio-neves/ 1

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Em uma outra entrevista o mesmo Ministro Gilmar Mendes, indagado se o julgamento no TSE, que absolveu a chapa vitoriosa na eleição de 2014, teria motivações políticas ao invés de jurídicas, utilizou uma metáfora futebolística, considerando “absolutamente normal” seu posicionamento. Respondeu que em um jogo de “Fla-Flu” as pessoas acabam tendo uma opção. E, especificamente, se o TSE teria realizado uma análise mais política do que jurídica do caso, o ministro apenas respondeu: “Bobagem”.3 Outro Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, que participou deste mesmo julgamento no TSE, apesar de ter votado favoravelmente à cassação da chapa, afirmou que o resultado do julgamento foi “ótimo”. O que chamou a atenção, no entanto, foi seu comentário de que o seu próprio voto não levou em consideração “vaidades” da Corte:“Não disputei vaidades. Pensei no que é melhor para o Brasil”, afirmou, em evento realizado em São Paulo, logo após o julgamento.4 Diariamente tomamos contato com notícias divulgadas a respeito de posicionamentos de juízes em casos de alta repercussão social, política ou econômica. Muitas delas, como visto, insinuam que decisões de magistrados frequentemente são motivadas por fatores extralegais, que nada dizem respeito ao conteúdo da lei, da Constituição ou dos precedentes judiciais. As notícias sugerem que os fundamentos das decisões judiciais possivelmente decorram de fatores pessoais (como vaidade ou amizade, p. ex.) ou ideológicos (simpatia ou proximidade partidária, p. ex.). No campo da ciência política, da sociologia, da teoria geral do direito e outras áreas afins, desenvolveram-se teses para a compreensão do fenômeno judicial de criação de direitos pelo judiciário.Aqui, iremos trabalhar três modelos de tomada de decisão judicial: o legal, o atitudinal e o estratégico. A partir desses modelos, pretendemos compreender melhor os mecanismos institucionais, racionais e emocionais que estão subjacentes ao processo cotidiano de decidir e julgar realizado por juízes e juízas.

1. O MODELO LEGAL Este primeiro modelo, apesar de antigo, é possivelmente, ainda nos dias de hoje, o de maior influência na educação jurídica brasileira. Muito do que se ensina nas escolas de direito e que também se aplica no dia a dia dos tribunais decorre desse modelo, que parte do pressuposto de que as decisões judiciais são substancialmente definidas à luz do significado claro e indiscutível das leis, da Constituição e dos precedentes. Dessa forma, haveria pouco espaço para fatores extrajudiciais (como p.ex. preferencias pessoais) no ato de decidir, uma vez que https://oglobo.globo.com/brasil/gilmar-compara-julgamento-no-tse-fla-flu-diz-que-criticas-sao-normais-21472912 4 https://oglobo.globo.com/brasil/fux-diz-que-tse-usou-artificio-para-excluir-delacoes-do-julgamento-da-chapa-dilma-temer-21467204 3

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juízes e juízas devem se basear única e exclusivamente nas fontes oficiais do direito, principalmente na lei. De acordo com o modelo legal, juízes decidem casos através da aplicação sistemática das fontes externas e objetivas de autoridade, com especial atenção à lei. Quando os juízes escrevem suas decisões ou se manifestam oralmente nos tribunais, justificam suas conclusões por meio da aplicação fundamentada dessas fontes de autoridade. Este modelo reflete a teoria da tomada de decisão judicial da forma como ela é comumente ensinada nas escolas de direito: as decisões judiciais são o produto de uma análise imparcial e fundamentada em fontes aceitas de autoridade (CROSS, 2003, p. 1462). Na cultura jurídica anglo-saxã, especialmente a norte-americana, usualmente se afirma que o modelo legal esteve em voga no início do século vinte, em pleno auge do formalismo jurídico. Uma aplicação formalista do direito postulava, essencialmente, a existência de uma única resposta correta para as questões legais que os juízes devem resolver. Alguns chegaram a afirmar que essa prática, lógico-dedutiva e que desconsiderava as consequências sociais da decisão, era mecânica (no sentido de automática), razão pela qual se cunhou a expressão mechanical jurisprudence. As teorias formalistas afirmavam, resumidamente que: 1) a lei é “racionalmente” determinada, ou seja, do conjunto disponível de leis para um juiz fundamentar a decisão há um único resultado possível para o caso; (2) o processo de tomada de decisão é, portanto, “autônomo” em relação a outros tipos de raciocínio, ou seja, o juiz pode alcançar a decisão requerida sem recorrer a considerações não legais. Brian Leiter, que chama este tipo de raciocínio de “Formalismo Vulgar”, enfatiza que esta é uma visão com a qual não precisamos nos preocupar porque ninguém se enquadra nela atualmente. É verdade, diz Leiter, que o raciocínio dedutivo do modelo silogístico é uma característica da maioria das opiniões judiciais bem-feitas, mas a maior parte do raciocínio jurídico raramente é “mecânico”, no sentido de “óbvio” ou de realizado por uma máquina, como o rótulo pejorativo implica. Esse raciocínio é muitas vezes contestável e contestado, razão pela qual a expressão “mecânico” não traz muita luz à questão da natureza do raciocínio jurídico (LEITER, 2010, p. 2).5 No Brasil, embora nossas influências tenham sido diversas das dos Estados Unidos e outros países de common law, também por aqui tivemos um período de interpretação e aplicação do direito de forte traço formal e legalista. Isso se deveu, em grande parte, por conta de teorias da interpretação, formuladas Além dos formalistas “vulgares”, Leiter menciona ainda juristas que, embora estejam comprometidos com os itens 1) e 2) acima mencionados, são por ele chamados de formalistas “sofisticados”. Eles são assim considerados porque reconhecem que o raciocínio jurídico não é mecânico, que exige a identificação de fontes de direito válidas, a interpretação dessas fontes, a distinção entre fontes relevantes e irrelevantes, e assim por diante. Eles oferecem um relato teórico de como esses vários raciocínios são feitos “corretamente”. Seu principal porta-voz teórico, na opinião de Leiter, é Ronald Dworkin, e de maneiras diferentes, Robert Bork e Justice Scalia. No presente trabalho consideramos apenas o modelo legal “vulgar” para fins de comparação com outros modelos.

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por civilistas franceses e belgas, desenvolvidas em face do Código Civil francês de 1804 (também conhecido por Código de Napoleão). Essas teorias foram amplamente recepcionadas pela maior parte dos juristas brasileiros do final do século XIX e início do século XX. Ao grupo de juristas europeus se deu o nome de Escola da Exegese, que se caracterizou por sua técnica de interpretação do código, que era de um exacerbado legalismo na interpretação e que se confundia com a mera revelação do conteúdo literal do texto legal. Tal método era, portanto, basicamente declaratório, no qual ao intérprete ou aplicador da lei não caberia ir além ou aquém do significado gramatical do texto, sob pena de estar violando a própria vontade estatal, personificada na forte figura do legislador. O único direito, segundo essa visão, é aquele contido na lei, que nada mais era que a vontade expressa do legislador (NOJIRI, 2005, p. 51-53). Apesar de o modelo legal ter nascido há muito tempo, algumas de suas características se mantêm, especialmente aquela que afirma que a tomada de decisões judiciais não deve ser, de forma alguma, dependente das preferências subjetivas dos juízes. Nesse sentido, muitos ainda acreditam que a política, por exemplo, não deve compor a análise legal do caso, devendo ser mantida separada do direito. No entanto, alguns poderão dizer que no mundo “real” juízes e juízas tendem a decidir fortemente influenciados por suas respectivas ideologias. Isso, no entanto, não significa que os métodos legais (com ênfase no texto da lei, precedentes, etc.) não desempenham nenhum papel no julgamento. O que se quer afirmar é que no processo de deliberação judicial, os fatores legais possivelmente atuam mais como restrições aos juízes do que como forças motivadoras (EPSTEIN et al., 2012, p. 706).

2. O MODELO ATITUDINAL6 Conforme visto, para o modelo legal juízes decidem ações judiciais à luz dos enunciados legais, dos precedentes, e do texto da Constituição, muitas vezes considerando apenas a intenção dos legisladores. O modelo atitudinal, por sua vez, decorre em grande medida de conceitos elaborados pelo realismo jurídico norte-americano, que sustentava que os juízes decidem disputas judiciais com fundamento em suas posições ideológicas e valores subjetivos. Jerome Frank, um dos mais destacados realistas norte-americanos, já nos anos 30 do século passado, afirmava que as leis não podiam ser confundidas com tabelas de logaritmo, que os advogados poderiam, se quisessem, utilizar para encontrar respostas legais exatas. Frank afirmou de forma incisiva que a lei, como a temos, é incerta, indefinida e sujeita a mudanças incalculáveis. A lei, segundo pensava, sempre foi, é, e continuará sendo, em boa medida, vaga e variável. E como poderia ser de outra forma? A lei trata das relações humanas Atitudinal, aqui, decorre da palavra em inglês attitude, que é a forma como você pensa ou sente sobre algo ou alguém. Não se trata, portanto, de utilizar a palavra atitudinal no sentido comportamental, de maneira de agir.

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em seus aspectos mais complicados. Mesmo em uma sociedade relativamente estática, afirmou Frank, as pessoas nunca conseguiram construir um conjunto abrangente e eternizado de regras que antecipassem todas as possíveis controvérsias legais e que as resolvesse antecipadamente. Mas mesmo que existisse tal ordem social, ninguém poderia prever todas as futuras variações e combinações de eventos. (SEGAL; SPAETH, 2002, p. 88). O modelo atitudinal, que é uma combinação de conceitos-chave do realismo jurídico, da ciência política e da psicologia, sustenta que, especialmente nas cortes superiores, os casos são decididos à luz de valores ideológicos de juízes. Nesse sentido, é possível afirmar, por exemplo, que os Ministros Luiz Fux e Gilmar Mendes, no mencionado julgamento realizado no TSE, divergiram, não por conta da leitura da lei ou da Constituição, mas devido a posicionamentos ideológicos diversos. Neste modelo, portanto, parte-se da premissa de que as convicções ideológicas do julgador influenciam de forma marcante o raciocínio decisório. Juízes, segundo o modelo atitudinal, não têm condições de anular seus próprios valores ideológicos do cômputo de seu processo de tomada de decisão, tornando, assim, suas preferências políticas bons indicadores de suas futuras decisões, especialmente nos chamados “casos difíceis” (hard cases), nos quais a lei ou os precedentes não indicam com clareza a resposta correta ou quando estão em debate controvertidos questionamentos morais. O modelo atitudinal, no entanto, não parte do pressuposto de que juízes tenham algum interesse econômico imediato nas ações que julgam, mas reconhece que, ao julgar em conformidade com suas próprias convicções políticas e ideológicas, juízes estariam exercendo, direta ou indiretamente, um papel político. Nesse mesmo sentido, Richard A. Posner compara juízes e artistas: Artistas criam obras de arte que transformam a sensibilidade; juízes tomam decisões que transformam as práticas sociais ou empresariais. Artistas impõem sua visão estética sobre a sociedade; juízes impõem sua visão política sobre a sociedade. Eles fazem isso principalmente através da força de precedente de suas decisões, uma vez que uma única decisão raramente tem um grande impacto (POSNER, p. 121, 1995).7

Nos Estados Unidos, berço do modelo atitudinal, muitos estudos abordaram a influência nas decisões judiciais de juízes classificados de liberais ou conservadores, a partir, respectivamente, da indicação política ao cargo, se decorrente do Partido Democrata ou do Partido Republicano (p. ex, SUSTEIN et al., 2006). Parte-se da premissa de que certos juízes teriam uma tendência a julgar seus casos conforme seus próprios posicionamentos ideológicos. Aten No original: “Artists make works of art that change sensibility; judges make decisions that change social or business practices. Artists impose their aesthetic vision on society; judges impose their political vision on society. They do this mainly through the precedential force of their decisions, since a single decision rarely has a great impact.”

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te-se que lá, como aqui, os cargos de juiz da cúpula do Poder Judiciário são preenchidos por indicação presidencial. Considerando que no Brasil o parágrafo único do art. 101 da Constituição Federal prevê que os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República é importante conhecer o impacto nas decisões judiciais das preferências políticas de cada juiz investido no cargo por nomeação política. Nos Estados Unidos, como se viu, os juízes nomeados pelos presidentes republicanos, ou que são republicanos, são considerados mais conservadores do que os nomeados por presidentes democratas. Na Noruega, os pesquisadores levantam a hipótese de que os juízes nomeados pelos governos socialdemocratas são economicamente mais liberais do que os não relacionados à socialdemocracia. Na Inglaterra, presume-se que os juízes são conservadores caso filiem-se ao partido conservador e progressistas se forem do partido trabalhista (ou liberal). E assim por diante. (EPSTEIN et al., 2017, p. 6-7). Mas é necessário um pouco de precaução. Apesar de algumas pesquisas terem demonstrado diferenças substanciais entre a forma como democratas e republicanos votaram em casos de sindicatos nos Estados Unidos, não foram encontradas discrepâncias significativas nas áreas de direito penal e liberdades civis, nem em casos de regulamentos governamentais contestados por empresas. Os juízes nomeados por Lyndon Johnson, por exemplo, não eram mais susceptíveis de se pronunciar a favor dos acusados criminais ​​ do que os juízes nomeados por Dwight Eisenhower. Em outra pesquisa verificou-se que em cinco das vinte e quatro áreas jurídicas analisadas, o partido do juiz nomeado não era um preditor especialmente bom do voto do juiz (EPSTEIN et al., 2017, p. 8-9). No Brasil, Roberto Tagliari Cestari, em um estudo de avaliação da produção acadêmica do modelo atitudinal no país, descobriu, dentre outras coisas: 1) divergências em estudos realizados por outros autores acerca dos resultados do impacto das dimensões ideológicas de ministros indicados pelo ex-Presidente Lula; 2) uma tendência de o STF decidir favoravelmente aos interesses econômicos e financeiros do governo federal; 3) que o STF possui um modelo institucional complexo e bem diferente da Suprema Corte americana; 4) que a maior parte dos trabalhos sobre o modelo atitudinal são de ciência política e não de direito; 5) dificuldades de realização das pesquisas de natureza quantitativas (e também das qualitativas), especialmente para os oriundos da área jurídica porque carecem de conhecimentos estatísticos para a realização de pesquisas de corte empírico (CESTARI, 2016, p. 85-86).

3. O MODELO ESTRATÉGICO Segundo o modelo atitudinal, juízes decidem casos com base em suas atitudes ideológicas. Nesse sentido, juízes conservadores, do ponto de vista político, decidem da maneira como decidem justamente porque são conservadores e, da mesma forma, juízes liberais (no sentido de progressistas) decidem da maneira 318 BOOK.indb 318

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como decidem justamente porque são liberais. O modelo estratégico, também conhecido por “racional”, de seu turno, acentua o fato de que juízes procuram alcançar seus objetivos políticos atuando estrategicamente, isto é, atendendo às preferências e ações prováveis dos ​​ atores que estão em posição de influenciar, positiva ou negativamente, a realização de seus objetivos políticos. O modelo estratégico (ou racional) parte do princípio de que como todos os seres humanos, os juízes têm uma variedade de objetivos em seu trabalho profissional. Como muitos estudiosos do comportamento judicial apontaram, os juízes, ainda que em graus variados, buscam popularidade e respeito nos assuntos legais da comunidade jurídica ou da comunidade como um todo, além de poder dentro do tribunal e melhoria em seu status financeiro. Embora as decisões possam refletir o desejo do juiz de obter uma interpretação precisa da lei, as respostas também podem refletir preocupações mais pessoais, ou mesmo egocêntricas, como manter boas relações pessoais com os outros juízes ou limitar a própria carga de trabalho (WRIGHTSMAN, 2006, p. 134). Além disso, os objetivos do juiz podem refletir o desejo de satisfazer uma parte do público. No Brasil, principalmente naqueles casos em que os juízes são nomeados a cargos em instâncias superiores por intermédio de uma indicação política, ele ou ela pode querer chamar a atenção do Presidente da República ou de deputados e senadores. Embora juízes não tenham que defender uma reeleição, a natureza política de sua nomeação significa que o objetivo de ser sensível às necessidades de alguns atores políticos é algo que não pode ser simplesmente descartado. Lawrence S. Wrightsman cita dois livros, The Choices Justices Make, de Lee Epstein e Jack Knight (1998), e Crafting Law on Supreme Court, de Forrest Maltzman, James F. Spriggs II e Paul J.Wahlbeck (2000), como marcos no modelo estratégico, que deram um novo impulso à abordagem da escolha racional. Do primeiro livro, Wrightsman seleciona o seguinte trecho: ... [juízes] não são personagens não sofisticados que fazem escolhas com base apenas em suas próprias preferências políticas. Em vez disso, juízes são atores estratégicos que percebem que sua capacidade de atingir seus objetivos depende da consideração das preferências dos outros, das escolhas que eles esperam que outros façam e do contexto institucional em que atuam. Em outras palavras, as escolhas dos juízes podem ser explicadas como um comportamento estratégico, não apenas como respostas à ideologia pessoal ou à jurisprudência apolítica... O direito, tal como é produzido pelo Supremo Tribunal, é um produto a longo prazo de tomada de decisões estratégicas de curto prazo (WRIGHTSMAN, 2006, p. 135).8 No original: “[justices] are not unsophisticated characters who make choices based solely on their own political preferences. Instead, justices are strategic actors who realize that their ability to achieve their goals depends upon a consideration of the preferences of others, of the choices they expect others to make, and of the institutional context in which they act. In other words, the choices of justices can best be explained as strategic behavior, not solely as

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O segundo grupo de autores, por sua vez, argumentou que os cálculos estratégicos dominam as decisões dos juízes. Os dois livros compartilham a tese de que existem regras, procedimentos e normas da instituição para impor restrições a juízes para que eles deixem simplesmente de traduzir suas atitudes, valores e preferências políticas em suas decisões judiciais. Os pressupostos básicos do que é referido como o modelo de escolha racional, conforme refletido nesses escritos recentes, são os seguintes: 1) Os atores sociais, incluindo juízes, fazem escolhas para alcançar determinados objetivos; 2) Os atores sociais, incluindo os juízes, atuam estrategicamente na medida em que suas escolhas dependem do que eles esperam que os outros atores façam; 3) Essas escolhas são limitadas por uma configuração institucional na qual elas são feitas (WRIGHTSMAN, 2006, p. 136). Os juízes estratégicos consideram os efeitos de suas escolhas sobre os resultados coletivos, tanto no seu próprio tribunal quanto nas áreas judiciais e políticas mais amplas. Em outras palavras, eles simplesmente não fazem o que lhes parece certo, como votar a política mais desejável em matéria de liberdade de expressão, por exemplo. Em vez disso, eles procuram que a coisa certa triunfe na decisão de sua corte e, mais importante, na política pública como um todo. Por esse motivo, sempre que os juízes estratégicos escolhem entre os cursos de ação alternativos, eles pensam antes nas consequências futuras e escolhem o curso que mais faz para avançar seus objetivos no longo prazo. Para alcançar esse resultado, os juízes podem decidir e escrever votos que diferem de suas próprias concepções do que é certo. Assim, não podemos assumir que o voto de um juiz em um caso de liberdade de expressão reflete plenamente a sua concepção de boa política. Se o objetivo de um juiz de um tribunal de apelação é promover a liberdade de expressão tanto quanto possível, ele pode assumir uma posição mais moderada em um caso particular, a fim de ganhar o apoio da maioria para uma decisão pró livre discurso. O juiz também pode tentar evitar uma decisão que provoque o Congresso a promulgar uma legislação que limite a liberdade de expressão. Os juízes podem atuar estrategicamente para avançar uma variedade de objetivos, não apenas uma boa política (BAUM, 2006, p. 6). Simpatizantes de modelos estratégicos, como Lawrence Baum, Lee Epstein e Jack Knight, sublinham alguns recursos muito atraentes que fornecem um quadro abrangente e coerente para a análise do comportamento judicial, principalmente por promoverem rigor na análise desse comportamento. Por causa dessas virtudes, afirma Baum, os modelos estratégicos tornaram-se altamente influentes, e uma concepção estratégica do comportamento judicial é agora a coisa mais próxima de uma sabedoria convencional sobre o comportamento judicial (BAUM, 2006, p. 7). responses to either personal ideology or apolitical jurisprudence… The law, as it is generated by the Supreme Court, is a long-term product of short-term strategic decision making.”

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4. SOBRE OS TRÊS MODELOS O juiz em conformidade com o primeiro modelo de comportamento judicial apresentado, o legal, busca apenas a boa aplicação da lei. Em outras palavras, este juiz pretende interpretar a lei com precisão, geralmente sem se preocupar com as consequências políticas que daí possam resultar. Esta explicação sobre o comportamento judicial ainda é, de certa forma, predominante na maioria das faculdades de direito e em boa parte da prática judicial. Mas pelo menos desde o movimento legal realista, poucos estudiosos aceitam plenamente esta explicação. No entanto, os próprios realistas legais discordavam acerca do papel que atribuíam à lei. Aqueles que poderiam ser chamados de realistas jurídicos radicais rejeitaram em grande parte a lei como base para a escolha judicial, como, por exemplo, Jerome Frank nos anos 1930 e mais recentemente os teóricos legais críticos do movimento Critical Legal Studies. Em contraste, os realistas jurídicos moderados deixaram espaço para a lei no cálculo da decisão (por exemplo, Benjamin Cardozo). Nesta última concepção, os juízes podem decidir uma questão judicial fazendo suas próprias escolhas com base tanto no que consideram ser uma boa política como na opinião de como a lei ou a Constituição é melhor interpretada. Mas mesmo os chamados “moderados” concordam que as preferências políticas dos juízes representam uma parte substancial e talvez a maior parte das decisões judiciais (BAUM, 2006, p. 8 e 9). Isto nos leva às duas últimas abordagens, atitudinal e estratégica, que diferem em pontos importantes, mas, na prática, enfatizam a política em oposição à lei. Nenhuma delas postula a tese de que juízes são agentes neutros de aplicação de princípios e regras. Em vez disso, ambas afirmam que a ideologia é uma força motriz na política - inclusive na magistratura. Visto dessa forma, as abordagens atitudinais e estratégicas oferecem uma opinião fundamentalmente diversa em relação ao processo de tomada da decisão judicial daquelas defendidas pelos legalistas tradicionais, ainda popular em alguns círculos de direito. O modelo legal, como tivemos oportunidade de ver, rejeita qualquer espaço para considerações políticas no ato de julgar, com uma forte tendência a tratar (e até mesmo venerar) juízes como árbitros apolíticos, apartidários, que resolvem as disputas com referência somente à lei ou a uma metodologia específica para interpretá-la (textualismo, originalismo, etc.). As abordagens que maximizam as políticas não necessariamente rejeitam um papel da lei nas decisões judiciais, em vez disso, tendem a vê-la como um constrangimento sobre a capacidade dos juízes para decidir conforme sua própria ideologia (EPSTEIN et alii, 2017, p. 4). Não está claro se os defensores do modelo atitudinal estão dizendo que os valores ideológicos são os únicos determinantes das decisões dos juízes, mas possivelmente sua posição não deve ser tão extrema. Pensando a partir de uma visão mais moderada, é mais provável que juízes reconheçam que sua posição, em casos específicos, pode vir a ser influenciada por suas próprias experiências 321 BOOK.indb 321

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de vida, mas isso não significa a adoção do modelo atitudinal em sua versão mais radical. Nesse sentido, a manifestação do juiz Breyer a um grupo de estudantes mencionada por Lawrence S. Wrightsman: Eu sou um ser humano... Porque sou um ser humano, meu passado... Meus próprios pontos de vista, claro, me moldarão. Eles fazem a diferença. Alguém com diferentes experiências de vida têm pontos de vista diferentes; Isso influenciará a maneira como eles olham as coisas. Mas isso é muito diferente de dizer: “Oh, eu decido o que quiser”. Eu entendo que meu passado, perspectivas, valores e tudo mais me influenciam. Mas eu não sinto que sou livre para escolher qualquer resultado que eu acho que é bom. (WRIGHTSMAN, 2006, p. 131).9

CONSIDERAÇÕES FINAIS Utilizamos três modelos de análise do comportamento judicial para melhor entender o processo de tomada da decisão judicial. E, ao final, fica a pergunta: eles foram suficientes para nos auxiliar na compreensão do processo de tomada da decisão judicial? Antes de responder a esta pergunta é necessário deixar bem claro que partimos da seguinte premissa: o mundo real é extraordinariamente complexo. As pessoas são complicadas e os juízes também. Embora fenômenos naturais muitas vezes possam ser reduzidos perfeitamente a sucintas fórmulas como E = mc2, as causas do comportamento humano são tipicamente muito mais complexas. Nesse sentido, qualquer opção metodológica que tivéssemos optado, como a de análise de julgados, por exemplo, não seria suficiente. A complexidade do comportamento humano poderia ocasionar anos de estudo de uma única decisão judicial e ainda assim não resultar em sua plena compreensão. Dado que os indivíduos raramente entendem suas próprias decisões, é imensamente mais difícil entender completamente as decisões dos outros (SEGAL; SPAETH, 2002, p. 45). Os modelos de análise das decisão judiciais de certa forma reconhecem a complexidade do mundo que nos rodeia, no entanto, eles postulam que a tentativa de tentar aprender tudo sobre uma coisa pode não ser a melhor abordagem. Em vez disso, de forma quantitativa ou qualitativa, os modeladores tentam examinar os aspectos que mais explicam uma gama mais ampla de comportamentos. Conhecer os fatores mais importantes que afetam milhares de decisões pode ser muito mais benéfico do que aprender tudo o que há para saber sobre uma única decisão. É justamente aqui onde entram os modelos. Um modelo é uma representação simplificada da realidade. Ela própria não No original: “I’m a human being… Because I’m a human being, my own background… my own views, will of course shape me. They make a difference. Somebody with different life experiences has different views to a degree; that will influence the way that they look at things. But that’s very different from saying, “Oh, I decide whatever I want.” I understand that my background, outlook, values, and everything influence me. But I don’t feel I’m free to choose any result I happen to think is good”.

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constitui a própria realidade. Os modelos ignoram propositadamente certos aspectos da realidade e se concentram em um conjunto selecionado e muitas vezes relacionado de fatores cruciais.Tais simplificações fornecem um identificador útil para a compreensão do mundo real. (SEGAL; SPAETH, 2002, p. 45). Se partimos da premissa de que todos os modelos de comportamento humano simplificam a realidade, tenderíamos a acreditar que eles são insuficientes para a compreensão do processo de tomada da decisão judicial.Todavia, mesmo os modelos altamente simplificadores podem ser muito úteis. Na verdade, esses modelos facilitam o estudo do comportamento, tornando a análise mais gerenciável. Os modelos simplificadores que os estudiosos empregam para estudar juízes fizeram muito para nos ajudar a entender o processo de tomada de decisões judiciais. E nosso entendimento continua a crescer (BAUM, 2006, p. xi).

REFERÊNCIAS BAUM, Lawrence. Judges and their Audiences: A Perspective on Judicial Behavior, Princeton University Press, 2006. CESTARI, Roberto Tagliari. Decisão Judicial e Realismo Jurídico: Evolução das pesquisas sobre o comportamento judicial. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Direito), Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. 2016. EPSTEIN, Lee et al. Ideology and the Study of Judicial Behavior. Ideology, Psychology, and Law, ed. Jon Hanson. Oxford University Press. 2012. EPSTEIN, Lee et al. Politics and the Legal System. Oxford Handbook of Public Choice, ed. Roger Congleton, Bernard Grofman, and Stefan Voigt. Oxford University Press, 2017. Disponível em: http://epstein.wustl.edu/research/ PoliticsLegalSystem.pdf. Acesso em 07.07.2017. LEITER, Brian. Legal Formalism and Legal Realism: What Is the Issue? University of Chicago Public Law & Legal Theory Working Paper, No. 320, 2010. Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1178&context=public_law_and_legal_theory. Acesso em: 04.07.2017. NOJIRI, Sergio. A Interpretação Judicial do Direito. São Paulo: RT, 2005. POSNER, Richard A. Overcoming Law. Harvard University Press, 1995. SEGAL, Jeffrey A.; SPAETH, Harold J. The Supreme Court and the attitudinal model revisited, Cambridge University Press, 2002. SUNSTEIN, Cass R. et al. Are judges political? An empirical analysis of the federal judiciary. Washington, DC: Brookings Institution Press, 2006. WRIGHTSMAN, Lawrence S. The Psychology of the Supreme Court. Oxford University Press, 2006.

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VARAS FEDERAIS AMBIENTAIS: EXPERIÊNCIA, DIFICULDADES, PERSPECTIVAS

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Silvia Regina Salau Brollo1

INTRODUÇÃO O artigo 225 da Constituição de 1988 é a referência normativa da proteção ao meio ambiente. Nele estão consagrados os parâmetros mínimos do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e nele se encontra o correlato dever fundamental, imposto ao Poder Público e à coletividade, de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Ao mencionar o Poder Público, a Constituição de 1988 inclui todas as funções estatais: a legislativa, a administrativa e a judiciária. Desta forma, a atividade legislativa estatal está condicionada aos princípios e regras constitucionais de proteção ao meio ambiente; a atividade administrativa deve dar aplicabilidade às leis de defesa do meio ambiente; ao Poder Judiciário incumbe dar efetividade ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. E se ao Judiciário é atribuído esse dever, ele tem que dispor dos meios para cumpri-lo. Na consecução de sua tarefa constitucional, o Poder Judiciário lança mão dos instrumentos processuais adequados à tutela desse direito difuso, amplíssimo e transgeracional. Mas também é altamente recomendável que o Poder Judiciário especialize unidades judiciárias, turmas ou câmaras para o trato da matéria ambiental, em virtude da especificidade do objeto ambiental e dos interesses difusos envolvidos. A especialização das unidades judiciárias constitui instrumento de gestão do trabalho e, por isso mesmo, dispensa a prévia elaboração de lei específica2. Juíza Federal da 11a Vara Federal de Curitiba. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos pela Universidade de Pisa. Especialista em Direito Contemporâneo pelo Instituto de Ciências Sociais do Paraná. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. email silvia. brollo@trf4.jus.br 2 Aqui cabe esclarecer que a criação de varas judiciárias depende da elaboração de lei, pois cria cargos e impacta a despesa pública (art. 96, I, d; art. 48, X, ambos da Constituição de 1988). 1

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Ora, de acordo com a Constituição de 1988, compete aos tribunais organizar os juízos que lhes forem vinculados (art. 96, I, b, segunda parte), sendo assegurada a autonomia administrativa dos tribunais (art. 99). Havendo, portanto, vontade institucional em especializar unidades judiciárias em matéria ambiental, basta ato normativo emanado pelo respectivo tribunal, dispensando-se a elaboração de lei para tanto. Nesse aspecto, o Tribunal Regional Federal da 4a Região foi pioneiro em especializar em matéria ambiental, no longínquo ano de 2005, três Varas Federais, cada uma delas localizada na capital dos estados que integram a quarta região (Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre)3. As Resoluções/TRF4 39/2005, 54/2005 e 55/2005 especializaram a jurisdição das então denominadas 9a Vara Federal de Curitiba, 5a Vara Federal de Porto Alegre e 1a Vara Federal de Florianópolis, respectivamente, em direito ambiental e agrário, mantendo a competência remanescente para assuntos cíveis. Tratou-se, na verdade, de semi-especialização porque, a par da competência privativa em matéria ambiental e agrária, manteve-se a competência cível (matéria tributária, aduaneira, administrativa etc) então atribuída às unidades judiciárias 4.

1. VARA FEDERAL AMBIENTAL DE CURITIBA: EXPERIÊNCIA A Vara Federal Ambiental de Curitiba - atualmente denominada 11a Vara Federal - tem competência privativa, na Subseção de Curitiba, para processar e julgar causas ambientais veiculadas em ações individuais e processos coletivos. A partir de 2015, a competência para processar e julgar crimes ambientais foi deslocada para a 23a Vara Federal dessa mesma Subseção Judiciária. Importante frisar, num primeiro momento, que a competência é privativa no âmbito da Subseção Judiciária de Curitiba. Ou seja, nem todas as causas ambientais da competência federal que são ajuizadas no Paraná devem ser deslocadas para Curitiba. É exatamente por isso que outras Varas Federais do Paraná5 também julgam causas ambientais, o que representa uma vantagem Atualmente, também há Varas Federais especializadas em matéria ambiental em Manaus/AM; Belém, Santarém e Marabá/PA, São Luiz/MA e Porto Velho/RO. 4 Nesses doze anos de especialização, as Varas Federais Ambientais da 4a Região sofreram alterações na sua competência originária. Na Subseção Judiciária de Curitiba, a Resolução TRF4 95/2015 retirou a competência criminal da agora denominada 11a Vara Federal, atribuindo-a à 23a Vara Federal. As Resoluções TRF4 23 e 75, ambas de 2016, ampliaram a competência cível ambiental da 11a Vara Federal. A Vara Federal Ambiental de Florianópolis - 6a Vara Federal - sofreu alteração na sua competência pelas Resoluções TRF4 91/2013 e 107/2016. Além de matéria cível, a referida unidade judiciária agrega competência para processar e julgar crimes ambientais. A Vara Ambiental de Porto Alegre - 9a Vara Federal - sofreu alteração de competência pelas Resoluções TRF4 11/2016 e 69/2017. Desde abril de 2016, os crimes ambientais são processados e julgados pela 7a Vara Federal de Porto Alegre. 5 A Seção Judiciária do Paraná é atualmente composta por vinte Subseções Judiciárias: Apucarana, Campo Mourão, Cascavel, Curitiba, Foz do Iguaçu, Francisco Beltrão, Guaíra, Gua3

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muito grande ao acesso à justiça, pois o jurisdicionado pode recorrer ao juízo mais próximo da localidade do dano ambiental para propor as medidas judiciais cabíveis à sua cessação, recuperação ou reparação. Além disso, o juízo do local conhece as peculiaridades ambientais da região e pode, com mais segurança, decidir as questões ambientais que lhe são postas. A competência da Vara Ambiental inclui a matéria administrativa, cível e tributária; as execuções fiscais ambientais e os respectivos embargos à execução; os direitos indígenas; os direitos sobre terras de quilombolas; a discussão sobre direitos e títulos minerários; os terrenos de marinha, pagamento de foro ou taxa de ocupação; o meio ambiente cultural e o patrimônio histórico. A 11a Vara Federal mantém a competência agrária, expressa principalmente no processo e julgamento das desapropriações por interesse social, e a competência residual - que inclui, por exemplo, o processamento de ações indenizatórias por responsabilidade civil do Estado, a discussão dos direitos dos servidores públicos, a análise de licitações, as ações civis públicas por improbidade administrativa. Assim, o que se tem é uma semi-especialização da unidade judiciária, pois o número de causas ambientais não justifica que sua competência seja exclusivamente ambiental. A fim de ilustrar o trabalho cotidiano da Vara Federal Ambiental de Curitiba, serão relacionados alguns casos, escolhidos tanto pelo impacto que provocaram na comunidade quanto pelo ineditismo ou mesmo por se tratarem de questões cotidianas de uma vara ambiental. Em todos esses casos, que não tramitam sob o segredo de justiça, identifica-se o número dos autos para facilitar a pesquisa, pelo leitor interessado, dos pormenores do processo. Os casos serão apresentados aleatoriamente, sem nenhum compromisso com a data em que proferida a decisão, e trazem decisões proferidas pelos quatro magistrados que atuaram perante a unidade judiciária6. Passa-se a eles: Ação civil pública nº 00.00.86736-5, proposta pelo Ministério Público Federal a fim de impor ao IBAMA o fechamento da estrada que corta o Parque Nacional do Iguaçu (historicamente conhecida como Estrada do Colono) e a restauração do ambiente na área por ela ocupada; Ação civil pública nº 2001.70.00.000582-0, proposta pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Estado do Paraná para condenar a Petrobrás S.A. à indenização dos danos ambientais advindos do derramamento de óleo cru no entorno da Refinaria Presidente Getúlio Vargas (REPAR); Ação civil pública nº 2007.70.00.015712-8, proposta por organizações não governamentais em face da União, Bayer S.A, Syngenta Seeds Ltda e Monsanto do Brasil visando à proibição de comercialização do milho geneticamente modificado denominado Liberty Link; rapuava, Jacarezinho, Londrina, Maringá, Paranaguá, Paranavaí, Pato Branco, Pitanga, Ponta Grossa, Telêmaco Borba, Toledo, Umuarama e União da Vitória. 6 Os juízes federais Nicolau Konkel Junior e Silvia Regina Salau Brollo e os juízes federais substitutos Pepita Durski Tramontini e Flávio Antônio da Cruz.

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Procedimento comum nº 5014480-12.2011.404.7000/PR, em que se discute a vedação, pelo art. 47 da Lei 11.196/2005, de crédito de PIS e COFINS na aquisição de desperdícios, resíduos ou aparas de plástico, papel ou cartão, vidro, ferro ou aço, cobre, níquel, alumínio, chumbo, zinco e estanho para a produção de papel e embalagens de papelão; Mandado de segurança nº 5048306-53.2016.4.04.7000, em que o impetrante discute a atualização monetária da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental; Embargos à execução fiscal nº 5028519-72.2015.4.04.7000, em que o executado se insurge contra a cobrança de Imposto Territorial Rural sobre área de preservação permanente e reserva legal; Procedimento comum nº 5042918-14.2012.4.04.7000, em que o IBAMA, a BS Colway e a ABIP - Associação Brasileira da Indústria de Pneus Remoldados discutem a divulgação de informações ambientais; Ação civil pública nº 5000773-69.2014.404.7000, que discute a utilização, no âmbito da Faculdade de Medicina da UFPR, de animais em quaisquer procedimentos experimentais e/ou aulas didáticas que lhes causem lesões físicas, dor ou morte; Ação civil pública nº 5004891-93.2011.404.7000/PR, que pretende a indenização de danos morais e materiais que teriam sido causados pela extração de chumbo no Município de Adrianópolis; Procedimento comum nº 5001539-54.2016.4.04.7000, em que produtores rurais lindeiros ao Lago de Itaipu pretendem a indenização por danos sofridos pela alteração do clima local; Ação civil pública nº 5011371-24.2010.4.04.7000, proposta pelo Município de Balsa Nova visando a apurar ato de improbidade administrativa ambiental; Ação civil pública nº 5000189-75.2014.4.04.7008, em que o ICMBio pretende que seis famílias guaranis desocupem unidade de conservação de proteção integral; Ação civil pública nº 5040944-34.2015.4.04.7000, em que o Ministério Público Federal pede que o Estado do Paraná e a União promovam concurso público para provimento de cargo de professor de escola indígena; Ação civil pública nº 501958931-2016.4.04.7000, em que o Ministério Público Federal quer impelir a União a dar andamento ao processo de demarcação de terra indígena no sudoeste do Estado; Autos nº 5018352-98.2012.4.04.7000, em que se pretende a reintegração de posse que teria sido esbulhada por quilombolas; Ação popular nº 50043496520174047000, em que se discute a responsabilidade ambiental de instituição financeira; Ação civil pública nº 5007442-75.2013.4.04.7000, ajuizada pelo Ministério Público Federal em face do IPHAN, visando ao tombamento do prédio histórico da UFPR; Procedimento comum nº 5002828-66.2014.4.04.7008, em que se discute construção em zona de amortecimento de unidade de conservação; 328 BOOK.indb 328

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Usucapião nº 2009.70.08.001570-5, em que se pede o reconhecimento de domínio sobre terreno de marinha; Ação civil pública nº 5035354-76.2015.4.04.7000, ajuizada por organização não governamental visando à reparação dos danos ambientais decorrentes do lançamento de resíduos em aterro sanitário que não respeita padrões de manejo e tratamento dos resíduos. A breve relação de processos demonstra a diversidade de assuntos sujeitos à jurisdição da Vara Ambiental. Há casos ambientais veiculados em ações individuais, mas muitas pretensões são veiculadas por ações coletivas, propostas pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública, por autarquias federais (IBAMA, ICMBio), por entes políticos (União, Municípios), por organizações não governamentais e até mesmo por cidadãos, no caso das ações populares ambientais. Muitas dessas causas demandam verdadeira intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas, aqui entendidas como a atuação estatal para assegurar a satisfação de direitos fundamentais. O controle jurisdicional de políticas públicas pressupõe um Estado de Direito, pelo qual o poder estatal deve ser desempenhado de acordo com a lei e a Constituição, e democrático, assegurando a participação dos cidadãos na gestão da coisa pública.

2. VANTAGENS E DESVANTAGENS DA ESPECIALIZAÇÃO A especialização da jurisdição ambiental vem demonstrando inúmeras vantagens. A primeira delas é que os juízes, servidores e estagiários tendem a ser mais preparados para a análise das causas, pois é cediço que a legislação ambiental brasileira é ampla e dispersa em vários diplomas legislativos. Conhecê-los não é tarefa fácil. O contato diário com as questões ambientais mantém gestores e colaboradores familiarizados com os dilemas inerentes às disputas ambientais, bem como atualizados com as constantes novidades legislativas e científicas na área. Essa maior capacitação evidencia outra vantagem da especialização: a busca incessante por uma maior efetividade da tutela jurisdicional. Busca-se atender, com a celeridade possível e com a amplitude viável da discussão, a implementação dos direitos ambientais consagrados pela Constituição de 1988. Uma terceira vantagem da especialização, que merece destaque, é a segurança jurídica advinda da previsibilidade das decisões judiciais. As partes conhecem, de antemão, os procedimentos adotados pelo juízo especializado e podem, assim, planejar sua atuação processual e até mesmo evitar atos e procedimentos que serão pouco eficientes na defesa de seus interesses. As vantagens da especialização podem, no entanto, transformar-se em desvantagens quando juízes e servidores estão desmotivados ou tecnicamente despreparados; em face da redução do campo de discussão das questões ambientais e pela previsibilidade das decisões judiciais. 329 BOOK.indb 329

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Explica-se. A especialização das varas judiciárias tem por escopo principal a prolação de decisões tecnicamente adequadas e consentâneas com a realidade social. Se o corpo funcional não está motivado, nem atualizado, o Poder Judiciário acaba prestando um desserviço à sociedade. Para que isso não aconteça, é recomendável a busca por capacitação constante e, sempre que possível, coletiva. Nesse sentido, a 11a Vara Federal de Curitiba realiza, semestralmente, ciclos de atualização em matéria ambiental a que se submete todo o corpo funcional (juízes, servidores, estagiários). São convidados professores universitários para exporem novidades sobre diversos temas, tais como o Código Florestal, a Lei da Biodiversidade, o licenciamento ambiental, as peculiaridades do processo penal envolvendo pessoa jurídica. Trata-se de construção coletiva do conhecimento, que proporciona a abertura do Poder Judiciário à academia, servindo como uma via de mão dupla, em que tanto o corpo funcional como os professores se beneficiam da troca de experiências. A segunda desvantagem da especialização da unidade judiciária consiste na possibilidade de redução do campo de discussão das questões ambientais. Já se disse, neste trabalho, sobre a amplitude do objeto ambiental, que consagra direito difuso de que são titulares tanto as presentes como as futuras gerações. Pois bem. A concentração das decisões num órgão jurisdicional acaba por alijar do debate pontos de vista diversos sobre uma mesma questão ambiental. Ora, as relações ambientais são multipolares, isto é apresentam mais de um polo de interesses, mas nem todos eles são abarcados pelo órgão jurisdicional, na medida em que o juiz tem que conduzir o processo de forma a prolatar uma decisão segura e efetiva. Para tanto, precisa concentrar os debates em pontos principais, sob pena de a ampliação desmesurada ocasionar o non liquet. Esse recorte faz com que não seja possível incluir no processo ambiental todos os interesses reflexamente atingidos por uma questão ambiental. Assim, a restrição dos debates, necessária para conduzir a uma decisão judicial, tem como efeito reverso (e perverso) uma visão estreita das discussões ambientais. Um antídoto contra esse estreitamento dos debates pode ser o auxílio do amicus curiae, espécie de intervenção de terceiros que passou a ser expressamente permitida no primeiro grau de jurisdição pelo art. 138 do Código de Processo Civil. De acordo com Eduardo Talamini,“o amicus curiae é terceiro admitido no processo para fornecer subsídios instrutórios (probatórios ou jurídicos) à solução de causa revestida de especial relevância ou complexidade, sem no entanto, passar a titularizar posições subjetivas relativas às partes (nem mesmo limitada e subsidiariamente, como o assistente simples” (TALAMINI, 2015, p. 439). Ou seja, a intervenção do amicus curiae possibilita a pluralização do debate, o que contribui para a qualidade das decisões judiciais, na medida em que a sentença tem que analisar seus argumentos (art. 489, §1º, IV do Código de Processo Civil). Uma terceira possível desvantagem da especialização consiste na previsibilidade das decisões judiciais. A segurança jurídica só é bem vinda quando 330 BOOK.indb 330

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a decisão é favorável ao nosso ponto de vista. Caso contrário, parece verdadeiro entrave ao avanço da jurisprudência. Nesse sentido, a previsibilidade das decisões ambientais de um órgão jurisdicional especializado pode demandar da parte maior carga de fundamentação, inovações na dilação probatória e utilização de instrumentos e técnicas ambientais diferenciados para a tutela de seus interesses. Ou pode acontecer, simplesmente, que seja desaconselhável rediscutir questão sobre as quais já se formou precedente judicial (art .332 do Código de Processo Civil). As ponderações sobre vantagens e desvantagens querem provocar o leitor a refletir que cada ponto positivo encontra uma crítica negativa, tudo a demonstrar que não há soluções perfeitas.

3. PERSPECTIVAS No cumprimento da sua missão constitucional, o Poder Judiciário deve valer-se dos instrumentos processuais adequados à tutela justa e efetiva do meio ambiente ecologicamente equilibrado. No âmbito da jurisdição civil, o Novo Código de Processo Civil perdeu a oportunidade de tratar das ações coletivas, tão necessárias à tutela de direitos difusos. Mas há ao menos duas possibilidades de utilização da técnica processual à tutela ambiental: a distribuição dinâmica do ônus da prova e os processos estruturais. A regra geral do ônus da prova continua sendo sua distribuição estática (e prévia), isto é, o autor tem o ônus de provar o fato constitutivo do seu direito e o réu tem o ônus de provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Cientes dos seus ônus, as partes planejam suas condutas probatórias conforme seja mais conveniente para a defesa dos seus interesses. Mas o Código de Processo Civil, que tem como princípio a cooperação, possibilita ao juiz que, em situações excepcionais, neutralize a conduta probatória da parte que, estando em melhor condições para o esclarecimento da questão fática, não o faz. Daí porque, diante das peculiaridades da causa, o juiz pode distribuir o ônus da prova de forma diferente daquela prevista no caput do art. 373 do Código de Processo Civil. Para tanto, a decisão deverá ser fundamentada, isto é, precisa identificar o fato específico que precisa ser provado bem como o motivo pelo qual está transferindo o ônus à parte adversa. Os motivos capazes de ensejar a distribuição dinâmica do ônus da prova são a impossibilidade ou a excessiva dificuldade de cumprir o encargo e a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário para a parte onerada judicialmente. O juiz não pode transferir o ônus da prova para a outra parte quando ela não está em melhores condições para produzi-la. Finalmente, o juiz deve conceder à parte excepcionalmente onerada a oportunidade de produzir a prova. 331 BOOK.indb 331

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No âmbito das ações coletivas, o art. 21 da Lei nº 7.347/1985 (lei de ação civil pública) expressamente remete à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor que tratam da defesa do consumidor em juízo. Cabe salientar que embora o art. 21 faça referência ao Título III do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se as disposições processuais constantes do referido código às ações coletivas, inclusive a regra constante do art. 6º,VIII - inversão do ônus da prova, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando a parte for hipossuficiente econômica, técnica ou juridicamente. Essa disposição é consentânea com os princípios da precaução e da prevenção, veiculados pelo princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, segundo os quais a ausência de certeza científica não serve como óbice para a tomada de medidas economicamente viáveis para evitar a degradação ambiental. Havendo, portanto, indícios de que determinado empreendimento causará dano ambiental, o possível degradador deverá provar que seu empreendimento é seguro e que eventuais impactos ambientais negativos poderão ser evitados, mitigados ou adequadamente compensados. Além da previsão legislativa, a doutrina tem trabalhado para superar o processo civil clássico, com posições estanques, com a vinculação do juiz ao pedido das partes (princípio da demanda) e feito para a solução de controvérsias eminentemente privadas entre particulares. A doutrina oferece, então, ao magistrado novos padrões de atuação. É o caso dos processos estruturais (structural injunctions), construção doutrinária norte-americana e usada, por exemplo, pela Suprema Corte no caso Brown vs. Board of Education. Trata-se do célebre caso em que o Judiciário concluiu pela inconstitucionalidade da política de segregação racial nas escolas do Kansas. Transcorrido um ano da decisão da Suprema Corte, as escolas informaram a dificuldade em implantar a nova política de não discriminação. E foi aí que a Suprema Corte deu cumprimento ao seu julgado progressivamente, adotando medidas que eliminassem os obstáculos criados pela discriminação, sob a supervisão de cortes locais. No dizer de Sérgio Cruz Arenhart: Percebeu-se que muitas decisões sobre questões coletivas exigem soluções que vão além de decisões simples a respeito de relações lineares entre as partes. Exigem respostas difusas, com várias imposições ou medidas que se imponham gradativamente. São decisões que se orientam para uma perspectiva futura, tendo em conta a mais perfeita resolução da controvérsia como um todo, evitando que a decisão judicial se converta em problema maior do que o litígio que foi examinado. As questões típicas de litígios estruturais envolvem valores amplos da sociedade, no sentido não apenas de que há vários interesses concorrentes em jogo, mas também de que a esfera jurídica de vários terceiros pode ser afetada pela decisão judicial. (ARENHART, 2015)

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A racionalidade dos processos estruturais tem ampla possibilidade de aplicação em causas ambientais complexas, nas quais os litígios são policêntricos ou multipolares, isto é, envolvem uma miríade de centros de interesses, muito além daqueles veiculados numa relação linear. Justamente por envolverem questões complexas com vários problemas subsidiários é que se deve atenuar o princípio da demanda (afinal de contas, os legitimados ativos não são os únicos titulares do direito difuso). A implementação das decisões necessita de constante fiscalização e acompanhamento (pelo Judiciário ou por terceiros, como os órgãos de proteção ambiental), através da elaboração de relatórios, de vistorias, de inspeção judicial, de audiências.

4. PARA ALÉM DA ATIVIDADE JURISDICIONAL O estudo da temática ambiental envolve o conhecimento de conceitos utilizados por outras ciências, como Biologia, Química, Física, Antropologia, Arqueologia, Geografia, Geologia, Economia. A especificidade desses conhecimentos demanda, mais das vezes, a realização de provas periciais, a cargo de profissionais que precisam ser isentos, tecnicamente capacitados e hábeis em traduzir seus conhecimentos a uma linguagem clara e acessível aos operadores do Direito. Encontrar peritos especialistas nem sempre é fácil. Um dos caminhos percorridos pela Vara Federal Ambiental de Curitiba para encontrar os peritos mais adequados é firmar termos de cooperação técnica com universidades, fundações ou outras organizações não governamentais que ajudem o juiz a decidir qual a melhor especialidade técnica para elaborar um laudo pericial. Não se trata, ressalte-se, de intromissão indevida no julgamento, mas sim em aporte de dados para possibilitar uma nomeação de perito que realmente auxilie na instrução processual. Além do contato com universidades e organizações conservacionistas, a Vara Federal Ambiental procura engajar-se em campanhas de responsabilidade ambiental, sejam elas contínuas - como a separação adequada de resíduos sólidos para reciclagem - ou pontuais - como campanha do dia mundial sem carro. A interação com entidades da sociedade civil de proteção ao meio ambiente demonstra a preocupação do Poder Judiciário com a gestão de recursos ambientais, de forma que eles não pereçam para as futuras gerações, tudo em atendimento ao princípio da sustentabilidade.

CONCLUSÕES O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito fundamental e incumbe ao Poder Judiciário garanti-lo e dar-lhe concretude. Para tanto, o Poder Judiciário deve valer-se de instrumentos e técnicas processuais adequadas, assegurar o amplo acesso e capacitar constantemente seus juízes e servidores. A especialização de varas judiciárias em matéria ambiental é instrumento de gestão e, por isso mesmo, independe de lei específica, bastando a vontade 333 BOOK.indb 333

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institucional de de propiciar celeridade, ampla participação popular, segurança jurídica e decisões criativas. O Tribunal Regional Federal da 4a Região foi pioneiro em especializar varas federais em matéria ambiental, ainda no ano de 2005. Atualmente, também há varas federais ambientais na 1a Região. Uma das críticas à especialização é o pouco volume de processos ambientais, mas isso é resolvido com a semi-especialização: a Vara Federal Ambiental de Curitiba, por exemplo, tem competência privativa para conhecer e processar causas ambientais e competência concorrente, com as demais varas cíveis da Subseção Judiciária, para conhecer e julgar as causas administrativas comuns. A especialização da jurisdição é o primeiro passo. Segue-se a necessidade de constante capacitação de servidores e juízes na vasta matéria ambiental, a manutenção de contatos institucionais com os órgãos de fiscalização ambiental, com o Ministério Público e a Defensoria Pública, além de diálogos com corpo de peritos para que todos os atores processuais (partes, juízes, peritos) falem a mesma linguagem. As Varas Federais Ambientais não podem descurar da sua responsabilidade sócio-ambiental, sendo altamente recomendável o engajamento em ações específicas ou contínuas - para a defesa do meio ambiente.

REFERÊNCIAS ARENHART, Sergio Cruz. Decisões estruturais no Direito Processual Civil Brasileiro, disponível em http://www.processoscoletivos.com.br/index.php/ 68-volume-6-numero-4-trimestre-01-10-2015-a-31-12-2015/1668-decisoes-estruturais-no-direito-processual-civil-brasileiro, acesso em 13 de julho de 2017. BÓRQUEZ, Juan Carlos Ferrada; SOTO, Jorge Bermúdez; RODRÍGUEZ, Francisco Pinilla (coord..). La nueva justicia ambiental. Santiago: Thomson-Reuters, 2015. BROLLO, Silvia Regina Salau. A extrafiscalidade dos tributos ambientais. Revista de Doutrina da 4a Região, Porto Alegre, n. 66, jun. 2015. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Relações jurídicas poligonais. Ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo. Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente 1/55-66. Coimbra: Almedina, jun. 1994. FERRARO, Marcella Pereira. Do processo bipolar a um processo coletivo-estrutural, disponível em http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/39322/R%20-%20D%20-%20MARCELLA%20PEREIRA%20 FERRARO.pdf?sequence=2. Acesso em 13 de julho de 2017. FREITAS,Vladimir Passos de;AGOSTINI,Andréia Mendonça.A especialização da jurisdição ambiental como garantia de efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v.39, n.128 , p.297-322, dez. 2012. 334 BOOK.indb 334

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KURUKULASURIYA, Lal; POWELL, Kristen A. History of Environmental Courts and UNEP’s Role, disponível em https://law.pace.edu/sites/default/ files/IJIEA/jciPowell&Kurukulasuriya_3-16_History%20of.pdf, acesso em 13 de julho de 2017. LEE, Marilyn Grace. How environmental tribunals contribute to important advances in environmental laws, disponível em https://tspace.library.utoronto. ca/handle/1807/33282, acesso em 13 de julho de 2017. LORENZETTI, Ricardo Luis.Teoria Geral do Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. PRING, George; PRING, Catherine. Greening justice: creating and improving environmental courts and tribunals, disponível em http://www.law.du.edu/documents/ect-study/greening-justice-book.pdf, acesso em 13 de julho de 2017. SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012. SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Revista de Direito Administrativo - RDA 259/11-71. Rio de Janeiro, jan./abr. 2012. TALAMINI, Eduardo. Do amicus curiae. In: Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 438-445.

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“BREVES NOTAS SOBRE A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL EFETIVA E OS CAMINHOS APONTADOS PELO NOVO CPC: A AMPLIAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA EM FACE DOS MÉTODOS AUTOCOMPOSITVOS DE SOLUÇÃO DOS CONFLITOS”

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Sylvia Marlene de Castro Figueiredo1 “Efetividade, em suma, significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão íntima quanto possível, entre o ‘dever-ser’ normativo e o ‘ser’ da realidade social.”2

INTRODUÇÃO O objeto primordial deste trabalho visa examinar a possibilidade de utilização do Poder Judiciário para a ampliação do acesso à Justiça, mediante a implantação de métodos pacíficos de solução de conflitos, dentre eles a conciliação e a mediação judicial. A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, acrescentou o inciso LXXVIII, ao artigo 5º da Constituição Federal, tratando do princípio da razoável duração do processo e dos meios para a garantia da celeridade processual. Inicialmente, cumpre registrar que, na Justiça Federal, a previsão legal de desapropriação, mediante acordo, existe, ao menos, desde o Decreto-Lei nº 3.365/41, no caso de desapropriação.Todavia, a prática conciliatória, rotineira e organizada, remonta aos idos dos anos 2000, principalmente nos casos de Sistema Financeiro de Habitação (SFH), em que se implantou o projeto de conciliação com o objetivo de celebrar acordos relativos ao SFH em processos que tivesse a CEF como parte. Ocorre que, com o crescimento do movimento conciliatório, surgiu a necessidade de capacitar Juízes e conciliadores. Juíza Federal, lotada na 3ª Vara Federal de Sorocaba/SP, Doutora em Direito pela PUC/SP. sfigueir@jfsp.jus.br 2 BARROSO, Luís Roberto,“Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo”, 5ª edição, 2015, São Paulo: Saraiva, p. 255. 1

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Nesta seara, em 2010, o Conselho Nacional de Justiça deu um importante passo no processo de mediação e da conciliação no Poder Judiciário, ao editar a Resolução nº 125/10, que instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, objetivando assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 constitui um divisor de águas em matéria de solução de conflitos. Em seu Capítulo Primeiro, do Título Único, Livro I, da Parte Geral, dedicado às Normas Fundamentais do Processo Civil, assevera ser permitida a arbitragem, na forma da lei; afirma caber ao Estado a promoção da solução consensual dos conflitos; e determina que os operadores do direito deverão estimular a solução em tela (artigo 3º, respectivamente parágrafos 1º, 2º e 3º3). Dessa maneira, recepciona as leis 9.307/1996, 13.129/2015 e 13.140/2015. A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que versa sobre o Novo Código de Processo Civil, demonstra ter alterado a percepção do processo judicial, ao destacar, em seu artigo 3º, § 3º, do Novo Código de Processo Civil, que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.” Ademais, o artigo 6º4, do citado diploma legal, prevê que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.” A conciliação e a medição judicial são regidas pelos artigos 165 a 175 do CPC 2015. O artigo 165, parágrafos 2º e 3º5, traça as diferenças entre conciliação e mediação. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, Art. 3o Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1o É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2o O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. 4 Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 5 Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. § 1o A composição e a organização dos centros serão definidas pelo respectivo tribunal, observadas as normas do Conselho Nacional de Justiça. § 2o O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem. § 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos. 3

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Anote-se, outrossim, que a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, chamada de “Lei da Mediação”, dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Neste diapasão, tem-se o advento da Resolução CJF-RES 2016/00398, de 04 de maio de 2016, que institui, no âmbito da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, a Política Judiciária de solução consensual dos conflitos de interesses, com vistas à efetiva resolução e pacificação social. Destaque-se que, de acordo com “Relatório dos 100 Maiores Litigantes”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2012, o setor público federal ocupa o primeiro lugar no ranking que envolve não apenas a Justiça Federal, mas também a Justiça Estadual e do Trabalho. O maior litigante individual na consolidação dos três ramos do judiciário (Justiça Federal, Justiça Estadual e do Trabalho) é o INSS, com 4,38% do total dos processos distribuídos entre 01/11/2011 a 31/12/20116, do que se extrai a importância e a necessidade da ampliação dos métodos de autocomposição dos confitos.

1. A CONCILIAÇÃO E OS PRINCÍPIOS DA CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO JUDICIAL A conciliação pode ser definida como um processo autocompositivo informal, pacífico e cooperativo de solução de conflitos, que visa um acordo rápido, voluntário e negocial, porém, estruturado, no qual um terceiro, neutro ao conflito, ou mais facilitadores ajudam as partes a encontrar uma solução aceitável e justa para todos7. Vale destacar que, a negociação é assistida e catalisada por um terceiro, mas as decisões cabem aos envolvidos, de modo que o conciliador atua como facilitador do acordo, sendo certo que as partes podem com ele concordar ou discordar, optando, assim, pela via judicial de solução de conflitos. O artigo 1668, da Lei nº 13105, de 16 de março de 2015, explicita os princípios que devem nortear a atividade dos envolvidos na prática dos métodos de autocomposição judicial. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/59351-orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica - último acesso em 17/05/2016. 7 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p. 21. 8 Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, Art. 166. A conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada. § 1o A confidencialidade estende-se a todas as informações produzidas no curso do procedimento, cujo teor não poderá ser utilizado para fim diverso daquele previsto por expressa deliberação das partes. § 2o Em razão do dever de sigilo, inerente às suas funções, o conciliador e o mediador, assim como os membros de suas equipes, não poderão divulgar ou depor acerca de fatos ou elementos oriundos da conciliação ou da mediação. § 3o Admite-se a aplicação de técnicas negociais, com o objetivo de proporcionar ambiente favorável à autocomposição. 6

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Pensamos, outrossim, que os seguintes princípios merecem destaque:

1.1. PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE E IMPARCIALIDADE Segundo esse princípio, o mediador deve agir com neutralidade e respeito, não podendo haver valoração por parte do mediador. Ora, para as partes envolvidas, o mérito é de extrema importância, o que na valoração do mediador pode não ocorrer. Daí porque o mediador deve agir com neutralidade e respeito, independente do tipo de questão apresentada e por quem foi apresentada, preservando-se, assim, o procedimento de mediação. Além disso, na prática, o mediador encontra-se acima das partes e de forma eqüidistante, isso significa dizer que ele irá ouvir as duas partes de forma igual e não irá representar ou aconselhar nenhuma delas. O conciliador é imparcial, porque não está do lado de nenhuma das partes e não pode ter interesse em nenhuma das questões ali discutidas. Deve-se ressaltar que a imparcialidade do mediador deve ser sentida pelas partes, de modo que permaneçam confiantes na autocomposição proposta.

1.2. PRINCÍPIO DA CONFIDENCIALIDADE De acordo com esse princípio, o mediador e o conciliador têm o dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão conciliatória, salvo autorização contrária das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo ser testemunha do caso, nem atuar como advogado dos envolvidos, em nenhuma hipótese.9 Vale destacar, ainda, que as comunicações realizadas na autocomposição não poderão ser ventiladas fora desse processo, nem poderão ser apresentadas como prova em eventual julgamento do caso na esfera litigiosa, nem em outros processos judiciais. Acreditamos que a eficiência da solução consensual dos conflitos está diretamente ligada à confiança que as partes depositam no mediador e à segurança de que alguns pontos, eventualmente, debatidos naquela esfera, não poderão ser utilizados em esfera judicial.

1.3. PRINCÍPIO DA CONSCIÊNCIA RELATIVA DO PROCESSO As partes devem compreender as consequências de sua participação no processo autocompositivo, bem como que têm a liberdade de encerrar a mediação a qualquer momento. Nesse contexto, as partes devem ser estimuladas a tratarem o momento da conciliação como uma efetiva oportunidade de se comunicarem de forma franca

§ 4o A mediação e a conciliação serão regidas conforme a livre autonomia dos interessados, inclusive no que diz respeito à definição das regras procedimentais. 9 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p.246.

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e direta, estando este princípio adstrito ao princípio da confidencialidade, já que as partes devem ser alertadas acerca do funcionamento do processo de autocomposição e do sigilo que deve permear a discussão travada no momento da conciliação.

1.4. PRINCÍPIO DA DECISÃO INFORMADA As partes têm o direito de receber informações quantitativas e qualitativas dos acordos que estarão sendo efetuados, ou seja, devem ser devidamente informadas das consequências da solução escolhida para o conflito, para que não sejam surpreendidas por algo desconhecido. O Princípio da Decisão Informada constitui condição de legitimidade para a autocomposição.10

1.5. PRINCÍPIO DO CONSENSUALISMO PROCESSUAL As partes têm sua autonomia preservada, cabendo-lhes decidir seus conflitos, sem interferência do Estado. Destaque-se que, a despeito de alguns ordenamentos jurídicos estabelecerem a obrigatoriedade da autocomposição, a maior parte da doutrina especializada entende que a participação voluntária mostra-se necessária, em especial em Países que ainda não desenvolveram adequadamente uma cultura autocompositiva.

1.6. PRINCÍPIO DA APTIDÃO TÉCNICA O conciliador e o mediador devem promover a conciliação, valendo-se de aptidão técnica, de modo que as partes se sintam seguras e confiantes na condução dos trabalhos conciliatórios. Assim, o mediador, ou o conciliador, devem estar, adequadamente, capacitados para atuar em cada caso, com os necessários fundamentos teóricos e práticos definidos pelas instituições públicas ou privadas responsáveis pela administração do procedimento.

1.7. PRINCÍPIO PAX EST QUERENDA, OU PRINCÍPIO DA NORMALIZAÇÃO DO CONFLITO O conciliador deve promover a tranquilidade das partes, pois, se a desavença é um produto natural da sociedade, da mesma forma a solução destes embates constitui um produto natural da sociedade. Cabe ao conciliador tranquilizar os componentes integrantes da lide, uma vez que a resolução do conflito interessa a todos.

1.8. PRINCÍPIO DO EMPODERAMENTO O princípio do empoderamento possui um caráter pedagógico de ensinar os envolvidos na lide, a serem cidadãos pacificadores de litígios futuros, caso estejam envolvidos, por meio da experiência vivenciada. 10

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p.246.

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É dever do mediador facilitar a tomada de consciência das partes, a fim de que eles estejam mais habilitados a melhor resolverem seus conflitos presentes e futuros, em função da experiência de justiça vivenciada na conciliação.

1.9. PRINCÍPIO DA VALIDAÇÃO É necessário validar as vontades das partes, na conciliação, sem obscuridade, para que as lides não voltem a acontecer de maneiras diferentes. Por este princípio o acordo deve atender os requisitos da certeza, liquidez e exigibilidade. É dever do mediador estimular os interessados a perceberem-se, reciprocamente, como seres humanos merecedores de atenção e respeito, independente das suas diferenças.

1.10. OUTROS VALORES A SEREM OBSERVADOS NA CONCILIAÇÃO JUDICIAL Além dos princípios acima indicados, dentre outros princípios existentes, devem ser observados outros valores, quais sejam: 1.10.1. RESPEITO; 1.10.2. RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE, POSSIBILITANDO A CONSISTÊNCIA DAS DIFERENÇAS CULTURAIS, SOCIAIS E RACIAIS. 1.10.3. ÉTICA: CONDUTA PAUTADA PELA DIGNIDADE, HONESTIDADE E RESPEITO À DIGNIDADE DAS PESSOAS. 1.10.4. COMPROMISSO: RESPONSABILIDADE E COMPROMETIMENTO CONTÍNUO COM A PROMOÇÃO DA PAZ SOCIAL. 1.10.5. RESPONSABILIDADE SOCIAL: BENEFÍCIO ÀS COMUNIDADES, OFERECENDO ACESSO À SOLUÇÃO DE CONFLITOS COM O AMPARO DO PODER JUDICIÁRIO.

Feito o exame dos principais princípios que permeiam a conciliação judicial, urge examinar a qualidade nos processo de conciliação, que representam maior acesso à Justiça e que, por consequência, a tornam mais eficaz, em face da satisfatividade do cidadão com a solução compositiva adotada.

2.QUALIDADE: CONCEITO E APLICAÇÃO NA CONCILIAÇÃO André Gomma de Azevedo e Roberto Portugal Bacellar11 assinalam que a qualidade de serviços autocompositivos se justifica pelo fato de se encon PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almedia (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. AZEVEDO, André Gomma.

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trar na satisfação do jurisdicionado uma das formas de aumentar o acesso à Justiça, porque se estabeleceu como premissa que o nível de satisfação com a experiência de resolução de conflitos no Poder Judiciário constitui constante indicador de acesso à Justiça. O próprio conceito de qualidade na prestação de serviços tem como indicador constante a satisfação do jurisdicionado, pois esta qualidade se define em função da satisfação do usuário. Assim, a qualidade de serviços de mediação e conciliação se justifica pelo fato de configurar as expectativas dele quanto à sua forma de avaliação tanto pelo supervisor como pelo usuário. Nesse contexto, na formação de mediadores e conciliadores, as premissas básicas se reportam a aspectos relacionados à Ciência da Administração e ao tema de gestão de qualidade.12 A gestão de qualidade pode ser utilizada como modelo gerencial para a obtenção de melhores resultados na mediação: a preocupação com a qualidade tem se movido na direção dos serviços jurídicos, o que significa (1) padronização de serviços jurídicos, (2) garantia de qualidade desses serviços, (3) redução do número de conflitos dentro de relações comerciais por departamentos jurídicos em empresas (como, p. ex., Motorola e General Eletric – que entendem o litígio como conseqüência de uma falha de comunicação em relações de negócios: por isso as empresas procuram localizar onde tem havido disputas para descobrir o que vem causando disputas e, então, corrigir tal falha) e (4) busca e uso de novos mecanismos domo Métodos Apropriados de Resolução de Disputas (“RAD’s) tais com[o conciliação e mediação com o intuito de reduzir custos com litígios e preservar relações comerciais. Nesse contexto, há conceitos básicos e questões em gestão de qualidade direcionadas a mediações e conciliações realizadas no Poder Judiciário. Para tanto, devem ser objeto de análise: a definição de qualidade em contexto de mediação realizadas no Poder Judiciário e o estabelecimento de um programa de gestão de qualidade e exemplos de ferramentas para melhoria contínua de qualidade.13

2.1. QUALIDADE: SUA CONCEITUAÇÃO E A QUALIDADE EM MEDIAÇÃO 2.1.1. QUALIDADE: SUA CONCEITUAÇÃO André Gomma de Azevedo e Roberto Portugal Bacellar assinalam que “a maioria das definições de qualidade aborda dois significados básicos: (i) BACELAR, Roberto Portugal. “A Formação em Processos Autocompositivos”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.274. 12 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p. 100. 13 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p. 100.

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Qualidade consiste em características do produto (ou serviço) que atendam aos anseios dos usuários e, portanto, proporcionem satisfação; e (ii) ausência de deficiências.”14 Quase toda a doutrina sobre gestão de qualidade sustenta que a qualidade é primariamente determinada pelos usuários.

2.1.2. A QUALIDADE EM MEDIAÇÃO Referem os mesmo autores que “(...), a qualidade de uma mediação é baseada na perspectiva das partes em relação ao próprio processo de resolução de disputas e das características de uma autocomposição.”15 Citados autores anotam que há quatro linhas de qualidade que devem ser atendidas, no processo de conciliação, a saber: “1.qualidade técnica: as habilidades e técnicas autocompositivas necessárias para a satisfação do usuário; 2.qualidade ambiental: a disposição de espaço físico apropriado para se conduzir um processo autocompositivo; 3.qualidade social: o tratamento e o relacionamento existentes entre todos os envolvidos no atendimento ao jurisdicionado; 4.qualidade ética: a adoção de preceitos mínimos de conduta que se esperam dos autocompositores e demais pessoas envolvidas no atendimento ao usuário.”16 Citados autores destacam que: “Nesse contexto, a definição de qualidade em processos consensuais consiste no conjunto de características necessárias para o processo autocompositivo que irá, dentro de condições éticas, atender e possivelmente até exceder as expectativas e necessidade do usuário.”17 Feita a conceituação supra, pensamos que são aspectos qualitativos na mediação: (1) a satisfação do usuário; (2) a plena informação das partes e (3) a conduta ética no processo.18 (1) A satisfação do usuário: PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almedia (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. AZEVEDO, André Gomma. BACELAR, Roberto Portugal. “A Formação em Processos Autocompositivos”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.275. 15 PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almedia (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. AZEVEDO, André Gomma. BACELAR, Roberto Portugal. “A Formação em Processos Autocompositivos”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.275. 16 PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almedia (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. AZEVEDO, André Gomma. BACELAR, Roberto Portugal. “A Formação em Processos Autocompositivos”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.276. 17 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p. 100. 18 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p. 101. 14

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Pode-se, portanto, considerar “bem-sucedida” a mediação quando o “sucesso” está diretamente relacionado à satisfação da parte. Questões freqüentemente discutidas na literatura sobre autocomposição, tais como se facilitadores deveriam analisar as forças e fraquezas das partes e revelar-lhes uma opinião de um justo ou possível resultado em um tribunal ou procedimento de arbitragem, ou se deveriam apenas ajudar (facilitar) as partes a entender opções, interesses ocultos, e ajudá-las a desenvolver e escolher soluções próprias, deveriam ser decididas por usuários após avaliações continuadas do programa de mediação judicial com quesitos sobre satisfação com a conduta do mediador. Nesse corolário, o papel do autocompositor deveria depender da satisfação do usuário. Os autocompositores deveriam se perguntar como poderiam se utilizar de capacitação técnica, mecanismos de superação de barreiras de comunicação, reconhecimento e validação de sentimentos e outras técnicas e características do processo autocompositivo para satisfazer seus usuários em uma mediação. Apesar de ser a satisfação do usuário fundamental na mediação, também constitui seu aspecto qualitativo: a plena informação das partes e a conduta ética no processo também são essenciais. (2) A plena informação das partes Por plena informação das partes entende-se que a parte só poderá ser considerada como “satisfeita” quando tiver tomado decisões no processo autocompositivo, após ter sido plenamente informada do contexto fático em que está envolvida e de seus direitos (3) a conduta ética no processo. A conduta ética constitui aspecto qualitativo no processo de conciliação. Exemplo: imaginemos uma mediação em que uma das partes faz uma oferta ilegal ou antiética, como fraude de seguro ou fixação de preço incompatível com a livre concorrência. Embora percebendo que a oferta foi ilegal ou antiética, a outra parte aceita, e a mediação acaba com um acordo. Quando perguntadas sobre o nível com a autocomposição, ambas as partes respondem por “satisfeitas” com o processo. Neste caso, embora estejam informadas sobre todos os aspectos da mediação e se sintam “satisfeitas” com o processo, não há “qualidade” devido à falta de conduta ética pelas partes e pelo mediador, que deveria interromper o processo assim que tal conduta fosse identificada. 2.2. AS METAS DE UM PROGRAMA DE GESTÃO DE QUALIDADE: DEVE-SE BUSCAR DESENVOLVER UMA ESTRUTURA, OU UM CONJUNTO DE CONCEITOS E FERRAMENTAS POR MEIO DAS QUAIS OS MÉTODOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS SERÃO CONTINUAMENTE MELHORADOS.19 19

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). “Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ, p. 101.

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Como conseqüência, as partes (usuários) tenderão a achar o processo cada vez mais satisfatório. Portanto, André Gomma de Azevedo e Roberto Portugal Bacellar recomendam que nos treinamentos de técnicas autocompositivas se adotem formulários para acompanhamento das técnicas e habilidades e citam o exemplo desenvolvidos pelas Professoras Sally Ganong Pope e Lela Porter para o Centro de Mediação do Brookliynm em 1992, e revisado pela Prof. Carol B. Liebman, em 1997, que pode ser utilizado tanto no treinamento como na aferição de mediações reais por mediadores recém-treinados.20 PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almedia (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. AZEVEDO, André Gomma. BACELAR, Roberto Portugal. “A Formação em Processos Autocompositivos”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.277-280. “FORMULÁRIO DE OBSERVAÇÃO DO MEDIADOR Declaração De Abertura Apresentou-se. Confirmou os nomes e como as partes preferem ser chamadas. Explicou o propósito da mediação. Explicou o papel do mediador. Informou as regras básicas. - Ordem da discussão. - Sem interrupções. - Confidencialidade. - Nenhum registro escrito ou gravação. - Exceção (conferiu perguntas a respeito de direitos e responsabilidades). Explicou o objetivo do acordo escrito. Discutiu o tempo. Explicou as reuniões individuais. Oportunidade para perguntas. Habilidades Interpessoais Neutro / sem preconceitos. Criou um ambiente positivo. Paciente, perseverante. Deixou as partes à vontade. Usou uma linguagem apropriada para os usuários. Empático. Acessível. Articulado (senso de humor). Habilidades de Escuta Não interrompeu. Esperou o relato completo da história. Concentrou-se. Escutou ativamente. Entendeu as questões. Identificou interesses e sentimentos. Formulou questões abertas. Reformulou asserções para identificação de preocupações subjacentes. Captou informações suficientes. Recontextualizou. Auxiliou cada uma das partes a ouvir a outra. Demonstrou paciência. Estruturação de Questões e Interesses Resumiu as questões e os interesses. 20

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Estruturou as questões claramente. Reestruturou questões e interesses para discussão. Reconheceu sentimentos. Selecionou as questões para discussão. Planejou a agenda cuidadosamente. Habilidade de Lidar com o conflito Manteve-se calmo e atento. Manteve controle da reunião. Estabeleceu o tom. Evitou termos agressivos. Atentou para a Resolução, não no que ocorreu. Usou voz, contato visual, gestos. Usou o silêncio. Reformulou acusações como necessidades ou pedidos. Usou monólogos apropriadamente. Modelou um bom comportamento de negociação. Ensinou habilidades de negociação. Estratégias para Acordo Foi prospectivo. Atuou como catalisador. Orientou. Persuadiu. Usou questões “e se”. Fez verificações (ou testes) de realidade. Ganhou impulso ao encontrar algum ponto de acordo. Buscou definir princípios gerais e consensuais. Auxiliou as partes a encontrar interesses comuns. Identificou necessidades e interesses. Foi criativo. Assistiu as partes a desenvolver opções. Preconceito Foi objetivo. Evitou adotar o ponto de vista de uma das partes. Evitou a linguagem de uma das partes. Usou uma linguagem imparcial. Não realizou julgamentos. Compartilhou evidências com ambas as partes. Lidou com diferenças culturais. Reuniões Individuais Explicou a reunião individual novamente para ambos. Controlou o tempo. Explicou o propósito. Reiterou confidencialidade na abertura. Pediu para compartilhar informações de encerramento. ADVOGADOS Esclareceu as funções dos advogados na mediação. Estimulou comportamento produtivo. Controlou a participação de forma eficiente. Termo de Mediação Testou viabilidade de execução. Verificou a igualdade dos termos do acordo. Redigido com clareza e especificidade. Utilizou informações de ambas as partes. Escreveu na presença de ambas as partes (quando apropriado). Utilizou a linguagem das partes.

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Nesta seara, pensamos que a qualidade nos métodos autocompositivos de solução de conflitos, os quais precedem a judicialização das controvérsias, devem ser pautados pela satisfação do usuário, pela plena informação das partes – tudo regado pela ética. Os métodos autocompositivos de solução de conflitos possibilitam o efetivo acesso à cidadania, na medida em que o cidadão adquire conhecimento de seus direitos e cede parte deste direito para a solução pacífica dos conflitos. A autocomposição dos conflitos com qualidade representa um avanço social na pacificação dos conflitos, já que há a satisfação das partes e o respeito à ética, além de se observar a celeridade e efetividade, observando-se o princípio da razoável duração do processo, inclusive.

CONCLUSÕES Acreditamos que os métodos autocompostivos na solução dos conflitos são essenciais para o aumento do acesso à Justiça e para a efetiva prestação jurisdicional. Com efeito, a solução pacífica dos conflitos representa uma prestação jurisdicional efetiva, na medida em que o cidadão, através dos princípios do empoderamento, da decisão informada e do consensualismo processual, dentre outros princípios, torna-se parte com voz ativa para a solução da controvérsia. Esse empoderamento da parte é representado pelo exercício efetivo da cidadania, uma vez que o cidadão adquire conhecimento de seu direito, cedendo parte dele para a autocomposição. Neste passo, revela-se necessário o consciente exercício da cidadania, “mediante a exigência, por via de articulação política e de medidas judiciais, da realização dos valores objetivos e dos direitos subjetivos constitucionais.”21 Pensamos que o movimento conciliatório é muito positivo, já que os conflitos judiciais são resolvidos de forma célere e satisfatória para o jurisdicionado, o que acarreta, por conseqüência, a efetividade na prestação jurisdicional.

Verificou o entendimento das partes. Leu o texto para as partes antes de oferecê-lo para assinatura. Verificou se todas as partes envolvidas assinaram. Se necessário pagamento: - Definiu claramente quem paga e quem recebe. - Especificou o montante e a forma de pagamento. - Definiu o local e o momento do pagamento. Encerramento da Mediação Entregou os acordos assinados para as partes. Mencionou o processo de execução. Agradeceu às partes pelo que realizaram, como, por exemplo: - compareceram, ouviram.... - Outro bom comportamento de negociação. - Geraram boas idéias, buscaram o consenso.... Instou-as a retornarem, se necessário.”. 21 BARROSO, Luís Roberto,“Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo”, 5ª edição, 2015, São Paulo: Saraiva, p. 256.

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Tanto o jurisdicionado como a parte contrária, que, na Justiça Federal, são os entes públicos, devem ceder uma parte de seu direito e, com isso, acaba-se gerando um empoderamento para a parte, porque ela passa a ter voz ativa nesse processo de solução consensual dos litígios, observando-se, neste tópico, a tríade da qualidade, consistente na satisfação do usuário, plena informação das partes e ética, que compõem a qualidade na conciliação. Cremos, por fim, que a conciliação constitui um avanço social por se tratar de uma forma de pacificação de conflitos, que gera cidadania, amplo acesso à Justiça e efetividade na prestação jurisdicional, dada a sua celeridade, efetividade e satisfatividade dos envolvidos, remanescendo ao encargo do Poder Judiciário tão-somente a solução de controvérsias que não forem passíveis de autocomposição e que representem lides a serem judicialmente resolvidas.

REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto,“Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo”, 5ª edição, 2015, São Paulo: Saraiva. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org).“Manual de Mediação Judicial”, 5ª edição, 2015, Brasília: CNJ. PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almeida (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. GRINOVER, Ada Pellegrini. “Conciliação e Mediação Judiciais no Projeto de Novo Código de Processo Civil”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.171-179. PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almeida (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. BACELLAR, Roberto Portugal.“Técnicas de Mediação para Magistrados”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.181-197. PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almeida (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. GABBAY, Daniela Monteiro. “Negociação”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.211-225. PELUSO. Antonio Cezar. RICHA. Morgana de Almeida (Coordenadores). “Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional - CNJ”. AZEVEDO, André Gomma. BACELAR, Roberto Portugal. “A Formação em Processos Autocompositivos”, 1ª Edição, 2011, Rio de Janeiro: Editora Forense, p.277-280.

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AUTORES

Alexandre Vidigal De Oliveira Antônio César Bochenek Bernardo Tinôco De Lima Horta Fabio Luiz De Oliveira Bezerra Fausto De Sanctis Frederico Augusto Leopoldino Koehler George Marmelstein Gustavo Catunda Mendes Luciano Tertuliano Da Silva Marcelo Barbi Gonçalves Marcelo Guerra Martins Micheli Polippo Cristiane Martins De Paula Luz Mônica Lúcia Do Nascimento Alcantara Botelho Newton Pereira Ramos Neto Oscar Valente Cardoso Reynaldo Soares Da Fonseca Gabriel Campos Soares Da Fonseca Ricardo Nüske Roberto Carvalho Veloso Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti De Alencar Sergio Nojiri Silvia Regina Salau Brollo Sylvia Marlene De Castro Figueiredo

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editora Este livro foi impresso em papel Off-Set 75g, com tipografia Bembo Std 12/14.

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LISTA DE PRESIDENTES E DIRETORES DA AJUFE, DESDE A CRIAÇÃO

FUNDAÇÃO DA AJUFE (20 DE SETEMBRO DE 1972) BIÊNIO 1972/1974 1º PRESIDENTE Jesus da Costa Lima FUNDADORES Roberto de Queiroz Pedro da Rocha Acioli Heraldo Vidal Correia Vitor de Magalhães Júnior José Cândido de Carvalho Filho Orlando Cavalcanti Neves Artur Barbosa Maciel Adauto José de Mello Ridalvo Costa Genival Matias de Oliveira Armindo Guedes Salmon Lustosa de Noronha Nogueira Maria Rita Soares de Andrade Eli Goraieb Péricles Luiz Medeiros Prade João Gomes Martins Filho Jesus da Costa Lima Agnelo Nogueira Pereira da Silva Evandro Gueiros Elmar Campos Euclides Aguiar

Aldir Guimarães Passarinho Carlos Augusto Thibau Guimarães Virgilio Gaudie Fleury Américo Luz Mário Mesquita Magalhães QUADRIÊNIO DE 1974/1978 PRESIDENTE Armindo Guedes da Silva 1º VICE-PRESIDENTE Aldir Guimarães Passarinho 2º VICE-PRESIDENTE Carlos Mário da Silva Velloso SECRETÁRIO-GERAL João Augusto Didier do Rego Maciel SECRETÁRIO-ADJUNTO João Gomes Martins Filho TESOUREIRO-GERAL Orlando Cavalcanti Neves TESOUREIRO-ADJUNTO Eli Goraieb CULTURAL Péricles Luiz Medeiros Prade

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RELAÇÕES PÚBLICAS

Jesus Costa Lima

Relações Públicas João Gomes Martins Filho 1993/1994

DECÊNIO DE 1978/1988 PRESIDENTE João Gomes Martins Filho 1º VICE-PRESIDENTE Maria Rita Soares

PRESIDENTE Edgard Silveira Bueno Filho DIRETOR-SECRETÁRIO Célio Benevides de Carvalho TESOUREIRO

2º VICE-PRESIDENTE Roberto de Queiroz SECRETÁRIO-GERAL Heraldo da Costa Val SECRETÁRIO-ADJUNTO José de Jesus Filho TESOUREIRO-GERAL Carlos Augusto Thibau Guimarães TESOUREIRO-ADJUNTO

Sinval Antunes de Souza CULTURAL Lúcia Valle Figueiredo Colarille RELAÇÕES PÚBLICAS Pedro Rotta BIÊNIO 1994/1996 PRESIDENTE Vladimir Passos de Freitas

Plauto Afonso da Silva Ribeiro Relações Públicas Adauto José de Mello

VICE-PRESIDENTE

QUINQUÊNIO DE 1988/1993

Tânia Terezinha Cardoso Escobar

PRESIDENTE

TESOUREIRO

Sebastião de Oliveira Lima

Vilson Darós

DIRETOR-SECRETÁRIO

CULTURAL

Américo Lourenço Masset Lacombe

Eliana Calmon Alves

TESOUREIRO

SOCIAL

João Grandino Rodas

Francisco de Barros Dias Relações Públicas José Fernando Jardim de Camargo

CULTURAL Antônio Vital Ramos de Vasconcelos SOCIAL Paulo Octávio Baptista Pereira

Maria Luiza V. Pessoa de Mendonça DIRETORA-SECRETÁRIA

BIÊNIO 1996/1998 PRESIDENTE Vilson Darós

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VICE-PRESIDENTE

SUPLENTES

Vera Lúcia Rocha Souza Jucovsky

Leonardo Buissa Freitas Salete Macalóz Cândido Ribeiro

DIRETORA-SECRETÁRIA Helena Delgado Ramos TESOUREIRO José Fernando Jardim de Camargo REVISTA Regina Helena Costa CULTURAL Eliana Calmon Alves SOCIAL Francisco de Barros Dias Relações Públicas Marcelo de Nardi BIÊNIO 1998/2000 PRESIDENTE Fernando da Costa Tourinho Neto VICE-PRESIDENTES

CONSELHO FISCAL Alfredo França Neto Edvaldo B. da Silva Júnior Odilon de Oliveira BIÊNIO 2000/2002 PRESIDENTE Flávio Dino de Castro e Costa VICE-PRESIDENTES 1ª Região: Renato Martins Prates 2ª Região: Simone Schreiber 3ª Região: Paulo Sérgio Domingues 4ª Região: Jorge Antonio Maurique 5ª Região: Francisco Roberto Machado SECRETÁRIO-GERAL Ney de Barros Bello Filho

1ª Região: Flávio Dino de Castro e Costa 2ª Região: Simone Schreiber 3ª Região:Wilson Zauhy Filho 4ª Região: Álvaro Junqueira 5ª Região: Francisco Roberto Machado

PRIMEIRO-SECRETÁRIO

DIRETOR-SECRETÁRIO

REVISTA

Nelson Porfírio

José Eduardo Carreira Alvim

TESOUREIRO

ASSUNTOS LEGISLATIVOS

Marcos Vinícius Reis Bastos

Fernando Moreira Gonçalves

REVISTA

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Aroldo José Washington

Renato Lopes Becho

CULTURAL

CULTURAL

Sônia Diniz Viana

Marcelo Dolzany da Costa

SOCIAL

SOCIAL

Ricardo Regueira

Liliane do E. S. Roriz de Almeida

Artur César de Sousa TESOUREIRO Marcos Vinícius Reis Bastos

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RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

ASSUNTOS LEGISLATIVOS

Fernanda Duarte L. Lucas da Silva

Flávio Dino de Castro e Costa

ASSUNTOS JURÍDICOS

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Luís Cláudio Flores da Cunha

Fernando Quadros da Silva

COORDENADOR DE COMISSÕES

CULTURAL

Walter Nunes da Silva Júnior

Liliane do E. S. Roriz de Almeida

ESPORTES

SOCIAL

Abel Fernandes Gomes

Alexandre Libonati de Abreu

SUPLENTES

RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Julier Sebastião da Silva Abel Cardoso Alves Nilcéia Maria Barbosa Maggi

José Henrique Guaracy Rebêlo

CONSELHO FISCAL José Lázaro Alfredo Guimarães William Douglas Resinente dos Santos Odilon de Oliveira

ASSUNTOS JURÍDICOS Julier Sebastião da Silva COORDENADOR DE COMISSÕES Luís Praxedes Vieira da Silva ESPORTES

BIÊNIO 2002/2004

Abel Fernandes Gomes

PRESIDENTE

SUPLENTES

Paulo Sérgio Domingues

José Carlos Garcia Adel Américo Dias de Oliveira Itagiba Catta Preta Neto

VICE-PRESIDENTES 1ª Região: Ney de Barros Bello Filho 2ª Região: Carlos Guilherme Lugones 3ª Região: Luciano de Souza Godoy 4ª Região: Marciane Bonzaninni 5ª Região:Walter Nunes da Silva Júnior

CONSELHO FISCAL José Lázaro Alfredo Guimarães William Douglas R. dos Santos Marcus Vinicius Reis Bastos

SECRETÁRIO-GERAL

BIÊNIO 2004/2006

Jorge Antonio Maurique

PRESIDENTE

PRIMEIRO-SECRETÁRIO

Jorge Antonio Maurique

André Prado de Vasconcelos

VICE-PRESIDENTES

TESOUREIRO

1ª Região: José H. Guaracy Rebêlo 2ª Região: José Carlos Garcia 3ª Região: Paulo Ricardo Arena Filho 4ª Região: Friedmann Anderson Wendpap 5ª Região:Walter Nunes da Silva Júnior

Fernando Moreira Gonçalves REVISTA Renato Lopes Beccho

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SECRETÁRIO-GERAL Luciano de Souza Godoy PRIMEIRO-SECRETÁRIO

Manoel de Oliveira Erhardt Lincoln Rodrigues de Faria Rogério Tobias de Carvalho

Luís Praxedes Vieira da Silva

BIÊNIO 2006/2008

TESOUREIRO

PRESIDENTE

Adel Américo Dias de Oliveira

Walter Nunes da Silva Júnior

REVISTA

VICE-PRESIDENTES

Guilherme Calmon N. da Gama ASSUNTOS LEGISLATIVOS Osmane Antônio dos Santos RELAÇÕES INTERNACIONAIS Paulo Sérgio Domingues CULTURAL Liliane do E. S. Roriz de Almeida SOCIAL Maria Divina Vitória RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Pedro Francisco da Silva ASSUNTOS JURÍDICOS Paulo Alberto Sarno COORDENADOR DE COMISSÕES Fernando Cesar Baptista de Mattos ESPORTES Fábio Dutra Lucarelli APOSENTADOS Luiz Airton de Carvalho SUPLENTES Rogério de Meneses Fialho Moreira Marília Rechi Gomes de Aguiar Leonel Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho CONSELHO FISCAL

1ª Região: Osmane Antônio dos Santos 2ª Região: Fernando Cesar B. de Mattos 3ª Região: Nino Oliveira Toldo 4ª Região: Jurandi Borges Pinheiro 5ª Região: João Luís Nogueira Mathias SECRETÁRIO-GERAL Paulo Ricardo Arena Filho PRIMEIRO-SECRETÁRIO Rogério Tobias Carvalho TESOUREIRO Adel Américo Dias de Oliveira REVISTA Guilherme Calmon N. da Gama ASSUNTOS LEGISLATIVOS Paulo de Tasso Benevides Gadelha RELAÇÕES INTERNACIONAIS Friedmann Anderson Wendpap CULTURAL José Henrique Guaracy Rebelo SOCIAL Sandra Meirim Chalu B. de Campos RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Rogério de Meneses Fialho Moreira ASSUNTOS JURÍDICOS Márcio Rached Millani

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COORDENADORA DE COMISSÕES Andréa Cunha Esmeraldo ESPORTES Rodrigo de Godoy Mendes APOSENTADOS

TESOUREIRO Vilian Bollmann REVISTA André Ricardo Cruz Fontes ASSUNTOS LEGISLATIVOS

Luiz Airton de Carvalho

Jediael Galvão Miranda (in memorian) Paulo Ricardo Arena Filho

INFORMÁTICA

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Alexandre Jorge Fontes Laranjeira

Marcelo Navarro Ribeiro Dantas

ADMINISTRATIVO

CULTURAL

Márcia Vogel Vidal de Oliveira

Raquel Domingues A. Corniglion

COMUNICAÇÕES

SOCIAL

José Eduardo Leonel Ferreira

Isadora Segalla Afanasieff

SUPLENTE

RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Maria Divina Vitória

Antônio Sávio de Oliveira Chaves

CONSELHO FISCAL

ASSUNTOS JURÍDICOS

Jediael Galvão Miranda Fábio Dutra Lucarelli Derivaldo de Figueiredo Bezerra Filho

Márcia Vogel Vidal de Oliveira

BIÊNIO 2008/2010

COORDENADOR DE COMISSÕES Ivanir Cesar Ireno Junior ESPORTES

PRESIDENTE

Marcus Lívio Gomes

Fernando Cesar Baptista de Mattos

APOSENTADOS

VICE-PRESIDENTES

Edison Messias de Almeida

1ª Região: Miguel Ângelo A. Lopes 2ª Região: Andréa Cunha Esmeraldo 3ª Região: Nino Oliveira Toldo 4ª Região: Carla Evelise Justino Hendges 5ª Região: José Parente Pinheiro

INFORMÁTICA

SECRETÁRIO-GERAL

COMUNICAÇÕES

Jurandi Borges Pinheiro PRIMEIRO-SECRETÁRIO Paulo Cezar Neves Junior

Bruno Augusto Santos Oliveira ADMINISTRATIVO Élio Wanderley de Siqueira Filho

Lidiane V. Bonfim Pinheiro de Meneses SUPLENTES Manuel Maia de Vasconcelos Neto

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Roberto Carlos de Oliveira

ASSUNTOS JURÍDICOS

CONSELHO FISCAL

Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti

Guy Vanderley Marcuzzo Marcello Ennes Figueira Bianca Georgia A. Munhoz da Cunha

COORDENADOR DE COMISSÕES

BIÊNIO 2010/2012

Antônio André M. Mascarenhas de Souza ESPORTES Wilson José Witzel

PRESIDENTE

APOSENTADOS

Gabriel de Jesus Tedesco Wedy

Abel Fernandes Gomes

VICE-PRESIDENTES

TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

1ª Região: Fernando C.Tourinho Neto 2ª Região: Fabrício Fernandes de Castro 3ª Região: Ricardo de Castro Nascimento 4ª Região: Fernando Quadros da Silva 5ª Região: Nagibe de Melo Jorge Neto

Alexandre Ferreira Infante Vieira

SECRETÁRIO-GERAL

Sidmar Dias Martins

José Carlos Machado Júnior PRIMEIRO-SECRETÁRIO

ADMINISTRATIVO Ivo Anselmo Höhn Junior COMUNICAÇÕES

SUPLENTE

Carla Abrantkoski Rister

Reynaldo Soares da Fonseca Suane Moreira Oliveira

TESOUREIRO

CONSELHO FISCAL

Cynthia de Araujo Lima Lopes

Jorge Luis Girão Barreto

Márcia Vogel Vidal de Oliveira Tânia Regina Marangoni Zauhy Warney Paulo Nery Araújo Jorge André de Carvalho Mendonça (suplente) Fernando Cleber de Araújo Gomes (suplente)

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

BIÊNIO 2012/2014

REVISTA José Lázaro Alfredo Guimarães ASSUNTOS LEGISLATIVOS

Vladimir Passos de Freitas CULTURAL Márcia Maria Ferreira da Silva SOCIAL Érika Giovanni Reupke RELAÇÕES INSTITUCIONAIS José Francisco Andreotti Spizzirri

PRESIDENTE Nino Oliveira Toldo VICE-PRESIDENTES 1ª região: Ivanir César Ireno Júnior 2ª região: José Arthur Diniz Borges 3ª região: José Marcos Lunardelli 4ª região: Ricardo Rachid de Oliveira 5ª região: Marco Bruno Miranda

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SECRETÁRIO-GERAL

Décio Gabriel Gimenez

Vilian Bollmann

PRERROGATIVAS

PRIMEIRO-SECRETÁRIO

Américo Bedê Freire Júnior

Frederico Valdez Pereira

SUPLENTES

TESOUREIRO

José Antonio Lisbôa Neiva

Francisco Alexandre Ribeiro Paulo César Vilela S. Rodrigues Maurício Yukikazu Kato Rafael Wolff Francisco Barros Dias

ASSUNTOS LEGISLATIVOS

CONSELHO FISCAL

Adel Américo Dias de Oliveira

Marcelle Ragazoni Carvalho

Alessandro Diaferia César Arthur C. de Carvalho Warney Paulo Nery Araújo Joaquim Lustosa Filho (suplente)

CULTURAL

BIÊNIO 2014-2016

Fernando Marcelo Mendes REVISTA

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Juliano Taveira Bernardes SOCIAL Raquel Soares Chiarelli RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Alexandre Vidigal de Oliveira ASSUNTOS JURÍDICOS Antônio André Muniz M. de Souza COORDENADOR DE COMISSÕES Jader Alves Ferreira Filho ESPORTES Bruno Teixeira de Paiva APOSENTADOS André José Kozlowski TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO George Marmelstein Lima ADMINISTRATIVO Emanuel Alberto Gimenes COMUNICAÇÃO

PRESIDENTE Antônio César Bochenek VICE-PRESIDENTES 1ª Região: Candice Lavocat Galvão Jobim 2ª Região: Eduardo André Brandão de Brito Fernandes 3ª Região: Fernando Marcelo Mendes 4ª Região: Rodrigo Machado Coutinho 5ª Região: André Luís Maia Tobias Granja SECRETÁRIO-GERAL Roberto Carvalho Veloso PRIMEIRO-SECRETÁRIO Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni TESOUREIRO Alexandre Ferreira Infante Vieira REVISTA Paulo César Villela S. L. Rodrigues CULTURAL Marcel Citro de Azevedo

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Maria Divina Vitória

Carlos Felipe Komorowski Jailsom Leandro de Souza (suplente)

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

BIÊNIO 2016-2018

Raquel Coelho Dal Rio Silveira

PRESIDENTE

ASSUNTOS LEGISLATIVOS

Roberto Carvalho Veloso

José Marcos Lunardelli

VICE-PRESIDENTES

RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

1ª Região: André Prado de Vasconcelos 2ª Região: Eduardo André Brandão de Brito Fernandes 3ª Região: Marcelle Ragazoni Carvalho 4ª Região: Nelson Gustavo Mesquita Ribeiro Alves 5ª Região: Antônio José de Carvalho Araújo

SOCIAL

André Prado de Vasconcelos ASSUNTOS JURÍDICOS José Maximiliano M. Cavalcanti ESPORTES Murilo Brião da Silva APOSENTADOS Marianina Galante COMUNICAÇÃO Marcelle Ragazoni Carvalho ADMINISTRATIVO Frederico José Pinto de Azevedo TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO Cristiane Conde Chmatalik COORDENADORA DE COMISSÕES Clara da Mota Santos Pimenta Alves PRERROGATIVAS Helder Teixeira de Oliveira SUPLENTES Sérgio Murilo Wanderley Queiroga Leonardo Vietri Alves de Godoi Roberto Fernandes Júnior

SECRETÁRIO-GERAL Fernando Marcelo Mendes PRIMEIRO-SECRETÁRIO Rodrigo Machado Coutinho TESOUREIRO Frederico José Pinto de Azevedo REVISTA Fernando Quadros da Silva CULTURAL Marcos Mairton da Silva SOCIAL Marcelo da Rocha Rosado RELAÇÕES INTERNACIONAIS Raquel Coelho Dal Rio Silveira ASSUNTOS LEGISLATIVOS Carlos Eduardo Delgado RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

CONSELHO FISCAL

Candice Lavocat Galvão Jobim

Marcia Vogel Vidal de Oliveira Alessandro Diaferia

ASSUNTOS JURÍDICOS

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Alexandre Ferreira Infante Vieira ESPORTES Gabriela Hardt ASSUNTOS DE INTERESSES DOS APOSENTADOS Sérgio Feltrin Corrêa COMUNICAÇÃO Paulo André Espirito Santo Bonfadini ADMINISTRATIVO Alexandre Berzosa Saliba TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO Marcelo Lelis de Aguiar COORDENADOR DE COMISSÕES Fábio Moreira Ramiro PRERROGATIVAS Marcel Citro de Azevedo SUPLENTES Paulo César Villela Souto Lopes Rodrigues Fernando Nardon Nielsen Sandro Nunes Vieira Ronivon de Aragão CONSELHO FISCAL Claudio Kitner José Airton de Aguiar Portela Marianina Galante Leonardo da Costa Couceiro (suplente) Marcelo Guerra Martins (suplente)

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editora Este livro foi impresso em papel Off-Set 75g, com tipografia Bembo Std 12/14.

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