Revista Direito Federal nº 96

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Ano 30 – Número 96 1º Semestre de 2017

São Paulo-SP, 2017 iii


Utilidade Pública Federal

Decreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p.150157) Presidente: Roberto Carvalho Veloso Diretor da Revista: Fernando Quadros da Silva Editor: Eduardo Gomes Projeto gráfico, diagramação e capa: Rita Motta - Ed. Tribo da Ilha Revisão: Rogério Gerencer Passo Periodicidade: Anual

[ Os textos são de responsabilidade de seus autores. ]

ISSN 1676-2320

AJUFE Associação dos Juízes Federais do Brasil Setor Hoteleiro Sul Quadra 6 Bloco E Conjunto A Sala 1305 Brasil 21 - Ed. Business Center Park - CEP 70322-915 Tel.: (61) 3321-8482 | Fax.: (61) 3224-7361

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Diretoria da AJUFE Biênio 2016/2018 Roberto Carvalho Veloso André Prado de Vasconcelos Eduardo André Brandão de Brito Fernandes Marcelle Ragazoni Carvalho Nelson Gustavo Mesquita Ribeiro Alves Antônio José de Carvalho Araújo Fernando Marcelo Mendes Rodrigo Machado Coutinho Frederico José Pinto de Azevedo Fernando Quadros da Silva Marcos Mairton da Silva Marcelo da Rocha Rosado Raquel Coelho Dal Rio Silveira Carlos Eduardo Delgado Candice Lavocat Galvão Jobim Alexandre Ferreira Infante Gabriela Hardt Sérgio Feltrin Corrêa Paulo André Espirito Santo Bonfadini Alexandre Berzosa Saliba Marcelo Lelis de Aguiar Fábio Moreira Ramiro Marcel Citro de Azevedo Paulo César Villela Souto Lopes Rodrigues Fernando Nardon Nielsen Sandro Nunes Vieira Ronivon de Aragão

Presidente Vice-presidente da 1ª Região Vice-presidente da 2ª Região Vice-presidente da 3ª Região Vice-presidente da 4ª Região Vice-presidente da 5ª Região Secretário-geral Primeiro secretário Tesoureiro Diretor da Revista Diretor Cultural Diretor Social Diretora de Relações Internacionais Diretor de Assuntos Legislativos Diretora de Relações Institucionais Diretor de Assuntos Jurídicos Diretora de Esportes Diretor de Assuntos de Interesses dos Aposentados Diretor de Comunicação Diretor Administrativo Diretor de Tecnologia da Informação Coordenador de Comissões Diretor de Prerrogativas Suplente Suplente Suplente Suplente

Conselho Fiscal Claudio Kitner José Airton de Aguiar Portela Marianina Galante Leonardo da Costa Couceiro Marcelo Guerra Martins

Membro do Conselho Fiscal Membro do Conselho Fiscal Membro do Conselho Fiscal Membro do Conselho Fiscal (Suplente) Membro do Conselho Fiscal (Suplente)

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Colégio de delegados seccionais Náiber Pontes de Almeida Aloysio Cavalcanti Lima Emmanuel Mascena de Medeiros Saulo Casali Bahia Leonardo Augusto Nunes Coutinho Bruno Anderson Santos da Silva Aylton Bonomo Júnior Marcos Silva Rosa George Ribeiro da Silva Fábio Fiorenza Raquel Domingues do Amaral Murilo Fernandes de Almeida Ilan Presser Thiago Batista de Ataíde Andre Wasilewski Duszczak José Moreira da Silva Neto Régis de Souza Araújo Bruno Fabiani Monteiro Arnaldo Pereira de Andrade Segundo Marcelo Roberto de Oliveira Dimis da Costa Braga Luzia Farias da Silva Mendonça Rafael Martins Costa Moreira Bruno Cezar da Cunha Teixeira Gilton Batista de Brito Pedro Felipe de Oliveira Santos

Acre Alagoas Amazonas Bahia Ceará Distrito Federal Espírito Santo Goiás Maranhão Mato Grosso Mato Grosso do Sul Minas Gerais Pará Paraíba Paraná Pernambuco Piauí Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul Rondônia Roraima Santa Catarina São Paulo Sergipe Tocantins

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Mensagem do Presidente A excelência da magistratura federal brasileira é reconhecida pela sociedade e pela comunidade jurídica. Fora dos tribunais, a atuação dos juízes federais na academia também é uma referência consolidada. Estudos estatísticos demonstram que a Justiça Federal é uma das que mais empresta docentes para as instituições de ensino, entre os representantes da magistratura. O diálogo entre o universo dos debates e análises teóricas e o fazer jurisdicional oferece um duplo aprimoramento ao atendimento das demandas da sociedade. Um magistrado que, ao longo da carreira, segue em seu processo de polimento intelectual e aperfeiçoamento jurídico, é um juiz com maior capacidade para exercer os desafios práticos da rotina da magistratura. A Revista Direito Federal é o ponto de encontro dessa via que reúne a experiência prática da operação do Direito e a construção do saber, característica da atividade acadêmica. De periodicidade anual, a publicação da Ajufe conta com contribuições inovadoras e voltadas para o fortalecimento do Judiciário e melhoria da prestação jurisdicional. Nesta edição, magistrados com elevado grau de especialização abordarão aspectos do Código de Processo Civil, da Gestão Pública, da lei de improbidade administrativa e da concepção jurídico-penal na organização do Trabalho, entre outros. Ainda, na 2ª Seção da Revista, os leitores serão apresentados aos enunciados aprovados nas últimas edições do Fórum Nacional de Juizados Especiais Federais (Fonajef), do Fórum Nacional de Juizados Criminais Federais (Fonacrim), do Fórum Nacional de Execuções Fiscais (Fonef) e ix


do Fórum Nacional de Conciliação e Mediação (Fonacom). As teses são frutos de amplas discussões com magistrados especializados em cada área. A gama de assuntos abordados, a pertinência técnica das colocações e a qualidade acadêmica do desenvolvimento dos argumentos transformaram a Revista Direito Federal em uma referência de citação para trabalhos e pesquisas científicas. A reflexão também se traduz em conhecimentos para a prática jurisdicional. Assim, a publicação consolida sua relevância para o Direito, para a magistratura federal, os estudantes e instituições acadêmicas e de todos que acessam a Justiça. Apresentamos a edição número 96 da revista com a intenção de sempre evoluir na entrega de um material à altura do trabalho de excelência desenvolvido pela Justiça Federal. Contamos com a colaboração de sempre dos magistrados. Boa leitura!

Roberto Carvalho Veloso Presidente da Ajufe

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Sumário Apresentação......................................................................................... 1 Fernando Quadros da Silva

Direito e modernidade: crítica à dogmática jurídica.................................. 3 Alysson Maia Fontenele

A contenção judicial pelos precedentes e o Novo Código de Processo Civil...................................................................................................... 19 Caio Márcio Gutterres Taranto

Breves apontamentos sobre a responsabilidade civil extracontratual do estado português por erro judiciário cível.............................................. 63 Carina Cátia Bastos de Senna

Políticas públicas para o desenvolvimento sustentável.......................... 81 Carla Abrantkoski Rister

A moderna concepção do bem jurídico-penal organização do trabalho.....115 Carlos Henrique Borlido Haddad Vinícius Simões Borges Espinheira Fonseca

A participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade............................................................................. 141 Fábio Martins de Andrade

Ações de saúde contra o poder público: ensaio de um roteiro decisório....... 197 Francisco Glauber Pessoa Alves

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Questões polêmicas da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas (irdr) no microssistema dos juizados especiais.................247 Frederico Augusto Leopoldino Koehler

Breves considerações sobre a Lei da Política Nacional da Mudança do Clima e a sua relação com o Princípio do Desenvolvimento Sustentável............ 265 Gabriel Wedy

Estabilização da tutela de urgência antecipada no Novo Código de Processo Civil..................................................................................... 285 Gabriela Macedo Ferreira

A presunção de inocência e o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal.................................................................................. 311 Gerson Godinho da Costa

O papel da Lei de Improbidade Administrativa no controle dos desvios de conduta dos gestores públicos........................................................ 339 Gilvânklim Marques de Lima

A nova dimensão da legalidade em face da ordem administrativa internacional....................................................................................... 361 Guilherme Fabiano Julien de Rezende

A separação dos Poderes e o Conselho Nacional de Justiça: uma análise da independência do judiciário em face do CNJ.................................... 383 Hebert Cornélio Pieter de Bruyn Júnior

Capacidade contributiva, seletividade e ISS: por um sistema tributário progressivo e isonômico...................................................................... 427 Hélio Silvio Ourém Campos Daniele Késia Marcelino dos Prazeres

O direito de superfície na Alemanha e o seu caráter social...................437 Leonardo Estevam de Assis Zanini xii


A dupla face do princípio da proporcionalidade e irreversibilidade da tutela provisória no Código de Processo Civil/15................................. 467 Mônica Lúcia do Nascimento Frias

Interpretação forense: a experiência prática da Justiça Federal de Guarulhos e o treinamento de intérpretes........................................ 481 Paulo Marcos Rodrigues de Almeida Jaqueline Neves Nordin

A regra legal tributária non olet e sua repercussão no processo penal relativo a crimes tributários, no que concerne à conexão e competência da Justiça Federal............................................................................... 521 Rodrigo Reiff Botelho

O papel deontológico do juiz no novo CPC............................................ 537 Alexandre Elias Calixto

Breves notas sobre a prestação jurisdicional efetiva e os caminhos apontados pelo novo CPC: a ampliação do acesso à justiça em face dos métodos autocompositivos de solução dos conflitos............................ 549 Sylvia Marlene de Castro Figueiredo

Los derechos humanos de los refugiados: ¿por qué respetarlos?..........565 Tarcísio Corrêa Monte

Os Fóruns promovidos pela AJUFE...................................................... 611 Quem Somos Letras Jurídicas Editora................................................. 649

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Apresentação A AJUFE põe à disposição da comunidade jurídica mais um volume da já consagrada Revista Direito Federal publicação que reúne a produção científica dos juízes federais brasileiros abrangendo os mais variados ramos do conhecimento jurídico. A atividade jurisdicional brasileira tem sido marcada pelo crescimento massivo das demandas e pelo chamamento dos juízes para incursionar em temas tradicionalmente reservados aos poderes políticos. Como resultado tem-se um protagonismo judicial a exigir o constante aprimoramento do magistrado, a aceitação das críticas inerentes e a apresentação de propostas para aperfeiçoamento do sistema jurídico. Assim, a divulgação da atividade científica dos magistrados cumpre a tarefa de divulgar os temas que estão sendo alvo de sua preocupação bem como as soluções preconizadas para alguns problemas que desafiam os juristas nacionais. Por outro lado, a revista desempenha a importante missão de divulgação científica permitindo que a informação chegue a todos os setores da sociedade, além dos círculos acadêmicos, contribuindo para difusão do conhecimento e da produção científica recente. Não se desconhece o crescimento das publicações que buscam atender aqueles que buscam informação jurídica rápida e sintetizada. A Revista Direito Federal, contudo, segue com o propósito de ofertar artigos científicos elaborados com atenta pesquisa e elaborada reflexão. Boa leitura a todos.

Fernando Quadros da Silva

Diretor da Revista

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DIREITO E MODERNIDADE: crítica à dogmática jurídica Alysson Maia Fontenele Juiz Federal titular da Subseção Judiciária de Aparecida de Goiânia. Professor-adjunto do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal do Acre. Doutorando em Ciências Sociais na UFRN. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Resumo

Abstract

O objetivo deste trabalho é identificar o estatuto epistemológico que une Direito e Modernidade e em que medida a dogmática jurídica, ao tentar adaptar-se às contradições socioeconômicas geradas pelo desenvolvimento capitalista, passou a assumir tarefas com dimensões até então ignoradas pelos codificadores liberais, não conseguindo evitar a ruptura dos padrões de unidade e hierarquia inerentes aos postulados da legalidade e da certeza jurídica.

The objective of this study is to identify the epistemological status that unites law and modernity and to what extent the legal dogmatic, when trying to adapt to the socioeconomic contradictions of the capitalist development, has assumed tasks dimensions hitherto ignored by liberal encoders, failing avoid disruption of patterns of unity and hierarchy inherent in the postulates of legality and legal certainty.

Palavras-chave: Modernidade – Direito – Dogmática – Idealismo jurídico.

Keywords: Modernity – Dogmatic – Legal idealism.

Law

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1 Introdução O conceito de modernidade é amplo e pode ser aplicado a vários setores do conhecimento. Estabelecida cumulativamente pelas contribuições dos grandes filósofos do Iluminismo e concretizada na história euro-americana a partir do século XVIII, por transformações que marcaram época, como a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, a modernidade sempre significou um amplo leque de possibilidades, todas elas girando em torno da razão como figura do homem igual e universal, qualquer que fosse sua origem e condição. Ao suplantar a fé religiosa cega e as hierarquias que moldavam a sociedade com base em uma ordem divina, a modernidade tornou o homem, por meio da razão, senhor do seu próprio destino e sujeito de sua história. Essencialmente, pode-se dizer que, em contraste com os sistemas religiosos de pensamento das sociedades pré-modernas e em oposição aos governos que regiam um mundo hierárquico, encantado, com cada pessoa no lugar a ela atribuído desde sempre, a modernidade era secular, desencantada, formalmente democrática e humanista. Mas, a retórica do discurso da modernidade e as consequências dela oriundas demonstraram a incompletude dessas promessas. Com efeito, a noção de que o homem não seria tão livre nem tão senhor de sua história começou a desenvolver-se bem cedo, dentro do próprio Iluminismo, tendo em Rosseau um de seus maiores expoentes. A disseminação e o aprofundamento dessa noção limitativa das potencialidades humanas ocorreram, contudo, a partir do século XIX, quando o pensamento social voltou-se à tentativa de encontrar modos de conciliar liberdade formal e a servidão material. A mais impactante dessas interpretações, com sentido libertatório, foi o Marxismo. Arraigadamente moderno, na tradição iluminista, todo o sistema marxista também encarava a história como um processo racional de emancipação do qual o homem era o sujeito – não na qualidade de indivíduo atomizado, mas de membro consciente de uma classe (o proletariado).

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Também Sigmund Freud, com a psicanálise, trouxe um golpe significativo à ideia do homem como senhor da razão, ao expor as artimanhas a que estamos submetidos por nosso próprio inconsciente. Por essa descoberta, associada aos estudos sobre as línguas como sistemas fechados de signos apenas significantes, iniciou-se o processo de desconstrução do sujeito, um sujeito cuja falta de domínio sobre si próprio levantou sérias dúvidas quanto à posição do homem como membro efetivo de sua história individual e sujeito da grande narrativa histórica que conhecemos. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é identificar o estatuto epistemológico que une Direito e Modernidade e em que medida a dogmática jurídica, ao tentar adaptar-se às contradições socioeconômicas geradas pelo desenvolvimento capitalista, passou a assumir tarefas com dimensões até então ignoradas pelos codificadores liberais, não conseguindo evitar a ruptura dos padrões de unidade e hierarquia inerentes aos postulados da legalidade e da certeza jurídica. Aqui, procura-se delimitar um sentido, dentro tantos possíveis, no qual se pode chamar de “moderna” uma determinada forma de organizar o direito, sem olvidar a generalidade do tema que impõe que ele seja amputado em muitos de seus aspectos. Ainda assim, o que se pretende aqui expor é a tese de que a modernidade representa o equivalente a um certo e inusitado grau de complexidade que a organização do direito adquiriu durante o processo civilizatório. Para tanto, inicio admitindo que uma ordem jurídica mais primitiva se organiza de forma indiferenciada, vale dizer, que as ordens normativas (éticas, morais, religiosas e costumeiras) que regulam a conduta humana – uma das quais é o direito – estão todas coligadas, sem funções definidas separadamente no contexto social. Pois bem, os primeiros questionamentos a respeito dessa indiferenciação remontam à Antígona de Sófocles1, ao separar o direito de Antígona é uma peça que fala sobre o dever que o ser humano tem para com Deus que é anterior àquele que tem para com o Estado. A personagem principal, Antígona, quer enterrar de maneira digna e de acordo com a religião o seu irmão

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Créon, posto, do direito natural superior, reclamado por Antígona, para sepultar seu irmão; depois, também à célebre frase de Jesus Cristo, presente em três evangelhos oficiais da Igreja Católica: “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Começou-se, então, a reclamar dentro do poder que o Estado Romano tinha sobre as normas éticas, que houvesse a separação entre o que seria de competência de uma Igreja emergente daquilo que fosse atribuído ao Estado, onipresente e onipotente da época. Ao longo dos séculos essa separação não só ocorreu de forma bem-sucedida, como tudo aquilo que estivera outrora unificado sob a égide do Estado antigo, depois separado pela ideia de um direito transcendente, natural, já voltara a confundir-se, monopolizado agora pelas mãos da Igreja. O movimento já no século XVII passou a ser, então, de arrancar da competência da Igreja aquela parte das ordens normativas que seria, exatamente, a parte jurídica, destinada à competência estatal. Desse modo, ao Estado estariam afeitas as condutas externas dos indivíduos enquanto à religião caberiam as condutas internas. É a partir daí que a ciência jurídica vai aperfeiçoar seus parâmetros, trazendo argumentos mais sofisticados como autonomia e heteronomia, identidade e alteridade, unilateralidade e bilateralidade. Tem-se, portanto, que a consciência da época moderna aparece por meio da construção de uma imagem constituída a partir de um sujeito identificado com a razão, correspondendo ao projeto chamado por Adorno e Horkheimer (1985, p. 7 e 19) de Polinice; porém, essa atitude contraria as ordens do rei Creonte, o qual havia determinado que o corpo de Polinice deveria ser exposto às aves do céu e aos cães na terra. Antígona fica sabendo da determinação de Creonte e grita: “Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!” Com esse grito, ela resolve ir contra às ordens do rei de Tebas. Antígona sepulta o irmão, mas é detida pelos guardas de Creonte, que havia dado ordem para que observassem se alguém iria ter a audácia de enterrar Polinice. Ela é levada à presença do rei, e este a interroga para saber qual o motivo de ela ter agido com tamanha coragem, contrariando uma determinação do próprio rei. É aí que está a questão a ser debatida ao não somente nessa peça como ao longa da história humana: Devemos obedecer antes à lei divina ou à lei dos homens? Antígona não titubeia e escolhe a lei eterna. Ela, então, é condenada pelo Rei de Tebas à morte.

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“desencantamento do mundo”, o qual se daria pela superação da natureza e a libertação do homem de todo medo, investindo-o como senhor da natureza. Com a modernidade, foi conferido um poder unificador à razão, o que significa dizer que com ela buscou-se a superação da subjetividade e do conflito entre ordens religiosas e poder laico, consoante a independência manifestada pelos Estados em relação à religião, nos diversos graus de secularização. Não há, portanto, como se falar em uma autolegitimação ou autojustificação do chamado racionalismo moderno, uma vez que ele foi fundado sobre a religião, de modo que todo o processo de racionalização se originou na racionalização religiosa, como ultrapassagem do pensamento mágico. Essa reformulação do conceito de racionalização deu-se a partir do instante em que as ações sociais sobre ela empreendidas assumiram um sentido racional instrumental, vale dizer, um sentido no qual a ação é compreendida como busca de interesses individuais, imediatos e utilitários. Portanto, pode-se caracterizar o advento da sociedade moderna como a passagem de uma sociedade legitimada pela autoridade religiosa para outra que passou a ser regida por um poder racional, caracterizada pela diferenciação: separam-se indissoluvelmente as esferas de poder, do saber, da lei, da religião, implicando a necessidade de legitimação constante de suas áreas de atuação.

2 Pressupostos sociais para o direito moderno Quais seriam, nesse cenário, os pressupostos sociais para modernização do direito? Com efeito, para que uma sociedade seja chamada de juridicamente moderna seria preciso positivar o seu direito, ou, como prefiro dizer aqui, torná-lo dogmático. O primeiro desses pressupostos sociais é a pretensão de monopólio por parte do Estado na produção das normas jurídicas. Deveras, pela primeira vez na história da civilização ocidental uma instituição se arvora

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como competente para monopolizar a produção do direito. Isso não significa que o Estado Moderno produza todas as normas jurídicas, mas sim que só é considerado direito aquilo que ele produz ou, no máximo, tolera que seja produzido por outras fontes2. Um segundo pressuposto para que uma sociedade possa modernizar o seu direito é a crescente importância das fontes estatais em detrimento das forças espontâneas e extra-oficiais do direito. É só com o Estado moderno que o processo legislativo – resultando na lei – e a jurisprudência passam a preponderar sobre as fontes não estatais do direito, como o contrato, as declarações unilaterais de vontade ou mesmo o costume, que só valem na medida em que constituem fontes complementares, subsidiárias das regras estatais. A terceira característica que faz uma sociedade capaz de dogmatizar seu direito é a relativa emancipação da ordem jurídica frente às outras ordens normativas, ou seja, a autorreferência do sistema jurídico. Isso significa que a definição do que é lícito e do que é ilícito, sob o ponto de vista jurídico, independe em larga medida dos demais modos de organização da vida social. São as regras internas do sistema, as normas jurídicas, que definem e tratam o que é juridicamente relevante (causando um fechamento do sistema), ainda que em permanente interação com os demais subsistemas (que podem gerar alguma abertura). Pode-se denominar essa autorreferência do sistema jurídico de autopoiese, em contraposição à chamada alopoiese, expressão reservada para descrever as interferências entre os diversos subsistemas em sociedades menos diferenciadas. Nesse contexto, o direito de uma sociedade será tão mais complexo quanto mais nitidamente Jhering chama a atenção para o fato de que há menos de dois séculos os crimes contra a honra, na Alemanha, país tido como tipicamente moderno, não eram monopólio total do Estado, permitindo-se, em casos de ofensa, que as questões fossem resolvidas por meio de duelo. Ora, se a pretensão estatal de monopólio da violência legítima não estava ainda consolidada há parcos duzentos anos no coração da cultura europeia, então esse fenômeno é de fato muito recente. Basta verificar que a prática do duelo se encontra ainda institucionalizada pelo Código Penal do Uruguai.

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estiver separado dos demais subsistemas, quanto mais esteja ele imune às interferências deles. E, ao contrário, uma sociedade pode ser dita menos indiferenciada à medida que ocorre essa interferência3. Com efeito, enquanto as sociedades antigas se organizavam segundo princípios de segmentação ou de hierarquia, as sociedades modernas organizam-se de acordo com um princípio de diferenciação funcional. A fórmula mais ampla e mais bem articulada deste programa de investigação é, segundo Santos (2011, p. 159), a concepção do direito como sistema autopoiético em Luhman. Nessa linha, em vez de serem estruturadas por um centro ou sistema funcionalmente dominante, as sociedades modernas são constituídas por uma série de subsistemas (direito, política, economia, ciência, arte, religião etc.), todos eles fechados, autônomos, autocontidos, auto-referenciais, cada um com um modo de funcionamento e um código próprios. O direito, como um desses subsistemas, só se regula a si próprio, constituindo o ambiente que rodeia os outros subsistemas sociais tal como estes são o meio ambiente do direito4. Diante dessas considerações preliminares, podem ser aqui denominados modernos os sistemas jurídicos emancipados e Um exemplo de alopoiese no Brasil parace ser o subsistema jurídico-penal carcerário. Se, digamos, metade da população brasileira é economicamente carente e noventa e cinco por cento dos encarcerados ajustam-se no mesmo conceito, está havendo interferência da condição econômica na decisão sobre o lícito e o ilícito, pois a distribuição da assistência judiciária não cumpre o seu papel. Se se argumentar, por outro lado, que uma maior proporção de condenados pobres se deve ao fato de eles estarem mais sujeitos a ingressar na criminalidade, sendo o procedimento juridicamente igual para todos, a alopoiese demonstra que não possuir certas condições econômicas interfere e corrompe o código jurídico em sentido material, pelo menos. 4 Nas palavras de Boaventura de Souza Santos (2011, p. 160-163), a teoria da natureza autopoiética do direito só merece atenção crítica na medida em que ela é parte de um programa mais vasto de processualização e reautonomização do direito. Para o autor, essas transformações não indicam, porém, qualquer crise do direito em si. A verdadeira crise, para ele, ocorreu nas áreas sociais, reguladas pelo direito, quando se tornou evidente que as classes populares careciam de força política para garantir continuidade das medidas estatais de proteção social. Tratase, portanto, da crise de uma forma política – O Estado-Providência – e não da crise de uma forma jurídica – o direito autônomo. Para Boaventura Santos, o direito desapareceu muito antes, com a consolidação do Estado moderno. 3

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auto-referentes. O direito dogmático, autopoiético, é sem dúvida uma grande novidade oriunda da modernidade. E isso se pode constatar na tendência dos países no sentido de dogmatizar o seu direito, com os Estados tomando para si o monopólio da jurisdição, fixando agrupamentos de normas positivas, pretensamente omnicompreensivas e inequívocas, além de eficazes, com um corpo específico de funcionários para decidir o direito. Nesse viés, a legitimidade parece tornar-se palavra oca ao ser equiparada à legalidade, pois o direito legítimo, nos sistemas modernos, é aquele produzido de acordo com as regras do sistema. Isso se dá, por exemplo, na teoria da validade das normas, na teoria da inconstitucionalidade das leis. Válida e, por conseguinte, legítima, é toda norma elaborada de acordo com o conteúdo das normas superiores (compatibilidade material), emanada do poder competente e elaborada de acordo com o procedimento descrito pelo ordenamento jurídico (compatibilidade formal). Assim, advogando o fim da “ideologia”, a modernidade traz consigo exatamente essa autofixaçao dos critérios, sobretudo o que possa considerar como lícito e ilícito. De forma inequívoca, a modernização do direito assume alto risco de instabilidade, na medida em que emancipa o direito das certezas da religião e da moral, criando uma relativa independência da ideia material de justiça. Ainda assim, ela também traz consigo a vantagem ética de uma mais ampla tolerância para com as diferenças individuais entre os seres e grupos humanos. Com efeito, um sistema jurídico emancipado de ordens normativas de outras categorias permite uma maior diversidade de condutas, assumindo o monopólio da coercitividade, da violência legítima, apenas no que concerne a suas próprias regras. Então, há uma tendência no Estado dogmático de permissividade em relação a comportamentos que não seguem a ortodoxia moral, religiosa, de etiqueta ou mesmo tradicional, desde que de acordo com o sistema jurídico. Assim, a inusitada complexidade do mundo moderno traz para o direito o problema de precisar lidar com os mais diversos

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conteúdos e valores por vezes incompatíveis. Dentre essas visões de mundo, o sistema jurídico tem que escolher uma e fixá-la como dogma, como norma de direito, que precisará ser imposta também àqueles que não concordam com seu conteúdo axiológico. Disso, tem-se um perigoso binário: de um lado, grande maleabilidade de perspectiva de valores, com propensão à tolerância; de outro, a permanente necessidade de justificar-se perante as expectativas axiológicas decepcionadas e daí ter de lidar com o problema da legitimidade.

3 Características da dogmática jurídica Quais seriam as características do direito moderno e dogmático? Penso que seriam a inegabilidade dos pontos de partida e a obrigatoriedade de decidir. Pela inegabilidade, um argumento é juridicamente aceitável se tomar por base uma norma jurídica do sistema, de modo que uma norma jurídica só pode ser recusada com base em outra norma jurídica. É por essa razão que, para muitos, a dogmática nada tem de científica, podendo, no máximo, ser objeto da ciência do Direito. De outro lado há Kelsen, afirmando que a dogmática é a única ciência puramente jurídica, vez que nela as normas preponderam sobre os fatos5. Quanto à segunda característica, a obrigatoriedade de decidir (proibição do non liquet), tem-se que só com o moderno Leviatã, o Estado passou a decidir, sempre, tudo o que é juridicamente relevante, pretendendo o monopólio da violência legítima e do dizer o direito, em última instância. E é esse o drama do magistrado, o A Escola do Direito Livre falou na revolta das fatos contra as normas, mas Kelsen defende uma revolta das normas contra os fatos, pois, em um sentido bem literal, as normas fazem os fatos. Os fatos, sobretudo os fatos jurídicos, não são dados puros da realidade, não se confundem com os eventos do mundo; fatos são versões linguísticas sobre eventos. Assim, um fato jurídico, para a dogmática, é aquilo que a norma define como tal. Daí o dogma fundamental: argumentar a partir do texto de alguma norma juridical do sistema.

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ter que entender de tudo para decidir sobre tudo. O direito vai se tornando cada vez mais complexo e é impossível que um juiz consiga apreender-lhe todos os matizes. É por essa razão que o juiz tem o complexo de Atlas, o titã que carrega a abóbada celeste sobre os ombros. A dogmática é, portanto, a teoria geral do direito moderno. Porém, no amplo cenário de contradições e crises da sociedade capitalista, no qual se destacam o colapso do individualismo jurídico e o esvaziamento de uma concepção burguesa de direito, é preciso indagar se não está superada a força analítica dos esquemas teóricos da dogmática jurídica, tema sobre o qual o passo a tratar a seguir.

4 Crítica à dogmática do direito e ao idealismo jurídico Não obstante a pretensão do direito de ser autorreferente (autopoiético), a verdade é que ele não constitui uma instância autônoma e subsistente por si mesma, porém dependente de outras instâncias que o determinam e o condicionam. Suas transformações são produto do conflito hegemônico entre grupos e classes que procuram adaptar os mecanismos institucionais de controle, direção, regulação e organização aos seus fins e interesses, impondo e mantendo um padrão específico de relações sociais. Portanto, como a história do direito é, também, a história das contradições sociais, assiste-se hoje a um amplo processo de revisão dos pressupostos metodológicos da teoria jurídica – resultante da própria evolução do sistema social em que ela está inserida O ponto de partida dessa revisão é a explosão de um dos pilares básicos da dogmática do direito: a crença de que mesmo vivendo diante de um pluralismo social seria possível reduzi-lo a uma unidade formal capaz de equilibrar seus antagonismos e equilibrar interesses, mediante um processo de construção de categorias conceituais, princípios gerais e ficções retóricas que depuraria as instituições de direito de quaisquer antinomias e lacunas.

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Com efeito, a funcionalidade da dogmática jurídica sempre esteve ligada à ideia de unidade e sistematicidade, individualizando os conflitos para melhor dispersá-los, por meio de uma linguagem objetiva, imposta erga omnes. Sem essa coerência sistemática e linguagem específica, as instituições de direito dificilmente teriam condições operacionais de desempenhar suas funções básicas no âmbito do Estado capitalista e da ordem burguesa, sobretudo as de garantir a segurança das expectativas, o cálculo econômico e o equilíbrio entre os poderes. No entanto, diante de tantos antagonismos sociais, como conciliar as exigências fundamentais de racionalidade formal e coerência sistêmica, no âmbito de leis e códigos, com a crescente complexidade das tensões sociais decorrente da gradativa concentração das forças de produção? Como lidar, a partir do caráter essencialmente individualista das regras forjadas pelo positivismo normativo com as incertezas inerentes à sociedade de classes, e, em especial, com a questão da coletivização dos conflitos? De que modo formalizar homens historicamente distintos num único sujeito jurídico? A verdade é que a dogmática jurídica e todos os seus pressupostos metodológicos não respondem essas perguntas nem apresentam soluções necessariamente satisfativas aos desafios sociais, vendo-se flagrada numa armadilha: ao tentar adaptar-se às contradições socioeconômicas geradas pelo desenvolvimento capitalista, assumindo tarefas com dimensões até então ignoradas pelos codificadores liberais, ela não conseguiu evitar a ruptura dos padrões de unidade e hierarquia inerentes aos postulados da legalidade e da certeza jurídica. Isso fez com que, diante das formas coletivas de conflitos emergentes dos novos níveis de correlação de forças entre grupos e classes sociais em luta, os conceitos básicos da dogmática do direito fossem perdendo a sua operacionalidade e seus efeitos assumiram o caráter de uma crise global do modelo liberal de organização do Estado.

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A dogmática jurídica (ciência positiva do direito) se revela, então, como demonstração de um idealismo jurídico6. Ao rejeitar as reflexões epistemológicas capazes de integrar a Ciência do Direito no âmbito das Ciências Sociais, o idealismo desenvolve conceitos falsamente explicativos, que não só encobrem a proteção formal daqueles valores, mas que, igualmente, servem como elementos organizadores do próprio discurso jurídico, com funções ideológicas definidas, dentre as quais a de despertar nos indivíduos uma confiança nas leis como um sistema legítimo de resolução dos conflitos. Por meio do idealismo, tem-se a ilusão de que os antagonismos e as tensões sociais serão compreendidos e superados por meio de soluções jurídicas, garantindo-se a tão almejada coesão social e o consenso em torno das instituições. Com isso, seriam os antagonismos conciliáveis pela ordem jurídica, afinal, se o valor inerente às condutas é aquele atribuído pelas normas, os únicos juízos de valor aceitos pela dogmática jurídica são os que comprovam a conformidade ou oposição de um fato com a norma. Vê-se com clareza que a dogmática jurídica: a) cultiva a ideia de neutralidade da ciência e apoliticidade do intérprete; b) justifica a crença de que o governo das normas é melhor que o governo da vontade de uma pessoa; c) constitui-se como sendo a consolidação de um conceito moderno de ciência, basicamente voltado não tanto ao problema da verdade ou da falsidade das conclusões do raciocínio científico, mas sim ao seu caráter sistemático e à coerência lógico-formal.

5 Conclusão Diante do exposto, a teoria jurídica normativista, que ainda é a base da racionalidade do Direito, deriva de um contexto histórico bem preciso. É uma teoria que se origina e se fundamenta na forma Segundo José Eduardo Farias, o idealismo pode ser definido como um processo de inversão da realidade mediante invocação de um pensamento racional. Ao permitir uma aceitação acrítica do direito positivo, ele oculta as origens históricas tanto de suas categorias quanto dos interesses políticos nelas subjacentes.

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de sociedade que chamamos de moderna. É, portanto, uma teoria jurídica da modernidade, e o significado mais lapidar que se pode dar à expressão modernidade seria aquele de um período em que há uma grande crença numa certa ideia de racionalidade, e esta, no Direito, estaria ligada a uma forte noção de Estado. Assim, toda teoria jurídica da modernidade é uma teoria ligada à noção de Estado, e essa racionalidade se desenvolveu, principalmente, nessa dinâmica dogmático-normativa. É, portanto, uma teoria datada, que tem como pressuposto epistemológico o normativismo, que se difundiu pelo Ocidente como matriz teórica do Direito da modernidade. O problema é que quando se ingressa numa nova forma de sociedade, globalizada e transnacionalizada, como hoje se presencia, essa perspectiva racionalista ligada à dogmática jurídica e ao Estado pode se tornar extremamente limitada, implicando em uma saturação ideológica no conhecimento do direito, uma inércia reflexiva, uma falta de interesse no que se refere à mudança social, ou mesmo um certo conformismo, na medida em que não deixa de perceber o papel do Estado de Direito como justificador do exercício da dominação política. Assim, ao estimular a transformação das relações sociais em meras relações imaginárias, generalizando hipóteses e sanções, organizando-as numa intrincada ordem formal, a dogmática do direito parece mergulhada em uma crise de funcionalidade, afastando-se dos verdadeiros círculos decisórios e se isolando das ciências sociais. Afinal, por dar a seus problemas epistemológicos um tratamento eminentemente formal e lógico, ela tem-se julgado eximida de discutir os fundamentos e origens socioeconômicas, políticas e culturais dos instrumentos e modelos de que se utiliza, ignorando a questão da justiça material como um problema jurídico e limitando sua tarefa à reconstrução dos aspectos ideológicos que ignoram a existência de diferentes padrões de organização da vida social, todos variando conforme o grau de articulação dos modos de produção com as formas de dominação. Dessa maneira, é preciso se colocar de forma mais clara a necessidade de relacionar o Direito com a política e a sociedade, dando

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um sentido pragmático a essa assertiva. Como cenário de superação parece emergir a exigência de uma dialetização entre a prática social e a racionalidade formal, que entreabre a necessidade de revisão de categorias e conceitos e mostra, igualmente, a importância das abordagens interdisciplinares no exame da experiência jurídica atual. Sem esse tipo de compreensão, a Ciência do Direito não poderá superar suas contradições atuais (discurso falsamente neutro e desinteressado) nem ser reintegrada ao conjunto das ciências sociais.

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A CONTENÇÃO JUDICIAL PELOS PRECEDENTES E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Caio Márcio Gutterres Taranto Juiz Federal Titular da Subseção Judiciária de Teresópolis. Professor da UNIFESO. Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho

Resumo

Abstract

O presente estudo comenta os modelos de contenção judicial e o novo Código de Processo Civil.

Comments the models of precedential constraint and the new Code of Civil Procedure.

Palavras-chave: Precedente judicial – Contenção judicial – Models precedential constraint – Novo Código de Processo Civil – Legalist behavior.

Keywords: Precedent – Precedential constraint – Models of precedential constraint – New Code of Civil Procedure – Legalist behavior.

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1 Introdução A ordem jurídica processual foi inovada por um novo Codex. Assim como ocorre com todos os atos normativos, a Lei 13.105/2015 assume a proposta e o desafio de superar o antigo regime. Dentre as inovações, destacam-se disposições relativas à aplicação de um sistema de precedentes judiciais. Inegavelmente, o legislador projetou seu olhar para a common law com o afã de solucionar problemas que desqualificavam o Código superado, a exemplo da morosidade processual e da convivência com decisões judiciais díspares. A uniformização de jurisprudência, com o Novo Código, deverá tornar o ius in thesi estável, íntegro e coerente (art. 926). Pela estabilidade exigida, os precedentes serão paradigmas para os Juízes e tribunais (art. 927). Por outro lado, o Codex desafia a tradição jurídica pátria ao propor a superação de aplicação de precedentes por dedução. Essa ruptura advém da normatização (e exigência) da construção indutiva que vincula as circunstâncias fáticas (art. 926, § 2º) e da expressa previsão da distinguishing como metodologia decisória (art. 489, § 1º, VI). A convivência do direito legislado com o judicial exige harmonia. Entretanto, é caracterizada pela presença de inúmeros paradoxos. Se por um lado há o fomento à criatividade judicial, por outro os precedentes agem como instrumento de contenção da atividade jurisdicional. Esse fenômeno é teorizado, em especial na experiência americana, por quatro modelos principais, quais sejam, o natural model of precedential constrain, o rule model of precedential constraint, o result model of precedential constraint e o model of principles. Passaremos, então, a abordar cada um desses modelos que compõe a contemporânea teoria da contenção judicial, confrontando-os com a proposta de aplicação dos precedentes judiciais pelo Novo Código de Processo Civil. A questão central consiste na abordagem desses modelos atuarem como paradigma para o legislador ou para o pensamento doutrinário.

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2 A teoria da contenção judicial. Models of precedential constraint A doutrina de precedentes, por si só e ao mesmo tempo, como adverte Duxbury1, atua como força de contenção e de fomento da criatividade judicial. Sustenta2 que a constrição do precedente, por vezes, reforça a sua própria autoridade ao limitá-lo. Para tanto, argumenta que o jurisdicionado (o autor emprega o cidadão) tende a confiar e a aceitar as diretrizes de um magistrado que não insiste em exercer o poder de forma irrestrita. Larry Alexander3 apresenta classificação tripartite de modelos em que os precedentes restringem a atuação criativa dos órgãos jurisdicionais com vinculação hierárquico-recursal. São eles o natural model of precedential constrain, o rule model of precedential constraint e o result model of precedential constraint. Posteriormente, apresenta um quarto modelo, que denomina de model of principles. A questão em exame consiste como que os precedentes constrangem as decisões futuras e qual o funcionamento dos instrumentos de constrição. A coerência é um dos referenciais para a construção desses modelos e é expressamente exigida pelo Novo Código de Processo Civil (art. 926). Atuam os instrumentos de constrição como fundamento para o afastamento de teses radicais de indeterminabilidade do direito. “The doctrine of precedent entails both constraint and creativity” (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge University Press, 2008, p. 27). 2 “Submitting to constraint by precedent will sometimes be a case of bolstering one’s authotity by limiting it, because citizens will more readily trust and accept the directives of a decision-maker who does not insist on exercising unfettered power” (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge University Press, 2008, p. 166). 3 “The doctrine of precedent, or stare decisis, requires courts to follow earlier judicial decisions on matters of law. Precedent is one of several doctrines of repose. If the precedent court is only bound to decide its case as the precedent court decided its case when the facts are the same, then the constrained court always will be able to do what it thinks best regardless how the precedent case was decided, for there will always be some factual differences between cases, the view that precedent cases only constrain subsequent courts presented with the same facts is a view that denies any precedential constraint whatsoever” (ALEXANDER, Larry. Precedent, in PATTERSON, Dennis (Org.). A companion to philosophy of law and legal theory. 2. ed. Blackwell Publishing, 2010, p. 495). 1

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De acordo com o natural model, Alexander4 aponta que um precedente é pensado como um natural instrumento no mundo jurídico para figurar na argumentação de uma decisão posterior. Atua na tentativa de atingir a resposta correta. Dessa forma, um caso semelhante é apreciado a partir de casos semelhantes anteriores, produzindo previsibilidade da atividade jurisdicional. Esse modelo independe, na visão do autor, de qualquer doutrina de aplicação de precedentes. O rule model of precedential constraints, segundo Alexander, constitui um modelo normativo. Um precedente, assim, contém não apenas uma decisão, mas também uma declaração de alguma norma especial por meio da qual a decisão foi justificada. Para esse modelo, é a norma que produz a contenção5. Assim, um tribunal subsequente contido deve aplicar as normas contidas em precedentes quando dos julgamentos, mantendo-se a estabilização. Um olhar sumarizado de disposições do novo Codex, a exemplo dos arts. 489, VI, e 927, pode nos conduzir ao equívoco da adoção desse modelo pelo legislador. Ele expressamente contempla que uma decisão judicial (interlocutória, sentença ou acórdão) não será considerada fundamentada caso se limite a invocar o precedente (art. 489, V). Afasta-se, pois, a aplicação meramente dedutiva dos precedentes, constantemente associada a distorções hermenêuticas. Já o terceiro modelo representa o result model of precedential constraint. Para seguir um precedente, de acordo com esse modelo, o tribunal que sofre a restrição deve decidir o caso tendo como referência a prestação jurisdicional atribuída à parte vencedora. “According to this model, past decisions naturally generate reasons for deciding present cases the same way” (...) The natural model is so called because the model does not depend on the existence of any posited doctrines of precedent” (ALEXANDER, Larry. Precedent, in PATTERSON, Dennis (Org.). A companion to philosophy of law and legal theory. 2. ed. Blackwell Publishing, 2010, p. 495). 5 “According to this model, precedent courts in deciding cases promulgate rules of law (Hardisty, 1979, PP. 53-5). It s these rules that constrain subsequent courts. And it is these rules on which actors may justifiably rely, and which further predictability and stability” (ALEXANDER, Larry. Precedent, in PATTERSON, Dennis (Org.). A companion to philosophy of law and legal theory. 2. ed. Blackwell Publishing, 2010, p. 496). 4

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O resultado do precedente paradigma, então, independente da norma consagrada, será o que vinculará os tribunais constrangidos.6 É inerente ao modelo de resultado o princípio de justiça formal para que se trate o semelhante de forma semelhante. No modelo de resultados, os precedentes atuam como preposições paradigmas a fortiori para casos posteriores igualmente densos, razão pela qual sua noção requer exame da força decisória para uma das partes. Nesse modelo de precedentes, adverte Larry Alexander, ocorre o fenômeno que Dworkin referiu por “força gravitacional do precedente”, em que eles normalmente governam os princípios (com o risco de gerir princípios equivocados). Dessa forma, o terceiro modelo7 consagra a avaliação do equilíbrio dos motivos apresentados pelos fatos do caso em exame, o que representa um problema para sua aplicação, adverte Horty8. Argumentos relevantes favorecem sempre uma das partes, o que pode ser objeto de maior ou menor teor argumentativo pelo magistrado. O novo Código aperfeiçoa a resolução de demandas repetitivas como instrumento de gêneses e aplicação de precedentes judiciais. À luz do art. 976, seu cabimento na qualidade de cabimento “A third model of precedential constraint is the result model. According to his model, the result reached in the precedent case, rather than any rule explicitly endorsed by the precedent court, is what binds the constrained court. Unlike the natural model, however, the result model gives the result in the precedential case more constraining scope than it “naturally” carries” (ALEXANDER, Larry. Precedent, in PATTERSON, Dennis (Org.). A companion to philosophy of law and legal theory. 2. ed. Blackwell Publishing, 2010, p. 496). 7 “According to Lamond, what is most important about an earlier court’s decision in a precedent case is, not the rule it contains nor even the strength of the precedent case for one side or another, but instead, the earlier court’s assessment of the balance of reasons presented by the facts of that case” (HORTY, Jonh. Rules and reason in the theory of precedent, Legal Theory nº 17, 2011, 1-33, Cambridge University Press, p. 3. Disponível em: <http://journals.cambridge.org>. Acesso em: 11 set. 2012). 8 “Still, there are arguments within moral philosophy suggesting that the polarity of certain factors might vary depending on the context in which they appear – that a particular factor might favor one side when taken together with one group of factors, and a different side when taken together with a different group” (HORTY, Jonh. The result model of precedent, Legal Theory, nº 10, 2004, 19-31, Cambridge University Press, p. 30. Disponível em: <http://journals.cambridge.org>. Acesso em: 28 dez. 2010).

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decorre da repetição de processos com a mesma controvérsia de direito e risco à isonomia e à segurança jurídica. Uma vez julgado o incidente, o precedente será aplicado como paradigma a todos os processos que versem sobre idêntica questão de direito, inclusive futuros (art. 927, III, e 985). A sistematização da resolução das demandas repetitivas, ao determinar a mesma resposta jurisdicional em demandas com a mesma controvérsia de direito, denota a inclinação do Codex ao modelo de resultados. Entretanto, disposições outras, inclusive relativas à superação dos precedentes, o afastam do result model, que se apresenta como excessivamente estático para a dinâmica e instável experiência brasileira. Teóricos do direito, em especial Dworkin e seguidores, reconstruíram a premissa de aplicação de princípios derivados de decisões passadas na qualidade de fontes formais do direito. Por força da contenção inerente da aplicação desse modelo principiológico, L. Alexander9 prega o desenvolvimento de um quarto modelo de constrição, que denomina de model of principles. Assim como o modelo de resultados, o modelo de princípios visa a encontrar um equilíbrio moral nos julgamentos. Alexander constrói diferenças entre os modelos de resultado e de princípio. Sustenta que esse possui um espectro mais amplo que o de resultado, responsável por limitar a autoridade dos precedentes aos resultados dos julgamentos aos fatos apreciados. Nesse “Another approach that has won support among theorists holds that courts should resolve disputes on the basis of legal “principles” derived from past decisions. A court faced with a particular dispute surveys prior decisions and either discerns or constructs a principle or underlying reason that explains those decisions. The resulting principle provides an authoritative source of law in the case now before the court. If the present case appears to fall within the terms of a previously announced judicial rule, the principle can also serve as a ground for distinguishing and limiting the rule. At the same time, legal principles do not govern outcomes in the all-or-nothing manner of rules. The body of legal material may suggest several valid but conflicting principles relevant to a given dispute, in which case the court must determine the principles’ relative weights as applied to the dispute” (ALEXANDER, Lerry; SHERWIN, Emily. Judges as rulemakers, in EDLIN, Douglas E. Common law theory. Cambridge Studies in Philosophy and Law. Cambridge University Press, 2007, p. 40).

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contexto, o modelo de princípios admite maior abstração e relativização, mesmo porque os princípios fogem do regime de aplicação tudo-ou-nada inerente às regras. Por outro lado, a aplicação de um princípio não necessariamente irá determinar um resultado, sobretudo quando se pondera com outros princípios. O modelo de resultado, na visão do autor, limita a força do precedente às implicações dos casos paradigmas. Vale ressaltar que os princípios são menos determinados que as judicial rules, o que torna a construção de seus sentidos dependente dos valores. Exemplificando esse postulado, Alexander10 cita as reflexões dworkinianas do princípio que veda o enriquecimento a partir de um erro (ninguém deve lucrar com um erro), pois não fornece orientação determinada dos sentidos de erro e de lucro. O juiz ideal, de acordo com o pensamento dworkiniano, emprega a razão e o juízo moral para desenvolver os adequados princípios que podem satisfazer uma exigência de ajuste com decisões anteriores e, em seguida, decide o caso. Em outras palavras, o juiz de Dworkin busca coerência com os princípios desenvolvidos pelos precedentes paradigmas. Engaja-se, também, em argumentar moralmente para alcançar o melhor resultado prossível e, ao mesmo tempo, coerente. Neil Duxbury11 questiona a tese dworkiniana ao sustentar a impossibilidade da força gravitacional de um precedente. Entretanto, ressalta o argumento defendido por Dworkin ao enfatizar a noção da referida força e apontar como equivocado tratar o “For example, the principle that no one should profit from a wrong does not provide determinate guidance because it leaves undefined the notions of a wrong and of profit” (ALEXANDER, Lerry; SHERWIN, Emily. Judges as rulemakers, in EDLIN, Douglas E. Common law theory. Cambridge Studies in Philosophy and Law. Cambridge University Press, 2007, p. 43). 11 “The objective here, however, is not to develop a critique of Dworkin’s account of precedent but to highlight its value; for by emphasizing the notion of gravitational force he ilustrates that it is a mistake to treat precedent-following as equivalent to the interpretation of binding legal rules. Gravitational force is, like authority, variable: not only might judges disagree about the significance of a particular precedent, or about what principle it should be understood to have established, but the might even disagree as to whether it should be acknowledged to have established a principle at all” (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge University Press, 2008, p. 61-62). 10

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precedent-following como equivalente à interpretação da obrigatoriedade das normas jurídicas. Em continuidade ao exame da força gravitacional, Duxbury equipara-a à incidência da autoridade no sentido de ambas serem variáveis, na medida em que pode haver discordância entre os juízes a respeito da interpretação de um dado precedente a ser aplicado ou sobre qual princípio deve incidir e estabilizar. Reflexões a respeito do modelo de princípio não devem ser desprezadas à luz do novo Código. Expressamente exige a identificação dos fundamentos determinantes para a aplicação de um precedente judicial e o exame da matéria fática para a gênese do precedente paradigma. Na leitura de Larry Alexander12, esse hiato do modelo de princípios que faz com que o Poder Judiciário não simplesmente deduza os resultados das argumentações das decisões anteriores e, ao mesmo tempo, não decide autonomamente, mas sim determina o melhor resultado compatível a partir de precedentes que consagram princípios, consistiu o que Neil MacCormick, Marshall e Bankowski denominaram de determinative theory. Apessar da associação construída por Alexander, identifica-se que o modelo determinativo possui peculiaridades próprias ao conter a produção de normas judiciais a partir da imposição da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O modelo determinativo, assim, diferencia-se dos demais, em especial pela proposta de assunção pelos precedentes dos espaços abstrados existentes entre o direito legislado. Esse modelo prega que os precedentes, simultaneamente, declaram e constiuem normas jurídicas. O novo Código de Processo Civil não adentra em questões de teoria do direito a ponto de expressamente adotá-lo. 12 Alexander faz essa construção da seguinte forma: “Bankowski, MacCormick, and Marshall aptly refer to this as a “determinative” theory of precedent: Courts neither deduce results from prior opinions nor decide independently what is best; instead, they determine the best result consistent with prior cases. Bankowski, MacCormick, and Marshall, “Precedent in the United Kingdom” in MacCormick and Summers, Interpreting Precedents, 332” (ALEXANDER, Lerry; SHERWIN, Emily. Judges as rulemakers, in EDLIN, Douglas E. Common law theory. Cambridge Studies in Philosophy and Law. Cambridge University Press, 2007, p. 42, nota 47).

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3 Contenção judicial e a imposição do legalist behavior O exame da contenção judicial pelos precedentes exige reflexão quanto à obrigatoriedade de seguimento do complexo das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça e do desvalor por desconsiderá-las à luz do novo Código de Processo Civil. A priori, destaca-se que ele estende o efeito vinculante vertical para todos os precedentes judiciais (art. 927). É necessário abordar eventuais sanções e instrumentos processuais aptos a resguardar a autoridade que deles emanam. Da autoridade dos precedentes decorrem os efeitos vinculantes, impeditivos de recurso e meramente persuasivos. Essa conclusão já foi reconhecida pelo próprio Pretório mesmo à luz do antigo Código. No Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 203.498, o relator expôs que “a interpretação do texto constitucional pelo STF deve ser acompanhada pelos demais Tribunais. (...) A não observância da decisão desta Corte debilita a força normativa da Constituição. (...).” Por outro lado, os efeitos dos precedentes variam conforme o instrumento processual de aplicação e a técnica decisória utilizada. Essa premissa, igualmente, foi salientada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 921.469, decisão de 15 de maio de 2007, relator Ministro Teori Albino Zavascki. Dispôs que não podem ser desconsideradas as decisões do Plenário do Supremo Tribunal Federal que reconhecem a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de diploma normativo13. “não podem ser desconsideradas as decisões do Plenário do STF que reconhecem a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de diploma normativo. Mesmo quando tomadas em controle difuso, são decisões de incontestável e natural vocação expansiva, com eficácia imediatamente vinculante para os demais tribunais, inclusive o STJ (CPC, art. 481, parágrafo único: ‘Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão’), e, no caso das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com força de inibir a execução de 13

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Mesmo quando tomadas em controle difuso, na visão do Supremo, suas decisões são de incontestável e natural vocação expansiva, premissa essa positivada no novo Código. Possuem eficácia vinculante para os demais tribunais, inclusive o Superior Tribunal de Justiça e, no caso das decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, assumem força de inibir a execução de sentenças judiciais contrárias, que se tornam inexigíveis14. Em nosso sistema, o efeito vinculante concretiza autoridade do precedente perante a Administração Pública e os demais órgãos do Poder Judiciário independentemente do teor argumentativo. Ao menos quanto à vinculação, há a possibilidade de utilização da reclamação e de outros instrumentos, como os recursos, para o resguardo da autoridade. Logo o Codex contempla o desvalor em não seguir os precedentes do Supremo Tribunal Federal e sistematiza um complexo de remédios para corrigir posturas que desconsideram a última palavra em hermenêutica constitucional, em especial a reclamação (art. 988). Richard Posner15, ao enumerar as nove teorias de comportamento judicial, empregou grande ênfase à teoria legalista (legalist theory). O legalismo é compreendido como uma teoria positiva de comportamento dos juízes que prega que as decisões são determinadas pelo Direito, concebido como um corpo preexistente de regras previstas na Constituição, nas leis e nas decisões judiciais16. sentenças judiciais contrárias, que se tornam inexigíveis (CPC, art. 741, parágrafo único; art. 475-L, § 1º, redação da Lei 11.232/05).” 14 No voto dos Embargos de Declaração no Recursos Extraordinário nº 328.812, o relator, também o Ministro Gilmar Mendes, expôs que a interpretação do texto constitucional pelo Pretório deve ser acompanhada pelos demais Tribunais, em decorrência do efeito definitivo absoluto outorgado à sua decisão. 15 POSNER, Richard A. How judges think. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 19. 16 “Legalism, considered as a positive theory of judicial behavior (it is more commonly a normative theory), hyposthesizes that judicial decisions are determined by “the law”, conceived of as body of preexisting rules found stated in canonical legal materials, such as constitutional and statutory texts and previous decisions of the same or a higher court, or

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É salutar a observação de Posner, ao tratar do legalism behavior, no sentido de que, quando um juiz segue precedente17 de um tribunal com competência hierárquica, o magistrado não está fazendo um julgamento político, mas sim respeitando a uma força superior. A imposição do legalismo pelo novo Código representa a obrigatoriedade de afastamento de outros comportamentos, ou melhor, a contenção das demais cortes, em especial frente a comportamentos pragmatistas. O emprego de precedentes é central no legalist, responsável por consagrar uma aparência de rigor intelectual ao processo decisório. Posner, contudo, adverte que esse rigor é meramente aparente18.

4 Contenção judicial, estabilização e vinculação Na common law, a estabilização constitui uma atribuição do juiz. Significa o efeito da determinação do direito e da obrigatoriedade da reprodução em todos os casos entendidos como idênticos perante o judicial decision-making. Em outras palavras, representa a dicção, pela atividade jurisdicional, da norma jurídica vigente em contexto de tempo e lugar apta a reger todas as relações jurídicas que se adjudicam ao precedente.

derivable from those materials by logical operations” (POSNER, Richard A. How judges think. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 41). 17 Gerhardt também enfatiza a influência dos precedentes no comportamento dos juízes. Expõe que “those who favor, or combine, these models have long been conducting extensive empirical tests of precedent’s influence on judicial behavior” (GERHARDT, Michael J. The power of precedent. New York: Oxford University Press, 2008, p. 68). 18 Cumpre ressaltar que, em sentido oposto à experiência americana, o legalism aplicado pelo Supremo normalmente é não originalista. A respeito da relação entre legalismo e originalismo, Hernández sustenta que o formalismo adota basicamente posiciones próprias de um positivismo legalista; diversamente, o realismo possui peculiaridade de um positivismo sociológico (HERNÁNDEZ, José López. El formalismo en la teoría jurídica estadounidense. Anuário de Filosofia del Derecho, XVIII, 2001, p. 267-299).

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Em tradicional reflexão, Arthur L. Goodhart19 expõe, após exame de casos e suas respectivas justificações, que mesmo que um precedente seja equivocado, seu princípio se estabiliza de forma válida e obrigatória. Em momento nenhum, estabilização representa engessamento ou a impossibilidade do intérprete em examinar um dado caso. Pelo contrário. Como bem expõe Jan Komárek20, permite flexibilidade, sobretudo caso haja comparação com as práxis de interpretação e aplicação do direito legislado. Na common law, portanto, a estabilidade produzida pelos precedentes convive harmonicamente com a flexibility na qualidade de criação humana perante o sistema. Como adverte Zander21, não há dúvidas que a doutrina de precedentes possui várias lacunas que permitem aos juízes aproveitarem a oportunidade de recusar um dado precedente. A constatação dessas lacunas torna ainda mais complexa e necessária a maturidade de operacionalizar os modelos de contenção judicial pelos precedentes. Um precedente pode atuar como paradigma em um complexo de julgamentos posteriores e, com a repetição da incidência da ratio decidendi ao longo do tempo, pode haver mudança de seu significado. A partir desse fato, na lição de Geldart22, todo precedente “Citei um grande número de casos em que as razões dadas para as decisões eram, obviamente, equivocadas ou foram baseadas em um mal-entendido da história do Direito, mas, no entanto, os princípios estabelecidos por estes casos são válidos e vinculantes” (tradução livre do autor). Original em inglês: “I cited a large number of cases in which the reasons given for the decisions were obviously wrong or were based on a misunderstanding of legal history, but nevertheless the principles established by these cases were valid and binding” (GOODHART, Arthur L. The ratio decidendi of a case. Moder Law Review, London, V. 22, 1959, p. 118). 20 “The relevance of the case in which the precedent court adopted is decision establishing the norm ‘implicated’ in it gives subsequent courts a flexibility which legislative rules do not allow. (...) It is not suggest that legislated rules are more determinative or that they allow less flexibility. But, contrary to precedent, their interpretation is not inextricably intertwined wiht a particular case” (KOMÁREK, Jan. Judicial lawmaking and precedent in Suprem Courts. LSE Law, Society and Economy Woking Papers 4/2011. London School of Economics and Political Science. Law, p. 14 e nota nº 70). 21 ZANDER, Michael. The law-making process. Cambridge University Press, p. 304. 22 “A distinction is sometimes made between ‘declaratory’ precedents, which merely declare existing law and ‘original’ precedents which lay down new law. In truth the difference is one of degree and not of kind. If we have a case which deals with certain facts by applying an acknowledged rule, we really have an addition to the rule, because we now know that a 19

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possui teor de originalidade, razão pela qual critica a classificação de declaratory precedents e original precedents. A estabilização, exigência do novo Código (art. 926), constitui, nesse contexto, uma consequência do judicial lawmaking através dos efeitos produzidos pelos precedentes. Entretanto, o que gera a estabilização? Qual seria sua fonte ou seu sentido em nosso sistema? Por outro lado, os precedentes gozam de natural missão modernizadora. Ora, uma decisão em sede de ação direta de inconstitucionalidade, verbi gratia, pode produzir efeito vinculante, impeditivo de recurso e, inclusive, persuasivo. A indicação de que o efeito do precedente depende do contexto da aplicação, hoje, é afirmada pelo Supremo Tribunal Federal23. Por decorrer de interpretação constitucional, é suprema à Lei 13.105/15. Com outras palavras, em nosso sistema, a estabilização peculiariza-se pelo efeito da obrigatoriedade ou persuasão para que um precedente seja aplicado como paradigma pelo Poder Judiciário e pela Administração Pública. Essa peculiaridade decorre de nosso modelo de precedentes associada à imposição do legalist behavior. Estabilização e vinculação não se confundem. O efeito vinculante é uma qualidade da sentença. Leciona Teori Albino Zavascki24, que vai além das suas eficácias comuns (erga omnes, coisa julgada, efeito preclusivo). Conclui que esse efeito confere ao julgado uma força obrigatória qualificada, “com a consequência processual de assegurar, em caso de recalcitrância dos destinatários, a utilização de um mecanismo executivo – a reclamação – para impor o seu cumprimento”25. certain kind of fact falls within it, and in the nature of things we can never have two sets of facts which are precisely similar. No precedent is purely ‘declaratory’ or ‘purely ‘original’” (GELDART, William. Elements of english law. 5. ed. Londres: Oxford University Press, 1953, p. 15). 23 Quando da aprovação do Enunciado da Súmula Vinculante nº 11, por força do Habeas Corpus nº 91.952, relator Ministro Marco Aurélio, o Pretório estabeleceu que as súmulas vinculantes “passam a ser dotadas das características das súmulas impeditivas de recursos”. 24 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 37. 25 O § 31 (2) da Lei do Bundesverfassungsgericht confere força de lei aos pronunciamentos em matéria relativa à jurisdição constitucional. Parte do pensamento

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No Direito brasileiro, a vinculação constitui solução para a carência de uniformidade e incerteza das decisões oriundas do controle de constitucionalidade. Passamos a adotar o sistema difuso em 1889 despojado da doutrina do stare decisis26, conjugando-o, posteriormente em 1965, com a fiscalização abstrata. A concepção de efeito vinculante construída pelos precedentes do Supremo Tribunal Federal, pelas Emendas Constitucionais nº 03/93 e 45/2004 e pelas Leis 9.868/99, 9.882/99, 10.259/01, 11.418/06, 11.417/06 e agora de forma mais ampla pelo novo Código de Processo Civil diferencia-se da doutrina do stare decisis27. Essa doutrina reiteradamente é delimitada como, apenas, uma política e uma prática, e não um estrito instrumento de produção de normas absolutas (inexorable command)28. doutrinário pátrio defende que as súmulas teriam a natureza jurídica de “quase-lei”, em um esforço em se estabelecer coerência ao nosso sistema em um contexto, ainda, apegado ao paradigma positivista. Por todos, vide: MUSCARI, Marco Antonio Botto. Súmula vinculante. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 53. 26 Michael Stokes Paulsen sustenta que a doutrina do stare decisis não possui origem constitucional nos Estados Unidos, por conta de ausência expressa, inclusive no artigo III. Dispõe que “the doctrine of stare decisis is not constitutionally required, in any sense, and has never been so understood. Nothing in Article III of the Constitution (or in any other provision of the Constitution) mandates a pratice of adherence to precedent; nothing in Article III specifies any rules or set of criteria for when a court should, must, or may follow a prior decision” (PAULSEN, Michael Stokes. Does the Supreme Court’s current doctrine of stare decisis require adherence to the Supreme Court’s current doctrine of stare decisis? North Caroline Law Review V. 86, 2008, p. 105). Entretanto, não há unanimidade quanto à inserção da doutrina na Constituição Americana. No caso Helvering v. Hallocj, 309 U.S. 109, 119 (1940), o Justice Frankfurter defendera que o “stare decidis não é uma norma constitucional”. Tradução livre do autor. Original em inglês: “stare decisis is not a constitutional command”. Em voto vencido no caso Burnet v. Coronado Oil 7 Gas Co (U.S. 285, 393, 407), o Justice Brandeis defendeu que o stare decisis tem limitado campo de autação no Direito Constitucional. Original em inglês: “Stare decisis has only a limited application in the field of constitutional law” (HEALY, Thomas. Stare decisis as a constitutional requirement. West Virginia Law Review, V. 104, 2001, p. 91). 27 In Helvering v. Hallocj, 309 U.S. 109, 119 (1940), o Justice Frankfurter defendeu que o stare decisis é “um princípio de policiamento e não uma fórmula mecânica de seguimento da última decisão” (Tradução do autor. Original em inglês: “Stare decisis is a principle of policy and not a mechanical formula of adherence to the latest decision”). 28 A Suprema Corte Americana, no caso Agostini v. Felton (U.S. 203,235-36 1997) expôs que coletar casos e seguir os precedentes não é um comando inexorável, mas uma

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Com propriedade, George Costelo29 expõe que ela significa a regra geral dos Tribunais, ao identificar uma norma em um caso, em aplicá-la em casos futuros com matéria de fato substancialmente similar30,31. Sob o aspecto histórico, o stare decisis surgiu como consequência da regra judge made-law. política de julgamento. Tradução livre do autor. Original em inglês: “collecting cases and stating that adherence to precedent is “not an inexorable command” but a “policy judgment”. 29 COSTELLO, George. The Supreme Court’s overruling of constitucional precedent: an Overriew. CRS Report for Congress, Novembrer 29, 2005. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/w12913>. Acesso em: 8 mar. 2009, p. 1. 30 Em brilhante estudo efetuado perante o Law Institute of the Américas da Southern Methodist University School of Law, Texas, Julio César Cueto Rúa defende que um princípio cardial do common law se encontra em o que se chama stare decisis et non quieta movere ou, simplesmente, stare decisis. Que o stare decisis seja uma norma jurídica geral de origem consuetudinária, ou um princípio axiológico (os valores ordem e segurança pareceriam ser manifestados no caso) ou uma mera técnica judicial é algo muito discutido na teoria jurídica norte-americana. Por certo que todas estas doutrinas tenham sido defendidas com boas razões. (...) Segundo o princípio do stare decisis, os juizes devem resolver os casos que se encontram pendentes de sentença atendendo ao fixado por sentenças precedentes ditadas em casos similares por juízes da mesma jurisdição, com hierarquia equivalente ou superior. (...) Em nossa concepção, pois, o stare decisis no common law norteamericano é uma norma jurídica cujo sentido axiológico se encontra nos valores ordem, segurança, paz e justiça, conforme os quais os juízes de uma jurisdição determinada são obrigados a resolver os casos que se encontram pendentes de julgamento mediante a aplicação das normas gerais que podem ser explicitadas por eles nas sentenças prolatadas no passado por juizes da mesma jurisdição, da mesma ou superior hierarquia, em casos que oferecem certa semelhança ou analogia básica, salvo que: a) as sentenças do passado traduzam uma grasseira injustiça ou sejam irracionais; ou b) haja operado uma alteração substancial da situação social de tal natureza que, à sua luz, os precedentes hajam perdido sentido como expressão de justiça, transformando-se em um fator de iniqüidade e atentatório ao bem-estar social; ou c) o precedente considerado como aplicável traduza uma clara violação de uma norma do common law, definitiva e firmemente estabelecida (settled rule of law), é decidir, de uma norma que tenha sido constante e uniformemente aplicada pelos tribunais (RÚA, Julio César Cueto. El common law: su estructura normativa, su enseñanza. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, p. 89 e 104-105. Tradução livre do autor). 31 Em comparação com a experiência inglesa, a incidência da doutrina do stare decisis nos Estados Unidos é mais atenuada. Forças atuam para a mitigação, quais sejam, a existência do judicial review perante os statutes e a assunção de novos valores (according to law and good conscience). Decisões da Suprema Corte Americana a partir das três últimas décadas do século passado acolheram postura mais evolutiva do stare decisis, como nos casos Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey (U.S. 505, 833 (1992)) e Payne v. Tennessee (U.S. 501, 808 (1991)) (PAULSEN, Michael Stokes. Does the Supreme Court’s current doctrine of stare decisis require adherence to the Supreme Court’s current doctrine of stare decisis? North Caroline Law Review, V. 86, 2008, p. 73-85).

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Por se tratar de uma doutrina oriunda da sedimentação do costume ao longo dos séculos, não possui marco temporal claramente delimitada32,33. Salmond34, como exponte do pensamento britânico do início do século XX, expõe que um precedente atua com autoridade e não é apenas a evidência ou prova de um direito, mas uma fonte e os tribuanais são obrigados a segui-lo por força da estabilização que ele gera. Nenhum operador do direito ou advogado no sistema anglo-americano, na visão de C. K. Allen35, defenderia, provavelmente, o abandono do stare decisis em favour do free law-findig. Uma defesa com esse grau de desafio teria o fim de revolucionar e possivelmente obstaria todo o desenvolvimento da common law. Gerhardt, autor contemporâneo da common law36, propõe passos mais densos, na medida em que sustenta que a estabilização de um dado precedente em grau elevado pode construir um super precedent. Esse resultado representaria normatização oriunda do Poder Judiciário que não é passível de alterações. Thomas Healy leciona que, “em um tratado escrito por vlota de 1256, um juiz de nome Henry de Bracton empenhou-se em explicar os princípios e procedimentos do Direito Inglês. Para ilustrar suas conclusões, ele inclui discussões a respeito de cinco centenas de casos decididos pela Court of Common Pleas, (...). Ele expressou a forte crença nos valores dos precedentes.” Defende que a obra de Bracton fora importante passo para o desenvolvimento do stare decisis porque ele familiarizou advogados com o uso de casos para atribuir suporte argumentativo para o Direito. Seu exemplo serviu de inspiração para a criação dos Year Books, marcando-se, assim, o início da doutrina de precedentes na Inglaterra (HEALY, Thomas. Stare decisis as a constitutional requirement. West Virginia Law Review, V. 104, 2001, p. 56-58). 33 HEALY, Thomas. Stare decisis as a constitutional requirement. West Virginia Law Review, V. 104, 2001, p. 62-66. 34 “A judicial precedent speaks in England with authority; it is not merely evidence of the law but a source of it; and the courts are bound to follow the law that is so established” (SALMOND, John W. Jurisprudence. 4. ed. London: Stevens and Haynes, 1913, p. 159). 32

“No English lawyer is likely to advocate the abandonment of the general principle of stare decisis in favour of ‘free law-finding’; to do so would be to revolutionize, and possibly to arrest, the whole development of our Common Law” (ALLEN, C. K. Law in the making. Londres: Oxford University Press, 1958, p. 339). 35

“Throughout this book I have referred to some precedents as being so deeply embedded in our law and culture that they have become practically immune to overturning. I call these precedents super precedents (...)” (GERHARDT, Michael J. The power of precedent. New York: Oxford University Press, 2008, p. 177). 36

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Apesar da similitude, a doutrina do stare decisis, em especial por força do binding power effect, não deve ser confundida com o efeito vinculante, não só pela origem histórica, mas pela diversa finalidade, mesmo que gerando análogos resultados práticos. Aprofundando-se sobre o tema, Roger Stiefelmann Leal37 defende que a vinculação foi forjada no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade europeu com a precípua função de impedir a reiteração material do vício de inconstitucionalidade. O stare decisis é instrumento de coerência interna do Poder Judiciário, enquanto o efeito vinculante tem natureza impositiva externa, obrigando, inclusive e principalmente, instâncias não jurisdicionais, notadamente o Poder Legislativo e o Poder Executivo. O stare decisis consubstancia doutrina que sistematiza os precedentes no centro do common law através da extração da ratio decidendi e das obiter dicta38 para incidência indutiva em casos posteriores. Despoja os precedentes de caráter absoluto e consagra gênero de métodos de decisão voltados para a alteração das orientações jurisprudenciais em um contexto de produção judicial do direito (judge make-law)39, como o distinguishing, o overruling e o reversal, espécies do gênero judicial departures40. LEAL, Roger Stiefelmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 127-128. 38 A respeito da identificação da doutrina do stare decisis através da determinação desses elementos, Neil Duxbury, tecendo críticas à teoria de identificação de ratio decidendi de Karl Llewellyn, estabelece que “that stare decisis will be undermined where the distinction between ratio decidendi and obiter dicta is blurred. A test which makes the distinction credibles is valuable, in other words, not primarily for the purpose of information-management but because it will help judges identify what it is within a precedent that actually constrains them. The logical conclusion of this argument is that the concept of the ratio decidendi has to be taken seriously because the ratio decidendi triggers stare decisis: it is the binding part of a previos case” (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge University Press, 2008, p. 91). 39 Com muita propriedade, o Justice Souter, em voto vencido na Appeal of Concerned Corporators of Portsmouth Ssvings Bank expôs que “stare decisis is essencial if case-bycase judicial decisionmaking is to be reconciled with the principle of the rule of law, for when governing legal standards are open to revision in every case, deciding cases becomes a mere exercise of judicial will, with arbitrary and unpredictable results”. 40 As judicial departures na qualidade de afastamentos e alterações de precedentes possui como hipóteses, dentre outros, a distinguishing, a overruled, a fact-adjustin 37

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Já o efeito vinculante no Direito brasileiro41 possui caráter rígido para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a Administração Pública, com a possibilidade de utilização da reclamação e de outros instrumentos, como os recursos para a garantia da autoridade. Esse efeito, ao contrário do stare decisis, é despojado de judicial departures, com exceção, apenas, das revogações de súmula vinculante e de precedente vinculante por lei posterior. A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, perante a anterior ordem processual, acolheu a dogmática não adoção da doutrina do stare decisis e a correlação existente entre essa doutrina e o sistema do common law, consoante denotam os argumentos do Eminente Ministro Celso de Mello, apreciando o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 179.560-RJ, in verbis: Súmula – enquanto instrumento de formal enunciação da jurisprudência consolidada e predominante de uma Corte judiciária – constitui mera proposição jurídica, destituída de caráter prescritivo, que não vincula, por ausência de eficácia subordinante, a atuação jurisdicional dos magistrados e Tribunais inferiores. A Súmula, em consequência, não se identifica com atos estatais revestidos de densidade normativa, não se revelando apta, por isso mesmo, a gerar o denominado binding effect, ao contrário do que se registra, e o reversal. ENG, Svein; SUMMERS, Robert, Departures from precedent, in MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. (org.). Interpreting precedents: a comparative study. England: Dartmouth Publishing Company Limited e Ashegate Publishing Limited, 1997, p. 521. 41 Parte do pensamento doutrinário pátrio mantém a correlação do efeito vinculante na experiência brasileira com a construção doutrinária do stare decisis no sistema do common law, inclusive em momento posterior à Lei nº 9.868/99. Nesse sentido, Alexandre Freitas Câmara sustenta a assertiva de que “o sistema processual brasileiro faz com que se produza coisa julgada erga omnes nos processos de controle direto da constitucionalidade das leis e atos normativos. Esse sistema, como se viu, é incompatível com a eficácia vinculante dos precedentes. Por estas razões é que aqui se sustenta não existir, nas decisões proferidas em tais processos, eficácia vinculante. Tais decisões ficam cobertas pela auctoritas rei judicatae, que se produz erga omnes, e é só” (CÂMARA, Alexandre Freitas. A coisa julgada no controle direto da constitucionalidade, in SARMENTO, Daniel (org.). O controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 3-20). Autores outros também fazem a referida associação com fundamento em questões históricas (VIEIRA, Renato Stanziola. Jurisdição constitucional brasileira e os limites de sua legitimidade democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 83).

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no sistema da Common Law, por efeito do princípio do stare decisis et non quieta movere, que confere força vinculante ao precedente judicial.

Estamos, então, perante um impasse. Qual dos modelos de contenção judicial melhor se adaptaria ao novo Código de Processo Civil se não acolhemos a doutrina no stare decisis?

5 Contenção e validade do precedente Salmond42 consagra verdadeiro princípio da presunção de validade dos precedentes. Sustenta que a sua aplicação é baseada na legal presunção da correção das decisões judiciais em aplicação da máxima pro veritate accipitur res judicata. Entretanto, a validade do precedente submete-se ao atendimento e completude das normas constitucionais e do direito legislado constitucionalmente interpretado, sobretudo quando a construção de seu sentido decorrer do monopólio da última palavra inerente ao múnus dos Tribunais Constitucionais. Indaga-se a respeito da validade de um precedente não constituído a partir da jurisdição constitucional contemplar disposições contrárias a normas judiciais decorrentes da última palavra em hermenêutica constitucional? O pensamento doutrinário da common law desenvolve o sentido de decisões/julgados per incuriam43,44, que “The operation of precedents is based on the legal presumption of the correctness of judicial decisions. It is an application of the maxim. Res judicata ‘pro veritate accipitur’. A matter once formally decided is decided once for all. The courts will listen to no allegation that they have been mistaken, nor will they reopen a matter once litigated and determined” (SALMOND, John W. Jurisprudence. 4. ed. London: Stevens and Haynes, 1913, p. 170). 43 No magistério de Michael Zander, precedente per incuriam constitui “the third and most difficult exception is where the earlier decision was given per incuriam (in ignorance).” Cita o caso Miliangos (1975), em que Lord Denning empenhou-se em apontar diretrizes para essa espécie de precedente (ZANDER, Michael. The lawmaking process. Cambrige University Press, p. 241-242). Marcelo Alves Dias de Souza leciona que “a definição mais corriqueira de decisão per incuriam diz que uma decisão é assim considerada quando foi dada na ignorância de um precedente obrigatório ou de uma lei relativos ao caso” (SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2006, p. 147). 42

44 Vide caso Williams vs. Fawcett (1985 – House of Lords, Sir Raymond Evershed).

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são os que desconsideram um ato do Parlamento ou precedente com força obrigatória. No magistério de W. F. Frank45, mostra-se bastante evidente, a partir da leitura dos law reports, que a um dado juiz, ocasionalmente, pode não ser interessante aplicar um precedente em que ele sente que gerou uma injustiça no caso anterior. Então, o julgador pode, sustenta Frank, recusar-se a seguir a decisão anterior caso seja compreendida como per incuriam em virtude de ter desconsiderado ato normativo do Parlamento ou alguma outra decisão anterior dotada de binding force. Representam esses precedentes a demonstração de que os juízes possuem capacidade de adicionar elementos novos ao case law. Entretanto, quando essas decisões são provocadas como paradigmas, os demais magistrados possuem a prerrogativa para reconhecer-lhes a invalidade. Esse fato, adverte John Gardner46, desafia a premissa de que o ordenamento jurídico foi alterado pela decisão equivocada. Ora, se há reconhecimento de “anulação”, não se identifica hipótese de overruling, ou seja, nova hipótese de judicial law-making.

“It is quite evident from reading law reports that a judge is occasionally none too keen to apply a precedent where he feels that it might to injustice in the case before him. He may refuse to follow the past decision if that decision has been given per incuriam, which means that the court giving the decision had omitted to consider some relevant Act of Parliament or some decision which was binding or it”. FRANK, W. F. The general principles of english law. 3. ed. London: George G. Harrap, 1964, p. 24). 45

46 “In many legal systems, judges with the ability to add to case law do so even if they do so per incuriam: even if they ignore and contravene existing law in doing so. When that happens, other judges may have extra powers to overrule the errant decision when it comes to light in later cases. But this confirms, rather than challenges, the claim that the law was changed by the errant decision in the meantime. If the law was not changed, overruling would not be necessary. Such judicial law making without the support of existing law is in one respect akin to legislating. It is an activity of making law de novo. Yet it is not legislating, for legislators do not make law de novo by applying law” (GARDNER, John. Some types of law, in EDLIN, Douglas E. Common law theory. Cambridge Studies in Philosophy and Law. Cambridge University Press, 2007, p. 67).

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Antonin Scalia, pautado para a realidade americana, na interpretação de Weizer47, demonstra verdadeira preferência por regras claras em vez de abordagem fragmentada de interpretação constitucional e das leis. O Justice propõe a consideração de invalidade de precedentes que transmudam o sentido originário da Constituição ou de um estatuto, a exemplo de sua manifestação no caso Feres v. United States. Um exame do tema à luz do novo Código de Processo Civil leva-nos a concluir que uma decisão que desconsidera a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é inválida. Até por isso o Codex é expresso quanto ao cabimento da reclamação (art. 988). Portanto, é necessário diferenciarmos o reconhecimento de invalidade/inconstitucionalidade de uma norma infraconstitucional de sua mera desconsideração de vigência (ou baixa efetividade) por um precedente. Um precedente inválido, por contrariar dispositivo magno, pode ser objeto de controle pelo Supremo Tribunal Federal através de recurso extraordinário (art. 102, III, a, da Constituição) e até mesmo por reclamação (art. 988 do novo Código). Por outro lado, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 80, relator Ministro Eros Grau, o Pretório fixou o entendimento de que um verbete de jurisprudência consolidada não poderia ser objeto de fiscalização abstrata. Esse posicionamento já foi superado por decisões posteriores, em especial pela Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, em que a validade do Enunciado nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho foi objeto, por via transversa, de controle de constitucionalidade. Paul I. Weizer, estudioso e comentarista do textualismo de Scalia, observa que “Justice Scalia has also demonstrated a real preference for clear, bright line rules rather than a piecemeal approach to constitutional and statutory interpretation. Oftentimes, the Supreme Court will use a balancing teste or choose to review situations on a case-by-case basis. This type of approach obviously is looked down upon by Justice Scalia. Textualism requires thata original understanding and meaning be your guide” (WEIZER, Paul I. The opinions of Justice Antonin Scalia: the caustic conservative. New York: Peter Lang, 2004, p. 15). 47

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O novo Código de Processo Civil, mesmo que sumariamente, contempla requisitos de validade de um precedente judicial. Em especial exige a observância às circunstâncias fáticas e o respeito aos precedentes de tribunais superiores, consolidando a perspectiva vertical do efeito vinculante. Assim, é inválido um precedente de um Tribunal de Justiça contrário à Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. Nessa mesma linha, exige o Codex argumentação específica para a superação de um dado precedente (art. 928, §§ 2º e 4º), inclusive para a distinguishing.

6 A reclamação constitucional como instrumento de constrição judicial Sem dúvida, a reclamação consubstancia um dos mais enigmáticos institutos de nossa jurisdição constitucional. Recebeu destaque do legislador no novo Código de Processo Civil (art. 988). Perante o novo Codex, possui dupla face, ou seja, ora atua como precedente propriamente dito a ser aplicado como paradigma, ora assume a natureza48 de ação autônoma para a aplicação de precedentes judiciais49. Questiona-se, então, se atuaria, também, como instrumento de contenção judicial. Na Reclamação nº 4.987, o relator, Ministro Gilmar Mendes procedeu a verdadeira síntese do histórico do instituto, dispondo

Leonardo Morato disserta a respeito das várias orientações e posturas a respeito da natureza jurídica da reclamação, indicando a atuação desse instituto como modalidade de ação, como medida administrativa, como medida de jurisdição voluntária, como processo objetivo, como sucedâneo recursal, como recurso, como incidente processual, como exercício do direito de petição e como remédio processual (MORATO, Leonardo. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 81 ss). 49 Gilmar Ferreira Mendes defende que “essa forma de avocatória pressupõe, em primeiro lugar, causa posta em juízo (ubi, nen est actio...) e, em segundo lugar, o conhecimento dela por autoridade diversa e incompetente” (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 67). 48

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que “desde o seu advento, fruto de criação jurisprudencial, a reclamação tem-se firmado como importante mecanismo de tutela da ordem constitucional”. A reclamação atua para preservar a competência do Supremo Tribunal Federal ou garantir a autoridade de suas decisões. A reclamação surge para o direito objetivo em 1957, incorporada ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. A Constituição de 1967 autorizou o Pretório Excelso a estabelecer o regime processual de sua competência (art. 119, § 3º), conferindo força de lei ao referido Regimento. Esse fato foi apontado pelo Ministro Gilmar Mendes no voto da Reclamação nº 4.987 como legitimador do instituto. Já a Constituição de 1988 a inseriu no rol da competência originária do Supremo, dispondo que a função da reclamação representa a preservação da competência e a garantia da autoridade das respectivas decisões. O Supremo procedeu a crescente evolução da valorização da reclamação, identificando-se quatro consolidações de orientações a respeito do instituto. Rumaram, historicamente, em busca da contenção judicial. Parte do não reconhecimento da possibilidade de utilizá-la para impor o efeito vinculante de decisão de ação direta de inconstitucionalidade50. André Ramos Tavares51, comentando esse primeiro momento das reclamações, leciona que não se reconhecia, no caso do processo objetivo, uma decisão que demandasse execução, não havendo como a parte interessada invocá-la. Defende que uma reclamação em função do descumprimento de decisão do Supremo “só era Nesse sentido, na Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.423-SP, o relator Ministro Moreira Alves asseverou que as ações diretas são despojadas de “execução específica, ainda que provisória, para permitir a adoção da providência – depósito judicial para resguardo de eventuais direitos pleiteada pela autoridade requerente”. Na Reclamação nº 354, relator Ministro Celso de Mello, fora fixado pelo Pretório que “a natureza eminentemente objetiva do controle normativo abstrato afasta o cabimento do instituto da reclamação por inobservância de decisão proferida em ação direta.” 51 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 370. 50

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admissível quando isso ocorresse em um caso concreto, não em tese.” Por fim, leciona que “restava bloqueada a alternativa da reclamação nos casos de decisões judiciais renitentes em seguir a decisão final proferida pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade” 52. Nesse contexto, em estudo da consolidação de orientações do Supremo a respeito de controle de constitucionalidade anterior à Lei nº 9.868/99, Rodrigo Lopes Lourenço53 sustenta que, à luz da jurisprudência do Supremo, “a reclamação é um processo jurisdicional, não sendo inteiramente adequada sua conjugação com o procedimento legislativo-negativo da ação direta de inconstitucionalidade.” Veja que sua utilização não impedia a reedição de normas já declaradas inconstitucionais pelo controle abstrato. O referido autor questiona, uma vez que não se entendia possível a reclamação, qual seria o mecanismo que deveria utilizar o requerente de uma ação direta de inconstitucionalidade para combater a reedição de norma já declarada inconstitucional. Concluiu, com fundamento nos precedentes do Pretório reinantes à época, que a única solução era o ajuizamento de nova ação direta. Essa orientação fora revista, figurando a Questão de Ordem na Medida Cautelar na Reclamação nº 397, relator Ministro Celso de Mello, publicada em 21 de maio de 1993, como leading case. As decisões proferidas em sede de controle concentrado, embora dotadas de eficácia erga omnes, vinham sendo descumpridas. Assim, o Pretório passa a aplicar esse instrumento em prol da concessão de autoridade de suas decisões. Entretanto, fora limitada a legitimidade dos reclamantes nos termos do rol do artigo 103 da Constituição54. Em estudo desse momento na evolução do instituto, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas55 atenta ao fato de que o Pretório, apenas, TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 370. 53 LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da constitucionalidade à luz da jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 69-70. 54 Reclamações nº 380 e 399, relator Ministro Sepúlveda Pertence. 55 O autor sustenta que “a admissão dessa evidência é tributária da preocupação crescente, nos últimos anos, com a efetividade do processo, e da conscientização 52

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reconhecia a legitimidade para a propositura da reclamação pelos legitimados para ação direta de inconstitucionalidade. Visava a preservar a autoridade de decisões vinculantes. O passo seguinte na evolução da reclamação a consolida como instrumento de contenção judicial. Foi dado no julgamento da Questão de Ordem em Agravo Regimental na Reclamação nº 1.880, relator Ministro Maurício Corrêa, em novembro de 2002, quando o Supremo passou a admitir a legitimidade para todos aqueles que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às teses do Pretório. Esse leadin case cristaliza o efeito vinculante das decisões de mérito proferidas em sede de fiscalização abstrata. Positivando essa orientação, a Emenda Constitucional nº 45 torna a reclamação apta a resguardar o efeito obrigatório de súmula que venha a ser desrespeitada (art. 103-A, § 3º). Contudo, o verdadeiro turn na relevância da reclamação como instrumento para o resguardo da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal foi dado com o julgamento da Reclamação nº 4.335, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Nele, o Pretório admitiu (ainda que por parte dos Ministros) a análise da constitucionalidade de lei de teor idêntico ou semelhante à lei que fora objeto de fiscalização abstrata. Nesse precedente, o Pretório distingue a aplicação da eficácia transcendente no sentido de produção de efeito vinculante aos fundamentos de uma dada decisão em sede de controle concreto da possibilidade de, em sede de reclamação contra aplicação de lei idêntica à declarada inconstitucional, declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade de ato normativo ainda não atingida pelo controle concentrado. cada vez maior, ainda que muitas vezes não expressa, de que a reclamação, dada a sua atual sede na Constituição, tem muito a dizer em termos de jurisdição constitucional, não só como mecanismo de reforço às competências constitucionalmente traçadas aos órgãos maiores do Judiciário – especialmente o STF e o STJ – mas também para dotar o sistema de controle de constitucionalidade de maior eficácia possível” (DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação constitucional no direito brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2000, p. 337 e 343).

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Na Reclamação nº 5.47056, o relator enfatizou que, na tendência hodierna, esse instrumento assume o papel de ação constitucional voltada à proteção da ordem constitucional como um todo. Vide que essa proteção tem a força normativa como fundamento. Em outras palavras, protege a ordem constitucional a partir da contenção de juízos que não seguem os precedentes do Supremo. A reclamação, assim, harmoniza as tensões endógenas da jurisdição constitucional. Sustentou o Relator que os vários óbices à aceitação da reclamação, em sede de controle concentrado, já foram superados, estando, a partir de então, o Pretório em condições de ampliar o uso desse importante e singular instrumento da jurisdição constitucional. O novo Código de Processo Civil positiva a evolução da reclamação como instrumento de contenção judicial ao firmar o cabimento para garantir a autoridade das decisões do tribunal, garantir a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade e para garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência.

7 A súmula vinculante como instrumento de contenção judicial A edição de súmula com efeito vinculante representa expressivo instrumento de contenção judicial. Entretanto, na origem, essa

56 Reclamação nº 5.470, relator Ministro Gilmar Mendes. Decisão de 29 de fevereiro de 2008.

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função não era identificada pelos estudiosos do tema57,58. Consubstancia característica típica do Direito brasileiro. Estudo detalhado das construções do Ministro Victor Nunes Leal mostra-se demasiadamente relevante para a compreensão da dimensão inicial desse instituo. Na histórica sessão plenária de 13 de dezembro de 1963, foi publicada a pioneira súmula da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal. O próprio Nunes Leal assume o seu caráter autêntico. Sustenta que “nem todos compreendem a finalidade da Súmula, que é realmente, sob vários aspectos, uma inovação a que o Supremo Tribunal se decidiu depois de longa meditação de seus juízes”.59 O Ministro Leal60, consagrado como o idealizador das súmulas, não as identificou como instrumento de contenção, mas sim de 57 A expressão “súmula” é oriunda do latim summula e significa a síntese de uma orientação. Representa o reconhecimento da adoção, por um tribunal, de uma dada tese jurídica, bem como a intenção de reproduzi-la de forma uniforme nos posteriores julgamentos com a mesma ratio decidendi. Observa-se que alguns órgãos jurisdicionais optam pela expressão “verbete”ou “enunciado”. Para fins desse estudo, as duas expressões serão tratadas como sinônimas. O pensamento doutrinário consagrou, de uma forma geral, que o termo súmula representa o conjunto da jurisprudência dominante de um dado tribunal. 58 Merece ênfase a lição de Cármen Lúcia Antunes Rocha ao dispor que em dois sentidos emprega-se a palavra súmula no direito positivo brasileiro, ou seja, como o resumo de um julgado enunciado formalmente pelo órgão julgador e como o resumo de uma tendência jurisprudencial adotada, predominantemente, por determinado tribunal sobre matéria específica, sendo enunciada em forma legalmente definida e publicada em número de ordem. Disserta, por fim, que no primeiro significado, a súmula nasce de um julgamento, enquanto, “no segundo, ela nasce de uma repetição de julgamentos que cristalizam ou direcionam a interpretação de uma norma ou de uma matéria contida no Direito Positivo em determinado sentido”. Na visão da Ministra, buscar no sistema anglo-saxão a origem pelo que se construiu e constrói por súmula na experiência pátria representa um equívoco histórico, apesar da validade de um estudo comparado com institutos afins. Igualmente, a Ministra Cármem Lúcia, nesse estudo, não as apresente como instrumento de contenção (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Sobre a súmula vinculante. Revista de Informação Legislativa, Brasília, nº 133, jan./mar. 1997, p. 51-64). 59 LEAL, Victor Nunes, A súmula do Supremo Tribunal Federal e o restatement of the law dos norte-americanos. Legislação do Trabalho, ano 30, jan./fev. 1966. Nesse sentido, Marcelo Alves Dias de Souza sustenta que é “crucial ficar claro que súmula (ou um enunciado dela) significa algo diverso do precedente obrigatório (binding precedent) nos termos da teoria do stare decisis. Observando a súmula brasileira e comparando-a com o binding precedent (o que é de grande utilidade para a correta compreensão do instituto brasileiro), vê-se, imediatamente, que sua origem é diferente e seu alcance é bem menor” (SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2006, p. 255). 60 LEAL, Victor Nunes, A súmula do Supremo Tribunal Federal e o restatement of the law dos norte-americanos. Legislação do Trabalho, ano 30, jan./fev. 1966.

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otimização dos julgamentos. Procede a estudo paralelo com a figura do restatement of the law da experiência norte-americana. Defende que a súmula tende a remover ou aliviar o inconveniente do aumento de demandas, representando solução mais rápida e eficaz para nós do que tem sido, para os norte-americanos, o restatement of the law. Leciona o renomado magistrado que: É sabido que não são idênticos os sistemas jurídicos dos dois países. Não damos aos precedentes judiciais a mesma força que têm nas nações de origem britânica. E seus juristas, afeiçoados a uma prestigiosa tradição de direito pretoriano, teriam de ser mais hostis do que nós às codificações, princípio de organização do direito a que sempre fomos habituados. [...] Observa-se, desde logo, que os Restatement se referem ao common law e objetivam expô-lo com tal cuidado e exatidão que os Tribunais e advogados neles possam confiar como um correto enunciado do direito vigente, cujos princípios através deles possam ser citados com clareza e precisão. Em nossa linguagem habitual, poderíamos chamá-los uma Consolidação da Jurisprudência, valorizada pelo prestígio intelectual, mas não oficial da equipe incumbida de sua organização e atualização. Como o próprio nome indica, não é um simples digesto de decisões, mas uma acurada reformulação dos princípios e preceitos que dela derivam. Tão autorizados são esses Restatements que, no período de 1932 a 1950, foram citados 17.951 vezes pelas Cortes de apelação.

Steven H. Gifis61, em seu Law Dictionary, conceitua o restatement como uma tentativa do American Law Institute de informar uma apresentação disciplinada e geral do common law dos Estados 61 Tradução livre do autor. Original:“an attempt by the American Law Institute ‘(...) to present an orderly statement of the general common law of the United States, including in that term not only the law developed solely by judicial decision, but also the law that has grown from the application by the courts of statutes. (...)’ Restatement, Torts viii, ix (1st ed). Restatement are compiled according to subject matter; those compiled include contracts, torts, property, trusts, agency, conflict of laws, judgments, restitution, security, ad foreign relations. The policy of the A. L. I. In the Restatements (Second) has turned away from a mere head count of the jurisdictions in determining what the general state of the law is and has taken into account other factors, such as the modern trend of the law according to influential jurisdictions and well-thought-out opinions” (GIFIS, H. Steve. Law dictionary. 5. ed, New York: Barron’s, 2003, p. 444).

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Unidos, incluindo questões jurídicas desenvolvidas não apenas por decisões judiciais, mas também o direito produzido da aplicação das leis pelas Corte. No magistério do autor, os restatements são compilações de diversas matérias e incluem temas como tratados, responsabilidade civil, propriedade, agências, conflitos de leis, julgamentos, seguros, relações internacionais entre outros. Os autores que trataram dos models precedential constraint não apontaram função de contenção por parte dos restatements. Nunes Leal62 salienta que “dar normatividade obrigatória ao Restatement, por ato do legislativo, seria transformá-lo num Código, e essa conseqüência encontra resistência na tradição jurídica norte-americana”. Por fim, conclui que: Neste ponto da nossa análise comparativa é que está a superioridade prática, para nós, da Súmula do Supremo Tribunal, porque não sendo ela um Código, também não é um simples repositório particular de jurisprudência. É uma consolidação jurisprudencial autorizada com efeitos processuais definidos, porque a inscrição de enunciados na Súmula, como a sua supressão, depende de formal deliberação do Supremo Tribunal. E a autoridade do Supremo Tribunal para assim proceder deriva dos seus poderes regimentais, tanto expressos como imanentes, e da prerrogativa, que lhe confere a Constituição de uniformizar o entendimento do direito federal. [...] A autoridade que nos foi possível atribuir à Súmula – e que falta ao Restatement dos norte-americanos – não é inspiração do acaso ou da livre imaginação. As raízes desta fórmula estão na abandonada tradição luso-brasileira dos assentos da Casa da Suplicação e na moderna experiência legislativa dos prejulgados.

O Ministro Nunes Leal63, referindo-se aos objetivos da súmula à época, expõe que ela atende, portanto, a vários objetivos. É um LEAL, Victor Nunes, A súmula do Supremo Tribunal Federal e o restatement of the law dos norte-americanos. Legislação do Trabalho, ano 30, jan./fev. 1966. 63 LEAL, Victor Nunes. Atualidades do Supremo Tribunal Federal. Revista Forense, v. 208, out./dez. 1964. 62

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sistema oficial de referência dos precedentes judiciais mediante a simples citação de um número convencional. Distingue a jurisprudência firme da que se acha em vias de fixação. Atribui à jurisprudência firme consequências processuais específicas para abreviar o julgamento dos casos que se repetem e exterminar as protelações deliberadas. Não assumiam, dessa forma, a função de contenção.

7.1 Da pluriprocessualidade à contenção judicial A súmula vinculante atua na contenção judicial findando com a divergência até então existente. Roberto Rosas aborda que o processo de elaboração de uma súmula é exaustivo. Depende de pronunciamento único mas expressivo ou da reiteração.64 Análises concretas denotam que se trata de precedente pluriprocessual, ou seja, exige a reiteração e emana da apreciação de um certo número de processos que atuaram na qualidade de precedentes monoprocessuais. A natureza pluriprocessual das súmulas foi objeto de conclusão dos estudiosos desse fenômeno. Nesse sentido, Néri da Silveira65, em texto publicado em 1981, tece referência à Comissão de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao dispor que o Pretório “tem por predominante e firma a jurisprudência aqui resumida, embora nem sempre tenha sido unânime a decisão dos precedentes relacionados na súmula.” A reiteração para a edição de uma súmula é uma garantia do jurisdicionado66. Impede consolidações formadas ROSAS, Roberto, Direito sumular. Comentários às súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 65 SILVEIRA, José Néri da. O Supremo Tribunal Federal e a interpretação jurídica com eficácia normativa. Brasília: Revista da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Distrito Federal, nº 10, 1981, p. 7-26. 66 “O precedente pluriprocessual vinculante, seja isolado ou sumulado, é defendido, em geral, em nome da segurança jurídica, com enfoque na ideia de eficiência devida ao jurisdicionado, tomado como consumidor de justiça, linha de José Marcelo Menezes Vigliar ou, mais frequentemente, com enfoque na exigência de isonomia devida ao jurisdicionado cidadão, dotado de direitos fundamentais exercitáveis mesmo quando em face do Estado Juiz, linha de Rodolfo de Carmargo Mancuso” (NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Aspectos processuais da súmula vinculante: reflexos na efetividade da defesa dos direitos fundamentais. 64

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para projeção futura e sem o respeito ao procedimento de gênese de um precedente pluriprocessual. A partir do Código de Processo Civil de 1973, todos os tribunais passaram a ter autorização do direito positivo para editar súmulas. Anteriormente, além do Pretório Excelso, o Tribunal Superior do Trabalho editavas enunciados e o Código Eleitoral já permitia que o Tribunal Superior Eleitoral fizesse o mesmo. O art. 479 do antigo Código de Processo Civil, inserto no Capítulo relativo à uniformização de jurisprudência, ampliou o campo de incidência das súmulas ao dispor que o julgamento “será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência”. A priori, uma súmula produz efeito, apenas, persuasivo, no sentido de que atua na qualidade de opinião formada de um certo tribunal, cujo teor não necessita de ser aplicado a casos posteriores com a mesma ratio decidendi. O novo Código contempla proposta mais ampliativa do emprego da súmula vinculante, mesmo porque já nasce adaptado à contenção que dela emana (art. 926, IV). Nelson de Souza Sampaio67, em artigo doutrinário publicado em 1985, inicia reflexão quanto ao efeito de constrição por parte das súmulas. Disserta que o teor de um verbete compreende uma série de julgados uniformes. Não cria, na visão do autor, nova orientação, mas fixa jurisprudência dominante. Defende o renomado mestre que uma súmula goza de uma espécie de stare decisis de facto, decorrente do prestígio do Supremo Pretório. Ressalta a inutilidade de as instâncias inferiores decidirem contra uma súmula e da obrigação que os magistrados possuem em verem as reformas de suas sentenças. Ainda mais com o novo Código de Processo Civil, estão ultrapassadas posturas que vislumbravam na súmula uma espécie de in PRADO, Geraldo Luiz Mascaranhas (coord.). Acesso à justiça e efetividade do processo. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005).

67 SAMPAIO, Nelson de Souza. O Supremo Tribunal Federal e a nova fisionomia do judiciário. Revista de Direito Público, n. 75, jul./set. 1985, p. 14.

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“quase-lei” ou um “meio-caminho entre a lei e a jurisprudência68,69,70, de mera “proposição jurídica destituída de caráter normativo71”. Esse entendimento fora defendido nos anos sessenta com maestria por Vitor Nunes Leal72, ao dispor que: Sustentando essa orientação doutrinária, Marco Antônio Botto Muscari defende que “a súmula vinculante é mais do que a jurisprudência e menos do que a lei; situa-se a meio-caminho entre uma e outra. Com a jurisprudência guarda similitude pelo fato de provir do Judiciário e de estar sempre relacionada a casos concretos que lhe dão origem. Assemelha-se à lei pelos traços da obrigatoriedade e da destinação geral, a tantos quantos subordinados ao ordenamento jurídico pátrio. É um tertium genus, portanto” (MUSCARI, Marco Antonio Botto. Súmula vinculante. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 53). 69 Essas construções doutrinárias de identificação da súmula vinculante como uma “quase-lei” ou “meio caminho entre a lei e a jurisprudência” foi tecida no Brasil de forma isolada, despojada de paralelos com outras experiências, como a doutrina do precedente como ato quase-legislativo na Finlândia. A respeito do tema, Raimo Siltala disserta que “the quasi-legislative precedent ideology has a special positing in Finland, since Olavi Heinonen, then one of the justices and later the Chief Justice of the Supreme Court, openly professed the court’s adherence to such a conception of precedent-identification in the mind – 1980” (SILTALA, Raimo. A theory of precedent: from analytical positivism to a post-analytical philosophy of law. Oxford: Hart Publishing, 2000, p. 137). 70 Em junho de 2006, quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 80, relator Ministro Eros Grau, o Supremo Pretório assentou que os enunciados das súmulas não podem ser concebidos como atos do Poder Público lesivos a preceito fundamental. Firmou que são expressões sintetizadas de orientações reiteradamente assentadas pela Corte, cuja revisão deve ocorrer de forma paulatina, assim como se formam os entendimentos jurisprudenciais que resultam na edição dos verbetes. A construção do Pretório, contudo, mostra-se parcialmente prejudicada em virtude da Ação Declaratório de Constitucionalidade nº 16 que, de forma transversa, apreciou a validade do Enunciado nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho. 71 No Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 179.560-RJ, o relator, Ministro Celso de Mello, assentou que: Súmula – enquanto instrumento de formal enunciação da jurisprudência consolidada e predominante de uma Corte judiciária – constitui mera proposição jurídica, destituída de caráter prescritivo, que não vincula, por ausência de eficácia subordinante, a atuação jurisdicional dos magistrados e Tribunais inferiores. A Súmula, em consequência, não se identifica com atos estatais revestidos de densidade normativa, não se revelando apta, por isso mesmo, a gerar o denominado binding effect, ao contrário do que se registra, no sistema da Common Law, por efeito do princípio do stare decisis et non quieta movere, que confere força vinculante ao precedente judicial. 72 LEAL, Victor Nunes. Problemas de direito público e outros problemas, v. 2. Brasília: Imprensa Nacional, 1999, p. 50-51; LEAL, Victor Nunes, Atualidades do Supremo Tribunal Federal, Revista Forense, v. 208, out./dez. 1964. 68

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[...] o Supremo Tribunal Federal, depois de demorada reflexão, preferiu adotar a inovação conhecida como Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, ou, mais vulgarmente, apenas Súmula. A Súmula, pode-se dizer, é um meio-termo entre os antigos assentos da Casa de Suplicação, excessivamente rígidos, e os prejulgados das nossas leis processuais, que se têm revelado quase completamente ineficazes. Na Súmula, o Supremo Tribunal inscreve, em enunciados distintos, devidamente classificados por assunto, o seu entendimento sobre as questões mais controvertidas na jurisprudência e sobre as quais o Supremo Tribunal chegou a uma opinião firme, em face da sua composição contemporânea, ainda que não compartilhada por todos os Ministros.

Após intenso debate parlamentar, a Emenda Constitucional nº 45/2004 inseriu no Texto Constitucional o art. 103-A. Cabe ressaltar que o art. 8º da Emenda Constitucional nº 45/2004 manteve efeito persuasivo às súmulas do Pretório Excelso já editadas, mas que, caso confirmadas por dois terços dos respectivos ministros assumiriam a beatitude da vinculação. Nos Embargos de Declaração em Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 414.207, publicado em 26 de maio de 2006, relator Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal negou, por força desse dispositivo, a incidência imediata do efeito vinculante das antigas súmulas após a promulgação da Emenda nº 45/2004. Posteriormente, o art. 103-A da Constituição foi regulamentado pela Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. O art. 103-A do Texto Magno e a Lei nº 11.417/2006 não estipulam o número de precedentes necessário para a edição de uma súmula apto a satisfazer à garantia da pluriprocessualidade. Dependerá do contexto argumentativo que emana da conjugação dos precedentes de referência. Toda súmula com efeito vinculante exerce função confirmatória de um dado precedente judicial, que atuará como referência, e, simultaneamente, consubstancia instrumento de uniformização de jurisprudência em sentido amplo. Possui como requisito para a edição a reiteração de decisões e a controvérsia entre órgãos

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jurisdicionais ou entre esses e a Administração Publica que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Logo, a súmula vinculante finda a controvérsia a partir da constrição das orientações contrárias existentes nos demais tribunais. Finda, assim, com as tensões endógenas da jurisdição constitucional. O art. 4º da Lei nº 11.417/2006 dispõe que uma súmula vinculante produz eficácia imediata. Entretanto, admite que, por decisão de dois terços dos membros, o Supremo Tribunal Federal poderá restringir a produção de vinculação ou fixar termo para a respectiva eficácia. A modulação temporal das súmulas vinculantes deve ser pautada em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público. Trata-se de norma com a mesma essência do artigo 27 da Lei nº 9.868/99, já proclamado constitucional em sede de controle incidental.73 Questão a ser entendida com temperamento diz respeito à norma contida no art. 6º da Lei nº 11.417/2006. De fato, a simples proposta de edição ou revogação de súmula com efeito vinculante não determina a suspensão dos processos em que se discuta a mesma questão. O efeito suspensivo do trâmite dos demais processos pode ser obtido por meio de provimento de urgência. Essa possibilidade, inclusive, é prevista pela conjugação dos arts. 14 e 15 da Lei 10.259/2001, que disciplina a instalação dos Juizados Especiais Federais, com o art. 321 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, bem como pelo § 1º do art. 543-B do antigo Código de Processo Civil, inserido pela Lei nº 11.418, de 19 de dezembro de 2006. A suspensão das demandas nas instâncias ordinárias demonstra a função de contenção das súmulas. A aplicação da Súmula Vinculante nº 1 é exemplo dessa prática. Como já exposto, o efeito vinculante no Direito brasileiro qualifica-se pela possibilidade de propositura de reclamação.74 Essa premissa fora, de certa forma, Nesse sentido, vide Medida Cautelar em Petição nº 2.859, relator Ministro Gilmar Mendes. 74 Vide teor da Reclamação 2.256, relator Ministro Gilmar Mendes, publicada em 30 de abril de 2004. 73

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realçada pelo teor do § 3º do art. 103-A da Constituição da República, inserido pela Emenda Constitucional nº 45/200475. Há, pois, dupla incidência para a contenção judicial. O caput do art. 7º da Lei nº 11.417/2006 ressalva que a utilização da reclamação ocorre sem prejuízo de recursos ou outros meios admissíveis de impugnação. Assim, caso eventual apelação, mandado de segurança ou outro instrumento impugnativo obste ato do Poder Judiciário ou da Administração Pública contrário à orientação contida em uma súmula vinculante seja apreciado antes da reclamação, esta estará prejudicada por força de ausência superveniente de interesse de agir. A utilização de reclamação para a contenção judicial pela súmula vinculante possui características próprias. O Pretório Excelso poderá anular a decisão judicial por força da reclamação e determinar que o juízo de origem prolate outra decisão com o devido respeito à súmula obrigatória ou a reformar. O novo Código reitera a obrigatoriedade de acolhimento do verbete vinculante, inclusive prevendo a reclamação como remédio pelo descumprimento por parte dos demais órgãos do Poder Judiciário (988, IV). A premissa de que a previsão das súmulas com efeito vinculante representa a adoção do sistema de regras pelo novo Codex Empenhando-se a respeito da utilização de reclamação para a preservação de autoridade de orientação contida em uma súmula vinculante, Leonardo Morato leciona que “de acordo com o art. 103-A da CF, a reclamação poderá ser proposta para evitar ou impugnar o desrespeito a uma súmula vinculante, o que ocorrerá ou por não ter sido aplicada a súmula; ou por ter sido aplicada inadequadamente; ou por ter sido aplicada quando não aplicável; ou por sido distorcido o conteúdo da súmula em sua aplicação no caso concreto; ou por terem sido desbordados os limites da súmula; ou por ter sido ela interpretada inadequadamente; e tantas outras situações que de qualquer modo acabem configurando um desrespeito à súmula (e, portanto, da autoridade do STF, o responsável pela edição da súmula). (...) Com o julgamento da reclamação, é possível alcançar uma tutela mandamental, podendo o STF determinar, ordenar, que a autoridade reclamada promova o cumprimento da decisão desacatada, ou o respeito da norma de competência desrespeitada, ou a aplicação (adequada) ou a inaplicação da súmula vinculante, dependendo do caso em questão. E o STF poderá se valer de todas as medidas necessárias para atingir esse fim” (MORATO, Leonardo. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 225-227). 75

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exigira, de um lado, um número a maior de verbetes e, de outro, a consolidação, pelo pensamento doutrinário, da qualidade de precedentes judiciais. Há um longo caminho para ambos os requisitos, até pela relevância da vertente que nega a elas o status de normas judiciais.

8 A ação rescisória fundada em precedente como instrumento de contenção judicial O sistema jurídico pátrio admite que uma sentença transitada em julgado seja submetida ao juízo revisor por ser contrária a um precedente que atuará na qualidade de paradigma. Essa construção não pode ser confundida com a hipótese prevista no artigo 485, inciso V, do antigo Código de Processo Civil, que, apenas, consagra o cabimento de ação rescisória perante a literal violação de dispositivo de lei. A admissibilidade de ação rescisória fundada na não aplicação de um dado precedente representa a assunção de que o valor segurança no novo Código de Processo Civil é buscado pela isonomia na prestação da atividade jurisdicional. Para tanto, constrange-se a atividade jurisdicional de tribunais inferiores e afasta-se a coisa julgada. A origem dessa forma de contenção judicial remonta às Ações Rescisórias de nº 323 e 602. O Supremo Tribunal Federal, nesses precedentes, concluiu, a contrario sensu, que não caberia ação rescisória quando o julgado pautou-se em orientação jurisprudencial. Essa construção fora consolidada pelo Pretório Supremo por força do Verbete nº 343, que dispõe que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Na Ação Rescisória nº 957, o Supremo assentou a orientação de que a validade da decisão para fins de incidência dessa súmula corresponde à jurisprudência vigente à época.

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No Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 328.812, o relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes expôs que a aplicação da Súmula nº 343 em matéria constitucional revela-se afrontosa não só à força normativa da Constituição, mas também ao princípio da máxima efetividade. Sustentou, ainda, que admitir a aplicação da orientação contida no aludido verbete em matéria de interpretação constitucional significa fortalecer as decisões das instâncias ordinárias em detrimento das decisões do Supremo Tribunal Federal. Nos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 328.812, decisão de 6 de março de 2008, o relator, Ministro Gilmar Mendes, asseverou ser preciso que o Verbete nº 343 venha a ser revisto pelo Supremo Tribunal Federal. Referiu-se, especificamente, aos processos que identificam matéria constitucional contraditória à época da discussão originária e à orientação fixada em favor da tese do interessado. No sentido da aplicação da ação rescisória pela não adequada aplicação de precedente, cita-se o Recurso Especial nº 479.909, publicação de 23 de agosto de 2004, relator Ministro Teori Albino Zavascki, cuja ementa dispõe, in verbis: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA (CPC, ART. 485, VI). MATÉRIA CONSTITUCIONAL. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 343/STF. EXISTÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO DO STF, EM CONTROLE DIFUSO, EM SENTIDO CONTRÁRIO AO DA SENTENÇA RESCINDENDA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE RESCISÃO. 1 – Na interpretação do art. 485, V, do Código de Processo Civil, que prevê a rescisão de sentença que ‘violar literal disposição de lei’, a jurisprudência do STJ e do STF sempre foi no sentido de que não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória, mas apenas aquela especialmente qualificada. 2 – Na esteira desse entendimento, editou-se a Súmula 343/ STF, segundo a qual não cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida dos tribunais. 3 – Ocorre, porém, que a lei constitucional não é uma lei qualquer, mas a lei fundamental do sistema, na qual todas as

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demais assentam suas bases de validade e de legitimidade, e cuja guarda é a missão primeira do órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102). 4 – Por essa razão, a jurisprudência do STF emprega tratamento diferenciado à violação da lei comum em relação à norma constitucional, deixando de aplicar, relativamente a esta, o enunciado de sua Súmula 343, à consideração de que, em matéria constitucional, não há que se cogitar de interpretação apenas razoável, mas sim de interpretação juridicamente correta. 5 – Essa, portanto a orientação a ser seguida nos casos de ação rescisória fundada no art. 485, V, do CPC: em se tratando de norma infraconstitucional, não se considera existente ‘violação a literal disposição de lei’, e, portanto, não se admite ação rescisória, quando ‘a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais (Sumula 343). Todavia, esse enunciado não se aplica quando se trata de texto constitucional. 6 – A orientação revela duas preocupações fundamentais da Corte Suprema: a primeira, a de preservar, em qualquer circunstância, a supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários; a segunda, a de preservar a sua autoridade de guardião da Constituição. Esses os valores dos quais deve se lançar mão para solucionar os problemas atinentes à rescisão de julgados em matéria constitucional. 7 – Assim sendo, concorre decisivamente para um tratamento diferenciado do que seja literal violação a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele é que justifica nas ações rescisórias a substituição do parâmetro negativo da Súmula 343 por um parâmetro positivo segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional, é contrária a pronunciamento do STF. 8 – Recurso especial provido.

A nova ordem processual potencializa a obrigatoriedade de aplicação dos precedentes. Assim, que a ação rescisória à luz do novo Codex pode atuar na qualidade de instrumento processual de constrição judicial a partir da jurisdição constitucional no juízo rescisório. Permite que a imposição do legalist behavior seja exigida pelo jurisdicionado e pelo Código. Por outro lado, contempla um peculiar instrumento de controle das decisões judiciais.

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Quanto debruçamos perante o novo Código, identificamos que há uma diferença entre a reclamação e a ação rescisória como instrumentos de aplicação de precedentes e contenção judicial. Enquanto aquela não cabe após o trânsito em julgado (§ 5º do art. 988), esta não se limitaria à preclusão decorrente da res judicata. Assim, à luz do novo Código de Processo Civil, a estabilidade da contenção judicial sobrepõe-se à segurança decorrente da imutabilidade da coisa julgada.

9 Conclusão Teoria tradicional da contenção judicial contempla três modelos básicos. A sua finalidade consiste em compreender, justificar e limitar a dinâmica existente entre a criatividade judicial e normatização. O natural model of precedential constrain parte do pressuposto de que seguir precedentes é inerente a um dado sistema. É associado à common law e à doutrina do stare decisis. Sua contemplação purista não se harmonizaria à tradição de direito legislado que caracteriza a experiência pátria. Por outro lado, rule model of precedential constrain representa um modelo normativo. Algumas disposições do novo Código de Processo Civil, em especial a massificação da vinculação vertical, conduzem à equivocada conclusão de assunção desse modelo. O mesmo ocorre com o result model, em especial pela sistematização de julgamento de demanda repetitivas. O pensamento doutrinário contemporâneo reconhece a relevância da teoria da contenção judicial para afastar teses de indeterminabilidade do fenômeno jurídico. Ao mesmo tempo, contudo, critica os três modelos tradicionais e propõe outros, a exemplo do modelo de princípios e a teoria determinativa. Esses modelos exigem processo hermenêutico mais complexo que, na sistemática processual, tende a colidir com a exigência de celeridade processual. O Codex prevê a contenção judicial. Impõe aos Magistrados e tribunais, inclusive superiores, o legalist behavior. Instrumentos

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como a reclamação, a ação rescisória, a súmula com efeito vinculante e o incidente de julgamento de demandas repetitivas ilustram a obrigatoriedade em seguir os precedentes judiciais e o desvalor em desconsiderá-los. Não há paradoxo na previsão de instrumentos de aplicação precedentes e contenção judicial sem a presença da doutrina do stare decisis. Ora, se o novo Código de Processo Civil, a exemplo do anterior, não adotou um modelo de contenção judicial, cabe a reflexão de quem deverá firmar qual modelo (ou a conjugação deles) de contenção judicial é o mais adequado para as inovações do Codex? Esse mister caberá essencialmente aos Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, será fundamental o trabalho do intérprete, sobretudo para afastar as amarras de um processo hermenêutico. Por essa razão mostra-se relevante o especial olhar perante os modelos de princípio e o determinativo.

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BREVES APONTAMENTOS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO PORTUGUÊS POR ERRO JUDICIÁRIO CÍVEL Carina Cátia Bastos de Senna Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Pós-graduada em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia/UFBA.

Resumo

Abstract

O presente artigo trata da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado Português por erro judiciário civil, tendo em conta o quanto disposto na Lei nº 67/2007, que instituiu o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas. Com o fito de introduzir o leitor no tema, faremos uma abordagem geral sobre a evolução da responsabilidade civil do Estado, que inicialmente era negada, em razão da máxima the king can’t do no wrong vigente sob a égide do Estado Absolutista, para a sua aceitação, como corolário do Estado Democrático de Direito, e seu reconhecimento com direito fundamental na Carta Magna de Portugal. Posteriormente teceremos

This article deals with the Civil Liability Extracontractual the Portuguese State by civil mistrial, taking into account how the provisions of Law 67/2007, which established the Civil Liability Regime Extracontractual the State and Other Public Entities. With the aim of introducing the reader on the subject, we will make a general approach on the evolution of state liability, it was initially denied, because the maximum the king can’t do no wrong under the aegis of the Absolutist State, for acceptance, as a corollary of the democratic rule of law, and recognition to the fundamental right in the Constitution of Portugal. Later we will weave some general comments on the Law 67/2007. After,

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alguns comentários gerais sobre a Lei nº 67/2007. Após, trataremos especificadamente da responsabilidade do Estado Português por erro judiciário, distinguindo-a da responsabilidade por má funcionamento da justiça, trazendo seus pressupostos gerais e específicos, bem como diferenciando as espécies de erros possíveis e o regime de responsabilização do Estado nessa modalidade. Para concluir, daremos nossa opinião pessoal acerca do instituto, bem como apresentaremos sugestão de aperfeiçoamento. Palavras-chave: Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas – Evolução da responsabilidade Civil do Estado – Erro judiciário – Pressupostos gerais e específicos – Regime de responsabilização.

We deal specifically from the Portuguese State liability for judicial error, distinguishing it from responsibility for bad functioning of justice, bringing their general and specific assumptions, and differentiating species of possible error sand the state accountability system in this mode. To complete, we will give our personal opinion about the institute, and present suggestion for improvement. Keywords: Regime of noncontractualliability of the State and other public bodies – Development of civil responsibility of the State – Judicial error – General and specific as sumptions – Liability regime.

1 Introdução O direito soube superar infundadas resistências à admissão da responsabilidade civil estatal, passando os organismos modernos a admiti-la1. As últimas barricadas da irresponsabilidade, Estados Unidos e Inglaterra, as removeram, respectivamente, pelo “Federal TortClaimsAct”, de 1946 e pelo “Crown ProceedingAct” de 1947. Inteiramente superada, restou, assim, a doutrina da irresponsabilidade do Estado.2 Na França, Yussef Said Cahali citando Bréchon-Moulénes, desde os fins do século XIX, os escândalos provocados pelos erros judiciários suscitaram veemente intervenção dos parlamentares, a fim de assegurar sua reparação, culminando com a Lei de 08.06.1895, reconhecendo a responsabilidade civil do Estado em matéria de erro judiciário (MOULÉNES, Bréchon apud CAHALI, Yussef Said – Responsabilidade civil do Estado. p. 474). 2 CAVALCANTI, Flávio de Queiroz. Responsabilidade do Estado pelo mau funcionamento da Justiça. Evolução da Responsabilidade do Estado. p. 107. 1

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Na realidade, o reconhecimento da possibilidade da responsabilidade civil do Estado é corolário do Estado de Direito, o qual submete a todos, inclusive o próprio Estado, às leis. Também Portugal acompanhava no início do século o princípio geral de irresponsabilidade civil extracontratual do Estado por atos de gestão pública.3 Fabrício Souza Duarte leciona que hodiernamente Portugal adotou o sistema da imputação direta ao Estado pelos danos causados por seus agentes ou órgãos, e a localização do dispositivo supramencionado no texto constitucional, logo na Parte I, que trata dos Direitos e Deveres fundamentais, revela a preocupação do constituinte português em estabelecer que não vige mais a máxima the king cant do no wrong vigente sob a égide do Estado Absolutista e até o início do século XIX.4 Nesse sentido doutrina de José Melo Alexandrino, in verbis: “Estamos aqui em presença de mais um corolário do princípio do Estado de Direito. Mas, diversamente do princípio da proteção da confiança (que é implícito), o princípio da responsabilidade civil do Estado obteve uma previsão expressa no artigo 22º da CRP”.5

Preceitua o art. 22, da Constituição da República Portuguesa que “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.” Lecionam Canotilho e Vital Moreira6 que o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, que se refere à responsabilidade CATARINO, Luís Guilherme. A responsabilidade do estado pela administração da justiça. O erro judiciário e o anormal funcionamento. p. 34. 4 DUARTE, Fabrício Souza. Notas comparativas entre a responsabilidade civil por danos extracontratuais em Portugal e no Brasil. p. 330. 5 ALEXANDRINO, José Melo. Direitos Fundamentais. Introdução geral. p. 110. 6 CANOTILHO, J. J.Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. v. I. p. 427-429. 3

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civil ou patrimonial das entidades públicas, é um dos preceitos constitucionais que pode gerar mais dúvida. O sentido da norma permite conferir dignidade constitucional a um princípio concretizador do Estado de direito superando a ideia da irresponsabilidade civil dos atos públicos, que vigorou durante muito tempo, uma vez que somente o texto constitucional de 1976 estabeleceu uma ruptura de forma clara. Com o fito de regulamentar o direito fundamental previsto no dispositivo constitucional supramencionado, foi editada a Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro7, para disciplinar a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa, em tudo o que não esteja previsto em lei especial. Nesse sentido doutrina de Maria José Rangel de Mesquita, “A aprovação e entrada em vigor da Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro, que aprova um novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, representa o culminar de um processo aberto com a aprovação da Constituição de 1976, a qual veio pôr a descoberto a inadequação – senão a inconstitucionalidade superveniente – do diploma então vigente em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas: o Decreto-Lei nº 48.051 de 21 de novembro de 1967. Com efeito, o princípio constitucional fundamental da Registre-se que o Tribunal Constitucional, no acordão nº 236/04, de 13 de abril de 2004, entendeu que o artigo 22º seria uma garantia institucional, o que não conferiria direito subjetivos, pelo que o conteúdo desta garantia institucional deveria ser definido em própria lei. O acórdão do Tribunal Constitucional nº 154/2007 deu um passo importante na matéria, ao retirar consequências diretas do princípio da responsabilização do Estado consagrado no artigo 22º (não tomando embora um aposição dogmática sobre a natureza jurídica do artigo constitucional). Mais recentemente, o Tribunal Central Administrativo Norte, em 22 de outubro de 2009 (processo 00467/08.9BECBR) deixou claro que o artigo 22º da Constituição, por integrar um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pode ser invocado diretamente pelo lesado (VAZ, Manuel Afonso. BOTELHO, Catarina Santos. Comentário ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. p. 41).

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responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas contido no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP) não se coadunava com a legislação infraconstitucional anterior e então vigente. A aprovação de uma nova lei em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas impunha-se como uma necessidade imperiosa para a concretização daquele princípio fundamental e, assim, para a concretização do Estado de Direito democrático.”8

No mesmo sentido é doutrina de Natália Zampieri, in verbis: “A Lei nº 67/2007 (...) veio agora concretizar, de forma actual e compatível com a Constituição da República Portuguesa, o princípio constitucional fundamental da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, constante no artigo 22º da Constituição.”9

Registre-se que até o advento da lei em comento, a doutrina não era uníssona acerca da possibilidade de responsabilização do Estado pela função jurisdicional, havendo doutrinadores que defendiam a impossibilidade de tal responsabilização10, inclusive porque a lei até então vigente, Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de novembro de 1967, tratava exclusivamente da responsabilidade civil extracontratual do Estado pela função administrativa, carecendo a MESQUITA, Maria José Rangel de Mesquita. A responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional: âmbito e pressupostos. p. 1-2. 9 ZAMPIERI, Natália. O fenômeno jurisprudencial da justificada prática de bloqueio de efetividade: sobre a administração da justiça e a responsabilidade civil extracontratual do Estado. p. 9. 10 Segundo Yussef Said Cahali, os doutrinadores contrários a responsabilização do Estado por erro judicial, utilizavam-se dentre os fundamentos, os seguintes: 1) a sentença é um ato de soberania, nas mesmas condições em que o é o provimento emanado do Poder Legislativo; 2) a independência do magistrado não permite que seja ele exposto ao constrangimento de decidir em desacordo coma sua consciência, sob pena de ser demandado por esta ou aquela parte; 3) os efeitos da coisa julgada induzem a presunção de justiça da sentença e, por fim 5) eventuais erros do juiz no desempenho de sua atividade somente podem ser levados à conta da falibilidade humana, restando sua responsabilidade apenas em casos de dolo ou fraude (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. p. 502-503). 8

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norma constitucional insculpida no art. 22º da CRP de regulamentação, constituindo norma de eficácia limitada11. José Emanuel M. Cardoso da Costa esclarece que: “Com a Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro, passou o nosso direito a conhecer um ‘Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Pública’ que se apresenta com um carácter e âmbito global, isto é, abrangendo, em termos unitários e sistemáticos, o exercício das diferentes funções estaduais: a função legislativa administrativa, a função jurisdicional e (assim é aí designada) a função político-legislativa. Até a publicação e entrada em vigor desse diploma, nada de semelhante, na verdade, se deparava no ordenamento legal português: unitariamente regulada estava, sim, a responsabilidade extracontratual do Estado (e outras pessoas colectivas públicas) por actos da função administrativa, no Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, havendo, no mais, que considerar a normação esparsa relativa a actos praticados no quadro da função judicial.”12

2 Responsabilidade civil do Estado por erro judiciário No que diz respeito à responsabilidade civil extracontratual do Estado pela função jurisdicional, a Lei nº 67/2007 estabelece a possibilidade de responsabilização do Estado pelos danos decorrentes da administração da justiça e do erro judiciário, bem como a responsabilidade dos magistrados, nos arts. 12º usque 14º. Trata-se de uma inovação de grande relevo, em consonância como princípio consagrado pelo art. 22º da Constituição.13 Em sentido contrário, Luís Cabral de Moncada defende que o regime constitucional da responsabilidade das entidades públicas não se limitava a devolver a sua concretização para o legislador ordinário. Certamente que a CRP deixou ao legislador ordinário a concretização dos vários pressupostos da responsabilidade, de modo a tomar o art. 22 exequível, mas já corporiza um determinado regime de a que a lei ordinária ainda não integralmente satisfação (MONCADA, Luís Cabral de – A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. p. 302). 12 COSTA, José Emanuel M. Cardoso da. Sobre o novo regime da responsabilidade do estado por actos da função judicial. p. 501-502. 13 MESQUITA, Maria José Rangel. O regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas e o direito da União Europeia. p. 23. 11

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Registre-se que não se confunde a responsabilidade pela “administração da justiça” e a “responsabilidade por erro judiciário”. A primeira, tratada no art. 12 da lei em comento, refere-se à atividade de administração judiciária14, enquanto a segunda, disciplinada no art. 13 da mesma lei, à atividade judicante. Leciona Luís Fábrica que, “O Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual dos Entes Públicos assenta, no que respeita à responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional, na dicotomia entre a responsabilidade pela administração da justiça e a responsabilidade por erro judiciário. Na administração da justiça hoc sensu (ou ‘administração judiciária’, na fórmula tradicional) compreende-se o vasto conjunto de condutas, incluindo as omissivas correspondentes ao serviço público da Justiça, imputáveis a juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais e outros agentes com competências nos domínios judiciários – ou até ao serviço no seu conjunto. O erro judiciário refere-se, em contrapartida, ao âmbito limitado das decisões judiciais em sentido estrito, ou seja, atuações exclusivas dos juízes que se traduzem na resolução de questões jurídicas através da interpretação e aplicação de preceitos jurídicos aos factos apurados. O domínio do erro judiciário abrange, pois, quer a atividade de interpretação e aplicação do direito quer a atividade de aquisição e valoração dos fundamentos fácticos da decisão.”15

Traços essências do regime de responsabilização do Estado, com base no art. 12º: Determina a lei, na parte final do artigo em comento, que aplica-se, salvo onde ela disponha diversamente, o regime da responsabilidade por fatos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa quando se está diante da responsabilização do Estado pela administração da justiça, tendo como consequência imediata: 1) exclusiva responsabilidade do Estado quando ocorra culpa leve do agente (art. 7º, nº 1); 2) presunção da ocorrência de culpa leve do agente (sem prejuízo da possibilidade de demonstração de outro grau de culpa) na prática de atos jurídicos ilícitos (art. 10º, nº 2); 3) Responsabilidade do agente, em primeira linha, mas solidariamente com o Estado, ficando sempre ressalvado, todavia, o direito de regresso deste, quando o primeiro tenha atuado com dolo ou com zelo ou diligência manifestamente inferiores à que lhe eram exigidos (art. 8º). 15 FÁBRICA, Luís. Comentário ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. p. 340. 14

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Quanto a responsabilização do Estado pelo erro judiciário, prescreve o art. 13º, nº 1, da lei em comento, in verbis: “Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.”

São pressupostos gerais da responsabilidade civil do Estado: a ilicitude (violação de um direito, liberdade e garantia ou de outras normas de proteção análogas), a culpa, o dano e o nexo causalidade entre a culpa e o dano.16 Não fornecendo o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas – RRCEE uma noção de erro judiciário, apontam-se as características que esse erro deve revestir para que seja fonte geradora de responsabilidade civil: ter sido praticada uma decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional ou ilegal (erro manifesto de direito) ou que seja injustificada, por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de fato (erro grosseiro de fato)17 Destarte, são pressupostos da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário: a existência de decisão jurisdicional com manifesto erro de direito ou erro grosseiro de fato; a prévia revogação da decisão jurisdicional dentro do mesmo processo que proferida, além da existência de dano. O erro in judicando é uma palavra latina, que significa “erro ao julgar”. O erro judiciário pode ser um erro de direito ou de facto, quer dizer, pode referir-se ao sentido da solução dada à questão jurídica ou à forma como foram adquiridas as bases fáticas dessa solução.18 ALEXANDRINO, José Melo. Op. cit. p. 111. CARVALHO, Ana Celeste. Responsabilidade civil por erro judiciário. Uma realidade ou um princípio a concretizar? p. 43-44. 18 FÁBRICA, Luís. Op. cit. p. 350. 16 17

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Ana Celeste Carvalho diferencia o erro judiciário do erro material, nos seguintes termos: “Todas as decisões judiciais devem ser isentas de erro, conformes á lei, ao Direito e à Justiça, sem esquecer as limitações da justiça humana, a que é feita por homens. Para este efeito revela, não o erro material, o erro de escrita ou de cálculo, correspondentes a inexatidão ou lapso manifesto, que é rectificável, mesmo depois de esgotado o poder jurisdicional, nos termos dos artigos 666º e 667º do CPC, mas o erro de julgamento, a decisão contra lei expressa ou contra os factos apurados, traduzido na falsa representação da realidade, que se reflecte no sentido da decisão proferida.”19

A violação das normas e princípios de direito internacional que vigorem na ordem interna (art. 8º da Constituição) também pode corresponder a um erro judiciário. Mas o caso mais significativo será o da violação do direito, originário ou derivado, da União Europeia20, quer pela extensão do domínio de aplicação, quer, sobretudo, pela circunstância de os termos e as consequências dessa violação pelos órgãos dos Estados – incluindo os tribunais – serem objeto de regulação no plano europeu, a qual se impõe a soluções internas eventualmente diversas por força do princípio do primado.21 Em seu magistério, Luís Cabral de Moncada afirma que: “Efectivamente, o direito europeu compreende soluções muito claras a este respeito, com preferência, como é bem sabido, sobre quaisquer normas internas de sinal contrário, beneficiando com isso eventualmente o cidadão nacional lesado CARVALHO, Ana Celeste. Op. cit. p. 43. Veja-se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13/10, em especial o nº 5 do art. 5º. 21 De fato, Luís Fábrica comenta que a jurisprudência do Tribunal de Justiça tem construído ao longo dos anos, desde o Acórdão Francovich (1991), um quadro progressivamente aperfeiçoado das condições em que a violação do direito da União Europeia pelos órgãos do Estado-membros constitui este na obrigação de indemnizar os lesados, enquanto forma de eliminar as consequências do desrespeito das normas comunitárias – corolário, por sua vez, do dever de garantir a sua plena efetividade (FÁBRICA, Luís. Op. cit. p. 351-352). 19 20

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por actos das entidades públicas. O regime europeu de responsabilidade do Estado e demais entidades públicas é fonte directa de Direito, de modo radical depois da sexta revisão constitucional (...).”22

Assim sendo, conclui Ana Celeste Carvalho que, não obstante o art. 13º, nº 1, ser omisso em relação ao direito europeu, deve interpretar-se tal preceito como abrangendo a violação desse direito, em conformidade com as normas supra estaduais a que Portugal se vinculou. Segundo Ana Celeste Carvalho, citando Miguel Teixeira de Souza,23 o erro de direito tanto pode consistir num erro de previsão, o erro na determinação da norma convocada a disciplinar a situação jurídica, na modalidade de erro na qualificação, quando é mal selecionada a norma aplicável e de erro na subsunção, quando o tribunal integra na previsão da norma fatos que ela não comporta, como um erro na estatuição, respeitante à aplicação da consequência jurídica definida pela norma. A jurisprudência do STJ, no que diz respeito ao erro manifesto, é no sentido de que a decisão é manifestamente ilegal quando “o juiz normal exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis”.24 Ana Celeste Carvalho, em seu magistério, entende ainda como decisão injustificada por erro grosseiro de fato “aquela que não tem justificação, que não se encontra alicerçada nas concretas circunstancias de facto que deveriam determinar o seu proferimento, as situações de afirmação ou negação de um facto cuja verificação se mostre incontestada no processo ou que não deixe margem para quaisquer dúvidas ou quando o juiz decidiu em flagrante contradição com os factos dados por provados. O erro é indesculpável ou MONCADA, Luís Cabral de. Op. cit. p. 303. SOUZA, Miguel Teixeira de apud CARVALHO, Ana Celeste. Op. cit. p. 51. 24 Acórdão do STJ, 20 de outubro de 2005, proc. 05B2490. 22 23

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inadmissível quando o juiz podia e devia conscientizar o engano que esteve na origem da sua decisão.”25

Esclarece ainda a renomada jurista supramencionada que a expressão decisão “injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto”, introduzida no art. 13º do RRCEE não é nova na ordem jurídica interna, constando do art. 225º do Código de Processo Penal, a propósito do dever de indemnizar do Estado por prisão preventiva injustificada.26 Jose Manuel M. Cardoso da Costa explica que: “A responsabilidade por erro judiciário é limitada às situações de erro grave, ou porventura muito grave, do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional, já que apenas poderá caber nos casos em que tal percepção contrarie, de modo manifesto, o sentido normativo autêntico da Constituição ou da lei, ou traduza numa análise grosseiramente errada dos factos.”27

Quanto ao erro grosseiro, a jurisprudência do STJ28 é no sentido de que deve entender-se o erro “crasso, palmar, indiscutível”, aquele que torna uma “decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de um actividade dolosa ou gravemente negligente”. Luís Guilherme Catarino, por sua vez, esclarece que desde logo, “afasta-se a possibilidade de indemnização decorrente de mera revogação ou anulação de decisões judiciais por instância superior em sede de recurso ordinário ou extraordinário não destinado à declaração do erro. A atividade de julgar, por natureza propensa ao erro, ou pelo menos à dissenção, retira qualquer sentido a que a mera revogação de decisões em sede de recurso possibilite a reclamação de indemnização. (...). 25 26 27

CARVALHO, Ana Celeste. Op. cit. p. 48-49. CARVALHO, Ana Celeste. Op. cit. p. 44.

COSTA, José Manuel M. Cardoso da. Op. cit. p. 509.

Acórdãos do STJ, de 15 de fevereiro de 2007, processo nº 06B4564 e de 3 de dezembro de 2009, processo nº 9180/07.3BBRGG1S1. 28

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A presunção de verdade das decisões e a própria natureza da atividade judicial devem exigir uma especial qualificação no erro relevante – traduzida num desajuste claro e manifesto que leve a conclusões ilógicas e absurdas, contrárias à ordem do processo de tal forma que o desvia das respectivas garantias de liberdade, e dos direitos dos que nele participam.”29

No mesmo sentido é a opinião de Ana Celeste Carvalho30, para quem a qualificação do erro relevante para efeitos indenizatórios, como manifesto ou grosseiro, permite dissociar a mera revogação da decisão jurisdicional danosa pelo tribunal de recursos, do erro judiciário. Ademais, apenas será relevante o erro que permita estabelecer o nexo causal entre a ação ou a omissão com o dano produzido, pelo que, ocorrendo um erro ainda que manifesto e grosseiro e indemnizável, se o mesmo não for a causa adequada do dano ou se este não for juridicamente relevante, será de excluir a responsabilidade civil por erro judiciário, por falta dos respectivos pressupostos gerais de responsabilidade civil.31 Outrossim, a doutrina considera que a relevância reparadora do erro danoso pode ser afastada por circunstâncias externas consideradas imprevisíveis e inevitáveis para o juiz.32 Não basta, todavia, como já visto, que a decisão jurisdicional contenha erro manifesto de direito ou erro grosseiro de fato e cause danos para que seja possível a responsabilização do Estado. A Lei nº 67/2007, no art. 13º, nº 2, exige, ainda, como requisito para a responsabilização do Estado, a prévia revogação da decisão jurisdicional dentro do mesmo processo que proferida. Leciona José Manuel M. Cardoso da Costa que: CATARINO, Luís Guilherme. Op. cit. p. 290. CARVALHO, Ana Celeste. Op. cit. p. 98. 31 CARVALHO, Ana Celeste. Op. cit. p. 57. 32 Nesse sentido, Luís Guilherme Catarino exemplifica: a declaração de morte de A, cujas feições ficaram irreconhecíveis por virtude de acidente de viação, pelo facto de o acidente, que se vem a descobrir ser na realidade B, deter os documentos daquele (CATARINO, Luís Guilherme. Op. cit. p. 291). 29 30

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“Efectivamente, sendo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado ‘erro’ judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o ‘erro’ (o puro ‘erro’) só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo do nº 2 do artigo 13º – e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.”33

Reconhecendo-se a existência de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de fato o regime de responsabilização civil aplicável é da responsabilidade direta do Estado, sem prejuízo do direito de regresso do Estado quando o erro é praticado pelo magistrado judicial ou do Ministério Público com dolo ou culpa grave, segundo dicção do art. 14, nº 1, da Lei 67/2007. Assim, não há responsabilidade solidária entre o Estado e o Magistrado judicial ou do Ministério Público, constituindo exceção, a regra da solidariedade existente entre o Estado e o servidor público que tenha agido por culpa grave ou dolo, como ocorre na responsabilização do Estado por danos causados pela administração da Justiça ou por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa. Nesse sentido é o magistério de Maria José Rangel de Mesquita, in verbis:

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COSTA, José Manuel M. Cardoso da. Op. cit. p. 512.

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“Não obstante a natureza específica da função jurisdicional, o regime geral aplicável à responsabilidade civil por danos decorrentes do seu exercício – danos ilicitamente causados pela administração da justiça – é o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa. As duas únicas excepções à aplicação de tal regime dizem respeito à responsabilidade por erro judiciário e à responsabilidade dos magistrados. No primeiro caso, o novo Regime estipula que o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto. (...) Quanto à responsabilização dos magistrados, o novo Regime prevê que os magistrados judiciais e do Ministério Público não podem ser diretamente responsabilizados pelos actos que pratiquem no exercício das respectivas funções, sem prejuízo do direito de regresso do Estado quando aqueles tenham agido com dolo ou culpa grave.”34

Ressalte-se, apenas, que na hipótese de culpa leve dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, seja na hipótese de dano causado pela função administrativa, administração da justiça ou erro judicial, é exclusiva a responsabilidade do Estado. Com relação ao direito de regresso do Estado em face do magistrado judicial ou do Ministério Público, a nova lei preceitua que o exercício do direito de regresso cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar – a título oficioso ou por iniciativa do Ministro da Justiça. Maria José Rangel de Mesquita sustenta que o direito de regresso na hipótese de erro judiciário é obrigatório, ao contrário do quanto parece apontar a Lei, conforme se verifica in verbis: “Nos casos em que o direito de regresso se encontra previsto na lei – como sucede em relação à função jurisdicional no caso de dolo ou culpa grave – o seu exercício, de acordo com MESQUITA, Maria José Rangel. O regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas e o direito da União Europeia. p. 22-23. 34

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as disposições gerais da Lei, é obrigatório (cf. artigo 6º, 1, da Lei nº 67/2007), não obstante a redacção do número 2 do artigo 14º, que parece apontar para o seu carácter facultativo. tratar-se-á de uma decisão vinculada quanto ao exercício, sob pena de deixar sem censura um comportamento censurável do magistrado e de as consequências económicas desse comportamento recaírem sobre a colectividade e os contribuintes.”

3 Conclusão A existência de um marco regulatório claro acerca da responsabilização do Estado por erro judiciário em Portugal, Lei 67/2007, constitui um grande avanço na consolidação definitiva da responsabilização civil extracontratual do Estado por erro judiciário, e do Estado Democrático de Direito, pois encerra toda discussão anteriormente existente acerca da autoaplicabilidade do direito fundamental esculpido no art. 22º, da Constituição da República Portuguesa. Outrossim, a existência do marco regulatório facilita a responsabilização do Estado por erro judiciário, na medida em que traz balizas sobre a aplicação da responsabilidade civil do Estado, inclusive em âmbitos que ainda não há consenso, seja na doutrina ou na jurisprudência. Pecou apenas o legislador ao não definir o que constituiria decisão jurisdicional com manifesto erro de direito ou erro grosseiro de fato, pois, do nosso ponto de vista, ao deixar para doutrina e jurisprudência a definição de conceitos vagos, terminou por gerar insegurança jurídica na aplicação da norma, o que poderá ocasionar tratamento dispare a fatos análogos, quando julgados por órgãos jurisdicionais diversos. Dado o estágio atual do instituto da responsabilidade civil do Estado no direito português, muito vem acrescentando à ciência do Direito, constituindo hodiernamente referência para outras nações que se encontram em estágio menos evoluído.

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2016. Disponível em: <http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9d d8b980256b5f003fa814/3517045d81cbace380257689003eeca3?Open Document>. VAZ, Manuel Afonso; BOTELHO, Catarina Santos. Comentário ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. Org. Rui Medeiros. Colab. Mario Aroso de Almeida et al. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013. ZAMPIERI, Natália. O fenômeno jurisprudencial da justificada prática de bloqueio de efetividade: sobre a administração da justiça e a responsabilidade civil extracontratual do Estado [Em linha] Instituto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Série Estudos Doutoramento e Mestrado, 2014. [Consult. 4 maio 2016]. Disponível em: <http://www.ij.fd.uc.pt/piblicacões/estudos_serieD/pub_1/D_numero1.pdf>.

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Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável Carla Abrantkoski Rister Professora Doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), Juíza Federal, Professora de Direito Tributário e Econômico, integrante do Grupo Novos Direitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil.

Resumo

Abstract

O tema do desenvolvimento tem sido exaustivamente estudado sob o prisma econômico, sendo enfocado somente mais recentemente pela ciência jurídica, a partir da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, aprovada na 18ª Conferência de Chefes de Estado e Governo, reunida no Quênia em 1981. Ocorre que a teoria econômica tem sido excessivamente influenciada por matrizes teóricas anglo-saxônicas, sendo que, de tal sorte, alguns problemas estranhos às preocupações econômicas do mundo desenvolvido podem ter passado ao largo de tais estudos. Nesse contexto, os problemas específicos do desenvolvimento africano, latino-americano e indiano merecem abordagem diferenciada. Sob o ponto de vista das economias desenvolvidas, a preocupação maior tem sido a discussão sobre o funcionamento

Development has been exhaustively studied under the Economy optic, and being focused judicially only recently by the African Charter on Human and People’s Rights, approved by the 18th Assembly of Head of State and Government, set in Kenya in 1981. The economic theory has been excessively influenced by theoretical AngloSaxon grounds, a perspective that has caused some unique problems from the developing world to be ignored. In this context, the specific problems regarding African, Latin-American and Indian development deserve a different approach. Under the viewpoint of the developed economies, the major concern has been the increase of efficiency and production, throughout mainly on the increase of the total wealth, without

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mais eficiente e produtivo do mercado, através de considerações concentradas no aumento da riqueza total, sem considerações redistributivas. Trata-se da teoria neoclássica. Mencione-se ainda o grupo de estudiosos que, sem negar a teoria clássica focada no bom funcionamento dos mercados, fundou a difundida escola da nova economia institucional, focando seu campo de estudos nas instituições sociais, tendo como representante maior North, que vincula o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento das instituições. Já um terceiro grupo de economistas, embora trabalhando individualmente, dedicou-se a temas envolvendo questões de pobreza e desenvolvimento, procurando destacar a importância dos valores dentro da teoria econômica, como Amartya Sen, que propugnou por uma revisão ética do conceito de racionalidade econômica. Hoje há praticamente um consenso de que não se chega ao desenvolvimento por curtas ações, sabe-se que é um processo de longo prazo, induzido por políticas públicas ou programas de ação governamental em três áreas principais: econômica, social e política. O aspecto econômico engloba o crescimento endógeno e sustentado da produção de bens e serviços, nos termos do que assevera Fábio Konder Comparato. O caráter endógeno decorreria do fato de ser fundado em fatores internos de produção e não predominantemente em recursos do exterior. Já o crescimento sustentável decorreria da sua obtenção não por meio da destruição de bens insubstituíveis. O crescimento está mais pautado em variáveis de cunho quantitativo, enquanto o desenvolvimento vincula-se a parâmetros qualitativos, tendo o conceito de desenvolvimento sustentável sido detalhado no informe Brundtland, apresentado em 1987 pela Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da ONU. Ocorre que a ênfase ambiental de não destruição de bens insubstituíveis somente poderá ser dada se houver incentivo econômico ou se forem destinados recursos para tanto, seja através de políticas extrafiscais, seja de incentivo direto. Palavras-chave: Desenvolvimento Sustentável – Ordem Econômica – Extrafiscalidade – Legislação.

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considering redistribution. This is the neoclassic theory. It also mentions the study group that, without denying classic theory focused on the wellbehavior of the markets, has funded the widespread academy of the new institutional economy. They focus their field of study on social institutions, and their biggest representative is North, who unites the economic development to the institutional development. Though working individually, a third group of economists including Indian economist Amartya Sen, has dedicated themselves to themes that involve poverty issues and development. They seek to pinpoint the importance of values inside economic theory that has spread an ethical review of the concepts of economic rationality. Nowadays, it is practically common sense that it is impossible to conquer development by short-term actions. It is known it a long-term process, led by public politics or governmental action programs in three major areas: economic, social and political. The economic aspect involves the endogenous growth and it sustains the production of goods and services, in terms of what Fábio Konder Comparato agreed. The endogenous facet was due to the fact of being funded by intern production factors and not predominantly in exterior resources. The sustainable growth was not caused by the destruction of irreplaceable goods. The growth is funded in quantitative variables, meanwhile development is more related to qualitative parameters. This happens when sustainable development becomes a concept in the Brundtland Commission, in 1987 presented by the United Nations. The non-destruction environmental emphasis of irreplaceable goods can only be given if there is economic incentive or if has been designated as such, through extrafiscal politics or by direct incentive. Keywords: Sustainable Development – Economical Order – Extrafiscality – Legislation.

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1 Introdução O desenvolvimento tem sido tratado predominantemente sob a ótica econômica, sendo a abordagem jurídica por vezes incipiente. Tal vertente do denominado Direito ao Desenvolvimento o considera inicialmente como um direito dos povos, dentro da classificação tradicional em termos geracionais, como um direito de solidariedade ou de fraternidade. Foi previsto na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos aprovada no Quênia em 1981, que consiste no primeiro documento normativo internacional a conferir direitos aos povos, nos planos interno e internacional. Existem várias abordagens possíveis para a concretização de tal direito, que carece de conceituação teórica, seja sob o prisma do Direito Internacional ou sob a ótica do Direito Comparado, de modo a integrar o conceito do Direito ao Desenvolvimento, trazendo os elementos necessários para que a regulação econômica seja conformadora do desenvolvimento econômico e social e não um obstáculo ou entrave a ele. Define-se o Direito Econômico, com base no critério de Washington Peluso Albino de Souza como “o ramo do Direito, composto e que tem por objeto regulamentar as medidas de política econômica referentes às relações e interesses individuais e coletivos, harmonizando-as – pelo princípio da ‘economicidade’ – com a ideologia adotada na ordem jurídica” [GRAU, EROS ROBERTO1]. Acerca de tais ideologias possíveis de serem adotadas no âmbito econômico, cabe lembrar que os economistas liberais mencionam que o homem não é um bom administrador de interesses comunitários, mas em termos de interesses próprios ninguém é melhor do que ele e, ao maximizar seus interesses próprios, sem intervenção externa, mais eficiente se torna a sociedade. De modo que, num ambiente competitivo o individualismo tenderia a servir GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 149.

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ao bem comum. A eficiência econômica consistiria no instrumento mais importante para o desenvolvimento dos mercados [NETO, SILVEIRA2]. Verificou-se, no entanto, que o paradigma liberal não conseguiu atender satisfatoriamente alguns setores industriais, que tiveram de ser absorvidos ou desenvolvidos pelo Estado, a exemplo dos monopólios naturais, em que as economias de escala são poderosas, os investimentos levam um tempo muito longo para maturação, fazendo com que o modelo privado tenha dificuldades para sobreviver. Assim, em infraestrutura e serviços públicos (como aço, mineração, construção naval, petroquímica, energia, suprimento de água, transportes), a experiência mostrou que o paradigma liberal produziu resultados medíocres [COUTINHO, LUCIANO3]. Já o direito internacional do desenvolvimento teria por objetivo procurar soluções para as questões apresentadas pela diferença econômica entre os diversos Estados e se distingue do Direito ao Desenvolvimento, não havendo consenso doutrinário em relação ao primeiro de que se trata de direito autônomo ou de um ramo do Direito Internacional Público [RISTER, CARLA4]. Considerando as dificuldades de se conciliar o tempo do fato econômico com o tempo das normas jurídicas, note-se que a evolução do direito se processa em velocidade relativamente mais lenta do que aquela em que se processa a evolução dos fatos sociais e econômicos, cujo dinamismo tem sido ainda mais intensificado pelos recursos tecnológicos da informática, da internet e do processamento de dados à distância, que torna algumas operações financeiras quase que instantâneas. SILVEIRA NETO, Octacílio dos Santos. A livre concorrência e a livre-iniciativa como instrumentos de promoção do desenvolvimento: a função estabilizadora da intervenção do Estado no domínio econômico. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 42, abr./jun. 2013, p. 126. 3 COUTINHO, Luciano G. Regulation and development: reflections in the aftermath of neoliberalism. Revista Direito GV, Especial 1, 2005, p. 283. 4 RISTER, Carla Abrantkoski, Direito ao desenvolvimento, antecedentes, significados e consequências. Renovar, Rio de Janeiro, 2007, p. 68-69. 2

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Há consenso entre alguns economistas como North e Amartya Sen de que processos de desenvolvimento dependem de instituições e valores. A grande pergunta consiste justamente em buscar o sentido para o qual devem apontar essas instituições e valores. O conceito de Direito ao Desenvolvimento evoluiu desde sua primeira utilização por Keba M’Baye em 1971, até ser consagrado como um dos direitos fundamentais, na Conferência de Viena de 1993, no âmbito das Nações Unidas. Segundo Amartya Sen5, dentro desta visão inicial, os desenvolvimentos humanos seriam melhor concebidos como um conjunto de pretensões éticas que não podem ser identificadas com direitos legalmente exigíveis. Além das dificuldades apontadas quanto à concretização desse direito, o desenvolvimento poderá apresentar-se em conflito com outras variáveis também visadas pela política econômica, como a estabilidade monetária, em face da demanda colossal de recursos que, em grande parte, sairão dos cofres públicos. Como exemplo, o objetivo da preservação ecológica em oposição ao desenvolvimento industrial, quando as agressões ambientais desdobrar-se-iam em proporções na maior parte das vezes superiores ao próprio incremento de bem-estar trazido pelo processo de desenvolvimento [NUSDEO6]. Quem dará essas balizas ao modelo de desenvolvimento a ser implementado será justamente o sistema jurídico, através da Constituição Federal, dos Tratados Internacionais celebrados e das leis esparsas.

2 Métodos Com o presente trabalho pretende-se demonstrar em que sentido as instituições e as estruturas de governança devem apontar, SEN, Amartya, Desenvolvimento como liberdade. Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p. 264. 6 NUSDEO, Fabio, Um retrospecto e algumas perspectivas. In: SALOMÃO FILHO, Calixto, Regulação da atividade econômica. Malheiros, São Paulo, 2008, p. 18-23. 5

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para tornar possível algo que vem sendo concretizado de maneira muito lenta, a partir das primeiras menções ao termo sustentabilidade, que já há algum tempo vem sendo abordado em documentos legais no âmbito das Nações Unidas. Para tanto, a presente pesquisa se deu de forma qualitativa, partindo-se da análise do tema sob o prisma da Carta Magna brasileira de 1988, apontando e buscando os instrumentos e as ferramentas através dos quais se poderá implementar as políticas de desenvolvimento sustentável. Trazendo elementos doutrinários, tenciona-se unir o plano jurídico ao plano prático de elaboração e consecução das políticas públicas.

3 Resultados e discussão 3.1 O desenvolvimento na ordem econômica e suas externalidades A Constituição Federal brasileira de 1988 tratou com especial atenção o tema do desenvolvimento, erigindo-o, inclusive, a objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a saber, a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II). Nessa perspectiva, o legislador constituinte brasileiro preocupou-se em assegurar em diversas passagens a necessidade do estímulo ao desenvolvimento, em suas mais amplas perspectivas, pois, cônscio da realidade nacional, vislumbrou-o como importante instrumento de erradicação da pobreza e da marginalização, bem assim de redução das desigualdades sociais e regionais (estes últimos objetivos constantes do art. 3º, III, da CF/88). Isso por que o desenvolvimento também atua no sentido de promover o bem-estar social. O Brasil detém território de proporções continentais, com ampla diversidade econômica e social. Políticas eventualmente necessárias ao incremento do desenvolvimento nas regiões Norte e Nordeste não são as mesmas no Sudeste, Centro-oeste e Sul, justamente por serem regiões muito diferentes entre si.

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Não vem de hoje a preocupação de nosso legislador constituinte com o desenvolvimento, uma vez que constituições anteriores já o asseguravam. Nem poderia ser diferente, já que o Brasil se encontra na condição de país em desenvolvimento há muitos anos. Em que pesem a sua situação de proeminência mundial em termos de Produto Interno Bruto e algumas melhorias nos índices econômicos e sociais até o início da primeira década do presente século, o Brasil encontra-se em situação acanhada no tocante ao desenvolvimento, se se considerar os índices qualitativos e de desigualdade, havendo longa estrada a ser percorrida. Além de ter erigido a objetivo fundamental o desenvolvimento nacional, o legislador constituinte também se preocupou em sistematizar a ordem econômica brasileira, delineando os princípios a nortear todos os agentes econômicos, públicos e privados. E assim o fez destacando a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, primando pela busca da existência digna, conforme ditames da justiça social (art. 170). E ainda destacou os seguintes princípios a serem observados: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; e IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. À vista dos princípios acima dispostos, vislumbrou-se a opção do legislador constituinte em situar a atividade econômica no modo de produção capitalista, posto que alicerçada na livre iniciativa e na livre concorrência. Além disso, reservou ao Estado brasileiro excepcionais hipóteses de atuação na ordem econômica mediante exploração direta da atividade econômica em casos de imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo (art. 173); ou atuando como

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agente normativo ou regulador da atividade econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este último determinante para o poder público e indicativo para o setor privado (art. 174). Qualquer que seja o grau de desenvolvimento em que a nação se encontra, o sistema de produção capitalista pressupõe a maximização dos resultados, pois inerente a sua própria organização, circunstância que, por vezes, pode provisionar recursos de forma ineficiente na sociedade, ocasionando as chamadas falhas de mercado. Nesse escopo, a fim de acomodar o mercado e o necessário desenvolvimento econômico com outros preceitos Constitucionais, notadamente a defesa do meio ambiente, o Estado deverá intervir na ordem econômica. Tal intervenção se dá no sentido de coibir abusos e de preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, abuso este do poder econômico que poderia levar à dominação dos mercados e ao aumento arbitrário dos lucros. Assim, a Constituição é capitalista, mas a liberdade de iniciativa somente é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Desta feita, apesar de a Constituição ser capitalista, abre caminho à transformação da sociedade [GRAU, EROS ROBERTO7]. Desta feita, tanto a busca pelo desenvolvimento como o modo de produção capitalista podem produzir, inegavelmente, resultados que afetam diretamente terceiros que não os diretamente envolvidos. Nesse caso, surgem as chamadas externalidades, que podem negativas, ou positivas. As negativas causam impacto nocivo a terceiros, enquanto que as positivas lhes trazem benefícios. Ocorre que em certos casos numa mesma atividade podem concorrer ambos os resultados. Exemplificativamente, pode-se destacar a instalação de parque fabril em certa localidade, o que, a

SILVA, José Afonso da. In: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Malheiros, São Paulo, 2015, p. 187-188.

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princípio, promoverá o desenvolvimento, com a criação de empregos, através de crescimento da economia local. Todavia, por hipótese, caso as fábricas instaladas causem poluição ao ar, produzirão, ainda, uma externalidade ambiental negativa. Nessa acomodação de hipóteses, conforme expressa determinação constitucional, deverá o Estado intervir.

3.2 O desenvolvimento sustentável e a proteção ao meio ambiente No tocante à defesa do meio ambiente, a Constituição brasileira de 1988 inovou em relação às Cartas anteriores, na medida em que foi a primeira a tratar da matéria. À luz dos princípios aprovados na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, ocorrida em Estocolmo em 1972, bem assim à vista da evolução das tratativas mundiais, em face da efetiva constatação da deterioração do meio ambiente pela atuação predatória do homem, o Brasil, que em um primeiro momento opôs-se aos acordos globais, uma vez que se encontrava em franco processo de desenvolvimento cujas estratégias e diretivas foram concebidas pelo regime militar então vigente, finalmente com a Constituinte de 1988 interiorizou os preceitos e preocupações mundiais sobre a necessidade da defesa do meio ambiente. Um dos principais princípios destacados pela conhecida Convenção de Estocolmo previu que o homem possui direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras (Princípio I). Nessa Convenção começou-se a falar em ecodesenvolvimento, que pode ser considerado um embrião do termo desenvolvimento sustentável: “O conceito de Ecodesenvolvimento foi introduzido por Maurice Strong, Secretário da Conferência de Estocolmo (Raynaut

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e Zanoni, 1993), e largamente difundido por Ignacy Sachs, a partir de 1974 (Godard, 1991). Na definição dada por Sachs, citada por Raynaut e Zanoni (1993, p. 7), para um determinado país ou região o Ecodesenvolvimento significa o “desenvolvimento endógeno e dependente de suas próprias forças, tendo por objetivo responder problemática da harmonização dos objetivos sociais e econômicos do desenvolvimento com uma gestão ecologicamente prudente dos recursos e do meio” [FILHO, GILBERTO MONTIBELLER8].

Após, em 1983, a ONU nomeou a então Primeira Ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, para comandar a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, vindo a apresentar em 1987 o conhecido Nosso Futuro Comum, ou Relatório Brundtland. A partir desse momento, passou-se a utilizar o termo desenvolvimento sustentável, este compreendido “como as atuais gerações satisfazem as suas necessidades sem, no entanto, comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades”. Destaque-se que tais primados foram internalizados em nosso ordenamento jurídico pelo Constituinte de 1988, passando a albergar: o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida; impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput, CF/88). E, ainda, a Constituição em tais preceitos também elencou as formas de efetivação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Destaque-se que a CF/88 em seu art. 225, § 1º, expressamente dispôs acerca do papel do Poder Público para assegurar a efetividade desse direito: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

8 MONTIBELLER FILHO, Gilberto. Ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável, conceitos e princípios. Textos de Economia, Florianópolis, 1993, v. 4, a. 1, p. 131-142.

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II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. Essas, portanto, foram as premissas definidas pelo Constituinte e consistem naquelas a serem perseguidas para a concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Algumas situações, por sua especificidade, foram expressamente destacadas: aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei (art. 225, § 2º); a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais (art. 225, § 4º); são indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais (art. 225, § 5º); e as usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas (art. 225, § 6º).

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Além das mencionadas acima, expressamente consignou que as pessoas físicas e jurídicas são responsáveis penal e administrativamente pelas condutas lesivas ao meio ambiente, além da obrigação de reparar o dano (art. 225, § 3º). Aqui, trata-se da constitucionalização do princípio do poluidor pagador. A propósito, o art. 225 da CF/88, em linhas gerais, consagrou princípios objeto de discussões nos mais diversos órgãos multilaterais, consagrados, inclusive, em acordos internacionais, quais sejam o da prevenção, o do poluidor pagador, bem assim da necessidade da promoção de campanhas de educação ambiental. Além dessas hipóteses expressamente previstas, o legislador constituinte, como já destacado, previu dentre os princípios norteadores da ordem econômica a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (art. 170, VI). A par disso, previu as hipóteses ou situações em que o Estado deverá atuar na atividade econômica, a fim de corrigir eventuais falhas do mercado, pois não se atua dentro de um mercado de concorrência perfeita, antes, ao contrário, atua-se no mercado imperfeito e real. Dizendo de outro modo, a CF/88 antevê na organização da atividade econômica falhas a serem evitadas ou, quando detectadas posteriormente, corrigidas pelo Estado, na forma dos arts. 173 e 174 já destacados. A interferência do Estado no domínio econômico se dará: “(...) de três modos; a saber, (a) ora dar-se-á através de seu ‘poder de polícia’, isto é, mediante leis e atos administrativos expedidos para executá-las, como ‘agente normativo e regulador da atividade econômica’, caso no qual exercerá funções de ‘fiscalização’ e em que o ‘planejamento’ que conceber será meramente ‘indicativo para o setor privado’ e ‘determinante para o setor público’, tudo conforme prevê o art. 174; ora fará (b) mediante incentivos à iniciativa privada (também supostos no art. 174), estimulando com favores fiscais; e ora (c) ele próprio, em casos excepcionais (...), atuará empresarialmente

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no setor, mediante pessoas que cria para tal fim” [BANDEIRA DE MELLO, CELSO ANTONIO9].

Por ora, não se pretende abordar aqui a forma de manejo do meio ambiente com as atuações Estatais de repressão, penal ou administrativa, tampouco da esfera reparatória (art. 225, § 3º, CF/88), mas sim de políticas públicas indutivas da iniciativa privada à proteção do meio ambiente, notadamente, vocacionadas ao estímulo das externalidades positivas. No tocante às externalidades negativas geradas ao meio ambiente pelo desenvolvimento da atividade econômica, o tema deve ser melhor estudado em seara própria, já que existem propostas no sentido de serem criados mecanismos para que os responsáveis as internalizem na cadeia de produção, assumindo seus efeitos, reproduzindo, efetivamente, o real custo do bem ou do serviço produzido. Ou, ainda, através de maiores investimentos em educação ambiental, conscientizando a população acerca da cadeia produtiva, exigindo informações dos produtores sobre eventuais externalidades negativas, evitando informações assimétricas, concedendo-se informação ao consumidor final para que ele possa exercer em sua plenitude o poder de escolha do produto. Nesse caso, possuem papel importante as certificadoras ambientais, com a aposição de selos ambientais nos produtos, destacando determinadas qualidades na gestão da cadeia de produção. Todavia, tais medidas no Brasil ainda se apresentam em fase inicial, havendo muito por fazer nessa seara. De um lado, temos país com inaceitável percentual de pessoas de baixa renda, que acabam privilegiando suas compras pelo critério preço, direcionando-as aos produtos mais baratos. A par disso, os responsáveis pela produção de bens ou serviços que, sabedores dessa triste realidade, não se preocupam em investir na melhoria contínua da cadeia produtiva com vistas a minorar os efeitos MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Malheiros, São Paulo, 1997, p. 434-435.

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nocivos ao meio ambiente, pois isso geraria, num primeiro momento, maiores custos do produto ou bem final, tornando-o menos competitivo. Ademais, pode parecer um exagero se falar em políticas públicas específicas à proteção do meio ambiente, quer as de incentivo ao consumo de produtos certificados ambientalmente, quer aquelas tributárias (mediante incentivo via diminuição de alíquota de determinados produtos ou combustíveis renováveis), vez que se está num país com quase metade da população sem coleta de esgoto, segundo dados do Ministério das Cidades, bem assim com mais de 40% (quarenta por cento) dos resíduos sólidos produzidos sem destinação adequada, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais – ABRELPE – de 2013.10 No entanto, deve-se começar a atuar nesse sentido, até que o país chegue num nível de desenvolvimento social em que a população venha a adquirir o hábito de cobrar das autoridades a prática dessa política estatal de proteção ambiental, o que somente ocorrerá após o incremento de políticas públicas educacionais em matéria ambiental, conforme a Constituição preconiza. Tal se deve ao fato de que, diante da constatação da lógica do capitalismo de maximização dos lucros, em que tais ações protetivas não surgirão espontaneamente, ganham enorme relevo políticas públicas indutivas de comportamentos da atividade econômica, estimulando ações voltadas à melhoria do meio ambiente, em observância aos primados constitucionais.

3.3 Políticas tributário-ambientais e a extrafiscalidade De regra, a política tributária sempre esteve fortemente atrelada ao seu caráter arrecadatório, objetivando custear as atividades estatais. Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais – (ABRELPE), Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, 2013. 10

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O Estado, seja lá a dimensão de sua organização, necessita arrecadar recursos a fim de custear seu funcionamento. E assim o fará, de regra, com a instituição de tributos dentro dos respectivos campos de atuação constitucional estipulados para cada um dos entes federados, considerada uma estrutura de Estado federal. Nessa perspectiva, tem-se o caráter fiscal dos tributos, posto que diretamente relacionados com o custeio das despesas do Estado. Todavia, os tributos podem prestar-se a outras finalidades. Com efeito, quando o Estado intervém na economia a fim de corrigir as já aludidas falhas de mercado ou as externalidades negativas, buscando estimular ou desestimular determinadas atividades, tem-se a natureza extrafiscal dos tributos. De outro turno, pode-se, ainda, falar em parafiscalidade, quando o tributo visa a custear atividades que a princípio seriam do interesse do Estado, mas que ele não tem condições de exerce-las diretamente, sendo desenvolvidas por outros entes. Diz-se que se trata de um tributo com finalidade extrafiscal quando os efeitos extrafiscais são não apenas uma decorrência secundária da tributação, mas deliberadamente pretendidos pelo legislador que utiliza do tributo como instrumento para dissuadir ou estimular determinadas condutas [PAULSEN, LEANDRO11]. Nesse sentido, a extrafiscalidade não está atrelada à criação de novos tributos, mas sim na utilização das espécies tributárias existentes para direcionar as atividades dos atores econômicos e sociais, a fim de alcançar ações previamente desejadas e planejadas pelo Estado. Nas palavras de Edson Saleme e de Maria Luiza Machado Granziera: “A intervenção do Estado – englobando todos os entes federativos – no domínio econômico por indução está relacionada à função de incentivo, que está prevista nos arts. 170 e 174 da 11 PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2014, p. 27.

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Constituição Federal de 1988 (CF/88). Nessa modalidade, o Poder Público estabelece regras orientadoras ou mesmo diretivas e não cogentes, sendo que a indução pode ser negativa ou positiva. Na área ambiental, uma das formas de indução positiva é o incentivo fiscal que motiva o contribuinte a praticar atividades de menor impacto ambiental, estimulando, e. g., condutas não poluidoras. Podemos falar, então, de extrafiscalidade. Ainda no campo da indução positiva, existem os incentivos creditícios e financeiros. Em relação à indução negativa, podemos mencionar a fixação de alíquotas elevadas, e aqui falamos de fiscalidade, o que também se traduz em captação de recursos, pelo Estado, que serão destinados ao financiamento de projetos em prol do ambiente” (destaquei).12

Desta feita, mesmo cuidando de ações motivadas para corrigir desvios do mercado, estão atreladas a todos os princípios constitucionais e legais aplicáveis aos tributos. Ora, nenhuma matéria Constitucional é estanque, descontextualizada, mas sim organizada e integrante de conjunto de princípios e regras interligados. Como alhures destacado, no trato ambiental, os motivos ensejadores das ações movidas pelo poder público devem estar atrelados aos princípios norteadores pela Carta Magna, notadamente, aos prescritos no art. 225. Assim, não basta ao manejo das espécies tributárias existentes a utilização de motivação genérica de defesa do meio ambiente, na medida em que a causa ensejadora do tributo tem de encontrar lastro de validade no ordenamento jurídico, quer constitucional, quer legal, sob pena de desvirtuamento de finalidade. Nesse particular, importa destacar: “(...) precisa vir demonstrado o nexo causal entre a materialidade tributária e demais elementos da regra-matriz tributária e a potencialidade de afetação ambiental, a motivar qualquer SALEME, Edson Ricardo; GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Incentivos creditícios na Lei de Resíduos Sólidos: a indução por planos nacionais, regionais, estaduais e municipais. In: BECHARA, Erica (Org.). Aspectos relevantes da política nacional de resíduos sólidos. Editora Atlas, São Paulo, 2013. p. 257-258. 12

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tratamento diverso, sob pena de derivar para o discriminatório, ao não se identificar o critério de tratamento similar entre sujeitos que se encontrem em situação equivalente, com absoluta transparência e objetividade nos procedimentos. Quer dizer, precisa vir demonstrado o vínculo entre o “motivo constitucional” (preservação e conservação do meio ambiente) com o exercício da competência tributária” [TORRES, HELENO TAVEIRA13].

Ora, para o Poder Público a motivação dos atos é a regra, não podendo ser diferente no tocante a políticas extrafiscais ambientais, independentemente de eventual nobreza do fim buscado, para não se resvalar em arbitrariedades. Não por outra razão a importância do planejamento para a administração pública, na medida em que nessa seara somente o planejamento conduz à eficiência (esta última considerada no caput do art. 37 da CF/88), sendo ele determinante para o setor público, nas palavras do próprio art. 174 da CF/88, entendendo-se o termo determinante como vinculante. Ações tomadas inopinadamente devem ser afastadas da boa gestão pública, pois, invariavelmente, alcançam mais adiante resultados nocivos, no mais das vezes irreversíveis. A extrafiscalidade ambiental vem sendo estudada no mundo há muito tempo nos mais variados fóruns, tendo sido criada agenda voltada a estudar os resultados do contato do homem com o meio ambiente, notadamente, sua degradação. Chegou-se à conclusão da necessidade de mudança de rota do caminho até então trilhado, uma vez que alguns resultados degenerativos do meio ambiente alcançados já se tornaram irreversíveis, inclusive com extinção de animais. Ademais, verificou-se que a relação predatória com o meio ambiente não consiste em fato local, estanque, mas sim com capilaridade regional e global, alcançando efeitos econômicos negativos de igual envergadura. 13

TORRES, Heleno Taveira. Direito tributário ambiental, Malheiros, São Paulo,

p. 103-104.

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Nesse cenário, conclui-se ser indispensável a modificação de políticas ambientais até então adotadas, com a criação de mecanismos voltados a garantir meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável. Como destacado por James Marins e Jeferson Teodorovicz: “Portanto, a política fiscal contemporânea (seja na concepção clássica ou anticíclica) que nos interessa, é aquela que serve aos ideais de desenvolvimento. Mas a visão que temos de desenvolvimento é variável conforme a perspectiva tradicional que se tenha sobre esse termo, ou a mais atual. Se a ideia de desenvolvimento é a tradicional, estaremos falando da noção de desenvolvimento manifestada pelos objetivos precipuamente econômicos (BALEEIRO, 1975, p. 102; HICKS, 1967, p. 75-56; DUE, 1974, p. 16-17), como o crescimento econômico, a estabilização dos preços, a aceleração do progresso, etc. Por outro lado, vimos que a sustentabilidade proporcionou a rediscussão da noção de desenvolvimento, que, não se esquecendo do aspecto econômico, também vincula a noção de sustentabilidade, ou, em melhores termos, o desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável é aquele que não se limita aos objetivos econômicos, avançando sobre as perspectivas econômicas e apontando objetivos na esfera social (novamente) e ambiental. Essas novas perspectivas servem tanto para estender a discussão do desenvolvimento às políticas sociais (renovadas) e ambientais, como também servem de freios de uma política de desenvolvimento que almeje o objetivo econômico pura e simplesmente.

Por isso, sustentar, tornar o desenvolvimento sustentável para as gerações futuras. Se o desmatamento é inevitável para o desenvolvimento, que ele seja feito atendendo a objetivos ambientalmente orientados, que podem ser, p. ex., a vinculação do agente em garantir o reflorestamento futuro dessas mesmas áreas, ou, em outra situação, garantir que o desenvolvimento esteja atendendo a objetivos de índole social, visando proporcionar melhores condições de saúde, condições de emprego, educação, assistência social, enfim, diversos pontos que interessam diretamente à sociedade”.14 MARINS, James; TEODOROVICZ, Jeferson. Rumo à extrafiscalidade socioambiental: tributação diante do desafio social e ambiental contemporâneo, ANAIS DO

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Nessa perspectiva, cuidando da extrafiscalidade ambiental, a Agência Europeia do Ambiente elaborou amplo estudo acerca da implementação e reconhecida eficácia das denominadas taxas ambientais, destacando-se as seguintes passagens: “2. Neste relatório, identificaram-se e analisaram-se estudos de avaliação de 16 taxas ambientais. Dentro das suas limitações, estes estudos mostram que estas taxas parecem ter sido ambientalmente eficazes (alcançando os seus objectivos ambientais) e cumprido esses objectivos com um custo razoável. São exemplos de taxas particularmente bem-sucedidas os impostos sobre o dióxido de enxofre e os óxidos de azoto, na Suécia, sobre os resíduos tóxicos, na Alemanha, a poluição dos recursos hídricos, nos Países Baixos, e a diferenciação fiscal entre os combustíveis com chumbo e o combustível diesel “verde”, na Suécia. (...)

Taxas ambientais para quê? As principais razões para a utilização das taxas ambientais são as seguintes: • são instrumentos particularmente eficazes para a internalização das externalidades, isto é, para a incorporação dos custos dos serviços e dos danos ambientais (e respectiva reparação) directamente nos preços dos bens, serviços e actividades que estão na sua origem, contribuindo para a aplicação do princípio do poluidor-pagador e para a integração das políticas ambientais nas políticas económicas; • podem proporcionar incentivos, tanto aos consumidores como aos produtores, para que alterem o seu comportamento no sentido de uma utilização dos recursos mais eficientes do ponto de vista ecológico”; para estimular a inovação e as mudanças estruturais e reforçar o cumprimento das leis; • podem gerar receitas susceptíveis de serem utilizadas no financiamento ambiental e/ou para reduzir os impostos sobre o trabalho, o capital e a poupança; IX SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, Academia Brasileira de Direito Constitucional, p. 184-185.

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• podem ser instrumentos políticos particularmente eficazes para enfrentar as actuais prioridades ambientais, geradas por fontes de poluição “difusas” como as emissões dos transportes (incluindo os transportes aéreos e marítimos), os resíduos (por exemplo, embalagens e pilhas) e as substancias químicas utilizadas na agricultura (por exemplo, pesticidas e fertilizantes)”.15 Em que pese a agenda global acerca da necessidade de mudança de perspectiva no enfrentamento do problema da degradação do meio ambiente, o Brasil vem adotando algumas políticas nesse sentido, ainda que possam ser consideradas tímidas e bastante aquém daquelas que seriam desejáveis ou que poderiam ser implementadas como políticas de Estado de maneira continuada e duradoura. Como destacado por Carlos Eduardo Peralta Montero16, o Brasil encontra-se na 18ª posição entre as 21 maiores economias mundiais na aplicação de incentivos fiscais para incrementar atividades econômicas sustentáveis. É certo que existem algumas ações isoladas que têm sido adotadas por alguns Entes Federados. Contudo, a partir das conclusões e recomendações das mais variadas agências globais, o que se pretende é que a agenda ambiental seja tratada como política de Estado integrada, com planejamento de ações de curto, médio e longo prazo, com resultados medidos, com aferição de eficácia e correção de rumos. Nessa esteira, o papel da extrafiscalidade ambiental ganha relevo, pois é fato notório o reconhecimento da ineficácia das políticas até então adotadas para se deter a deterioração do meio ambiente, seja ele o natural, seja ele no âmbito das grandes aglomerações urbanas. Taxas ambientais: implementacão e eficácia ambiental, Agência Europeia do Ambiente, Dinamarca, 2008, p. 6-7. 16 MONTERO, Carlos Eduardo Peralta. Reforma fiscal verde e desenvolvimento sustentável: Tributação Ambiental no Brasil. Perspectivas. In: DE CARLI, Ana Alice; COSTA, Leonardo de Andrade; RIBEIRO, Ricardo Lodi (org.). Tributação e sustentabilidade ambiental, FGV Editora, p. 133. 15

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A partir da perspectiva da necessidade de concretização do desenvolvimento sustentável, a fim de alcançar os atores da atividade econômica, não só para corrigir as falhas de mercado, no sentido alocativo de recursos, mas, também, para adotar postura colaborativa com o meio ambiente, mostra-se imperativo o Estado atuar em políticas interventivas estimulando os organismos sociais a praticar ou deixar de praticar certas atividades, aqui, no caso, através de ações de estímulos/desestímulos, incentivos ou desincentivos a determinadas condutas, sejam eles econômicos ou tributários.

3.4 O uso da extrafiscalidade para os tributos em espécie Como assinalado, o poder público pela extrafiscalidade buscará estimular a prática de determinadas atividades econômicas, tendo como finalidade a proteção do meio ambiente, desde que inserido no espectro de finalidades constitucionalmente previstas (art. 170 e seus incisos, c/c art. 225, ambos, da CF/88). Nos termos do art. 3º do Código Tributário Nacional – CTN, “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Como acima disposto, o CTN expressamente dispôs que tributo não constitui sanção por ato ilícito. Importante ressaltar esse aspecto, pois a responsabilização penal ou administrativa, bem assim as indenizações por atos perpetrados (art. 225, § 3º, CF/88), não consistem em políticas extrafiscais, já que estas últimas se utilizam de normas dispositivas e não impositivas (caracterizadas pelo universo da sanção), sendo que nessa seara se procura estimular os atores econômicos à prática de ações positivas em face do meio ambiente e não a puni-los por condutas já praticadas. A Constituição de 1988 estabeleceu nos arts. 145 ss a matriz de competências tributárias dos entes federados, tendo estipulado

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em tal dispositivo que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: impostos; taxas; e contribuição de melhoria (I a III). Ademais, previu a CF/88 que, exclusivamente, a União Federal poderá instituir empréstimos compulsórios (art. 148), nos casos de despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência, ou nos casos de necessidade de investimentos públicos de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Da mesma forma somente a União poderá instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas (art. 149, caput). Determinou, ainda, que os Estados, Distrito Federal e os Municípios instituam contribuições previdenciárias de seus servidores para o custeio dos respectivos regimes de previdência (§ 1º do art. 149 da CF/88). Por fim, estabeleceu que os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição destinada ao custeio de iluminação pública (art. 149-A, CF/88). Dos impostos da União, elencou a CF/88 os seguintes (art. 153): importação de produtos estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; renda e proventos de qualquer natureza; produtos industrializados; operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; propriedade territorial rural; grandes fortunas, nos termos de lei complementar. Para os Estados e Distrito Federal, reservou os seguintes (art. 155 da CF/88): transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; e propriedade de veículos automotores. Por fim, aos Municípios, destacou os que seguem (art. 156, I a III): propriedade predial e territorial urbana; transmissão inter

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vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; serviços de qualquer natureza. Já o Distrito Federal possui competência para instituir tanto tributos de competência dos Municípios quanto dos Estados. Antes de adentrar nas experiências nacionais no tocante à extrafiscalidade ambiental, não é demais lembrar que o Brasil vem elaborando há anos várias propostas de reforma tributária e se ressente, já que nenhuma delas foi aprovada globalmente, sendo aprovadas no mais das vezes desonerações pontuais e/ou alterações na sistemática de cobrança de alguns tributos, aumento de alíquotas etc. Deveras, nosso sistema vigente não consegue mais responder às atuais demandas econômicas, onerando de forma desigual os contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, com arcabouço normativo extremamente complexo e ineficiente, sendo certo que a carga tributária crescente acaba por impedir o desenvolvimento econômico, o que, por sua vez, retroalimenta o sistema mediante quedas sucessivas de arrecadação. Ademais, recentes políticas erráticas de incentivos concentrados em determinados setores da economia, objetivando aumento do consumo interno, provocou endividamento das famílias, sem que pudesse apresentar reflexos positivos à economia nacional, além de provocar sensível renúncia fiscal por parte do poder público. Desta feita, antes mesmo de ações açodadas no tocante à política tributária, torna-se necessário, primeiramente, planejar as ações com vistas a resultados de médio e longo prazo. No entanto, não basta somente planejar, há que se implementar as políticas e avaliar-se os resultados, promovendo eventuais correções de rumos que se fizerem necessárias, sob pena de ocasionar prejuízos à população irrecuperáveis. Nessa esteira, cabe perquirir o que se pretende obter na área ambiental. Como antes assinalado, a Constituição já definiu o caminho a ser perseguido, em seu art. 225, da CF/88, em matéria de defesa do

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meio ambiente, trazendo o fundamento de validade das políticas públicas, incluídas as tributárias. Dentro de nosso complexo sistema tributário vigente, com as inúmeras espécies previstas, importa destacar aquelas de maior vocação no tocante ao estímulo às externalidades positivas, sem pretender esgotar o assunto. No tocante aos impostos de competência federal de Importação e de Exportação, cuida-se de tributos com extrafiscalidade latente, uma vez que possuem marcante viés de regulação da atividade econômica, notadamente, direcionados à garantia e à promoção do desenvolvimento econômico. Todavia, além dessa característica, lembre-se que a defesa do meio ambiente está diretamente imbricada com a Ordem Econômica, na medida em que constitui um de seus princípios informadores, nos termos da própria Carta Magna (inciso VI, art. 170), a referendar que sejam utilizados tais impostos com a finalidade de protegê-lo e não de degradá-lo ainda mais, estimulando-se a importação de produtos que impactam positivamente sobre o meio ambiente, bem como de máquinas e equipamentos que possam atuar no sentido de controle da poluição e no tratamento dos resíduos sólidos. Nessa parte, cuida destacar: “O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. O desenvolvimento nacional que cumpre realizar, um dos objetivos da República Federativa do Brasil, e o pleno emprego que impende assegurar supõem economia autossustentada, suficientemente equilibrada para permitir ao homem reencontrar-se consigo próprio, como ser humano e não apenas como um dado ou índice econômico” [GRAU, EROS ROBERTO].17 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. Malheiros, São Paulo, 2015, p. 250-251. 17

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Assim, seria recomendável e desejável que se utilizassem os impostos de importação e de exportação pela União para estimular atividades voltadas à promoção do meio ambiente e ao desincentivo de atividades poluidoras ou que possam degrada-lo. No tocante ao Imposto de Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IR), o manejo desse tributo para fins extrafiscais ambientais poderia ter papel muito além daquele atualmente utilizado pelo poder público. Segundo dados divulgados na Agência Brasil, espera-se que no ano de 2016 28,5 milhões de contribuintes pessoas físicas façam o envio da declaração do imposto de renda, tratando-se, em termos numéricos, de um dos principais impostos da União.18 Como já assinalado, um dos vetores constitucionais de defesa do meio ambiente refere-se à promoção da educação ambiental (art. 225, § 1º, VI). Assim, dentro da linha de extrafiscalidade aludida, poder-se-ia promover tais ações de conscientização e educação ambiental, utilizando-se o imposto de renda mediante a permissão aos contribuintes do abatimento no cálculo do imposto de renda dos valores efetivamente gastos com tais práticas ambientais legalmente estabelecidas, com intuito de incentivá-las. Na verdade, o que se buscaria com tal política seria a conscientização dos contribuintes acerca da importância da defesa ao meio ambiente, conduzindo tal processo a um quadro em que os consumidores finais pudessem ter mais informações no tocante à escolha de produtos e serviços ambientalmente adequados, forçando a cadeia produtiva a se direcionar para esses objetivos, ao invés de focar somente na redução dos custos de produção. Claro que todos os tributos poderiam ter esse papel, mas se destaca o imposto de renda pelo número de envolvidos, especialmente as pessoas jurídicas. Todavia, no Brasil as ações nesse sentido são muito tímidas, predominando, basicamente, a natureza arrecadatória deste imposDisponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-02/ receita-comeca-receber-declaracoes-do-ir-2016-na-terca-feira>. 18

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to, bem assim com voltas ao papel extrafiscal de desenvolvimento regional e de distribuição de riqueza. Pode-se citar como exemplo da iniciativa brasileira a possibilidade de dedução do imposto de renda nos casos de empreendimentos de florestamentos e reflorestamentos então previstos na Lei n. 5.106/1966. Quanto ao Imposto Incidente sobre Produtos Industrializados (IPI), devido a sua expressa previsão constitucional da seletividade (inciso I, § 3º, art. 153, CF/88), pode vir a ter papel importante na diminuição das chamadas externalidades negativas. Tal princípio da seletividade está diretamente ligado à essencialidade do produto. Há expressa previsão constitucional do princípio informador da atividade econômica de defesa do meio ambiente, que prescreve, expressamente, que deverá ser concedido tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços (inciso VI, art. 170, CF/88). Nessa esteira, conforme uma interpretação sistemática, resta clara a possibilidade de associação entre a defesa do meio ambiente através do imposto sobre produtos industrializados, utilizando seu caráter extrafiscal. No Brasil, tivemos exemplos nos anos de 1990 e seguintes de incentivo à fabricação de veículos automotores, objetivando, precipuamente, a diminuição da dependência de combustíveis fósseis, com o incremento da indústria sucroalcooleira, ocasionando diminuição na emissão de poluentes ao meio ambiente. Outro exemplo que pode ser destacado é a Lei n. 9.478/97, que dispôs acerca da política energética nacional, com alterações promovidas pela Lei n. 11.097/2005, que, dentre outras providências, buscou introduzir o biodiesel na matriz energética brasileira, bem assim a Lei n. 12.490/2011, que dispôs sobre a redução de emissão de poluentes por veículos automotores, e outras providências. A aludida lei que tratou da política energética nacional trouxe, de pronto, os seguintes princípios e objetivos destacados (art. 1º): proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia

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(inciso IV); incrementar, em bases econômicas, a utilização do gás natural (inciso VI); utilizar fontes alternativas de energia, mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis (inciso VIII); incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional (inciso XII); garantir o fornecimento de biocombustíveis em todo o território nacional (inciso XIII); incentivar a geração de energia elétrica a partir da biomassa e de subprodutos da produção de biocombustíveis, em razão do seu caráter limpo, renovável e complementar à fonte hidráulica (inciso XIV); fomentar a pesquisa e o desenvolvimento relacionados à energia renovável (inciso XVII); e mitigar as emissões de gases causadores de efeito estufa e de poluentes nos setores de energia e de transportes, inclusive com o uso de biocombustíveis (inciso XVIII). Como se pode depreender, reportada legislação foi bem específica quanto à necessidade de modificação da matriz energética nacional, haja vista os efeitos nocivos ao meio ambiente da emissão de gases geradores do efeito estufa. No que toca precipuamente ao estímulo da utilização do biodiesel no Brasil, como alternativa energética mais adequada à defesa do meio ambiente, desde sua primeira regulamentação pelo Decreto n. 5.298/2004 até o Decreto n. 7.660/2011, sempre foi destacado tratamento diferenciado, com alíquotas inferiores de imposto sobre produtos industrializados. No que toca ao Imposto sobre a Propriedade Rural (ITR), a CF/88 estabeleceu que deverá ser progressivo, a fim de desestimular propriedades improdutivas (inciso I, § 4º, art. 153). Definiu, ainda, que a propriedade rural deve cumprir sua função social, sob pena de desapropriação (art. 184, caput), esta compreendida quando não atende aos seguintes requisitos (art. 186, I a IV): aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

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Ora, restou claro que um dos requisitos à correta utilização da propriedade rural é a preservação do meio ambiente. Assim, coube ao legislador infraconstitucional dosar o caráter progressivo do ITR em face, também, do modo de utilização da propriedade, premiando com intuito extrafiscal propriedades com manejo adequado de suas reservas ambientais, bem assim cobrando alíquotas maiores do tributo, no caso de má utilização, podendo, inclusive, decretar a desapropriação como medida extrema. A CF/88 prevê, ainda, no § 4º, do art. 177, que a lei que instituir a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), relativas às atividades de importação de petróleo, e derivados, gás natural e derivados e álcool, setores da atividade econômica que produzem reconhecidos danos ao meio ambiente, deverá estipular uma série de requisitos. Dentre esses, importa destacar que restou definido que as alíquotas pelos produtos ou usos de reportados combustíveis poderão ser diferenciadas, bem assim que os recursos arrecadados deverão ser destinados, dentre outros, a financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás. A Lei n. 10.336/2001, que regulamentou o art. 177, da CF/88, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 33/2001, veio a instituir a Cide. Como instrumento extrafiscal ambiental, estabeleceu reportado diploma normativo alíquotas diferenciadas entre diversos combustíveis (gasolina, diesel, querosene de aviação, outros querosenes, óleos combustíveis com alto teor de enxofre, óleos combustíveis com baixo teor de enxofre, gás liquefeito de petróleo e álcool etílico combustível), objetivando induzir o consumo de combustíveis sabidamente menos poluentes, instituindo a menor alíquota aquela referente ao álcool etílico combustível, fonte que, além de renovável, possui menor emissão de gases poluentes. É de se destacar que o biodiesel não foi incluído no rol de combustíveis tributados. Quanto ao Imposto Incidente sobre a Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual

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e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), a saber, de competência dos Estados, a exemplo do imposto sobre produtos industrializados, considerando-se o princípio da seletividade em face da essencialidade das mercadorias ou prestações de serviços (inciso III, § 2º, art. 155, CF/88), podem ter destacada função extrafiscal ambiental, pelos mesmos fundamentos já delineados. Nesse aspecto, inúmeros Estados Brasileiros adotam alíquotas diferenciadas buscando estimular a utilização de fontes de combustíveis menos poluentes. No tocante ao ICMS, a CF/88 estabeleceu na parte de repartições das receitas tributárias que os Municípios possuem 25% do total arrecadado pelos Estados. Desses 25%, três quartos, no mínimo, das operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação realizadas em seu território deverão ser creditadas aos Municípios. O restante de um quarto será creditado de acordo com o que dispuser lei estadual, ou, no caso dos territórios, lei federal. A partir dessa determinação constitucional, os Estados brasileiros começaram a instituir o chamado ICMS ecológico, que não se trata de instituição de um novo imposto, mas sim da adoção de instrumentos de incentivos aos Municípios para a implementação de medidas protetivas ao meio ambiente. No caso do Estado de São Paulo, a Lei n. 8.510/93 estabeleceu percentual de até 0,5% do montante que o Município pode fazer jus, percentual esse calculado com base na manutenção de unidades de conservação. A fim de delinear a unidade de conservação foram criados os seguintes pesos: Estações Ecológicas – Peso 1,0 (um); Reservas Biológicas – Peso 1,0 (um); Parques Estaduais – Peso 0,8 (oito décimos); Zonas de Vida Silvestre em Áreas de Proteção Ambiental (ZVS em APA’s) – Peso 0,5 (cinco décimos); Reservas Florestais – Peso 0,2 (dois décimos); Áreas de Proteção Ambiental (APA’s) Peso 0,1 (um décimo); e Áreas Naturais Tombadas – Peso 0,1 (um décimo).

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Ou seja, a parcela de um quarto que o Município recebe, 0,5% (meio por cento) será calculada com base nesse critério. Outro imposto estadual que pode vir a exercer caráter extrafiscal ambiental é o de Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), na medida em que, como já adotado por muitos Estados brasileiros, adotam-se alíquotas inferiores para veículos automotores que utilizem combustíveis menos poluentes. No Estado de São Paulo, exemplificativamente, pela Lei n. 13.296/2008, restou conferida alíquota diferenciada a veículos que utilizarem motor para funcionar, exclusivamente, com os seguintes combustíveis: álcool, gás natural veicular ou eletricidade, ainda que combinados entre si (art. 9º, III). No tocante aos impostos Municipais, destaque-se, inicialmente, o Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), que, em razão da função social da propriedade, possui progressividade em face da não edificação, subutilização ou não utilização (§ 4º, art. 182, CF/88). A fim de parametrizar os comandos constitucionais a trato da matéria, foi editada a Lei n. 10.257/2001, que estabeleceu diretrizes gerais da política urbana nacional. De início, em seu art. 1º, parágrafo único, dispõe que a lei ora denominada de Estatuto da Cidade estabeleça normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. A seguir define as diretrizes da política urbana destacando, em inúmeras passagens, a necessidade de ações voltadas à defesa do meio ambiente. Assim, o tributo em questão guarda significativo potencial de execução de políticas extrafiscais ambientais, podendo regrar sua progressividade em face da função social da propriedade, esta informada, também, pela necessária defesa do meio ambiente. No tocante ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), a CF/88 estabelece que compete aos Municípios sua

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instituição, com a observância do que definido em Lei Complementar (inciso III do art. 156), que veio a ser atendido com a edição da Lei Complementar n. 116/2003. Reportado diploma normativo, estabeleceu, em lista anexa, todas as atividades a ser tributadas, deixando, todavia, de estabelecer as alíquotas mínimas que poderiam ser instituídas pelas respectivas Leis Municipais, definindo a alíquota máxima de 5% (cinco por cento), nos termos do inciso II, do art. 8º da LC n. 116/2003. No que toca à alíquota mínima, a Emenda Constitucional n. 37/2002, que alterou os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, estabeleceu que, enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e III do art. 156 da Constituição Federal, a alíquota mínima será de 2%, excetuados serviços até então previstos no Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968 (art. 88, I, do ADCT). Nessa esteira, poderão as municipalidades manejar as alíquotas mínimas e máximas, a fim de estimular atividades voltadas à defesa do meio ambiente. Ademais, lembre-se, uma vez mais, que a própria CF/88 consagrou a defesa do meio ambiente como princípio informador da atividade econômica, inclusive, mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (inciso VI do art. 170), pelo que tal princípio deve ser interpretado com o art. 225, bem como à luz do Sistema Tributário Nacional, através dos dispositivos retro mencionados, de modo a torná-lo importante aliado na proteção ambiental, que, em última análise, irá refletir-se no bem-estar social e na concretização do desenvolvimento sustentável.

4 Conclusões Com base no objetivo proposto de apresentação de soluções com vistas à concretização do desenvolvimento sustentável,

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pretendeu-se trazer algumas medidas de cunho prático nesse sentido, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, segundo uma perspectiva constitucional e legal. Algumas políticas públicas no âmbito econômico passam pelo incentivo direto à elaboração de produtos certificados ambientalmente, bem como pela promoção da conscientização dos consumidores no tocante à educação ambiental. É urgente a necessidade de implementação de tais políticas de modo globalmente considerado na cadeia produtiva, já que políticas isoladas e pontuais tendem a se anular mutuamente. Importante apontar para o fato de que tais políticas devem ser de Estado e não de governo, a fim de que sobrevivam ao período curto dos mandatos legislativos e à alternância do poder, em que muitas vezes se interrompem virtuosas políticas anteriores por motivos egoísticos, sem que o planejamento prepondere, sendo ele fundamental ao Estado em matéria ambiental. Por fim, procurou-se apontar no campo tributário terreno fértil à extrafiscalidade em prol do desenvolvimento sustentável e à proteção do meio ambiente natural e urbano. Trata-se de um sistema complexo do ponto de vista tributário, mas que poderia ser melhorado mediante a consideração os objetivos propostos pelo texto constitucional em matéria ambiental, sendo certo que todas essas medidas não dispensam, antes ao contrário, requerem minudente análise prévia, planejamento e eventuais correções de rumos e ajustes, visando a seu aperfeiçoamento e a sua efetividade, o que somente será possível a partir da sua implementação, de molde a que não sejam eventualmente descontinuadas e/ou abandonadas. A mera interrupção de políticas ambientalmente sustentáveis e a falta de critérios técnicos e jurídicos para os ajustes poderão levar a atrasos inaceitáveis e a retrocessos definitivos e por vezes essa descontinuidade acabará por permitir danos severos ao meio ambiente.

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A MODERNA CONCEPÇÃO DO BEM JURÍDICO-PENAL ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO Carlos Henrique Borlido Haddad Pós-doutor pela Universidade de Michigan. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG. Juiz Federal.

Vinícius Simões Borges Espinheira Fonseca Bacharel em Direito pela UFMG

Resumo

Abstract

O artigo procura apresentar novo conceito de organização do trabalho para fins penais. A evolução do conceito baseada na jurisprudência do STF será analisada, assim como se há necessidade de que os trabalhadores sejam atingidos, individual ou coletivamente, para que se caracterizem os crimes previstos no título IV da Parte Especial do Código Penal. O artigo conclui que compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, previstos no código penal, tendo em vista o conceito proposto para o bem jurídico na atualidade.

The article presents new definition of “organization of labor” for criminal purposes. The evolution of the definition based on Brazilian jurisprudence will be analyzed. We will also look at the differences between when the victim is an individual compared to a group, under Title IV of the Special Part of the Penal Code. The article concludes that trials for crimes involving the organization of labor are under federal jurisdiction, according to the current definition.

Palavras-chave: Crime – Organização do trabalho – Competência – Justiça Federal.

Keywords: Crime – Labor organization – Jurisdiction – Federal court

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1 Introdução Desde 1940, quando da decretação do vigente Código Penal, o direito brasileiro tutela penalmente o bem jurídico “organização do trabalho”, conferindo-lhe título próprio. Sob a denominação “Dos Crimes Contra a Organização do Trabalho”, o legislador elencou determinadas infrações, conforme consta da Exposição de Motivos da Parte Especial, através da “trasladação dos crimes contra o trabalho, do setor dos crimes contra a liberdade individual para uma classe autônoma, sob a já referida rubrica”. Os responsáveis pela elaboração do Código Penal situavam-se em contexto mundial de intervencionismo estatal na esfera econômica, o que indubitavelmente os influenciou quando da decisão que consagrou o bem jurídico. Para eles, como consta da já referida Exposição de Motivos, a postura liberal de defesa da liberdade do trabalho era insuficiente e inadmissível se entendida como liberdade de iniciativa. Por isso, justificaram sua decisão, literalmente: “A proteção jurídica já não é concedida à liberdade do trabalho, propriamente, mas à organização do trabalho, inspirada não somente na defesa e no ajustamento dos direitos e interesses individuais em jogo, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum de todos.”

Quase cinquenta anos depois, veio a lume a Constituição de 1988 e, nessa ocasião, não silenciou o constituinte a respeito da questão trabalhista em nosso país. A Constituição Federal conferiu especial relevo ao trabalho quando o consagrou, não apenas como valor social, mas como próprio fundamento de existência do Estado brasileiro. Inequivocamente reconhecida a relevância do trabalho, optou o constituinte de 1988, da mesma forma que o de 1967, por atribuir à Justiça Federal a competência para processar e julgar os crimes praticados contra a organização do trabalho. Até então mostra-se evidente a importância da organização do trabalho como bem jurídico na medida em que lhe é dada

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proteção pelo direito penal. Sendo este o ramo do direito de interpretação mais rígida e detentor das mais gravosas sanções, é de se esperar que haja, no mínimo, certeza sobre aquilo que tutela, ou seja, deve-se conhecer o conteúdo do objeto jurídico para que seja possível protegê-lo de eventuais lesões. Daí se conclui ser fundamental definir claramente o conteúdo de organização do trabalho, a fim de que se precise o âmbito de tutela do Direito Penal, com repercussões, inclusive, na esfera processual. Ao longo do tempo, doutrina e jurisprudência construíram o conteúdo da expressão organização do trabalho. Tal construção sempre ocorreu sob influência do Supremo Tribunal Federal (STF), que se manifestou em casos paradigmáticos como os do RE 90.042/ SP1 e RE 398.041/PA2. A partir deste último julgado, houve modificação daquilo que até então o próprio STF entendia como organização do trabalho. Diante desse contexto, é preciso verificar em que medida se operou a evolução do conceito em estudo baseado na jurisprudência do STF, sobretudo para averiguar se existe real identidade entre a expressão “organização do trabalho” utilizada pelo Código Penal e pela Constituição de 1988, quando define a competência da Justiça Federal (art. 109, VI). Outro ponto a ser analisado diz respeito à exigência de que os trabalhadores sejam atingidos em sua coletividade, e não apenas isoladamente, para a configuração dos crimes previstos no específico título do Código Penal. A jurisprudência sobre o tema é vacilante em torno da real dimensão do bem jurídico protegido, o que se evidencia através da substancial quantidade de acórdãos divergentes, como, por exemplo, os RE 90.042/

BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 5/10/79, p. 7445. 2 BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 19/12/08. 1

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SP, RE 541.627,3 CC 23.188/SP,4 RE 156.527/PA5 e CC 118.436/SP.6 Finalmente, será objeto de análise a definição da competência para processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho. Conquanto, indubitavelmente, a competência esteja atribuída à Justiça Federal, por disposição expressa da Constituição de 1988 (art. 109, VI), não são poucos os arestos que conferem a competência à Justiça Estadual, sempre que se tratar de lesão a direito individual. Os três pontos que serão examinados estão diretamente relacionados à definição que se dá à expressão “organização do trabalho”, pois é a partir dela que surgem os critérios necessários para reconhecer as correspondentes infrações e a definição do juízo competente para processá-las. A fim de contribuir para superar as dificuldades criadas pela imprecisão do conceito, buscar-se-á definir organização do trabalho de modo a dar-lhe contornos precisos e coerentes com o atual marco jurídico.

2 A origem do bem jurídico Analisando as diferenças e as semelhanças entre as legislações penais de variados países, embora boa parte delas preocupe-se em combater infrações relacionadas à organização do trabalho, oferecendo âmbito de proteção maior ou menor, o tratamento legal dispensado aos crimes não encontra similar no Brasil.7 BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal, Segunda Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 21/11/08. 4 BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça, Terceira Seção, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ de 16/8/99, p. 43. 5 BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 27/5/94, p. 13193. 6 BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça, Terceira Seção, Rel. Min. Convocada Alderita Ramos de Oliveira, DJe de 29/5/13. 7 O Código Penal francês, no Capítulo V, ao tratar dos atentados à dignidade da pessoa, traz a seção III que dispõe acerca das “condições de trabalho e de alojamento contrárias à dignidade da pessoa, do trabalho forçado e da redução à servidão”. Já na Parte Especial da legislação penal portuguesa, cuja disposição dos capítulos guarda semelhança com a brasileira, há a previsão do crime de escravidão (art. 159) 3

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A expressão “organização do trabalho” foi empregada pela primeira vez na seara penal no Código de 1940. Embora o Código de 1890 previsse alguns crimes que atentavam contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais, sob a epígrafe “Dos crimes contra a liberdade do trabalho”, eles figuravam como subespécie dos delitos contra a liberdade (HUNGRIA, LACERDA, 1947, 19). Somente em 1940 foi edificada a categoria penal “organização do trabalho”. Por sua vez, o Código Penal brasileiro buscou inspiração na legislação italiana, mais precisamente o Código Rocco de 1930. O Código brasileiro baseou-se no projeto Alcântara Machado que, apesar de ter sofrido consideráveis alterações, apresentou concepção mais integral do Estado, a exemplo do modelo italiano. Essa preocupação refletia-se em todo o projeto, contando-se, entre os aspetos concretos que assumiu, a criação ou o agravamento de uma série de categorias de delitos contra a organização política e social, a atividade industrial, comercial e agrícola e a organização do trabalho (POZZO, 1940, 622). A despeito de os crimes terem sido dispostos no código italiano entre aqueles que atentam contra a economia pública, a indústria e o comércio, é possível notar a presença dos delitos de serrata e sciopero (art. 502 a 506), arbitraria invasione e occupazione di aziende agricole o industriali. Sabotaggio (art. 508), inosservanza delle norme disciplinanti i rapporti di lavoro (art. 509) e frodi contro le industrie nazionali (art. 514), que, se não idênticos, são bastantes similares aos crimes estatuídos nos artigos 197 a 201, 202, 205 e 204 do Código Penal brasileiro. No Código Penal italiano, há crimes de concurso necessário (i lavatori – art. 503) e de concurso eventual (chiunque – art. 507), inclusive, com referência expressa à quantidade necessária (in numero di tre o più – art. 506), tal como estatuído na legislação brasileira em vigor (art. 200). Os comentadores do código italiano, a exemplo de Manzini, classificam os crimes do art. 502 ao art. 509 como delitti contro l’ordine no capítulo IV (Dos crimes contra a liberdade pessoal) e de burla relativa a trabalho ou emprego (art. 222). A Argentina tipifica a submissão de pessoa à condição de ou análoga à de servidão (art. 140).

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del lavoro, a despeito da omissão do legislador que optou por incluí-los como atentatórios à economia pública, a indústria e o comércio (MANZINI, 1951, 63). Boa parte dos delitos previstos como lesivos à ordine del lavoro tratou-se de inovação legislativa em âmbito penal derivada da aplicação de princípios fascistas (MANZINI, 1951, 68), que se estendeu ao Brasil na época do governo Vargas. Na Itália, a previsão dos tipos penais relacionados à ordem econômica visava a conservar bens econômicos no interesse do Estado, proteger a normalidade das trocas e da produção, tutelar o regular desenvolvimento das relações coletivas de trabalho e a liberdade da indústria e do comércio (MANZINI, 1951, 1). A nomenclatura diverge da brasileira e o agrupamento de infrações sob o bem jurídico “organização do trabalho” mostra-se peculiar ao código pátrio. Logo, a obtenção de conceito que melhor se ajuste ao sistema nacional dependerá do estudo das próprias normas que o integram e da interpretação que é dada a elas pelos tribunais.

3 Evolução do conceito na jurisprudência do stf Em fins da primeira metade do século XX, pouco antes de se editar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), foi instituído pelo Decreto-Lei n. 2.848/1940 o Código Penal. Denominando o título IV de “Dos crimes contra a organização do trabalho”, o legislador tipificou, ao longo dos artigos 197 a 207, condutas ilícitas praticadas no contexto das relações de trabalho. A Constituição Federal de 1988, no inciso VI do artigo 109, faz referência literal aos crimes praticados contra a organização do trabalho, tratando-os como uma das hipóteses expressas cujo processamento e julgamento são de competência da Justiça Federal. Note-se que não houve inovação no tratamento da matéria pelo constituinte, uma vez que manteve a opção das Constituições de 1967 e de 1946, que já atribuíam aos juízes federais a competência para julgar e processar referidas infrações. Pode-se dizer que a

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restauração da Justiça Federal no Brasil, em 1946, coincidiu com a criação da competência relacionada aos crimes contra a organização do trabalho, que permanece imodificada e atrelada à esfera federal até a presente data. A princípio, parece não haver dúvida quanto ao fato de que são crimes contra a organização do trabalho aqueles que se encontram no título IV do Código Penal. A sucessão cronológica da criação da expressão – primeiramente no diploma penal de 1940, seguida pela Constituição de 1946 – conduz a essa conclusão. No entanto, o ponto não é pacífico no âmbito jurisprudencial. A partir de 1970, surgem no extinto Tribunal Federal de Recursos (TFR) precedentes no sentido de que à Justiça Federal apenas competiria processar e julgar os crimes que ofendessem a organização geral do trabalho ou os direitos dos trabalhadores coletivamente considerados. O tribunal decidiu que nem todos os delitos previstos no Código Penal sob o título IV, apesar do nome atribuído, seriam de fato crimes contra a organização do trabalho. Tratando-se de crime que atente contra direito individual, ainda que topograficamente localizado no título “Dos crimes contra a organização do trabalho”, competente para apreciá-lo seria a Justiça Estadual (Conflito de competência n. 2.645/SP). Posteriormente, esse entendimento seria corroborado pelo STF e, em seguida, consolidado no enunciado da súmula n. 115 editada pelo TFR: “Competência – Processo e Julgamento – Crimes Contra a Organização Geral do Trabalho ou Direitos Coletivos dos Trabalhadores. Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente”. Toda a jurisprudência do STF sobre o tema foi construída a partir do julgado do Tribunal Federal de Recursos (CC 2.645/SP), que deu origem ao RE 90.042/SP. À época desse julgamento, o STF, validando o posicionamento da maioria dos ministros do TFR, consagrou, também por maioria de votos, à expressão organização do trabalho presente na Constituição Federal, o sentido de sistema de

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órgãos e instituições responsáveis por preservar, coletivamente, os direitos e os deveres dos trabalhadores. Logo, se os crimes do título IV da Parte Especial do Código Penal não lesassem o sistema de órgãos e instituições responsáveis por preservar, coletivamente, os direitos e os deveres dos trabalhadores, não pertenceriam à competência da Justiça Federal, mas sim à da Justiça Estadual. Com o julgamento paradigmático do RE 90.042/SP, o STF definiu os rumos a serem seguidos no exame dos crimes contra a organização do trabalho. O posicionamento da Suprema Corte foi fundamental ao estabelecimento da hoje majoritária corrente que defende o entendimento segundo o qual, a depender do caso concreto, a competência pode pertencer tanto à Justiça Federal quanto à Justiça Estadual, não havendo correspondência taxativa entre os delitos capitulados no Código Penal e os indicados na Constituição da República de 1998. Posteriormente, em 2006, quando da apreciação do RE 398.041/PA, o STF deu novos contornos ao tema, uma vez que considerou o crime previsto no artigo 149 do Código Penal – redução à condição análoga a de escravo – entre as infrações contra a organização do trabalho, embora tal artigo pertença ao capítulo “Dos crimes contra a liberdade individual”. O STF, sem esquecer o principal ator e destinatário de toda a proteção do ordenamento jurídico, superou o tratamento puramente orgânico que ele próprio dava ao tema, acrescentando ao conceito de organização do trabalho o elemento humano e com ele todos os aspectos concernentes à sua liberdade, autodeterminação, autodesenvolvimento e dignidade. A partir de então, passou-se a compreender os crimes contra a organização do trabalho como aqueles que não só ofendem o sistema de órgãos e instituições aos quais cabe proteger os direitos e os deveres dos trabalhadores coletivamente considerados, mas também ferem o próprio homem, atingindo-o especialmente em sua intrínseca dignidade, princípio a que a Constituição Federal confere superlativa proteção, no contexto das relações de trabalho.

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Nota-se significativa virada jurisprudencial sobre o tema. Se anteriormente o STF exigia a lesão da organização geral do trabalho ou dos direitos dos trabalhadores coletivamente considerados para definir a competência penal da Justiça Federal, a partir de 2006 entendeu suficiente a ofensa individual que alcance aspectos concernentes à liberdade, autodeterminação, autodesenvolvimento e dignidade do homem. Permaneceu intocado, porém, o entendimento de ausência de identidade entre a expressão organização do trabalho contida no Código Penal e na Constituição Federal de 1988.

4 Lesão individual ou coletiva do bem jurídico O conceito que se tem de organização do trabalho e, por conseguinte, dos crimes que lesam este bem jurídico não facilita ao intérprete perceber se está diante de caso de competência da Justiça Federal ou Estadual, como se averígua na prática, a partir dos inúmeros conflitos de competência suscitados. Hoje, conforme a jurisprudência do STF, o intérprete precisa reconhecer a presença do sistema geral de órgãos e instituições que preserva os direitos e os deveres dos trabalhadores em coletividade ou observar se o homem, no contexto da relação de trabalho, sofreu atentando em sua dignidade. À medida que falta clareza aos conceitos ou que eles se tornam mais complexos, a aplicação do direito torna-se instável. Da primeira dificuldade, que se revela quanto ao conteúdo da expressão “organização do trabalho”, segue a segunda dificuldade que, por sua vez, diz respeito à questão da quantidade de trabalhadores necessária para satisfazer o requisito de coletividade. A dúvida atinge diretamente a competência para processar e julgar os crimes referentes à organização do trabalho, que é constitucionalmente atribuída à Justiça Federal, mas que, pela via interpretativa, foi praticamente entregue à Justiça Estadual. O acórdão do extinto TFR, que foi objeto do RE 90.042/SP, cujo julgamento pelo STF estabeleceu-se como pedra angular do

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atual entendimento majoritário acerca do significado da expressão, merece detida análise. O inteiro teor do acórdão é bastante elucidativo e relevante para o presente trabalho, uma vez que revela o modo segundo o qual cada um dos ministros construiu seu entendimento sobre a matéria. A decisão nele proferida tem como fundamento o entendimento majoritário defendido pelo Ministro Décio Miranda, que concluiu haver “infeliz coincidência terminológica entre a expressão do Código Penal e a da Constituição”, a qual, todavia, não implicaria identidade de conceitos. A “infeliz coincidência” justificava-se porque a verdadeira organização do trabalho, segundo a corrente majoritária, seria o sistema de órgãos e instituições aos quais caberia a proteção dos direitos e dos deveres dos trabalhadores coletivamente considerados. As condutas tipificadas no título “Dos crimes contra a organização do trabalho” configurariam, quando não afetassem a coletividade dos trabalhadores, apenas violações de direitos individuais, o que não atingiria o bem jurídico protegido. A justificativa encontrada para negar coincidência conceitual entre a expressão utilizada pela Constituição Federal e pelo Código Penal resumiu-se ao fato de que aquela, como norma fundamental do ordenamento jurídico, não poderia jamais se submeter à legislação ordinária, devendo buscar em si o conteúdo do conceito daquilo a que chamou de organização do trabalho. No entanto, em sintonia com o que sustenta Humberto Ávila em seu livro Teoria dos Princípios, o que se verifica no caso é provisão de modo indireto de conceito constitucional (ÁVILA, 2014). Na medida em que o Poder Constituinte escolheu a expressão “organização do trabalho”, cuja propriedade já era conotada em conceito elaborado pelo legislador infraconstitucional à época da promulgação da Constituição de 1988, optou por incorporá-la ao ordenamento constitucional. Dado o princípio da supremacia da constituição, é incontestável que os demais atos normativos devam a ela se submeter, sejam eles cronologicamente anteriores, como no caso do Código Penal de 1940, ou não. Mas não há por que acreditar que o constituinte pre-

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tendesse operar tal distinção ao tratar da organização do trabalho. Quando da promulgação da Constituição em 1988, o extinto TFR já havia, em 1982, editado a súmula n. 115. Logo, se já havia distinção de competência e a intenção do constituinte fosse consagrar os requisitos de generalidade e de coletividade no tocante à concepção de organização de trabalho, tê-lo-ia feito expressamente na oportunidade, o que não ocorreu. Nesse sentido deu-se o entendimento do Ministro José Néri da Silveira, que, participando do julgamento do Tribunal Federal de Recursos, teve seu voto vencido. Para o Ministro, “existente na legislação penal brasileira, com anterioridade à restauração da Justiça Federal, no Código Penal, descrição de crimes contra Organização do Trabalho, se o constituinte quis atribuir aos Juízes Federais a competência para processo e julgamento de crimes contra a Organização do Trabalho, estes são os que a Lei Penal assim considera”, sem obstar que, posteriormente, outros crimes sejam incluídos no rol. Realmente, pode-se compreender que delitos não incluídos no Título IV gerem dúvidas quanto a serem considerados contra a organização do trabalho, para fins de definição da competência da Justiça Federal. Essa dúvida, em relação ao crime do artigo 149 do Código Penal, parece ter sido superada quando o STF decidiu que reduzir qualquer trabalhador a condição análoga à de escravo, além de atingi-lo em sua liberdade individual, atenta contra a organização constitucional do trabalho. Anteriormente, quando em vigor a Lei n. 4.330/64 e o Decreto-lei n. 7.090/46, que, nos artigos 29 e 14, respectivamente, previam infrações contra a organização do trabalho, poderia até haver espaço para discriminar espécies distintas de infrações: aquelas previstas no Código Penal e as outras constantes da legislação extravagante, sendo as primeiras relacionadas à competência federal. Mas é difícil aceitar que o limitado rol de crimes do Título IV da Parte Especial do Código Penal, uma vez revogada toda previsão adicional de crimes contra a organização do trabalho, não se identifique com a relação mencionada na Constituição de 1988.

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Quanto à interpretação dada à organização do trabalho e que hoje no meio jurídico brasileiro prevalece, merece transcrição a manifestação do Ministro José Néri da Silveira. Embora realizada na década de 1970, aponta com clareza para o fato de que “diante do preceito constitucional genérico, não é possível dar-lhe interpretação restritiva, assim como não incumbiria emprestar-lhe interpretação extensiva. Por igual, em matéria de competência, não podemos restringir se o legislador constituinte não o quis. Se ele diz que todos os crimes contra a Organização do Trabalho são do âmbito da Justiça Federal, parece que o intérprete tem que buscar, na legislação ordinária, esses crimes. E onde eles estão descritos? Nos arts. 197 a 207, do Código Penal, desde antes da Carta Constitucional.”

Em relação especificamente aos aspectos de generalidade e de coletividade, apesar de estes serem fundamentais para o atual conceito, não parece haver nada que os justifique e sustente no direito positivo brasileiro. Não existe no ordenamento jurídico parâmetro objetivo que permita o delineamento do que seria coletivo na organização geral do trabalho. Embora o direito do trabalho tenha substancial fonte em convenções coletivas, aparenta ser inadequado extrair o conceito de coletivo, a partir do significado de “convenção”, previsto no art. 611 da CLT.8 Caso contrário, os crimes contra a organização do trabalho somente estariam configurados se envolvessem a lesão de interesses de dois ou mais sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais. Tampouco há critério para determinar quantos trabalhadores precisam ser atingidos para que se tenha ataque à coletividade. Basta que seja mais de um – que não deixa de ser número reduzido – ou há necessidade de que se alcancem dezenas de trabalhadores?

“Art. 611. Convenção Coletiva de Trabalho é o acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho.”

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A esse respeito, cite-se novamente o Ministro José Néri da Silveira quando argumenta que “no nosso sistema, quer do constitucional, quer da legislação ordinária, dispõe-se a respeito do trabalho, da categoria jurídica ‘trabalho’. Não se dispõe, jamais se dispôs, dentro desse conceito de coletividade apenas. Toda a nossa estrutura do direito do trabalho se definiu a partir do contrato individual do trabalho, da relação de emprego, com as características próprias definidas na legislação específica do trabalho.” Também o legislador penal de 1940, quando da edição do título “Dos crimes contra a organização do trabalho”, não trouxe, expressa ou implicitamente, as noções de sistema geral e de trabalhadores coletivamente considerados. A própria leitura da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal revela que “a proteção jurídica já não é concedida à liberdade do trabalho, propriamente, mas à organização do trabalho, inspirada não somente na defesa e no ajustamento dos direitos e interesses individuais em jogo, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum de todos. Atentatória, ou não, da liberdade individual, toda ação perturbadora da ordem jurídica, no que concerne ao trabalho, é ilícita e está sujeita a sanções repressivas, sejam de direito administrativo, sejam de direito penal”. Em suma, o legislador, ao tipificar as condutas previstas nos artigos 197 a 207 do Código Penal, quis ampliar a proteção dada ao trabalho para além da simples tutela individual, mas sem excluí-la, protegendo também o trabalho enquanto valor fundamental do Estado brasileiro. Portanto, não houve restrição, mas sim ampliação do âmbito de proteção dado ao trabalho. Entender que não há crime quando é atingido direito de um único trabalhador retira impropriamente a tutela do bem jurídico em voga. Nesse sentido, é de difícil assimilação o entendimento firmado no CC 135.023.9 Foi reconhecida a competência da Justiça Estadual, relativamente ao

BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça, Terceira Seção, Rel. Min. Convocado Walter de Almeida Guilherme, DJe de 5/12/14.

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julgamento dos crimes previstos nos artigos 149 e 203 do Código Penal, supostamente praticados contra único trabalhador, ao argumento de que “não ficou demonstrada a prática de crime contra a organização geral do trabalho ou contra trabalhadores considerados coletivamente, não atraindo, portanto, a competência da Justiça Federal.” A decisão desconsiderou o precedente do STF, firmando no RE 398.041, relativamente à redução à condição análoga a de escravo, e reforçou a competência estadual baseada no quantitativo de vítimas, de forma que crime inscrito como atentatório à organização do trabalho (Título IV) não foi considerado como atentatório à organização do trabalho para definição de competência. Não se esclarece como é possível que a conduta que, reconhecidamente, não lesa a organização do trabalho, seja submetida a julgamento perante a Justiça Estadual. Se não é cabível o enquadramento em tipo penal genérico, a exemplo do estelionato, dano ou constrangimento ilegal, deve-se reconhecer a atipicidade da conduta porque não lesado o bem jurídico tutelado no Título IV da Parte Especial. Apreciar conduta típica capitulada nos artigos 197 a 207, por órgão judicial que não detém competência para processar e julgar crimes contra a organização do trabalho, representa contradição insolúvel.

5 Proposta conceitual A discussão em torno do conceito de organização do trabalho, no atual quadrante, conduz a situação de perplexidade. Como se exige que haja lesão ao sistema geral de proteção ou a trabalhadores coletivamente considerados para determinar a competência penal da Justiça Federal, nas ocasiões em que apenas um obreiro for atingido deixará de haver crime contra a organização do trabalho? A frustração de direitos de um único trabalhador, mediante fraude ou violência, tipificará o crime previsto no art. 203 do Código Penal e será julgado pela Justiça Estadual, a despeito de integrar o título dos crimes contra a organização do trabalho? Parece criar-se

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uma figura híbrida de crimes insertos no título da organização do trabalho mas que não atentam contra a organização do trabalho, haja vista que são julgados pela Justiça Estadual. Enfim, é possível haver algum crime entre os artigos 197 a 207 que não seja contra a organização do trabalho e, aí sim, de competência da Justiça Estadual? Para os que defendem que a mera lesão individual de direito trabalhista não atenta contra a organização do trabalho, a resposta seria positiva, por mais tautológica que pareça a afirmação: crimes do título “contra a organização do trabalho” que não ferem a organização do trabalho... Na tentativa de oferecer proposta que afaste o embaraço jurídico provocado pela visão coletivista e a fim de evitar impertinentes alegações de lesão a direito fundamental do trabalhador, em situações em que a lesão não ultrapassa a esfera patrimonial, deve-se entender que a organização do trabalho prevista no Código Penal e na Constituição Federal de 1988 são sinonímicas. E nesse conceito compreende-se o modelo de relações de trabalho em vigor na sociedade brasileira. O que realmente importa na tarefa de conceituação do que seria organização do trabalho é observar o tratamento sistêmico dado pela CLT e pela Constituição Federal de 1988 ao valor trabalho. Com isso, percebe-se que o propósito da tutela penal é o de assegurar ao homem a manutenção dos princípios fundamentais sobre os quais o trabalho se estrutura no Brasil. A organização do trabalho possui determinada conformação, pois a ordem jurídica determina o modelo das relações de trabalho por ela regulado. Assim, quando se reduz um trabalhador a condições análogas à da escravidão (art. 149) ou se atenta contra a liberdade de trabalho (art. 197), o que se tem é afronta à organização de trabalho modelada pelo sistema brasileiro de relações trabalhistas. Na compreensão do nosso sistema justrabalhista, é necessário refletir especialmente sobre dois momentos históricos: aquele em que surge a CLT e o da promulgação da Constituição de 1988. Esses dois marcos regulatórios são, a um só tempo, os pilares sobre os quais está estruturado o direito do trabalho e as balizas que o demarcam,

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do ponto de vista normativo (ASSIS, 2010), com necessários reflexos sobre o direito penal. Por meio da CLT, normatizou-se a área sindical, com estabelecimento de controle político-administrativo do então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio sobre toda a estrutura e atuação operacional dos sindicatos. Houve estruturação corporativista dos sindicatos, observadas as seguintes características: agregação profissional (e econômica) mediante o conceito-motor de categoria; ausência do sindicato dos efetivos locais de trabalho; proibição de comunicação institucional entre as distintas categorias e entre o próprio conjunto da classe trabalhadora; unicidade sindical; financiamento compulsório de toda a estrutura oficial do sindicalismo. Permitia-se a cooptação de lideranças sindicais, mediante canais de sua inserção na burocracia estatal, seja na então construída Justiça do Trabalho (representação classista nas Juntas de Conciliação e Julgamento e Tribunais), seja nos então desenvolvidos Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs (dirigentes recrutados na estrutura sindical). Operava-se, ainda, a absorção dos conflitos coletivos para dentro do Estado, através do processo judicial denominado dissídio coletivo e sua sentença normativa (poder normativo judicial). No plano do Direito Individual do Trabalho, institucionalizou-se padrão normativo do tipo regulado, que se mostrou significativamente funcional para instigar a organização do mercado de trabalho em país com industrialização iniciante e promover a rápida e ampla inclusão social dos setores partícipes do célere processo de urbanização então deflagrado (DELGADO, DELGADO, 2012, 208). A Constituição de 1988 trouxe mudanças relevantes no Direito Coletivo do Trabalho brasileiro. Eliminou o controle político-administrativo do Ministério do Trabalho sobre o sindicalismo (art. 8º, I, da CF/1988); reconheceu a ampla prerrogativa sindical de atuação coletiva no âmbito administrativo e judicial (art. 8º, III); favoreceu a negociação coletiva trabalhista, via entidades sindicais (art. 8º, VI, e art. 7º, VI, XIII, XIV e XXVI). A obra renovadora foi continuada em 1999, com a EC n. 24, que extinguiu a representação classista

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no interior do Judiciário Trabalhista. Em sua dimensão individual, houve impressionante adequação da CLT à nova Constituição da República, que incorporou inúmeros de seus institutos jurídicos clássicos, conferindo-lhes status de direitos fundamentais. No tocante aos domésticos, sua real inclusão jurídico-social deu-se apenas com a Constituição de 1988 (art. 7º, parágrafo único), que estendeu vários direitos à categoria, uma vez que a Lei n. 5.859/73, que timidamente iniciou este processo inclusivo, apenas garantiu dois direitos trabalhistas a tais empregados (anotação de CTPS e férias anuais remuneradas), além de sua inserção no sistema previdenciário (DELGADO, DELGADO, 2012, 211). Desde a EC n. 45/2004, o acesso ao Judiciário Trabalhista foi franqueado a toda pessoa natural que estabeleça relação de trabalho com alguém. Houve, de fato, significativa ampliação da competência judicial trabalhista, referindo-se à relação de trabalho e não mais somente à relação de emprego. A nova ordem constitucional rompe com um dos principais pilares do velho modelo: o controle politico administrativo do Estado sobre a estrutura sindical. Serão inaugurados, após seis décadas, incentivos e reconhecimento à negociação coletiva, no seio da sociedade civil. Além disso, sem prejuízo de outros direitos e garantias que visem à melhoria da condição dos trabalhadores, a vigente Constituição da República traz no artigo 7º do capítulo dos direitos sociais a maior parte dos direitos fundamentais e garantias trabalhistas constitucionais. Trata-os, assim, não mais como direitos individuais em sentido estrito, mas como direitos sociais vinculados ao trabalho. A Constituição de 1988, a fim de salvaguardar os trabalhadores, além de garantir-lhes relação empregatícia protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa (art. 7º, I) e liberdade de trabalho, institui preceitos segundos os quais toda e qualquer relação de trabalho deve-se pautar. Ao longo do artigo 7º, ao trabalhador se assegura não só seguro-desemprego (inciso II), fundo de garantia do tempo de serviço (inciso III) e salário mínimo (inciso IV), mas também piso salarial que seja proporcional à extensão e à complexidade do trabalho (inciso VI), irredutibilidade do salário (inciso

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VII) e décimo terceiro salário baseado na remuneração integral ou no valor da aposentadoria (VIII). Toda espécie de salário é protegida na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa (inciso X). Garante-se, também, que a duração do trabalho normal não seja superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais (inciso XIII) e que a do trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento seja de seis horas, devendo, ainda, o trabalho noturno possuir remuneração superior à do diurno (inciso IX). Além disso, assegura a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inciso XXII), devendo para as atividades penosas, insalubres ou perigosas ser, na forma da lei, pago adicional à remuneração (inciso XXIII). Estão também vedadas pela Constituição a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (inciso XXX); a discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (inciso XXXI); a distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos (inciso XXXII), e o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos (inciso XXXIII). Outros preceitos constitucionais de cunho trabalhista igualmente relevantes na delimitação daquilo que seria a organização do trabalho têm lugar do artigo 8º ao 11º da Constituição Federal. Eles garantem, dentre outros, o direito à livre associação profissional ou sindical e o direito de greve. Do modelo juslaboral então em vigor quando do advento do Código Penal até aquele que passou a existir com a promulgação da Constituição Federal de 1988, algumas mudanças podem ser notadas. Tanto o sistema de organização de trabalho anterior quanto o vigente tinham como pilares a liberdade de trabalho, no sentido de que todos podem escolher o trabalho, profissão ou ofício que desejam exercer, como também a liberdade de associação. A violação desses direitos é punida pelas condutas tipificadas nos artigos 197 a 200 do Código Penal. Em ambos os modelos, proíbe-se o uso

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da violência ou grave ameaça para impedir o normal exercício de atividade profissional. O impedimento ao exercício de atividade somente é possível, a partir do mais recente sistema juslaboral, quando houver regular exercício do direito de greve no serviço público. Por este motivo, o artigo 201, que veda participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho em obra pública, tornou-se de mais limitada aplicação. Com isso, é possível perceber que, em alguns casos, o modelo juslaboral delineado pela Constituição Federal exige nova interpretação dos tipos penais. A frustação de todo e qualquer direito assegurado por lei trabalhista é outro exemplo de conduta defesa pelo ordenamento jurídico, encontrando tipificação no artigo 203 do Código Penal. Realmente, não haveria sentido em se enumerar belíssimo rol de direitos que pudessem ser facilmente suplantados mediante engano ou coação do trabalhador, sem previsão de sanção para a conduta ilícita. Até por isso a Constituição Federal reforçou a proibição da conduta ao proteger toda espécie de salario e ao insistir no caráter criminoso de sua retenção dolosa (art. 7º, X). O normal desenvolvimento da relação laboral, sem uso de fraude, tem proteção nos artigos 206 e 207 do Código Penal, que proíbem o transporte do obreiro para o exterior ou mesmo dentro do território nacional. Em verdade, a antiga redação do art. 206 vedava a conduta de “aliciar trabalhadores, para o fim de emigração”, o que poderia ter alguma justificativa no contexto do modelo de organização do trabalho existente, tal como evitar que determinadas regiões ficassem despovoadas. No entanto, em 1993, foi conferida nova redação ao tipo penal e a conduta somente se concretiza caso haja o elemento fraude no recrutamento de trabalhadores. E se esse é o sentido que se deve dar ao tipo penal para guardar coerência com a organização do trabalho moderna, o caput do art. 207 destoa do modelo constitucional, porque somente se deve aceitar como crime o aliciamento fraudulento ou involuntário. O exercício de atividade laborativa em regiões outras tornou-se uma oportunidade e, muitas vezes, uma necessidade. Não só em âmbito

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nacional, mas mesmo em caráter internacional, a mão de obra desloca-se para onde existem empregos disponíveis. Se os trabalhadores foram ludibriados com falsas promessas de boas condições de trabalho, pode estar configurado o estelionato ou mesmo o § 1º do art. 207. Mas hoje em dia tornou-se comportamento normalmente permitido recrutar trabalhadores para exercer atividade laborativa em localidades as mais diversas. As transformações e influências que a sociedade contemporânea sofre relacionam-se, entre outros fatores, ao desenvolvimento científico e tecnológico e às mudanças na economia em nível mundial. Tais fatos expuseram, em certa medida, o esgotamento dos modelos de produção rígido, pautados na ótica do consumo de massa e de um trabalhador executando tarefas prescritas. Ocorreu a introdução do modelo de produção flexível que provocou mudanças de base técnica e organizacional do trabalho e no perfil profissional requerido no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores. Atualmente, limitar a atuação de trabalhadores a determinada parte do território nacional importa em restringir a expansão da economia, a busca por oportunidades e a satisfação de interesses individuais, em frontal choque com o modelo juslaboral pós-1988. Desde que não exista fraude, o deslocamento de trabalhadores passou a ser socialmente aceito no mundo globalizado. E como afirma Mir Puig, não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto (PUIG, 1976, 154). Também sofre restrições, em face do atual modelo de organização do trabalho, o crime estabelecido no art. 204: “frustrar, mediante fraude ou violência, obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho”. O tipo visa a tutelar o interesse do Estado em garantir a reserva de mercado para brasileiros. No entanto, a Constituição de 1988 dispõe que brasileiros e estrangeiros são iguais perante a lei e, evidentemente, muitas, se não todas, restrições de acesso a funções entre nacionais e estrangeiros deixaram de existir. A lei brasileira determinava, por exemplo, que, nos casos de falta ou cessação de serviço, a dispensa do empregado estrangeiro deve preceder à de

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brasileiro que exerça função análoga, o que não encontra respaldo no vigente modelo juslaboral. Assim, percebe-se como a legislação penal fica condicionada ao modelo de organização do trabalho vigente em determinado momento histórico. Diante da dinâmica realidade das relações laborais, a interpretação da lei penal transforma-se, adaptando-se ao modelo. A organização do trabalho, então, encontra sua definição nos limites fornecidos pelo regime jurídico quando da regulamentação das relações de trabalho. O modelo juslaboral, quando obedecido, legitima as relações de trabalho, justificando a proteção que lhes é dada. Por outro lado, toda e qualquer tentativa de burla ou violação desse modelo enseja a potencial reprimenda estatal a fim de fazer valer a organização pretendida pelo Estado. Em suma, se o direito pátrio entendeu que a relação de trabalho deve, por exemplo, pautar-se segundo a liberdade e a não discriminação, bem como possuir valor mínimo de salário, isso é parte do modelo abstrato chamado “organização do trabalho” pelo legislador, ao qual todas as relações que se pretenderem legitimas devem conformar-se, sob pena mesmo de sofrerem as consequências impostas pelo direito penal. Nenhum sentido há em se conceber os atentados à organização do trabalho com base no número de indivíduos lesados. A quantidade de pessoas ofendidas só serve como parâmetro para justificar a criminalização ou não de uma conduta, em face do maior ou menor desvalor que gera. É questão de política criminal não considerar delito, por exemplo, o abandono individual de trabalho, com violência, conduta que não se enquadra no art. 200 do Código Penal. Não obstante a conduta esteja em dissonância com o modelo de organização do trabalho em vigor – que não consente com o uso da violência para impedir o normal exercício de atividade profissional – está fora da esfera penal. Todavia, todas aquelas condutas que estão inseridas no Título IV do Código Penal e que não são incompatíveis com o modelo juslaboral trazido pela Constituição de 1988 constituem crimes contra a organização do trabalho e, como tais, devem ser julgados pela Justiça Federal.

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6 Conclusão Após examinar os três pontos que se relacionam diretamente à definição que se dá à expressão “organização do trabalho”, surgem os critérios necessários para reconhecer as correspondentes infrações e a definição do juízo competente para processá-las. Pode-se afirmar que o legislador penal, de certa maneira, adiantou-se ao texto constitucional de 1946 e 1969, pois percebeu que a proteção jurídica à categoria do trabalho deveria, mais do que apenas a liberdade do trabalho propriamente dita, alcançar a organização do trabalho, inspirada não somente na defesa e no ajustamento dos direitos e interesses individuais, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum. Enveredou pelo mesmo caminho a Constituição Federal de 1988, elencando diversos preceitos de cunho protetivo do trabalho e dos trabalhadores e lhes concedendo direitos e garantias a fim de assegurar modelo de trabalho compatível com o Estado Democrático de Direito. Reconhecendo a relevância do trabalho, optou o constituinte, da mesma forma que o de 1946 e 1967, por atribuir à Justiça Comum Federal a competência para processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, aqueles elencados pelo legislador infraconstitucional nos artigos 197 a 207 do Código Penal. A Constituição Federal de 1988, no inciso VI do artigo 109, faz referência literal aos crimes praticados contra a organização do trabalho, tratando-os como uma das hipóteses expressas cujo processamento e julgamento são de competência da Justiça Federal. Não há por que acreditar que o constituinte tivesse pretendido operar alguma distinção ao tratar da organização do trabalho em face de tão unívocos termos. Frise-se que não se limitam a esses artigos os comportamentos que podem ferir o modelo juslaboral impresso pela ordem jurídica às relações de trabalho no Brasil. O art. 149 do Código Penal, que cuida do crime de redução à condição análoga à de escravo, foi reconhecido, pelo STF, como elemento integrante da proteção da organização do trabalho e, portanto, de competência da Justiça Federal. Mas não

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se pode olvidar que o rol de infrações foi bastante reduzido com a revogação da Lei n. 4.330/64 e do Decreto-lei n. 7.090/46. Em relação especificamente aos aspectos de generalidade e de coletividade, apesar de estes serem fundamentais para o atual conceito empregado jurisprudencialmente, não parece haver nada que os justifique e sustente no direito positivo brasileiro. Não existe no ordenamento jurídico parâmetro objetivo que permita o delineamento do que seria coletivo na organização geral do trabalho. Tampouco há critério para determinar quantos trabalhadores precisam ser atingidos para que se tenha ataque à coletividade. Se a conduta não lesa a organização do trabalho, por não atingir o sistema geral de órgãos e instituições que preserva os direitos e os deveres dos trabalhadores em coletividade, coerente seria não declinar a competência para a Justiça Estadual. Se não é cabível a desclassificação para outro tipo penal de caráter genérico, deve-se reconhecer a atipicidade da conduta porque não lesado o bem jurídico tutelado. Em verdade, a quantidade de indivíduos lesados somente tem relevância para fins de previsão em abstrato de algumas infrações, a exemplo do art. 206, que exige que o aliciamento alcance “trabalhadores”, não para definir o que seria organização do trabalho. O tipo penal ao indicar, em casos específicos (artigos 200, 206 e 207) o número de agentes ou de vítimas para a concretização do tipo penal, já contém o desvalor da conduta e do resultado necessários à prática do crime. Quando não há esta exigência, como ocorre nos demais delitos do Título IV, não é correto presumir ou supor que ela exista. A decisão do STF proferida no julgamento do RE 398.041 reforça a tese de que compete à Justiça Federal julgar os crimes dos artigos 197 a 207. Se anteriormente o STF exigia a lesão da organização geral do trabalho ou dos direitos dos trabalhadores coletivamente considerados para definir a competência penal da Justiça Federal, a partir de 2006 entendeu suficiente a ofensa individual que alcance aspectos concernentes à liberdade, autodeterminação, autodesenvolvimento e dignidade do homem.

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A posição assumida pelo STF vai ao encontro da proposta conceitual apresentada neste trabalho. Assim, o que realmente importa na tarefa de conceituação do que seria “organização do trabalho” é observar o tratamento sistêmico dado pela CLT e pela Constituição Federal de 1988 ao valor trabalho. A organização do trabalho possui determinada conformação histórica e sofreu algumas alterações entre os dois modelos referenciados. Ela deve ser entendida como o modelo juslaboral protegido e promovido pela ordem jurídica brasileira e que, portanto, rege todas as relações de trabalho no território nacional, sejam individuais ou coletivas. A correta concepção do bem jurídico “organização do trabalho” é exigência para atingir a proteção do valor fundamental do trabalho, cuja relevância se nota quando o ordenamento socorre-se da tutela penal para lhe garantir a integridade.

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A Participação do Senado Federal no Controle Difuso de Constitucionalidade Fábio Martins de Andrade Advogado, Doutor em Direito Público pela UERJ, Mestre pela UCAM e autor de diversos artigos para revistas especializadas

Resumo

Abstract

O artigo pretende resgatar a importância do papel do Senado Federal no controle jurisdicional difuso de constitucionalidade no direito brasileiro atual. A partir de análise crítica do Texto Constitucional, busca-se rediscutir a atual importância da resolução do Senado Federal (inciso X do art. 52), especialmente à luz do recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Reclamação nº 4.335, ocasião em que o Pleno discutiu se o dispositivo sofreu mutação constitucional.

The article intends to recover the importance of the role of the Federal Senate in the diffuse jurisdictional control of constitutionality in current Brazilian law. From a critical analysis of the Constitutional Text, it is sought to rediscuss the current importance of the Federal Senate resolution (item X of article 52), especially in the light of the recent judgment by the Supreme Court of Complaint n. 4,335, when the Plenary discussed whether the provision has changed by Constitutional mutation.

Palavras-chave: Direito Constitucional – Controle de constitucionalidade – Senado Federal

Keywords: Constitutional Law – Judicial review of legislation – Federal Senate.

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1 Introdução O tempo passa e algumas relevantes questões jurídicas permanecem complexas. Completados 80 anos desde a sua introdução na Constituição de 1934, a participação do Senado Federal no controle jurisdicional difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos no Brasil permanece suscitando diferentes interpretações acerca de seus variados aspectos. Ao longo de todo esse tempo, incumbiu ao Senado Federal a competência privativa para veicular o ato normativo próprio (resolução) com o objetivo de emprestar eficácia contra todos (erga omnes) à decisão previamente proferida pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal que tivesse declarado a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Em sentido técnico, a resolução sempre suspendeu a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, não a retirando da ordem jurídica, mas paralisando a sua aplicação no tempo. Na prática, esse ato do Senado Federal atribuía maior abrangência a decisão do STF, que antes se limitava a solução do caso concreto decidido entre as partes envolvidas na lide, para alcançar toda a sociedade. Em um primeiro momento, cabe analisar a evolução histórica da participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, perpassando todas as Constituições promulgadas a partir de 1934 (ou seja, 1937, 1946, 1967 + EC 1/69 e, finalmente, a de 1988). Durante todo esse período de 80 anos cabe registrar que a Carta de 1937 foi a única que silenciou quanto ao ponto específico (participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade). A justificativa é simples: durante os anos de ditadura do Governo Vargas (Estado Novo) verificou-se o germe da hipertrofia do Poder Executivo em detrimento dos demais Poderes, inclusive com o fechamento do Congresso Nacional. Com a previsão do instituto na Constituição de 1988, enumeramos algumas questões que remanescem controvertidas, em maior

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ou menor medida, como a natureza jurídica do ato (resolução), a suspensão da eficácia da lei, quais atos normativos estão sujeitos à suspensão da eficácia, o alcance da expressão “no todo ou em parte”, a obrigatoriedade (ou não) em realizar o ato e, por fim, os efeitos da resolução. Assinalada a evolução histórica do instituto, e esmiuçado o art. 52, X, da Constituição Federal vigente, cabe registrar a atual importância da resolução do Senado Federal que suspende a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF. Nesse sentido, releva destacar a crescente força dos precedentes do STF no cenário jurídico nacional e a relação do Senado Federal com as decisões do STF para desembocarmos na principal questão controvertida hoje. Indaga-se sobre eventual mutação constitucional que teria sido sofrida pelo instituto nos últimos anos, tal como sustentado pelo Ministro Gilmar Mendes em sua obra. Segundo essa linha de pensamento, o crescente fenômeno de objetivação do modelo difuso de controle de constitucionalidade conduz a atribuição, pelo menos em sentido prático, de eficácia contra todos diretamente e independente da manifestação do Senado Federal. A resolução se prestaria, desse modo, apenas e tão somente a dar mera publicidade no Diário do Congresso àquela decisão anterior do STF. No sentido contrário, colocamos um contraponto: não seria hipótese de silêncio eloquente? Afinal, diversas modificações foram introduzidas tanto na Constituição da República como também na legislação processual nos últimos anos, sendo que não se busca de modo direto ou indireto regular ou limitar o alcance e a extensão do dispositivo constitucional em foco (inciso X do art. 52). Ao contrário, com o crescente movimento de objetivação do controle difuso, observa-se o incremento de novos institutos, instrumentos e mecanismos, que dialogam em maior ou menor medida com aqueles já existentes. Como decorrência lógica, é necessário promover a readequação e a acomodação de todos no universo onde orbitam. Sob essa perspectiva, não se vislumbra qualquer hipótese de mutação constitucional do inciso X do art. 52 da Lei Maior, no

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sentido que de serve apenas para dar publicidade à decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade, como veremos adiante. Felizmente, no ano que o instituto completa oitenta anos, foi brindado com a decisão mais relevante do STF acerca desse tema específico. A referência diz respeito ao resultado do julgamento da Reclamação 4.335, na qual o relator (Ministro Gilmar Mendes) fundamentou o seu voto, dentre outras razões, na “mutação constitucional” verificada em torno do dispositivo, relegando-o ao plano de mera reminiscência histórica. Ao final do julgamento, por maioria, nessa questão específica em torno da interpretação e aplicação do inciso X do art. 52, o STF decidiu que não ocorreu qualquer mutação constitucional. E mais, em princípio, não seria possível concebê-la sem a modificação expressa do dispositivo. Houve quem entendesse, ademais, que tal alteração encontraria óbice na separação de Poderes, erigida a cláusula pétrea. De modo subjacente a toda essa discussão, encontra-se perpassada a crescente influência da objetivação ou abstrativização do controle difuso que, ao longo dos últimos anos, promoveu diversas modificações tanto no texto constitucional (com a criação da repercussão geral e da súmula vinculante) e na legislação processual (com a alteração do art. 557, que atribuiu maior poder ao relator e a possibilidade de que órgão fracionário decida questão já solucionada pelo seu Pleno, órgão especial ou Tribunais Superiores, dentre outras). Embora estejamos caminhando – até a passos largos – nessa direção, ainda não chegou ao ponto de atribuir eficácia erga omnes ao controle difuso independente da participação do Senado Federal. Com isso, é legítimo esperarmos uma revalorização da participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, especialmente levando-se em conta orientação do STF indicada pelo seu atual Presidente (Ministro Ricardo Lewandowski) no sentido de maior autocontenção nas questões relacionadas à divisão e separação dos Poderes, com maior harmonia entre eles.1 Sintomático nesse sentido é o seguinte trecho pinçado do discurso de posse do Ministro Ricardo Lewandowski como Presidente do STF, em 10.09.2014, quando colocou alguns objetivos que se dispôs a perseguir na sua gestão: “Propomo-nos,

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Em conclusão, espera-se que nos próximos meses o STF defina com maior clareza qual é o atual papel do Senado Federal quando participa no controle difuso de constitucionalidade através de sua resolução, com a delimitação de seu alcance e extensão na realidade jurídica atual, sobretudo quando cotejadas com as diferentes novidades que têm sido introduzidas nos últimos anos (como repercussão geral das questões constitucionais e súmula vinculante, por exemplo). Tais inovações, longe de dispensar a participação do Senado Federal no controle difuso, apenas reforçam a sua necessidade, desde que observadas as situações de pertinência, cada vez mais específicas e circunscritas. Hoje no controle difuso, em princípio, a participação do Senado Federal limita-se à decisão tomada com o reconhecimento de repercussão geral (ou não, se anterior à vigência da lei que a criou) e que não tenha sido objeto da edição de súmula vinculante. Dado o reduzido número de súmulas vinculantes editadas pelo STF até hoje, verifica-se o recrudescimento da participação do Senado Federal no controle difuso (e de sua resolução) para suspender a execução de lei declarada inconstitucional nos dias atuais.

2 Evolução histórica Na Constituição de 1934, o Capítulo V dedicou-se à coordenação dos poderes, destacando no art. 88 a importância do Senado Federal naquele cenário, a quem incumbia “promover a coordenação ademais, a respeitar e fazer respeitar a independência e harmonia entre os Poderes, estimulando nos juízes a adoção da salutar atitude de self restraint, de autocontenção, praticada pelas cortes constitucionais dos países democráticos. Com isso queremos dizer que o Judiciário só deve atuar, para suprir eventual lacuna normativa ou inércia administrativa, em caráter excepcional e provisório, e apenas quando a decisão pretoriana se mostrar necessária e inadiável, permitindo, como regra, que o Legislativo ou o Executivo – representantes diretos da soberania popular – possam concluir as suas deliberações no tempo que considerem politicamente mais adequado para o País”. O discurso foi disponibilizado pelos principais veículos de notícias jurídicas.

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dos poderes federaes entre si, manter a continuidade administrativa, velar pela Constituição, collaborar na feitura de leis e praticar os demais actos da sua competência”.2 Certa vez em audiência com o Ministro Celso de Mello, em discussão sobre aspectos históricos sobre o tema objeto do presente estudo, então aplicável no caso concreto então submetido à apreciação, ele nos alertou para o papel secundário a que foi relegado o Senado Federal pela dicção da Constituição de 1934.3 A novidade em foco foi estampada no art. 91, IV, que atribuiu a competência ao Senado Federal – órgão incumbido de coordenar os Poderes da República entre si (art. 88) – para: “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”. Importa assinalar a abrangência do dispositivo, especialmente se cotejado com os das Constituições subsequentes. Refere-se de maneira bastante ampla a “qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento”. Além disso, não limita a declaração de inconstitucionalidade pelo STF, mas refere-se ao Poder Judiciário, em uma época que só se conhecia no ordenamento jurídico nacional o controle difuso (exercido por qualquer juiz singular ou tribunal). Nessa dicção parece, à primeira vista, que a única limitação ao dispositivo é encontrada no necessário trânsito em julgado, pouco importando de qual órgão jurisdicional emanou. Walter Costa Porto escreveu que: “A Constituição de 1934, afinal, concedeu um papel especial ao Senado, de ‘colaboração’ com a Câmara e no exercício do Poder Legislativo. E lhe incumbiu de ‘promover a coordenação dos poderes federais entre si’, a modos – como alguns analistas indicaram – de um novo Poder Moderador” (cf. AZEVEDO, José Afonso de Mendonça. Elaborando a constituição nacional: atas da Subcomissão elaboradora do anteprojeto 1932-1933. Ed. fac-similar (1933). Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p. XXIV). 3 De fato, pela conjugação dos artigos 22 e 88, tinha-se que o Poder Legislativo seria exercido pela Câmara dos Deputados, com a colaboração do Senado Federal, a quem incumbia colaborar na feitura das leis sobre os assuntos expressamente arrolados nas alíneas do inciso I do art. 91. Quando em foco esses assuntos, o Legislativo se “bicameralizava” com a colaboração do Senado. Nos demais, o trâmite se limitava ao âmbito da Câmara dos Deputados. 2

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Roberto Macedo, em época contemporânea e em curto comentário acerca deste dispositivo constitucional, pontuou-o assim: “Inútil. Complicação quase burocrática, decorrente da prerrogativa de velar pela Constituição. A verdade é que, declarada inconstitucional qualquer resolução, não seria necessário esse crivo. Competiria ao Executivo suspendê-la”.4 À expressa referência constante neste dispositivo ao “Poder Judiciário” considerado em sua generalidade, o art. 96 estabeleceu a limitação ao âmbito da Corte Suprema: “Quando a Corte Suprema declarar inconstitucional qualquer dispositivo de lei ou ato governamental o Procurador Geral da República comunicará a decisão ao Senado Federal, para os fins do art. 91, n. IV, e bem assim à autoridade legislativa ou executiva, de que tenha emanado a lei ou o ato”. A resolução do Senado Federal emprestou, e ainda empresta, efeito erga omnes à decisão proferida apenas interpartes pela Corte Suprema, quando julga recursos de sua competência em que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo emanado do Poder Público.5 Em 1937, a Constituição alterou o nome do Senado Federal, passando a denominá-lo Conselho Federal: “O Parlamento Nacional compõe-se de duas Câmaras: a Câmara dos Deputados e o Conselho Federal” (cf. art. 38, § 1º).6 MACEDO, Roberto. Guia Prático da Constituição Brasileira: Contendo um confronto entre a Constituição de 1891, a Reforma de 1926 e a atual Carta Magna. São Paulo: s/ ed., agosto de 1934, p. 33. 5 Segundo o Ministro Gilmar Mendes: “Parecia evidente aos constituintes que a suspensão da execução da lei, tal como adotada em 1934, importava na extensão dos efeitos do aresto declaratório da inconstitucionalidade, configurando, inclusive, instrumento de economia processual. Atribuía-se, pois, ao ato do Senado, caráter ampliativo e não apenas paralisante ou derrogatório do diploma viciado. E, não fosse assim, inócuo seria o instituto com referência à maioria das situações formadas na vigência da lei declarada inconstitucional” (MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 162, abr./jun. 2004, p. 152). 6 Em comentários à Carta de 1937, Araújo Castro pontuou que a “dualidade de Câmaras” era adotada pela maioria das nações e defendida pela maioria dos escritores. Todavia, registrou que à época, “a unidade de câmara é adotada pela 4

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No que tange à competência do Senado Federal (designado ‘Conselho Federal’) para atribuir efeito erga omnes às decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal, não houve qualquer dispositivo constitucional a respeito. Em 1946, a Constituição devolveu a competência do Senado Federal para atribuir efeito erga omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal, que foi contemplada no art. 64: “Incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.7 Quanto à abrangência da norma, aparentemente restringida em relação ao texto de 1934, passando de “lei ou ato, deliberação ou regulamento” para apenas “lei ou decreto”, os doutrinadores divergiram da interpretação adequada ao dispositivo, isto é, numa acepção mais ampla ou restrita.8 Alemanha, Letônia, Lituânia, Turquia, Finlândia, Iugoslávia e Espanha” (CASTRO, Araújo. A Constituição de 1937. Ed. Fac-similar (1938). Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 139). 7 José Duarte ressaltou emenda proposta por Atílio Viváqua, quando da discussão do anteprojeto: “Suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”. O autor destacou em sua obra que: “Essa emenda visava à restauração do princípio constante da Constituição de 1934. Se o Poder Judiciário, examinando a matéria, em particular, declara inconstitucional essa lei ou regulamento, se o Poder Judiciário persiste nessa declaração, ou se essa inconstitucionalidade é evidente, não é justo que cada cidadão, para fazer valer seu direito, suporte as delongas de uma demanda judicial até o fim”. Aduziu ainda que: “Prado Kelly foi signatário da emenda na Constituição de 34, mas agora tem dúvida em aceitar o preceito: é que se estabelece uma competência privativa do Senado. Ora, deve ser ressalvado ao poder que baixou o ato, a deliberação, o regulamento, o direito de decretar, também, a suspensão. Na Constituição de 34 não havia a privatividade”. Na sequência, houve ainda bastante debate em torno deste dispositivo no projeto primitivo e a redação foi modificada e mantida no projeto revisto, tal como constaria no texto constitucional promulgado (cf. DUARTE, José. A Constituição Brasileira de 1946: exegese dos textos à luz dos trabalhos da Assembleia Constituinte. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, 2 v., p. 139-143). 8 Paulino Jacques foi categórico na defesa da interpretação mais estrita: “Atualmente, o Senado só suspenderá a execução de lei ou decreto (lei p.d., decreto legislativo, decreto-lei, decreto regulamentar), não lhe cabendo fazê-lo quando se tratar de ato ou deliberação p.d., como se infere do texto do art. 64” (JACQUES,

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Por outro lado, C. A. Lúcio Bittencourt teceu crítica no sentido de que: “A Constituição não prescreveu o processo para que o Senado tenha conhecimento da inconstitucionalidade, nem a forma que há de revestir o ato previsto, sendo, neste particular, menos explícita do que a Constituição de 1934, que previa expressamente sobre o assunto. O ato do Senado, porém, não é optativo, mas deve ser baixado sempre que se verificar a hipótese prevista na Constituição: decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir todos os seus efeitos regulares, que, de fato, independem da colaboração de qualquer dos outros poderes. O objetivo do art. 45, IV, da Constituição é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos. Dizer que o Senado ‘suspende a execução’ da lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo ‘inexistente’ ou ‘ineficaz’, não pode ter suspensa a sua execução”.9

Themistocles Brandão Calvancati ressaltou que:

Paulino. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, p. 277). Confira ainda: “O artigo 64 referindo-se à lei, compreende os atos legislativos propriamente ditos, e não as simples resoluções legislativas, atos políticos das Câmaras, sem a sanção do Presidente da República nem sujeitas a promulgação” (CAVALCANTI, Themistocles Brandão. A Constituição Federal Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1952, v. II, p. 119). Registre-se que: “Abrange regulamentos; porque sempre se apresentam como objeto de decretos; porém neste caso a Câmara Alta não intervém por iniciativa própria em defesa da verdade constitucional; aguarda o pronunciamento em aresto definitivo, da Corte excelsa” (SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Comentários à Constituição Brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1954, v. II, p. 118). 9 Advertiu, por fim, que: “É manifesto, porém, que essa doutrina da ineficácia ab initio da lei inconstitucional não pode ser entendida em termos absolutos, pois que os efeitos de fato que a norma produziu não podem ser suprimidos, sumariamente, por simples obra de um decreto judiciário” (BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 145-146 e 148).

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“Há, entretanto, no preceito um aspecto técnico que merece ser posto em relevo. A declaração de inconstitucionalidade opera-se, em nosso regime, em espécie, na aplicação de um dispositivo legal a uma hipótese, mas a anulação do preceito pelo Senado envolve a decretação da nulidade da tese da lei e do seu contexto. Ora, os tribunais não decretam a inconstitucionalidade da tese da lei. Ao Senado cabe analisar os casos concretos, podendo o Supremo Tribunal Federal, por provocação do Procurador Geral da República, verificar se o Senado excedeu-se na aplicação de suas decisões. O preceito é de aplicação delicada porque generaliza os efeitos e consequências das decisões judiciais sobre constitucionalidade, e generaliza demais porque inclusive amplia a ação do Senado ao ponto de admitir a suspensão de toda a lei ou decreto. Talvez houvesse sido mais prudente reduzir o preceito explicitamente aos termos da decisão”.10

Alfredo Buzaid ensinou que: “Para que o Judiciário possa conhecer da questão de inconstitucionalidade, força é que o interessado proponha uma ação em forma regular, perante o juízo competente, invocando o direito subjetivo, em que funda a sua pretensão. Suscitado o litígio, cabe ao juiz resolvê-lo. Antes disso, a lei tem validade e força executória. Declarando que a lei está eivada de inconstitucionalidade, o poder judiciário desliga o interessado da submissão ao seu império. Portanto, a declaração de inconstitucionalidade pressupõe: a) – a propositura da ação; b) – exercício do poder jurisdicional; c) – o julgamento da questão incidenter tantum, não podendo constituir objeto principal da causa, nem ser pleiteada por ação direta; d) – o judiciário só age por provocação do interessado, jamais ex-officio, não decidindo nunca em abstrato, mas sempre o caso concreto”.11 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. A Constituição Federal Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1952, v. II, p. 120. 11 Adiante, o jurista esclareceu que: “A função do judiciário, ao apreciar a lei, ou o ato eivado de inconstitucionalidade, limita-se a negar-lhe obediência, liberando o ofendido do dever de se sujeitar à sua autoridade. Essa atividade consiste não tanto em anular ou revogar, quanto em deixar de aplicar a lei, incompatível com outra lei hierarquicamente superior ou com a Constituição. Não se trata, pois, de 10

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Em seguida, suscitou interessante questão acerca dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade: “A autoridade da coisa julgada, que qualifica a sentença, é restrita às partes. Até aí todos estão de acordo. A questão que surge é a de saber se, por força da declaração de inconstitucionalidade, todos os juízes, em ações propostas por litigantes alheios ao primeiro processo, estão obrigados a decidir do mesmo modo, ou se lhes é lícito discrepar, julgando constitucional a lei e aplicando-a ao caso concreto. O problema não parece muito simples”.12

Além disso, Alfredo Buzaid destacou ainda que: “(...) depois da declaração de inconstitucionalidade, segue-se a manifestação submeter os outros poderes ao controle do judiciário, como se este fosse colocado acima daqueles, mas de exercer o controle jurisdicional da lei ou do ato, que ofende direito subjetivo individual” (BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 79-80 e 81). C. A. Lúcio Bittencourt explicou de maneira resumida que: “A decisão do tribunal, uma vez passada em julgado, é, em relação ao caso em lide, final, inatacável, definitiva, produzindo efeito ex nunc, tal como se a lei declarada inconstitucional jamais houvesse existido (...)” (BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 136). 12 Após breve incursão do regime da declaração de inconstitucionalidade nos Estados Unidos da América do Norte e na Argentina, o autor destacou a experiência pátria: “O juiz brasileiro decide, segundo a sua convicção, a causa, que lhe é submetida. Não está sujeito a outro império que não seja o da lei. A jurisprudência dos tribunais superiores constitui um excelente roteiro. Por isso os juízes a consultam, a fim de verificar a hermenêutica da lei. Todavia, a jurisprudência não tem efeito vinculativo. É certo que a sentença, que não segue a jurisprudência, é suscetível de reforma, pois não conta com a aprovação dos tribunais superiores. Mas a verdade é também que a sentença pode operar uma mudança na jurisprudência, se tem a virtude de convencer o Tribunal. Por isso não se deve dizer, adotando uma fórmula simplista, que uma lei declarada inconstitucional é nenhuma e, portanto, deve ser tida como inexistente” (BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 81-85). Em sentido contrário: “Muito embora se discuta se os juízes e tribunais estão, no comum dos casos, obrigados a obedecer à jurisprudência dos órgãos judicantes superiores, essa dúvida não cabe quanto às decisões que declaram a inconstitucionalidade, pois o entendimento pacífico é no sentido de considerá-las plenamente obrigatórias. O juiz inferior não pode ter como constitucional, para aplicá-lo a um caso concreto, o ato legislativo que os tribunais superiores declararam inconstitucional em outro processo” (BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 143-144).

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complementar e necessária do Senado, que lhe cassa a executoriedade”.13 Todavia, advertiu que: “Não se trata de operação ou ofício puramente mecânico, que reduz o Senado a simples cartório de registro de inconstitucionalidades”, embora não reconhecesse discricionariedade ao Senado Federal para emitir o ato.14 Em interessante artigo sobre a evolução histórica do controle de constitucionalidade no Brasil, Celso Agrícola Barbi escreveu que: “Surgiram desde logo dúvidas sobre se o Senado poderia suspender também leis estaduais e municipais, ou se sua ação seria limitada às leis federais”. Posteriormente, a questão foi definitivamente pacificada: “Firmou-se, todavia, orientação no sentido de que o Senado poderia suspender tanto as leis federais, como as estaduais e municipais, declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal; dezenas de resoluções do Senado foram publicadas abrangendo todas aquelas leis”.15 O autor sustentou que: “Suspender a execução de uma lei ou decreto, no todo ou em parte, é cassar-lhe definitivamente a eficácia”. Uma vez suspensa a execução da lei, “nenhum Tribunal pode mais aplicá-la, não porque a lei deixe de existir, mas porque perdeu a executoriedade” (BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 88; BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. In: Revista Forense, ano 55, n. 179, set./out. 1958, p. 27). 14 Sucede que: “Examinará o julgado do ponto de vista substancial e formal, verificando se, na declaração de inconstitucionalidade, foram observadas as regras jurídicas: a) tratar-se de aplicação in casu, não em tese; b) a existência de quorum, na forma prescrita no art. 200 da Constituição”. Só então, “Concorrendo todos os requisitos legais, não pode o Senado recusar a suspensão, mesmo sob a alegação de que a lei deva ser mantida por necessária ao bem-estar do povo ou à defesa do interesse nacional” (BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 89; BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. In: Revista Forense, ano 55, n. 179, set.-out. 1958, p. 27). 15 BARBI, Celso Agrícola. Evolução do Controle de Constitucionalidade das Leis no Brasil. In: Revista de Direito Público, Rio de Janeiro, ano 1, n. 4, abr.-jun. 1968, p. 39. Alfredo Buzaid, por seu turno, defendia que: “Dissentindo da lição do mestre [Pontes de Miranda], pensamos que a regra do art. 64 se aplica tão-só a lei ou decreto federal. O Supremo Tribunal Federal pode decretar a inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal, desde que, por via de recurso, conheça da matéria. Mas o Senado não tem competência para suspender a execução de lei estadual ou municipal. O poder de suspender é uma manifestação do poder de 13

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Pontes de Miranda explicou que: “Suspensa a lei, não mais pode o Supremo Tribunal Federal, ou qualquer tribunal, ou juízo, aplicá-la: não existe; portanto não incide”.16 No que toca à função complementar do Senado Federal de prover o ato de suspensão da execução do ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, Paulino Jacques entendia que era obrigação da Alta Casa, como decorrência lógica do sistema de separação dos Poderes e, consequentemente, harmonia e independência entre eles.17 Por outro lado, Ataliba Pereira Vianna sustentou tese oposta, no sentido de que esta função caracterizava-se como mera faculdade, a ser veiculada de acordo com sua discrição.18 Em razão disso, revogar e a Constituição discriminou as atribuições da União, do Estado, do Município e do Território. Se se trata de lei estadual, só o Legislativo do Estado pode suspender-lhe a execução” (BUZAID, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 91).

16 Revendo a sua posição doutrinária, o mestre afirmou que: “Não há suspensão de suspensão, se bem que, ao primeiro exame, nos tivesse parecido admissível a volta atrás do Supremo Tribunal Federal e do Senado Federal” (MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1953, v. II, p. 284).

Nesse sentido, o autor assim manifestou-se: “A nós parece que, decretada a inconstitucionalidade da lei pelo poder competente, que é o Judiciário, só resta ao Senado suspender-lhe a execução; se não o fizer, manifestar-se-á um choque entre os Poderes, o Legislativo contra o Judiciário, rompida a harmonia que deve reinar entre eles, e sem solução dentro dos quadros legais. A independência dos Poderes traduz-se na não interferência de um na esfera da competência do outro, e a harmonia, no respeito de cada qual pelas deliberações próprias, fazendo cada um o que lhe couber. O Judiciário, declarando a inconstitucionalidade de uma lei, cumpriu o seu dever; resta ao Senado fazer o que lhe toca, suspendendo-lhe a execução” (JACQUES, Paulino. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, p. 278). 18 “A investidura do senado na função de suspender as leis inconstitucionais, simultânea com a do poder judiciário, na de declarar a inconstitucionalidade da lei, em hipótese, estabelece perigosa concorrência de atribuições, que não está livre de gerar conflitos entre o poder judiciário e o legislativo. Objetar-se-á que não se conferiram ao senado atribuições cumulativas com as do poder judiciário, na apreciação da inconstitucionalidade, mas complementares destas; melhor: sucessivas. Sempre que o senado suspende a lei, acoimada de vício capital, o faz, fundado na decisão judiciária que a condenou em hipótese. Assim seria, de fato, se o senado ficasse adstrito às conclusões da justiça. Se, em face de decisão desta, não lhe restasse 17

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acrescido do consequente embaraço que esta função da Alta Casa poderia criar junto ao órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional e da tendência então contemporânea de fortalecimento dos poderes políticos, ele sustentou posição contrária a esta função, por considerá-la estranha à índole da função jurisdicional (eminentemente técnica), isto é, eram funções e atuações independentes entre si.19 Em síntese, com a Constituição de 1946, restaurou-se no sistema do controle jurisdicional difuso de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos aquilo que fora tolhido pelo regime ditatorial do Estado Novo de Vargas. Gilmar Ferreira Mendes destacou que: “A Constituição de 1967 não trouxe grandes inovações no sistema de controle da constitucionalidade”.20 Com efeito, manteve-se o sistema de controle jurisdicional difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos, tal como preconizado desde a Constituição de 1891, com as alterações promovidas pelas Constituições subsequentes. O art. 45 prescreveu que: “Compete, ainda, privativamente, ao Senado: IV – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei mais que suspender a lei increpada. Mas não é assim. Não se lhe impôs o dever de suspender as leis fulminadas. Conferiu-lhe faculdade. O senado poderá ou não estar pelo julgado no uso de sua discrição” (VIANNA, Ataliba Pereira. A Constitucionalidade das Leis. Tese para concurso à Cadeira de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Rio de Janeiro: s/ed. 1947, p. 31). 19 Em sua obra, o autor elaborou a seguinte indagação: “Se o senado aprecia a lei ou o decreto fulminado pelo judiciário e o declara válido, poderá o S. Tribunal insistir em declará-lo inconstitucional?” Em resposta, afirmou que: “Sem a menor dúvida, que pode. Trata-se de duas atribuições diferentes e independentes. O Supremo Tribunal poderá pronunciar a inconstitucionalidade em espécie, por motivos que não convençam o senado da necessidade política da suspensão da lei. Isto não obsta a que o poder judiciário, fiel aos motivos anteriores de julgar, persevere na orientação precedente. Em teoria, é assim” (VIANNA, Ataliba Pereira. A Constitucionalidade das Leis. Tese para concurso à Cadeira de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Rio de Janeiro: s/ ed. 1947, p. 37 e 62-63). 20 Cf. MENDES, Gilmar Ferreira: Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 192; Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 253; Controle Concentrado de Constitucionalidade: Comentários à Lei n. 9.868, de 10.11.1999. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 43.

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ou decreto, declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. A Emenda Constitucional n. 1, de 17.10.1969, manteve inalterada a redação deste dispositivo constitucional, que passou a constar no art. 42, VII, do novo Texto Constitucional.21 Em comentário ao dispositivo constitucional em tela, Pontes de Miranda explicou que: “Quanto às leis, aos regulamentos, atos ou deliberações – portanto, todos os atos legislativos e executivos, ou até de deliberação do Poder Judiciário em matéria regimental e executiva – sempre que o Supremo Tribunal Federal os tenha julgado inconstitucionais, o que só se da in casu, incumbe ao Senado Federal suspender-lhes a execução, no todo ou em parte, conforme a matéria atingida. Suspender no todo ou suspender em parte não fica ao arbítrio do Senado Federal: suspende ele a parte que foi apontada como inconstitucional, ou o todo, que o foi; e nunca o todo porque uma parte o foi. Na decretação de inconstitucionalidade é preciso que o Supremo Tribunal Federal tenha observado a regra jurídica do art. 116. (O Senado Federal, para exercer a sua função, pode examinar o julgado que se lhe apresenta, em sua existência e em sua validade; não, porém, em sua rescindibilidade)”.22

O Senado Federal nunca fora obrigado constitucionalmente a elaborar a resolução em prazo certo. Este ato político de sua É importante destacar que: “Essa suspensão não revoga a lei ou o decreto. Seu efeito é simplesmente retirar-lhe a eficácia. Perde, então, o ato a aptidão para produzir efeitos de direito. Não pode mais ser aplicado; seu cumprimento não mais pode ser exigido de ninguém”. Além disso, releva notar ainda, que: “A suspensão não pressupõe qualquer apreciação de mérito por parte do Senado. Não pode este recusá-lo por entender errônea a decisão” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 234). 22 Adiante o autor lecionou que: “Suspensa a lei, não mais pode o Supremo Tribunal Federal, ou qualquer tribunal, ou juízo, aplicá-la: não é eficaz; portanto, não incide. Se nova lei se faz e o Supremo Tribunal Federal não a tem como contrária à Constituição, é essa lei – e não a outra, a que sofreu a suspensão – que se aplica. Não há suspensão de suspensão, se bem que, ao primeiro exame, nos tivesse parecido admissível a volta atrás do Supremo Tribunal Federal e do Senado Federal”. Concluiu que: “Leis inexistentes, essas, não precisam de suspensão” (MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, t. III, p. 88 e 89). 21

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competência sempre dependeu da análise, por seus membros, sobre a conveniência e a oportunidade na edição da resolução. Registre-se que, ainda hoje, suscita diversas questões e dúvidas que permanecem complexas.

3 Constituição de 1988 3.1 O dispositivo constitucional O art. 52, X, da Constituição da República, dispõe que: “Compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Nada obstante constar positivada desde a Constituição de 1934 (art. 91, IV), esta norma suscitou, e ainda suscita, vários debates a respeito de sua exegese e aplicação no direito constitucional brasileiro. Com o passar dos anos, este tema ainda remanesce polêmico tanto na doutrina como também na jurisprudência, como veremos. A comunicação ao Senado Federal sobre a decisão com trânsito em julgado do Supremo Tribunal Federal é atribuição que cabe ao próprio Tribunal, nos termos do art. 178 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Em perfeita harmonia com a norma constitucional e confirmando a importância da participação do Senado Federal quando o julgamento se dá através do controle difuso, prevê o referido art. 178 que, declarada a incidental inconstitucionalidade de lei, “far-se-á a comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 52, X, da Constituição”. “Caso o STF não comunique sua decisão ao Senado, a notícia poderá ser dada pelo Procurador-Geral da República ou mesmo pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Casa Legislativa (art. 386 do RI do Senado)”.23 Insta salientar que, “Decisões definitivas de outros tribunais não autorizam o Senado a editar resolução suspendendo a execução da lei com efeito erga omnes” 23

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3.2 A natureza jurídica do ato Quanto à natureza jurídica do ato emanado pelo Senado Federal, por força do art. 52, inciso X, a parte majoritária da doutrina entende que é de caráter político, e não jurisdicional.24 Esta parece ser a melhor posição, na medida em que o ato tem caráter normativo e é uma espécie de exaurimento posterior à decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (esta sim no típico exercício de jurisdição) que complementa definitiva e irrevogavelmente o sistema de controle de constitucionalidade com a suspensão da execução da lei declarada inconstitucional, a despeito de já ter sido concluída no âmbito concreto, difuso e entre as partes envolvidas no processo na qual foi decidida. Por outro lado, uma parcela francamente minoritária da doutrina reconhece no ato do Senado Federal um caráter jurisdicional que, afinal, concluiria o controle difuso.25 (CAPEZ, Fernando et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 357). 24 No mesmo sentido: “o ato de suspensão (...) é medida política, discricionária e complementar da decisão judicial, que visa a emprestar eficácia erga omnes a um ato jurisdicional cujos efeitos naturais seriam exclusivamente inter partes” (VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Controle de Constitucionalidade na Constituição Brasileira de 1988, in Revista de Direito Público, Rio de Janeiro, ano 22, n. 92, out.-nov. 1989, p. 51); “A suspensão constitui ato político que retira a lei do ordenamento jurídico, de forma definitiva e com efeitos retroativos” (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 2. ed., São Paulo, Celso Bastos, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 390-391); “A edição de resolução com fulcro no permissivo inserto no art. 52, X, da Lei Magna é ato político do Senado Federal, o qual deve investigar a oportunidade e conveniência de fazê-lo” (LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF. Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 105); “A decisão do Senado, no caso, é veiculada por meio de resolução, isto porque todas as deliberações envolvendo matérias de competência privativa do Senado (assim como da Câmara dos Deputados) são veiculadas por meio de resolução” (CLÉVE, Clémerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, p. 90). Ver também: SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 240. 25 No mesmo sentido: “Ora, tal extensão dada a uma decisão judicial tem, evidentemente, um caráter político, sobretudo tratando-se de suspender a execução de lei inconstitucional, mas, sem dúvida, se aproxima mais da função jurisdicional

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3.3 A suspensão da eficácia A dicção da norma indica que cuida da suspensão da eficácia de lei, a qual fica então carente da produção de qualquer efeito, embora seja teoricamente mantida vigente no ordenamento jurídico até sua ulterior revogação. Mantém-se vigente, mas sem a produção de qualquer efeito dela decorrente. É como se o ato editado pelo Senado Federal retirasse da lei um dos seus elementos ou requisitos de existência eficaz.26 De acordo com precedente do STF sobre o tema, o ato normativo (resolução) confere eficácia erga omnes a um julgado singular, revelando, com isso, sua feição geral e obrigatória, sendo dotado de generalidade, abstração e impessoalidade.27

3.4 Atos normativos sujeitos à suspensão da eficácia O alcance e o sentido do termo “lei” empregado pela norma constitucional devem ser tomados em sua concepção mais ampla possível, para designar ato normativo genericamente considerado, do Estado, a qual, como se sabe, não é exercida com exclusividade pelo [Poder] Judiciário, do que da função legislativa” (POLETTI, Ronaldo. Controle da Constitucionalidade das Leis. 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 150). 26 No mesmo sentido: “Destaque-se que a norma, declarada inconstitucional em decisão definitiva da Corte Suprema proferida em controle concreto, não é revogada pela Câmara Alta, mas tem apenas sua eficácia suspensa, isto é, continua a viger, porém não produz efeitos. A impossibilidade de revogação pelo Senado Federal deriva do fato de não ter sido o mesmo o editor da regra cuja eficácia suspendeu”. Em consequência: “(...) se a regra suspensa havia revogado outra, esta volta a viger, sem que se trate de repristinação, desde a data de publicação da respectiva resolução do Senado Federal” (LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 104); “A resolução senatorial não revoga a lei ou decreto declarados inconstitucionais – a resolução simplesmente suspende a sua execução: opera no plano da eficácia, cessando-lhes os efeitos erga omnes a partir de sua publicação no Diário do Congresso Nacional”. Verifica-se que: “A resolução do Senado não atua no plano da validade, pelo que a mera edição do ato senatorial não revoga a lei ou decreto, nem repristinaria a norma que tal lei ou decreto revogou ao ser editada” (SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 241). 27 STF – Pleno – ADI 3.929, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 29.08.2007, DJU 11.10.2007.

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desde que compreendido na noção de ato legislativo,28 inclusive proveniente das três esferas de poder (federal, estadual, distrital ou municipal).29 Contudo, em se tratando de ato administrativo declarado inconstitucional, então não poderá ter a sua eficácia suspensa por resolução do Senado Federal. A razão é simples: por se tratar de ato individual e concreto, o ato administrativo exaure os seus efeitos logo após a sua aplicação.30

3.5 Alcance da expressão “no todo ou em parte” A expressão “no todo ou em parte” suscita algumas dúvidas, tais como: o Senado Federal é obrigado a repetir em sua Portanto, “(...) qualquer ato legislativo, não apenas leis, pode ter sua eficácia suspensa por resolução do Senado Federal se houver decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal quanto a sua inconstitucionalidade” (LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF. Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 108). É que, “A palavra ‘lei’, no texto constitucional, não está empregada no sentido estrito, formal, técnico-jurídico, mas como ato normativo, o que inclui as leis e outros instrumentos materialmente legislativos, como decretos e regulamentos autônomos, resoluções, tratados internacionais, regimentos internos dos tribunais, cuja constitucionalidade pode ser questionada no controle concreto” (VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2000, p. 58). No mesmo sentido: MOTTA, Sylvio; DOUGLAS, William. Controle de Constitucionalidade – Teoria, Jurisprudência e Questões. Rio de Janeiro, Impetus, 1999, p. 72. 29 “A prática adotada pelo Senado Federal tem sido, se reputado conveniente do ponto de vista político, baixar a resolução suspendendo a eficácia de lei ou decreto, ainda que sejam estaduais e municipais, a despeito de alguns autores vislumbrarem, aí, uma forma de intervenção não expressamente prevista em sede constitucional (cf. arts. 34 e 35). Contudo, há de ser observado que a forma federativa exige o controle de constitucionalidade dos atos praticados pelos entes federados inferiores e tal controle, se foi dado pela Constituição ao Supremo Tribunal Federal (art. 102), também foi dado ao Senado Federal (art. 52, X), o qual, é, aliás, um tribunal com competência para processar e julgar os membros da Suprema Corte” (SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 240). Ver ainda: CAPEZ, Fernando et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 356. 30 “Assim, atos administrativos, mesmo que declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, não podem ter sua eficácia suspensa, porquanto, após sua publicação, nada há para suspender” (LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF. Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 107-108). 28

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resolução os mesmos termos da decisão definitiva do STF? Ou poderá alterá-la de qualquer forma? Segundo uma corrente de pensamento, a norma tem sido entendida como ‘limitadora’ da atuação do Senado Federal, que não dispõe de qualquer discricionariedade para se sobrepor à extensão da decisão definitiva encaminhada pelo Supremo Tribunal Federal. Deverá suspender a execução da lei declarada incidentalmente inconstitucional, nos exatos termos daquela decisão encaminhada.31 Em sentido contrário, outra corrente de pensamento defende a ideia de que a atuação do Senado Federal é amplamente discricionária. Sob esta ótica, inicialmente, o Senado dispõe de um juízo discricionário de valor, no qual analisará a conveniência e a oportunidade em editar a resolução que suspende a execução da lei declarada inconstitucional. Este seria o primeiro momento. Em um segundo momento, este órgão político poderá suspender a eficácia de todos ou de apenas alguns dos “comandos declarados inconstitucionais por decisão definitiva da Corte Suprema”. Note-se que há dois juízos distintos de discricionariedade, exercidos pelo Senado: 1º) se edita ou não a resolução cabível; 2º) caso o faça, sobre em que partes da lei declarada inconstitucional ela incidirá.32 Para esta corrente de pensamento: “O Senado não tem uma opção de suspender a execução de parte da lei, se toda ela foi julgada inconstitucional, nem pode suspender a execução de toda a lei, cuja inconstitucionalidade somente em parte foi declarada. Ele suspenderá a execução em parte ou na totalidade, conforme tenha sido a decisão do Supremo Tribunal Federal. A atuação do Senado, portanto, é balizada pela extensão da sentença proferida pelo Pretório Excelso. Não pode ampliar, nem restringir” (VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2000, p. 59). No mesmo sentido: MOTTA, Sylvio e DOUGLAS, William. Controle de Constitucionalidade – Teoria, Jurisprudência e Questões. Rio de Janeiro, Impetus, 1999, p. 75; CAPEZ, Fernando et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 357. 32 Para esta corrente de pensamento: “O Senado não está obrigado a suspender a execução da lei na mesma extensão da declaração efetivada pelo STF” (TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 48). No mesmo sentido: “(...) o Senado Federal não é obrigado a suspender a eficácia de todos os comandos declarados inconstitucionais por decisão definitiva da Corte Suprema em controle concreto. Assim, mesmo quando o Pretório Excelso julgue inconstitucionais algumas normas de um ato legislativo, pode o Senado Federal 31

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A primeira posição parece ser a mais adequada ao nosso sistema, até em razão da independência de Poderes na República. Não há sentido lógico que um juízo discricionário e de caráter político do Senado se sobreponha para limitar o alcance de uma decisão definitiva do STF com a grave declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Inserindo-se no sistema de freios e contrapesos, este mecanismo contemplado constitucionalmente tem o condão de exaurir o sistema de controle de constitucionalidade, já concluído definitivamente no âmbito jurisdicional. Assim, o órgão político deverá necessariamente observar em que termos e em que medida a lei incidentalmente impugnada foi declarada inconstitucional pelo Supremo, e editar a resolução acompanhando in totum a decisão da Suprema Corte. É curioso registrar que o STF já se viu obrigado a deferir medida cautelar em ação direta que pleiteava a inconstitucionalidade de resolução editada pelo Senado Federal, em desacordo com as decisões anteriores da Corte. Na situação específica, a resolução pretendeu abranger dispositivos que não tinham sido objeto de análise pelo STF na declaração de inconstitucionalidade.33 não suspender a eficácia de todas, limitando-se a fazê-lo em relação àquelas que julgue politicamente conveniente e oportuno” (LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 109). No sentido contrário: “Não pode a Alta Casa do Congresso, todavia, restringir ou ampliar a extensão do julgado proferido pela Excelsa Corte” (MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 162, abr./jun. 2004, p. 154). 33 A título ilustrativo, segue o trecho pertinente da ementa: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Medida Cautelar concedida. Referendo. Resolução nº 7, de 21.06.2007, do Senado Federal. Suspensão erga omnes da eficácia de todo o texto de leis relativas à cobrança do ICMS no Estado de São Paulo. Declaração de inconstitucionalidade anteriormente estendida, no exercício do controle difuso, apenas aos dispositivos que haviam prorrogado a majoração de alíquota e a sua vinculação a uma finalidade específica. Plausibilidade jurídica da alegação de ofensa ao art. 52, X, da Constituição Federal. Perigo na demora igualmente demonstrado. (...). 2. O exame minucioso das decisões plenárias proferidas nos autos dos Recursos Extraordinários 183.906, 188.443 e 213.739 demonstra que a declaração de

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3.6 Obrigatoriedade (ou não) em realizar o ato Outra questão que também suscita dúvida é a respeito da obrigatoriedade ou não do Senado Federal em realizar o ato veiculado pela resolução. Alguns autores entendem que o Senado Federal exerce atividade vinculada, estando, portanto, obrigado a editar a resolução suspensiva.34 Outros autores entendem, em sentido oposto, que o Senado não está obrigado a editar a resolução suspensiva, sendo a sua atividade discricionária, na qual lhe incumbe a análise política da conveniência e oportunidade quanto à faculdade de edição deste ato normativo.35 inconstitucionalidade dos atos normativos que sucederam à Lei Estadual Paulista 6.556/89 alcançaram, tão-somente, os dispositivos que tratavam, exclusivamente, da majoração da alíquota do ICMS e sobre a vinculação desse acréscimo percentual ao fundo criado para o desenvolvimento de determinado programa habitacional. 3. O Senado Federal, em grande parte orientado por comunicações provenientes da Suprema Corte, acabou por retirar do mundo jurídico dispositivos das Leis Paulistas 7.003/90 e 7.646/91, que, embora formalmente abarcados pela proclamação da inconstitucionalidade do próprio Diploma em que inseridos, em nenhum momento tiveram sua compatibilidade com a Constituição Federal efetivamente examinada por este Supremo Tribunal. Plausibilidade da tese de violação ao art. 52, X, da Carta Magna” (STF – Pleno – ADI 3.929, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 29.08.2007, DJU 11.10.2007). 34 A doutrina contemporânea enumera, dentre os clássicos autores que estudaram o assunto, aqueles que comungam deste entendimento: Lúcio Bittencourt, Alfredo Buzaid, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Min. Pedro Chaves, Celso Ribeiro Bastos (cf. VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2000, p. 56-57; POLETTI, Ronaldo. Controle da Constitucionalidade das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 154; PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 125 e 131). 35 A doutrina contemporânea enumera, dentre os clássicos autores que estudaram o assunto, aqueles que comungam deste entendimento: Mário Guimarães, Vitor Nunes Leal, Gonçalves de Oliveira, Aliomar Baleeiro, Josaphat Marinho, o Min. Luiz Gallotti e o Min. Paulo Brossard (cf. VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 56-57; POLETTI, Ronaldo. Controle da Constitucionalidade das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 154-155; PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: Conceitos, sistemas e efeitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 131). No mesmo sentido: MOTTA,

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Cabe registrar que o STF já reconheceu, em trechos dos seus acórdãos, o arquivamento como o desfecho do processo de suspensão então em trâmite perante o Senado Federal.36 Em um sentido prático, o debate esvai-se diante do fato de que o Senado Federal não tem prazo certo para se manifestar. Ainda que se reconheça o caráter vinculado no ato da Câmara Alta, não há como cobrá-lo em tal dever ou obrigação legislativa. Assim, tanto faz que seja vinculado (sem qualquer prazo fixado para se manifestar) ou discricionário, sendo certo que se manifestará se e quando bem entender. O resultado prático é o mesmo: a resolução será editada ao seu livre alvedrio (análise política de conveniência e oportunidade).37 Sylvio; DOUGLAS, William. Controle de Constitucionalidade – Teoria, Jurisprudência e Questões. Rio de Janeiro: Impetus, 1999, p. 72; CLÉVE, Clémerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 95; POLETTI, Ronaldo. Controle da Constitucionalidade das Leis 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 153; CAPEZ, Fernando [et al.]. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 357; SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 240. Destaque-se que: “Ao que tudo está a indicar, a polêmica pende para a supremacia do entendimento de que o Senado não está obrigado a suspender a execução da lei ou do ato normativo declarado inconstitucional pela Suprema Corte. Com efeito, é ele o juiz exclusivo do momento em que convém exercer a competência, a ele, e só a ele atribuída, de suspender lei ou decreto declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal. Nesse sentido, aliás, é a posição do próprio Supremo Tribunal” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002, p. 378). 36 “2. Procedência da arguição de inconstitucionalidade do artigo 9º, por incompatibilidade com os artigos 195 da Constituição e 56, do ADCT/88, que, não obstante já declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Re 150.764, 16.12.92, M. Aurélio (DJ 2.4.93), teve o processo de suspensão do dispositivo arquivado, no Senado Federal, que, assim, se negou a emprestar efeitos erga omnes à decisão proferida na via difusa do controle de normas” (STF – Pleno, ADI 15, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 14.06.2007, DJU 31.08.2007). 37 Neste sentido, os autores contemporâneos são unânimes em afirmar que o Senado não tem qualquer prazo para a edição do ato: “Mas não há nenhum prazo, constitucional, legal ou regimental, para que o Senado se manifeste, após receber a comunicação do Supremo Tribunal de que foi declarada, incidentalmente, a inconstitucionalidade de determinada norma” (VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2000, p. 58); “Uma vez que se trata de atribuição privativa do próprio Senado Federal, não há como o órgão comunicante estabelecer prazo para a resposta ou para a própria elaboração da

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A título ilustrativo, Zeno Veloso traz à colação em sua obra a informação de que: “até o dia 28.10.97, estavam pendentes 69 processos remetidos pelo Supremo Tribunal Federal, para efeito de suspensão de normas declaradas inconstitucionais”.38 Em pesquisa mais recente, Lenio Luiz Streck aduziu que: “Alguns desses processos são da década de 70, outros da década de 80, os restantes, mais recentes. O mais antigo aguarda pronunciamento há mais de 25 anos, originário do RE 60.302-SP. Levantamento mais recente, a partir das bases de dados MATE e NJUR do Senado, informa que estão em tramitação 51 processos aguardando o devido processo legislativo, apto a suspender a execução das leis (federais, estaduais e municipais). Por outro lado, a partir dos dados disponíveis, tem-se que no período compreendido entre 1946 e 2000, foram editadas 457 resoluções suspendendo na totalidade ou em parte as leis declaradas inconstitucionais pelo STF em sede controle difuso”.39

Efeitos da resolução Outra questão polêmica é o debate referente à extensão dos efeitos da resolução do Senado Federal. Para uma corrente de pensamento, tal ato da Câmara Alta tem eficácia ex nunc, semelhante à da revogação, produzindo efeitos resolução suspensiva” (MOTTA, Sylvio e DOUGLAS, William. Controle de Constitucionalidade – Teoria, Jurisprudência e Questões. Rio de Janeiro, Impetus, 1999, p. 72); “Não há prazo para manifestação do Senado Federal porque a Constituição não o fixa e, sendo matéria de competência exclusiva da Câmara Alta, nenhum diploma pode regular tal atribuição constitucional, salvo uma resolução do próprio Senado Federal” (LOURENÇO, Rodrigo Lopes. Controle da Constitucionalidade à Luz da Jurisprudência do STF. Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 105); “Cobra relevo ressaltar que a inércia do Senado não afeta a relação entre os Poderes, não se podendo vislumbrar qualquer violação constitucional na eventual recusa à pretendida extensão de efeitos” (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 2. ed. São Paulo, Celso Bastos, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 392). 38 Cf. VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2000, p. 59. 39 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002, p. 379-380.

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somente após a sua promulgação, ocasião em que não prejudica as situações jurídicas constituídas anteriormente, sob a égide da lei declarada inconstitucional.40 Lenio Luiz Streck defende que “a suspensão da lei somente pode gerar efeitos ex nunc”.41 Outra corrente entende, em sentido oposto, que a resolução do Senado tem eficácia ex tunc, valendo a partir do nascimento da lei posteriormente declarada inconstitucional, e tornando sem efeitos todos os atos praticados sob a sua égide.42 Gilmar Ferreira Mendes expõe que: “A suspensão constitui ato político que retira a lei do ordenamento jurídico, de forma definitiva e com efeitos retroativos” (Mendes, 1999, p. 390-391).43 40 É a posição defendida pelo INSS e pela Fazenda Nacional. Ambos defendem que os efeitos da resolução do Senado operam-se ex nunc, isto é, não retroagem; valem de sua publicação em diante. Ambos, quando oficiam em processos de suas atribuições, igualmente, defendem em suas peças processuais a mesma posição, inclusive nas mais variadas instâncias de atuação. 41 “Discordando de Ferreira Mendes, creio discutível que os efeitos da decisão suspensiva do Senado possam ter efeitos ex tunc. Afinal, há que se fazer uma diferença entre o que seja retirada da eficácia da lei, em sede de controle concentrado, e o que significa a suspensão que o Senado faz de uma lei declarada inconstitucional em sede de controle difuso. Suspender a execução da lei não pode significar retirar a eficácia da lei. Caso contrário, não haveria diferença, em nosso sistema, entre o controle concentrado e o controle difuso. Suspender a vigência ou a execução da lei é como revogar a lei. Pode-se agregar ainda outro argumento: a suspensão da lei somente pode gerar efeitos ex nunc, pela simples razão de que a lei está suspensa (revogada), à espera da retirada de sua eficácia. Sem eficácia, a lei fica nula; sendo nula a lei, é como se nunca tivesse existido” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002, p. 376-377). 42 Neste sentido: “A declaração de inconstitucionalidade não fere de morte a norma; proclama que ela é natimorta. Entendemos, pois, que o que se convencionou chamar de suspensão da execução de lei declarada inconstitucional é a retirada da lei do ordenamento jurídico, pelo mais grave dos vícios, não podendo esta providência deixar de ter efeito retroativo. Aliás, é o posicionamento do STF” (VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2000, p. 60, citando o RMS 17.976, rel. Min. Amaral Santos, RDA 105/111). 43 “Note-se, contudo, que, em face da suspensão determinada pelo Senado Federal (Resolução 49/95) e decorrente da declaração de inconstitucionalidade formal, pelo Supremo Tribunal dos decretos-leis citados (RE 148.754), prevalece, obviamente, ex tunc, a invalidade da obrigação tributária questionada. Não pode, pois, a ulterior criação da contribuição, já agora pelo emprego do processo legislativo idôneo, pretender tirar partido do passado inconstitucional, de modo a dele extrair

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Nagib Slaibi Filho entende que: “As relações constituídas pela norma inconstitucional, até ter sua execução suspensa pelo Senado, serão objeto de apreciação incidental de inconstitucionalidade em cada caso concreto” (Nagib, 2004, p. 241). Fernando Capez defende a opinião de que: “Segundo prevalece, a suspensão pelo Senado se dá com eficácia ex nunc para aqueles que não foram parte no processo que gerou a declaração incidental” (Capez, 2004, p. 357). Uma vez consagrada pela jurisprudência do STF a possível aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868, de 10.11.1999, ao controle difuso de constitucionalidade das leis,44 resta saber que papel seria reservado ao Senado Federal em tais situações especialíssimas. A questão centra-se em perquirir acerca da função do Senado Federal na hipótese de declaração de inconstitucionalidade pelo STF com aplicação da modulação temporal dos efeitos de sua decisão. Em tais situações, caberia ao Senado suspender a execução da lei do mesmo modo como teve a sua declaração de inconstitucionalidade pelo STF (inclusive quanto a modulação) ou pode ser cingida a apenas parte dela? Essa é uma interessante questão que merece maior reflexão.45 a validade do pretendido efeito retro-operante” (STF – Pleno – ADI 1.417, Rel. Min. Octavio Gallotti, j. 02.08.1999, DJU 23.03.2001). 44 Cf. STF – RE 197.917, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 06.06.2002, DJU 07.05.2004. 45 Há quem entenda que a declaração de inconstitucionalidade no controle incidental seria a penúltima fase de um procedimento complexo que seria concluído com a participação do Senado quanto a retirada ou não da norma inconstitucional do ordenamento jurídico. “Assim, compreensão constitucionalmente adequada do controle de constitucionalidade exige seja entregue ao Senado a prerrogativa de dispor sobre os efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade no momento em que for editada a resolução que suspenderá a execução da lei”. “Percebe-se caber ao legislador, não ao Supremo Tribunal Federal, a tarefa de definir os interesses sociais relevantes e recompor os interesses jurídicos eventualmente afetados pela declaração de inconstitucionalidade, com vistas à garantir a observância dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica”. “As possíveis controvérsias decorrentes da composição de perdas e danos devem ser resolvidas no âmbito das instâncias judiciais ordinárias, utilizando-se os instrumentos previstos no ordenamento infraconstitucional” (FERREIRA, Maria Elizabeth Malaquias. Modulação dos efeitos temporais no controle jurisdicional de constitucionalidade e reflexos sobre a

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4 A atual importância da resolução 4.1 Objetivação do controle difuso O sistema brasileiro jurisdicional de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos tem sofrido modificações significativas desde a sua instauração (com a Constituição de 1891 e a importação do judicial review do modelo norte-americano, inclusive por forte influência de Ruy Barbosa). Com efeito, em 1934 foi instaurada a competência do Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional, com o objetivo de suprir a lacuna deixada quando da importação do instituto (que jamais contou com instrumento semelhante ao chamado stare decisis). Em 1965 foi introduzida na ordem constitucional a representação por inconstitucionalidade. Em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, foram introduzidas um sem número de modificações. Desde então, diversas alterações têm colaborado cada vez mais para a complexidade do rico sistema de controle de constitucionalidade brasileiro. Como exemplo, cabe citar, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO e a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC, dentre tantas outras. A partir de 1988, o foco legislativo principal tem sido no controle concentrado de constitucionalidade, com a criação e implementação de ações e mecanismos que, diretamente perante o Supremo Tribunal Federal, alcance o objetivo almejado, com o pronunciamento definitivo em torno da questão constitucional submetida à apreciação. Originariamente concebido para dotar a sociedade de um veículo célere de obtenção do pronunciamento do STF sobre temas relevantes, hoje se verifica o seu emparelhamento no norma do art. 52, X, da Constituição Federal. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 44, n. 173, jan./mar. 2007, p. 205).

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âmbito do STF com os demais instrumentos processuais em razão do aumento vertiginoso no ajuizamento dos processos objetivos. Observa-se, desse modo, paulatino crescimento em torno da objetivação do controle difuso de constitucionalidade, consistente em sucessivas mudanças legislativas que objetivaram atribuir mais importância às decisões tomadas pelo Plenário da Suprema Corte em sede de recurso extraordinário (ou pela via dos processos subjetivos). Como exemplo, cabe registrar as diversas reformas processuais que foram sucessivamente introduzidas no Código de Processo Civil, com especial destaque para a criação da repercussão geral e para a inovação da súmula vinculante, dentre tantas outras. Com a crescente racionalidade do trabalho jurisdicional da Suprema Corte, releva notar paulatina tendência no sentido de que a decisão sobre matéria jurídica objeto de apreciação pelo Plenário seja capaz de firmar o necessário precedente para a posterior observância pelos demais órgãos do Poder Judiciário (se tiver repercussão geral reconhecida) e também da Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (se dotado de efeito vinculante e eficácia contra todos, como nos casos de ADI, ADC, ADPF, súmula vinculante e resolução do Senado). Trata-se do fenômeno cada vez mais estudado nos últimos anos, consistente na abstrativização ou objetivação do modelo difuso. Com efeito, levando em conta que o importante para a ordem jurídica é precisamente a entrega da prestação jurisdicional com a solução da situação jurídica ou do caso (submetido de maneira objetiva ou subjetivo representativo de controvérsia com potencial multiplicador), a rigor a decisão do Pleno do STF acerca de matéria jurídica sobre a qual se debruçou deveria ter o mesmo alcance (ou bem próximo). A título meramente ilustrativo, cabe registrar que, em sessão de 23.04.2014, no Plenário do STF, em momento imediatamente anterior ao início das sustentações orais quando do julgamento do RE 595.838, o advogado representante da CNI tomou a tribuna sob a

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alegação de que a ADI 2.594, da qual era patrono e que tratava do mesmo assunto em discussão naquele RE apontado, deveria ser julgada antes ou, pelo menos, em conjunto naquela assentada, haja vista a sua tramitação no STF por mais de dez anos, ou seja, desde 01.02.2002 (assim como as ADIs 5.036 e 5.102 a ela apensadas). Diante de tal “preliminar”, o Tribunal tanto rechaçou veementemente o pedido da sustentação oral pleiteada pelo pretendido “amicus curiae”, como também verbalizou enfaticamente com a afirmativa de que, por se tratar do mesmo tema, nada impediria que o STF julgasse o RE e depois aplicasse o decidido nas ADIs que aguardavam julgamento.46 Na mesma linha cabe recordar ainda outra situação semelhante, qual seja, a decorrente dos julgamentos dos RREE nºs 377.457 e 381.964, que veicularam discussão acerca da COFINS das sociedades prestadoras de serviços, julgados em 17.09.2008, e que acabaram por prejudicar o julgamento da ADI 4.071, em 08.10.2008, que tratava do mesmo tema. Nos exemplos destacados acima, ocorreram duas situações distintas. Uma foi o julgamento da matéria no RE para a subsequente aplicação na ADI (e esta sim, dotada de todo o caráter vinculante que lhe é inerente). Nessa situação, com a replicação da decisão do RE na ADI a Corte empresta àquele os efeitos próprios da decisão deste. Na segunda situação, não foi isso que ocorreu. A ADI que deveria seguir a sorte dos RREE anteriormente decididos foi julgada prejudicada. Logo, tal decisão não é dotada de toda aquela força vinculante própria dos processos objetivos, como no exemplo anterior. Ao contrário, deveria se limitar ao âmbito do Poder Judiciário, em razão da repercussão geral reconhecida. Contudo, levando em conta que foi o leading case sobre a matéria jurídica decidida, então Felizmente o resultado alcançado nos autos do RE 595.838 foi favorável aos contribuintes, na medida em que o Tribunal, por unanimidade, deu provimento ao recurso extraordinário e declarou a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 22 da Lei nº 8.212/91. Como decorrência do entendimento explicitado acima, tudo indica que a ADI 2.594 seguirá a mesma sorte do RE 595.838 (tão logo este transite em julgado). 46

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não há dúvida de que foi naquele momento que a Corte estabeleceu o precedente (pendente de análise dos embargos de declaração). Verifica-se, portanto, que o julgamento contemporâneo (conjunto ou não) permite ao Tribunal uniformizar e pacificar o entendimento afinal consagrado no Pleno tanto para o modelo difuso como também concentrado de controle de constitucionalidade. Contudo, quando distanciados dois relevantes julgamentos por significativo lapso temporal, então se corre verdadeiro risco de embaraços com o teor de cada decisão, que poderá ser convergente, complementar (redutora quando a última reduz o alcance da primeira, então mais abrangente; ou ampliadora quando a última acrescenta ao alcance da primeira algo que então não existia) ou até mesmo antagônica. Desse modo, o que deve ser buscado é a perenidade do precedente estabelecido pelo Plenário do STF, observadas certas peculiaridades. Não é que seja vedado ao Tribunal modificar a sua jurisprudência firmada ao longo dos anos. Mas, quando assim proceder, submeter-se-á a maior carga argumentativa para explicitar, explicar e convencer por que da mudança que pretende (a decisão anterior estava equivocada e a atual está correta).47

4.2 A crescente força dos precedentes do STF A importância do precedente aumenta de acordo com o órgão colegiado do qual emana. Um simples julgado isolado sobre certo tema oriundo de uma das turmas de um dos tribunais regionais federais contém menos efeito persuasivo do que um leading case da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça sobre tema de Direito Público, isto é, o potencial multiplicador em casos semelhantes é maior nessa última situação perante os demais órgãos do Poder Judiciário. É como se o seu espectro de abrangência encontrasse eco em um campo maior. No mesmo sentido: ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 462 a 496, especialmente a respeito da mudança de jurisprudência. 47

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Nessa linha de raciocínio, cabe registrar que certamente há um escalonamento lógico (até intuitivo) entre o efeito persuasivo dos diferentes tipos de decisões na esfera judicial, iniciando com aquela em medida liminar pelo juiz de primeira instância e terminando com o pronunciamento definitivo pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal. Nessa escala, certamente a decisão mais precária e passível de modificação é a do juiz em sede liminar, ao passo que o pronunciamento definitivo pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal é naturalmente vocacionado a ter maior perenidade. A título meramente ilustrativo cabe escalonar de baixo para cima o efeito persuasivo dos seguintes tipos de decisões: liminar do juiz de 1º grau, a sua sentença, decisão liminar em 2º grau, o acórdão da turma ou câmara do tribunal, o acórdão do seu órgão especial ou pleno, o acórdão de turma do STJ, o acórdão da sua Seção, o acórdão de sua Corte Especial e, por fim, aquele oriundo da Suprema Corte. No âmbito interno do STF, ainda cabem alguns escalonamentos, como por exemplo: decisão em sede liminar, monocrática, de turma e finalmente do Plenário. A própria decisão emanada pelo Plenário do STF se sujeita a maior ou menor efeito persuasivo, ou até mesmo vinculante, a depender de alguns fatores. Com efeito, algumas de suas decisões vão além do mero efeito persuasivo, para tornarem-se verdadeiros parâmetros vinculantes a serem observados, não só no âmbito do Poder Judiciário como também pela Administração Pública, com aplicação geral e irrestrita. Tais decisões produzem eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Tais atributos caracterizam as decisões tomadas em ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). A par da decisão nos processos objetivos assinalados, também no modelo difuso de controle de constitucionalidade é possível

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alcançar o efeito vinculante, com a edição tanto de súmula vinculante como também da resolução do Senado Federal que suspenda a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF. Grosso modo, equivalem-se na prática em efeitos, observadas certas peculiaridades aqui e ali, as decisões (vinculantes) tomadas pelo Pleno do STF nas seguintes situações: ADC, ADI e ADPF (processos objetivos), súmula vinculante e suspensão da execução da lei pela resolução do Senado Federal (processos subjetivos). Essa equiparação, com os limites e as possibilidades de aproximação e distanciamento de cada tipo de decisão, nessas cinco situações diferentes, refere-se ao conhecimento tradicional sobre o tema. Contudo, nos últimos anos assistimos maior aproximação entre os modelos difuso e concentrado de controle de constitucionalidade. Desde os últimos anos praticamente se equivalem as decisões tomadas em ADI, ADC, ADPF e recurso extraordinário (que foi objeto de súmula vinculante ou cuja execução da lei tenha sido suspensa por força de resolução do Senado Federal). Com o passar do tempo, e maior estabilidade às decisões proferidas nos casos de repercussão geral reconhecida, é possível antever que, na prática, se observe algum dia uma tendência de maior uniformização quanto aos efeitos que se espraiam de um pronunciamento definitivo do Plenário do STF, pouco importando se prolatado no modelo difuso ou concentrado de controle de constitucionalidade. Como decorrência disso, hoje se caminha entre dois extremos. De um lado, observamos recente evolução do nosso complexo sistema, pelo qual nos últimos anos se equivalem as decisões em ADI, ADC, ADPF e do recurso extraordinário (que foi objeto de enunciado de súmula vinculante ou cuja execução de lei tenha sido suspensa por força de resolução do Senado Federal). De outro, assistimos a crescente busca por maior estabilidade às decisões proferidas nos casos de repercussão geral reconhecida. Na prática, a tendência para onde caminhamos é que os efeitos que se irradiam de um pronunciamento definitivo do Plenário do STF sejam todos equivalentes. O significado do precedente será a solução atribuída

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ao caso ou à situação jurídica, pouco importando se prolatado no modelo difuso ou concentrado de controle de constitucionalidade, desde que tenham sido observadas as condições necessárias (como, por exemplo, a maioria absoluta). Esse caminho, rumo a maior flexibilidade nos dogmas sobre o tema, com o objetivo de fortalecer o precedente no cenário jurisprudencial nacional e racionalizar o trabalho do STF, deve ser trilhado com enorme atenção quanto aos variados institutos que compõem o complexo sistema de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos no direito brasileiro atual. A evolução da sistemática certamente é benvinda por todos, mas requer atenção quanto aos reflexos e impactos nas interações com os institutos já existentes. Exemplo disso é a situação específica da resolução do Senado Federal. Prevista no inciso X do art. 52 da Constituição da República vigente.

4.3 O Senado Federal e as decisões do STF O preceito contido no inciso X do art. 52 da Constituição da República dispõe que compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF. Tal dispositivo foi introduzido pela Constituição de 1934 e teve como objetivo corrigir a falta de vinculatividade da decisão do STF, na medida em que empresta efeitos contra todos para a sua decisão inicialmente limitada entre as partes envolvidas na lide decidida. Desde então se tem mantido na redação das Constituições que a sucederam. No mesmo sentido, o Ministro Gilmar Mendes explica que: “A suspensão da execução pelo Senado Federal do ato declarado inconstitucional pela Excelsa Corte foi a forma definida pelo constituinte para emprestar eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade”.48 MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 162, abr./jun. 2004, p. 149. 48

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A Constituição da República vigente, como as demais que a antecederam, cometeu ao Senado Federal e ao STF, competências distintas de atuação na sistemática de controle jurisdicional difusa de constitucionalidade das leis e atos normativos no direito brasileiro atual. Enquanto a competência do STF é a de julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em última instância que contrariar dispositivo da Carta Maior (art. 102, III, da CF), a competência do Senado Federal é a de suspender a execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional, através da edição de resolução que empresta o efeito erga omnes ao julgado (art. 52, X, da CF). Portanto, compete ao Senado Federal retirar do mundo jurídico a lei declarada inconstitucional, emprestando efeito amplo e geral àquela decisão através de seu ato normativo. Desse modo, o pronunciamento definitivo prolatado pelo Supremo Tribunal Federal logra alcançar toda a sociedade a um só tempo. Exatamente pela extensão para todos e para o futuro, através do chamado efeito erga omnes, que a atuação do Senado Federal, através da edição de seu ato normativo próprio (resolução), é tão importante no controle difuso. É ela que faz nascer, para todos aqueles que não integravam a lide julgada pelo Supremo Tribunal Federal, o direito subjetivo de perquirir o que dali surgiu também para si (com a extensão além da relação entre as partes envolvidas originariamente na lide decidida). Ora, admite-se que o paulatino movimento de objetivação ou abstrativização do modelo difuso de controle de constitucionalidade tem conduzido a maior aproximação e identidade entre os precedentes emanados com o julgamento pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, inclusive com maior racionalização do seu trabalho no elevado mister de entrega da prestação jurisdicional. Desse modo, o debate em torno da adequada interpretação e aplicação do inciso X do art. 52 da Constituição da República releva-se não só como de índole exclusivamente constitucional (por óbvio), como também versa sobre tema que carece de urgente

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pronunciamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal, na qualidade de guardião máximo da Lei Maior, inclusive cotejando a realidade anterior a EC nº 45/04 com os dias atuais. Isso com o objetivo de assegurar aos jurisdicionados a estabilidade institucional mínima e necessária a respeito do papel do Senado Federal e o alcance de sua resolução no sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e atos normativos no direito brasileiro atual.

4.4 A principal questão controvertida hoje Qual é o efeito jurídico do ato normativo (resolução)? Para que serve? Em que situações? Como fica antes e depois da Emenda Constitucional nº 45/2004? Houve qualquer mudança na interpretação e aplicação do texto da Lei Maior nos últimos anos? É necessário que haja? Com validade a partir de quando? Enfim, qual é a função da participação do Senado Federal na sistemática do controle jurisdicional difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos no direito brasileiro atual? Tais indagações, exemplificativamente mencionadas, devem ser respondidas pelo guardião máximo da Lei Maior, responsável pela adequada interpretação e aplicação de preceitos constitucionais. Ademais, cabe institucionalmente ao órgão de cúpula do Poder Judiciário dar a última palavra sobre esta questão de relevante importância para a sociedade. Releva hoje voltar os olhos ao papel do Senado Federal e à função do ato normativo que emite (resolução) no sistema jurisdicional difuso de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Levando em conta todo esse cenário anteriormente apontado de transformações como pano de fundo, cabe registrar que a doutrina discrepa quanto ao papel do Senado Federal e à função da resolução, razão pela qual cabe revisitar o seu estudo nesse momento. Em outras palavras, trata-se de buscar o atual significado e alcance da regra insculpida no art. 52, inciso X, da Constituição da

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República, isto é, qual a sua adequada interpretação e aplicação nos dias atuais.

4.4.1 Um caso de mutação constitucional? O Ministro Gilmar Mendes, notório estudioso sobre o tema do controle de constitucionalidade, retoma antigas lições de Lúcio Bittencourt, para concordar que o objetivo do dispositivo constitucional em foco parece se limitar apenas e tão somente a tornar pública a decisão do STF que declara a inconstitucionalidade de lei. E nada além disso. Para fundamentar essa posição doutrinária, o Ministro lembra de uma série de fatos e eventos que supostamente justificariam a hipótese de mutação constitucional, consistentes, principalmente: a) na orientação jurisprudencial do STF (de 1977), que firmou posição quanto à “dispensabilidade de intervenção do Senado Federal nos casos de declaração de inconstitucionalidade de lei proferida na representação de inconstitucionalidade (controle abstrato)”; b) na possibilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, no controle abstrato; c) na inadequação do instituto para “assegurar eficácia geral ou efeito vinculante às decisões do Supremo Tribunal que não declaram a inconstitucionalidade de uma lei, limitando-se a fixar a orientação constitucionalmente adequada ou correta”; d) na adoção pelo STF de uma interpretação conforme à Constituição, “restringindo o significado de uma dada expressão literal ou colmatando uma lacuna contida no regramento ordinário”; e) nos casos de declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, “nos quais se explicita que um significado normativo é inconstitucional sem que a expressão literal sofra qualquer alteração”;

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f) nas situações em que o STF limita-se a rejeitar a arguição de inconstitucionalidade; g) na inaplicação do instituto de suspensão da execução da lei inconstitucional à declaração de não-recepção da lei préconstitucional levada a efeito pelo STF;49 h) na limitação do efeito ex nunc para a declaração de inconstitucionalidade; e i) no entendimento adotado quando do julgamento do RE 191.898, pelo qual “houve por bem o Tribunal ressaltar, uma vez mais, que a reserva de plenário da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo funda-se na presunção de constitucionalidade que os protege, somada a razões de segurança jurídica”, razão pela qual os órgãos parciais dos outros tribunais podem acolher a decisão tomada pelo Pleno, prescindindo-se de submeter a questão ao seu próprio Pleno ou órgão especial.50 Assim, seguindo essa linha de raciocínio, a obra do Ministro Gilmar Mendes, destaca que: “Todas essas reflexões e práticas parecem recomendar uma releitura do papel do Senado no processo de controle de constitucionalidade”.51 No mesmo sentido: STF – Pleno – RE 387.271, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.08.2007, DJe 01.02.2008. 50 Além dessa evolução histórica primordialmente forjada a partir da própria jurisprudência do STF, o Ministro traz também alguns exemplos que considera relevantes no âmbito legislativo, a saber: a introdução do controle abstrato, a sua ampla legitimação ativa, consoante dispõe o art. 103 da Lei Maior, bem como a previsão de que o Relator de recurso pode negar seu seguimento com base em jurisprudência dominante do STF, na forma da Lei nº 8.038/90, c/c a Lei nº 9.756/98 (MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 162, abr./jun. 2004, p. 155-161. 51 Adiante, o Ministro registra que: “De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental” (MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 162, abr./jun. 2004, p. 157 e 164). 49

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Para o Ministro: “É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988”.52 Concluindo, a função da resolução hoje se limitaria meramente a dar publicidade ao precedente anteriormente prolatado pelo STF: “Parece legítimo entender que a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Dessa forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que publique a decisão no Diário do Congresso”.53 Em caráter exemplificativo, o Ministro Teori Zavascki também sustenta que: “(...) a competência do Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional, o seu exercício foi paulatinamente perdendo a importância e o sentido que tinha originalmente, sendo, hoje, inexpressivas, ressalvado seu efeito de publicidade, as consequências práticas que dele podem decorrer”.54 De igual modo levando em conta as últimas transformações experimentadas pelo nosso complexo sistema, em claro movimento rumo à objetivação do modelo difuso, o Ministro Roberto Barroso chega a sustentar que “essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo”, na medida em que a decisão do Pleno do E. STF “deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos”, independente de por qual via decidiu (RE ou ADI).55

MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 162, abr./jun. 2004, p. 165. 53 MENDES, Gilmar Ferreira [e outros]. Curso de Direto Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010 p. 1.252. 54 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 49. 55 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 130-131. 52

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No mesmo sentido, alguns autores indagam sobre a real necessidade de manutenção deste dispositivo no texto constitucional, inclusive em manifestação no sentido de sua eventual revogação.56 Cabe registrar que logramos identificar em rápida pesquisa a existência da Proposta de Emenda Constitucional nº 11/2008, que pretende revogar o inciso X do art. 52 da Constituição da República. A justificativa menciona exatamente os diferentes pontos levantados no presente estudo (como a maior importância do controle abstrato e com maior vinculatividade para toda a sociedade), verbis: “Essa norma perdeu a sua razão, uma vez que não se aplica às ações diretas – hoje bastante frequentes – e em função da súmula vinculante, criada que foi pela Emenda nº 45, e que surte, desde logo efeitos erga omnes. Ademais, parece correto cogitar de eficácia maior à generalidade das ações do controle difuso e em concreto de normas, conforme eventualmente venha a construir o Supremo Tribunal Federal”. A proposta foi apresentada pelo Senado Arthur Virgílio em 26.03.2008, por sugestão do Ministro Gilmar Mendes. Foi encaminhada para a CCJC e desde então aguarda a designação de Relator (sendo o seu último andamento desde 30.05.2014). Ora, levando em conta que o dispositivo em questão (art. 52, X, da Lei Maior) encontra-se insculpido em nossa ordem constitucional há exatos oitenta anos e já foi tão importante em diferentes situações no passado, cabe registrar que eventual hipótese de mutação constitucional ou qualquer movimento que relegue tal instrumento ao esvaziamento depende de amplo, profundo e reiterado debate entre os Ministros do STF, inclusive com a participação da comunidade jurídica interessada. Enfim, essas questões deverão ser submetidas ao exame da Suprema Corte em breve. Qual é o papel do Senado Federal e qual 56 CLÉVE, Clémerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, p. 96-98. Segundo Palu, o dispositivo “permanece como um verdadeiro apêndice constitucional” (PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: Conceitos, sistemas e efeitos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 125).

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é a função da sua resolução no sistema de controle de constitucionalidade, bem como qual é a adequada racionalização em torno dos diferentes tipos de decisão adotada pelo Pleno do STF em relação aos efeitos de persuasão e de vinculação. Exemplo disso é que, ainda hoje, uma decisão tomada pelo Pleno do STF em RE, com repercussão geral, carece do amplo alcance conferido pela edição de súmula vinculante ou resolução do Senado Federal. Ao lado da resolução encontra-se a súmula vinculante. Estas sim, de certa forma, equivalem-se em termos institucionais. Ao lado delas, também equivalente, temos os processos objetivos (ADI, ADC e ADPF). Cada um tem as suas peculiaridades próprias, mas para o fim do presente estudo, que cuida exclusivamente do efeito prático no mundo jurídico, pode-se assemelhá-los por equivalência, como simplificado acima. Levando em consideração que a edição de súmulas vinculantes pelo Pleno do STF não é prática rotineira, tem-se, naturalmente, que a importância da resolução do Senado Federal remanesce para os casos que forem julgados em RE, com repercussão geral reconhecida, bem como àqueles anteriores às mudanças perpetradas pela EC nº 45/04 e pela Lei nº 11.418/06 (que criaram a repercussão geral).

4.4.2 Ou silêncio eloquente? A competência privativa atribuída ao Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional na forma do inciso X do art. 52 da Constituição da República jamais foi objeto de emenda constitucional que lhe modificasse o conteúdo originariamente estampado. De um lado, as mudanças legislativas perpetradas em prol de maior racionalização da atividade jurisdicional do STF longe de pretender amesquinhar a função do Senado Federal no controle difuso, buscam, primordialmente, atribuir maior relevo aos pronunciamentos definitivos oriundos da Suprema Corte. Exemplo claro disso pode ser verificado com a criação da súmula vinculante.

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De outro lado, com o objetivo de limitar o enorme número de recursos que chegam ao conhecimento do órgão de cúpula do Poder Judiciário, buscam-se mecanismos e instrumentos para afunilar paulatinamente o acesso à via extraordinária (e não meramente ordinária, como se fosse quarta e última instância). Exemplo disso pode ser constatado com a criação da repercussão geral das questões constitucionais. Em nenhuma dessas duas situações verifica-se a intenção proposital (ou mesmo acidental) de amesquinhar o relevante mister que compete privativamente ao Senado Federal. Em realidade, são tentativas de conferir ao próprio STF mecanismos e instrumentos capazes de promover maior racionalidade ao seu hercúleo trabalho de entrega da prestação jurisdicional. Verifica-se, por conseguinte, que o desafio se situa no campo de perceber como e em que medida o dispositivo constitucional (art. 52, X) interage, com choques, sobreposições e acomodações, em relação às novidades que foram introduzidas no nosso complexo e rico sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade. Outro aspecto relevante que deve ser considerado a respeito do tema em foco refere-se às cláusulas pétreas, na medida em que tal função desempenhada pelo Senado Federal insere-se, em um contexto maior, de separação dos Poderes e dos mecanismos de freios e contrapesos, de modo que qualquer tentativa de modificação ensejaria violação à referida cláusula pétrea da separação dos Poderes. Ora, parece evidente que o silêncio até hoje experimentado no âmbito do Poder Legislativo (Congresso Nacional) pode ser encarado como “eloquente”, na medida em que há proposta (estacionada) para promover eventual revogação do inciso X do art. 52 da Constituição da República, a qual oportunamente deve ter a sua legitimidade questionada, na medida em que parece afrontar flagrantemente a separação de Poderes, considerada como cláusula pétrea, por força do art. 60, § 4º, III, da Lei Maior.

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4.4.3 A recente jurisprudência do STF: Reclamação 4.335 Antes da publicação do acórdão na Reclamação 4.335, cabe tomar por empréstimo os principais trechos veiculados nos informativos do STF que noticiaram as diversas sessões de julgamento que se seguiram até o desfecho do caso. Em 01.02.2007 iniciou-se na Suprema Corte o julgamento da reclamação ajuizada pela Defensoria Pública da União contra decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco (Acre). Nelas, ele indeferiu pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão em regime integralmente fechado em decorrência da prática de crimes hediondos. Isso teria ocorrido em suposta ofensa à autoridade da decisão do STF no HC 82.959 (DJU 01.09.2006), na qual restou declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, que vedava a progressão de regime a condenados pela prática de crimes hediondos.57 Na ocasião do julgamento da Reclamação 4.335, o relator, Ministro Gilmar Mendes, julgou-a procedente. Dentre outras, cabe assinalar interessante questão que foi suscitada e que teve relevante destaque durante os debates que se seguiram, a saber: o juízo reclamado argumentou no sentido de que a eficácia erga omnes da decisão no HC 82.959 dependeria da expedição da resolução do Senado Federal suspendendo a execução da lei, na forma do inciso X do art. 52 da Lei Maior, o que não ocorreu na situação concreta. Eis a ementa do acórdão: “Pena – Regime de cumprimento – Progressão – Razão de ser. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semiaberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convício social. Pena – Crimes hediondos – Regime de cumprimento – Progressão – Óbice – artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90 – Inconstitucionalidade – Evolução jurisprudencial. Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90” (STF – Pleno – HC 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 23.02.2006, DJU 01.09.2006). 57

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O relator, no seu voto, discorreu sobre os principais pontos relacionados ao seu entendimento acerca da mutação constitucional do instituto, como vimos no tópico próprio, com menção expressa, dentre outras, a maior amplitude conferida ao controle abstrato, a ampliação do rol de órgãos legitimados a provocar o STF e o advento da Lei nº 9.882/99, para concluir ao final que: “Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso” (Informativo 454). Releva notar que essa posição já foi defendida pelo Ministro anteriormente e em sede doutrinária. Em 19.04.2007, o julgamento foi retomado com o voto-vista do Ministro Eros Grau, que julgou procedente a reclamação, acompanhando o voto do relator, “no sentido de que, pelo art. 52, X, da CF, ao Senado Federal, no quadro de uma verdadeira mutação constitucional, está atribuída competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, haja vista que essa decisão contém força normativa bastante para suspender a execução da lei”. Inaugurando a divergência, o Ministro Sepúlveda Pertence julgou improcedente a reclamação, mas concedeu habeas corpus de ofício para que o juiz examine os demais requisitos para deferimento da progressão. Asseverou, no ponto específico que interessa ao presente estudo, que não se poderia reduzir-se o papel do Senado, “que quase todos os textos constitucionais subsequentes a 1934 mantiveram”. “Ressaltou ser evidente que a convivência paralela, desde a EC 16/65, dos dois sistemas de controle tem levado a uma prevalência do controle concentrado, e que o mecanismo, no controle difuso, de outorga ao Senado da competência para a suspensão da execução da lei tem se tornado cada vez mais obsoleto, mas

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afirmou que combatê-lo, por meio do que chamou de ‘projeto de decreto de mutação constitucional’, já não seria mais necessário. Aduziu, no ponto, que a EC 45/2004 dotou o Supremo de um poder que, praticamente, sem reduzir o Senado a um órgão de publicidade de suas decisões, dispensaria essa intervenção, qual seja, o instituto da súmula vinculante (CF, art. 103-A)”. No mesmo sentido foi o voto do Ministro Joaquim Barbosa, com a diferença de que não conheceu da reclamação. “Considerou que, apesar das razões expostas pelo relator, a suspensão da execução da lei pelo Senado não representaria obstáculo à ampla efetividade das decisões do Supremo, mas complemento. Aduziu, de início, que as próprias circunstâncias do caso seriam esclarecedoras, pois o que suscitaria o interesse da reclamante não seria a omissão do Senado em dar ampla eficácia à decisão do STF, mas a insistência de um juiz em divergir da orientação da Corte enquanto não suspenso o ato pelo Senado. (...). Dessa forma, haveria de ser mantida a leitura tradicional do art. 52, X, da CF, que trata de uma autorização ao Senado de determinar a suspensão de execução do dispositivo tido por inconstitucional e não de uma faculdade de cercear a autoridade do STF. Afastou, ainda, a ocorrência da alegada mutação constitucional” (Informativo 463). Em 16.05.2007, o Ministro Ricardo Lewandowski prolatou o seu voto, no sentido de acompanhar o voto anterior do Ministro Joaquim Barbosa, razão pela qual não conheceu da reclamação e concedeu, de ofício, habeas corpus, para que fossem analisados os requisitos para a progressão de regime em favor dos interessados. Quanto ao exame sobre a eficácia erga omnes da decisão do STF independente de atuação do Senado Federal na forma do inciso X do art. 52 da Lei Maior, ponderou que: “o Senado cumpriria, reiteradamente, esse mandamento constitucional, ao votar projetos de resolução – impulsionados por ofícios encaminhados pelo STF – para suspender a execução de dispositivos declarados inconstitucionais em sede de controle difuso”. “Ressaltou que o sistema de freios e contrapesos, próprio à separação de Poderes, não teria o condão de

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legitimar a ablação de competência constitucional expressamente atribuída a determinado Poder. Nesse sentido, suprimir competências de um Poder de Estado, por meio de exegese constitucional, colocaria em risco a própria lógica desse sistema. Embora a CF/88 tivesse fortalecido o papel do Supremo, ao dotar algumas de suas decisões de eficácia erga omnes e efeito vinculante, isso não significaria a perda de competências pelos demais Poderes. Não haveria como cogitar-se de mutação constitucional, na espécie, diante dos limites formais e materiais fixados pela Constituição acerca do tema. (...). Considerou que a regra inscrita no art. 52, X, da CF consubstanciaria norma taxativa, de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Assim, embora as questões decididas pelo STF em sede de controle difuso tivessem considerável relevância, esse fato não teria força para atribuir novos contornos à citada norma constitucional”. Foi ele quem rememorou o teor da Súmula Vinculante nº 26,58 pelo qual seria possível ampliar o alcance da decisão anteriormente tomada pelo STF em sede de controle difuso, “sem vulnerar a competência constitucional do Senado, de caráter eminentemente político” (Informativo 706). Em 20.03.2014, o Ministro Teori Zavascki prolatou o seu voto-vista, no qual conheceu e deferiu o pedido formulado na reclamação, em razão da superveniência da Súmula Vinculante nº 26, que deveria ser levada em consideração à luz do art. 462 do CPC. Registrou que a discussão se polarizou em torno do sentido e do alcance do art. 52, X, da CF, ao passo que deveria abranger também a possível concessão de eficácia erga omnes às decisões do STF mesmo quando proferidas no âmbito do controle incidental. “Asseverou que, ainda que se reconhecesse que a resolução do Senado permaneceria com aptidão para conferir eficácia ‘erga Eis o teor: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico” (DJe 26.02.2010). 58

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omnes’ às decisões do STF que, em controle difuso, declarassem a inconstitucionalidade de preceitos normativos, isso não significaria que essa aptidão expansiva das decisões só ocorreria quando e se houvesse intervenção do Senado”.59 Além disso, o Ministro Roberto Barroso prolatou o seu voto no mesmo sentido. “Considerou que o denominado processo de mutação constitucional encontraria limite na textualidade dos dispositivos da Constituição. Nesse sentido, a suposta mutação do art. 52, X, da CF não poderia prescindir da mudança de texto da norma”.60 Quando prolatou o seu voto, o Ministro Marco Aurélio registrou que “não se poderia emprestar ao controle difuso eficácia ‘erga O informativo aduziu ainda que: “Por outro lado, ponderou que, ainda que as decisões da Corte, além das indicadas no art. 52, X, da CF, tivessem força expansiva, isso não significaria que seu cumprimento pudesse ser exigido por via de reclamação. Explicou que o direito pátrio estaria em evolução, voltado a um sistema de valorização dos precedentes emanados dos tribunais superiores, aos quais se atribuiria, com crescente intensidade, força persuasiva e expansiva. Demonstrou que o Brasil acompanharia movimento semelhante ao de outros países nos quais adotado o sistema da ‘civil law’, que se aproximam, paulatinamente, de uma cultura do ‘stare decisis’, própria do sistema da ‘common law’. (...). Anotou que a força vinculativa dos precedentes do STF fora induzida por via legislativa, cujo passo inicial fora a competência, atribuída ao Senado, para suspender a execução das normas declaradas inconstitucionais, nos termos do art. 52, X, da CF. Entretanto, assinalou que a resolução do Senado não seria a única forma de ampliação da eficácia subjetiva das decisões do STF, porque diria respeito a área limitada da jurisdição constitucional (apenas decisões declaratórias de inconstitucionalidade). (...). Lembrou que houvera modulação no ‘habeas corpus’ de que cuida a presente reclamação, para que não gerasse consequências jurídicas em relação a penas já extintas. Sopesou, por outro lado, que nem todas essas decisões com eficácia expansiva, além das englobadas pelo art. 52, X, da CF, ensejariam ajuizamento de reclamação, sob pena de a Corte se transformar em órgão de controle dos atos executivos decorrentes de seus próprios acórdãos” (Informativo 739). 60 Pouco antes disso, o Ministro esclareceu que: “a expansão do papel dos precedentes atenderia a três finalidades constitucionais: segurança jurídica, isonomia e eficiência. Explicou que essa tendência tornaria a prestação jurisdicional mais previsível, menos instável e mais fácil, porque as decisões poderiam ser justificadas à luz da jurisprudência. Assinalou que, embora os precedentes só vinculassem verticalmente e para baixo, na linha da doutrina ‘stare decisis’, eles deveriam vincular horizontalmente, para que os próprios tribunais preservassem, conforme possível, a sua jurisprudência. Sublinhou que, na medida em que expandido o papel dos precedentes, seria necessário produzir decisões em que a tese jurídica fosse mais nítida, o que seria denominado, pelo direito anglo-saxão, de ‘holding” (Informativo 739). 59

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omnes’, pois seria implementado por qualquer órgão jurisdicional” (Informativo 739). Ao fim e ao cabo, foram vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que não conheciam da reclamação, mas concediam habeas corpus de ofício para que o juízo de 1º grau examinasse os requisitos para a progressão de regime dos condenados. O acórdão aguarda publicação. Verifica-se, por conseguinte, que em um primeiro momento do julgamento dessa relevante questão, cuja decisão foi tomada por maioria absoluta no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, assumiu especial relevo indagar sobre o papel do Senado Federal e a função de sua resolução. Todavia, levando em conta fato novo e relevante, consistente na edição de súmula vinculante capaz de corroborar a questão inicialmente trazida pela reclamação, no instante seguinte a importância de eventual resolução do Senado Federal foi completamente obnubilada em razão da súmula vinculante. Em poucas palavras, com a edição da Súmula Vinculante nº 26 perde-se o interesse prático e a necessidade jurídica de edição de eventual resolução do Senado Federal. Todavia, remanesce a questão aberta no âmbito do STF, a ser decidida em situação que não conte com a edição de súmula vinculante.

4.5 A revalorização da participação do Senado Federal Com o julgamento da Reclamação 4.335, na qual a Suprema Corte discutiu a tese de reconhecer eficácia contra todos como decorrência natural das decisões tomadas em controle difuso, bem como no sentido de ter ocorrido a chamada mutação constitucional, referente ao papel do Senado Federal e com a solução em sentido contrário a tal tese, “é de supor que ocorra uma revalorização do artigo 52, X, da Constituição, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista prático”.61 61 Em síntese: “A tendência expansiva dos efeitos de decisões no controle difuso foi reconhecida, mas, no caso, a Reclamação foi conhecida e deferida, na prática,

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Com efeito, submetida a tese da mutação constitucional ao Pleno do STF, capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, ela não logrou alcançar a maioria necessária para a sua adoção. Firmou-se, ao final, o entendimento de que não ocorreu a referida mutação constitucional, razão pela qual permanece válido e relevante o inciso X do art. 52 da Lei Maior, para as situações específicas cabíveis, consistentes nas decisões oriundas do controle difuso que não sejam objeto de edição de súmula vinculante (tal como ocorreu na Reclamação 4.335). O impacto de tal definição sobre o papel do Senado Federal e o alcance da sua resolução no sistema de controle jurisdicional difuso de constitucionalidade é evidente em diferentes campos jurídicos. A Reclamação 4.335 traz um exemplo no qual a matéria de fundo é de índole penal referente a possibilidade de progressão de regime para condenados por crimes hediondos. A título meramente exemplificativo, cabe registrar um reflexo sobre a interpretação e aplicação do dispositivo na seara tributária. O Min. Celso de Mello, ao enfrentar a questão, entende que: “Assim, nesta matéria (...), a nosso ver, foram postas as questões referentes à decadência do direito de pleitear restituição dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação. A decadência ocorrerá: a) se não foi declarada a inconstitucionalidade da exigência pelo STF: a.1) se o pagamento antecipado foi efetuado antes da vigência da Lei Complementar n. 118/2005 (9-6-2005), não tendo havido homologação expressa, após o transcurso do prazo de cinco anos (contados de 5 anos após a ocorrência do fato gerador), que é quando se dá a homologação tácita (5+5 anos, logo, ao fim simplesmente, porque houve a superveniência de uma súmula vinculante (a de n. 26) sobre o assunto de fundo agitado na Reclamação” (AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Revalorização do artigo 52, X, da Constituição. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, 20.04.2014. Disponível na internet: <http://www.conjur.com. br/2014-abr-20/analise-constitucional-revalorizacao-artigo-52-inciso-constituicao>. Acesso em: 30.09.2014). No mesmo sentido: AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Reclamação 4.335 e a busca do stare decisis. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, 25.05.2013. Disponível na internet: <http://www.conjur.com.br/ 2013-mai25/observatorio-constitucional-reclamacao-4335-busca-stare-decisis>. Acesso em: 30.09.2014.

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do prazo de 10 anos, segundo interpretação jurisprudencial então vigente); a.2) se o pagamento antecipado foi efetuado na vigência da Lei Complementar n. 118/2005 (9-6-2005), após o transcurso de cinco anos da data do pagamento dito antecipado; B) SE A DECLARAÇÃO FOR EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO: b.1) se a declaração for em sede de controle concentrado (em ação declaratória de inconstitucionalidade ou constitucionalidade), no prazo de cinco anos após a publicação do acórdão; B.2.1) NO PRAZO DE CINCO ANOS A PARTIR DA RESOLUÇÃO DO SENADO SUSPENDENDO A EXECUÇÃO DA NORMA; b 2.2) se o Senado não editar a resolução, e o pagamento dito antecipado tiver sido efetuado anteriormente à vigência da Lei Complementar n. 118/2005, aplica-se a interpretação jurisprudencial então vigente (EREsp 437.513/MG) no prazo de cinco anos a partir da homologação tácita que ocorre cinco anos após a ocorrência do fato gerador; b. 2.3) se o Senado não editar a resolução, e o pagamento dito antecipado tiver sido efetuado posteriormente à vigência da Lei Complementar n. 118/2005, é hipótese mais complexa, na qual cremos se deva contar o prazo de cinco anos a partir da publicação do acórdão do STF, pois não acreditamos se possa adotar interpretação (como seria contar o prazo a partir do pagamento dito antecipado) que coloque o contribuinte em situação mais desfavorável que no caso de a inconstitucionalidade ter sido declarada em sede de controle concentrado” (STF – ACO 981 (tutela antecipada); Rel. Min. Celso de Mello, DJe 08.03.2007 – g.n.).

5 Conclusão Percorrido o longo caminho da participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, com a edição de resolução que suspende a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, é possível chegarmos a algumas conclusões, ainda que preliminares. Transcorridos 80 anos desde a sua introdução na Constituição de 1934, a questão em torno de sua interpretação e aplicação permanece controvertida, com muitas dúvidas, diferentes entendimentos e pouco consenso. Assim foi a sua marca durante todo esse tempo. E não é diferente agora.

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Inicialmente concebido para trazer ao ordenamento jurídico a parte subsequente à declaração de inconstitucionalidade pelo STF, com o empréstimo da eficácia contra todos e a ampliação dos efeitos daquela decisão (inicialmente tomada apenas e tão somente para as partes envolvidas na lide) para toda a sociedade de modo indiscriminado, a sua participação firmou-se como complementar no controle difuso. E não foi só isso. Embrenhou-se tanto na cultura jurídica nacional e teve tamanho relevo nos últimos 80 anos, que agora soa até difícil imaginar o ordenamento sem esse instrumento. Todavia, é inegável que o campo de atuação do Senado Federal tem-se modificado ao longo de todo esse tempo. Exemplo disso é a criação da súmula vinculante que, em sentido prático, equivale à resolução, de modo que hoje não faz qualquer sentido que o Senado Federal edite resolução em caso que tenha sido objeto de súmula vinculante. As hipóteses de utilização da súmula vinculante pelo STF, por diferentes razões, têm-se mostrado reduzidas no dia-a-dia, de modo que para todas as demais hipóteses do controle difuso (que não são objeto de súmula vinculante) a participação do Senado Federal continua não só relevante como também necessária. Com a conclusão do julgamento da Reclamação 4.335, prevaleceu a orientação no sentido de que o inciso X do art. 52 da Constituição da República não sofreu qualquer mutação constitucional, como proposto inicialmente pelo Ministro Gilmar Mendes. Além disso, o STF, por maioria, decidiu que tal mudança deveria necessariamente vir consagrada de modo expresso no texto da Lei Maior. É possível ir ainda mais além, como fez o Ministro Ricardo Lewandowski no seu voto, para entender que tal modificação por emenda constitucional seria impossível, na medida em que o amesquinhamento da função do Senado Federal importaria em violação à separação de Poderes, esta sim cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, III, da Constituição da República. O resultado do julgamento da Reclamação 4.335 chega em boa hora, quando o instituto completa 80 anos na ordem constitucional

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brasileira e, principalmente, vê sua importância e função no controle difuso recrudescer para as hipóteses que remanesce aplicável. Desse modo, ao lado do efeito das decisões do STF no controle abstrato (via ADPF, ADC e ADI) e da súmula vinculante, a resolução do Senado Federal que suspende a execução de lei declarada inconstitucional pode ser a elas equiparada no sentido prático, na medida em que todos os instrumentos acima dotam as decisões de eficácia contra todos (erga omnes). Tanto a súmula vinculante como a resolução do Senado Federal são instrumentos capazes de ampliar os efeitos da decisão tomada pelo STF para alcançar toda a sociedade (quando inicialmente atingia apenas e tão somente as partes envolvidas na lide). Contudo, o hercúleo trabalho de interpretação e aplicação em torno do instituto, hoje previsto no inciso X do art. 52 da Constituição da República, está longe de chegar ao fim. Com efeito, o desafio é integrá-lo aos demais instrumentos que têm sido introduzidos na ordem jurídica nacional nos últimos anos. O espírito subjacente a tal interpretação e aplicação do dispositivo constitucional não deve tender ao amesquinhamento do relevante mister atribuído como de competência privativa ao Senado Federal. Ao contrário, com a sinalização clara do Pleno do STF no julgamento da Reclamação 4.335, tal função do Senado Federal deve ser sempre compatibilizada com as demais novidades legislativas e jurisprudenciais, com a atribuição de máxima eficácia e maior concretude ao inciso X do art. 52, pelo menos, em homenagem ao seu octogenário percurso. Incumbe agora ao Pleno do STF promover a adequada interpretação e aplicação do inciso X do art. 52, que confere privativamente ao Senado Federal a relevante função de editar resolução para suspender a execução de lei declarada inconstitucional no controle difuso. A relação de certa equiparação com a súmula vinculante parece evidente, na medida em que se esta for editada, perderá qualquer razão prática para a edição da resolução, vez que a ampliação do efeito da decisão do STF já terá alcançado toda a sociedade. Cuidando-se da repercussão geral, contudo, parece adequar-se

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perfeitamente, na medida em que ela, por si só, não assegura à decisão a eficácia contra todos, limitando-se a estampar no precedente maior carga persuasiva, sobretudo no âmbito do próprio Poder Judiciário. Desse modo, em princípio, releva assinalar a enorme importância da função do Senado Federal (e da sua resolução) para aquelas decisões tomadas no controle difuso que declaram a inconstitucionalidade, predominantemente com repercussão geral, com o objetivo de ampliar a sua eficácia (inicialmente limitada às partes envolvidas na lide) para alcançar toda a sociedade. Ao Senado Federal, incumbe cuidar para que este elevado mister seja bem cumprido, com frequentes análises dos ofícios rotineiramente recebidos do STF, com o objetivo de aumentar ainda mais a pacificação social dos precedentes que solucionam relevantes questões jurídicas no seio social.

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AÇÕES DE SAÚDE CONTRA O PODER PÚBLICO: ensaio de um roteiro decisório Francisco Glauber Pessoa Alves Juiz Federal Presidente da Turma Recursal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e Membro do Instituto Potiguar de Processo Civil (IPPC)

Resumo

Abstract

O presente trabalho busca estabelecer padrões mínimos de enfrentamento das questões legais da saúde movidas contra o Poder Público no direito brasileiro. Para tanto, utilizamos fontes de informação aprimoradas, visando propiciar decisões mais técnicas e específicas. Usamos um ponto-de-vista que utiliza pesquisas e informações médicas, além da questão jurídica. Também é defendido que o juiz considere o aspecto macro, especialmente as opções de políticas públicas legitimamente feitas pelo administrador. Ao final, é apresentado um roteiro decisório.

This paper seeks to establish minimum standards of coping with legal health issues filed against the government in brazilian law. For this purpose, we use the improved information sources, in order to provide more technical and specific decisions. We bring a point of view that uses researches and informations medical, beyond the legal issue. It is also argued that the judge consider the macro aspect, especially the legitimate choices of public policy legitimately made by the administrator. At the end, it presents a decisionmaking guide.

Palavras-chave: Questões legais de saúde – Poder Público – Brasil. Padrões mínimos decisórios.

Keywords: Legal health issues – Public government – Brazil – Decision-making minimum standards.

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1 Introdução Há uma aparente desuniformidade quanto às decisões que envolvem saúde e a extensão da responsabilidade pública, ora pendendo para a fundamentação estritamente dogmática e genérica (e, portanto, teórica), ora para uma melhor aquilatação de dados fáticos diversos que possam influenciar o direito aplicável à espécie. O campo cinzento entre a negativa geral (menos comum) e a concessão geral (mais presente) é, basicamente, o que configura níveis de desconforto decisório. De fato, é usual a referência simples ao direito constitucional à saúde como fórmula de resolução de lides de tal jaez. Mais do que uma deficiência na fundamentação decisória, de resto ofensiva à Constituição Federal (art. 93, IX1), essa peculiaridade parece indicar outro problema, mais agudo: a própria formação do julgador para enfrentar demandas tão específicas. Não se descura do drama ao qual são submetidos os magistrados ao decidirem tal matéria. O princípio da inafastabilidade jurisdicional (art. 5º, XXXV2 da Constituição Federal – CF) permite, no direito brasileiro, acentuada presença do Judiciário na resolução dessas demandas que, na origem, derivam de um problema, sobretudo, da função executiva. Surge, portanto, um complexo contexto multidisciplinar muitas vezes tangenciado – até mesmo por força das circunstâncias – pelo juiz, com componentes diversos que merecem abordagem. “Art. 93. (...) IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. 2 “Art. 5º. (...) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 1

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O primeiro componente é o carecimento, por parte do julgador, da visão do administrador. As políticas públicas – da qual a saúde é apenas uma delas – são traçadas a partir de demandas político-sociais, opções discricionárias e orçamentos finitos. Informações e assessoramento específicos orientam os administradores na formulação dessas políticas. Muitos são profissionais, com anos de experiências. O direcionamento de esforços, programas e recursos (estes também sujeitos à aprovação orçamentária pelos poderes legislativos de cada ente federativo) é feito sob esta ótica, de forma a garantir universalidade e igualdade de atendimento. Há, então, uma visão macrossistêmica que é desconhecida – diria até mesmo indiferente – ao magistrado nas contendas individuais que lhe são postas. Ao determinar, no varejo, políticas públicas, o julgador finda por influir profundamente na realização, por atacado, das mesmas políticas públicas, influindo profundamente numa atividade que é gerencial e ontologicamente executiva. Um segundo componente é a questão técnica propriamente dita. A formação médica e a base científica são exigências muito presentes e peculiares. Opiniões diferenciadas, indicações calcadas em posições individuais com ou sem lastro em estudos científicos, singelo empirismo e situações quejandas, tudo isso é algo que acentua, em muito, a dificuldade nesses assuntos. Por vezes, nem mesmo a posição do perito médico permite resolver o caso concreto num nível de cientificidade suficiente. Embora respeitada a posição médica individual, há toda uma malha de estudos e especialistas em medicina e áreas afins nos centros de pesquisa que, no essencial, propiciam prescrições e protocolos clínicos mais experimentados, gabaritados e acertados do que indicações individuais de tratamentos, medicamentos, procedimentos etc. O terceiro e talvez o mais importante componente do problema é de natureza humana: o peso, sob os ombros do julgador, de negar um tratamento específico a alguém sob risco de morte. É quase um xeque-mate. A negativa de uma decisão, liminar ou definitiva, pode importar na perda do direito autoral à vida – quando menos a uma

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situação de saúde mais confortável. É o que se chama de “escolha trágica”. Dito dessa forma simples, parece não haver muita dúvida a um leigo quanto ao direito infinito à saúde. Porém, juízes devem decidir dentro do universo de princípios jurídicos, muitas vezes mal-compreendidos ou antipáticos a opiniões alheias à profissão, e não por conforto psicológico. A acentuada ineficácia do Sistema Único de Saúde (SUS) reflete-se cada vez mais na ampliação do número de ações que discutem fornecimento de tratamentos, procedimentos e medicamentos na esfera judicial. Esse crescente volume de demandas judiciais de saúde associado à ausência de parâmetros decisórios mais seguros deu ensejo, inclusive, à iniciativa do CNJ no sentido de traçar padrões de enfrentamento dos problemas surgidos, englobáveis no chamado Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde. Ali asseverou-se: A partir dos resultados da Audiência Pública nº 4, realizada pelo STF em maio e abril de 2009, o CNJ constituiu um grupo de trabalho (Portaria n. 650, de 20 de novembro de 2009). Os trabalhos do grupo culminaram na aprovação da Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010, pelo Plenário do CNJ que traça diretrizes aos magistrados quanto às demandas judiciais que envolvem a assistência à saúde. Em 6 de abril de 2010, o CNJ publicou a Resolução n. 107, que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde – Fórum da Saúde. O Fórum da Saúde é coordenado por um Comitê Executivo Nacional (Portaria n. 40 de 25 de março de 2014) e constituído por Comitês Estaduais. A fim de subsidiar com informações estatísticas os trabalhos do Fórum, foi instituído, por meio da Resolução 107 do CNJ, um sistema eletrônico de acompanhamento das ações judiciais que envolvem a assistência à saúde, chamado Sistema Resolução 107. Após realizar dois encontros nacionais, o Fórum da Saúde ampliou sua área de atuação para incluir a saúde suplementar e as ações resultantes das relações de consumo. (2016, acesso eletrônico).

Essa postura importantíssima do CNJ deu-se a partir de importante precedente do STF (Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na

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Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010), no qual foram realizadas audiências públicas diversas. Ocorreram, então, a I e a II Jornadas de Direito da Saúde, onde assuntos pertinentes foram discutidos e Enunciados aprovados. Essa base mínima de conhecimentos, hauridos pela interação do Judiciário com a classe médica e científica, bem como com gestores públicos, produziu um manancial de conhecimento a subsidiar maior grau de certeza no que se refere a boa parte das demandas. A partir dessa iniciativa, uma jurisprudência mais sensível e aperfeiçoada começou a ser produzida. Também uma gestão pública mais atenta aos efeitos da judicialização da saúde foi inevitável, posto que a partir dela os orçamentos tiveram de ser planejados e executados a partir. Acima de tudo, a intensificação de embasamentos técnicos junto aos argumentos jurídicos alargou-se. Nossa atuação judicante junto à Turma Recursal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte trouxe-nos uma razoável magnitude das muitas dificuldades, a partir de problemas isolados e/ou comuns aos três entes federativos. Um sistema público de saúde ineficiente finda por refletir na atuação do Judiciário. Tais problemas de gestão pública da saúde, a afetarem, em maior ou menor intensidade, todo o país, conduziram-nos a uma maior intimidade com o assunto. Este ensaio é uma tentativa de demonstração de que já é possível falar-se em standards decisórios para parcela significativa das pretensões. Nele, rapidamente, exporemos uma base teórica para, em sequência, avançarmos propriamente na proposta: um roteiro mínimo fiável para julgamento das demandas de saúde. Há limitações de espaço e de exemplificações do cotidiano forense, donde assinalamos, de logo, que aqui apresentamos uma partida e não uma chegada. Também por ensejar uma abordagem específica, não trataremos aqui das questões atinentes à saúde suplementar, que envolvem planos de saúde privados. Ao cabo, apresentaremos nossas conclusões.

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2 Premissas doutrinárias Há previsão constitucional do direito à saúde, sendo claro o art. 196: a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Assim, temos liames de: a) atuação visando redução do risco de doença e agravos outros; b) acesso universal; c) igualdade de acesso dos serviços. Não sendo de teorização a proposta deste ensaio, mas, ao reverso, de tons pragmáticos, cumpre registrar as linhas regenciais sobre o assunto. Considerando que muito dessa teoria já vem sendo estudada há anos3, crucial estabelecer uma ligação sua com os problemas concretos. Já havíamos enfrentado um pouco do assunto em obra anterior (2013, 97-105). O atual problema da implementação de políticas públicas pelo Judiciário está umbilicalmente ligado ao dogma do princípio-mor da nossa Constituição Republicana: o da tripartição de funções (art. 2º). A ele objeta-se o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, igualmente na Lex Mater)4. Ou seja, contrapõem-se dois princípios constitucionalmente assegurados. O que fazer? Para uma visão mais alargada, vide, por exemplo: Alexy (2008, passim); Barroso (s.d., passim); Canotilho (1999, passim); Costa, S. (2013, p. 345-370); Duarte (2011, passim); Dworkin (1999, passim); Grinover (2011, p. 125-150); Ramos (2012, passim); Sadek (2013, 305-312); Sarlet (2009, passim); Sunstein e Holmes, 2004, passim; Valle (2009, p 21). Mais recentemente: Araújo (2015, p. 59-66); Caldo (2015, p. 507523); Ferreira Filho (2015, p. 67-81); Kim (2015, p. 165-187); Maldonado (2015, p. 189-212); Melo Filho e Duarte Neto (2015, p. 131-141); Tesheiner e Thamay (2015, p. 129-143). 4 “Nesse passo, vê-se a discricionariedade como um terreno relativamente interditado à atuação judicial. Em outras palavras, o mérito dos atos que concretizam (ou não concretizam) políticas públicas é suscetível de controle judicial, excepcionalmente. As técnicas jurídicas que podem viabilizar, legitimar e conferir consistência a tal controle são diversas. Mencionam-se as mais expressivas e já consolidadas em nosso Direito: as teorias dos motivos determinantes e do desvio de finalidade, bem como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (COSTA, F., 2005, p. 40-53). 3

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A resposta vem da doutrina de Alexy, para quem a conflitância entre um princípio não torna o outro nulo5. E a preponderância do princípio da inafastababilidade dar-se-á, sempre de forma comedida, na proporção em que a Administração não esteja cumprindo a contento sua função. Não haverá e nem muito menos será desejável um Judiciário que simplesmente, em exercício de megalomania, arvore-se para si o direito/dever de administrar, inclusive observando-se juízos de conveniência e oportunidade que se difíceis ao administrador, à frente propriamente dita da máquina burocrática, muito mais serão ao julgador, que não é normalmente vocacionado a isso, como vem comprovando a história. Os problemas orçamentários são tão presentes que essencialmente informam a chamada “reserva do possível” ao lado da razoabilidade, que devem necessariamente estar presentes e serem sopesadas pelo julgador, sob pena de arbítrio judicial. Essa a tese acolhida no seio do STF6. Por “reserva do possível” há de se entender, essencialmente, razoabilidade da pretensão deduzida e existência de disponibilidade financeira (contexto ignorado, muitas vezes, nas decisões judiciais).

Alexy (2008, passim). Consultar, ainda, Canotilho (1999, p. 1086 e ss). “EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)” (STF, ADPF 45, rel. Min. Celso de Mello, monocrática, DJ 29.04.2004).

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O STF tem dado bastante amplitude à defesa do direito à saúde, sob os mais diversificados contextos: a) ao reconhecer ao Judiciário o poder de determinar o fornecimento de tratamento de saúde7 e medicação8 quando o executivo não o forneça adequadamente; b) ao assentar a solidariedade entre os entes federativos para tanto9; c) ao viabilizar o bloqueio de verbas públicas quando

“EMENTA Embargos de declaração no agravo de instrumento. Recebimento como agravo regimental, conforme a jurisprudência da Corte sobre o tema. Fornecimento de medicamento. Fármaco que não consta dos registros da Anvisa, mas que foi receitado ao paciente. Inclusão, ainda, na lista de medicamentos excepcionais que devem ser fornecidos pelo Estado do Rio Grande do Sul. Obrigatoriedade do fornecimento. Precedentes. 1. A jurisprudência da Corte pacificou o entendimento de que o implemento do direito à saúde impõe ao Estado o fornecimento dos meios necessários ao tratamento médico dos necessitados. 2. A controvérsia instaurada nos autos difere substancialmente da matéria em discussão no RE nº 657.718/MG-RG, não havendo que se falar, portanto, no sobrestamento do processo enquanto se aguarda a conclusão daquele julgamento. 3. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, ao qual se nega provimento” (STF, 1ª T., AI 824946 ED/RS, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 17/09/2013). 8 “Ementa: paciente portadora de doença oncológica – neoplasia maligna de baço – pessoa destituída de recursos financeiros – direito à vida e à saúde – necessidade imperiosa de se preservar, por razões de caráter ético-jurídico, a integridade desse direito essencial – fornecimento gratuito de meios indispensáveis ao tratamento e à preservação da saúde de pessoas carentes – dever constitucional do Estado (CF, arts. 5º, caput, e 196) – precedentes (STF) – responsabilidade solidária das pessoas políticas que integram o Estado Federal Brasileiro – consequente possibilidade de ajuizamento da ação contra um, alguns ou todos os entes estatais – recurso de agravo improvido” (STF, 2ª t., RE 716777 AgR/RS, rel. Min. Celso de Mello, DJe 16/05/2013). 9 “Ementa direito constitucional. Direito à saúde. Fornecimento de fraldas descartáveis. Imprescindibilidade. Decisão em sentido diverso dependente da reelaboração da moldura fática delineada no acórdão regional. as razões do agravo regimental não são aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada. Precedentes. Acórdão recorrido publicado em 21.01.2010. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido da responsabilidade solidária dos entes federativos quanto ao fornecimento de medicamentos pelo Estado, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um deles – União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. As razões do agravo regimental não são aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada, mormente no que se refere à reelaboração da moldura fática constante do acórdão recorrido, a inviabilizar o trânsito do recurso extraordinário. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido” (STF, 1ª T., RE 626382 AgR/RS, rel. Min. Rosa Weber, DJe 11/09/2013). 7

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o Estado se negar a fornecer medicamentos10; d) ao confortar a judicialização do direito à saúde11. Essa evolução jurisprudencial é a marca de um Judiciário que procura revisitar os valores constitucionais de modo a adequá-los à realidade atual, em compasso com a nossa Constituição Federal. Esse padrão não é seguido, por exemplo, pelo tribunal constitucional português12, o que demonstra o caráter dinâmico do STF e do direito brasileiro. Daí que, por mais nobre que seja a intenção, a disponibilidade financeira é algo que sempre há de associar-se à razoabilidade da “Ementa: Agravo Regimental em Agravo de Instrumento. Direito à Saúde. Medicamentos. Fornecimento a Pacientes Carentes. Obrigação do Estado. I – O acórdão recorrido decidiu a questão dos autos com base na legislação processual que visa assegurar o cumprimento das decisões judiciais. Inadmissibilidade do RE, porquanto a ofensa à Constituição, se existente, seria indireta. II – A disciplina do art. 100 da CF cuida do regime especial dos precatórios, tendo aplicação somente nas hipóteses de execução de sentença condenatória, o que não é o caso dos autos. Inaplicável o dispositivo constitucional, não se verifica a apontada violação à Constituição Federal. III – Possibilidade de bloqueio de valores a fim de assegurar o fornecimento gratuito de medicamentos em favor de pessoas hipossuficientes. Precedentes. IV – Agravo regimental improvido” (STF, 1ª T., AI 553712 AgR/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 05/06/2009). “Ementa: 1. Recurso. Extraordinário. Inadmissibilidade. Fornecimento de medicamentos. Bloqueio de verbas públicas. Direito à saúde. Jurisprudência assentada. Art. 100, caput e parágrafo 2º da Constituição Federal. Inaplicabilidade. Ausência de razões novas. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões novas, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte. 2. Recurso. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa. Aplicação do art. 557, § 2º, cc. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal condenar o agravante a pagar multa ao agravado” (STF, 2ª T., AI 597182 AgR/RS, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 06/11/2006, p. 42). 11 “Ementa: Suspensão de Liminar. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Ordem de regularização dos serviços prestados em hospital público. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança pública. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento” (STF, Pleno, SL 47 AgR/PE, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 30.04.2010). 12 Canotilho (1999, p. 1086 e ss). 10

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pretensão trazida a juízo, sem o quê ter-se-á uma decisão deslegitimada à luz dos princípios constitucionais diversos que necessitam ser sopesados. Em tempos onde cada vez mais as Constituições assumem relevo como norte básico dos ordenamentos jurídicos, desenvolveu-se uma hermenêutica peculiar ao direito constitucional, a chamada hermenêutica constitucional: Justifica-se, ainda, a existência de uma hermenêutica constitucional pela presença da denominada jurisdição constitucional, determinada a aplicar, a fazer valer a Constituição como norma suprema. O controle abstrato-concentrado é, pois, um dos maiores indicadores de que da hermenêutica jurídica merece destaque aquela dedicada à questão constitucional. (TAVARES, 2013, p. 180).

Muito a propósito, já se ressaltava: O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. (BARROSO, 2003, p. 151).

Ou ainda a pena autorizada de Canotilho: A investigação do conteúdo semântico das normas constitucionais implica uma operação de determinação (= operação de densificação, operação de mediação semântica) particularmente difícil no direito constitucional. Em primeiro lugar, os elementos lingüísticos das normas constitucionais são, muitas vezes, polissêmicos ou pluri-significativos (ex.: os conceitos de Estado, povo, lei, trabalho, têm vários sentidos na Constituição). (1999, p. 1142).

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A interpretação constitucional deve levar em conta também alguns princípios próprios, dada a magnitude do seu valor na ordem jurídica. Dentre outros importantes, temos os princípios da máxima efetividade (impõe que seja atribuída à norma constitucional a maior eficácia possível) e também da concordância prática (impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros), conforme (CANOTILHO, 1999, p. 1148-1151). A atividade mais complexa é não só fazer o juízo de ponderação entre os direitos fundamentais diversos, mas, sim, como concretizar o direito fundamental prestigiado. Daí o nascedouro do chamado ativismo judicial, bem delineado: (...) a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menores rígidos os que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público. (BARROSO, s.d., acesso eletrônico).

Feito esse resgate, vale destacar, inclusive, que à luz da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (novo Código de Processo Civil), há uma clara exigência de melhor fundamentação no que tange aos conflitos entre princípios constitucionais13. Temperam Nery Jr. e 13 “Art. 489. São elementos essenciais da sentença: I – O relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – Os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória,

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Nery (2015, p. 1156) que a norma contida no § 2º do art. 489 do Código de Processo Civil incipiente respeita exclusivamente aos direitos fundamentais e entre princípios constitucionais. Destacam os autores que a hermenêutica jurídica clássica ainda aplica-se às normas jurídicas em geral, ou seja, aos casos que não envolvam direitos fundamentais e princípios constitucionais. É certo que em um modelo de Constituição analítica14 ou prolixa como é o brasileiro, uma diversidade de direitos e princípios encontram-se constitucionalizados, o que parece propiciar uma atividade decisória extremamente atada à hermenêutica constitucional desde a base jurisdicional (primeira

sentença ou acórdão, que: I – Se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – Empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – Não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – Se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – Deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”. 14 “As Constituições analíticas, também chamadas prolixas, extensas, inchadas, amplas, minuciosas, detalhistas ou desenvolvidas, acabam extrapolando, descendo a certas minúcias, contemplando grande número de regras jurídicas. É o caso da Constituição brasileira de 1988 e da Constituição da Índia, de 1950, com mais de 400 artigos. Esta última espécie tem sido seguida pela maior parte dos países. As razões apontadas para o surgimento da Constituição analítica são: a indiferença, que se tem transformado em desconfiança, quanto ao legislador ordinário; a estatura de certos direitos subjetivos, que estão a merecer proteção juridicamente diferenciada; a imposição de certos deveres, especialmente aos governantes, evitando-se o desvio de poder e a arbitrariedade; a necessidade de que certos institutos sejam perenes, garantindo, assim, um sentimento de segurança jurídica decorrente de rigidez constitucional” (TAVARES, 2013, p. 173).

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instância) até as derradeiras cortes de julgamento. Há, conforme a doutrina constitucional, um modelo expansivo15. Nessa linha, bem discutida essa hermenêutica no direito constitucional, já houve sua incorporação na esfera da processualística, que defende postulados próprios para fundamentação dos princípios, como o da ponderação (AMARAL, 2015, p. 594; CUNHA, 2015, p. 1236). Assim, uma vez existentes conflitos normativos ou mesmo algo mais profundo, o conflito entre princípios constitucionais, toca ao julgador fundamentar a decisão, esclarecendo claramente o conflito e porque aplica ou deixa de aplicar determinada norma ao caso concreto. Porém, o que é mais difícil sindicar concretamente nas demandas de saúde não é tanto o aspecto jurídico (ninguém há de negar a ninguém o direito à saúde, numa esfera mais simplista), mas o aspecto multidisciplinar e macro. Por exemplo, a concessão de tutelas judiciais pode inviabilizar orçamentos públicos pensados e aprovados para garantir um mínimo a todos – afinal, o máximo a um pode prejudicar o mínimo de alguns. Curial observar que, numa senda de finitude de recursos públicos, não há direito universal ao melhor tratamento de saúde possível. Há, evidente, um direito a um tratamento razoavelmente eficaz, mas não ao mais eficaz, porque nenhum sistema público de saúde propicia isso no mundo e o Brasil, ainda com longo caminho a percorrer em termos de desenvolvimento, não se pode dar a esse luxo. Não faltam dados a subsidiarem a crescente destinação de recursos orçamentários para atender às decisões judiciais. Conforme matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo (2014, acesso eletrônico), o Estado de São Paulo atendia 39.150 demandas judiciais de saúde. O gasto em 2013 foi de R$ 904,8 milhões, mais que o dobro “A Constituição de 1988 inscreve-se no grupo das Constituições expansivas, distanciando-se da brevidade que caracterizou a Constituição Republicana de 24 de fevereiro de 1891. Causas numerosas, explicam o crescimento, nem sempre razoável da matéria constitucional, com sacrifício de sua limitação aos domínios clássicos da organização dos Poderes do Estado e da Declaração dos Direitos e Garantias Individuais” (HORTA, 2003, p. 207). 15

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do valor desembolsado em 2010. Entre 2009 e 2012 houve alta de 25% nas ações contra a União, de 10.486 para 13.051, com gastos saltando de R$ 95 milhões para R$ 355,9 milhões. Não é pouco. Na mesma matéria, entrevistados de diversas áreas levantaram pontos importantes sobre o assunto: a) dois terços das ações judiciais contra o SUS no Estado de São Paulo para aquisição de remédios são iniciadas por pessoas com convênios médicos ou que frequentam clínicas particulares, conforme levantamento da Secretaria Estadual de Saúde; b) a judicialização da saúde acarreta o direcionamento de recursos da população mais pobre para beneficiar quem tem mais recursos, conforme destacaram o então Ministro da Saúde, Arthur Chioro, e o Secretário Estadual de Saúde, David Uip; c) as ações se concentram nas áreas ricas e em tratamentos de alto custo (conforme dados da Escola de Saúde Pública de Harvard, EUA); d) por vezes, há fornecimento de tratamentos discutíveis (off label) e onerosos do ponto de vista médico-científico (Secretário Estadual de Saúde, David Uip); e) o efeito ambíguo de pressão para os planos de saúde e o SUS expandirem as coberturas, mas também para que a indústria force a entrada de remédios e procedimentos, com ou sem efetividade comprovada, consoante indicado por Lygia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O texto ressaltou a importância da criação de Câmaras Técnicas (sobre o que voltaremos a tratar mais adiante) com profissionais da saúde, do Ministério Público e do Judiciário para avaliação com base em evidências científicas. Algo similar aconteceu no Rio de Janeiro, onde, segundo o site do Tribunal de Justiça (2015, acesso eletrônico), houve o aumento da procura da Justiça para resolver essa questão. Em 2007, foram 12.208 (doze mil duzentos e oito) casos, enquanto em 2014 foram registrados 29.970 processos, o que levou o governo do Estado a criar estrutura própria dentro da Secretaria de Estado de Saúde (SES) para melhor atender essa demanda, buscando mais agilidade e otimização de recursos. Somente em 2014, a estrutura criada pelo Rio de Janeiro para as demandas de judicialização da saúde custou aos

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cofres públicos R$ 71 milhões, atendendo cerca de 39 mil pessoas. O valor correspondeu a 1,5% do orçamento da saúde no Estado, de R$ 4,5 bilhões. Para se ter uma ideia, para manter uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), o governo fluminense gasta R$ 21 milhões para atender 120 mil pacientes ao ano. Evidente que a questão econômica tem de ser avaliada concretamente e não a partir de alegações genéricas e despidas de prova relevante. E tanto maior a dificuldade para a análise dessa questão orçamentária quanto mais expressivo o ente federativo, havendo o ônus da prova quanto à inviabilidade. Basta trazer duas constatações simples à reflexão: a) diferente dos Estados e Municípios, as ordens de sequestro via eletrônica não atingem (= são ineficazes, portanto) a União, pela peculiaridade como ela movimenta seus recursos, de onde aqueles dois primeiros entes é que sofrem mais diretamente as consequências das decisões judiciais; b) possuindo os Estados e Municípios menos recursos, têm o planejamento universal e efetividade de sua saúde pública mais afetados. O julgador não pode ser insensível a isso: muitas vezes, autorizar um tratamento em uma ação pode prejudicar diretamente outras várias pessoas que precisem do mesmo ou de outros tratamentos, mas não trouxeram sua demanda à análise. Retornamos, aqui, à dificuldade da visão macro desta grande equação. Determinar internamento imediato numa UTI pública, por exemplo, pode significar para o administrador hospitalar negar atendimento a um outro paciente de maior urgência, cuja única culpa foi não ter judicializado, por uma ou outra razão, sua dificuldade. E aqui, em matéria de saúde, não parece justo invocar a parêmia de que o direito não socorre quem dorme. Talvez seja imediatamente reconfortante à consciência, mas, muitas vezes pode não ser juridicamente adequado. Simples assim, de onde a solução jurisdicional há de ser mais complexa. Também não se olvida de uma deficiência acerca da inteireza, pelos magistrados, sobre todos os pormenores. Em estudo levado a cabo pelo CNJ intitulado Judicialização da Saúde no Brasil (2015, acesso eletrônico), em seis Tribunais de Justiça, nos anos de 2013

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e 2014, detectou-se em comum nas ações: a) foco curativo (e não preventivo) das demandas, evidenciando-se uma dimensão parcial das ações e serviços que devem ser prestados pelo Poder Público; b) predominância da litigância individual, a desafiar o próprio Judiciário e a gestão em saúde; c) tendência de deferimento final e na antecipação de tutela; d) pouca menção à Audiência Pública do STF realizada em 2009 e às balizas ali discutidas; e) pouca menção ao CNJ e suas Recomendações, principalmente as de números 3116 e 3617, que sugerem estratégias de como os juízes devem lidar com a judicialização da saúde pública e suplementar; f) pouca referência ao Fórum Nacional e aos Comitês Estaduais; g) tendência de utilização dos Núcleos de Apoio Técnicos somente nas Capitais. Tais dados apontam a premência de atualização dos currículos jurídicos e das escolas de formação de magistrados, a subsidiarem as atuações destes. De fato, não é incomum o apontamento dessa realidade: O atual controle jurisdicional coletivo das políticas públicas tem sido realizado de forma imprópria por parte da magistratura. A judicialização tem se operado principalmente por meio de ações individuais, nas quais o juiz – lastreando-se em um petrificante processo positivista – não analisa a política pública como um todo, mas apenas a microrrealidade que lhe é apresentada no caso concreto e seu enquadramento na lei. Em razão disso, em muitas das ocasiões o processo é visto sob o tradicional viés individualista, no qual o magistrado soluciona a violação ao direito de um único indivíduo, e não de toda a coletividade (CALDO, 2015, p. 513).

Bem verdade que as ações do CNJ vêm se constituindo em notável diferencial positivo: as discussões estão existindo, os assuntos “Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde”. 17 “Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, com vistas a assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde suplementar”. 16

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se tornando conhecidos, os parâmetros tratados e aprovados etc. Temos aqui, então, o nó górdio: direito à saúde versus reserva do possível (dicotomizada entre razoabilidade da pretensão deduzida e existência de disponibilidade financeira). Não há solução fácil, muito menos estamos aqui imbuídos de dar uma resposta pronta e acabada. Temos, claro, uma posição do que nos parece mais acertado. É inegável o direito do cidadão à assistência estatal direcionada à proteção da saúde, em face do insculpido no art. 196, caput, da Constituição de 1988, sendo que o sistema único de saúde será financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes, com solidariedade da obrigação e legitimação passiva de qualquer dos entes federativos (STF, Pleno, RE 855.178/PE, rel. Min. Luiz Fux, DJe-178 16/03/2015, em regime de repercussão geral, reafirmando jurisprudência anterior no mesmo sentido), sem cogitar-se, com isso, de litisconsórcio necessário. Não há, porém, direito absoluto à saúde, donde se cotejar princípios constitucionais igualmente importantes (tripartição de funções, finitude de recursos, prévia dotação orçamentária, isonomia, dentre outros), num juízo de colisão (aparente ou não) entre direitos fundamentais que será aferido pelo julgador no caso concreto. A calibração entre a realização de políticas públicas sob compelimento judicial e a reserva do possível é equação sem resposta absoluta. Isso, aliás, que foi destacado pelo STF, em julgamento bastante importante: “Não obstante, esse direito público subjetivo é assegurado mediante políticas sociais e econômicas, ou seja, não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, independentemente da existência de uma política pública que o concretize. Há um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde” (trecho do voto do relator, Min. Gilmar Mendes, no STF, na STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, DJe-076 30/04/2010, destaques nossos).

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Com base nisso, indicaremos um pilar jurídico e prático dessa problematização judicialmente posta: a oferta de igualdade de tratamento e recursos a todos.

3 Premissas legais e fontes de informação relevantes Deve ser referida a legislação mais importante sobre saúde e Poder Público. A Lei n. 8.080/90 dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Basicamente, ela institui o SUS, sendo regulamentada pelo Decreto n. 7.508/2011. Há, ainda, a Lei n. 8.142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Por fim, a Lei Complementar n. 141/2011 regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde, bem como estabelecer os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas três esferas de governo. Cabe frisar que já existem satisfatórias fontes de informações para orientar os magistrados na análise das questões de saúde. Por meio do link específico (http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude), o CNJ propicia acesso aos Documentos relevantes, onde se contém atos normativos do CNJ, recomendações, análises técnicas, manuais de bases técnicas, Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), Lista de Medicamentos Comercializados no Brasil, Lista de Medicamentos Oncológicos, Ata de Instalação do Fórum, Discursos, Estatísticas e Roteiro de Demandas por Órtese, Prótese e Material Específico. No link do CNJ, há, ainda, descrição e acesso à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), criada

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pela Lei n. 12.401/2011, órgão colegiado de caráter permanente, integrante da estrutura do Ministério da Saúde, que assessora este nas atribuições de incorporação, exclusão ou alteração pelo SUS de tecnologias em saúde, bem como na constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Ali é possível consultar propostas de incorporação, tecnologias em avaliação, consultas públicas, decisões (positivas e negativas) sobre incorporação (realizadas pelo CONITEC), enquetes e Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASE). São observados critérios técnicos em tais decisões, com parâmetros bem definidos (art. 19-Q), com um representante do Conselho Nacional de Saúde e um especialista indicado pelo Conselho Federal de Medicina. O relatório do CONITEC deverá levar em consideração, necessariamente: I) as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso; II) a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível. Destaca-se, também no site do CNJ, a composição do Comitê Executivo Nacional do Fórum, as iniciativas dos Comitês Estaduais, os Eventos pertinentes, Quantidade de demandas nos tribunais, I e II Jornada de Direito da Saúde (inclusive enunciados). Por fim, há, ainda no site do CNJ, instrumentos importantíssimos para os julgadores: Notas Técnicas e Respostas Rápidas dos Núcleos de Apoio Técnico (NATs). Os dados ali constantes são do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, podendo-se consultar ocorrências por nome do medicamento e por patologia. Esta fonte de consulta é instrumento importantíssimo de trabalho e converge ao Enunciado n. 31 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Recomenda-se ao Juiz a obtenção de informações do Núcleo de Apoio Técnico ou Câmara Técnica e, na sua ausência, de outros serviços de atendimento especializado, tais como instituições

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universitárias, associações profissionais etc.). Os NATs devem ser multidisciplinares (médicos, professores universitários, farmacêuticos, químicos etc) e interinstitucionais (União, Estados, Municípios, autarquias), de forma a dar posições mais legitimadas e abalizadas aos magistrados, conforme Enunciado n. 17 do citado fórum [Na composição dos Núcleos de Assessoramento Técnico (NATs) será franqueada a participação de profissionais dos Serviços de Saúde dos Municípios]. Também existem outras fontes válidas de informação. O Ministério da Saúde, via Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, por meio do Portal da Saúde (http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/conjur#), publiciza notas técnicas, pareceres e outros dados sobre a judicialização da saúde. Também ali constam o projeto Saúde baseada em evidências (http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/periodicos), cujo objetivo é fornecer acesso rápido ao conhecimento científico por meio de publicações atuais e sistematicamente revisadas. As informações, providas de evidências científicas, são utilizadas para apoiar a prática clínica, como também a tomada de decisão para a gestão em saúde e qualificação do cuidado, auxiliando assim os profissionais da saúde. Também relevantes a Sala de Apoio à Gestão Estratégica, conhecida por SAGE (http://sage.saude.gov.br/), que apresenta redes de apoio e programas do SUS. Igualmente disponível na rede virtual a Cartilha UNIMED/ Centro Cochrane do Brasil (http://www.unimedfesp.coop.br/ caju/index.html), cujo objetivo é contribuir para a tomada de decisão nas instâncias jurídicas, no que se refere às questões ligadas à assistência médica, tendo a Federação das Unimeds do Estado de São Paulo (Fesp) criado o Comitê de Apoio ao Judiciário (Caju), formado por um grupo de pessoas que representam a área medica e o Poder Judiciário. Com esse trabalho, foram determinados os principais problemas que geram liminares de atendimento médico no Sistema Unimed e cada tema foi pesquisado nas melhores práticas da Medicina Baseada em Evidências. Como resultado, foi produzida

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a Cartilha de Apoio Médico e Científico ao Judiciário, reunindo textos simplificados e claros sobre as melhores evidências e condutas médicas a serem tomadas em diversos temas importantes. A ideia é oferecer ao magistrado um material que o auxilie com informações científicas isentas e da mais alta qualidade. O trabalho, iniciado em abril de 2009, foi desenvolvido em parceria com o Centro Cochrane do Brasil, uma entidade internacional de renome em Medicina Baseada em Evidências. Outras unidades da federação também criaram seus Núcleos de Assessoria Técnica, como o Estado do Rio de Janeiro em parceria com o Tribunal de Justiça dali, ainda em 2009 (2015, acesso eletrônico), os Tribunais de Justiça da Paraíba (2013, acesso eletrônico), Pernambuco (2015, acesso eletrônico), Rio Grande do Norte (2015, acesso eletrônico) e São Paulo (2015, acesso eletrônico), dentre vários outros.

4 Premissas procedimentais e jurisdicionais A inicial em demandas de saúde deve comportar subsídios específicos para a melhor instrução de causas tão sensíveis. Assim, pode-se exigir: a) juntada do prontuário médico18; b) prova da omissão administrativa quanto à assistência buscada19; c) questionário do médico que acompanha a parte autora prescrevendo a necessidade do tratamento20; d) prova mínima descritiva da inefetividade “Para que a prova pericial seja mais fidedigna com a situação do paciente, recomenda-se a requisição do prontuário médico” (Enunciado n. 49 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 19 “Recomenda-se ao autor da ação, a busca preliminar sobre disponibilidade do atendimento, evitando-se a judicialização desnecessária” (Enunciado n. 03 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 20 “As prescrições médicas devem consignar o tratamento necessário ou o medicamento indicado, contendo a sua Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional (DCI), o seu princípio ativo, seguido, quando pertinente, do nome de referência da substância, posologia, modo de administração e período de tempo do tratamento e, em caso de prescrição diversa daquela expressamente informada por seu fabricante, a justificativa técnica” (Enunciado n. 15 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 18

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do medicamento, produto ou tratamento fornecido pelo SUS21; e) prova de que o medicamento, produto ou tratamento buscado são registrados na ANVISA ou de que não são off label ou experimentais22;

“Nas ações que envolvam pedido de assistência à Saúde, é recomendável à parte autora apresentar questionário respondido por seu médico para subsidiar o deferimento de liminar, bem como para ser utilizado na instrução probatória do processo, podendo-se fazer uso dos questionários disponibilizados pelo CNJ, pelo Juízo processante, pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público ou pela OAB, sem prejuízo do receituário competente” (Enunciado n. 19 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 21 “A inefetividade do tratamento oferecido pelo SUS, no caso concreto, deve ser demonstrada por relatório médico que a indique e descreva as normas éticas, sanitárias, farmacológicas (princípio ativo segundo a Denominação Comum Brasileira) e que estabeleça o diagnóstico da doença (Classificação Internacional de Doenças), tratamento e periodicidade, medicamentos, doses e fazendo referência ainda sobre a situação do registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)” (Enunciado n. 12 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). “Não comprovada a inefetividade ou impropriedade dos medicamentos e tratamentos fornecidos pela rede pública de saúde, deve ser indeferido o pedido não constante das políticas públicas do Sistema Único de Saúde” (Enunciado n. 14 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 22 “Deve-se evitar o processamento, pelos juizados, dos processos nos quais se requer medicamentos não registrados pela Anvisa, off label e experimentais, ou ainda internação compulsória, quando, pela complexidade do assunto, o respectivo julgamento depender de dilação probatória incompatível com o rito do juizado” (Enunciado n. 5 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). “A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei” (Enunciado n. 6 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). “As ações que versem sobre medicamentos e tratamentos experimentais devem observar as normas emitidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não se podendo impor aos entes federados provimento e custeio de medicamento e tratamentos experimentais” (Enunciado n. 9 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). “Salvo prova da evidência científica e necessidade premente, não devem ser deferidas medidas judiciais de acesso a medicamentos e materiais não registrados pela ANVISA ou para uso off label” (Enunciado n. 50 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). “As demandas por procedimentos, medicamentos, próteses, órteses e materiais especiais, fora das listas oficiais, devem estar fundadas na Medicina Baseada em Evidências” (Enunciado n. 59 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde).

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f) prova da evidência científica da prestação de saúde buscada e não oferecido pelo SUS23. O perigo da demora, nos casos de liminar, demanda a caracterização efetiva da urgência/emergência, com relatório médico circunstanciado24. Sempre que possível, deve ser precedida de oitiva do gestor do SUS25 e de manifestação do Núcleo de Assessoramento Técnico26. Deve haver diferenciação entre a urgência real, a demandar imediato atendimento, da urgência aparente, àquela fruto da descrição simplista de que a doença da parte se agravará se não for tratada – o que nada diz, por ser a lógica da biologia humana. Nessa linha, a divisão entre procedimentos que são meramente eletivos do que demandam atuação imediata. Os relatórios médicos, assim, devem ser adequadamente confeccionados e interpretados, de onde advém o cuidado na redação do Enunciado n. 51 do Fórum do Judiciário para a Saúde (já referido retro, em nota de rodapé): “(...) com expressa menção do quadro clínico de risco imediato”. De clareza solar que, à míngua de previsão legal expressa, alguns desses documentos não podem ser tidos como indispensáveis à propositura da ação, a ensejar o indeferimento da inicial

“Nas demandas que visam acesso a ações e serviços da saúde diferenciada daquelas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde, o autor deve apresentar prova da evidência científica, a inexistência, inefetividade ou impropriedade dos procedimentos ou medicamentos constantes dos protocolos clínicos do SUS” (Enunciado n. 16 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 24 “Nos processos judiciais, a caracterização da urgência/emergência requer relatório médico circunstanciado, com expressa menção do quadro clínico de risco imediato” (Enunciado n. 51 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 25 “Nas ações de saúde, que pleiteiam do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a, inclusive, identificar solicitação prévia do requerente à Administração, competência do ente federado e alternativas terapêuticas” (Enunciado n. 13 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 26 “Sempre que possível, as decisões liminares sobre saúde devem ser precedidas de notas de evidência científica emitidas por Núcleos de Apoio Técnico em Saúde – NATS” (Enunciado n. 18 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 23

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(arts. 32027 e 32128 do Código de Processo Civil – CPC). Porém, a ausência da prova mínima quanto à situação fática enseja o indeferimento da liminar e até mesmo, eventualmente, a improcedência do pedido, dentro da teoria geral da prova, observando-se, inclusive, o ônus dinâmico (art. 37329 do CPC). Vale registrar, ainda na cognição judicial, provisória ou definitiva, a consulta prévia acerca da eventual submissão da questão médica ao CONITEC, a considerar uma pertinência da incorporação ou não ao SUS por aquele órgão como subsídio ao julgamento30. O magistrado poderá, ainda, subsidiariamente, exigir declaração de ausência de conflito de interesse ao médico prescritor31. Essa última “Art. 320. A petição inicial será instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação”. 28 “Art. 321. O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado. Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial”. 29 “Art. 373. O ônus da prova incumbe: I – Ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II – Ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. § 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I – Recair sobre direito indisponível da parte; II – Tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. § 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo”. 30 “Em processo judicial no qual se pleiteia o fornecimento de medicamento, produto ou procedimento, é recomendável verificar se a questão foi apreciada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC” (Enunciado n. 57 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 31 “Quando houver prescrição de medicamento, produto, órteses, próteses ou procedimentos que não constem em lista (RENAME/RENASES) ou protocolo do SUS, 27

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recomendação é particularmente relevante porque não é incomum a prescrição de tratamentos ou medicamentos específicos, sem indicação fundamentada, pelo médico particular, do componente químico (ao invés do nome do medicamento) ou do porquê da opção mais cara32, como em casos de órteses e próteses33, já tendo surgido, sobre isso, inclusive, notícias de conluios indevidos entre fabricantes e médicos, onde estes recebiam comissões de 20% a 50% para que utilizassem próteses de determinadas empresas no tratamento de pacientes (Folha de São Paulo, 2015, acesso eletrônico). Não só isso, com as comissões irregulares a vendedores, médicos e hospitais, a diferença entre o preço inicial e final dos produtos pode ser “(...) 8,7 vezes maior – caso de uma prótese de joelho, por exemplo. Ou seja: de R$ 2.096, o valor sobe para R$ 18.362” (Folha de S. Paulo, 2015, acesso eletrônico). O julgador não pode ser ingênuo: há forte lobby de fabricantes e laboratórios farmacêuticos junto a médicos para prescrição de seus medicamentos e produtos. Essas relações eticamente discutíveis existem e não podem ser ignoradas, donde a importância de instrução mínima (manifestação do NAT, oitiva do gestor do SUS e nomeação de perito judicial) a sindicar e confirmar necessidades especiais (fármacos, tratamentos, procedimentos, suplementos) e mais custosas prescritas pelo médico particular da parte. Importante destacar, com responsabilidade, mas não sem sensibilidade, o tema das internações em UTI. Não é razoável recomenda-se a notificação judicial do médico prescritor, para que preste esclarecimentos sobre a pertinência e necessidade da prescrição, bem como para firmar declaração de eventual conflito de interesse” (Enunciado n. 58 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 32 “As demandas por procedimentos, medicamentos, próteses, órteses e materiais especiais, fora das listas oficiais, devem estar fundadas na Medicina Baseada em Evidências” (Enunciado n. 59 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 33 “Nas decisões liminares para o fornecimento de órteses, próteses e materiais especiais – OPME, o juiz deve exigir a descrição técnica e não a marca específica e/ou o fornecedor, em consonância com o rol de procedimentos e eventos em saúde vigentes na ANS e na Resolução n. 1956/2010 do CFM, bem como a lista de verificação prévia sugerida pelo CNJ” (Enunciado n. 28 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde).

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desconsiderar que (I) pode não haver vagas suficientes nas UTIs públicas, (II) que pode não haver recursos para custeio de UTIs particulares e, por fim, (III) que estas podem não estar dispostas a aceitar pacientes com pagamento futuro e incerto ou podem, também, estar lotadas. Em muitas circunstâncias, anteriormente à apreciação da medida liminar, a consulta, pela Secretaria da unidade jurisdicional, pode conseguir uma vaga diretamente, de maneira informal, junto às Centrais de Regulação de Internações e de Urgências34,35, “Art. 9º O Complexo Regulador é a estrutura que operacionaliza as ações da regulação do acesso, podendo ter abrangência e estrutura pactuadas entre gestores, conforme os seguintes modelos: I – Complexo Regulador Estadual: gestão e gerência da Secretaria de Estado da Saúde, regulando o acesso às unidades de saúde sob gestão estadual e a referência interestadual e intermediando o acesso da população referenciada às unidades de saúde sob gestão municipal, no âmbito do Estado. II – Complexo Regulador Regional: a) gestão e gerência da Secretaria de Estado da Saúde, regulando o acesso às unidades de saúde sob gestão estadual e intermediando o acesso da população referenciada às unidades de saúde sob gestão municipal, no âmbito da região, e a referência inter-regional, no âmbito do Estado; b) gestão e gerência compartilhada entre a Secretaria de Estado da Saúde e as Secretarias Municipais de Saúde que compõem a região, regulando o acesso da população própria e referenciada às unidades de saúde sob gestão estadual e municipal, no âmbito da região, e a referência inter-regional, no âmbito do Estado; e III – Complexo Regulador Municipal: gestão e gerência da Secretaria Municipal de Saúde, regulando o acesso da população própria às unidades de saúde sob gestão municipal, no âmbito do Município, e garantindo o acesso da população referenciada, conforme pactuação. § 1º O Complexo Regulador será organizado em: I – Central de Regulação de Consultas e Exames: regula o acesso a todos os procedimentos ambulatoriais, incluindo terapias e cirurgias ambulatoriais; II – Central de Regulação de Internações Hospitalares: regula o acesso aos leitos e aos procedimentos hospitalares eletivos e, conforme organização local, o acesso aos leitos hospitalares de urgência; e III – Central de Regulação de Urgências: regula o atendimento pré-hospitalar de urgência e, conforme organização local, o acesso aos leitos hospitalares de urgência. § 2º A Central Estadual de Regulação da Alta Complexidade – CERAC será integrada às centrais de regulação de consultas e exames e internações hospitalares. § 3º A operacionalização do Complexo Regulador será realizada em conformidade com o disposto no Volume 6 da Série Pactos pela Saúde: Diretrizes para a Implantação de Complexos Reguladores, acessível na íntegra na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: http://www.saude.gov.br/bvs” (Portaria n. 1.559/2008 do Ministério da Saúde). 35 “As ações judiciais para as transferências hospitalares devem ser precedidas de cadastro do paciente no serviço de regulação de acordo com o regramento de referência de cada Município, Região ou do Estado” (Enunciado n. 46 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 34

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numa atividade mediadora/conciliadora. Tais centrais são normatizadas e visam justamente a estruturar o funcionamento e estabelecimento de critérios para ingresso na assistência de saúde. Essa rotina simples pode ajudar muito o magistrado e, até mesmo, acarretar a carência de ação por perda de interesse processual. Não custa frisar, e magistrado algum pode ignorar disso: sem maior cuidado, é possível que a concessão do direito à UTI para um autor de ação possa importar na perda do direito ao leito de UTI (e consequente risco de morte) por utente de saúde que estava na vez, numa prioridade médica maior. Aliás, isso foi bem destacado, obter dictum, pelo STF (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010). Façamos uma rápida transcrição, dada a relevância e o fato do assunto haver sido cogitado na maior instância do Judiciário nacional: “O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Presidente e relator) – Eu aproveito para observar que, quanto à observação do Ministro Celso de Mello, nós já tivemos casos, não nos tempos mais recentes, em que juízes decidiam, por exemplo, que alguém deveria ter o direito a uma vaga na UTI. A SENHORA MINISTRA ELLEN GRACIE – Os médicos são obrigados a decidir quem vai morrer, porque vão ter que tirar alguém da UTI. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Presidente e relator) – Esse tipo de decisão acabava por envolver a escolha da definição dos destinos das pessoas, porque estava a decidir se alguma pessoa deveria ser retirada da UTI, ou também a chamada fila do transplante; não é o caso do que se cuida aqui” (destaques nossos).

Assim, em última ratio, determinar internação em UTI do autor de uma ação pode significar, reflexamente, a desinternação de algum paciente que ali esteja. De forma mais clara: a decisão positiva pode importar diretamente na perda da vida de alguém inocente e completamente alheio ao processo judicial. Outrossim, deve ser destacado, conforme art. 12 da Lei n. 6.360/76, quanto ao fornecimento de medicamentos, drogas,

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insumos farmacêuticos e correlatos, que nenhum desses produtos, mesmo os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde. O tema é importante quando se tem em mente a existência de produtos estrangeiros com eficácia reconhecida por órgãos competentes de outros países (como a Food and Drug Administration – FDA, dos Estados Unidos da América) ou estudos e pesquisas realizadas igualmente em outros países, sem correspondência no Brasil, levados a cabo por reconhecidas instituições internacionais. Existe, inclusive, conforme site internacional da FDA, Declaração de Cooperação entre aquele órgão e a ANVISA, com os seguintes objetos: A. Explorar o desenvolvimento de procedimentos específicos para o intercâmbio de informações regulatórias e de saúde pública para propósitos rotineiros e/ou emergenciais; B. Identificação de esforços de pesquisa e estudos para dar suporte à base científica para exigências regulatórias e ações que sejam de interesse mútuo; C. Considerar o intercâmbio de informações resultante de inspeções ou investigações, em progresso ou concluídas, que sejam conduzidas pelos Participantes quando suas inspeções ou investigações se relacionarem a riscos associados ao produto; D. Exploração de sinergias, até onde possível, em que o envolvimento dos Participantes pode ajudar a guiar e facilitar as oportunidades para o aumento da capacidade/fortalecimento de sistemas e realização de padrões científicos harmonizados de mútuo interesse e benefício aos Participantes; e E. Colaboração para aumentar o entendimento e base(s) de conhecimento sobre os sistemas regulatórios de cada Participante e, sempre que possível, explorar oportunidades para aproveitar os respectivos recursos para ajudar a expandir a rede de segurança para os produtos que os Participantes regulamentam. (2012, acesso eletrônico).

É evidente que órgãos como a FDA e centros de saber notoriamente respeitados (como universidades de países desenvolvidos) utilizam-se de padrões internacionais de análise, classificação e transparência. Numa vista mais rápida, em tese, podem servir a casos surgidos no Brasil e aqui ainda não tratados. Basta dizermos

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que o Brasil atravessa uma onda de nascimento de crianças com microcefalia (cérebro com má-formação), provavelmente relacionada ao vírus Zika, cujo vetor de transmissão é o mosquito Aedys Aegypti, que tem sido estudada em outros centros internacionais a fim de evitar uma epidemia mundial. Apesar disso, persiste a vedação legal, sendo o registro na ANVISA conditio sine qua non para o fornecimento de tais produtos, de onde, não havendo azo, a não ser em um juízo de interpretação flexibilizadora do preceito citado, à prestação jurisdicional positiva. A decisão que ignore essa sábia e existente vedação legal, há de ter em mente o julgador, pode trazer riscos à saúde do postulante, custos acima do razoável para o orçamento público e duvidosa eficácia. Ainda assim, não é incomum ouvir notícias de decisões em tal sentido, que vem sendo reformadas, de longa data, nas instâncias superiores36. Outra alternativa, que refoge a esse trabalho, é o compelimento da ANVISA a autorizar a importação de medicamento não registrado, com base na Lei n. 9.782/99, cuja possibilidade foi apontada (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010).

“Administrativo. Tratamento de saúde no exterior. Legitimidade da portaria n. 763, de 07.04.1994. Tratamento de retinose pigmentar em cuba. 1. O financiamento de tratamento médico no exterior pelo Sistema Único de Saúde é vedado nos termos da Portaria n. 763/1994, do Ministério da Saúde, considerada legítima, no julgamento do MS nº 8.895/DF pela Primeira Seção desta Corte, julgado em 22.10.2003. Precedentes: REsp 844291/DF, Primeira Turma, julgado em 15/08/2006, DJ 31/08/2006 p. 281; REsp 511660/DF, Segunda Turma, julgado em 04/04/2006, DJ 18/04/2006 p. 189; REsp 616.460/DF, Primeira Turma, julgado em 15/02/2005, DJ 21/03/2005 p. 243. 2. Embargos de declaração acolhidos com efeitos infringentes para dar provimento ao Recurso Especial” (STJ, 1ª T., EEEARE 1.028.835, rel. Min. Luiz Fux, DJe 02.03.2010). “ADMINISTRATIVO. TRATAMENTO DE SAÚDE NO EXTERIOR. LEGITIMIDADE DA PORTARIA N. 763, DE 07.04.1994. 1. A Primeira Seção desta Corte, no MS n. 8.895/DF, julgado em 22.10.2003, considerou legítima a Portaria n. 763/1994, do Ministério da Saúde, que vedou o financiamento de tratamento médico no exterior pelo SUS. 2. Recurso especial a que se nega provimento” (STJ, 1ª T., REsp 844.291, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 31.08.2006, p. 281). 36

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Seguindo, e como adiantado, nossa proposta é modesta: dar um standard decisório razoável de enfrentamento técnico e jurídico das demandas de saúde contra o Poder Público (as demandas de saúde suplementar comportam uma abordagem específica em outro momento, como já adiantado). Assim, parece razoável supor quadrantes alvos de demandas judiciais: a) ausência de fornecimento de medicamento/produto/tratamento/nutrientes regularmente incluído(s) na política de saúde do SUS; b) ausência de fornecimento de medicamento/produto/tratamento/nutrientes não incluído(s) na política de saúde do SUS, conquanto reconhecido pelos meios científicos de saúde competentes no Brasil (como a listagem da ANVISA); c) ausência de fornecimento de medicamento/produto/ tratamento/nutrientes não incluído(s) na política de saúde do SUS, sem suficiente/provável reconhecimento pelos meios científicos competentes no Brasil e estrangeiro; d) ausência de fornecimento de medicamento/produto/tratamento/nutrientes não previsto(s) na política de saúde do SUS, com reconhecimento exclusivamente pelos meios científicos estrangeiros. Nulla quaestio quanto à omissão em decidir quanto ao item “a”, destinatário de uma tutela jurisdicional positiva porque não há conflito de princípios constitucionais: o direito à saúde e a reserva do possível estão conjugados no próprio reconhecimento estatal, via órgãos executivos competentes, da eficácia, pertinência e obrigatoriedade quanto à prestação terapêutica buscada – e cuja ausência enseja a intervenção jurisdicional. Isso se aplica, inclusive, quanto à questão dos leitos de UTI, na medida em que o tratamento de urgência é algo que não pode ser negado37. Se o ente público não puder prestá-lo diretamente, deverá arcar com o custeio em instituição

“Ementa: Agravo Regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Direito à saúde. Aumento de leitos em unidade de terapia intensiva – UTI. Intervenção Judicial que não se configura substitutiva de prerrogativa do Poder Executivo. Determinação de implementação de política pública existente. Agravo Regimental ao qual se nega provimento” (STF, 2ª t., Are 740800 AGR/rs, rel. min. Cármen Lúcia, DJe-244 12/12/2013). 37

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particular específica38, observando-se os cuidados já referidos sobre pacientes com maior necessidade, limitação de leitos e Centrais de Regulação de Internação e de Urgências. “Ementa: recurso extraordinário com agravo (lei nº 12.322/2010) – Custeio pelo Estado, de serviços hospitalares prestados por instituições privadas em benefício de pacientes do SUS atendidos pelo Samu nos casos de urgência e de inexistência de leitos na rede pública – dever estatal de assistência à saúde e de proteção à vida resultante de norma constitucional – obrigação jurídico-constitucional que se impõe aos estados – configuração, no caso, de típica hipótese de omissão inconstitucional imputável ao Estado – desrespeito à Constituição provocado por inércia estatal (RTJ 183/818-819) – comportamento que transgride a autoridade da lei fundamental da república (RTJ 185/794-796) – a questão da reserva do possível: reconhecimento de sua inaplicabilidade, sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191-197) – o papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela constituição e não efetivadas pelo poder público – a fórmula da reserva do possível na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação constitucionalmente impostos ao poder público – a teoria da “restrição das restrições” (ou da “limitação das limitações”) – caráter cogente e vinculante das normas constitucionais, inclusive daquelas de conteúdo programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas, especialmente na área da saúde (CF, arts. 6º, 196 e 197) – a questão das “escolhas trágicas” – a colmatação de omissões inconstitucionais como necessidade institucional fundada em comportamento afirmativo dos juízes e tribunais e de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito – controle jurisdicional de legitimidade da omissão do poder público: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de observância de certos parâmetros constitucionais (proibição de retrocesso social, proteção ao mínimo existencial, vedação da proteção insuficiente e proibição de excesso) – doutrina – precedentes do supremo tribunal federal em tema de implementação de políticas públicas delineadas na constituição da república (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220) – existência, no caso em exame, de relevante interesse social. 2. ação civil pública: instrumento processual adequado à proteção jurisdicional de direitos revestidos de metaindividualidade – legitimação ativa do Ministério Público (CF, art. 129, III) – a função institucional do ministério público como “defensor do povo” (CF, art. 129, II) – doutrina – precedentes. 3. responsabilidade solidária das pessoas políticas que integram o Estado Federal Brasileiro, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) – competência comum dos entes federados (União, Estados-membros, Distrito Federal e municípios) em tema de proteção e assistência à saúde pública e/ou individual (CF, art. 23, II). determinação constitucional que, ao instituir o dever estatal de desenvolver ações e de prestar serviços de saúde, torna as pessoas políticas responsáveis solidárias pela concretização de tais obrigações jurídicas, o que lhes confere legitimação passiva “ad causam” nas demandas motivadas por recusa de atendimento no âmbito do sus – consequente possibilidade de ajuizamento da ação contra um, alguns ou todos os entes estatais – precedentes – recurso de agravo improvido” (STF, 2ª T., ARE 727864 AgR/PR, rel. Min. Celso de Mello, DJe-223 13/11/2014). 38

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No entanto, algumas ponderações devem ser feitas. A concessão judicial que envolva medicamento, produto ou procedimento já previsto no SUS ou em Protocolos Clínicos de Diretrizes Terapêuticas (PCDT) deverá determinar a inclusão do demandante em serviço ou programa do SUS já existente, para acompanhamento e controle clínico39. Da mesma forma, ao se cuidar de prestação continuativa, onde a exigibilidade do relatório médico periódico a justificar a sequência do tratamento deve ser viabilizada40, inclusive, no caso do câncer, com inclusão e acompanhamento junto a uma unidade específica do SUS41. Importante frisar que, nada obstante legitimados à causa todos os entes federativos, conforme assentado pelo STF, pode haver o direcionamento do cumprimento da medida judicial para um ou mais deles apenas42, de forma a conferir efetividade à execução. Problemas mais sensíveis são os dos itens “b” a “d”. Por exemplo, a discricionariedade do órgão competente (CONITEC)

“Nos casos em que o pedido em ação judicial seja de medicamento, produto ou procedimento já previsto nas listas oficiais do SUS ou em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), recomenda-se que seja determinada pelo Poder Judiciário a inclusão do demandante em serviço ou programa já existentes no Sistema Único de Saúde (SUS), para fins de acompanhamento e controle clínico” (Enunciado n. 11 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 40 “Concedidas medidas judiciais de prestação continuativa, em medida liminar ou definitiva, é necessária a renovação periódica do relatório médico, no prazo legal ou naquele fixado pelo julgador como razoável, considerada a natureza da enfermidade, de acordo com a legislação sanitária, sob pena de perda de eficácia da medida” (Enunciado n. 2 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 41 “Sem prejuízo dos casos urgentes, visando respeitar as competências do SUS definidas em lei para o atendimento universal às demandas do setor de saúde, recomenda-se nas demandas contra o poder público nas quais se pleiteia dispensação de medicamentos ou tratamentos para o câncer, caso atendidos por médicos particulares, que os juízes determinem a inclusão no cadastro, o acompanhamento e o tratamento junto a uma unidade CACON/UNACON” (Enunciado n. 7 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 42 “A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento” (Enunciado n. 60 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde). 39

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em não incluir determinado produto ou tratamento na política pública do SUS. Razões de ordem financeira (elevado custo), técnica (entendimento de insuficiente embasamento científico) ou outras, próprias do mérito administrativo, podem informar a não inclusão no SUS. E isso é inerente à função executiva43 e ao Estado Democrático de Direito44. Todavia, parece muito racional dizer que algum tratamento público minimamente eficaz deve ser oferecido, sem o quê alternativas terapêuticas cientificamente comprovadas e dentro de padrões mínimos (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, da ANVISA e pautada pela Medicina Baseada em Evidências) podem ser concedidas judicialmente, como forma de implementação do direito à saúde constitucionalmente assegurado. Aliás, essa linha sensata é sacralizada no Enunciado n. 61 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde: Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são elementos organizadores da prestação farmacêuticas, de insumos e de procedimentos, e não limitadores. Assim, no caso concreto, quando todas as alternativas terapêuticas previstas no respectivo PCDT já tiverem sido esgotadas ou forem inviáveis ao quadro clínico do paciente usuário do SUS, pelo “Dessa forma, em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem ´escolhas trágicas´ pautadas por critérios de macrojustiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados” (trecho do voto do relator, Min. Gilmar Mendes, no STF, na STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, DJe-076 30/04/2010). 44 “O Poder Executivo é um dos órgãos políticos do Estado, que tem por competência institucional a condução das atividades de Estado, Governo e Administração Pública. Enquanto órgão que exerce a chefia de Estado, representa internacionalmente a soberania estatal; enquanto órgão de chefia de Governo, dirige a vida política nacional, executando as políticas públicas adotadas pela Constituição e pelas leis; e enquanto órgão de chefia da Administração presta os serviços públicos necessários para atender as necessidades coletivas” (CUNHA JR., 2013, p. 1042). 43

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princípio do art. 198, II, da CF, pode ser determinado judicialmente o fornecimento, pelo Sistema Único de Saúde, do fármaco, insumo ou procedimento não protocolizado.

Temas relevantes pendem de julgamento em repercussão geral no STF acerca da saúde pública, como é o caso dos limites da competência do Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes em concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam o direito social da saúde (STF, Pleno, RE 684.612/RJ, rel. Min. Cármem Lúcia, DJe-109 06/06/2014). Também nessa circunstância estão os assuntos mais importantes de todos, seja na formulação de políticas públicas, seja nas decisões judiciais, a saber: a) a controvérsia acerca da obrigatoriedade, ou não, de o Estado, ante o direito à saúde constitucionalmente garantido, fornecer medicamento não registrado na ANVISA (STF, Pleno, RE 657.718/MG, rel. Min. Marco Aurélio, DJe-093 11/05/2012); b) a controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo (STF, Pleno, RE 566.471/ RN, rel. Min. Marco Aurélio, DJe-157 07/12/2007). Até aqui, porém, aquele Colegiado vem seguindo, em linhas gerais, o que se decidiu no seguinte precedente, já referido antes: “EMENTA: Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento” (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010).

Esse precedente destaca-se por ter sido proferido posteriormente às Audiências Públicas, havidas em 28, 28 e 29 de abril e 4, 6 e

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7 de maio do ano de 2009, tendo, inclusive, ensejado o início do programa do CNJ Fórum do Judiciário para a Saúde, já referido. A partir da análise dos votos diversos, destacando-se a preponderância do relator (com ampla menção à doutrina e às informações hauridas na audiência pública), Min. Gilmar Mendes, então presidente do STF, pode-se destacar: 1) não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, embora haja um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde; 2) a prestação individual da saúde estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do SUS, a ser demonstrado e fundamentado de forma clara; 3) a observância de um viés programático ao direito à saúde, pois sempre haverá uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico ou procedimento cirúrgico, uma nova doença ou a volta de uma doença supostamente erradica; 4) há de ser considerada a proibição do art. 12 da Lei n. 6.360/76 (industrialização, exposição à venda e consumo de medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos antes de registrado no Ministério da Saúde), com alguma abertura por conta da viabilidade excepcional de autorização de importação, pela ANVISA, de medicamento não registrado (com base na Lei n. 9.782/99); 5) em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade de política de saúde existente; 6) medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas de seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso; 7) o Estado não pode ser condenado a fornecer tratamentos experimentais; 8) a ausência de tratamento clínico por não estar inserido em Protocolos Clínicos e das Diretrizes Terapêuticas, por si só, não afasta a sindicabilidade jurisdicional, sendo essenciais, no entanto audiência e instrução probatória.

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Considerando ser o STF um tribunal de direito e não de fato, apenas por exceção os casos concretos são enfrentados com maior vagueza. Ainda assim, vários julgados têm se referido ao precedente acima como linha de argumentação (e.g.: STF, STA 761 AgR/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe-101 29.05.2015; STF, 2ª T., ARE 876.459/RN, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-081 04/05/2015; STF, 1ª T., RE 848.086/RN, rel. Min. Roberto Barroso, DJe-122 24/06/2015; STF, 1ª T., ARE 799.136/RS, rel. Min. Dias Toffoli, DJe-161 21/08/2014). No campo infraconstitucional, considerando a existência de vários tribunais e turmas recursais no país, no âmbito federal e estadual, que processam causas de saúde contra o Poder Público, é que surge maior riqueza de casos judicialmente postos e soluções apresentadas45. As decisões, via de regra, caminham pela tez pró-prestação, sem análise aprofundada da reserva do possível. Centremo-nos numa rápida análise. Num rápido apanhado pelo site do CJF (www.cjf.jus.br), no link Jurisprudência Unificada dos cinco TRFs, pudemos colher, por exemplo, do TRF-1 e TRF-3 julgados sem maiores considerações à reserva do possível (TRF-1, 5ª T., AC 00703590920114013400, rel. Des. Fed. Néviton Guedes, e-DJF1 28/01/2016; TRF-3, 6ª T., AC 00088598120124036105, rel. Des. Fed. Consuelo Yoshida, e-DJF3 08/05/2015). Não conseguimos detectar, no site do CJF, julgados de mérito do TRF-4 para os indexadores que utilizamos nos outros TRFs com resultados satisfatórios (“medicamento + registro + ANVISA”, “medicamento + ANVISA”, “fármaco + ANVISA”). Por outro lado, contrariamente, posições que enfrentam mais particularmente a questão do registro do medicamento da ANVISA e da eficácia da alternativa buscada fora do SUS são do TRF-2 e do TRF-5, este, como regra, entendendo importante o registro na ANVISA (TRF-2, Daí não vermos razão a Maldonado, ao registrar não ser possível invocar-se, como óbice às tutelas jurisdicionais positivas, o princípio da reserva do possível (2015, p. 199). A partir da visão macrossistêmica é que devem ser considerada a pertinência ou não de seu acolhimento. 45

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7ª T. Especializada, AC 201051020025042, rel. Des. Fed. Jose Antonio Lisboa Neiva, E-DJF2R 26/10/2012; TRF-5, 4ª T., APELREEX 08005206220144058308, rel. Des. Fed. Edílson Nobre). No âmbito dos Tribunais de Justiça, por exemplo, o de São Paulo, revendo posições anteriores, tem negado o fornecimento de famoso produto não registrado na ANVISA (TJSP, 3ª Câmara de Direito Público, Agravo de Instrumento nº 2006774-56.2016.8.26.0000, rel. Des. José Luiz Gavião de Almeida, DJ 16.02.2016). Porém, o mesmo tribunal, em outro órgão fracionário, na mesma data, prestigiou o direito à saúde sem maiores ponderações quanto à questão orçamentária (TJSP, 13ª Câmara de Direito Público, Apelação n. 0005105-39.2013.8.26.0248, rel. Des. Flora Maria Nesi Tossi Silva, DJ 17.02.2016). Igualmente, julgados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro minoram o impacto econômico das prestações positivas (TJRJ, 11ª Câmara Cível, Apelação n. 0042624-79.2012.8.19.0021, rel. Des. Alcides da Fonseca Neto, data de publicação 29/01/2016; TJRJ, 19ª Câmara Cível, Apelação/Reexame Necessário n. 002792222.2014.8.19.0066, rel. Des. Ferdinaldo do Nascimento, data de publicação 01/02/2016). Importa destacar julgado sobre o fornecimento de medicamento de alto custo proferido pelo, STJ, órgão uniformizador do direito federal: “Ementa: ADMINISTRATIVO, CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO IMPORTADO SEM REGISTRO NA ANVISA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. 1. Trata-se de recurso ordinário em mandado de segurança no qual se objetiva o fornecimento à impetrante de medicamento importado sem registro na Anvisa (substância química: Tetrabenazina; nomes comerciais: Nitoman, Xenazine ou Revocon). 2. O Tribunal de Justiça do Paraná, ao denegar a segurança, por maioria, externou o entendimento de que, “não sendo o medicamento postulado registrado na Anvisa, não é possível ao

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Estado do Paraná fornecer o referido medicamento a senhora impetrante. Nestas condições, voto para ser extinto o mandado de segurança sem julgamento do mérito porque ausente direito líquido e certo a ser tutelado” (fl. 139). 3. Não se observam a liquidez e a certeza do direito invocado pela impetrante nem a prática de ato ilegal ou de abuso de poder. 4. O fato de o medicamento pretendido não ter registro na Anvisa e, portanto, não poder ser comercializado no território nacional, denota que o alegado direito não é líquido nem certo para fins de impetração de mandado de segurança, porquanto o seu exercício depende de eventual autorização da Anvisa para que o medicamento seja importado e distribuído pelo Estado. 5. A entrada de medicamentos no território nacional, sem o devido registro na Anvisa, configura o crime previsto no artigo 273, § 1º-B, I, do Código Penal; fato que não pode ser desprezado pelo administrador público responsável pelo fornecimento do medicamento em questão, razão pela qual não há falar que o seu não fornecimento caracteriza ato ilegal ou de abuso de poder. 6. Recurso ordinário não provido” (STJ, 1ª T., RMS 35.434/ PR, rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 09/02/2012).

Analisada a ótica sob a restrição cognitiva (ausência de instrução sobre exaurimento de opções terapêuticas do SUS e eficiência cientificamente comprovada, ainda que no exterior, do tratamento buscado), decidiu-se pela impossibilidade legal de importação de medicamento não listado pela ANVISA. Porém, há pelo menos um julgado da própria 1ª Turma do STJ em sentido inverso, valendo registrar, porém, que proferido em sede de discussão de tutela antecipada (STJ, 1ª T., AgRg no AgRg no AREsp 685750/PB, rel. Min. Sérgio Kukina, DJe 09/11/2015). Todavia, as considerações retro descritas já dão subsídios suficientes a fundamentos decisórios mais homogêneos.

5 Roteiro decisório proposto Propomos, finalmente, decisões que podem ser resumidas ao seguinte, com excepcionalidades a depender do caso. A justificativa

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prática será dada conjuntamente. Nas situações de urgência e de eficácia comprovada apenas em outros países, excepcionalmente, apresentamos duas propostas decisórias, dadas as peculiaridades e iminência de risco de morte. Propostas decisórias

Justificativas

Solução decisória 1.1. Não há direito a tutela jurisdicional positiva para antecipação de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes previstos no SUS, em desordem ao princípio da igualdade, ainda que sob alegação de urgência (inclusive internação em UTI), mormente por não se poder levar em conta as especificidades de outros usuários do sistema público de saúde, insindicáveis e imponderáveis na demanda individual.

A determinação judicial positiva em prol da parte autora, sem considerar outros usuários que, não tendo judicializado a questão, não terão suas razões e prioridades analisadas, poderá prejudicar a existência de razões de saúde suficientes destes últimos que mereçam igual ou maior proteção constitucional à saúde. A decisão, assim, pode beneficiar a um só, mas prejudicar vários, em detrimento da igualdade (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010). Tal determinação judicial só poderá ser concedida nos termos do Enunciado n. 11 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (já citado), observando-se a filtragem pelo profissional médico competente quanto a outras urgências.

Solução decisória 1.2. Há direito a tutela jurisdicional positiva para antecipação de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes previstos no SUS, sob alegação de urgência (inclusive internação em UTI), ainda que em desordem ao princípio da igualdade, cabendo à administração implementar a vaga ou custeá-la junto à rede privada.

Dada a magnitude do direito à saúde (art. 196 da CF), a igualdade e eventual preterição de outros usuários não podem ser obstáculo à prestação jurisdicional positiva, devendo ser concedida a ordem judicial de implementação imediata, seja na rede pública, seja na rede privada mediante custeio pelos entes federativos (STF, 2ª T., ARE 727864 AgR/PR, rel. Min. Celso de Mello, DJe-223 13/11/2014).

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Propostas decisórias

Justificativas

Solução decisória 2. Não há direito a tutela jurisdicional positiva para fornecimento de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes diversos tidos por mais eficientes, quando o SUS já fornece tratamento eficiente o bastante.

Havendo eficiência da política do SUS, é desarrazoada prestação positiva, a desconsiderar a reserva do possível46 (STF, Pleno, STA 175 AgR/ CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010). Enunciados n. 12 e n. 14 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (já citados).

Solução decisória 3. Não há direito a tutela jurisdicional positiva para fornecimento de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes off label ou experimentais.

Não há direito a prestação jurisdicional positiva quando inexistente eficiência comprovada (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010). Enunciados n. 9, 14, 16, 50, 57, 58 e 59 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (já citados). Art. 12 da Lei n. 6.360/76.

46

“Em se tratando de medicamentos e tratamentos não disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde, o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado no sentido de ser possível ao Judiciário a determinação de fornecimento de medicamento/tratamento não incluído na lista padronizada fornecida pelo SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento eficaz para a enfermidade. Nesse sentido, vale citar trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, na STA 175- AgR: ‘[…] em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente. Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder Judiciário, ou de a própria administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso.’ Ocorre que, segundo ficou consignado no Tribunal de origem, existe medicamento eficaz no âmbito do SUS para o tratamento da parte recorrente” (trecho destacado da decisão do Min. Luís Roberto Barroso no ARE 893.884/RN, DJe-171 01/09/2015). 46

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Propostas decisórias

Justificativas

Solução decisória 4.1. Não há direito a prescrição de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/nutrientes por médico particular, não contidos no SUS, não reconhecidos pelos meios públicos de saúde (como a listagem da ANVISA) e sem comprovação de eficácia dentro de padrões mínimos (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, da ANVISA e pautada pela Medicina Baseada em Evidências).

Não há direito a prestação jurisdicional positiva quando inexistente eficiência comprovada (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010). Enunciados n. 9, 14, 16, 50, 57, 58 e 59 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (já citados). Art. 12 da Lei n. 6.360/76.

Solução decisória 4.2. Há direito à tutela jurisdicional positiva nos casos de prescrição de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes por médico particular em situações de urgência, quando o SUS não ofereça nenhuma alternativa terapêutica, excepcionalmente, ainda que não reconhecidos pelos meios públicos de saúde (como a listagem da ANVISA) e sem comprovação de eficácia dentro do território nacional (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, da ANVISA e pautada pela Medicina Baseada em Evidências), desde que atendidos padrões internacionais de procedimentos e confiabilidade de igual ou superior rigidez quanto aos padrões brasileiros (como a FDA, dos EUA, por exemplo) e/ou instituições de pesquisa e saúde de renomada.

Dada a magnitude do direito à saúde (art. 196 da CF), a proibição do art. 12 da Lei n. 6.360/76 (industrialização, exposição à venda e consumo de medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos antes de registrado no Ministério da Saúde) pode ser relativizada, em situações-limite, de urgência e de forma prudente e excepcional, considerando que o direito à saúde demanda alternativa minimamente eficaz pelo SUS, sem a qual alternativas eficientes devem ser viabilizadas. Assim, pode haver tutela jurisdicional positiva, desde que calcando-se em instituições estrangeiras renomadas e observando-se padrões internacionais tão ou mais rígidos que os nacionais (Food and Drug Administration, dos Estados Unidos da América, e congêneres), bem como estudos e pesquisas realizadas em instituições de pesquisa internacionalmente reconhecidas. Tal decisão, há de ter em mente o julgador, pode trazer riscos à saúde do postulante, custos acima do razoável para o orçamento público e duvidosa eficácia.

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Propostas decisórias

Justificativas

Solução decisória 5. Há direito a tutela jurisdicional positiva para fornecimento de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes diversos tidos por mais eficientes nos casos de sua ausência nas instituições de saúde competentes, quando regularmente incluídas no SUS, não podendo a administração objetar dificuldades financeiras.

Não há conflito de princípios constitucionais. O direito à saúde e a reserva do possível estão conjugados no próprio reconhecimento estatal, via órgãos executivos competentes, da eficácia, pertinência e obrigatoriedade quanto à prestação (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010). Se o ente público não puder prestálo diretamente, deverá arcar com o custeio em instituição particular específica (STF, 2ª T., ARE 727864 AgR/PR, rel. Min. Celso de Mello, DJe223 13/11/2014).

Solução decisória 6. Há direito a tutela jurisdicional positiva para fornecimento de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes diversos tidos por mais eficientes, reconhecidos pelos meios públicos de saúde (como a listagem da ANVISA) e com comprovação de eficácia dentro de padrões mínimos (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e pautada pela Medicina Baseada em Evidências), quando, embora existentes, as alternativas fornecidas pelo SUS resultarem ineficazes.

Uma vez esgotadas as alternativas fornecidas pelo SUS, o direito à saúde garante, sob pena do esvaziamento de sua eficácia, alternativas mais eficientes (STF, Pleno, STA 175 AgR/ CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010), desde que comprovada cientificamente a eficácia e dentro de padrões mínimos (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, listagem da ANVISA e pautada pela Medicina Baseada em Evidências). Enunciado n. 61 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde.

Solução decisória 7. Há direito à tutela jurisdicional positiva nos casos de prescrição de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes por médico particular, reconhecidos pelos meios públicos de saúde (como a listagem da ANVISA) e com comprovação de eficácia dentro de padrões mínimos (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, da ANVISA e pautada pela Medicina Baseada em Evidências), quando o SUS não ofereça alternativa terapêutica alguma.

O direito à saúde demanda alternativa minimamente eficaz pelo SUS, sem a qual alternativas eficientes devem ser viabilizadas (STF, Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010), observando-se a comprovação científica e dentro de padrões mínimos (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, listagem da ANVISA e pautada pela Medicina Baseada em Evidências). Enunciado n. 61 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde.

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Propostas decisórias

Justificativas

Solução decisória 8. Há direito à tutela jurisdicional positiva nos casos de prescrição de procedimentos/ tratamentos/medicamentos/ nutrientes por médico particular em situações de urgência, excepcionalmente, ainda que não reconhecidos pelos meios públicos de saúde (como a listagem da ANVISA), desde que haja comprovação de eficácia dentro de padrões mínimos (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, da ANVISA e pautada pela Medicina Baseada em Evidências), quando o SUS não ofereça nenhuma alternativa terapêutica.

O direito à saúde demanda alternativa minimamente eficaz pelo SUS, sem a qual alternativas eficientes devem ser viabilizadas. Assim, ainda que a ANVISA não tenha listado procedimentos/tratamentos/ medicamentos/nutrientes, em situações-limite, de urgência, de forma prudente e excepcional, observando-se a comprovação científica suficiente (normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e pautada pela Medicina Baseada em Evidências) pode haver tutela jurisdicional positiva. Enunciado n. 61 do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde.

6 Conclusão Há grande desuniformidade nos critérios judiciais utilizados no tratamento das questões de saúde movidas contra o Poder Público. A menção ao direito de saúde (art. 196 da CF), por si só, é fundamento que pouco ou nada satisfaz no universo de causas que envolvem a matéria. Há pontos de tensão cada vez maiores na calibração de princípios importantes envolvidos, como o da tripartição de funções (art. 2º da CF) e da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, igualmente na Lex Mater), sendo o caso de um juízo de relevância. Os problemas orçamentários são tão presentes que essencialmente informam a chamada “reserva do possível”, a serem sopesadas pelo julgador, sob pena de arbítrio judicial. Essa a tese acolhida no seio do STF. Por “reserva do possível” há de se entender, essencialmente, razoabilidade da pretensão deduzida e existência de disponibilidade financeira.

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O crescimento do número de demandas dessa ordem associado ao correlato incremento de verbas públicas destinadas ao cumprimento dessas decisões judiciais ensejam critérios mais seguros de fundamentação, calcando-se em argumentos técnico-científicos mais elaborados. Há uma variedade muito grande de decisões, notadamente nos tribunais de apelação (regionais federais e estaduais). Entretanto, o STF e o CNJ já propiciam referências de julgamento deveras importantes para subsidiar os magistrados. Assim, devem ser sopesadas sempre (i) as informações colhidas nas Audiências Públicas promovidas pelo STF (havidas em 28, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio do ano de 2009), (ii) os parâmetros postos na decisão-referência do STF (Pleno, STA 175 AgR/CE – Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-076 30/04/2010), (iii) os enunciados do programa do CNJ Fórum do Judiciário para a Saúde, (iv) as informações técnicas pertinentes, principalmente a Medicina Baseada em Evidências (decisões do CONITEC, PCDT, Cartilha UNIMED, NATs). Dessa forma, foram propostas soluções decisórias para os problemas mais comuns submetidos ao Judiciário.

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QUESTÕES POLÊMICAS DA APLICAÇÃO DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR) NO MICROSSISTEMA DOS JUIZADOS ESPECIAIS Frederico Augusto Leopoldino Koehler Juiz Federal. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE, professor Assistente da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Membro e Secretário-Geral Adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, membro e Diretor da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo – ANNEP. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPRO e Membro e Diretor do Conselho Editorial da Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco.

Resumo

Abstract

O presente artigo analisa as questões polêmicas decorrentes da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas no microssistema dos juizados especiais.

The present article analyzes the controversial issues regarding the application of the Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) in the Small claims Courts.

Palavras-chave: Direito Processual Civil. CPC/2015. Precedentes obrigatórios. Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). Juizados especiais.

Keywords: Civil Procedure. New Brazilian Code of Civil Procedure. Binding precedents. Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). Small claims Courts.

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1 Introdução O IRDR1, inédito no direito brasileiro, surge no projeto do NCPC como um dos pilares da ideologia do respeito aos precedentes, na tentativa de gerar-se um sistema judicial com maior grau de segurança jurídica e de isonomia, em que as demandas levadas à apreciação do Poder Judiciário sejam solucionadas em um prazo razoável. Percebe-se que não se trata de mera importação acrítica de uma técnica processual, mas sim da tentativa de construção de uma nova cultura judiciária2. De fato, o instituto em estudo é assumidamente inspirado no Musterverfahren, o procedimento-modelo do direito alemão, mas adquiriu feições próprias na redação do projeto do NCPC3, na tentativa de adequá-lo às peculiaridades do sistema pátrio. O IRDR não chega ao Brasil imune a críticas da doutrina. É duramente atacado por Marcelo Barbi Gonçalves, que acusa o instituto de tornar o precedente mais forte do que a norma legal, violando o princípio da separação dos Poderes, e por criar uma subordinação hierárquica entre os juízes, em prejuízo do princípio da independência do julgador4. Além disso, o IRDR é tachado de inconstitucional por Júlio César Rossi, que diz que não há amparo constitucional Utilizaremos neste ensaio as seguintes abreviaturas: IRDR (incidente de resolução de demandas repetitivas), JEC (Juizado Especial Cível), JEF (Juizado Especial Federal), NCPC (novo Código de Processo Civil), TJ (Tribunal de Justiça), TR (Turma Recursal dos juizados), TRF (Tribunal Regional Federal), TRU (Turma Regional de Uniformização dos JEFs), TNU (Turma Nacional de Uniformização dos JEFs). 2 GONÇALVES, Marcelo Barbi. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a magistratura deitada. Revista de Processo, ano 38, v. 222, ago. 2013, p. 227. 3 VIAFORE, Daniele. As semelhanças e as diferenças entre o procedimento-modelo alemão Musterverfahren e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo, ano 38, v. 217, mar. 2013, p. 259. No mesmo sentido: NUNES, Dierle e PATRUS, Rafael Dilly. Uma breve notícia sobre o procedimento-modelo alemão e sobre as tendências brasileiras de padronização decisória: um contributo para o estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas brasileiro. In: FREIRE, Alexandre et al (org.). Novas Tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 476. 4 GONÇALVES, Marcelo Barbi. Op. cit., passim. 1

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para que a decisão proferida no incidente tenha a mesma força das súmulas vinculantes5. Entendemos que tais críticas não procedem, inexistindo a mácula de inconstitucionalidade citada, e esperamos que o instituto realmente possa melhorar a prestação jurisdicional no Brasil, favorecendo a resolução dos processos em tempo razoável6. De fato, o IRDR é um vigoroso instrumento para tentar-se alterar o cenário atual de respostas judiciárias díspares para problemas idênticos, e a consequente quebra do princípio da isonomia na distribuição da Justiça, que deixa perplexos e indignados os usuários do sistema judicial7. Tendo isso em mente, o objetivo do presente ensaio é examinar brevemente um aspecto bem específico do IRDR, qual seja, a sua compatibilidade com os juizados especiais e o surgimento de problemas decorrentes da sua aplicação nesse microssistema.

2 A inconstitucionalidade da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas julgado por TJ/TRF no microssistema dos juizados especiais Inicialmente, cabe realizar um histórico da evolução do texto no processo legislativo em que se discute o projeto do NCPC. Com esse escopo, registre-se que tanto o anteprojeto do NCPC, quanto a versão aprovada no Plenário do Senado Federal, e também a versão aprovada na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, todos silenciavam quanto à vinculação dos juízes de juizados e turmas reROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo, a. 37, v. 208, jun. 2012, p. 234. 6 Já tivemos a oportunidade de aprofundar os estudos sobre o tema razoável duração do processo: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. A razoável duração do processo. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2013. 7 CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto do novo CPC: a comparação entre a versão do Senado Federal e a da Câmara dos Deputados. In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas Tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. 3. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 309-310. 5

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cursais à decisão proferida no IRDR. Apenas no momento de votação no Plenário da Câmara dos Deputados é que se incluiu, de forma expressa, a aplicação do IRDR aos juizados especiais, conforme redação final do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015): Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região; (grifou-se)

Portanto, não houve uma reflexão adequada sobre o tema, partindo-se diretamente – sem tempo de namoro ou noivado – para um casamento cujas consequências ainda são imprevisíveis, tendo em vista a falta de detalhamento do NCPC sobre o ponto em estudo, limitando-se a determinar a aplicação do IRDR no âmbito dos juizados especiais. Nesse ponto, importante registrar o entendimento de Volpe Camargo, segundo o qual “A despeito do silêncio tanto do texto do Senado quanto do texto da Câmara, acredita-se que as turmas recursais e juízes de juizados especiais também estarão vinculados ao resultado do incidente”8. Reforçando esse entendimento, confira-se o Enunciado nº 93 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC9 sobre o art. 982, I: Admitido o incidente de resolução de demandas repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem sobre a mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os juizados especiais no mesmo estado ou região.

CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. Op. Cit., p. 305. O artigo referido foi escrito com base no texto aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, razão pela qual não podia prever que a vinculação das turmas recursais e juízes de juizados especiais ao resultado do incidente seria inserida de forma expressa no texto do NCPC aprovado no Plenário dessa Casa Legislativa. 9 Esse e os demais enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC estão disponíveis em: <http://portalprocessual.com/wp-content/ uploads/2015/03/Carta-de-Belo-Horizonte.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2015. 8

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De fato, ficou clara a opção política do legislador de que os juizados especiais não sejam excluídos da aplicação do IRDR, o que se revela uma opção correta, a nosso ver, uma vez que é nesse microssistema que surge a imensa maioria dos casos repetitivos, sendo certo que os juizados – especialmente a partir da Lei nº 10.259/2001, que criou os JEFs – sempre estiveram na vanguarda do estabelecimento de um tratamento diferenciado às demandas em massa10. No entanto, deveria o NCPC ter tratado do tema atentando para as peculiaridades do microssistema dos juizados especiais, prevendo um IRDR a ser decidido internamente, por algum órgão responsável pela uniformização da jurisprudência dentro do microssistema11. O Enunciado nº 44 da ENFAM dispõe exatamente nessa direção: “Admite-se o IRDR nos juizados especiais, que deverá ser julgado por órgão colegiado de uniformização do próprio sistema”. Entende-se, assim, pela inconstitucionalidade da aplicação do julgamento do IRDR pelo TJ/TRF no microssistema dos juizados especiais, pelas razões a seguir expostas. O STF tem jurisprudência pacífica no sentido da inexistência de subordinação jurisdicional dos juizados aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais12. Assim, a imposição da tese firmada pelo TJ/TRF aos juizados especiais viola o entendimento da Suprema Corte sobre a matéria13. 10 No mesmo sentido: ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. As demandas de massa e o projeto de novo Código de Processo Civil. In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas Tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. 3. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 50-54. Ver também, sobre o ponto: NOBRE JR., Edilson Pereira. Os Juizados Especiais Federais e o Pedido de Uniformização de Jurisprudência. Revista Dialética de Direito Processual, n. 122, maio 2013, passim. 11 Com o mesmo entendimento, confira-se CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 394. 12 Nesse sentido, dentre outros, os seguintes precedentes: STF, Pleno, RE 586.798PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 16.11.2011; STF, Pleno, CC 7.081-MG, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 19.08.2002, DJ 27.09.2002, p. 117. 13 No sentido do texto: NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 13. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 1.866-1.867; ABBOUD,

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Os TJs e TRFs não detêm competência jurisdicional sobre os juizados especiais, em virtude do disposto no art. 98, inc. I da CF/88, não podendo uma norma infraconstitucional alterar essa sistemática. Nem se diga que o IRDR não é recurso, mas sim um incidente, e que, por isso, não haveria lesão à norma constitucional referida. A lógica é que os incidentes oriundos dos juizados devem ser apreciados por turmas de juízes de primeiro grau, e isso não se limita aos recursos. Basta notar, por exemplo, que os mandados de segurança e os habeas corpus contra ato de juiz federal, pela aplicação literal do art. 108, I, alíneas “c” e “d” da CF, deveriam ser de competência dos Tribunais Regionais Federais. Sabe-se, na prática, que a competência para apreciar tais mandados de segurança e habeas corpus é das próprias turmas recursais dos juizados, consoante reiterada jurisprudência da Suprema Corte (vide nota 13). O mesmo se diga com relação a um conflito de competência entre juízes dos juizados especiais, o qual deverá ser julgado pela turma recursal à qual estejam vinculados, e não pelo TJ ou TRF14. Nesse sentido, colhe-se o seguinte precedente: PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS VINCULADOS À MESMA TURMA RECURSAL. INCOMPETÊNCIA DO TRF1. COMPETÊNCIA DECLINADA PARA A TURMA RECURSAL. 1. “O Superior Tribunal de Justiça, bem como a Primeira Seção deste Tribunal, já decidiram que o julgamento de conflitos de competência instaurados entre juízes de juizados especiais federais compete à Turma Recursal a eles vinculada, a teor Georges e CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Inconstitucionalidades do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. Revista de Processo, a. 40, v. 240, fev. 2015, p. 221-242. 14 É o teor do enunciado nº 106 do FONAJEF: “Cabe à Turma Recursal conhecer e julgar os conflitos de competência apenas entre Juizados Especiais Federais sujeitos a sua jurisdição” e do Enunciado nº 91 do FONAJE: “O conflito de competência entre juízes de Juizados Especiais vinculados à mesma Turma Recursal será decidido por esta. Inexistindo tal vinculação, será decidido pela Turma Recursal para a qual for distribuído”.

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do Enunciado 91 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais” (CC 0058044-61.2011.4.01.0000/MG, Rel. Juiz Federal Ricardo Machado Rabelo [Conv.], TRF1, Quarta Seção, e-DJF1 16/04/2012, p. 28). 2. Suscitante e suscitado são Juizados Especiais Federais vinculados a Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, circunstância que afasta a competência deste Tribunal para dirimir o conflito. 3. Competência declinada, de ofício, para uma das Turmas Recursais dos Juizados Especiais da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais.” (CC 00382297820114010000, Relator(a) Juiz Federal Mark Yshida Brandão, TRF1, Quarta Seção, j. em 03/12/2014, Fonte e-DJF1 DATA:12/12/2014 PAGINA:232)

Registre-se que a Turma Regional de Uniformização da 5ª Região – TRU, no proc. nº 0502847-71.2014.4.05.8302, Rel. Juiz Federal Marco Antônio Garapa de Carvalho, na sessão de 16 de maio de 2016, decidiu pela inconstitucionalidade da aplicação do julgamento do IRDR pelo TJ/TRF no microssistema dos juizados especiais, em virtude, principalmente, da violação ao art. 98, inciso I, da CF/88.

3 Os problemas práticos decorrentes da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas nos juizados especiais Para o caso de não se acolher a inconstitucionalidade debatida no tópico anterior, passemos a analisar os problemas práticos que surgirão da aplicação do IRDR aos juizados especiais. Segundo o art. 977 do NCPC “O pedido de instauração do incidente será dirigido ao presidente de tribunal”, enquanto o art. 982 dispõe que “Admitido o incidente, o relator: I – suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso”. Ao admitir o IRDR, portanto, os tribunais suspenderão os processos que tramitam no respectivo estado ou região, inclusive nos juizados, como deflui de uma interpretação combinada com o

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art. 985, I, adrede transcrito. O perigo subjacente nessa previsão é de que haja uma subversão de todo o microssistema dos juizados, em que não há a participação dos TJs e TRFs, sendo as turmas de uniformização as responsáveis pela formação dos precedentes. Cabe registrar que houve uma mudança entre a versão do NCPC aprovada no Plenário da Câmara dos Deputados e a versão definitiva transformada na Lei nº 13.105/2015, após revisão final do texto pelo Senado Federal. Na primeira versão referida, prescrevia o art. 988, § 1º que “O incidente pode ser suscitado perante tribunal de justiça ou tribunal regional federal”15, enquanto o texto definitivo prevê, no art. 977, que “O pedido de instauração do incidente será dirigido ao presidente de tribunal”. A alteração textual teve o claro intuito de ampliar o sentido da norma, devendo-se compreender que o IRDR será suscitado não apenas perante os TJs e os TRFs, mas também perante qualquer Tribunal Regional16, como os Tribunais Regionais do Trabalho17 e os Tribunais Regionais Eleitorais. As TRs – e pode-se dizer o mesmo das TRUs e da TNU – por não serem consideradas tribunais, consoante entendimento consolidado nos tribunais superiores, não poderão julgar IRDR. Ficam alijadas, destarte, da participação na formação dos precedentes no âmbito dos juizados especiais. De fato, a dificuldade maior que surge é como compatibilizar tal previsão com a existência de um sistema recursal diverso nos juizados, com TRs, TRUs e TNU. Uma solução possível seria prever-se que, no caso dos juizados, o IRDR deveria ser suscitado perante algum órgão que componha o microssistema, como a TRU ou a TNU. Consulte-se a versão indigitada em: Projeto do novo Código de Processo Civil: versão Câmara dos Deputados – redação final aprovada em 26.03.2014. Salvador: Juspodivm, 2014. 16 Nesse sentido, o enunciado nº 343 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC: “O incidente de resolução de demandas repetitivas compete a tribunal de justiça ou tribunal regional”. 17 No que tange especificamente ao TRT, leia-se o enunciado nº 347 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC: “Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de resolução de demandas repetitivas, devendo ser instaurado quando houver efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito”. 15

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Tal hipótese, entretanto, como visto acima, é vedada pela expressa disposição do art. 977. Cabe perguntar: se o IRDR é proposto e julgado pelos TJs e Tribunais Regionais e, em caso de recurso, pelo STF e STJ – consoante previsto no art. 987 –, qual o papel das TRs, TRUs e TNU na uniformização da jurisprudência dos juizados? Afinal de contas, prevalecerá o que for decidido pelo TJ ou TRF no IRDR em detrimento da jurisprudência da TNU ou TRU respectiva sobre o tema discutido? Sendo essa a interpretação, melhor seria extinguir de logo a TNU e a TRU, reformulando-se por completo o sistema recursal dos juizados especiais. Com efeito, perceba-se que além dos TJs e Tribunais Regionais não comporem a estrutura recursal dos juizados, o mesmo ocorre com o STJ, uma vez que já está consolidado, inclusive no STF, o entendimento de que o recurso especial não é cabível contra decisões que não sejam oriundas de tribunais (caso das TRs, TRUs e TNU, órgãos que compõem o microssistema dos juizados)18. Nesse sentido, aliás, a Súmula nº 203 do STJ: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”. Não se olvide a previsão do art. 14, § 4º, da Lei nº 10.259/2001 (que regula os JEFs), segundo a qual: “Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência”. Tal incidente, cuja teleologia foi transplantada para os Juizados da Fazenda Pública Estadual (Lei nº 12.153/2009), em seu art. 18, § 3º, está, em nossa opinião, eivado de inconstitucionalidade, pois se criou, sem previsão na Constituição Federal, recurso cujo julgamento foi atribuído ao STJ, indo de encontro ao 18 SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos; STRECK, Lênio Luiz. Recurso Especial, macro-lides e o puxadinho hermenêutico. In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas Tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. 3. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 188-189.

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princípio da tipicidade de competências19. De fato, segundo o desenho constitucional, ao STJ não caberia uniformizar a jurisprudência dos juizados especiais, sendo tal tarefa de incumbência de seus próprios órgãos de uniformização, como a TNU e as TRUs. Ainda mais grave, neste ponto, é a situação dos Juizados Estaduais, já que neles não há, ainda, Turma Nacional de Uniformização20. Nesse sentido, Lênio Streck e Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior chamam a atenção para a incongruência sistêmica de prever-se que a existência de recurso especial repetitivo no STJ suspende os processos em trâmite nos juizados. E tal incongruência ganha ainda mais relevo nos juizados estaduais, em que sequer existe a Turma Nacional de Uniformização, o que impede que a matéria sub judice chegue ao STJ por via transversa, o que é possível de ocorrer com a Turma Nacional de Uniformização dos JEFs, com base no art. 14, § 4º, da Lei nº 10.259/200121. O mesmo raciocínio e idêntica preocupação valem integralmente para o IRDR. Avancemos em direção a outros pontos problemáticos. Leonardo da Cunha corrobora esse entendimento, informando que “Em razão do princípio da tipicidade, as competências dos órgãos constitucionais são apenas as expressamente previstas na Constituição”. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Jurisdição e competência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 47. 20 Registre-se que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou, no dia 04 de junho de 2014, o Projeto de Lei nº 5741/2013, oriundo do Superior Tribunal de Justiça, que propõe alteração na Lei nº 12.153/2009, para criar a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Estaduais e do Distrito Federal, que cria a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais dos Estados e do Distrito Federal. A proposta teve requerimento de urgência aprovado, e estava na pauta do Plenário para votação desde maio de 2014, tendo sido, entretanto, retirado de pauta desde a sessão de 05/02/2015. CCJ aprova turma nacional de uniformização de jurisprudência do STJ. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/ camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/469673-CCJ-APROVA-TURMA-NACIONAL-DE-UNIFORMIZACAO-DE-JURISPRUDENCIA-DO-STJ.html>. Acesso em: 31 mar. 2015. Para acompanhamento do trâmite processual, confira-se: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposi cao=580322>. Acesso em: 31 mar. 2015. 21 SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos e STRECK, Lênio Luiz. Op. cit., p. 191-192. 19

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Algumas matérias são tipicamente de competência dos juizados especiais e não chegam aos TRFs e TJs. A título exemplificativo, podemos citar as demandas de: 1) segurados especiais pleiteando aposentadoria ou salário-maternidade rural que costumeiramente são em valor inferior ao teto dos juizados; 2) pescadores artesanais pleiteando o seguro durante o período de defeso. Não custa lembrar que a competência dos JEFs, onde existirem, é absoluta, segundo prescreve o art. 3º da Lei nº 10.259/2001. A propósito, se tais causas ainda chegam aos TRFs hoje em dia, isso se deve às apelações nos casos de competência delegada aos juízes de Direito que atuam em comarcas onde não há vara federal (art. 109, § 4º, da CF)22. Portanto, constatando-se que apenas pouquíssimos processos de matérias típicas dos juizados especiais chegam aos TJs e TRFs, esses tribunais ficarão responsáveis pela uniformização de teses que não é de sua lida diária e que dificilmente apreciariam em outra hipótese, o que pode prejudicar a real compreensão das questões levadas à discussão no IRDR. Prosseguindo-se com o exame do tema deste ensaio, encontra-se o problema a seguir descrito. O art. 1.037 do NCPC, ao tratar do julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos, dispõe: Art. 1.037. (...). § 9º Demonstrando distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado, a parte poderá requerer o prosseguimento do seu processo. Observe-se que a PEC nº 244/2013 propõe que o art. 109, § 4º, da CF, passe a ter o seguinte teor: “Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será para o Tribunal Regional Federal na correspondente área de jurisdição, que poderá delegar o seu julgamento, nas causas previdenciárias, a turma recursal de juizado especial federal”. Como se vê, a PEC pretende transferir dos TRFs para as Turmas Recursais dos JEFs as apelações em casos de competência delegada, o que ainda tornará mais grave o problema referido, em caso de aprovação. A CCJ, em setembro de 2013, aprovou a PEC referida, que aguarda o restante do trâmite no Congresso Nacional. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPr oposicao=566537>. Acesso em: 31 mar. 2015. 22

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§ 10. O requerimento a que se refere o § 9º será dirigido: I – ao juiz, se o processo sobrestado estiver em primeiro grau; II – ao relator, se o processo sobrestado estiver no tribunal de origem; III – ao relator do acórdão recorrido, se for sobrestado recurso especial ou recurso extraordinário no tribunal de origem; IV – ao relator, no tribunal superior, de recurso especial ou de recurso extraordinário cujo processamento houver sido sobrestado. (...). § 13. Da decisão que resolver o requerimento a que se refere o § 9º caberá: I – agravo de instrumento, se o processo estiver em primeiro grau; II – agravo interno, se a decisão for de relator.

Nota-se que o referido dispositivo diz respeito ao julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos, sendo claro que não constam expressamente no NCPC disposições similares para o IRDR23. Ainda assim, entendemos que a possibilidade de o interessado pedir o prosseguimento do seu processo sem se submeter ao sobrestamento aplica-se também ao IRDR, uma vez que esse instituto, ao lado dos recursos extraordinário e especial repetitivos, forma um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência são complementares e devem ser interpretadas em conjunto24. Corroborando a ideia de um microssistema de solução de casos repetitivos, o NCPC prescreve que: Art. 928. Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em: 23 Como bem registram: THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 336-337, nota 113. 24 Nesse exato sentido, o enunciado nº 345 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC: “O incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser interpretadas conjuntamente”.

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I – incidente de resolução de demandas repetitivas; II – recursos especial e extraordinário repetitivos. Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito material ou processual.

A conclusão atingida, a propósito, é ratificada pelo enunciado nº 348 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC, assim formulado: “Os interessados serão intimados da suspensão de seus processos individuais, podendo requerer o prosseguimento ao juiz ou tribunal onde tramitarem, demonstrando a distinção entre a questão a ser decidida e aquela a ser julgada no incidente de resolução de demandas repetitivas, ou nos recursos repetitivos”. Pois bem. Em caso de processo que tramite no juizado e esteja em primeira instância, ou aguardando julgamento de recurso por TR ou TRU, o interessado irá requerer o prosseguimento ou suspensão do feito ao respectivo juizado, TR ou TRU. Caso se entenda que não foi suficientemente demonstrado o distinguishing (a distinção) do seu caso em relação ao tema discutido no IRDR, o agravo de instrumento previsto no art. 1.037, § 13, I, será dirigido ao respectivo TJ/TRF? Na verdade, o próprio cabimento do agravo nessa hipótese é duvidoso, uma vez que a Lei nº 9.099/1995 (que regula os Juizados Estaduais) e a Lei nº 10.259/2001 (que regula os Juizados Federais) não preveem o cabimento dessa espécie recursal para esse caso. Mais: o agravo cabível no microssistema dos juizados é sempre dirigido às TRs, e não aos TJs/TRFs. Trata-se, assim, da criação de uma incongruência sistêmica digna de nota. Insiste-se no assunto para perquirir: caberá o agravo referido quando a causa estiver sobrestada na TNU? Em caso positivo, a qual tribunal será dirigido? São perguntas para as quais não há respostas claras, e que certamente ocasionarão confusão quando da entrada em vigor do NCPC. Do mesmo modo, como poderá o demandante, cuja causa tramite perante os juizados especiais, provocar o TJ/TRF (tribunais que detêm competência para decidir o IRDR nesses casos) para fins de overruling (superação do precedente), se o recurso cabível contra

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a sentença proferida no referido microssistema é o recurso inominado dirigido às turmas recursais? Por fim, importa examinar o seguinte problema. O art. 988, IV, e o § 1º do NCPC encontram-se assim dispostos: Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: (...). IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016) § 1º A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.

Destarte, inobservado o precedente fixado em IRDR nos juizados, caberá reclamação perante o TJ/Tribunal Regional ou STF/ STJ – a depender de quem tenha julgado o IRDR –, para o controle da aplicação do precedente fixado, mesmo que, como adrede demonstrado, o iter recursal desse microssistema passe ao largo desses tribunais (com exceção do STF)25. É o que afirma o Enunciado nº 349 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC: “Cabe reclamação para o tribunal que julgou o incidente de resolução de demandas repetitivas caso afrontada a autoridade dessa decisão”. Ou seja, se uma TR descumpre, por exemplo, entendimento fixado pelo TRF em IRDR, cabe, ao mesmo tempo, reclamação para o TRF e incidente de uniformização de jurisprudência para a 25 Manifestando-se pelo cabimento da reclamação, mas sem tratar especificamente do caso dos juizados especiais: CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto do novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie; KLIPPEL, Rodrigo; MOUTA, José Henrique (coord.). O projeto do novo Código de Processo Civil: estudos em homenagem ao Professor José de Albuquerque Rocha. 1ª série. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 291.

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TRU ou TNU (a depender do caso concreto). Quid juris, se o TRF julgar procedente a reclamação e a TNU entender em sentido diverso na apreciação do incidente de uniformização de jurisprudência? É mais uma grave incoerência sistêmica que merece registro. Tal incoerência ocorre porque, de regra, o tribunal competente para julgar o IRDR e para apreciar a respectiva reclamação também deve ser o tribunal competente para apreciar os recursos cabíveis contra os julgados proferidos nos casos concretos. Essa, contudo, não é a situação que ocorre nos juizados, como demonstramos.

4 Conclusão Como visto, é certa a aplicação do IRDR nos juizados especiais, havendo, entretanto, inúmeros problemas e incoerências sistêmicas decorrentes disso. Entendemos que tal aplicação será imprescindível para o bom funcionamento dos juizados especiais após o advento do NCPC, especialmente no que tange à obediência ao sistema de precedentes e à consequente estabilização de sua jurisprudência. Contudo, um final feliz nessa história passa pela alteração do NCPC para uma regulamentação específica da aplicação do IRDR no sistema dos juizados especiais, de uma forma que não desconsidere a existência das turmas de uniformização de jurisprudência no sistema dos juizados. Ou bem as turmas de uniformização devem manter sua importante função de uniformizar a jurisprudência no âmbito dos juizados ou sua existência se torna absolutamente injustificada, sendo mais coerente propor-se a sua imediata extinção. O que não cabe é criar um sistema híbrido e confuso tal qual se vislumbra com a vigência do NCPC tal qual aprovado no Congresso Nacional. Tais modificações devem ocorrer o mais breve possível, a fim de evitar confusões desnecessárias.

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Breves considerações sobre a Lei da Política Nacional da Mudança do Clima e a sua relação com o Princípio do Desenvolvimento Sustentável Gabriel Wedy Juiz Federal. Doutorando e Mestre em Direito. Visiting Scholar pela Columbia Law School com estágio doutoral no Sabin Center for Climate Change Law da Columbia University. Professor de Direito Ambiental em diversas instituições. Ex-Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil - AJUFE e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul - AJUFERGS-ESMAFE.

Resumo

Abstract

O artigo aborda o problema da mudança do clima e a Política Nacional da Mudança do Clima no Brasil. É realizada a conexão entre a Política Nacional do Meio Ambiente e o Princípio Constitucional do Desenvolvimento Sustentável com uma abordagem crítica e propositiva

This essay is about the climate change problem and the Brazil Climate Change Policy Act. It does a connection between the Climate Change Policy Act and the Sustainable Development Principle with a critical review and a propositive approach.

Palavras-chave: Direito das Mudanças Climáticas – Princípio do Desenvolvimento Sustentável – Política Nacional da Mudança do Clima.

Keywords: Climate Change Law – Sustainable Development Principle – Climate Change National Policy.

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1 Introdução Pretende-se no presente artigo chamar a atenção para um grave problema que atinge a humanidade: a mudança do clima e algumas de suas implicações. Referido fenômeno causa nefastas consequências econômicas, ambientais e sociais que, de um modo ou outro, precisarão de regulação jurídica. Antes disso, evidentemente, é fundamental a criação de um arcabouço legal que preveja medidas de prevenção, precaução, adaptação e resiliência. Especialmente neste quadrante histórico, marcado por uma sociedade de risco que convive, com cada vez mais frequentes, catástrofes ambientais. A Lei brasileira da Política Nacional da Mudança do Clima será analisada em cotejo com o princípio constitucional e o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável, sem qualquer pretensão de encerrar o debate, com um viés crítico e sempre propositivo.

2 Princípio e direito fundamental ao desenvolvimento sustentável no Brasil No Brasil existem referências claras ao desenvolvimento no Preâmbulo e nos artigos 3º, 170 e 225 da Constituição Federal de 1988.1 Direito ao desenvolvimento, em sentido estrito, é um direito O direito ao desenvolvimento vem previsto no próprio preâmbulo da Constituição Federal de 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias...”. Segundo Anjos Filho: “Em relação ao regime e aos princípios constitucionalmente albergados, é necessário considerar, inicialmente, que o preâmbulo da Constituição consignou que o Estado Democrático criado pela Assembleia Nacional Constituinte teve como uma de suas finalidades assegurar o desenvolvimento como um dos valores supremos da nossa sociedade. Vale lembrar que embora haja discussão doutrinária sobre a existência de força normativa no preâmbulo, não há maior dissenso quanto ao fato de que o mesmo é um importante

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fundamental que integra o ordenamento jurídico brasileiro. Encontra lastro no § 2º do art. 5º da Constituição brasileira, segundo o qual os direitos e garantias ali expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.2 O art. 3º prevê o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República. Este dispositivo contém princípios constitucionais que vinculam, obrigatoriamente, todos os poderes, órgãos e agentes estatais. GRAU refere “o princípio do desenvolvimento como um princípio constitucional impositivo ou diretriz com caráter constitucionalmente conformador”.3 Os objetivos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 são pressupostos para o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. As políticas estatais de desenvolvimento devem ser norteadas para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e garantia do desenvolvimento nacional. Este norte é balizador para o desenvolvimento sustentável.4 vetor da hermenêutica da própria Constituição” (ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 269). 2 Para ANJOS FILHO: “Embora o direito ao desenvolvimento não esteja incluído de maneira expressa no Título II da Constituição de 1988, que trata dos direitos e garantias fundamentais, nem tampouco tenha sido explicitamente mencionado em qualquer outro dispositivo constitucional, o regime e os princípios por ela adotados, bem como os tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil é parte, permitem concluir no sentido da sua integração ao direito positivo brasileiro como um direito fundamental” (ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 268-269). 3 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 238. 4 Como refere ANJOS FILHO: “Todos esses objetivos fundamentais, portanto, estão estreitamente vinculados à dignidade da pessoa humana, o que, a nosso ver, indica de maneira segura que a noção constitucional de desenvolvimento deve se alinhar á ideia de desenvolvimento humano que serve de alicerce ao direito ao desenvolvimento. Em outras palavras, desenvolvimento nacional não pode ser confundido com o mero crescimento econômico do país. O desenvolvimento,

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O desenvolvimento está intrinsicamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana. O direito ao desenvolvimento pressupõe, evidentemente, o direito ao desenvolvimento do ser humano em toda a sua plenitude, respeitando o meio ambiente como valor constitucionalmente tutelado. A principal questão a ser respondida por aqueles que estudam o direito fundamental e o princípio do desenvolvimento sustentável é explicar como a sustentabilidade é relacionada ao meio ambiente e a justiça social. É constante a preocupação com o desenvolvimento humano das pessoas que vivem hoje (equidade intrageracional) e no futuro (equidade intergeracional). Deve haver um equilíbrio essencial neste ponto. Não se pode pretender um desenvolvimento sustentável pensando nas gerações futuras e abandonando às presentes, como não se pode cometer a irresponsabilidade de satisfazer as necessidades atuais da humanidade, esquecendo-se das gerações futuras. Ambas as gerações, atuais e futuras, vivem um dilema único: desenvolver-se sustentavelmente dentro de uma perspectiva dimensional econômica, social, ecológica e de governança em uma Era marcada pela mudança climática e suas conseqüências negativas e muitas vezes desastrosas.

3 A realidade e a gravidade da mudança do clima A temperatura média do planeta aumentou 0,74% desde o final de 1800. De acordo com recentíssima pesquisa realizada nos Estados Unidos pela National Oceanic Atmospheric Administration, a em termos constitucionais, vai além, não podendo ser dissociado da dignidade da pessoa humana nem tampouco dos demais objetivos fundamentais, para cuja realização pode contribuir decisivamente. Tanto é assim que a ordem econômica, pela qual a riqueza é gerada, tem como finalidade constitucional assegurar a todos uma existência digna. Isso tudo conforme os ditames da justiça social e observados, dentro outros, os princípios da função social da propriedade, da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, e da busca do pleno emprego” (ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 271-272).

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média da temperatura dos 358 meses que antecederam o ano de 2014, foi mais alta do que a média do século XX. E, o ano de 2014, foi o mais quente desde 1880, superando inclusive o ano de 2010, que registrava até então as temperaturas mais elevadas dos últimos 135 anos.5 Importante grifar que os dez anos de maior calor no período analisado ocorreram posteriormente ao ano de 1997.6 Em estudo independente, a NASA chegou a mesma conclusão. 7 Previsões dos cientistas sobre o aumento de temperatura variam entre 1,8º C e 4º C até o ano de 2100. Ainda que as temperaturas aumentem apenas 1,8º C, este aumento de temperatura será superior a qualquer variação positiva desta nos últimos 10.000 anos. O nível médio do mar subiu de 10 a 20 centímetros durante o século XX e um aumento adicional de 18 a 59 centímetros deve ocorrer até o ano de 2100. Temperaturas elevadas provocam a expansão do volume do oceano e o derretimento de glaciares e das calotas de gelo aumentam o nível do mar.8 A industrialização pós-revolução industrial, calcada nos combustíveis fósseis como fonte de energia, o desmatamento, e processos produtivos insustentáveis na agricultura, como monoculturas, são a causa principal das emissões de gases de efeito estufa. Gases de efeito estufa, por sua vez, preservam o calor no nosso ambiente, pois absorvem parte da radiação infravermelha emanada do sol e refletida na superfície da terra, impedindo-a de regressar para o espaço. Estes gases de fundamental importância, pois mantém a temperatura própria para a vida no planeta. Sem eles o clima seria extremamente frio e a temperatura na terra seria NATIONAL OCEANIC ATMOSPHERIC ADMINISTRATION. Maps and time series. Fonte: <https://www.ncdc.noaa.gov/sotc/global/201506>. Acesso em: 01.01.2016. 6 WEDY, Gabriel. Os sinais do clima e as mudanças climáticas. Jornal Zero Hora. Caderno de Opinião. p. 19, 14.02.2015. 5

NATIONAL AERONAUTICS AND SPACE ADMINISTRATION. Fonte: <http://www. nasa.gov/press/2015/january/nasa-determines-2014-warmest-year-in-modern-record>. Acesso em: 2. 1.2016. 8 Ver GORE, Al. An inconveniente Truth: Emmaus: Rodale Press,2006; SACHS, Jeffrey. The Age of Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2015. 7

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cerca de 33º C mais baixa em média, o que comprometeria a vida no planeta. Excesso destes gases na atmosfera, por outro lado, é muito perigoso, pois passam a reter cada vez mais a radiação infravermelha refletida na terra e impedem esta de retornar ao espaço, o que torna o clima cada vez mais quente.9 Dentre os gases de efeito estufa emitidos, em decorrência das atividades humanas, que causam o aquecimento global o que mais necessita de regulação é o dióxido de carbono, pois ele é emitido em grandes quantidades. Entretanto, existem gases de efeito estufa mais potentes. O metano possui o potencial de aquecimento global (Global Warming Potential) de 21 GWP; o óxido nitroso de 310 GWP; os hidrofluorocarbonetos tem o GWP entre 140 a 11.700; os perfluorocarbonetos possuem o GWP de 6.500 a 9.200 e, por fim, os hexafluoretos com 16.300 de GWP.10 Alterações do clima decorrentes das atividades humanas e os seus efeitos negativos são hoje praticamente um consenso científico. Dois estudos separados, usando diferentes metodologias, concluíram que aproximadamente 97% dos cientistas, que pesquisam sobre o clima, concordam que a Terra está aquecendo e que as emissões de gases de efeito estufa são a principal causa deste fenômeno.11 Existe um pequeno grupo composto de cientistas do clima e de outras áreas do conhecimento, além de leigos e céticos que discordam que a mudança climática possui causa humanas12 e é uma realidade. 9 Ver GORE, Al. An inconveniente Truth: Emmaus: Rodale Press,2006; SACHS, Jeffrey. The Age of Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2015. 10 INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE, THE SCIENCE OF CLIMATE CHANGE: SUMARY FOR POLICYMAKERS AND TECHNICAL SUMMARY OF THE WORKING GROUP I REPORT 22(1995). 11 W. R. L. ANDEREGG et al. Expert Credibility in Climate Change, 107 (27) Proc. Nat’l Acad. Sci. 12, 107-09 (June 21, 2010); COOK, John et al. Quantifyng the Consensus on Anthropogenic Global Warming in the Scientific Literature, 2013 Environmental. Res. Letter 9, 024024. Ver também: GERRARD, Michael. Introduction and Overwiew. In: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S. Law. Second Edition. Chicago: American Bar Association, 2014. p. 5. 12 Veja ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warmin. New York: Bloomsburry Press, 2011.

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A aceitação da realidade da mudança climática e dos perigos que ela representa para a humanidade torna-se uma imposição do exercício consciente da cidadania. Mudanças climáticas causadas pela retenção destes gases na atmosfera causam impactos negativos sobre a saúde humana, infraestrutura, reservas de água, ecossistemas e oceanos.13 Evidentes impactos nefastos aos seres humanos são: o aumento da freqüência e intensidade do calor, causador de mortes e doenças relacionadas à elevação das temperaturas; secas e riscos de incêndio; intensificação da poluição do ar; aumento das extremas precipitações associadas as enchentes, que podem levar a danos humanos e materiais e a elevação das doenças decorrentes destas cheias; o aumento do nível do mar e da intensidade das inundações costeiras14 geradoras de vítimas e de prejuízos materiais bilionários. Em relação ao suprimento de água, os reservatórios estão diminuindo em virtude das mudanças do clima que, de variados modos, afetam os ecossistemas e a subsistência humana e dos seres vivos em muitas regiões do mundo. Águas na superfície e subterrâneas estão sofrendo com o consumo excessivo causado pelo aumento da demanda, assim como diminuindo a capacidade de escoamento e recarga natural. A água escassa é disputada pelas pessoas para o consumo, para o emprego agrícola e também pelos demais seres vivos. Muitos países dependem muito do gelo nos picos das montanhas para o armazenamento e estoque de água, mas no verão este gelo tem diminuído, ano a ano, com o aquecimento das temperaturas. Ocorre, por outro lado, o aumento de secas sazonais, que também diminuem as reservas de água.15 13 GERRARD, Michael. Introduction and Overwiew. In: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Editors). Global Climate Change and U.S. Law. Second Edition. Chicago: American Bar Association, 2014. p. 15-16. 14 Ver: ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. New York: Bloomsburry Press, 2011. 15 UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAM. Near-terma climate protection and clean air benefits: Actions for Controling Short-Lived Climate

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Ecossistemas estão sendo diretamente afetados pelas mudanças climáticas, inclusive com mudanças na biodiversidade e na localização das espécies que se deslocam em busca de temperaturas mais amenas. A capacidade dos ecossistemas para moderar as conseqüências das secas, enchentes e tempestades tem diminuído.16 O aquecimento dos oceanos e a sua acidificação estão modificando e danificando a vida no mar. Peixes e outros seres vivos marinhos móveis e também imóveis, como os corais, estão sofrendo estas perigosas conseqüências decorrentes da alteração do seu habitat. Conseqüências do aquecimento global somam-se à pesca descontrolada e a poluição das zonas costeiras que afetam negativamente a atividade pesqueira para consumo humano e as comunidades que desta dependem.17 Podem ser tomadas medidas para o combate as mudanças climáticas que são a tributação do carbono, incentivos para a produção de energia limpa, criação de standards para a energia renovável e produção de combustíveis de baixo carbono e, também, adoção de políticas públicas de adaptação e resiliência.18

4 A Política Nacional da Mudança do Clima e o princípio do desenvolvimento sustentável Neste cenário, o princípio do desenvolvimento sustentável foi expressamente acolhido pela Lei n 12.187/2009, que institui a Forces- A Unep Synthesis Report (2011). Fonte: <http://www.unep.org/ publications/ebooks/SLCF>. Acesso em: 20.10.2015. 16 GERRARD, Michael. Introduction and Overwiew. In: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S. Law. 2. ed. Chicago: American Bar Association, 2014. p. 16. 17 Ver: ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. New York: Bloomsburry Press, 2011. 18 São justamente estas medidas que Jody Freeman e Kate Konschnik mencionam como já sugeridas no âmbito Congresso dos Estados Unidos. FREEMAN, Jody; Konschnik, Kate. U.S. Climate Change Law and Policy: Possible Paths Forward. In: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S. Law. Second Edition. Chicago: American Bar Association, 2014. p. 795-840, p. 804.

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Política Nacional Sobre Mudança do Clima. A Lei, embora com imperfeições e abstrações, é um considerável avanço como marco no combate as mudanças climáticas e ao aquecimento global. Nitidamente absorveu os conceitos dos diplomas internacionais de tutela ambiental. Fato este, aliás, extremamente positivo. A Lei nº 12.187 está regulamentada pelo Decreto nº 7.390/2010, que dispõe, entre outros pontos importantes, que a linha base de emissões de gases de efeito estufa para 2020 foi estimada em 3,236 GtCO2-eq. Assim, a redução absoluta correspondente ficou estabelecida entre 1, 168 Gt-CO2-eq e 1,259 GtCO2-eq, 36,1% e 38,9% de redução de emissões respectivamente. O Brasil, no entanto, comprometeu-se, perante a Conferência das Nações Unidas para a Agenda de Desenvolvimento Pós-2015, realizada em Nova York em setembro de 2015, que as reduções seriam de 37% até 2025 e de 43% até 203019, superando em muito o previsto no Decreto. Resta saber evidentemente se o Brasil possuirá estrutura, capacidade técnica e seriedade política para cumprir esta meta tão arrojada. Estabelece a Lei nº 12.187 os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos da PNMC ( Art. 1º). Torna legais conceitos técnicos importantes que fazem parte do direito das mudanças climáticas como de adaptação; de efeitos adversos da mudança do clima; de emissões; de fonte emissora; de gases de efeito estufa; de impacto; de mitigação; de mudança do clima; de sumidouro e de vulnerabilidade (art. 2º, I, II, III, IV, V, VI, VIII, IX e X). Estas definições técnicas precisam estar traduzidas de forma clara para o direito, pois devem ser empregadas na formulação e execução das políticas públicas, nas decisões judiciais e administrativas, com a maior segurança e precisão possíveis. Dispõe, entre outros objetivos, que deve haver a compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a proteção do sistema climático (art. 4º, I). Observa-se aí um vínculo fundamental entre economia, ser humano e meio ambiente no que tange ao desenvolvimento, com reduzidas emissões de carbono. The Guardian. Brazil pledges to cut carbon emssions 37% by 2025 and 43% by 2030. Disponível em: <www. theguardian.com/environment/2015/sep/28/brazilpledges-to-cut-carbon-emissions-37-by-2025>. Acesso em: 30.10.2015. 19

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A PNMC estabelece, entre outras, como diretriz: todos os compromissos assumidos pelo Brasil na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, no Protocolo de Quioto e nos demais documentos sobre mudança do clima dos quais o país vier a ser signatário, como no caso da COP 21 (art. 5º, I). É fundamental que o Brasil, logo que aprovado novos documentos internacionais sobre mudanças do clima, desde já os adote como diretriz, a fim de não necessitar esperar todo o lento processo de internalização destes diplomas previsto na Constituição. Evidentemente que mesmo enquanto não internalizados os Tratados ou Convenções, para que tenham valor legislativo interno, podem ser adotados na condição de diretrizes das políticas públicas internas brasileiras de combate as mudanças do clima e de adoção de medidas de resiliência. No diploma restam eleitos os instrumentos da PNMC entre as quais o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e, em especial, a avaliação de impactos ambientais sobre o microclima e o macroclima (art. 6º, I ao XVIII). Dentre os instrumentos institucionais para a atuação da Política Nacional de Mudança do Clima estão inclusos o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, a Comissão Interministerial de Mudança do Clima, a Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas e a Comissão de Coordenação das Atividades de Metereologia, Climatologia e Hidrologia. Importante medida foi incluir no art. 8º que as instituições financeiras oficiais disponibilizarão de linhas de crédito e financiamento específicas para desenvolver ações e atividades que atendam aos objetivos da Lei e, concomitantemente, estejam voltadas a indução da conduta dos agentes privados à observância e execução da PNMC, no âmbito de suas ações e responsabilidades sociais. Observa-se que a legislação oferece mecanismos de financiamento e crédito para a produção de energia limpa. Princípios, objetivos, diretrizes, instrumentos das políticas públicas e programas governamentais deverão ser compatibilizados com os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos da

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Política Nacional sobre Mudança do Clima (art. 10). Resta previsto na Lei que Decreto do Poder Executivo estabelecerá, em consonância com a Política Nacional sobre Mudança do Clima, os planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas visando à consolidação de uma economia de baixo consumo de carbono, na geração e distribuição de energia elétrica, no transporte público urbano e nos sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros, na indústria de transformação e na de bens de consumo duráveis, nas indústrias químicas, fina e de base, na indústria de papel e celulose, na mineração, na indústria da construção civil, nos serviços de saúde e na agropecuária, com vistas em atender metas gradativas de redução de emissões antrópicas quantificáveis e verificáveis, considerando as especificidades de cada setor, inclusive por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL e das Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas – NAMAs. Várias previsões vinculam a PNMC ao desenvolvimento sustentável especificamente. Medidas para a implementação da PNMC deverão considerar “o desenvolvimento sustentável como condição para enfrentar as alterações climáticas e conciliar o atendimento às necessidades comuns e particulares das populações e comunidades” que vivem no território nacional (art. 3º, IV). A legislação não apenas menciona o desenvolvimento sustentável reiteradamente em seu texto, como o reconhece como princípio de direito. A PNMC e as ações dela decorrentes, executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observarão “os princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, este último no âmbito internacional” (art. 3º). Inobstante a lei trazer a previsão do princípio e do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável no seu texto, além de outras inovações positivas, apresenta inúmeras falhas e imperfeições se comparada as legislações estrangeiras mais modernas sobre a mudança do clima.

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5 Falhas da Política Nacional da Mudança do Clima Andou bem o legislador ao erigir o desenvolvimento sustentável como princípio de observância obrigatória na PNMC o que acaba por vincular os entes políticos e os órgãos da administração pública. Melhor seria se tivesse nomeado expressamente neste artigo a iniciativa privada que movimenta a economia no exercício de suas atividades e recebe concessões, autorizações e permissões do Poder Público para o exercício destas. A atividade privada, aliás, produz o maior volume de externalidades entre as quais as emissões de gases de efeito estufa que causam o aquecimento global. Outro ponto que merece crítica nos dias atuais é que o “princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada”, erigido no âmbito do direito internacional por pressão das nações em desenvolvimento, foi um empecilho durante muitos anos para um acordo global sobre o clima. Não existe hoje dúvida que todas as nações, desenvolvidas e em desenvolvimento, com base em argumentos técnicos e políticos, devem contribuir igualmente, e desde já, para o corte nas emissões de gases de efeito estufa. Não está excluído daí, obviamente, o apoio técnico-científico e financeiro necessário para as nações em desenvolvimento, a ser fornecido pelos países ricos e organismos internacionais, para o corte de emissões e implementação de políticas de resiliência e adaptação climáticas. Aliás, o princípio está em parte superado pelo decidido na COP 21, no sentido de que todos os países devem comprometer-se em reduzir as emissões para manter o aquecimento global abaixo de 2o C e buscar atingir um aumento de 1,5o C até 2100, levando em consideração o período pré-industrial. Medidas a serem executadas na política nacional do clima deverão estar pautadas pela máxima que “o desenvolvimento sustentável é a condição para enfrentar as alterações climáticas e conciliar o atendimento às necessidades comuns e particulares das populações e comunidades que vivem no território nacional” (art. 3º, IV). Ou seja, o princípio do desenvolvimento sustentável não é uma má-

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xima vazia, é uma condição essencial e inafastável para o enfrentamento do aquecimento global e as suas consequências nefastas no território nacional. Objetivos da PNMC deverão estar em consonância com “o desenvolvimento sustentável a fim de buscar o crescimento econômico, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais” (Art. 4, Parágrafo único). Aqui restaria melhor empregado o termo desenvolvimento econômico e não crescimento, o crescimento da economia, como se sabe, não significa necessariamente desenvolvimento. Pode ser um crescimento desigual, poluente, desordenado e concentrador de renda, incompatível com o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável. Mereceria estar inserida neste leque de objetivos a governança. Esta uma grave omissão na legislação. O Brasil enfrenta altos índices de ineficiência estatal na implementação de suas políticas públicas por falta de expertise técnico, transparência, participação das partes afetadas no processo de tomada de decisão e, especialmente, por altos índices de corrupção que está infelizmente entranhada em setores da Administração Pública. Saques criminosos ao patrimônio público, e vantagens privadas obtidas em nome deste, ficam evidenciados nas notórias e espúrias relações estabelecidas entre inescrupulosos agentes estatais e mentes criminosas que povoam setores da iniciativa privada como divulgado pela imprensa para um estarrecido povo brasileiro no cotidiano do país.20 Dentre os instrumentos da política nacional do clima também poderia, ainda tratando de governança, haver a previsão expressa e necessária da implementação do procedimento da análise do custo-benefício das medidas a serem implementadas. O combate às mudanças climáticas possui um custo que precisa ser avaliado em tempos de recursos escassos do Estado. Recursos precisam, ainda, ser bem alocados e não podem ser desperdiçados por práticas Veja: Corruption in Brazil: The Big Oily. The Economist. 03.01.2015. Fonte: <http://www.economist.com/news/americas/21637437-petrobras-scandalexplained-big-oily>. Acesso em: 02.01.2016. 20

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formalistas. Evidentemente que direitos fundamentais, como o meio ambiente equilibrado, à saúde e a vida devem ter a sua dimensão ampliada nesta análise, pregada aqui, como obrigatoriamente humanizada e ecologicamente responsável. Há uma tímida e pálida menção na Lei sobre algo bastante distante, mas com pequenas semelhanças a um procedimento de análise de custo-benefício quando são abordadas as suas diretrizes. Prevê a lei que é diretriz da PNMC “as ações de mitigação da mudança do clima em consonância com o desenvolvimento sustentável, que sejam, sempre que possível, mensuráveis para sua adequada quantificação e verificação a posteriori” (art. 5º, II). A lei manifesta uma preocupação com a mensuração e a quantificação das medidas de mitigação da mudança do clima, mas não menciona o procedimento da análise do custo-benefício. O Brasil precisa adotar referido procedimento de modo humanizado e sustentável, via legislativa, ou até via emenda Constitucional a ser inserida no art. 37 da Constituição Federal, para que este passe a ser um dos princípios a vincular a nem sempre eficiente e transparente Administração pública brasileira. O procedimento da análise do custo-benefício21, pode informar o processo decisório, trazer eficiência, transparência e sustentabilidade às políticas públicas. É importante que o Brasil supere a Era das belas leis que compilam traduções de princípios de direito internacional, mas que são incapazes de oferecer mecanismos eficazes de concretização de direitos. A adoção de uma legislação moderna que permita o procedimento de análise, sustentável e humanizada, do custo-benefício das medidas, pode ser um importante instrumento de concretização dos direitos fundamentais. Entre os instrumentos da PNMC, importante referir, está a previsão de adoção de indicadores de sustentabilidade. Seria Ver uma das mais completas obras sobre o procedimento da análise do custobenefício: ADLER, Mattew; POSNER, Eric. New Foundations of Cost-Benefit Analysis. Cambridge: Harvard University Press, 2006. Consultar, também: BOARDMAN, Anthony; GREENBERG, David; VINING, Aidan; WEIMER, David. Cost-Benefit Analysis: Concepts and Practice. 4. ed. New Jersey: Pearson Education, 2011. 21

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importante que o legislador definisse quais serão os indicadores de sustentabilidade a serem utilizados a fim de melhor orientar aqueles que elaboram as políticas públicas e a todos entes públicos e privados que precisaram observar estes instrumentos em suas atividades no dia a dia. A eleição dos indicadores adequados proporciona segurança jurídica e evita interpretações maniqueístas daqueles que pretendem burlar a lei ou escapar de sua eficácia. Faltou a Lei priorizar, até com a elaboração de um artigo autônomo, os dois mecanismos mundialmente considerados como os mais efetivos no combate as emissões de gases de efeito estufa: a tributação sobre o carbono e a adoção do comércio de autorizações das emissões ao estilo cap-and-trade. É de se grifar que a tributação sobre o carbono traz a vantagem de tornar a emissão do carbono mais cara para todos. O cap-and-trade, por sua vez, como todo o mercado, apresenta as suas falhas e imperfeições. A tributação sobre o carbono pode atingir a toda a sociedade, o sistema de cap-and-trade atinge diretamente apenas o setor produtivo. O ideal seria a implementação combinada destas medidas no caso brasileiro. Há um arremedo destas soluções em dois pontos da Lei. Primeiro quando a Lei dispõe no seu Art. 9º que o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões- MBRE “será operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, onde se dará a negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa certificadas”. Como se observa, passados anos da publicação da Lei, este mercado no Brasil é inexistente. Estamos distantes dos mercados de cap-and-trade que estão em pleno funcionamento na União Européia, Estados Unidos, Canadá e em estágio inicial na China.22 A China recentemente anunciou o seu programa de Cap-and-Trade que visa limitar as emissões nas usinas elétricas, nas indústrias do aço e na produção de cimento e de papel. Ver: China to Announce Cap-and-Trade Program to Limit Emissions. The New York Times. 24.09.2015. Fonte: <http://www.nytimes. com/2015/09/25/world/asia/xi-jinping-china-president-obama-summit. html?r=0>. Acesso: 02.01. 2016. 22

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A grande vantagem deste mercado é que, em pleno funcionamento, estimula as empresas a diminuírem as emissões para afastar custos. Quanto menores as emissões e maior for o emprego de energia limpa, maiores serão os lucros das empresas neste mercado. Com o aumento das emissões as empresas terão que recorrer ao mercado para comprar mais autorizações de emissões, aumentando os seus custos e diminuindo os lucros. Trata-se de um nudge para estimular a produção de energia limpa e mais lucrativa que utiliza a mercantilização das autorizações de emissões de carbono23 para estimular financeiramente comportamentos sustentáveis dos agentes econômicos. Existe uma forte objeção moral ao mercado das autorizações de emissões de carbono. Coloca-se preço em algo que não pode ser comprado ou comercializado: a poluição. Pessoas deixam de poluir não porque estejam agindo pela virtude de bem agir, mas para obter mais lucro. Segundo esta objeção deveria se seguir o imperativo categórico de que o certo é não poluir, pois se prejudica as outras pessoas e aos bens ambientais. Esta máxima deveria ser adotada como um princípio moral apriorístico e não a visão utilitária que é mais lucrativo não poluir. Ou seja, se faz a coisa certa, combate à poluição, pelo motivo errado, visão de lucro. Este raciocínio utilitário pode ter como conseqüência deletéria a violação da máxima da solidariedade social e do princípio moral de não poluir. O mercado das autorizações de emissões de carbono estaria, portanto, contaminado pela eficiência em menoscabo a princípios morais apriorísticos.24 Sobre nudges, ou estímulos governamentais ou regulatórios para certas ações desejadas, em especial, pelas Administrações, pelos governos e para o aperfeiçoamento de decisões e escolhas ver: SUNSTEIN, Cass; THALER, Richard. Nudge. Improving decisions about health, wealth and happiness. New Haven: Yale University Press, 2008. 24 Crítica a precificação de bens ambientais podem ser encontradas em SHIVA, Vandana. Water Wars: Privatization, Pollution and Profit. In: Environmental Ethics. What Really Works. SCHMIDTZ, David; WILLOTT, Elizabeth. p. 217-220.New York: Oxford University Press, 2012; KELMAN, Steven. Cost-Benefit Analysis: An Ethical Critique. In: Environmental Ethics. What Really Works. SCHMIDTZ, David; WILLOTT, Elizabeth. p. 350-357. New York: Oxford University Press, 23

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Verdade é que, dentro de uma visão pragmática, o mercado de autorizações das emissões de carbono tem funcionado – ainda que com imperfeições – no exterior e é uma alternativa a ser considerada no combate as mudanças climáticas em uma sociedade pautada por disposição constitucional pelo respeito a livre iniciativa como princípio do desenvolvimento econômico e a propriedade privada como direito fundamental. Importante, no caso, adotar uma postura pragmática e apoiar, com reservas éticas e morais, mas sem preconceitos calcados em heurísticas e intuições, o cap-and-trade como uma alternativa para a descarbonização da atmosfera. Em relação à tributação do carbono especificamente, o mais efetivo meio de combate as mudanças climáticas, nada foi mencionado pelo legislador. Sobre a utilização da extrafiscalidade tributaria para o combate as emissões restou previsto na lei, em boa hora, que são instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente medidas fiscais e tributárias “destinadas a estimular a redução das emissões e remoção de gases de efeito estufa, incluindo alíquotas diferenciadas, isenções, compensações e incentivos, a serem estabelecidos em lei específica”. É importante, contudo, que o Brasil avance com ousadia nesta seara para o combate efetivo as mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, estimule uma economia verde, que venha a beneficiar às presentes e futuras gerações25 de seres humanos e não-humanos em uma perspectiva de antropocentrismo alargado.

6 Conclusão A PNMC brasileira é um avanço, sem dúvida alguma, e está de acordo e em consonância como o princípio constitucional do 2012. NUSSBAUN, Martha. The Costs of Tragedy: Some Moral Limits of CostBenefit Analysis. In: Environmental Ethics. What Really Works. SCHMIDTZ, David; WILLOTT, Elizabeth. p. 370-387. New York: Oxford University Press, 2012. 25 Recentes e interessantes perspectivas de crescimento e lucro dentro de uma realidade de energia limpa e sustentável podem ser verificadas em: PERTHUIS, Christian JOUVET, Pierre Andre. Green Capital. A New Perspective on Growt. Translated by Michael Westlake. New York: Columbia University Press, 2015.

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desenvolvimento sustentável. Possui, outrossim, evidentes omissões e imprecisões, mas no aspecto geral é positiva para o direito ambiental brasileiro na medida em que reconhece que a mudança do clima é uma realidade e que os seres humanos estão contribuindo para este fenômeno. É um diploma legal que serve, em que pesem as críticas aqui expostas, como diretriz para os setores público e privado, e para um início de regulação eficiente sobre as emissões de gases de efeito estufa. Em especial, para a promoção de um modelo de desenvolvimento sustentável que leve a sério medidas de resiliência e de adaptação, absolutamente necessárias para o enfrentamento do aquecimento global e das suas deletérias e às vezes catastróficas consequências.

Referências ADLER, Mattew; POSNER, Eric. New Foundations of Cost-Benefit Analysis. Cambridge: Harvard University Press, 2006. ANDEREGG, W. R. L. et al. Expert Credibility in Climate Change, 107 (27) Proc. Nat’l Acad. Sci. 12, 107-09 (June 21, 2010); ANJOS FILHO, Robério Nunes. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013. BOARDMAN, Anthony; GREENBERG, David; VINING, Aidan; WEIMER, David. Cost-Benefit Analysis: Concepts and Practice. 4. ed. New Jersey: Pearson Education, 2011. COOK, John et al., Quantifyng the Consensus on Anthropogenic Global Warming in the Scientific Literature, 2013 Environmental. Res. Letter 9, 024024. FREEMAN, Jody; Konschnik, Kate. U.S. Climate Change Law and Policy: Possible Paths Forward. In: GERRARD, Michael;

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FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S. Law. 2. ed. Chicago: American Bar Association, 2014. p. 795-840. GERRARD, Michael. Introduction and Overwiew. In: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Editors). Global Climate Change and U.S. Law. Second Edition. Chicago: American Bar Association, 2014. p. 5. GORE, Al. An inconveniente Truth. Emmaus: Rodale Press,2006; SACHS, Jeffrey. The Age of Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2015. INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE, THE SCIENCE OF CLIMATE CHANGE: SUMARY FOR POLICYMAKERS AND TECHNICAL SUMMARY OF THE WORKING GROUP I REPORT 22(1995). KELMAN, Steven. Cost-Benefit Analysis: An Ethical Critique. In: SCHMIDTZ, David; WILLOTT, Elizabeth. Environmental Ethics. What Really Works. New York: Oxford University Press, 2012. p. 350-357. NATIONAL OCEANIC ATMOSPHERIC ADMINISTRATION. Maps and time series. Disponível em: <https://www.ncdc.noaa. gov/sotc/global/201506>. Acesso em: 01.01.2016. NATIONAL AERONAUTICS AND SPACE ADMINISTRATION. Disponível em: <http://www.nasa.gov/press/2015/january/nasa-determines-2014-warmest-year-in-modern-record>. Acesso em: 02.01.2016. NUSSBAUN, Martha. The Costs of Tragedy: Some Moral Limits of Cost-Benefit Analysis. In: SCHMIDTZ, David; WILLOTT, Elizabeth. Environmental Ethics. What Really Works. p. 370-387. New York: Oxford University Press, 2012. ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warmin. New York: Bloomsburry Press, 2011.

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SUNSTEIN, Cass; THALER, Richard. Nudge. Improving decisions about health, wealth and happiness. New Haven: Yale University Press, 2008. SHIVA, Vandana. Water Wars: Privatization, Pollution and Profit. In: SCHMIDTZ, David; WILLOTT, Elizabeth. Environmental Ethics. What Really Works. New York: Oxford University Press, 2012. p. 217-220. THE ECONOMIST. Corruption in Brazil: The Big Oily. 03.01.2015. Disponível em: <http://www.economist.com/news/americas/ 21637437-petrobras-scandal-explained-big-oily>. Acesso em: 02.01.2016. THE GUARDIAN. Brazil pledges to cut carbon emssions 37% by 2025 and 43% by 2030. Disponível em: <www.theguardian.com/environment/2015/sep/28/brazil-pledges-to-cut-carbon-emissions-37-by-2025>. Acesso em: 30.10.2015. THE NEW YORK TIMES. China to Announce Cap-and-Trade Program to Limit Emissions. 24.09.2015. Disponível em: <http://www. nytimes.com/2015/09/25/world/asia/xi-jinping-china-president-obama-summit.html?_r=0>. Acesso: 02.01.2016. UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAM. Near-terma climate protection and clena air benefits: Actions for Controling Short-Lived Climate Forces- A Unep Synthesis Report (2011). Disponível em: <http://www.unep.org/publications/ebooks/SLCF>. Acesso em: 20.10.2015. WEDY, Gabriel. Os sinais do clima e as mudanças climáticas. Jornal Zero Hora. Caderno de Opinião. p. 19, 14.02.2015.

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ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA ANTECIPADA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Gabriela Macedo Ferreira Juíza federal, graduada pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Processual Civil pela Juspodivm.

Resumo

Abstract

O Código de Processo Civil de 2015, em seu art. 304, consagra importante novidade, a estabilização da tutela antecipada de urgência, técnica de monitorização genérica na qual uma decisão proferida com base em cognição sumária torna-se estável ao não ser impugnada. Essa nova técnica caminha no sentido da atualização do processo civil, ao dar uma opção efetiva de “tutela dos direitos” que não passa necessariamente por todo o caminho longo, e por vezes caro, do processo ordinário de conhecimento. Fixadas essas premissas, sustenta-se a constitucionalidade da estabilização da tutela antecipada, a fixação de um regime jurídico que lhe atribua máxima efetividade, admitindo-se, inclusi-

The Civil Procedure Code of 2015 in its article. 304, enshrines important novelty, the stabilization of injunctive relief of urgency, general monitoring technique in which a decision given based on summary cognition becomes stable when not being contested. This new technique moving towards updating the civil process, to give an effective option of “protection of rights” that do not necessarily go through all the way long, and sometimes expensive, of the ordinary process of knowledge. Established these premises, it holds up the constitutionality of stabilization of injunctive relief, setting a legal framework to give you maximum effectiveness, admitting even the

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ve, a estabilização da antecipação parcial de tutela, a isenção do pagamento de custas e redução de honorários para o réu que não recorre, a adoção de interpretação restritiva quanto aos seus requisitos e procedimento e a não incidência de qualificação análoga ao da coisa julgada à decisão estabilizada definitivamente, após o decurso do prazo de dois anos, pois não são equivalentes os efeitos do procedimento comum cuja cognição é ampla – com exercício efetivo do contraditório e possibilidade de extensa produção probatória – e os efeitos do procedimento sumário da tutela provisória, sob a ótica do direito ao processo justo no Estado constitucional.

stabilization of the partial early relief, exemption from payment of costs and reduction fees for the defendant who does not use, the adoption of restrictive interpretation as to their requirements and procedure and not subject to similar qualification to the res judicata to the stabilized decision definitively after the lapse of two years, since the effects are not equivalent to the common procedure whose cognition is wide – with effective adversarial exercise and the possibility of extensive evidentiary production – and the effects of summary procedure of interim protection from the perspective of the right to due process in the constitutional state.

Palavras-chave: Tutela provisória – Tutela de urgência – Tutela requerida em caráter antecedente – Monitorização genérica – Tutela dos direitos – Efetividade – Coisa julgada – Estado constitucional.

Keywords: Interim protection – Protection of urgency – Protection required in character foregoing – Generic monitoring – Protection of rights – Effectiveness – Res judicata – Constitutional state.

1 Introdução A longa duração dos processos foi uma preocupação constante das últimas reformas legislativa ante a redução da efetividade das decisões judiciais. Para enfrentar essa questão, tornou-se necessário refletir sobre a quebra do modelo neutro e único de processo de cognição plena e admitir a criação de técnicas processuais diferenciadas, a exemplo da sumarização de procedimentos que, de um lado, mitigam o contraditório e, de outro, amenizam os efeitos do tempo no processo civil como é o caso da antecipação dos efeitos da tutela e da ação monitória. Avançando no tema e inspirados nos ordenamentos jurídicos francês e italiano, o novo Código de Processo Civil introduziu no sistema processual brasileiro a “estabilização da tutela de urgência antecipada”, técnica de monitorização genérica que torna estável a

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tutela satisfativa em procedimento antecipatório, quando não interposto o respectivo recurso. Por meio dessa técnica, desvincula-se a instrumentalidade obrigatória entre a cognição sumária e a cognição exauriente, dando a tutela provisória autonomia para proteção do direito material. Diversas questões, contudo, despontam acerca da nova técnica processual: seria ele compatível com o processo constitucional brasileiro; qual seu procedimento; haveria estabilização da tutela concedida parcialmente; a extinção do processo decorrente da estabilização da tutela provisória resolveria o mérito da demanda; aplicar-se-ia o regramento da coisa julgada à estabilização definitiva da tutela antecipada após o decurso do prazo de dois anos para revisão, reforma ou invalidação da decisão antecipatória; seria cabível a utilização do regime da execução definitiva. O exame do novo texto legal revela-se árduo, pois inexiste produção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, e, mais do que isto, não há ainda aplicação prática do novo instituto no foro. Após seis meses de vigência do novo código, me parece que poucos advogados se aventuraram no uso dessa nova técnica1. O presente artigo não tem a pretensão de já enfrentar todas essas questões tormentosas, mas de despertar a curiosidade do leitor acerca dessa nova técnica cujo potencial voltado à efetividade da “tutela dos direitos” pode ser apagado pelo desconhecimento e receio do novo.

2 Tutela definitiva e tutela provisória Antes de adentrar o tema e suas questões controvertidas, importante fazer uma rápida digressão a algumas noções preliminares da tutela definitiva e provisória. No juízo em que atuo como magistrada apenas duas ações denominadas de “tutela antecipada antecedente” foram ajuizadas e ambas de modo equivocado. A primeira ação foi ajuizada, em caráter incidental, com o pedido final já deduzido e sem pedido expresso de estabilização; a segunda, em hipótese na qual o pedido tem natureza cautelar e não antecipatória.

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A tutela definitiva é aquela obtida com base em cognição exauriente, após vasta produção probatória, contraditório efetivo e ampla defesa, respeitando o devido processo legal, podendo ser satisfativa ou cautelar. A primeira busca certificar ou efetivar o direito material com a entrega do bem da vida almejado e seu procedimento pode ser tão demorado que coloca em risco a própria realização do direito afirmado; a segunda visa conservar o direito pleiteado, neutralizando os efeitos maléficos do tempo. A tutela provisória é a tutela que se pretende definitiva, todavia, concedida após mera cognição sumária2; podendo também ser satisfativa ou cautelar. Trata-se de importante técnica processual cuja finalidade é minorar os efeitos perniciosos do tempo sobre o processo, permitindo o gozo antecipado e imediato dos efeitos próprios da tutela definitiva pretendida3. O Código de Processo Civil de 2015 deu à] chamada “tutela provisória” tratamento bastante diferente do que fora adotado no Código de Processo Civil de 1973, dedicando-lhe o livro V da sua parte geral e subdividindo-o em três títulos: disposições gerais, tutela de urgência e tutela de evidência. A tutela provisória de urgência tem por fundamento a existência de um perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, podendo ser antecipada (satisfativa) ou cautelar; e requerida em caráter antecedente – também novidade do novo código – ou incidente4. A leitura da tutela jurisdicional provisória compatibiliza-se com o modelo democrático do Estado Constitucional em que a preocupação do Poder Judiciário deve voltar-se aos atores da relação de direito material (GOMES, Frederico Augusto; RUDINIKI NETO, Rogério. Estabilização da tutela de urgência: algumas questões controvertidas. Novo CPC doutrina selecionada, v. 4: Procedimentos especiais, Tutela provisória e Direito transitório – coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 167). 3 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 561-562. 4 “A falta de diferenciação expressa, no caso, não parece ter sido a melhor opção (...) a doutrina majoritária tem defendido que os requisitos da tutela antecipada 2

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A tutela provisória de evidência é a proteção especial que se confere àquelas situações em que a probabilidade da parte requerente estar com a razão é tão alta que se evita imputar-lhe sozinha todo o ônus da demora do processo, permitindo-lhe de logo o gozo do bem da vida almejado; somente poderá ser requerida em caráter incidente (art. 294, parágrafo único, CPC). De acordo com o art. 311 do novo CPC, pode ser punitiva, quando ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório da parte ou documentada, quando há prova documental das alegações de fato da parte e a probabilidade de acolhimento da pretensão processual. A evidência não é um tipo de tutela jurisdicional, mas fato jurídico processual que autoriza a concessão de uma tutela jurisdicional, por meio de uma técnica processual diferenciada, servindo também às tutelas definitivas. A técnica da tutela de evidência não é propriamente uma novidade – embora a designação seja inédita –, já estando prevista no CPC-73 nos procedimentos especiais da ação possessória, embargos de terceiro e da ação monitória e no caso do manifesto propósito protelatório do réu, sendo inéditas apenas as hipóteses dos incisos II e IV do CPC-15: i) quando há tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante; ii) a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. A tutela de urgência é tratada no título II do novo código, em três capítulos, dedicados respectivamente às disposições gerais; à tutela antecipada antecedente e à tutela cautelar antecedente. Embora não sejam previstas distinções quanto aos requisitos positivos exigidos para concessão da tutela cautelar e satisfativa – exige-se, satisfativa devem ser mais rigorosos do que os da tutela cautelar. Isso, fundamentalmente, por que o caráter satisfativo como regra implica maior risco na sua concessão” (ASSIS, Carlos Agusto de. Reflexões sobre os Novos Rumos da tutela de urgência e da evidência no Brasil a partir da Lei 13.105-2015. Novo CPC doutrina selecionada, v. 4: Procedimentos especiais, Tutela provisória e Direito transitório – coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 51).

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em qualquer caso, a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo –, o código adotou procedimentos diversos para cada uma delas quando elas forem requeridas em caráter antecedente. Se a tutela requerida for provisória satisfativa (“antecipada”), é preciso indicar o pedido de tutela definitiva (“final”), com exposição sumária da causa de pedir, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou de ilícito, ou ainda do risco ao resultado útil do processo; se a tutela requerida for provisória cautelar, é necessário expor provisoriamente a causa de pedir, o direito que será objeto do pedido de tutela definitiva e o perigo de dano ou de ilícito (art. 305, CPC)5. Uma das grandes novidades trazidas à baila na temática da tutela provisória, contudo, só é aplicável à tutela provisória satisfativa: cuida-se da técnica de estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, cujo conceito e questões controvertidas serão tratadas em seguida.

3 Estabilização da tutela antecipada: conceito, constitucionalidade e origem A estabilização da tutela de urgência satisfativa é técnica de monitorização do processo civil brasileiro, generalizada para situações de urgência e para a tutela provisória satisfativa. Aplica-se quando a tutela é concedida em caráter antecedente e não é impugnada pelo réu, litisconsorte ou assistente simples, por recurso, hipótese em que o processo será extinto e a decisão antecipatória continuará produzindo efeitos, estabilizando-se. Não exclui o contraditório, mas o torna eventual e possibilita à defesa do demandado se transmudar em causa de pedir de uma “Há na nova disciplina dois pontos inequivocamente positivos: a unificação de regimes para as tutelas antecipatória e cautelar e a possibilidade de que a tutela urgente e a tutela principal sejam pleiteadas e concedidas em um único processo” (TALAMINI, Eduardo. Tutela de urgência no projeto de novo Código de Processo Civil: a estabilização da medida urgente e a “monitorização” do processo civil brasileiro. Revista de Processo, n. 209, p. 32).

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ação nova de cognição exauriente, desestimulando o réu vencido na primeira demanda a prosseguir com a ação em casos meramente procrastinatórios. Não há resolução de mérito quanto ao pedido definitivo. A adoção do contraditório eventual e da estabilização da tutela antecipada fortalece o devido processo legal e a garantia constitucional da duração razoável do processo, assegurando um processo justo, adequado e tempestivo. Segundo Gustavo Bohrer Paim, a previsão é constitucional por proporcionar igualdade material às partes, repartindo o ônus do tempo entre elas e propiciando um processo de resultados6. Há fortes indicativos de que esse novo modelo procedimental desestimule o prolongamento estéril de discussões temerárias e permita a abreviação de contendas jurisdicionais, propiciando ao autor a obtenção do bem da vida de maneira antecipada no tempo7. A técnica de estabilização da tutela antecipada encontra forte inspiração no direito comparado, cujo exemplo mais sólido é o instituto denominado refere, no direito francês. Nos termos do art. 484 do novo Código de Processo Civil francês, o référé é um procedimento sumário, em contraditório, perante juízo monocrático distinto do condutor do processo principal, que pode ser instaurado de forma antecedente ou incidental, e resulta em um provimento de ordem, que não pode ser suspenso em nenhum caso, sem rígida instrumentalidade com o processo de cognição plena. A existência de um processo de mérito em curso não é pressuposto para sua concessão; ocorrências no eventual processo de fundo não o afeta e a extinção do processo de mérito não gera, a princípio, a sua extinção. Trata-se de procedimento rápido e simplificado, despido de formalismos desnecessários: dispensa-se a constituição de advogado; cita-se o demandado para comparecer a uma audiência; o procedimento será concluído com uma decisão provisória que não tem autoridade de coisa julgada. PAIM, Gustavo Bohrer. Estabilização da tutela antecipada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 190. 7 PAIM, Gustavo Bohrer. Estabilização da tutela antecipada. Op. cit. p. 192. 6

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Sobre o tema, explica Gustavo Bohrer Paim que o juge dês référés é dotado de um poder de ordenar imediatamente as tutelas necessárias, próprio da jurisdição do provisório, cuja eficácia não se equipara à autoridade da coisa julgada material. Isso por que existe sempre a possibilidade de se instaurar um processo de cognição plena, não havendo qualquer eficácia preclusiva na ordem de référé. Mas a ordem de référé não pode ser modificada em référé, exceto no caso de surgimento de circunstâncias novas. O référé busca resolver o problema do perigo do decurso do tempo necessário para a resolução do processo de mérito e tem como função subsidiária evitá-lo, substituindo o procedimento e a decisão definitiva, sob uma lógica econômica de satisfação dos litigantes. Possui também uma função de polícia das situações manifestamente ilícitas, pois o fato de o juiz reconhecer como manifestamente ilícita determinada situação desestimula a parte perdedora de engajar o processo de mérito posteriormente8. Esse instituto reflete o pragmatismo francês, em que há maior preocupação com a efetividade do que com as regras formais, atribuindo ao juiz maior participação e poder de criação, em verdadeiro ativismo judicial. O instituto é bastante eficaz, segundo Cecile Chanais, citado por Gustavo Bohrer Paim, pois o percentual de recurso das decisões do référé é ínfimo, assim como a discussão de fundo em uma nova ação9. No direito italiano, há instituto similar, também inspirado no référé francês, previsto no Decreto Legislativo 5, de 17 de janeiro de 2003, acerca do processo societário. A referida lei estabelece que

PAIM, Gustavo Bohrer. Estabilização da tutela antecipada. Op. cit. p. 177. No direito italiano também há instituto similar, inspirado no référé francês, previsto na Lei da competitividade, Lei n. 80, de 14 de maio de 2005, que generalizou o recurso ao modelo do provisório independente, acrescentando ao art. 669 octies do CPC um sexto parágrafo que estabeleceu a autonomia da decisão cautelar e antecipatória dos efeitos da tutela, tornando prescindível a propositura do processo de mérito, mas mantendo a instrumentalidade funcional pela possibilidade de o provimento antecipatório ser modificado no juízo de mérito (PAIM, Gustavo Bohrer. Estabilização da tutela antecipada. Op. cit. p. 178).

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aos provimentos antecipatórios de urgência não se aplica o artigo 669-octies do Código de Processo Civil italiano, desobrigando a propositura de ação principal no prazo de 30 dias. Prevê ainda que se a ação principal não for proposta, a decisão antecipatória só poderá ser modificada a pedido das partes, se houver mudança nas circunstâncias. Assim, estabelece a autonomia da decisão antecipatória dos efeitos da tutela, tornando prescindível a propositura do processo de mérito10. No direito brasileiro, a estabilização da tutela antecipada foi delineada, pela primeira vez, no Projeto de Lei nº 186/2005. Nele, foi prevista a possibilidade da tutela provisória satisfativa ser pleiteada em procedimento antecedente ou na pendência do processo, havendo estabilização dos seus efeitos caso preclusa, o réu não intentasse nova demanda exauriente ou requeresse prosseguimento da ação, no prazo, respectivamente, de 60 ou 30 dias, hipótese em que tal decisão adquiriria autoridade de coisa julgada11. O referido Projeto de Lei, contudo, não foi adiante. Posteriormente, por meio do ato nº 379/2009 do Presidente do Senado Federal, constituiu-se a comissão de juristas que elaborou o projeto de Lei n. 166/2010, aprovado naquela casa legislativa em 15 de dezembro de 2010. Seu artigo nº 280 estabelecia que, no mandado de citação da tutela provisória requerida de forma antecedente, haveria a advertência de “não impugnada a decisão ou medida liminar eventualmente concedida, ela continuaria a produzir efeitos independentemente da formulação de pedido principal pelo autor”. Para Gustavo Bohrer Paim12, havia nessa regulamentação certo acanhamento do instituto, argumentando que uma simples contestação ou impugnação por qualquer meio cessaria a eficácia da medida concedida em caráter antecedente. GRINOVER, Ada Pellegrini. Tutela Jurisdicional diferenciada: a antecipação e sua estabilização. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 30, n. 121, p. 32, mar. 2015. 10

11 12

PAIM, Gustavo Bohrer. Estabilização da tutela antecipada. Op. cit. p. 159. PAIM, Gustavo Bohrer. Estabilização da tutela antecipada. Op. cit. p. 162.

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Em março de 2015, o Projeto de Lei nº 166/2010 aprovado em ambas as casas foi sancionado pela presidência da república, inserindo definitivamente o instituto da estabilização da tutela de urgência no Direito Processual Civil brasileiro.

4 Pressupostos e procedimento e questões controvertidas da estabilização da tutela antecipada A leitura dos artigos 303 e 304 do Código de Processo Civil permite identificar quatro condições cumulativas para o cabimento da técnica de estabilização da tutela provisória: (i) deferimento do pedido de tutela antecipada, requerido em caráter antecedente; (ii) pedido expresso do autor – afinal, a estabilização constitui um benefício, não podendo ser aplicado contra a sua vontade – que só fará jus se pedir a tutela satisfativa e apenas indicar o pedido de tutela final13; (iii) decisão concedida liminarmente inaudita altera parte; (iv) não interposição do recurso cabível14. Embora a lei trate da estabilização quando “não for interposto o respectivo recurso”, alguns processualistas interpretam que qualquer manifestação do réu no primeiro grau de jurisdição impede a estabilização da tutela antecipada, produzindo o mesmo efeito que a interposição do agravo de instrumento. Sob essa ótica, a revelia seria pressuposto da estabilização, ou seja, se o réu não apresenta recurso, mas apresenta contestação, a tutela antecipada não se estabiliza. Leonardo Greco critica a opção do legislador do NCPC por não adotar a estabilização da tutela antecedente independentemente da formulação do pedido ou da tutela principal, como alguns ordenamentos europeus estabeleceram. (Desvendando o novo CPC – Darci Guimarães Ribeiro, Marco Féliz Jobim (org.); Alexandre Freitas Câmara et al. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 116). 14 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze Problemas e onze soluções quanto à chamada “Estabilização da Tutela Antecipada”. Novo CPC doutrina selecionada, v. 4: Procedimentos especiais, Tutela provisória e Direito transitório – coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. – Salvador: Juspodivm, 2015, p. 180. 13

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Esse é o posicionamento de Heitor Sica e Eduardo Talamini, para os quais a defesa, munida de elementos de convicção relevantes e convincentes, desmentindo a tese do autor, afasta a extinção do feito e a estabilização da tutela sumária, pois o artigo 304 do NCPC estabelece que, ao apreciar os atos para proferir a decisão extintiva, o juiz pode revogar ou modificar a decisão com base no novo cenário fático probatório apresentado. A redação literal do artigo 304 é objeto de crítica pelos autores, sob o argumento de que essa opção vai de encontro ao esforço empregado pelo próprio Código de 2015 para evitar a recorribilidade direta das decisões interlocutórias, já que passa a compelir o réu a recorrer para evitar a estabilização. Sob a égide do Código de 1973, o réu poderia não recorrer da decisão liminar e se limitar a apresentar defesa com documentos, requerendo que o próprio magistrado revogasse a medida15. Para Fredie Didier Jr., a revelia não é pressuposto da estabilização. Explica o autor que o prazo de defesa se inicia da audiência de conciliação ou do pedido de cancelamento desta, demorando mais para ser deflagrado do que o prazo para recurso; assim, o art. 304 não exige que se espere tanto para que se configure a inércia do réu apta a ensejar a estabilização. Se, no prazo do recurso, o réu não o interpõe, mas resolve antecipar a apresentação de sua defesa, fica afastada a sua inércia, impedindo-se a estabilização. Afinal, não se pode negar ao réu o direito a uma prestação jurisdicional de mérito definitiva16. Em sentido contrário, Dierle Nunes e Érico Andrade entendem que a contestação apresentada no prazo do recurso não gera o mesmo efeito de impedir a estabilização da tutela antecipada, seja por que a opção amplia a possibilidade de estabilização atribuindo mais eficácia ao instituto, seja por que o legislador adotou posição SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze Problemas e onze soluções quanto à chamada “Estabilização da Tutela Antecipada”. Novo CPC doutrina selecionada, v. 4: Procedimentos especiais, Tutela provisória e Direito transitório – coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 180. 16 DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, op. cit. p. 608-609. 15

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expressa no sentido de optar pelo recurso como meio para impedir a estabilização – as versões anteriores do projeto de lei do NCPC utilizavam termo mais abrangente qual seja “impugnação”, o que também indica a finalidade restritiva do legislador na versão final17. A posição de Fredie Didier Jr. parece a mais adequada: de um lado, aumenta a eficácia da nova técnica ao fixar o prazo do recurso para impugnação da tutela antecipada e afastamento da estabilização, e de outro, valoriza a reação do réu dispensando formalismos excessivos e desestimulando o uso de recursos. Quanto ao procedimento, o art. 303, § 1º, do CPC, estabelece que, concedida a tutela antecipada, o autor deverá aditar a petição inicial, ampliando sua argumentação e procedendo a juntada de novos documentos e a complementação do pedido de tutela final, em 15 dias ou outro prazo que o juiz conceder. A meu ver, não faz sentido exigir do autor que adite a petição inicial para formular o pedido final antes de saber se foi interposto recurso contra a decisão antecipatória e se ela se estabilizou, hipótese em que o pedido de tutela final restará prejudicado18. A opção lógica seria exigir que a complementação fosse feita apenas se o réu interpusesse recurso contra a decisão concessiva de tutela e, portanto, evitasse sua estabilização. Por isso, o prazo deveria ser deflagrado a partir da intimação do autor para tomar ciência da interposição de recurso pelo réu. Trata-se de interpretação que simplifica o uso da nova técnica e aumenta sua eficácia19. ANDRADE, Érico. NUNES, Diele. Os contornos da estabilização da Tutela Provisória de Urgência Antecipatória no Novo CPC e o Mistério da ausência da formação da coisa julgada. Novo CPC doutrina selecionada, v. 4: Procedimentos especiais, Tutela provisória e Direito transitório – coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 75-76. 18 Em sentido contrário, proposta apresentada no grupo “Tutela antecipada” do VI encontro do Fórum de processualistas em Curitiba: “O prazo de aditamento nas tutelas de urgência contemporâneas à propositura da demanda terá por marco inicial a intimação da decisão que concede a tutela.” 19 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto a chamada “Estabilização da Tutela Antecipada”. Op. cit. p. 183. O doutrinador ainda levanta outra questão: se o autor não tiver argumentos para complementar, tampouco do17

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É necessário refletir também sobre a possibilidade de estabilização da antecipação parcial da tutela. A redação do art. 304 do novo CPC parece ser no sentido de que a estabilização da tutela antecipada gera extinção do processo, admitindo, a princípio, apenas a estabilização na hipótese em que a antecipação da tutela for total. A despeito disso, alguns doutrinadores como Heitor Vitor Mendonça Sica20 e Eduardo Talamini21 entendem não haver óbice à estabilização parcial, que geraria a redução do objeto litigioso submetido à cognição exauriente. Defendem ainda a estabilização na hipótese em que há recurso parcial, gerando a estabilização da demanda nos limites da matéria não atacada no recurso. Ressalvam, contudo, a hipótese de acolhimento do pedido subsidiário de tutela antecipada22,23. Se, por um lado, admitir a estabilização parcial ampliaria a aplicabilidade da nova técnica e reduziria o objeto litigioso, por outro geraria uma instabilidade parcial na resolução do litígio, pois parte da demanda ficaria acobertada pela coisa julgada, mas a parcela estabilizada poderia ser objeto de ação de revisão no prazo de dois anos. Assim, se a demanda vai prosseguir, melhor que sejam cumentos adicionais a juntar, o descumprimento do comando legal que lhe impõe o dever de aditar a inicial não poderá lhe causar qualquer consequência. Apesar do dispositivo falar em “dever”, a interpretação mais razoável impõe que seja uma mera faculdade do autor. 20 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto a chamada “Estabilização da Tutela Antecipada”. Op. cit., p. 189. 21 TALAMINI, Eduardo. Tutela de urgência no projeto de novo Código de Processo Civil: a estabilização da medida urgente e a “monitorização” do processo civil brasileiro. Op. cit., p. 29-30. 22 No mesmo sentido foi lançada proposta de enunciado no grupo “tutela provisória”, no VI encontro do Fórum de Processualistas Civis em Curitiba, não levada à reunião em plenário para aprovação ante a necessidade de amadurecimento da discussão: “A estabilização da tutela antecipada concedida em caráter antecedente poderá ser parcial, quando só houver impugnação de parte da decisão concessiva. Justificativa. A estabilização parcial é possível, na medida em que a impugnação à decisão capitulada pode ser parcial.”. 23 Enunciado aprovado no VI encontro do Fórum de Processualistas Civis em Curitiba: “A decisão de extinção do processo, em razão da estabilização de tutela antecipada concedida em caráter antecedente, não resolve o mérito”.

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resolvidas todas as questões conflituosas de forma definitiva. É possível que essa seja razão pela qual o legislador não tratou da estabilização da antecipação parcial, significando tal silêncio que ela não deve ser permitida. Também deve ser enfrentada a questão relativa à condenação em verbas sucumbenciais na hipótese de estabilização da tutela antecipada, pois o novo Código de Processo Civil é omisso no tema. Parte da doutrina já se manifestou no sentido de que o silêncio da lei impõe interpretação de que cabe a fixação de verbas sucumbências na sentença terminativa de estabilização da tutela haja vista a ausência de ressalva para essa hipótese24. Em sentido contrário, há quem sustente, com razão, que é possível isentar do pagamento das custas e reduzir o valor dos honorários para o réu que não recorre da decisão antecipatória da tutela, por analogia ao art. 701, caput, e § 1º do CPC, referente à ação monitória. Afinal, essa técnica de sanção premial estimularia o réu a não recorrer dando efetividade ao instituto da estabilização, pois uma das vantagens do silêncio do réu, para o caso de estabilização, seria a diminuição do custo do processo25. Outra questão a ser enfrentada refere-se à estabilização da tutela antecedente e a formação da coisa julgada26. A possibilidade SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto a chamada “Estabilização da Tutela Antecipada”. Novo CPC doutrina selecionada, v. 4: Procedimentos especiais, Tutela provisória e Direito transitório – coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 191. 25 Nesse sentido, posicionaram-se diversos participantes do grupo “Tutela Provisória”, no encontro do Fórum de Processualista Civis em Curitiba, oportunidade em que foi formulado polêmico enunciado, não levado a plenário com base nos arts. 303; 304; 701, caput e § 1º do NCPC, nos seguintes termos: “O réu que não impugna a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, permitindo sua estabilização, não pagará custas e só arcará com cinco por cento de honorários sucumbenciais, por analogia ao art. 701, caput e § 1º, CPC. Justificativa. Uma das vantagens do silêncio do réu, para o caso de estabilização, é a diminuição do ‘custo do processo. Isso é possível com a aplicação analógica do modelo da ação monitória (arts. 700 a 702, CPC), já que a estabilização é técnica de monitorização do processo.” 26 A coisa julgada material é a imutabilidade da norma jurídica concreta exposta na parte dispositiva de uma decisão judicial de mérito calcada em cognição exauriente da qual não caiba mais recurso. A solução dada pelo magistrado à questão 24

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de revisar, reformar e invalidar a tutela estabilizada, por meio da propositura da ação exauriente, no prazo de dois anos, contados da ciência da decisão que extingue o processo, está prevista no art. 303, § 5º, do CPC. O legislador aplica nesse caso a técnica da inversão da iniciativa para o debate, a qual se baseia na realização eventual do contraditório por iniciativa do interessado (contraditório eventual)27. Para Fredie Didier Jr., a estabilização da tutela satisfativa antecedente não se confunde com a coisa julgada. Essa é uma estabilidade distinta da coisa julgada, embora também com eficácia para fora do processo, pelos seguintes motivos: não se pode dizer que houve julgamento ou declaração suficiente para a coisa julgada; após o decurso de dois anos, os efeitos da decisão antecipatória concedida são estabilizados, já a coisa julgada recai sobre o conteúdo da decisão, não seus efeitos; não houve reconhecimento judicial do direito do autor, logo, o autor não pode extrair da estabilização uma espécie de efeito positivo da coisa julgada; não cabe ação rescisória da decisão que concede a tutela provisória; por expressa previsão legal, a coisa julgada não se estende a questão prejudicial incidental em caso de revelia. Na mesma linha, Heitor Vitor Mendonça Sica defende que passados dois anos da decisão extintiva do feito é produzida uma estabilidade qualificada que não se confunde com a coisa julgada. Embora a decisão não possa ser alterada, não se confunde com a imutabilidade pela ausência da eficácia positiva da coisa julgada, de modo que a decisão não será necessariamente observada em processos futuros entre as mesmas partes, interpretação que se inspira na comma 9 do art. 669-octies do CPC italiano. Para o autor parece principal – e, a partir do novo código, até a questão incidental, se preenchidos determinados requisitos – torna-se imutável no âmbito do mesmo processo em que se proferiu a decisão judicial, como também fora dele, vinculando as partes e os juízes de qualquer demanda (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, op. cit. p. 513). 27 MITIDIERO, Daniel. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. Op. cit. p. 789.

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mais razoável sustentar que a explicação para esse fenômeno se encontra no instituto da decadência, assim como ocorre com a ação rescisória, do que no instituto da coisa julgada28. A questão é bem exposta também por Marinoni, Arenhart e Mitidiero quando questionam a legitimidade constitucional da equiparação dos efeitos do procedimento comum – realizado em contraditório, com ampla defesa e direito a prova – com os efeitos de um procedimento sumário do ponto de vista formal e material. A reflexão é suscitada sob a ótica da função do processo civil no Estado constitucional cuja finalidade é a obtenção de uma decisão justa, impondo a necessidade de construção de procedimentos orientados à sua busca e impedindo a atribuição de caráter constitucional a formação de coisa julgada na tutela antecipada requerida de forma antecedente após o decurso do prazo de dois anos sem o ajuizamento da ação principal. Trata-se de decorrência extraída da eficácia bloqueadora do direito fundamental ao processo justo. Sobre o tema, transcreve-se a conclusão dos autores: Isso quer dizer que a estabilização da tutela antecipada antecedente não pode lograr a autoridade de coisa julgada – que é peculiar aos procedimentos de cognição exauriente. Passado o prazo de dois anos, continua sendo possível o exaurimento da cognição até que os prazos previstos no direito material para a estabilização das situações jurídicas atuem sobre a esfera jurídica das partes (por exemplo, a prescrição, a decadência e a supressio).29

Seguindo essa linha de raciocínio, após a extinção do processo antecedente de tutela provisória, o prazo prescricional da pretensão de exigência do direito voltaria a correr. Desse modo, embora não

SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto a chamada “Estabilização da Tutela Antecipada. Op. cit., p. 187. 29 MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, volume II/Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015 – (Curso de Processo Civil; v. 2). p. 218. 28

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fosse cabível a alegação de coisa julgada para impedir a rediscussão da matéria, a prescrição, a decadência do direito e a supressio teriam, sim, eficácia impeditiva da apreciação do mérito da causa na ação exauriente30. Em sentido contrário, Leonardo Greco sustenta que após transcorrido o prazo de dois anos da intimação da tutela satisfativa estabilizada, haverá a decadência do direito de propor a ação revocatória, sobrevindo efetivamente a coisa julgada31. Tantas outras questões ainda devem ser enfrentadas pela doutrina tais como a sujeição da sentença extintiva de estabilização da tutela à remessa necessária; sua aplicação à ação rescisória e ao processo coletivo; a possibilidade de estabilização quando houver citação ficta ou o réu for incapaz32; os efeitos do recurso interposto pelo litisconsorte com defesa comum ou pelo assistente simples33; e os limites da aplicação do instituto à Fazenda Pública34. Nesse sentido: TALAMINI, Eduardo. Tutela de urgência no projeto de novo Código de Processo Civil: a estabilização da medida urgente e a “monitorização” do processo civil brasileiro. Op. cit., p. 28. 31 GRECO, Leonardo. Desvendando o novo CPC. Op. cit., p. 119. Na mesma linha, o anterior projeto de lei do Senado Federal (PLS 186-2005) pretendia atribuir a autoridade da coisa julgada material à decisão concessiva da medida urgente, quando estabilizada. 32 Sobre o tema foi proposto enunciado no VI encontro do Fórum de Processualistas Civis em Curitiba, não aprovado em plenário: “A estabilização da tutela antecipada concedida em caráter antecedente não ocorrerá se o réu inerte for incapaz sem representante legal (ou em conflito com ele), se for revel preso, ou se for citado fictamente”. Justificativa. Nesses casos, é necessária a nomeação de curador especial que tem dever de promover sua defesa, impugnando da decisão concessiva da tutela antecipada. 33 Também acerca dessa discussão, foram apresentadas duas propostas de enunciados no VI encontro do Fórum de Processualistas Civis: “Proposta. A estabilização da tutela antecipada concedida em caráter antecedente não ocorrerá se a tutela antecipada concedida em caráter antecedente for impugnada pelo litisconsorte passivo com defesa comum ou pelo assistente simples do réu”. “Proposta. (arts. 304; 121, parágrafo único; 122): A estabilização da tutela antecipada concedida em caráter antecedente ocorrerá se a tutela antecipada concedida em caráter antecedente for impugnada pelo assistente simples, contrariando vontade expressa do réu assistido”. 34 “Não é difícil prever que, tão logo em vigor o novo mecanismo, surgirá igualmente a tese de que ele não se aplica aos entes públicos. Foi o que se deu rela30

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A doutrina e jurisprudência também terão de enfrentar o problema relativo à distinção entre a tutela cautelar e a tutela satisfativa para fins de estabilização. Como o projeto aprovado na câmara excluiu da estabilização a tutela cautelar35, sepultou, nesse ponto, a opção do código de unificação dos procedimentos da tutela cautelar e satisfativa, trazendo novamente à tona discussões teóricas já superadas acerca de qual providencia é satisfativa e, por conseguinte, sofrerá a estabilização e qual é cautelar e não poderá estabilizada, sob o fundamento de ser meramente cautelar36. Eduardo Talamini apresenta severas críticas ao instituto da estabilização da tutela antecipada. O autor vislumbra na novidade o risco da proliferação de desnecessários pedidos de tutela de urgência preparatória, em razão da expectativa de se obter a estabilização de efeitos em caso de inércia do réu, ainda que não exista a situação de perigo. Prevê também um maior rigor dos juízes na concessão de medidas urgentes por conta da preocupação de se estar emitindo uma decisão que pode estabilizar-se por tempo indeterminado. A seu ver, a adoção do instituto da estabilização seria muito mais razoável se vinculado a tutela de evidência ao invés da tutela de urgência em caráter preparatório, o que o aproximaria mais da ação monitória atual, tornando-a mais eficiente37. tivamente a ação monitória. O STJ veio a assentar o entendimento de que cabe o emprego da ação monitória em face da Fazenda Pública (Súmula 339 do STJ)” (TALAMINI, Eduardo. Tutela de urgência no projeto de novo Código de Processo Civil: a estabilização da medida urgente e a “monitorização” do processo civil brasileiro. Op. cit., p. 26). 35 No mesmo sentido dispõe o enunciado n. 420 aprovado no Fórum Permanente de Processualistas Civis em Vitória: “(art. 304) Não cabe estabilização da tutela cautelar.” 36 “A intransigente (e artificial) defesa da diferenciação entre as duas vias conduziu muitas vezes a resultados absurdos, com a denegação de medidas urgentes indispensáveis pela tão só circunstância de não haver sido pleiteada pela via reputada adequada (...) o projeto prevê um novo mecanismo, no âmbito das tutelas urgentes, que tende a ser fonte de novos problemas” (TALAMINI, Eduardo. Tutela de urgência no projeto de novo Código de Processo Civil: a estabilização da medida urgente e a “monitorização” do processo civil brasileiro. Op. cit., p. 15). 37 TALAMINI, Eduardo. Tutela de urgência no projeto de novo Código de Processo Civil: a estabilização da medida urgente e a “monitorização” do processo civil brasileiro. Op. cit., p. 28.

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Para muitos doutrinadores, contudo, a nova regulamentação representa efetivamente uma alternativa à morosidade e à complexidade do clássico processo de conhecimento de inspiração liberal38, voltando-se para as exigências específicas do direito material, permitindo as partes optar pelo não ajuizamento de demandas plenárias, se assim for de seu interesse39. Trata-se de repensar as estruturas do processo civil adequando-o às necessidades da “tutela dos direitos” e da jurisdição contemporânea, especialmente para se reconhecer que a coisa julgada material não é um atributo obrigatório de toda decisão judicial concessiva da tutela de urgência40. 38 Nesse sentido, Andre Luiz Bäuml Tesser (Tutela cautelar e antecipação de tutela: perigo de dano e perigo de demora. Andre Luiz Bäuml Tesser – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Coleção o novo processo civil \ Diretor Luis Guilherme Marinoni: coordenadores Sergio Crus Arenhart e Daniel Mitidiero, p. 173-181), Luiz Guilherme Marinoni, segundo o qual a preocupação com a “tutela dos direitos” rompe com a relação entre satisfatividade e coisa julgada material, pois a efetividade da tutela não se relaciona com a coisa julgada; “não é essa que satisfaz, mas sim a tutela jurisdicional, que, para ser efetiva, em alguns casos, terá de ser prestada com base em cognição sumária.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da tutela. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 127); Remo Caponi, para quem “em alguns casos, a definitividade da declaração judicial não é necessária para que a jurisdição atinja sua finalidade” (CAPONI, Remo. O princípio da proporcionalidade na justiça civil: primeiras notas sistemáticas. Revista de Processo, ano 36, n. 192 (fev. 2011). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 397). 39 A necessidade de cognição exauriente e, por conseguinte, da formação da coisa julgada, em todo e qualquer processo parte da premissa equivocada de que é possível se alcançar, pela instrução probatória, um juízo de certeza verdadeiramente. Segundo Sérgio Cruz Arenhart, “permanecer cultuando a ilusão de que a decisão judicial está calcada na verdade dos fatos, gerando a falsa impressão de que o juiz se limita, no julgamento, a um simples silogismo, a um juízo de subsunção do fato à norma, é algo que não tem mais o menor respaldo, sendo mito que deve ser contestado”. (ARENHART, Sérgio Cruz. A verdade e a prova no processo civil. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/S%C3%A9rgio%20Cruz%20Arenhart(2)%20-%20formatado.pdf>. Acesso em: 24.12.2015). 40 Andre Luiz Baüml Tesser rebate as críticas feitas por Eduardo Talamini : quanto a primeira, de que não se buscará eliminar a situação de perigo mas abreviar o processo, basta que o Poder Judiciário não conceda a tutela de urgência e ainda aplique as punições por litigância de má-fé; quanto à segunda, no sentido de que os juízes serão mais rigorosos não faz sentido uma vez que os magistrados entenderão que o provimento somente será estabilizado em caso de conduta omissiva daquele que sofre a medida em não impugná-la (Tutela cautelar e antecipação de tutela: perigo de dano e perigo de demora. Andre Luiz Bäuml Tesser – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Coleção o novo processo civil/Diretor Luis Guilherme Marinoni: coordenadores Sergio Crus Arenhart e Daniel Mitidiero. p. 180-181).

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5 Conclusão A estabilização da tutela de urgência, se conhecida e bem aplicada, pode contribuir para a qualidade da justiça ao permitir que a decisão provisória, concedida em prazos curtos e de forma imediatamente executiva, se torne definitiva, se as partes assim desejarem. Resta saber se na realidade brasileira, marcada pela cultura do litígio e do recurso, ela alcançará igual eficácia ao assistido no ordenamento estrangeiro. Para tanto, será interessante a adoção de interpretações analógicas que possibilitem a aplicação de sanções premiais como a redução dos honorários advocatícios e custas processuais previstas para a tutela monitória, o que ainda encontra resistência dos estudiosos de processo civil. Certo é que criada para desestimular a cultura do litígio infundado e meramente procrastinatório, essa nova técnica pode legitimar em maior escala a decisão dos juízes de primeiro grau e promover igualdade material ao repartir o ônus do curso tempo no processo entre as partes.

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A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O RECENTE POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Gerson Godinho da Costa Juiz Federal. Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul

Resumo

Abstract

O presente ensaio analisa criticamente a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que relativizou o alcance da norma constitucional que trata da presunção de inocência, para permitir a execução penal antecipada.

this essay critically examines the recent decision of the Brazilian’s Supreme Court that relativized the scope of the constitutional rule that deals with the presumption of innocence, to allow early criminal enforcement.

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal – Presunção de inocência – Execução penal antecipada.

Keywords: Brazilian’s Supreme Court – Presumption of innocence – Early criminal enforcement.

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1 Introdução Ainda neste ano corrente, o Supremo Tribunal Federal alterou seu posicionamento a respeito do alcance da regra constitucional que trata da presunção de inocência. Antes do julgado já era possível identificar duas correntes de pensamento, cujas manifestações públicas e recorrentes, mostravam-se inequivocamente antagônicas, girando a controvérsia acerca da maior ou menor extensão hermenêutica do comando constitucional. O embate ideológico, mesmo após a manifestação da Suprema Corte, persiste, talvez até de maneira mais acentuada. É provável que o acirramento dessas bandeiras opostas tenha disparado reflexões antes impensadas ou importado no aprimoramento daqueles argumentos antes invocados em defesa de uma ou outra concepção. O que se impõe diante desse enfrentamento, portanto, é a tentativa de erigir soluções que procurem exatamente remediar os pontos mais criticáveis de uma e outra corrente, caso isso se mostre possível. É esse o difícil propósito deste singelo trabalho. Naturalmente sujeito a críticas por suas limitações – temporais, pelo estreito período destinado à pesquisa, logísticas, em razão da escassez do material consultado, conquanto abundante a literatura disponível sobre a matéria, e espaciais, em respeito à estrutura comedida do ensaio –, terá alcançado seu objetivo se simplesmente estimular a ponderação não apenas sobre a presunção de inocência, mas também sobre os importantes desdobramentos implicados na decisão do Supremo Tribunal Federal. Para esses efeitos, é conveniente apresentar, inicialmente, os delineamentos conceituais da presunção de inocência, muito através de sintéticos esboços históricos e mediante observância de seu tratamento pretensamente global, para ingressar na análise do seu tratamento constitucional. Num segundo momento, caberá examinar os principais argumentos alinhavados pela tese majoritariamente vencedora do Supremo Tribunal Federal, e então, a partir desses fundamentos, efetuar uma abordagem crítica.

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2 Delineamentos gerais do princípio da presunção de inocência Na abalizada palavra de Luigi Ferrajoli, a presunção de inocência constitui-se em “princípio fundamental de civilidade”1. Ainda segundo o pensador italiano, o preceito atua “a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”2. Cuida-se de inestimável valor político que legitima o Estado de Direito3. Conforme Nereu Giacomolli, trata-se de “princípio de elevado potencial político e jurídico, indicativo de um modelo basilar e ideológico de processo penal”4, intrinsecamente relacionado à dignidade da pessoa humana5. Compreendido como direito fundamental de primeira geração, ou direito de liberdade, na percepção de Paulo Bonavides “têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”6. Eis algumas características diretamente relacionadas à relevância constitucional, filosófica e política do preceito, delas decorrendo a basilar influência exercida sobre o direito processual penal. Não por outra razão Aury Lopes Jr. o entroniza como “princípio reitor do processo penal”7, e Nereu Giacomolli lhe atribuirá a árdua tarefa de “sustentação humanitária do processo penal”8. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 441. 2 Idem, p. 441. 3 Idem, p. 441. 4 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 94. 5 Idem, p. 95. 6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 517. 7 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 226. 8 GIACOMOLLI, op. cit., p. 95. 1

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Debruçando-se sobre o preceito no âmbito do direito alemão, assevera Winfried Hassemer que a “presunção de inocência é um dos pilares do nosso Processo Penal”, para mais adiante referir que “pode-se compreendê-lo como um componente irrenunciável na organização do processo se se tem em vista que o processo, por um lado, deve caminhar com segurança para um esclarecimento definitivo sobre a questão do fato e da culpabilidade”9. Em linhas gerais, a presunção de inocência “corresponde, tecnicamente, não consideração prévia de culpabilidade”10. Ou seja, até o momento processual eleito pela legislação de regência, seja constitucional ou infraconstitucional, nenhuma pessoa poderá ser considerada culpada, estando eximida, pois, de qualquer restrição à liberdade que importe em antecipação de pena, ainda que sobre ela recaia alguma imputação pela prática de fato delituoso. Ademais, por aquela passagem é observável que os conceitos de presunção de inocência e de não culpabilidade se identificam11. Embora a presunção de inocência obstaculize a imposição de sanções em decorrência de fatos que se subsumam a determinadas descrições normativas típicas, os sistemas jurídicos em regra têm admitido restrições de natureza eminentemente cautelar, ao argumento base de que por não suceder “apriorística consideração de

HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 221. 10 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no Processo Penal Brasileiro. 3. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 313. 11 Ainda que se possa cogitar de eventual distinção terminológica, nos estreitos limites deste trabalho são apanhadas indistintamente. Nesse norte, o escólio de Nereu Giacomolli: “As fórmulas ‘presunção de inocência’ (formulação positiva) e ‘presunção de não-culpabilidade’ (formulação negativa) são equivalentes, independentemente das possíveis distinções idiomáticas, semânticas e de purificação conceitual. Distinguir é reduzir o alcance da regra humanitária do status libertatis, afastando-se do conteúdo da previsão constante dos diplomas internacionais antes mencionados. Diferenciá-las é afastar o estado de inocência, é partir da culpabilidade e não da inocência. Também não há um estado de ‘semi-inocente’. O conteúdo das expressões não pode gerar dúvidas acerca do estado de inocência e nem desvirtuar o regramento probatório, proteção da liberdade e o tratamento do sujeito como ser humano” (GIACOMOMOLLI, op. cit., p. 92). 9

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culpa do investigado, indiciado ou acusado, nenhuma afronta sofrerá o preceito constitucional analisado”12. Essa construção, no entanto, é passível de incisivas críticas de setores comprometidos em atribuir à presunção de inocência o atributo da invencibilidade13. Entretanto, mesmo ante a possibilidade de medidas cautelares, o preceito em referência não deixa de espargir seus efeitos, agora pelo estreitamento das hipóteses que legitimem a aplicação dessas medidas. Com efeito, na linha do que sustenta Luis Gustavo Carvalho, a “introdução do princípio da presunção de inocência modela e limita as possibilidades de prisão processual, tornando excepcionais os motivos que a justificam”14. É costume atribuir à presunção de inocência duas distintas compreensões, sendo tomada ou como regra de tratamento ou como regra de juízo15. Naquela “exclui ou ao menos restringe ao máximo a limitação da liberdade pessoal”16, enquanto nesta “impõe o ônus da prova à acusação além da absolvição em caso de dúvida”17. Embora as origens do preceito remontem ao direito romano, e após “ofuscado, se não completamente invertido, pelas práticas inquisitórias desenvolvidas na Baixa Idade Média”18, investe-se como garantia de inequívoco cunho libertário a partir das idéias iluministas, concretizando-se nos diplomas inspirados nessa filosofia. Aponta-se sua primeira aparição na Constituição do estado TUCCI, op. cit., p. 315. Luigi Ferrajoli é adepto desse pensamento, apesar de reconhecer que a orientação que admite a relativização da presunção de inocência, a partir da admissibilidade restrita de medidas cautelares, “acabou sendo justificada por todo o pensamento liberal clássico” (FERRAJOLI, ob. cit., p. 444). 14 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 189. 15 Essa especificação é mencionada apenas a título ilustrativo. Não obstante cientificamente rigorosa a distinção, para os fins deste trabalho não se afigura indispensável, senão que cabe esclarecer que a análise estará estritamente relacionada com a sua concepção de regra de tratamento. 16 FERRAJOLI, op. cit., p. 442. 17 Idem, p. 442. 18 Idem, p. 441. 12 13

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da Virgínia (1776)19, contudo, é por intermédio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) que seu reconhecimento se universaliza20. A partir de então, e apenas a título exemplificativo, seguem-lhe recomendando observância a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)21, a Convenção Européia de Direitos Humanos (1950)22, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)23 e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969)24. Hodiernamente, é previsto nas Constituições do Canadá25, da Espanha26, da Itália27, do Japão28 e de Portugal29. Embora não descrito na Lei Fundamental, encontra-se consagrado na jurisprudência alemã30. Antes do advento da Convenção Européia de Direitos CARVALHO, op. cit., p. 187. Pontua seu art. 9. “Como todo homem deve ser presumido inocente até que tenha sido declarado culpado, se se julgar indispensável detê-lo, todo rigor desnecessário para que seja efetuada a sua detenção deve ser severamente reprimido pela lei” (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 154). 21 Art. XI. “1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (idem, p. 233). 22 “1. Toda pessoa tem direito à liberdade e a à segurança. Ninguém pode ser privado de sua liberdade, salvo nos seguintes casos e de acordo com as vias legais: a) em caso de detenção regular, após condenação por um tribunal competente” (idem, p. 267). 23 Art. 14. “2. Toda pessoa acusado de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (idem, p. 304). 24 Art. 8.º “Garantias Judiciais (...) 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos: pacto de San José da Costa Rica. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 89. 25 TUCCI, op. cit., p. 313. 26 TUCCI, op. cit., p. 313; GIACOMOLLI, op. cit., p. 91. 27 TUCCI, op. cit., p. 313; FERRAJOLI, op. cit., p. 442; PERRODET, Antoinette. O Sistema Italiano. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 347; GIACOMOLLI, ob. cit., p. 91. 28 TUCCI, op. cit., p. 313. 29 TUCCI, op. cit., p. 313; GIACOMOLLI, op. cit., p. 91. 30 De fato, “a lei deve ser conforme aos princípios do Estado de Direito (art. 28 da GG), ‘republicana, democrática e social’, da qual a jurisprudência extrai, por exemplo, a presunção de inocência (die Unschuldsvermutung)” (JUY-BIRMAN, Rudolphe. O Sistema Alemão. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 10). 19 20

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do Homem, quando a partir da qual se considerou positivado, já era igualmente admitido pelas jurisprudências belga31 e inglesa32. Na França, além da previsão contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, constou de reforma ao respectivo Código de Processo Penal como princípio guia33.

3 O tratamento constitucional pátrio da presunção de inocência A presunção de inocência encontra-se estampada no inciso LVII do art. 5º da atual Constituição Federal brasileira, in verbis: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”34. As Constituições anteriores, todavia, não previam expressamente essa garantia, sem embargo de dispuserem que o rol incluso nos respectivos livros que tratavam dos direitos e garantias 31 “O princípio é largamente admitido pela jurisprudência e atualmente ele encontra seu fundamento no art. 6 da Convenção Européia de Direitos do Homem” (PESQUIÉ, Brigitte. O Sistema Belga. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 85). 32 “Até o Ato sobre Direitos Humanos de 1988, para outros princípios fundamentais do processo penal era necessário observar a jurisprudência: entre os princípios básicos que poderiam ser encontrados emergia a presunção de inocência (...) Mas, agora, o referido Ato incorporou a Convenção Européia de Direitos do Homem ao direito do Reino Unido, e a procura pelos princípios fundamentais normalmente se dá dentro da estrutura da Convenção” (SPENCER, J.R. O Sistema Inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 253). 33 DERVIEUX, Valérie. O Sistema Francês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 155. Porém, consoante Giacomolli, “a Constituição Francesa de 1958, em seu preâmbulo, o qual tem idêntica força dos dispositivos contidos no texto principal, declara adesão aos princípios da Declaração de 1789 (‘o povo francês proclama solenemente sua adesão aos Direitos do Homem e aos princípios de soberania nacional tal como foram definidos na Declaração de 1789, confirmada e completada pelo preâmbulo da Constituição de 1946’)” (GIACOMOLLI, op. cit., p. 91). 34 BRASIL. Constituição. Organização por Alexandre de Moraes. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

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individuais era meramente exemplificativo, sem exclusão, por conseguinte, de outros princípios decorrentes do regime e princípios adotados35. Interpretando o texto constitucional em vigência, assevera Rogério Lauria Tucci que, “consagrado constitucionalmente esse expressivo, e favor libertatis, regramento, determinante, como visto, de que, sem a necessária certeza de ser o imputado autor da infração penal cuja prática lhe é atribuída, que só se concretiza com o trânsito em julgado da sentença condenatória, não há como considerá-lo culpado”36. Esse fragmento enseja a extração de duas insuperáveis premissas, inerentes ao preceito constitucional em exame. Primeira: a presunção de inocência é preceito erigido em favor da liberdade individual. Portanto, por apresentar nítido e inequívoco conteúdo assecuratório, não se compatibiliza com interpretações que lhe restrinjam o alcance. Segunda: sua superação fática pressupõe necessariamente o trânsito em julgado. Não por que se poderia cogitar de certeza sobre a realização e autoria do fato típico imputado ao réu37, mas por que no âmbito da dinâmica processual somente o trânsito em julgado não mais permite a rediscussão do mérito a partir de pretensões acusatórias38. Assim, se a regra constitucional apresenta conteúdo apenas compatível com interpretações que não cerceiem seu caráter libertário, mas antes o estimulem, além de estar estruturada de forma que o trânsito em julgado se apresente como marco temporal, não se mostra acertado desconsiderá-lo mediante antecipação das penas, em franca relativização da garantia. GIACOMOLLI, op. cit., p. 91. TUCCI, op. cit., p. 313. 37 As pertinentes críticas tecidas em desfavor do vetusto e ultrapassado standard “verdade real” não permitem que se cogite atualmente de certezas nos juízos condenatórios ou absolutórios, mas apenas de reconstruções aproximadas de fatos passados que redundem em juízos condenatórios ou absolutórios. 38 Ressalvada a possibilidade de revisão criminal, exclusivamente em favor do condenado. 35 36

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Não por outro motivo que no sistema jurídico pátrio doutrina e jurisprudência prevalecentes, a exemplo do que, como anteriormente ressaltado, observa-se em sistema alienígenas, justificam a prisão preventiva e a prisão temporária por se apresentarem como medidas cautelares. Por outro lado, restaram rechaçadas a prisão resultante da decisão de pronúncia e o encarceramento decorrente de sentença condenatória recorrível. Estas constituíam efeito automático de determinadas decisões judiciais, enquanto aquelas somente estão autorizadas a partir do cumprimento de requisitos fáticos e jurídicos específicos que lhe permitam a decretação39. Conforme pontifica Nereu Giacomolli, “a prisão somente se justifica após uma sentença condenatória com trânsito em julgado e a prisão processual não representa uma antecipação dos efeitos de uma condenação, a qual somente encontra suporte nas estreitas limitações constitucionais de caráter cautelar e vinculadas às necessidades processuais”40.

4 O posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal O Supremo Tribunal Federal alterou seu entendimento, anteriormente manifestado por maioria no Habeas Corpus n. 84.078/ MG, relatado pelo Ministro Eros Roberto Grau, para, agora, também por maioria, admitir que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal” (Habeas Corpus n. 126.292, Rel. Ministro Teori Zavascki)41. Restaram vencidos, na oportunidade,

TUCCI, op. cit., p. 315. GIACOMOLLI, op. cit., p. 95. 41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Habeas Corpus n. 126.292/ SP. Data do Julgamento: 17 fev. 2016. Relator: Min. Teori Zavascki. Disponível em: <http://www.stf.gov.br > Acesso em: 28 ago. 2016. 39 40

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por ordem de antiguidade na Corte, os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio de Melo, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Grosso modo, é possível identificar algumas linhas mestras que orientaram a decisão da maioria, composta pelos Ministros Teori Zavascki (relator), Edson Fachin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia: (I) a necessária resposta criminal do estado ao fato delituoso, erigido à condição de exigência constitucional, encontra-se prejudicada42, inclusive no que se refere à razoável duração do processo43, em prejuízo à credibilidade e funcionalidade do Poder Judiciário e do sistema penal44, reforçando, acerca deste, atributos negativos relacionados à crença na impunidade45 e seletividade46; (II) a norma constitucional onde está contida a presunção de inocência qualifica-se como princípio e não regra; (III) a expressão culpado inserta na regra permite interpretações que relativizem a exigência do trânsito em julgado47; (IV) o exame por duas instâncias decisórias é suficiente para a imposição das penas48, inexistindo sistema que admita terceira e quarta esferas de decisão49; (V) é preciso coibir o uso abusivo de recursos, especialmente os que apresentam intuito meramente protelatório50; (VI) houve mutação constitucional desde o julgado anterior51; (VII) a posição assentada pela Corte permite também ela relativização. Assim, na hipótese de flagrante equívoco pelas instâncias ordinárias, é admissível a utilização de mecanismos processuais que estanquem conseqüências danosas ao imputado, v.g., o habeas corpus ou a atribuição pontual de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial52. Ministros Teori e Barroso. Ministros Fachin e Gilmar. 44 Ministro Barroso. 45 Ministros Barroso e Gilmar. 46 Ministros Barroso. 47 Ministros Teori, Barroso e Gilmar. 48 Ministros Teori, Fachin, Barroso e Fux. 49 Ministros Teori e Fachin. 50 Ministros Teori, Fachin, Barroso, Fux e Gilmar. 51 Ministro Barroso. 52 Ministros Teori, Barroso e Gilmar. 42 43

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Para o presente trabalho, são esses os principais argumentos alinhavados pelos julgadores, os quais terminaram por sustentar a tese vencedora. O objetivo, a partir de então, é analisar crítica e individualmente cada qual e, na medida do necessário, apresentar eventuais razões que sustentem posicionamento exatamente contrário ao albergado pelo Supremo Tribunal Federal.

5 Considerações críticas sobre o posicionamento do Supremo Tribunal Federal 5.1 A adequada resposta criminal A posição majoritária atentou para o problemático sistema processual penal pátrio. É possível atribuir-lhe, no mínimo, três desqualificações: é hipertrofiado, seletivo e ineficiente. E não carece de consistência a afirmação de que essa constatação terminou por orientar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. O sistema é de fato hipertrofiado por que apresenta infindáveis possibilidades recursais, no plano horizontal ou vertical, especialmente neste, inclusive ante a jocosa qualificação de terceira e quarta instâncias dirigida aos órgãos jurisdicionais não ordinários. É seletivo por que essas instâncias recursais extraordinárias amiúde estão ao alcance apenas daqueles que dispõem de razoável acervo financeiro53. É ineficiente por que a pretensão punitiva, quando não

A devida estruturação das defensorias públicas tem proporcionado aos profissionais extremamente qualificados que nelas militam a utilização desses instrumentos, não raro com sucesso. E embora se desconheça estudos indicando a parcela populacional atendida, as limitações pessoais e orçamentárias nas quais estão inseridos esses órgãos permitem intuir que essas atuações podem configurar exceções. De resto, a superação mesma desse óbice, não seria suficiente para arrefecer as duas outras características negativas, a hipertrofia e a ineficiência do sistema processual penal. 53

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desabilitada pela prescrição, em regra se situa demasiadamente distante do fato punível que lhe é pressuposto54. Sem embargo, não parece adequado que, perseguindo corrigir incongruências do sistema, seja relativizado preceito constitucional, especificamente a presunção de inocência. Não somente por que é desacertada a interpretação obtida a partir dessa finalidade, sob pena de esfacelamento da especial força normativa emanada da Constituição, como pela possibilidade de ajuste dessas deficiências por posturas compatíveis com o sistema constitucional, ainda que por outros órgãos e poderes republicanos. Em atenção ao princípio da proporcionalidade, sob o triplo vértice da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, é possível afirmar que outras medidas poderiam ser adotadas sem necessidade de ultrapassar a norma constitucional. Nesse ponto, reforma constitucional que limitasse os recursos dirigidos aos tribunais superiores poderia contribuir sensivelmente para superação das dificuldades apresentadas pelo sistema penal. No que se refere à prescrição, poderiam ser criados, pelo legislador, mecanismos interruptivos ou suspensivos, exemplificativamente quando da interposição do recurso extraordinário ou especial, agravos contra decisão de inadmissibilidade dos mesmos, embargos de declaração etc. Portanto, é equivocado pretender que a presunção de inocência seja arrefecida, a partir da desconsideração do trânsito em julgado, mediante aplicação do princípio da proporcionalidade. Ambos devem ser compatibilizados, não confrontados. Tampouco o reconhecimento da proibição de proteção deficiente deve orientar o intérprete para fins de relativização da presunção de É importante o registro de que essa resposta não seja necessariamente de procedência da ação penal. A improcedência também é resultado aguardado. A avaliação dessa inaptidão do sistema para apresentar respostas em tempo razoável não guarda necessária relação com o número de condenações. Deve guardar proporção sim com o número de respostas em tempo adequado, sejam condenatórias ou absolutórias. É permitido, pois, relacionar essa ineficiência com o regular descumprimento do preceito que trata da duração razoável do processo. 54

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inocência. A esse respeito, a irretocável conclusão de Luciano Feldens: “A garantia de que uma tal função protetiva do Estado não se irá dissipar em mera política de defesa social decorre da necessidade constitucional, antes revisitada, de equacionar a função de imperativo de tutela à tradicional função de proibição de intervenção. A co-existência dessas funções é uma imposição e um desafio ao legislador que eventualmente se encontrará entre Cila e Caríbdis. No plano jurisdicional-aplicativo, mutatis mutandis, processa-se o mesmo: a efetivação da resposta penal haverá de se processar mediante a observância das garantias individuais, que em nenhum momento são jogadas para escanteio”55. Outra vez a recomendação, assim como antes aventado no que concerne ao princípio da proporcionalidade, é a de conciliar a proibição de proteção deficiente com a presunção de inocência, e não estabelecer um conflito que importe em esvaziamento de qualquer dos conceitos. É correta a percepção de que a atuação disfuncional do sistema processual penal redunda em descrédito e desprestígio do Poder Judiciário. Mas as soluções para o problema, não é demasiado repisar, não deve passar pela relativização de normas constitucionais56. O temor quanto à relativização não passa por consideração de ordem meramente retórica. Repousa nos possíveis desdobramentos dela decorrentes. Embora a decisão procure atender inequívoca insatisfação social, a contrapartida pode ser inestimável. Nessa senda, é autorizado especular sobre qual o limite de intervenção do Supremo Tribunal Federal, notadamente quando a Corte atuar orientada por inflamadas reivindicações veiculadas por opinião pública ou FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: garantismo, deveres de proteção, princípio da proporcionalidade, jurisprudência constitucional penal, jurisprudência dos tribunais de direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 95. 56 Nesse sentido, a precisa consideração da Ministra Rosa Weber no HC em estudo: “Há questões pragmáticas envolvidas, não tenho a menor dúvida, mas penso que o melhor caminho para solucioná-las não passa pela alteração, por esta Corte, de sua compreensão sobre o texto constitucional no aspecto”. 55

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publicada, ou ainda por se considerar o único órgão responsável pela correção das atuações estatais deficientes. Sendo possível desconsiderar o marco processual/temporal representado pelo trânsito em julgado, não é defeso elucubrar que, no elogiável intuito de reprimir a violência perpetrada por policiais militares, organizações criminosas e oficiosos grupos paramilitares – problema grave e amplamente reconhecido –, seja construído estapafúrdio conceito de guerra civil/militar que possibilite ampliar os casos de aplicação da pena de morte. O exemplo é hiperbólico, decerto. Mas figurativamente a abertura de singela fresta não impede que a porta seja aos poucos escancarada. A seletividade pela contratação de profissionais gabaritados é inerente a qualquer sociedade capitalista de classes. Não é particularidade brasileira, conquanto aqui possa se apresentar mais acentuadamente. Para conclusões mais precisas seria necessário estimar o índice de sucesso dessa categoria não apenas em outros países. Igualmente não é possível assegurar se, limitada a atuação profissional pela execução antecipada, não se criarão outros nichos de trabalho. Aliás, na medida em que o próprio julgado autoriza impugnação tópica em desfavor da prematura execução, o profissional gabaritado encontrará aí outro campo de atuação. Atinente à razoável duração do processo, elevada à condição de garantia constitucional expressa pela Emenda Constitucional n. 45/2004, mediante inscrição do inciso LXVIII no rol das garantias do art. 5º da Constituição Federal, não se presta à queima de etapas processuais com a finalidade de assegurar a punição do agente imputado. Os problemas estruturais do Poder Judiciário57, com imediatas implicações no sistema processual penal, não podem ser resolvidos pela alteração do itinerário percorrido pelo devido processo legal. Colhe-se do voto do Ministro Gilmar Mendes: “Resta-nos reconhecer que as instâncias extraordinárias, da forma como são estruturadas no Brasil, não são vocacionadas a dar respostas rápidas às demandas”. 57

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5.2 A norma constitucional onde está contida a presunção de inocência qualifica-se como regra e não como princípio Não é possível definir de plano se uma norma é regra ou princípio. Tal classificação, por vezes, somente poderá ser constatada após atuação do intérprete58. É possível intuir, no entanto, que o princípio da presunção de inocência, frente a sua densidade e fraca abertura semântica assemelha-se mais às regras do que aos princípios. É preciso reconhecer que transita com naturalidade em companhia de dispositivos outros, que lhes são similares, como os inscritos no art. 283 do Código de Processo Penal, com redação determinada pela Lei n. 12.403/2011 (“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”)59 e nos artigos 105 (“Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”), 147 (“Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares”) 164 (“Extraída certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado, que valerá como título executivo judicial, o Ministério Público requererá, em autos apartados, a citação do condenado para, no prazo de 10 (dez) dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora”) da Lei de Execuções Penais60. Certamente não se aplica a Constituição Federal em orientação ao disposto na legislação infraconstitucional. O que deve ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 44. 59 BRASIL. Código de Processo Penal e Constituição Federal. 56. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 60 BRASIL. Código de Processo Penal e Constituição Federal. 56. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 58

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ocorrer é precisamente o contrário. O que importa desvelar, porém, é que o teor do comando constitucional, reiterado em dispositivos infraconstitucionais, recomenda seu tratamento na condição de regra, não de princípio.

5.3 Relativização interpretativa O propósito da Corte Suprema de reparar evidentes deficiências do sistema penal pela relativização da presunção de inocência apresenta grave problema hermenêutico. Conforma lição de Canotilho, “Interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada”. Prossegue o eminente constitucionalista luso: “Sugerem-se aqui três dimensões importantes da interpretação da constituição: (1) interpretar a constituição significa procurar o direito contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito contido na lei constitucional implica uma actividade – actividade complexa – que se traduz fundamentalmente na <<adscrição>> de um significado a um enunciado ou disposição lingüística (“texto da norma”); (3) o produto do acto de interpretar é o significado atribuído”61. A norma é concretizada a partir do enunciado legislativo ou disposição lingüística. Portanto, a toda evidência, o ato de interpretar não é arbitrário, pois parametrizado por esse enunciado ou disposição lingüística. Deveras, “o espaço de interpretação, ou melhor, o âmbito de liberdade de interpretação do aplicador-concretizador das normas constitucionais, tem também o texto da norma como limite”62. É certo que o intérprete ao emprestar significado ao significante embute em sua construção hermenêutica pré-concepções inerentes a sua condição e ao seu contexto. Elementos históricos, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 1186. 62 Idem, p. 1206. 61

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sociais, psicológicos, axiológicos interferem, mesmo que imperceptivelmente, no resultado da exegese. Ainda assim, há limites na realização do trabalho, sob pena de o produto apresentado ser discricionário. O fenômeno designado por neoconstitucionalismo, orientado pela tarefa de emprestar efetividade aos comandos constitucionais, naturalmente implicou o reexame das diretrizes hermenêuticas. Esse contexto diferenciado, entretanto, não dispensou por completo o modelo subsuntivo, senão que tratou de adequá-lo a essa novel realidade. Elucidativa é a seguinte consideração de Luís Roberto Barroso: “A ideia de uma nova interpretação constitucional liga-se ao desenvolvimento de algumas fórmulas originais de realização da vontade da Constituição. Não importa em desprezo ou abandono do método clássico – o subsuntivo, fundado na aplicação de regras – nem dos elementos tradicionais da hermenêutica: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Ao contrário, continuam eles a desempenhar um papel relevante na busca de sentido das normas e na solução de casos concretos. Relevante, mas nem sempre suficiente”63. Pois, na hipótese, verifica-se que o método gramatical restou desprezado, quando o correto seria não restringir seu alcance

BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 141. Não se pretende aqui explicitar a descortesia de contrapor a lição do estudioso com a aplicação prática pelo Ministro Barroso. Objetiva-se apenas a coleta de argumentos em favor da tese ora externada. Tanto que, a seguir, as lições do pesquisador terminam por se coadunar com os fundamentos do julgado: “A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo de uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido” (idem, p. 142). É factível discordar das posições do Ministro, jamais impugnar a coerência de seus argumentos.

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libertário. Sua desconsideração, para fins de atender propósitos consequencialistas, extravasou a mínima vinculação que o intérprete deva manter com o significante, deslegitimando, em decorrência, a atuação jurisdicional. Com a devida vênia, no ponto, o Supremo desbordou dos limites que orientam o aplicador da norma, não cumprindo com a necessária auto-contenção que deve orientar o julgador, especialmente em relação a comando não infenso a violações e invectivas, e cujo conteúdo é de inequívoco propósito assecuratório. O preceito constitucional que expressa a presunção de inocência não admite interpretação expansiva, seja por sua natureza de regra garantidora da liberdade, seja por tratar de marco temporal irretorquível externado pelo conceito de trânsito em julgado. A esse respeito, verbaliza Rogério Lauria Tucci “que o texto de lei, especialmente o constitucional, quando claro, inadmite interpretações restritiva, extensiva, ou diversificativa: in claris cessat interpretatio”64. Mas o alcance desse antigo e consagrado axioma merece temperamento. A adjetivação acerca da clareza da norma, ou especificamente dos significantes nela contidos, decorre necessariamente de interpretação prévia. Embora todos os significantes sejam passíveis de interpretação, há os que apresentam maior ou menor abertura semântica, isoladamente ou em conjunto. Está a parecer, na linha do exposto, que a expressão “todos são iguais perante a lei” apresenta maior complexidade do que “trânsito em julgado”, instituto de natureza processual que passa a existir topicamente a partir da correspondente certificação. Essa conclusão não obstaculiza, como a princípio pode parecer, alguma construção hermenêutica da norma constitucional em comento, senão que de cunho literal. Pelo contrário, outra TUCCI, op. cit., p. 317. Conforme asseverou o Ministro Marco Aurélio: “O preceito, a meu ver, não permite interpretações. Há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção. Já disse, nesta bancada, que, quando avançamos, extravasamos os limites que são próprios ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode retornar e vir à nossa testa”. 64

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interpretação é não apenas permitida, como também estimulada, contanto que otimize a tutela da liberdade, não o contrário65. Deveras, “quando se trata de disposição ambígua ou obscura, propiciante de entendimento duvidoso, torna-se admissível a interpretação extensiva, em favor da liberdade”66. É preciso asseverar, portanto, que “a presunção de inocência, enquanto princípio reitor do processo penal, deve ser maximizada em todas as suas nuances”67. Não há, pois, como ultrapassar essa cláusula temporal senão que em prejuízo à garantia constitucional a ela diretamente relacionada, posto que essa garantia “reside e, portanto, se esgota no fenômeno processual denominado trânsito em julgado”68. Destarte, “toda providência ou restrição que importe em antecipação da condenação ou de sua execução parece vedada ao legislador”69. No preciso magistério de Luis Gustavo Carvalho: “Se a Constituição garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado, vale dizer que a presunção só desaparece e, consequentemente, só é possível a prisão por condenação após a constituição da coisa julgada material. Ela só irá ocorrer com o conhecimento e a rejeição do recurso extraordinário e do recurso especial, com sua não interposição ou com o julgamento e a rejeição do agravo interposto para o recebimento dos referidos recursos. Essa conclusão baseia-se naquele mesmo raciocínio empregado para não limitar, de qualquer forma, o dispositivo constitucional”70. 65 O Ministro Celso de Melo refere em seu voto que a presunção de inocência é “cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral”. Refere que a norma em comento “estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Por isso, admite apenas e tão-somente “hermenêutica essencialmente emancipatória”, pois outro tipo de solução resultaria em “esterilização” da garantia. 66 TUCCI, op. cit., p. 317. 67 LOPES JR., op. cit., p. 229. 68 TUCCI, op. cit., p. 318. 69 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 602. 70 CARVALHO, op. cit., 192.

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Prevalecendo o entendimento direcionado a suprir disfunções que devem ser remediadas não apenas pelo Poder Judiciário, e criado ao arrepio do que dispõe o sistema jurídico objetivo, nada obstará que, ante o recrudescimento da violência, proclame-se que determinada categoria de crimes desconsidere o trânsito em julgado para antecipação do cumprimento da pena já por ocasião do julgamento em primeira instância, ao fundamento de que nesses casos específicos a culpa já está devidamente formada71. Por conseguinte, para que não se corra esse risco, é imprescindível considerar que as “restrições somente se justificam após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória”72.

O Ministro Barroso distingue prisão, que deve decorrer de ordem escrita e fundamentada da autoridade competente, de culpabilidade, a qual, na sua ótica, é que exige o trânsito em julgado. Assevera que “O pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade”. Mas qual seria o limite a partir de então? Sem ele, em tese, decisão de primeira instância já poderia propiciar a antecipação da pena, por exemplo, em casos de crimes hediondos, delitos apenados com reclusão ou com pena privativa de liberdade superior a tantos anos. Tudo a depender do termômetro que mede a insatisfação social com a (in)eficiência do sistema processual penal. Com a devida vênia, o insigne julgador não trabalha com a sutil diferença acerca das medidas cautelares, que não importam antecipação de pena e apresentam regência diferenciada. O inciso LXI do art. 5º da Constituição Federal conforma exatamente a exceção representada pela prisão cautelar. Depende de motivação específica e condizente com seus requisitos, não se harmonizando com efeito automático de decisão restritiva da liberdade. O voto, ademais, esclarece que a execução provisória impediria a aplicação de efeitos extrapenais, como a perda do cargo público. Entretanto, não há qualquer garantia para que isso não ocorra. Afinal, o Supremo Tribunal Federal respaldou que mesmo efeitos reflexos podem ser imediatamente considerados quando do julgamento da Lei de Ficha Limpa. Observe-se a interpretação do Min. Gilmar Mendes: “Note-se que a Lei da Ficha Limpa considera inelegíveis os condenados por diversos crimes graves nela relacionados, a partir do julgamento em Tribunal (art. 1º, I, “e”, da Lei Complementar 64/90, introduzido pela Lei Complementar 135/10). Essa norma e constitucional, como declarado pelo Supremo Tribunal (Ações Declaratórias de Constitucionalidade 29 e 30, Relator Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgadas em 16.2.2012). Ou seja, a presunção de não culpabilidade não impede que, mesmo antes do transito em julgado, a condenação criminal surta efeitos severos, como a perda do direito de ser eleito. Igualmente, não parece incompatível com a presunção de não culpabilidade que a pena passe a ser cumprida, independentemente da tramitação do recurso”. 72 GIACOMOLLI, op. cit., p. 96. 71

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Outra vez são pertinentes as lúcidas reflexões de Luis Gustavo Carvalho: “não há como não se objetar que o prolongamento das lides é indesejável e concorre substancialmente para a impunidade (...). O ideal seria que a Constituição apenas expressasse o princípio em termos genéricos, sem fixar um marco processual, como fez ao aludir ao trânsito em julgado. Assim, a jurisprudência poderia adequá-lo melhor. Andou melhor a Convenção Americana ao prever a presunção de inocência até que se comprove a culpabilidade, permitindo, como isso, que regras infraconstitucionais estabeleçam, por meio dos efeitos atribuídos aos vários recursos, quando cederia a presunção. Portanto, o art. 8º, nº 2, da Convenção é mais restritivo do que o dispositivo constitucional brasileiro. Mas não se pode advogar que a Convenção tenha restringido o princípio brasileiro, pois a própria Convenção prevê que sua aplicação não pode reduzir as garantias estabelecidas pelo direito interno. Diante desse quadro, não se pode pretender constitucional a expedição de mandado de prisão, automaticamente, pela confirmação de condenação no segundo grau de jurisdição, sendo necessária fundamentação acerca da necessidade da prisão”73. Nesse cenário, é premente cogitar de outras soluções como reforma da legislação, quiçá da própria Constituição Federal. Aliás, nessa seara, cabe ressaltar que a exacerbada competência atribuída ao Supremo decorre não apenas do que a Constituição lhe confere, mas especialmente de postura pouco restritiva que contribui significativamente para os problemas que a Corte procura solucionar por vias transversas74. Sem resguardar-se aos casos paradigmáticos CARVALHO, op. cit., p. 192. Essa construção doutrinária é corroborada pelo seguinte fragmento extraído do voto do Min. Celso de Melo: “É por isso que se mostra inadequado invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal”. 74 As críticas formuladas em desfavor do excesso de atribuições do Supremo Tribunal Federal, temperada pela ausência de contenção do exame dos pleitos que lhe são dirigidos, constam do seguinte trabalho: COSTA, Gerson Godinho da. Suprema Hipertrofia. Direito Federal – Revista da AJUFE. Brasília, ano 26, n. 93, p. 271-294, 73

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e precaver-se de imiscuir-se em julgamentos de natureza meramente ordinária, em nada contribuirá o Supremo para o aprimoramento do sistema. Porém, não se observa essa cautela. Para comprovar essa assertiva basta invocar a ressalva admitida pelo próprio Supremo no que se refere à ora admitida execução provisória.

5.4 A suficiência de duas instâncias decisórias Não há dúvida de que a consistência da acusação é obtida com a decisão de segundo grau, onde se exaure o exame dos fatos e das provas, e que às instâncias superiores, provocadas pelos recursos extraordinário e especial, incumbirá apenas a análise de matéria essencialmente jurídica. Daí se dessume que o duplo grau é suficiente para fixação da responsabilidade criminal do processado e que a imposição de outras esferas recursais não encontra paralelo nos sistemas jurídicos estrangeiros. Tampouco é discutível a conveniência de cumprimento da condenação desde o exame pela instância recursal ordinária por imperativo de efetividade da jurisdição. A questão é que há obstáculo constitucional expresso que, queira-se ou não, concorde-se ou não, deve ser respeitado. Sob outro enfoque, os índices relacionados ao provimento de recursos especiais e extraordinário, reputados irrisórios, poderiam ser utilizados para justificar a supressão da segunda instância, acaso constatado que seja ínfimo também o número de reformas de sentenças condenatórias. A supressão do trânsito em julgado, quajul./dez. 2013. Sem embargo, desse direcionamento, é paradigmática a auto-crítica realizada pelo Min. Fachin: “Há, todavia, com a devida vênia de quem eventualmente conceba de forma diversa, um agigantamento dos afazeres deste Supremo Tribunal Federal, que decorre da própria forma como esta Corte interpreta determinadas regras constitucionais. Não faço aqui apologia daquilo que se costuma denominar de jurisprudência defensiva. Quero, todavia, dizer que, dentro daquele espaço que a Constituição outorga ao intérprete uma margem de conformação que não extrapola os limites da moldura textual, as melhores alternativas hermenêuticas quiçá são, em princípio, as que conduzem a reservar a esta Suprema Corte primordialmente a tutela da ordem jurídica constitucional, em detrimento de uma inalcançável missão de fazer justiça nos casos concretos”.

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lificador da garantia da presunção de inocência, permitiria, a contrario sensu, soluções dessa espécie. Ademais, a solução majoritária proposta não trata de corrigir eventual desconfiança com as instâncias ordinárias, posto que essa suspeita remanesce travestida da ressalva de revisão tópica do próprio entendimento acerca da possibilidade de execução antecipada.

5.5 A utilização abusiva de recursos O problema dos recursos protelatórios não é específico das instâncias extraordinárias, também sucede nas esferas ordinárias. Ademais é preciso reconhecer que muitos desses recursos foram pretorianamente construídos ou estão previstos em regimentos internos elaborados pelas próprias cortes. Igualmente, seria recomendável comportamento menos passivo do Poder Judiciário em relação ao tratamento dispensado a recursos indiscutivelmente protelatórios, inclusive mediante imposição das penalidades processuais cabíveis.

5.6 Mutação constitucional Quanto à mutação constitucional não restou esclarecido o que precisamente se transformou para autorizar essa viragem na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Não há como medir se o sentimento de impunidade é maior ou menor do que há cinco ou dez anos atrás. Não há, outrossim, nesse curtíssimo interregno, algo que evidencie sensível mudança na faticidade que permita a releitura de sua normatividade. E ainda que perceptível alguma modificação, seria imprescindível atentar ao magistério de Luis Gustavo Carvalho: “Está certo que as normas – entre as quais estão os princípios – não podem ser interpretadas alheias ao mundo real, ficticiamente, sob pena de cair-se num positivismo sem sentido. Concorda-se que uma coisa é presumir a inocência de todos, especialmente daquele que está

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afirmando sua própria inocência; outra coisa é continuar presumindo a inocência de quem, além de já condenado pela segunda instância ou pelas duas instâncias, não está mais lutando por tese que evite a sua prisão. Mas esses argumentos não têm força para se sobrepor ao texto constitucional: presume-se a inocência até o trânsito em julgado. A solução, portanto, parece não estar nas mãos do Judiciário, mas do Legislativo”75.

5.7 A relativização da relativização. Circularidade prática Conforme anteriormente ressaltado, o Supremo Tribunal Federal optou por ressalvar a possibilidade de analisar topicamente os casos em que se mostrar necessário suspender a execução provisória. Chegou a aventar os instrumentos processuais aptos para essa finalidade, como a atribuição de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial ou o manejo do habeas corpus. Ante o que já foi sustentado criticamente a respeito, incumbe apenas sugerir que qualquer reflexão mais apropriada sobre a questão não dispensaria o cotejo dos números que retratem os recursos especial e extraordinário apresentados até o julgado com os de pedidos de suspensão da execução provisória. Leitura intuitiva e prognóstica do cenário aponta que serão aproximados. Caso procedente essa especulação, por certo que a pretensão de corrigir algumas inaptidões do sistema penal se revelará inócua. E ao custo inestimável de relativização de garantia constitucional. Na linha do que sustenta Luigi Ferrajoli, no sentido de que “nenhum valor ou princípio é satisfeito sem custos. E esse é um custo que o sistema penal, se quiser salvaguardar sua razão de ser, deve estar disposto a pagar”76, infelizmente restará devedora a Corte Suprema.

75 76

CARVALHO, op. cit., p. 193. FERRAJOLI, op. cit., p. 449.

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6 Conclusões Nesse momento encontra-se maduro sintetizar a seguinte conclusão: o Supremo diagnosticou acertadamente a enfermidade do sistema processual penal, frente aos sintomas antes enumerados, mas equivocou-se ao ministrar o medicamento. A relativização da presunção de inocência poderá servir de paradigma a indesejável ativismo judicial, do qual poderá resultar indevida interferência quanto à atuação de outros poderes, inclusive ao arrepio de significantes legislativos, sejam constitucionais ou infraconstitucionais, ante o inequívoco alargamento semântico adotado pela Corte Suprema. Ou seja, periclita hoje não apenas a garantia constitucional aventada, mas provavelmente, no futuro, também a segurança do próprio sistema jurídico.

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O PAPEL DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NO CONTROLE DOS DESVIOS DE CONDUTA DOS GESTORES PÚBLICOS Gilvânklim Marques de Lima Juiz Federal titular da 12ª Vara da Seção Judiciária da Paraíba (Subseção Judiciária de Guarabira – PB). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN; Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera/UNIDERP; Mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

Resumo

Abstract

O presente trabalho procura demonstrar a importância da Lei de Improbidade Administrativa como instrumento normativo de controle da Administração Pública no Brasil e o seu papel fundamental na superação do quadro de apropriação privada da coisa pública e de utilização do Estado para patrocínio de interesses particulares, que vem existindo no país desde os tempos coloniais. Após a exposição da base principiológica que respalda o diploma legal em consideração, conclui-se que o alcance dos seus objetivos depende da sua aplicabilidade, indistinta, a todos os agentes públicos.

This paper seeks to demonstrate the importance of the Improbity Conduct Act as a normative instrument of control of Public Administration in Brazil and its key role in overcoming the private appropriation of part of public affairs and the use of State for sponsorship of particular interests that has existed in the country since colonial times. After exposure of principled basis that supports the statute into consideration, it is concluded that the scope of its objectives depends on its applicability, indistinct, to all public officials.

Palavras-chave: Administração Pública – Controle – Improbidade.

Keywords: Public Administration – Control – Improbity.

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1 Introdução O administrador público gerencia um patrimônio que não lhe pertence, cabendo-lhe exercer o encargo de zelar adequadamente pelos interesses da coletividade. Por se encontrar na condição de gestor dos interesses de outrem, é fundamental que haja um controle sobre a sua atuação, de forma a assegurar que o interesse perseguido seja sempre o coletivo. Para garantir a incolumidade dos seus interesses, a Administração Pública se cerca de mecanismos de controle voltados à fiscalização procedimental dos seus gestores, valendo-se, para isso, de um conjunto de instrumentos internos de fiscalização, mediante a atuação de estruturas integrantes do próprio órgão controlado, bem como também se vale de outros órgãos públicos, cuja finalidade precípua é fiscalizar a atuação dos gestores públicos. Isso é o que se denomina, segundo explica Mello (2009, p.927), de controle interno na primeira situação e externo, na segunda. No entanto, para que as estruturas de controle interno e externo funcionem a contento, faz-se necessária a existência de instrumentos normativos eficientes, sendo um desses materializado na Lei nº 8.429/92, também conhecida como Lei de Improbidade Administrativa. No presente trabalho, a partir de uma análise dos princípios balizadores da Administração Pública, estabelecidos pela Constituição Federal, busca-se demonstrar a importância da Lei nº 8.429/92 para a moldagem de uma Administração Pública verdadeiramente voltada para os interesses da coletividade e comprometida com a superação do crônico quadro de apropriação privada do Estado que tem sido uma constante no Brasil desde os tempos coloniais.

2 Balizas principiológicas da administração pública A Constituição Federal, em seu artigo 37, determinou a observância compulsória, no âmbito da Administração Pública, dos

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princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Trata-se de conjuntura principiológica a partir da qual a gestão pública é instrumentalizada e informada a partir da vigência da Carta de 1988. Quando se quer avaliar se determinado procedimento de gestão pública ou se certa norma de natureza administrativa é compatível ou não com a Constituição Federal, é fundamental buscar nesse conjunto de princípios orientação, pois se um deles não tiver sido observado, é possível afirmar, com certa segurança, que a conduta do gestor público ou a norma avaliada, mostra-se incompatível com o modelo de gestão pública estabelecido na Constituição em vigor. Passa-se, portanto, a avaliar, ainda que de forma breve, cada um desses princípios.

2.1 O princípio da legalidade Legalidade é princípio elementar quando se discute Administração Pública. Ele constitui a baliza fundamental que norteia a forma como os gestores devem se portar no desempenho de suas atribuições. A importância do princípio da legalidade é tal no Direito Administrativo que Madeira (2008, p. 10), considera-o como “a noção capital do Estado de Direito” e a “bússola norteadora da Administração pública”. Já Faria (2007, p. 45), tece a respeito da legalidade as seguintes considerações: O princípio da legalidade, no sistema jurídico positivo, é o mais importante deles, sem desmerecer os outros, que são também importantes. A observância da legalidade é fundamental na realização administrativa do Estado. [...]. O agente público deve praticar ato se determinado ou permitido por lei no sentido lato. Atos praticados sem a observância dessa regra são inválidos, não podendo, por conseguinte, produzir efeitos válidos.

Por mais que o administrador público seja bem-intencionado ao praticar um determinado ato administrativo, se a sua atuação

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não se encontrar respaldada numa autorização legislativa, o ato praticado é viciado, pois não lhe é dado atuar violando a lei. Por outro lado, os mecanismos de controle da Administração não são considerados legítimos se não estiverem respaldados em autorização legislativa, estruturando-se uma equação entre a forma como o Administrador Público deve proceder e os mecanismos legítimos para fiscalização dos seus atos, exercendo o princípio da legalidade, nas duas conjunturas, papel nuclear. Dessa forma, a legalidade é a baliza dentro da qual o administrador público se movimenta e, é com base nela também que os seus atos são submetidos a controle.

2.2 Os princípios da moralidade e da impessoalidade e os paradigmas éticos da sociedade brasileira Quando se lida com interesses de outrem, a honestidade é um dos atributos que mais se espera no gestor. Infelizmente, essa qualidade nem sempre se faz presente no caráter de alguns administradores públicos. No Brasil, o Estado foi construído de forma patrimonialista. Os administradores não costumavam enxergar no interesse público o foco principal de sua atividade. Proteger interesses pessoais ou de terceiros era, não raras vezes, o norte principal da atuação gerencial. Ao longo da história brasileira, tem sido muito difícil para os gestores públicos compreender que os bens por eles geridos não lhes pertence. Por outro lado, para a população em geral, arraigou-se culturalmente uma profunda inércia em relação aos desmandos praticados por alguns gestores públicos, em razão da falta de entendimento de que os bens dilapidados ou objeto de uso privado pertencem a coletividade e, portanto, a cada um dos indivíduos que a integram, sendo fundamental que cada cidadão assuma o encargo de zelar por eles, reclamando a devida punição dos gestores desonestos. Mas a cultura de apropriação privada do Estado, cujas raízes remontam no Brasil à administração portuguesa durante a fase

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colonial, vem impedindo a consolidação de uma visão republicana em relação ao patrimônio público. O mesmo modelo colonial de gestão do Estado, no qual o rei considerava o Estado como seu patrimônio, podendo dele se utilizar para distribuir honrarias e benesses aos seus protegidos, arraigou-se na cultura brasileira, percorrendo os séculos e maculando as entranhas da Administração Pública nacional. O zelo pela coisa pública e o sentimento de posse do patrimônio estatal são conceitos de difícil incorporação na consciência coletiva brasileira. Para uma parcela da população parece que os atos de desonestidade no gerenciamento da coisa pública somente são inaceitáveis quando ela não se encontra sendo, direta ou indiretamente, beneficiária dos desmandos administrativos. A desonestidade, a corrupção, o mau caráter, não são comportamentos de seres etéreos que, inexplicavelmente, adentram nos meandros da Administração Pública e passam a controlá-la, gerindo-a em benefício próprio. A corrupção é reflexo de uma sociedade doente, cujos indivíduos se sentem indignados com os ilícitos praticados por maus gestores, ao mesmo tempo em que não deixam passar a oportunidade, por exemplo, de oferecer algum valor ao guarda de trânsito, a fim de os livrar da responsabilização por uma infração administrativa. O desonesto, o corrupto, o imoral, é parte da mesma sociedade que se mostra indignada com os seus atos. Ele não é um ser estranho. Ao contrário, pertence às suas entranhas e se sentirá cada vez mais à vontade para agir à medida em que perceber que os seus atos nada mais são do que a maximização dos desmandos cotidianos existentes nas mais diversas esferas da sociedade à qual integra. É pertinente a essa altura, a transcrição das considerações de Garcia (2014, p. 53), que seguem: A corrupção está associada à fragilidade dos padrões éticos de determinada sociedade, os quais se refletem sobre a ética do agente público. Por ser ele, normalmente, um mero “exemplar” do meio em que vive e se desenvolve, um

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contexto social em que a obtenção de vantagens indevidas é vista como prática comum dentre os cidadãos, em geral, certamente fará com que idêntica concepção seja mantida pelo agente nas relações que venha a estabelecer com o Poder Público. Um povo que preza a honestidade provavelmente terá governantes honestos. Um povo que, em seu cotidiano, tolera a desonestidade e, não raras vezes, a enaltece, por certo terá governantes com pensamento similar.

O sentimento de que a corrupção, a desonestidade e o descaso com a coisa pública se tornaram situações rotineiras no Brasil nada mais é do que o reflexo de uma sociedade eticamente doente, que reclama honestidade de quem a governa, mas, ao mesmo tempo, não possui um padrão ético compatível com o esperado dos seus governantes. Talvez uma das maiores verdades existentes quando se discute a questão ética na Administração Pública é que dificilmente haverá corruptos se não houver corruptores. Se a sociedade brasileira, de fato, pretende banir a corrupção das entranhas da administração pública, precisa, em primeiro lugar, submeter-se a um processo de purgação coletiva, alterando completamente a sua forma de agir, transformando em padrão ético de cada cidadão aquele esperado dos seus governantes. É preciso educar os brasileiros para a cidadania, levando-os a problematizar o estigma patrimonialista que ainda campeia a nossa Administração Pública, pois como lembra Freire (2014, p. 93), “ a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. ” É preciso produzir nos brasileiros a consciência de que a coisa pública pertence a todos e não a uma casta de privilegiados que vem se apropriando do Estado ao longo do tempo. Essa cultura patrimonial enferma, legada pelo colonialismo português, precisa ser extirpada do inconsciente coletivo nacional. Cada indivíduo necessita lembrar que a coisa pública não pertence a ninguém individualmente e sim a coletividade e que os gestores públicos não são nada mais do que meros mandatários da sociedade. 344

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Dessa forma, quando cada um entender que deve agir segundo o padrão moral que almeja ver observado pelos seus governantes, o Brasil terá dado um passo fundamental para uma mudança de tratamento do interesse público. Assim, poderíamos dizer que o mais eficiente controle da Administração Público é o popular. Aquele no qual cada cidadão se sente responsável pelo adequado gerenciamento do patrimônio coletivo e, ao se deparar com ilícitos dos gestores públicos, sente-se na responsabilidade de denunciar aos órgãos competentes a conduta praticada, esperando a responsabilização do gestor desonesto. Logo, poderíamos dizer que, ao lado do controle interno e externo da Administração Pública, que são formais e adstritos ao princípio da legalidade, existe o controle popular, de conteúdo ético e que expressa o espírito de cidadania e de responsabilidade pelo patrimônio coletivo, encontrando-se difuso na sociedade. É ele que provocará a verdadeira mudança no trato da coisa pública no Brasil, uma vez que os mecanismos de controle formais da administração pouco podem fazer em favor dela se não existir esse impulso popular reclamando o funcionamento desses mecanismos. É dentro desse contexto, que dois princípios colocados ao lado da legalidade no artigo 37 da Constituição Federal merecem uma adequada reflexão quando se discute o padrão ético que se espera dos gestores públicos. Trata-se dos princípios da moralidade e da impessoalidade. O princípio da impessoalidade reclama o tratamento isonômico no âmbito da Administração Pública. Os indivíduos devem ser atendidos de acordo com os parâmetros fixados em lei, não podendo existir espaço para qualquer tipo de privilégio. Se bem observado, esse princípio é uma das mais fortes armas da cidadania contra o patrimonialismo estatal, o sentimento de posse que permeia a administração pública brasileira. Mello (2009, p. 114) explica que o princípio da impessoalidade [...], traduz a ideia de que a Administração tem que tratar todos os administrados sem discriminações, benéficas ou

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detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.

Tem-se, portanto, no princípio da impessoalidade um forte antídoto contra o patrimonialismo do Estado brasileiro. A partir do momento que em houver uma compreensão coletiva de que não é admissível qualquer tipo de apropriação ou utilização privada da coisa pública, a sociedade brasileira terá dado um largo passo em direção a erradicação da corrupção e da desonestidade do seu meio. É preciso que cada indivíduo compreenda que somente pode almejar receber da Administração aquilo legalmente lhe for devido. Nada a mais ou a menos do que isso. É fundamental que os cidadãos passem a enxergar nos administradores públicos a figura de meros responsáveis pelo atendimento das demandas coletivas segundo as prescrições legais. Esse sentimento de cidadania precisa se difundir a ponto de ninguém admitir que qualquer servidor público aja como se estivesse prestando um favor ao cidadão quando da outorga de uma prestação pública. O servidor público, como a própria denominação evoca, nada mais é do que alguém remunerado pela sociedade para a servir. É esse tipo de compreensão que necessita se consolidar no Brasil, a fim de extirpar a praga do patrimonialismo1 que apodrece os meandros da Administração Pública nacional e estimula nos maus gestores o sentimento de que são proprietários do acervo público, cuja administração lhes foi confiada. Denomino de patrimonialismo a conduta de determinados agentes de se considerarem proprietários dos bens públicos que se encontram sob a sua guarda, utilizando-os em benefício próprio ou de terceiros com os quais mantenham vínculo de parentesco ou de amizade. É esse tipo de sentimento de posse do que pertence ao coletivo que Holanda (2014, p. 169-182) aponta como sendo um dos elementos mais característicos da formação cultural da sociedade brasileira.

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Já o princípio da moralidade agrega a si o conteúdo ético, a honestidade que se reclama como atributo de quem atua na Administração Pública. Uma observância meramente formal do princípio da legalidade muitas vezes oculta interesses escusos, incompatíveis com a boa gestão do patrimônio público. É por isso que a Constituição Federal de 1988 trouxe o princípio da moralidade como baliza autônoma em relação à legalidade, demonstrando, tal como defende Cordeiro (2007, p. 21), que a “nossa Administração Pública passa por uma mudança paradigmática, revelando preocupação não só com a legalidade dos atos administrativos, mas, principalmente, com a legitimidade e licitude dos mesmos.” Há, portanto, a imposição de uma baliza de cunho ético ao administrador público. Ele precisa observar a lei, sem privilegiar interesses particulares, sendo-lhe reclamado, ainda, um valor ético mais elevado, um sentimento de honestidade que o motive a gerir a coisa pública focado exclusivamente nos interesses da coletividade.

2.3 Publicidade e eficiência Complementando o rol de princípios balizadores da Administração Pública presentes no artigo 37, da Constituição Federal, espera-se, ainda, que o gestor conceda a mais ampla publicidade aos atos que praticar, viabilizando o controle popular, pois da mesma forma que as trevas não suportam a presença da luz, a corrupção e o mau feito na gestão pública são mutilados quando a publicidade dos atos administrativos é levada a sério. Além disso, a gestão pública precisa ser eficiente, pois não satisfaz os interesses dos administrados um serviço público que não seja prestado no momento exato em que é esperado. Com base no parâmetro da eficiência, o administrado deve ser encarado como cliente do poder público, o qual deve se esmerar em atendê-lo adequadamente, primando por sua plena satisfação.

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Assim, a publicidade e a eficiência fecham o leque de princípios balizadores do modelo de Administração Pública presente na Carta de 1988, cabendo a cada cidadão primar para que cada uma dessas balizas fundamentais seja integralmente respeitada pelos gestores públicos.

3 A sanção por improbidade administrativa como mecanismo de correção dos desvios de conduta dos gestores públicos Sabe-se que os desvios de conduta de alguns gestores públicos no Brasil são recorrentes, conforme já se fez referência. Para coibir os malsinados atos de desonestidade e inadequado manuseio do patrimônio público, a Constituição Federal, sem prejuízo da responsabilização penal e administrativa deles, trouxe ainda a possibilidade de uma responsabilização adicional, a ser imposta no âmbito do Poder Judiciário, viabilizando a imposição de suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário (CF, art. 37, § 4º). Trata-se de um conjunto e sanções direcionado ao agente público que venha a praticar um ato de improbidade2, de inadequado gerenciamento do patrimônio público, podendo conduzir a uma lesão ao interesse coletivo pelo qual deveria zelar. No âmbito infraconstitucional, foi editada a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, destinada a regular as sanções aplicáveis aos agentes públicos responsáveis pela prática de um desvio funcional qualificado, também chamado de improbidade administrativa.

Fernandes (1996, p. 136), explica que a palavra improbidade vem do latim, improbitas, atis, significando, em sentido próprio, má-qualidade (de uma coisa). Também em sentido próprio, improbus, i, que deu origem ao vernáculo improbo, significa mau, de má qualidade. Da mesma forma, probus, i, em português, probo, quer dizer bom, de boa qualidade. O sentido próprio dessas palavras, pois, não se reporta, necessariamente, ao caráter desonesto do procedimento incriminado, quando se faz referência a ‘administrador ímprobo’”.

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Trata-se de importante instrumento de controle da administração pública, uma vez que viabiliza a punição dos atos ilícitos praticados por gestores no exercício de suas funções. Para ser considerado agente público, para fins de incidência das penalidades de cunho civil-administrativo previstas na Lei nº 8.429/92, não se faz necessário que ele tenha vínculo permanente com a Administração Pública. Requer-se, apenas, que o ato praticado tenha sido perpetrado em desfavor do interesse coletivo. É o que se depreende da redação do artigo 2º, da Lei nº 8.429/92: Art. 2º Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.

O objetivo fundamental da Lei nº 8.429/92, que doravante será chamada de Lei de Improbidade Administrativa, ou apenas LIA, é penalizar o agente que atua em nome da Administração, em decorrência de investidura permanente ou transitória em cargo ou função pública. A ela não interessa punir particulares, ainda que causem lesão ao erário, mas o façam sem ostentar a condição de agente público. É por isso que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não admite a propositura de demanda voltada à responsabilização exclusiva de um particular por ato de improbidade administrativa, sem que integre o polo passivo da demanda, de forma concomitante, um agente público.3 Fica evidente, portanto, que o foco principal da LIA é combater a atuação dos maus gestores que, com os seus atos, trazem prejuízos, inclusive extrapatrimoniais, para a Administração Pública. A LIA dividiu em três categorias os atos por ela considerados como improbidade administrativa. Trata-se das condutas dos 3

AgRg no AREsp 574.500/PA, Rel. Min. Humberto Martins.

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agentes públicos que ensejam o enriquecimento ilícito próprio ou de terceiros (Lei nº 8.429/92, art. 9º); provoquem prejuízo ao erário (Lei nº 8.429/92, art. 10), ou, ainda, violem os princípios norteadores da Administração Pública (Lei nº 8.429/92, art. 11). O foco, da LIA, portanto, ficou bem evidenciado. Ela se dirige contra os agentes públicos desonestos, que buscam enriquecer a si mesmo ou a terceiros em detrimento do erário. Busca-se, com isso, combater a cultura patrimonialista que macula a Administração no Brasil desde os tempos coloniais. Além disso, a LIA também busca combater os atos dos agentes que, embora não tenham como finalidade obter o enriquecimento próprio ou de terceiros em detrimento do erário, trazem como consequência prejuízos aos cofres públicos ou aos princípios que balizam a Administração. Com a LIA se busca extirpar a nefasta cultura de menoscabo aos interesses da Administração Pública tão presente no Brasil. Não obstante a honestidade e o respeito ao interesse coletivo sejam atributos invocados por todos os agentes públicos, em especial por aqueles que concorrem a mandatos eletivos, o que se tem visto ao longo da história é um quadro de permanente espoliação do erário e apropriação privada dos bens pertencentes à coletividade, de forma que o respeito ao interesse público, ao longo do tempo, vem se convertendo em mero engodo retórico. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, em especial após a edição da Lei nº 8.429/92, buscou-se alterar esse quadro. Percebeu-se ser crucial para a consolidação da democracia no Brasil e em especial para a construção de um conceito de cidadania efetivamente sólido, no qual todos os cidadãos se sintam iguais, eliminar a cultura de privilégios e espoliação do patrimônio público. Dessa forma, foi visto como fundamental dotar os órgãos de controle de um instrumento jurídico forte o suficiente para inibir práticas de desrespeito aos interesses do erário, bem como, em casos de desvio de conduta, possibilitar a utilização de mecanismos capazes de afastar os maus agentes dos meandros da gestão pública.

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Essa intenção do legislador ficou bem evidenciada na estipulação das sanções direcionadas aos agentes públicos responsáveis pela prática de atos de improbidade administrava. Para melhor visualização, transcreve-se o artigo 12 da Lei nº 8.429/92: Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: I – na hipótese do art. 9º (atos que ensejam enriquecimento ilícito), perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos; II – na hipótese do art. 10 (atos que provocam prejuízo ao erário), ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos; III – na hipótese do art. 11 (atos que violam princípios da administração pública), ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos. Parágrafo único. Na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.

Ao se analisar o conjunto das sanções, é possível constatar que a Lei nº 8.429/92 foca dois objetivos em termos de punição: o

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primeiro é a reposição do patrimônio público ao estágio anterior a ocorrência do ato ímprobo; o segundo, não menos importante, é retirar o agente desonesto da posição que ele ocupa na Administração mediante a perda do cargo e da proibição de com ela manter qualquer vínculo durante um certo lapso temporal, que variará de acordo com a gravidade do ato praticado. Como sanção adicional, há a suspensão dos direitos políticos, como uma forma de demonstrar que o indivíduo que age contra os interesses da Administração Pública contraria os anseios da coletividade, razão pela qual deve ser alijado do processo de escolha dos mandatários públicos por um determinado período.

3.1 Algumas controvérsias envolvendo a aplicação da lei de improbidade administrativa Com a edição da LIA se estabeleceu uma controvérsia a respeito da exigência de dolo ou culpa para a responsabilização do agente público. De um lado, postaram-se os defensores da tese segundo a qual a mera prática de uma conduta considerada ímproba seria suficiente para a punição do agente. Por outro lado, outros defendiam que a natureza das sanções presentes na LIA, que não se limitam à restauração do patrimônio público lesado, inviabiliza a desconsideração do elemento subjetivo norteador da conduta do agente, fazendo-se necessário que a atuação dele tenha se dado, pelo menos, a título culposo. A jurisprudência, no entanto, pelo menos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, encontra-se consolidada no sentido de que não é admissível a responsabilidade objetiva, ou seja, sem a necessidade de comprovação de dolo ou culpa do agente, para fins de aplicação das sanções de cunho civil-administrativo presentes na LIA. Para tanto, faz-se necessária a comprovação do dolo em relação aos atos que se voltem ao enriquecimento ilícito do próprio agente ou de terceiros ou que violem princípios da Administração Pública. Por outro lado, nos casos das condutas que tragam prejuízo

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ao erário, pelo menos a comprovação de um agir culposo do agente público se faz necessária4. Outro ponto que merece reflexão mais detalhada diz respeito à ocorrência da prescrição envolvendo os atos de improbidade administrativa. Com a finalidade de pacificar as relações sociais, como é típico desse instituto, faz-se necessário que os atos de improbidade administrativa sejam identificados, apurados e punidos dentro de um determinado lapso temporal, ao cabo do qual a administração não mais poderá sancionar o agente infrator. A Constituição Federal previu que a lei deveria estabelecer prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente que se encontre atuando em nome da Administração Pública, ainda que não seja servidor e não esteja vinculado a ela mediante relação de natureza permanente (CF, art. 37, § 5º). Esses prazos foram devidamente estabelecidos no artigo 23 da LIA, cuja redação é a seguinte: Art. 23. As ações destinadas a levar a efeito as sanções previstas nesta lei podem ser propostas: I – até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança; II – dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego.

Mas, a parte final do § 5º, do artigo 37, da Constituição Federal, ao ressalvar da estipulação dos prazos prescricionais as respectivas ações de ressarcimento ao erário, trouxe acesa discussão a respeito da intenção do dispositivo. Isso porque, a partir de uma análise literal de sua redação, parece evidente que o objetivo do Constituinte foi, de fato, tornar imprescritíveis as respectivas demandas voltadas ao ressarcimento ao erário. Assim, ainda que tenha decorrido o prazo prescricional para aplicação de outras sanções, uma vez constatada a prática de um ato 4

AgRg no REsp 1.500.812/SE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques.

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lesivo ao erário, a qualquer tempo o responsável por ele poderá vir a ser demandado, a fim de arcar com os prejuízos a que deu causa. Trata-se de medida bastante salutar, uma vez que o agente que causa prejuízo ao erário, ainda que não se beneficie direta ou indiretamente do seu ato, prejudica a coletividade da qual ele próprio faz parte, não sendo aceitável, dentro da cultura de rompimento com o patrimonialismo privado que sempre infectou a Administração Pública no Brasil, possibilitar que a lesão aos cofres públicos permaneça sem a devida reparação, ainda que, pelo tempo decorrido, não mais seja possível a aplicação de outras sanções voltadas ao agente público desonesto ou omisso. Esse entendimento acabou se consolidando na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que admite o prosseguimento das demandas que tenham como objeto o pedido de ressarcimento dos danos causados ao erário, ainda que estejam prescritas as demais sanções passíveis de aplicação ao infrator5. O Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou de forma definitiva a respeito do tema. No entanto, a posição final da Corte, inclusive com repercussão geral reconhecida, é aguardada nos autos do Recurso Extraordinário nº 669.069, atualmente sob a relatoria do Ministro Teori Zavaski. Outro ponto que tem suscitado debates no tocante à aplicação da LIA se refere à sua aplicação aos agentes políticos, argumentando os que se opõem a essa possibilidade que a responsabilização administrativa dessa categoria de servidores públicos se encontra disciplinada em legislação específica. Agentes políticos, na definição de Mello (2009, p. 246), [...] são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares

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REsp 1.289.609/DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves.

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imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores.

No mesmo sentido, se posiciona Di Pietro (2004, p. 432), quando defende que a “função política implica em uma atividade de ordem superior referida à direção suprema e geral do Estado em seu conjunto e em sua unidade”. Já Lopes (1997, p. 222) defende que os ocupantes de cargos vitalícios, como integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, também são considerados agentes políticos, embora não sejam responsáveis pela condução dos interesses superiores da Administração Pública. A Constituição Federal, por sua vez, considerou como agentes políticos todos aqueles a quem foi conferida prerrogativa de foro para fins de julgamento das demandas penais, o que engloba, portanto, os integrantes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, assim como os membros do Ministério Público nos três segmentos da federação, abarcando, portanto, a União, os estados e os municípios. Se a Constituição conferiu a tais agentes a prerrogativa de foro em função da atividade desempenhada por eles, é evidente que os considerou como integrantes de um segmento diferenciado na categoria dos servidores públicos, razão pela qual reputou necessário assegurar um maior acautelamento no que se refere ao processamento de demandas penais em desfavor deles. Assentado o conceito de agente político, faz-se necessário avaliar se eles se submetem ou não aos ditames da Lei de Improbidade Administrativa. Ao se analisar o texto da LIA, não se percebe qualquer intenção do legislador em eximir do alcance desse diploma legal os denominados agentes políticos. São eles que deveriam ser os principais destinatários dos mecanismos de responsabilização por improbidade administrativa, uma vez que são os responsáveis diretos e imediatos pela condução das políticas de governo e direção superior da Administração Pública.

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Resguardar os agentes políticos do alcance da responsabilização por improbidade administrativa parece ser um subterfúgio de quem almeja transformar em mecanismo ineficiente os instrumentos corretivos e moralizadores presentes na LIA, haja vista que, uma vez circunscrita a aplicabilidade dela aos segmentos subalternos da Administração, será criando um nefasto mecanismo de imunidade voltado a proteção dos maiores responsáveis pelas grandes lesões a que o erário público é submetido. A jurisprudência, depois de alguma relutância, parece haver compreendido que os agentes políticos não somente se submetem aos instrumentos de controle da gestão pública previstos na LIA, como também devem ser vistos como os principais destinatários dela. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, possui entendimento jurisprudencial consolidado no sentido de que, ressalvados os atos de improbidade administrativa praticados pelo Presidente da República e pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, que responderão por eles perante o Senado Federal, todos os demais agentes políticos se encontram submetidos aos tentáculos da Lei de Improbidade Administrativa6. Esse ainda não parece ser o caminho mais acertado. Quando se analisa o artigo 37, §§ 4º e 5º da Constituição Federal, a impressão que se tem é que a vontade do Constituinte foi submeter qualquer agente público, seja ele político ou não, aos mecanismos de responsabilização por improbidade administrativa, independente do cargo ocupado. Além disso, quanto mais elevada a posição ocupada pelo agente dentro da estrutura hierárquica da Administração Pública, maior deveria ser o seu âmbito de exposição a sanções por eventuais atos ímprobos que vier a praticar. Assim, parece ser inconstitucional essa exclusão do Presidente da República e dos ministros do Supremo Tribunal Federal da incidência das sanções previstas na LIA, haja vista que o próprio Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento no sentido de que os agentes políticos municipais se encontram submetidos à Lei

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REsp 1.205.562, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho.

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de Improbidade Administrativa, sem prejuízo da responsabilização política e criminal estabelecida no Decreto-Lei nº 201/19677. Logo, se para os agentes municipais se aplica esse raciocínio, não se enxerga nenhum argumento consistente capaz de isentar o Presidente da República e os ministros do Supremo Tribunal Federal da incidência da LIA, a não ser uma tentativa de tornar determinados cargos públicos, ainda que importantes, equiparáveis a uma posição régia típica de uma monarquia, mas incompatível com o verdadeiro sentimento republicano que parece ainda não haver aflorado plenamente no Brasil, pois se continua a cultivar tantas “excelências” nesses trópicos, que parece que a figura imperial ainda teima em assombrar a República Brasileira. Portanto, considera-se inconstitucional as tentativas de eximir determinadas autoridades do âmbito de aplicação da LIA, bem como o estabelecimento de prerrogativa de foro para o julgamento de agentes acusados de improbidade administrativa, uma vez que esse malsinado mecanismo – que já deveria ter sido extirpado do nosso ordenamento jurídico – foi previsto na Constituição Federal apenas para questões penais, o que não abarca, por óbvio, as sanções de natureza civil e administrativa previstas na LIA. É hora, portanto, de fazer alvorecer no Brasil uma verdadeira república, sem privilégios, sem excelências, sem culto à personalidade. Um ambiente no qual cada agente, desde o presidente da república até o mais subalterno dos agentes públicos, veja-se apenas como um servidor da coletividade. É preciso combater todos aqueles que enxergam o poder público apenas como um meio de atender aos seus anseios ou como forma de inflar egos de quem sente uma doentia vontade de ser chamado ou reconhecido como autoridade. Para estes, além de demonstrarem não se encontrar em condições de atuar no serviço público de um país republicano, a busca de um psiquiatra talvez fosse uma recomendação adequada. Dessa forma, apenas com a submissão de todos os agentes públicos aos instrumentos de controle previstos na Lei de Improbidade 7

AgRg no REsp 1.425.191, Rel. Min. Mauro Campbell Marques.

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Administrativa é que, efetivamente, será proporcionado o ambiente de moralização gerencial almejado pelo Constituinte. Do contrário, o patrimonialismo e a apropriação privada do que pertence à coletividade continuarão sendo um mau a assombrar a nossa República.

4 Conclusão A Lei nº 8.429/92, também conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, é um dos mais importantes instrumentos normativos de controle da Administração Pública editados após a promulgação da Constituição Federal de 1988. No entanto, para que haja êxito na mudança do paradigma de complacência com a utilização privada da coisa pública que vem sendo uma constante no Brasil desde os tempos coloniais, é fundamental que nenhum agente público seja subtraído do âmbito de incidência das sanções previstas no diploma legal em referência. Restringir a abrangência da Lei de Improbidade Administrativa ou considerar imunes a ela alguns agentes públicos, em especial aqueles ocupantes dos mais elevados postos na Administração, não tem amparo constitucional e representa, na verdade, apenas um reflexo da cultura de privilégios que insiste em assombrar os meandros da República Brasileira. Parece que a visão monarquista, de considerar determinados indivíduos como mais dignos ou importantes que os demais não foi destronada no Brasil juntamente com a Família Imperial. Assim, entende-se que a Lei de Improbidade Administrativa é um instrumento normativo essencial para a proteção da Administração Pública, cuja funcionalidade, no entanto, depende da submissão de todos os agentes públicos, sem exclusão, às suas prescrições, não se justificando qualquer tentativa de imunização, uma vez que, quanto mais elevada a posição ocupada na hierarquia da Administração Pública, mais reprovável se torna um eventual ato de improbidade praticado por um servidor público.

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Referências BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 574.500/PA. Relator: Ministro Humberto Martins. Órgão julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 02/06/2015. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça de 10/06/2015. ______. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.500.812/SE. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Órgão julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 21/05/2015. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça de 28/05/2015. ______. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.425.191/CE. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Órgão julgador: Segunda Turma. Data do julgamento: 10/03/2015. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça de 16/03/2015. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.205.562/ RS. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Órgão julgador: Primeira Turma. Data do julgamento: 14/02/2012. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça de 17/02/2012. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.289.609/ DF. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Órgão julgador: Primeira Seção. Data do julgamento: 12/11/2014. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça de 02/02/2015. ______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 669.069. Relator: Ministro Teori Zavaski. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Data do julgamento: 02/08/2013. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico nº 166/2013. Data de divulgação: 23/08/2013. Data de publicação: 26/08/2013.

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CORDEIRO, Alexandre Delduque. O princípio da moralidade administrativa no direito brasileiro: uma abordagem segundo as transformações da teoria da constituição. In: OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (org.). Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a Agustín Gordilho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 1-24. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo. 6. Ed. rev. e ampl. Belo Horizonte; Del Rey, 2007. FERNANDES, Flávio Sátiro. Improbidade administrativa. Revista de Informação Legislativa, nº 136, out./dez. 1997, p. 101-108. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/296/r136-09.pdf?sequence=4> Acesso: 14 set. 2015. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 56. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. MADEIRA, José Maria Pinheiro. Administração pública. 10. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009.

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A NOVA DIMENSÃO DA LEGALIDADE EM FACE DA ORDEM ADMINISTRATIVA INTERNACIONAL Guilherme Fabiano Julien de Rezende Juiz Federal da 1ª Turma Recursal da Subseção Judiciária de Juiz de Fora/MG. Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa/PT na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas.

Resumo

Abstract

Este artigo aborda a questão da nova perspectiva legal na consideração de vários sistemas legais. O estabelecimento do Estado de Direito na passagem do absolutismo para o Estado Liberal foi determinante na mudança de concepção até então existente. O funcionamento da União Europeia tem sido um passo importante na mudança de paradigma. Nesse sentido o papel da jurisprudência se apresenta fundamental. A positivação dos princípios que servem de fonte para o direito administrativo e o papel construtivo da jurisprudência tem contribuído para nova abordagem da legalidade que ganha dimensão global à medida que os Estados se aglutinam em organizações internacionais de integração.

This article aims about the new law perspective to consider in several law systems. The rule of law establishing the passage of absolutism to the liberal state was decisive in changing conception until then existing. The functioning of the European Union has been an important step in the paradigm shift. In this sense the role of jurisprudence appears fundamental. The transformation of the principles into legality which serve as source for Administrative Law and the constructive role of jurisprudence has contributed to a new approach to legality winning overall size as the United coalesce into international integration organizations.

Palavras-chave: Direito Administrativo – Dimensão da legalidade – Limitação da discricionariedade – Decisões internacionais

Keywords: Administrative Law – Dimension of legality – Discretionary limitation – International decisions

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1 Introdução Num primeiro momento, na fase pré-constitucional1, a legalidade era extremamente mitigada, na medida em que o poder estava todo concentrado nas mãos do monarca que inclusive detinha a denominada prerrogativa régia, podendo mudar o direito ao seu talante sem qualquer tipo de submissão a uma instituição estatal. Já no Estado liberal, o princípio da legalidade surge como elemento essencial ao seu desenvolvimento, tendo uma aplicação muito localizada, apenas quanto aos aspectos de segurança e propriedade, próprios de um tipo de incidência estatal agressiva. Ao mencionar o Estado liberal, há de se remeter à Revolução Francesa de 1789 que consagrou o liberalismo em contraposição ao que se praticava até então que era o absolutismo. PAULO BONAVIDES destaca que é justamente do conflito entre essas posições é que surge, pela primeira vez, a noção de Estado de Direito2. Como fruto de uma afirmação do Estado de Direito, busca-se dar legitimidade ao parlamento em detrimento da legitimidade do rei, já que ele era detentor da citada prerrogativa3 e, agora, a lei passa a ter uma autonomia advinda do parlamento, o qual era composto por representantes eleitos. A noção de Estado de Direito foi ampliada no que tange a sua aplicação no Estado Social e na formatação do Estado da infraestrutura, isso em razão de seu maior desenvolvimento. Antes, porém, nesse contexto da construção da ideia de Estado de Direito, interessante anotar duas observações pertinentes feitas por ROUSSEAU4. SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado. Direito administrativo geral. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2006. t. I. 2 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros. 2007, p. 41. 3 CAUPERS, João. Introdução ao Direito Administrativo. 9. ed. Lisboa. 2007, p. 49 “(...) para os liberais, o primado da lei sobre a administração era um corolário da superioridade da legitimidade parlamentar, assente no sufrágio, sobre a legitimidade do rei, de carácter dinástico”. 4 ROUSSEAU, Jean-Jacques . O contrato social. 5. ed. Portugal: Publicações EuropaAmérica, 2003. 1

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A primeira, de que “o mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever”. A segunda, de que “o homem não tem autoridade natural sobre o seu semelhante, e dado que a força não produz nenhum direito, restam então as convenções como base de qualquer autoridade legítima entre os homens”. Infere-se de tais assertivas, conquanto seja uma visão de toque realista, a vertente autoritária do discurso de ROUSSEAU, já que estabelece um caminho quase natural ao reafirmar a força dos mais fortes mediante convenções elaboradas pelos próprios destinatários por meio de seus representantes. Conforme enfatizado, tenta-se minorar o efeito ostensivo de tal pretensão, garantindo alguns direitos, mas, sem dúvida, são criados mecanismos de manutenção da ordem e execução efetiva das normas editadas, ou seja, instituindo o dever de obediência, tudo em prol de um Estado de Direito que encontra sua força motriz na legalidade. GARCÍA DE ENTERRÍA sublinha que a tese apresentada por ROSSEAU – da vontade geral – se constituiu na base da concepção do princípio da legalidade e, conseqüentemente, da construção do Estado de Direito5. A propósito das assertivas formuladas por ROUSSEAU, de cunho evidentemente autoritário, VASCO PEREIRA DA SILVA

ENTERRÍA, Eduardo García. Revolución Francesa y Admnistración Contemporánea. 4. ed. Reimpresión. Thomson Civitas, 2005, p. 23: “Sobre la tesis de Rosseau, en efecto, va a montarse todo el moderno concepto de la Ley y su papel central en la teoría del Estado. La única possibilidad de ‘rendre legitime’ el encadenamiento del hombre, supuesto su nascimiento libre, es que la autoridad pública resida en la comunidad entera, ‘le souverain n’étant formé que des particuliers qui la composent’. Sobre la base del pacto social, el soberano actúa la ‘volonté generále’ del cuerpo colectivo, y esta nota de generalidad es predicable no sólo por razón de que tal voluntad actúe como órgano del conjunto, sino también, y específicamente por el carácter general de sus determinaciones, que justamente lo que resuelve el problema de la legitimidad, pues, en efecto, obedeciendo a la voluntad general no hago más que obedecerme a mí mesmo, ‘seguir mi propio sentir vertido a lo general, el único sentir que me hace verdaderamente libre’. La voluntad general se manifesta, pues, en determinaciones generales; sólo la Ley general es legítima como expresión de la voluntad general, y en esta voluntad general se incardinan, en cuanto poder soberano, todas las funciones públicas”.

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o apresenta como um dos pais do Estado, aludindo a outros três – HOBES, LOCKE e MONSTESQUIEU –, sendo que ROUSSEAU estaria na representatividade masculina, em face de suas posições sobre a criação do Estado, baseada, sobretudo, em uma noção de pacto social6. LUIGI FERRAJOLI7 destaca com propriedade que “o Estado de Direito Moderno nasce com a forma do Estado Legislativo de Direito, no momento em que se afirma o princípio da legalidade como critério exclusivo de identificação do direito válido”. Apresenta, ainda, a crítica de que neste estágio o que importava era a fonte da produção da norma independente de ser justa ou não, isto como fruto do monopólio estatal de produção jurídica.

2 O primado da lei Consequência natural ao conceito de Estado de Direito, um elemento que se encontra jungido a essa questão é o primado da lei. Torna-se praticamente impossível falar naquele sem ter a ideia deste. Parece óbvio, na atual fase da Administração Pública em nível global, que o Poder Público se submete às normas jurídicas instituídas. Em sentido lato e diferente do que ocorria no Absolutismo, ele mesmo cria ou participa da elaboração dos atos normativos, utilizando-se, basicamente, de seus representantes eleitos, e depois se submete ao que criou, visto que as normas ganham autonomia, surtindo seus efeitos inclusive em relação à Administração. A submissão dela à legalidade funciona como método garantidor da segurança jurídica oriunda da relação estabelecida entre ela e o SILVA, Vasco Pereira da. Para o contencioso administrativo dos particulares (esboço de uma teoria subjectivista do recurso directo de anulação). 1ª edição. Coimbra: Almedina, 1997: “fala em Hobbes e Rosseau como pais do Estado, já que apresentam e teorizam o elemento democrático do estado, alicerçado em um pacto social, ou seja, o estado fundamenta-se na vontade das pessoas que o constituíam”. 7 FERRAJOLI, Luigi. Neoconstitucionalismo(s), pasado y fututo del estado de derecho. Editorial Trotta. Coordenação de Miguel Carbonell. Madri: 2003, p. 16 ss. 6

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particular que também é destinatário da norma estatal além de ter de se amoldar às regras infralegais erigidas que ela própria elabora. Esse é o ponto chave de distinção entre o absolutismo que imperava antes e o Estado de Direito. No primeiro, o poder régio, ou seja, aquele atribuído ao monarca dava-lhe o poder de alterar o direito conforme sua vontade. No segundo, inicia a ideia de uma estabilidade jurídica por força da autonomia das normas e consequente submissão do poder público aos seus preceitos, o que permite construir uma garantia mínima nas relações sociais e o desenvolvimento do princípio da segurança jurídica, tão importante nas democracias modernas. Com efeito, a Revolução Francesa de 1789 foi um marco divisor nessa questão trazendo conceitos de um Estado Liberal de Direito, mas partindo de uma noção de legalidade nunca vista anteriormente numa tendência clara em transferir para um corpo próprio de agentes públicos – o parlamento – a tarefa dantes exercida com vigor pelo rei. Diante da consolidação do Estado de Direito, ao se aludir à sujeição ao ordenamento jurídico não está a se dizer simplesmente às normas positivas, porquanto há princípios supralegais que norteiam a ação pública com força igual ou superior aos preceitos inseridos nos textos legais. Esse é ponto sensível no direito moderno, dentro das sociedades firmadas pela rule of Law. Com efeito, a nova dimensão da legalidade não se circunscreve apenas ao ordenamento jurídico positivo. Na esteira desse entendimento, registra-se a lição de PAULO OTERO, segundo o qual “o Direito não se esgota em actos jurídicos provenientes de fontes formais, simples produto da vontade do poder expressa em procedimentos previstos ou regulados pelas normas constitucionais, mostrando-se susceptível de também compreender normas que escapam totalmente a mecanismos formais de produção, daí se afirmar que a juridicidade nunca se pode esgotar na simples normatividade criada por uma autoricidade legitimada na Constituição formal: num Estado de juridicidade, o Direito, sem prejuízo de

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compreender também a ‘legalidade democrática’, enquanto expressão da vontade política das estruturas decisórias legitimadas à luz das normas constitucionais, não se reduz a tais fontes8”. E ao mencionar princípios que abarcam a noção de juridicidade, conquanto a tendência atual seja de positivá-los, mormente nos textos constitucionais, dificilmente trazem a definição legal, constituindo-se em verdadeiras normas abertas de conteúdo indeterminado, permitindo ao jurista o labor de interpretá-las conforme a situação concreta apresentada. Daí as construções pretorianas em várias áreas do direito. A noção de legalidade desenvolvida em solo nacional ficou restrita em sua concepção de largo uso aos atos emanados do poder legislativo, criando uma conexão insuperável com a atividade estatal setorizada e a dependência formal desse ramo de poder de maneira a levar às últimas consequências o conceito de tal princípio. No entanto, na seara Europeia, no campo do direito supranacional, o exemplo emblemático de quebra de tal paradigma, ou seja, da noção da legalidade estrita, seria o papel desenvolvido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no que tange à noção de primazia do direito comunitário sobre o direito dos Estados que compõe a União Europeia sem que haja norma expressa sobre isso nos tratados constitutivos de tais organizações internacionais. Nesse sentido também, a concepção de JEAN RIVERO9 segundo o qual “o direito, na verdade, tem outras fontes além da lei”, isso na justificativa sobre ação do poder executivo no campo do poder normativo nos clarões deixados pelo legislador, concluindo que onde a lei falta “a acção do Executivo está limitada por regras jurídicas”. 8 OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Lisboa: Almedina. 2003, p. 24. 9 RIVERO, Jean. Direito administrativo. Tradução de Doutor Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina 1981, p. 20: “(...) a evolução constitucional impõe, para a submissão da Administração ao direito, um fundamento mais largo que a concepção tradicional do primado do lei: a ideia de que não há segurança para o indivíduo quando a Administração não está vinculada por uma regra jurídica, seja qual for sua natureza”.

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Um paradigma importante e que calha à circunstância, no tocante ao tema em questão, é a disposição da Constituição da República Portuguesa que em seu artigo 3º expressa, claramente, a vontade do legislador constituinte em estabelecer e, sobretudo, reafirmar o primado do direito e da legalidade. No item 2 desse dispositivo, o Estado se subordina à Constituição e se funda na legalidade democrática. Institui, ainda, a necessidade de uma conformação dos atos legislativos e administrativos de qualquer grau às normas constitucionais. Isso como condição de validade destes. Em outras palavras, todo ato desconforme com a constituição há de ser considerado inconstitucional e, portanto, retirado materialmente do ordenamento jurídico (em sentido lato). A Constituição Brasileira declara formalmente o princípio da separação de poderes, que ganhou destaque no “Espírito das Leis” de MONTESQUIEU, consubstanciando no artigo 2º que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Proclama, no capítulo destinado à Administração Pública, entre outros, o princípio da legalidade10. Observa-se que, acertadamente, tanto no caso português quanto no brasileiro o que se institui é uma relação de coordenação entre os poderes constituídos do Estado sem qualquer possibilidade de subordinação entre eles, o que comprometeria seriamente o regime democrático. Todavia, a dificuldade é manifesta quanto aos limites da atuação desses, o que torna complexa a averiguação fática da inexistência de uma subordinação. A questão fica ainda mais complexa dentro do exercício do “sistema de freios e contrapesos”. Mais uma vez a lição de BONAVIDES11 ressai fundamental quando aborda a questão sob o prisma de ter sido esse elemento fundamental à correção da doutrina original da separação de poderes. Arts. 2º e 37 da Constituição da República Federativa do Brasil. BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 74: “O sistema de freios e contrapesos constitui a primeira correção essencial que se impôs ao referido princípio, como decorrência, até certo ponto empírica, da prática constitucional, bem que não estivesse ausente das reflexões de Montesquieu”. 10 11

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Portanto, no primado do direito, nomeadamente na tradição francesa, a legalidade surge como um dos princípios basilares do direito público que, associada à supremacia do interesse público sobre o privado12, forma o alicerce de toda a edificação traduzida na atuação estatal. Destaca, também, FERRAJOLI13 que o Estado Legislativo de Direito, o qual tem sua marca característica na afirmação do princípio da legalidade como corolário do monopólio estatal da produção jurídica, evolui para o Estado Constitucional de Direito em que se subordina a própria legalidade às Constituições rígidas. Assim, as leis serão consideradas válidas, ainda que advindas do Estado, somente se conformadas com a Constituição. Altera-se, portanto, o papel da jurisdição, que não é só o de aplicar a lei porque é lei, mas se for constitucionalmente válida. Cabe salientar que, sobretudo nas democracias consolidadas, a explosão em âmbito mundial dos direitos humanos veio a colocar um tempero importante na visão tradicional da prevalência do interesse público sobre o particular. Portanto, em determinadas áreas, o sacrifício do interesse individual não será automático como dantes colocada a questão. Cita-se, como exemplo, a Human Rights Act 1998 no Reino Unido.

Para ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 5. ed. Sintra: Publicações Europa-América. 2003, p. 27: “(...) cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou diferente da vontade geral que tem como cidadão. O seu interesse particular pode falar-lhe de uma maneira completamente diferente do interesse comum; a sua existência absoluta e naturalmente independente pode faze-lo encarar o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda seria menos prejudicial aos outros do que o pagamento é oneroso para ele, e, olhando a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de razão porque não é um homem, gozaria dos direitos do cidadão sem querer cumprir os deveres do súbdito; injustiça cujo processo causaria a ruína do corpo político. Portanto, para que o pacto social não seja um formulário vão, contém tacitamente este compromisso, que por si só pode dar força aos outros: quem quer que recuse obedecer à vontade geral a isso será forçado a ser livre, visto que é essa a condição que, ao dar cada indivíduo à pátria, o livra de qualquer dependência pessoal”. 13 FERRAJOLI, Luigui. Garantismo (una discussión sobre derecho y democracia). Traducción de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta. 2006, p. 16-17. 12

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3 A influência das decisões internacionais no ordenamento jurídico-administrativo interno Desde o nascedouro do Direito Administrativo em França, em que a jurisprudência praticamente fez surgir um novo ramo do direito, tendo como importante acontecimento o caso Agnès Blanco que desafiou o célebre arrêt do Conselho de Estado de 8 de fevereiro de 1873 em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado, a situação não se apresenta tão diversa do cenário atual, mormente em face da dinâmica que envolve o Direito Administrativo. Nesse sentido, vale destacar a posição de JÜRGEN SCHWARZE14 na esteira de ser característica do desenvolvimento dos sistemas nacionais de Direito Administrativo, ou seja, a influência que sobre este é exercido, o fato de que no âmbito da Comunidade Europeia, tal ramo se expandiu primariamente através das decisões judiciais oriundas do Tribunal de Justiça Europeu. Essa questão, de certa forma, encontra fundamento jurídico-histórico no papel desempenhado pelo Conselho de Estado Francês, que em um primeiro momento em sua vertente de atuação no campo consultivo se impôs pelos posicionamentos de seus membros cuja razoabilidade da atuação resultou na conquista de espaço no cenário jurídico, gerando inevitavelmente a passagem da justiça reservada para a justiça delegada.

4 A convergência das normas administrativas entre os Estados O direito administrativo apresenta-se como ramo do direito público porquanto suas normas são essencialmente públicas. A omissão do termo interno é proposital, porquanto, como se pode 14 Vide SCHWARZE, Jürgen. European Administrative Law. Office Official Publications of The European Communities. Sweet and Maxwell, 1992.

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aquilatar, na sistemática atual, com o direito da integração em vigor, em que vários países soberanos se agrupam para formar blocos importantes no cenário global, surgem, inevitavelmente, normas de conteúdo e alcance transnacional, ultrapassando as fronteiras do direito interno, visto como são normas que acabam por ter aplicação plural. Poderia se vislumbrar a existência de um direito administrativo global. Essa assertiva torna-se mais forte à medida que cresce a integração no cenário internacional com a criação de blocos econômicos. Portanto, a instituição de tratados internacionais, dependendo do tipo de integração, pode gerar a consequência de transformação do ordenamento jurídico interno, ao incorporar normas comunitárias, o que se denomina efeito direto, condicionada, é claro, à aceitação pelo órgão competente. É a situação atual da União Europeia. Mesmo quando se trata de norma que necessite de transposição para o direito interno, a argumentação de que tais preceitos só ganham contornos viáveis depois dessa atitude positiva pelo Estado e que, portanto, perderiam seu caráter transnacional, não teria validade como argumento jurídico-teórico, já que, repita-se, ao se instituir uma união de Estados soberanos há presunção de boa-fé de que as normas votadas entre seus membros serão acatadas internamente, porquanto devem expressar a vontade das soberanias envolvidas no pacto, uma vez que houve participação direta e ativa na elaboração do diploma. Isso é facilmente detectado no teor do artigo 8º, itens 3 e 4 da Constituição Portuguesa quando expressamente declaram que as normas de órgãos componentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, o mesmo valendo quanto às disposições que regem os tratados da União Europeia.

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Aliás, WOLFF/BACHOF/STOBER15, ao discorrerem sobre o caráter vinculativo do direito comunitário, analisam bem a questão ao afirmarem que no interesse da capacidade de funcionamento da Comunidade, a Administração alemã está vinculada de modo diferenciado a estas e outras normas, citando o Tratado da União Europeia, fazendo referência ao “efeito de vinculação”. Nota-se que se está diante de uma nova visão que supera, de certa forma, a concepção mais tradicional de OTTO MAYER, segundo o qual o direito administrativo, no sentido literal do termo, se trata das relações entre o Estado e o administrado de forma isolada, ou seja, tendo um particular apenas ou contra uma coletividade deles, advertindo que nem tudo que regula estas relações é direito administrativo16. Ressalta-se na linguagem mais moderna da doutrina Europeia que os administrados são tratados apenas como particulares, o que, de fato, soa melhor e se coaduna com a função estatal de administrar o interesse da coletividade. Dessa forma, o Estado não administra propriamente as pessoas senão estabelece normas a serem observadas sem, contudo, fazê-las objeto de atuação. Na atualidade, em se tratando de Direito Administrativo do Estado-Membro da União Europeia, há influência direta do Direito Comunitário visto como ganha contornos variados e, muitas vezes, diferentes do que é praticado internamente. Isto de tal forma que, dessa simbiose, surge o Direito Administrativo Europeu, com 15 Wolff/Bachof/Stober. Tradução de António Francisco de Sousa. Direito administrativo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, v. 1, p. 181: “o primado da aplicação fundamenta-se directamente no art. 189 TUE; art. 249 TUE, nova versão. Este artigo determina que os regulamentos são vinculativos em todas as suas partes e vigoram de forma geral e directa em todos os Estados-membros. Portanto, os regulamentos opõem-se às directivas, que apenas vinculam a administração após uma transformação nacional. No entanto, verificando-se determinados pressupostos, as directivas também podem ter efeito vinculativo directo (o chamado efeito directo ou efeito impositivo). Será o que se verifica quando um não exerce totalmente ou atempadamente o seu dever de conversão, caso em que a directiva não necessita de outros actos de execução e produz directamente os efeitos favoráveis aos cidadãos”. 16 Otto Mayer. Derecho Administrativo Alemán. Parte general. Buenos Aires: Depalma, 1982, t. I, p. 17.

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traços próprios, numa tendência de unificação dos procedimentos a serem adotados, mormente no cumprimento das normas advindas da European Union. Surge, na expressão de VASCO PEREIRA DA SILVA, um Direito Europeu Concretizado17. Todavia, há outro elemento complicador na questão vertente quando se trata de encarar o princípio da legalidade numa ótica moderna e, sobretudo, quando se fala de um direito administrativo global em que normas de diferentes fontes afetam o direito interno como é o caso daquelas emanadas pela União Europeia. Nessa temática, calha à circunstância a citação de VASCO PEREIRA DA SILVA do pensamento de expresso por JÜERGEN SCHWARZE ao dizer que “os direitos administrativos dos Estados membros da União Europeia já não são determinados unicamente a nível nacional, mas estão também sujeitos a influência europeia, sob múltiplas formas. Esta tendência inter alia manifesta-se precisamente no facto de os tribunais administrativos serem crescentemente chamados a lidar com questões de Direito Europeu18”.

5 O primado jurisprudencial e a experiência europeia A propósito do tema, incumbe registrar que o princípio do primado do direito comunitário foi confirmado por uma decisão histórica do Tribunal de Justiça no acórdão de 15 de julho de 1964, Flaminio Costa contra Ente Nationale per l’Energia Elettrica (Costa contra Enel). Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que “diversamente dos tratados internacionais ordinários, o Tratado CEE institui uma ordem jurídica própria que é integrada no sistema jurídico dos Estados-Membros a partir da entrada em vigor do Tratado e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais nacionais”. Invocando os termos e o espírito Sobre essa questão vide SILVA, Vasco Pereira da. O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise (ensaios sobre as acções no novo procedimento administrativo). Lisboa: Almedina. 2005. 18 Idem, p. 105. 17

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do Tratado, o Tribunal considera que o efeito do primado do direito comunitário limita a margem de manobra dos Estados, impedindo-os de produzir legislação que entre em contradição com a das instituições europeias. Os Estados-Membros também não podem apoiar-se num direito nacional existente anterior à adoção de um texto comunitário, em caso de contradição entre um e o outro. Os Estados-Membros não podem, além disso, invocar a regra da reciprocidade por força da qual um deles pode eximir-se às suas obrigações comunitárias enquanto os outros as não tiverem cumprido. Em outras palavras, os Estados-Membros devem respeitar a conformidade com o direito comunitário porquanto este tem força vinculativa. No acórdão Costa, o Tribunal de Justiça conclui, a este propósito, que o princípio do primado “tem por corolário a impossibilidade, para os Estados, de fazerem prevalecer, sobre uma ordem jurídica por eles aceite numa base de reciprocidade, uma medida unilateral”. A experiência supra não se esgota no âmbito da União Europeia. No Brasil, a teor da influência norte-americana em aspectos relevantes do direito judicial, a jurisprudência tem obtido contornos diferenciados e, até mesmo, com prevalência sobre a letra fria da lei, já que se trata, em última análise, do direito interpretado. Surge a indagação corolário da afirmação supra: estaria a jurisprudência no rol da legalidade no sentido lato em face da nova dimensão conceitual de juridicidade? No caso brasileiro, poder-se-ia questionar: as súmulas vinculativas oriundas do Supremo Tribunal Federal teriam força normativa e, portanto, estariam enquadradas no bloco de legalidade? Com a célebre reforma do judiciário, consubstanciada na EC 45/2004 foi acrescentado o artigo 103-A19 19 Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). Vide Lei nº 11.417/2006 que regulamentou esse artigo da Constituição Federal.

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à Constituição Federal o qual criou a possibilidade de edição de tais súmulas com efeito vinculante para todos os outros órgãos do Poder Judicário e, também, para a Administração Pública direta e indireta em todos os níveis da federação.

6 O comportamento da administração pública em face da nova ordem global Na sequência da abordagem, quando se adentra o campo de um direito administrativo transnacional o quadro não é diverso, isso porquanto, à medida que a integração passa não ser interessante para os membros mais poderosos todo o resto fica comprometido. A prevalecer tal posicionamento comprometer-se-ia a própria sobrevivência do bloco. Todavia, o movimento moderno tem sido no sentido de se buscar a promoção da integração dos países de tal maneira que haja um crescimento global que favoreça a todos. Para tanto, há sempre o desenvolvimento de um sistema complexo de normas que traga segurança jurídica aos membros da organização, pautando-se pelo estabelecimento de direitos e deveres mútuos a sustentar o arcabouço jurídico-político institucional. Se houver rompimento desta ordem, o todo fica comprometido. É, portanto, um grande exercício de entrega de parcela da soberania em prol de algo que reverta em desenvolvimento e melhora na qualidade de vida dos cidadãos componentes das nações envolvidas no acordo. Isto, é claro, em um tipo de integração mais avançada, como nos mercados comuns e naquelas de união econômica e monetária, como é o caso da Europeia. Fala-se em entrega de parcela da soberania porquanto há subsunção ao direito comunitário e, conforme já explicitado, tendo normas que incorporam diretamente no ordenamento jurídico positivo nacional destes como fruto do que se denomina de efeito direto. Inclusive, havendo primazia das normas comunitárias sobre as nacionais.

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A subordinação da Administração Pública à legalidade se impõe de tal forma que não se constitui apenas um limite, mas o caminho a percorrer. Contudo, a incidência desta legalidade e o que constitui esta legalidade no panorama do Direito Administrativo moderno é que tem se apresentado de forma diferenciada da concepção tradicional em que a limitação normativa se restringia ao Estado. Nesse sentido, Vasco Pereira da Silva20 desenvolve o argumento de que assim, não se há mais falar em uma necessária ligação do Direito Administrativo ao Estado, isto como modelo tradicional desse ramo do direito, uma vez que a realização das tarefas de conteúdo materialmente administrativa é efetuada por diferentes sujeitos, tanto de personalidade pública quanto privada, extrapolando as fronteiras estatais, dando ensejo a falar em um Direito Administrativo Global. Citando Mario Chitti, o autor menciona que o Direito Administrativo transformou-se em um direito mestiço. O que se pode concluir é que a noção de legalidade, hoje, vai além das normas produzidas no âmbito interno do Estado, visto que há uma série de normativas a serem aplicáveis que são de produção externa, tendo influência direta nas relações administrativas internas a que a Administração Pública está, também, sujeita.

7 A limitação da discricionariedade administrativa no contexto do direito administrativo global A tendência moderna do tratamento da legalidade nessa visão mais amplificada e extensiva, com a positivação dos princípios que eram invocados apenas como fontes anteriormente e não lei em sentido estrito, impactou de forma exponencial a atuação discricionária administrativa. Portanto, ora a lei regula os atos da Administração em todos os seus elementos, ora deixa ao administrador um

20 SILVA, Vasco Pereira da. Viagem pela Europa das Formas de Actuação Administrativa. Revista Justiça Administrativa, nº 58, julho/agosto 2006, Lisboa, p. 61.

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campo de liberdade maior, já que na função administrativa surgem situações que, muitas vezes, não são previstas pelo legislador. Calha à ocasião mencionar a norma delineada no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil ao contemplar que nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do judiciário. A “soberania” da discricionariedade passou a ser questionada no âmbito judicial de forma mais ostensiva e analisada mais profundamente por vias alternativas como a moralidade administrativa. Sabe-se que as vias alternativas de controle judicial da discricionariedade não passam apenas pelo princípio da moralidade, tendo como fontes principais a proporcionalidade, a razoabilidade que, no caso brasileiro, conquanto não estejam elevados à categoria constitucional de forma expressa como o primeiro, pelo menos em nível federal, tais princípios estão cobertos pelo manto da legalidade mediante a legislação ordinária, mais especificamente pela nova Lei do Processo Administrativo – Lei nº 9.784/99 – que estabeleceu normas básicas nessa matéria no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos particulares e ao melhor cumprimento dos fins da Administração, registrando, também, que seus preceitos se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa. Em seu artigo 2º define que a Administração Pública obedece aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência, além de outros não especificados. No parágrafo único desse dispositivo dispõe sobre critérios nos processos administrativos, dentre eles, atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.

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Como corolário dessas normas legais pode-se inferir que a discricionariedade não é algo ilimitado. O que ocorre é um maior ou menor grau de liberdade atribuído ao executor do preceito legal, visão essa que foi se solidificando ao longo do desenvolvimento do Estado de Direito, mormente após os movimentos revolucionários fundados nos ideais de liberdade. A tendência atual é de um direcionamento mais ajustado ao preceito legal do ato administrativo, sem tolher a atividade administrativa, mas sem deixá-la livre de controle por parte da sociedade, principalmente dos órgãos estatais destinados a essa tarefa. Nesse sentido, o novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) português traz em seu bojo uma série de inovações que visam, sobretudo, disciplinar a atuação estatal em vários matizes da atividade administrativa. Merece destaque, nesse momento, a contemplação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, com ênfase neste último, ao dispor o item 2 do artigo 5º do referido Código sobre a adequação dos meios utilizados pela Administração em suas decisões com a proporção devida a atingir a consecução dos seus atos. Nessa matéria, os autores do Código de Procedimento Administrativo Anotado português21 discorrem com propriedade sobre o assunto, exaltando que ao submeter à Administração Pública ao princípio da proporcionalidade permite aos tribunais penetrar no âmago das decisões administrativas, imiscuindo-se na esfera dos critérios utilizados por ela, expressando-se sobre a correção nesta atuação, o que se revela de grande importância no domínio da discricionariedade. Pois bem, detecta-se uma intenção clara do legislador em ampliar o controle dessa tarefa, mas, sobretudo, de permitir a análise por um órgão imparcial da correção dos atos administrativos. 21 AMARAL, Diogo Freitas do et al. Código de procedimento administrativo anotado. 6. ed. Lisboa: Almedina, 2007, p. 42.

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Em um Estado de Direito essa deve ser uma regra substancial para o desenvolvimento adequado de uma Administração Pública pautada pelos critérios de justiça, equidade, moralidade e legalidade. Cabe salientar que historicamente nem sempre fluiu de maneira tranquila o controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. A resistência surgiu inicialmente quanto ao próprio controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA, ao redigir a introdução à edição brasileira da festejada obra de HANS KELSEN – Jurisdição Constitucional – faz uma abordagem interessante acerca do desenvolvimento do tema, registrando que no continente europeu a revolução burguesa, que trouxe a Constituição, não trouxe consigo o controle de constitucionalidade, que nos Estados Unidos – não nos esqueçamos – foi construção pretoriana. Não seria correto atribuir essa omissão unicamente à influência da tradição francesa, sabidamente refratária ao poder dos juízes. Na Europa ocidental, o modelo processual autoritário associado à monarquia absoluta obrigava desde muito os juízes, em caso de dúvida sobre a inteligência da lei, a suspender o processo e encaminhar consulta, sobre essa questão, a um órgão superior, preferentemente de natureza antes política que judicial22. Contata-se, pois, que a intromissão do poder judicial nos aspectos de legalidade e constitucionalidade dos atos administrativos e legislativos é algo visto ao longo da história como uma questão extremamente delicada e, sob certa ótica, invasiva. A luta sempre foi no sentido da manutenção dos atos praticados sem um controle efetivo de um órgão basicamente técnico. Como consequência desse pensamento, observa-se que a escolha dos juízes das instâncias superiores normalmente se faz por critério predominantemente político e não técnico somente. Esta, sem dúvida, é uma forma de controle prévio de uma atividade de alta relevância no contexto social moderno.

22 KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Tradução de Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes. 2003.

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8 Conclusões Algumas inferências importantes podem ser extraídas dessa análise. O fenômeno da europeização do Direito Administrativo deve ser considerado de alta relevância para a noção de uma nova dimensão da legalidade administrativa, porquanto os princípios apregoados direcionam para um fortalecimento do Estado Democrático de Direito e acabam por exercer influência em sistemas jurídicos que foram construídos segundo o modelo Europeu numa clara convergência de normas em âmbito global. Assim, a Administração Pública, não obstante suas especificidades, deixa de ter uma posição inflexível de supremacia sobre o particular, mas passa a se submeter a um controle mais efetivo pelo judiciário, seja mediante ramo especializado como ocorre em boa parte dos países europeus, seja pela justiça comum numa ótica mais ampla da juridicidade ao invés da legalidade estrita. A positivação de princípios tem por escopo dotar os agentes públicos responsáveis pelo controle da Administração de instrumentos adequados para que o interesse da coletividade seja preservado sem o sacrifício excessivo dos direitos e garantias individuais. Como corolário, há fortalecimento dos direitos fundamentais mediante o exercício pleno da jurisdição, sem que isso importe em supervalorização dos órgãos jurisdicionais, mas, ao contrário, impondo-lhes uma responsabilidade de escrever um capítulo inovador na história que certamente não ficará restrita apenas a algumas experiências de integração como a Europeia, mas contagiará outros continentes, influenciando vários ordenamentos jurídicos.

Referências AMARAL, Diogo Freitas do et al. Código de procedimento administrativo anotado. 6. ed. Lisboa: Almedina. 2007.

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A SEPARAÇÃO DOS PODERES E O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA: uma análise da independência do judiciário em face do CNJ Hebert Cornélio Pieter de Bruyn Júnior Juiz Federal titular da 6ª Turma Recursal de São Paulo. Graduado pela USP. Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP. Especialista em Direito Público (PUC/SP), em Direito Tributário (CEEU) e em Direito Aduaneiro (ESAF). Foi professor de Direito Financeiro

Resumo

Abstract

Tem este artigo o escopo de, com base na análise semântica e pragmática do Princípio da Separação dos Poderes, analisar os contornos da independência do Judiciário, em especial após o advento do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Narra-se o desenvolvimento dos constitucionalismos inglês, francês e americano a esse respeito, bem como a doutrina de Montesquieu e as razões que levaram ao estabelecimento de Conselhos de Magistratura na Europa. Em seguida, estabelecidas as diferenças entre essas razões e as adotadas no Brasil, discute-se se as competências outorgadas ao CNJ pela Emenda Constitucional n. 45/2004, em especial a disciplinar, ferem o citado princípio ou se, ao contrário, contribuem para o aperfeiçoamento e a legitimação desse Poder.

The purpose of this article is to analyze the judicial independence, based on the semantic and pragmatic analysis of the Principle of Separation of Powers, especially after the creation of the National Council of Justice – CNJ. The article shows the development of the English, French and American constitutionalism, as well the doctrine of Montesquieu and the reasons for the Judicial Councils in Europe and it studies the differences between these reasons and those that have taken place in Brazil. Lastly, it also discusses if the powers guaranteed to the CNJ by the Constitutional Amendment 45/2004 harm this principle or contribute to the improvement and the legitimacy of such Power.

Palavras-chave: Separação de Poderes – CNJ – Independência – Judiciário

Keywords: Separation of Powers – CNJ – Independence – Judiciary

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1 Introdução Um dos pilares do constitucionalismo moderno – princípio elementar para a conformação de qualquer Estado de Direito –, a primeira remissão que normalmente se faz, à simples alusão à “separação de poderes”, é à célebre teoria de Montesquieu, cravada em “O Espírito das Leis” (1748), na qual o filósofo preconiza, para a garantia da liberdade, a necessidade de uma divisão dos poderes do Estado, de modo que nenhum deles, pela concentração das prerrogativas existentes, tolha os direitos e as garantias dos cidadãos. Não sendo assim, por se deter apenas onde encontra limites, o detentor do Poder sempre tenderá a dele abusar em prejuízo do cidadão. A esse respeito, menciona: “Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder. (...) Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não há liberdade, porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado façam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não há liberdade se o poder de julgar não está separado do poder legislativo e do executivo. Se ele estivesse confundido com o poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se ele estiver confundido com o poder executivo, o juiz poderá ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo de principais, nobres ou povo, exercessem estes três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar as questões dos particulares.”1

A considerar, todavia, como afirmava Rousseau, ser o poder soberano uno e indivisível2, a “separação de poderes” não seria mais MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 31-32. 2 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 571. 1

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que uma divisão das funções do Estado em razão de determinados critérios materiais: enquanto ao Legislativo incumbiria a elaboração das leis – desde o século XVIII identificada com a vontade popular –, ao Executivo caberia apenas cuidar de sua execução, mediante a função de governo. Quanto ao papel do Judiciário, na doutrina de Montesquieu, seria meramente o de aplicar as leis, solucionando os conflitos concretos. Nessa tarefa, no entanto, o juiz limitar-se-ia a ser “a boca da lei”, dotado, à luz da ideologia liberal da época, não mais do que do poder de atender à finalidade última desta, projetada pelo consenso da maioria3. O conceito, porém, em sua linha pragmática, é bem mais complexo, estando longe de decorrer da geração espontânea da brilhante mente de um único autor. Igualmente, a configuração prática do instituto apresenta certa complexidade; por ser corriqueiro, em certas situações, ao analisarmos a efetividade do princípio, depararmo-nos com um contexto no qual o objeto de conhecimento não se mostra tão cristalino, por estar envolto em imbricadas construções que toldam a percepção do seu real significado. Ademais, é conveniente lembrar a assertiva de Zaffaroni, o qual, ao apontar funções “manifestas” e “latentes” nas instituições, respectivamente aquelas reconhecidas no discurso oficial e as efetivamente cumpridas, leva a concluir sobre a possibilidade de grande disparidade entre elas, capaz de tornar paradoxal a distância entre o que “se diz” e o que “se faz”4. Daí a importância da análise semântica do conceito, detectável a partir dos significados a ele atribuídos ao longo de sua evolução – sempre vinculados à sua finalidade –, e sua pragmática, isto é, a maneira pela qual ele tem sido aplicado. É o que procuraremos esmiuçar.

Só posteriormente o conceito de democracia passou a ser identificado, também, com a proteção dos direitos das minorias. 4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário. Tradução de Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 22. 3

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2 A evolução do conceito de “Separação dos Poderes” Como se sabe, ao escrever sua obra, no pleno efervescer do Iluminismo, defensor de maior liberdade do indivíduo, Montesquieu baseou-se na sua visão da prática constitucional britânica e, em particular, nos escritos de Locke, indicadores da pluralidade de poderes presentes naquele Estado – diversamente da maior concentração de poder praticado no Continente –, capaz de garantir maior liberdade e segurança aos cidadãos, comparada àquela existente em outras plagas. Bem antes disso, todavia, Aristóteles já apontava o perigo existente em atribuir-se a um único indivíduo o exercício do poder5, enquanto Marsílio de Pádua, no século XIV, distinguia o poder legislativo do poder executivo, vinculando-os à ideia de soberania popular6. Também Maquiavel, no século XVI, em sua obra “O Príncipe”, alude a três poderes distintos na França: o legislativo, o executivo (o rei) e um judiciário independente, cujo mérito era a capacidade de proteger os mais fracos dos poderosos, poupando o rei de incorrer no seu desagrado7. De outra parte, as ideias defendidas por Locke, no “Segundo Tratado dos Direitos Civis”, tampouco correspondiam apenas à defesa de uma ideologia; foram resultado de lenta evolução, que dera à Inglaterra uma “constituição”8 peculiar em face das demais vigentes no Continente. Favorecida por seu caráter insular (geográfica e ARISTÓTELES, A Política, Livro III, Cap. XI. Em “Defensor Pacis” (1324), conforme DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 190. Igualmente, JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 532-533. 7 DALLARI, op. cit., p. 191. 8 Utilizamo-nos da expressão “constituição”, aqui, apenas no sentido institucional, ou seja, como integrante do arcabouço institucional de uma nação. A constituição formal ou materialmente, como conhecemos, só surgiria, obviamente, muito depois, com o advento do movimento correspondente no final do século XVIII e, particularmente, após a promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787. 5 6

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culturalmente), desde cedo ela desenvolveu a noção da submissão de todos às leis. Com efeito, já Fortescue, em meados do séc. XV, apontava, na Inglaterra, a sujeição do rei às leis, diversamente do ocorrente na França, onde seus poderes eram plenos. A seu turno, no início do séc. XVII, durante o reinado de Elizabeth I e, depois, de Jaime I, Coke dissertava sobre a supremacia do common law9 – o qual, na visão de José Adércio Leite Sampaio, acentua a independência dos juízes –10, bem como, na esteira de Bracton, sobre a submissão dos juízes à lei (1608) e, na linha do Case of the Proclamations (1610), a impossibilidade de o rei alterar o common law11. Defendeu, ainda, caber ao Judiciário a definição de sua competência, e não ao rei12. Aproximadamente à mesma época, Hooker, pela primeira vez, asseverou a supremacia do Parlamento sobre o rei13. Pouco depois, em 1642, ao reconhecer a importância da vitaliciedade como garantia, a Corte considerou deverem os juízes permanecer em seus cargos “during good behavior” (a destituição só seria feita mediante processo, após decisão da maioria da Câmara dos Lordes e da Câmara dos Comuns, diante da prática de crime ou sério desvio de conduta), enquanto o Instrument of Govern, de Cromwell, distinguia a função do Lord protetor daquela do parlamento14. A isso, acresça-se o reconhecimento da imunidade judiciária civil e penal em face de erros (1674) e, com o Act of Settlement, ser a independência dos juízes um dos elementos da “rule of law” (1701)15. Havia, na realidade, como afirmado por John Aylmer, bispo de Londres à época, uma mescla de vários regimes, em que diferentes

ARAGÓN, Manuel. Constitución y Control del Poder. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1995, p. 18. 10 SAMPAIO, José Adércio Leite. O Conselho Nacional de Justiça e a Independência do Judiciário, p. 5. 11 SAMPAIO, José Adércio Leite. Op. cit.. 12 SAMPAIO, José Adércio Leite, Op. cit., p. 6. 13 JELLINEK, Georg. Op. cit., p. 533. 14 JELLINEK, Georg. Op. cit., p. 533. 15 SAMPAIO, José Adércio Leite, idem, p. 6. 9

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pessoas possuíam determinada autoridade; ou melhor, consoante se dessume dos ensinamentos de Manuel Aragón: cada autoridade possuía determinada parcela do poder, com frequência concorrente à de outro, e, se tinha o condão de criar superposições e, portanto, desencontros, tinha, também, o de evitar a concentração de poderes e propiciar o mútuo controle. Não se tratava de autêntica separação de competências, mas de uma concepção plural de poder, exercido de forma participativa. Só no século XVIII, todavia, essa composição mista de poder levaria a Constituição britânica a alcançar uma forma balanceada, com o equilíbrio dos poderes16. Curiosamente, porém, o Act of Settlement não foi estendido aos juízes das treze colônias norte-americanas, de forma que a própria Declaração de Independência apontava a sujeição dos juízes ao rei – uma das causas da tirania sobre os colonos (§ 3º)17. Certamente por isso, embebida em Montesquieu, a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, era expressa quanto à separação dos poderes entre executivo, legislativo e judiciário (§ 5º), enquanto a Constituição dos Estados Unidos da América foi cuidadosa ao instituir esse último poder, tarefa completada com o julgamento do caso Marbury v. Madison (1803), que não só fixou o judicial review, como, ainda, a possibilidade de os tribunais controlarem a atividade administrativa e a da maioria no poder18. A exigência da separação apareceria ainda, com ênfase, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada na França, em 1789, cujo artigo XVI assinala: “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”. Considerada, portanto, a antiguidade da discussão, a novidade em Montesquieu, como reporta Jellinek, não estaria tanto em diferenciar as funções do Estado, mas em explicitar a necessidade

ARAGÓN, Manuel. Op. cit., p. 18. SAMPAIO, José Adércio Leite, idem, p. 8. 18 SAMPAIO, José Adércio Leite, idem, p. 10. 16 17

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de serem elas exercidas por órgãos distintos entre si19, ainda que inter-relacionados. Esse exercício, preconizado, devia ser efetuado de forma harmônica. Embora à teoria da separação dos poderes seja ínsita a noção de controle do poder – este é o seu propósito –, ela não ensejava, por si, a existência de controles mútuos entre os poderes, ou seja, de “freios e contrapesos”. A limitação preconizada por Rousseau, que mais influenciou a França, baseava-se na garantia dos direitos fundamentais (limitação material), na divisão dos poderes (limitação funcional) e nas eleições (limitação temporal). Por ser a lei, no seu entendimento, produto da razão (e não da harmonização de interesses conflitantes), oriunda da vontade soberana do povo, só cabia fazer valer sua prevalência, a despeito de tudo o mais. Nesse quadro, portanto, não havia como sobrar espaço para a interpretação da lei pelos juízes, que apenas deviam aplicá-la. Por isso, na fase revolucionária, a Constituição francesa de 1791, como a do Ano III, apenas previu a divisão dos poderes, sem controles mútuos, enquanto a Jacobina (agosto de 1792) e a de 1793 chegaram a negar a divisão, ao preverem um regime dominado pela Assembleia, sem mecanismos eficazes de controle20. A verificação da necessidade de controles mútuos, embora passível de ser antevista à luz da prática britânica, só veio a ser mais bem explicitada por Hamilton, Madison e Jay, em “O Federalista” (XLVII), e pelas palavras de Madison dirigidas ao povo de Nova York, em 01/02/1788, quando afirmou que, salvo pudessem os “departamentos” (Poderes) controlar uns aos outros, “o grau de separação que o princípio requer, como indispensável a um governo livre, nunca poderá ser, na prática, convenientemente mantido”21. Posteriormente, isso restou explicitado pela Constituição norte-americana, na linha da afirmação de Kant, pela qual esses poderes, como “outras tantas pessoas morais”, “devem completar-se mutuamente e subordinar-se umas a outras”22. JELLINEK, op. cit., p. 534. ARAGÓN, Manuel, op. cit., p. 25-26. 21 MADISON, James. Federalista, n. 48. 22 JELLINEK, Georg, op. cit., p. 452. 19 20

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Tanto foi a ênfase dada pela Constituição norte-americana ao controle, que, segundo um dos seus mais autorizados intérpretes, “o mais poderoso dos freios no garantir as relações regulares entre o poder federal e os poderes dos Estados, e ainda entre os próprios ramos do poder federal, tem sido inquestionavelmente a Corte Suprema”23. Ao final, o que se nota é que, à luz dessas matrizes – a inglesa, a francesa e a norte-americana –, paulatinamente o princípio passou a ser albergado nas Constituições posteriores, ainda que com diferenças específicas, principalmente no tocante ao Judiciário, a cujo respeito, na prática, o conceito de autonomia tem sido variável.

3 A pragmática da separação dos poderes É comum ser afirmado que, ao aludir-se a “Poderes”, estar-se-ia, na verdade, a falar das diferentes funções ou missões (Bénoit) do Estado24, cuja classificação, ensina-o a teoria das classes, pode ser tão variada quanto os critérios utilizados para especificar suas distinções. Justamente por isso, deve-se concordar com Agustín Gordillo no sentido de que o essencial, para os propósitos da teoria da separação dos poderes, não é a divisão em órgãos, mas em funções25, pois é a partir da análise de sua natureza que podemos – e devemos – compreender, planejar e racionalizar a atividade dos órgãos. É patente não estar cada órgão (poder) do Estado a exercer, apenas, uma única função típica, mas sempre as três básicas: a administrativa (executiva – correspondente à de governo), a normativa e a julgadora. A diferença está, basicamente, no estabelecimento da função preponderante de cada um dos núcleos centrais de

23 Willoughby, The Supreme Court of the United States, p. 33, citado por LESSA, Pedro, Do Poder Judiciário. Ed. Fac-Similar. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 3-4. 24 BÉNOIT, Francis-Paul. Le Droit Administratif Français. Paris: Dalloz, 1968. 25 GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo, Ed. Macchi, 1974, t. I, p. 2.

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soberania (Poderes) e no âmbito de seu alcance e eficácia. Enquanto no Executivo prepondera a atividade executiva, isto é, a de governo, sendo acessórias a normativa (nesse plano, regulamentadora) e a julgadora (contenciosos administrativos), no Legislativo predomina a função atinente à elaboração de normas gerais e abstratas, embora não seja impossível a formulação de normas gerais e concretas ou, ainda, individuais e concretas26, sem prejuízo de atividades executivas (a administração do próprio órgão) e judicantes, como na hipótese de processos disciplinares ou, em plano constitucionalmente diverso, de impeachment. O Judiciário, por sua vez, não só exerce a função judiciária, dirimindo conflitos, como administra seus órgãos e exerce competência normativa dentro de sua esfera (elaboração de Regimentos Internos, constitucionalmente com status de lei, e de normas relativas à sua própria administração: Resoluções, Provimentos, Ordens de Serviço etc.)27. É impróprio afirmar, portanto, que o Executivo somente governa, o Legislativo só legisla e o Judiciário apenas julga conflitos. A diferença na atividade julgadora é que, enquanto no Judiciário ela se caracteriza pela imparcialidade do órgão julgador e pela inércia, pois somente age quando provocado, sendo sua decisão, ainda, definitiva (faz coisa julgada), nos demais Poderes essa atividade pode decorrer do impulso oficial. E, por mais autonomia que se confira ao julgador, o impulso, no geral, pertence ao quadro da pessoa interessada – situação suficiente para tornar discutível sua independência (em especial à falta das garantia de inamovibilidade) –, além de não possuir ele autonomia suficiente para balizar seus votos com base em argumentos de inconstitucionalidade, por dever ater-se unicamente à lei, estando

Por exemplo, na concessão de pensão especial (incondicionada) a determinado indivíduo ou seus descendentes imediatos. 27 Sem prejuízo de a decisão judicial, em si, ser ela própria uma norma jurídica: normalmente individual e concreta, para as lides em geral, eventualmente poderá ser geral e concreta nas ações coletivas julgadas procedentes, ou gerais e abstratas nos casos de controle de constitucionalidade. 26

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essa matéria reservada ao Judiciário, seja no exame difuso, seja no exame concentrado28. O fato de cada núcleo de Poder exercer não apenas uma função única, a típica, mas possuir também outras, decorre, naturalmente, da própria ideia de separação dos poderes, no quanto preconiza, para cada um, autonomia no trato de suas funções precípuas. Para uma independência real, é imprescindível tenham os Poderes capacidade de autorregular-se e autodisciplinar-se; sem isso, é extremamente questionável caracterizá-los como “Poderes”. Somente exercitando essas diferentes funções podem eles almejar efetiva autonomia. Sem isso, abre-se margem para que um Poder prepondere sobre outro e o controle, por via nem sempre admitida constitucionalmente. Além dessas funções básicas, há, ainda, uma de outro tipo, essencialmente distinta, que, em maior ou menor grau, deriva da concepção da separação de poderes como explicitada na Constituição dos Estados Unidos da América. Corresponde à função de controle, imprescindível para o reforço das garantias do indivíduo e da sociedade. É inerente não apenas ao Estado de Direito, mas, principalmente, ao Democrático, voltado à efetiva soberania popular. Constitucionalmente estipulada, seu escopo imediato é a preservação de cada Poder e, por decorrência, do Estado e de seus cidadãos, relativamente aos excessos praticados por uns em detrimento de outros. É o que ocorre na hipótese de impeachment, quando se atribui ao Congresso, em sessão presidida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como nos vetos legislativos, nas apuraApoiado em Jousserandot, Pedro Lessa apontava como características da atividade judicial: (1) o exercício da função de árbitro dentro de uma contenda; (2) a atuação somente em casos particulares, e nunca em abstrato; e (3) a inércia. Desde a Emenda Constitucional n. 16/1965, porém, não se pode mais considerar a atuação jurisdicional restrita aos casos particulares, por ser possível haver o controle abstrato de constitucionalidade das leis, ainda que apenas pelo Supremo Tribunal Federal. LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Ed. Fac-Similar. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 1. 28

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ções promovidas pelos Tribunais de Contas e, ainda, no controle de constitucionalidade das leis e atos administrativos, pelo Judiciário. Na verdade, a garantia da liberdade somente será efetiva se, em vez de o sistema limitar-se a distribuir funções entre diferentes órgãos (Poderes), houver a previsão de cada um deles fiscalizar e controlar os demais, coibindo abusos ou falhas. Assim, se a pretensão for a de assegurar a máxima eficácia aos direitos e garantias individuais – móvel das modernas Constituições ocidentais –, a única interpretação adequada só pode ser a que vislumbra não apenas uma separação formal entre esses ramos nucleares do Estado, dos quais decorrem seus variados órgãos, mas a que garante uma independência real, tanto quanto possível, entre esses diferentes ramos, de forma a assegurar o controle de cada um pelos demais, de modo que nenhum deles possa exorbitar de suas funções. Bem contemplada sua linha histórica, esta tem sido a tendência do direito constitucional nas democracias modernas. Evidentemente, como é fácil constatar no direito comparado, em especial se contrapusermos o sistema norte-americano ao dos países europeus continentais, influenciados pelo francês, nem sempre a concretização do princípio segue as mesmas balizas. É bastante conhecida, por exemplo, a ênfase conferida, no sistema francês, à soberania popular e, por derivação, à lei como expressão dessa soberania. A consequência lógica, marcante principalmente em seu início, foi a desconfiança em relação ao Judiciário, ao qual, via de regra, é vedado o controle difuso de constitucionalidade, como praticado nos moldes norte-americanos. Na França, tanto o controle dos atos do Executivo sujeita-se ao “contencioso administrativo”, quanto, caso os juízes vislumbrem possível inconstitucionalidade, a discussão é transferida para a Corte Constitucional, para que esta a dirima. De outra parte, também nos sistemas parlamentaristas, em razão de sua natureza, não é nítida a tripartição, por ser a função de governo exercida por um corpo destacado entre a maioria do Parlamento, ao qual o Gabinete se submete. Em todos os casos, porém, na atualidade, a concepção do princípio envolve não somente a distribuição das funções, mas,

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também, os controles recíprocos: os “freios e contrapesos”. Todavia, para que os valores almejados – liberdade e dignidade em face do Estado – possam ser alcançados, não há receita única, válida para todos os Estados. O essencial é a estruturação dos sistemas políticos e a sistemática de funcionamento dos órgãos de Estado serem feitas de modo a preservar os direitos e garantias dos cidadãos em suas variadas dimensões. Mais especialmente, as funções estatais devem ser distinguidas em razão de sua natureza, atribuindo-se a responsabilidade sobre cada uma delas a órgãos específicos e independentes, de modo que cada qual as execute livre de injunções dos demais, dentro de um determinado quadro normativo. Ultrapassado este, é possível a ação dos demais, dentro das regras preexistentes, com o propósito de realinhar a ação do Poder desbordante à sua esfera de competência. Evidentemente, concebido o controle mútuo entre os Poderes, reforça-se a garantia do cidadão, por tornar mais difíceis os abusos, que mesmo órgãos com competências delimitadas podem praticar. Particularmente em relação ao Judiciário, é fácil imaginar o quanto os direitos e garantias individuais, sociais ou de terceira geração podem ser tolhidos diante da ação dos demais Poderes, se ele, assim como os magistrados que o compõem, não estiver imunizado contra-ataques indevidos. Afinal, o que impediria a restrição à liberdade de reunião, de expressão (em suas inúmeras vertentes, a incluir a informação), o irregular estado de sítio ou, ainda, a mais comezinha apropriação criminosa dos bens públicos ou simplesmente a corrupção nas altas esferas políticas, não fosse o Judiciário independente? Efetivamente, seria impossível manter a ordem constitucional, caso o Executivo pudesse exonerar ou remover um juiz que julgasse contra seus interesses ou, ainda, se desconfiado da postura futura do Judiciário sobre determinada questão, ele subtraísse essa matéria à sua apreciação, tal como ocorre nos “tribunais de exceção”. Bem por isso, escreveu Burke, posteriormente citado por Story, sobre a necessidade de o Estado organizar sua

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magistratura “como se esta fosse uma instituição criada e existente fora do mesmo Estado”29. Por outro lado, a depender da postura do Judiciário, não é raro o Executivo arguir paralisia quando suas políticas públicas são judicializadas. Embora, por certo, isso nunca decorra de iniciativa do Judiciário, é daí que surgem as críticas ao “ativismo judicial” como invasivo de sua esfera de competência. No entanto, primeiro caberia verificar o que levou o cidadão A ou a instituição B (vinculada ou não a outro Poder) a contestar aquela política, para, só em seguida, ver se de fato houve a alegada invasão de competência, o que deverá ser feito segregando-se, no sistema constitucional – muitas vezes pleno de normas principiológicas e programáticas (principalmente Constituições analíticas, como a brasileira de 1988) –, o que está aberto à atuação do Judiciário. Somente depois poder-se-ia concluir se a conduta fora consentânea com as linhas mestras constitucionais. De todo modo, se diversos podem ser os caminhos rumo ao valor “liberdade”, é possível delinear características básicas que, presentes, possibilitam afirmar a independência dos Poderes. Considerando apenas o Judiciário – que, à falta do poder das armas, do controle do Tesouro e da edição das leis (ainda que possua algum poder normativo, este é bastante delimitado), tende a passar a impressão de ser o menos forte dos Poderes –, essas características correspondem, na verdade, a certas garantias dirigidas, seja à instituição, seja aos magistrados que a compõem. Pensado apenas em sua acepção clássica e mais rasa, referente tão só à independência dos julgamentos, decerto bastaria vedar-se que qualquer pessoa interna ou externa à instituição pudesse influir ou pressionar por certo julgamento, o qual deve ser feito somente de acordo com a consciência do magistrado, para considerar garantida a independência. Uma vez, porém, que nem sempre as violações são perpetradas de modo tão direto, desde cedo os ordenamentos passaram a 29

STORY, Commentaries, v. 2, § 1.577, citado por LESSA, Pedro, op. cit., p. 4.

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fixar algumas garantias básicas, com vistas à manutenção dessa independência: a vitaliciedade, a irredutibilidade de vencimentos e a inamovibilidade. Sendo o Direito um fato cultural, não necessariamente a ausência, por expresso, dessas garantias no ordenamento significará ataque à independência do Poder Judiciário. Dependerá do contexto e do efetivo respeito à independência do poder de julgar. Veja-se o caso do Japão, que, mesmo sem garantia de inamovibilidade e de vitaliciedade (embora prevista estabilidade no cargo por dez anos, até reavaliação do magistrado), não costuma ser acusado de pressionar os juízes por decisões em seu favor. Lá, ainda que, evidentemente, situações pontuais em contrário possam acontecer, como em qualquer outro lugar (Brasil e Estados Unidos não foram exceções no curso do New Deal), há sempre o peso da cultura a impedir semelhante desrespeito. No caso, o pensamento, provavelmente, é o de que a remoção feita mediante uso de critérios objetivos preestabelecidos e transparentes, assim como a cassação do cargo feita em um sistema que de antemão prevê a reavaliação da pessoa a cada dez anos (em especial se o processo é transparente e viável é o contraditório), não fere a assinalada independência. Não se desconhece que mesmo em países culturalmente tidos por avançados podem ocorrer rupturas ou desvios, como são exemplos os adventos do nazismo e do fascismo, respectivamente na Alemanha e na Itália, da ditadura franquista na Espanha (todos relativamente recentes), bem como, no próprio Japão, do seu controle pela ditadura militar – por boa parte do início do século XX, até o final da II Guerra Mundial –, que perpetrou inúmeros abusos durante a ocupação da China e do Sudeste Asiático. Veja-se, ainda, a situação do Judiciário em países com certo desenvolvimento, como a Rússia e a Venezuela, onde ele se encontra totalmente atado e submisso ao regime em vigor. Daí a dificuldade de avaliação da pragmática do princípio, sendo certo, porém, que, a despeito da possibilidade de sua violação, mais garantido está o cidadão quando a Constituição expressa

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claramente essas garantias do que quando as deixa em aberto, a depender apenas da consciência social, nem sempre presente, principalmente em certos países. Voltadas a essa expectativa, as Constituições costumam prever certas regras, sobre as quais são tecidas várias classificações. Frederico Marques, por exemplo, falava em independência política (garantias de irredutibilidade de vencimentos, vitaliciedade e inamovibilidade) e independência jurídica (quanto às decisões). José Adércio Leite Sampaio, por sua vez, distingue a independência externa (institucional, orgânica ou objetiva) da interna (funcional). A independência externa corresponde àquela apresentada pelo Judiciário, como instituição, em relação aos demais Poderes; abrange a autonomia administrativa, orçamentária e financeira. A independência interna (funcional), por sua vez, liga-se àquela apresentada pelo juiz, em face dos seus pares, para a tomada de decisões jurisdicionais. Sob o prisma institucional, somente há independência se o órgão for capaz de autorregular-se (autonomia administrativa), prevendo sua organização interna e o modo de funcionamento, e puder dotar-se dos meios adequados para a persecução de seus fins, seja prevendo os recursos necessários para suprir suas despesas (autonomia orçamentária), seja gerindo esses recursos (autonomia financeira). É preciso atentar, todavia, que, não obstante essas classificações, criteriosamente efetuadas, sejam úteis para efeitos científicos e pedagógicos, por simplificarem a complexidade existente e permitirem melhor compreensão do fenômeno estudado, sempre a realidade é mais rica, a ensejar a necessidade de sua contemplação por diversos prismas. Assim, é impossível olvidar que, embora as garantias da irredutibilidade de vencimentos, da inamovibilidade e da vitaliciedade dirijam-se mais diretamente à pessoa do magistrado – motivo pelo qual, comumente, como deixa entrever José Adércio Leite Sampaio, são incluídas entre os atributos da independência interna

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(funcional) –, elas também protegem o exercício da magistratura dos ataques porventura oriundos do âmbito externo, como a hipótese de uma lei, diante de grave crise econômica e financeira, determinar uma redução, ainda que temporária, dos vencimentos dos magistrados. Ademais, não apenas servem de garantia ao magistrado, mas, por via de consequência, à própria instituição, tornando-a assim mais forte. Lamentavelmente, diante do limitado escopo deste trabalho, é impossível maior detença sobre cada uma dessas garantias, ainda que sumamente importantes e de interessante apreciação. Cingindo-nos a apontar as garantias básicas para a apreciação da independência do Judiciário, isto é, as funcionais, acima referidas, assim como as institucionais (autonomia administrativa, orçamentária e financeira), o essencial a ter em mente para os propósitos colimados é: (i) a variabilidade de situações possíveis, podendo as garantias ser plenas, limitadas ou condicionadas; (ii) a importância da cultura e das particularidades de cada sistema jurídico; (iii) a impossibilidade de existência, mesmo a despeito do sistema de freios e contrapesos, de sistemas com Poderes absolutamente autônomos. Com efeito, independentemente da forma de controle, a arrecadação básica para o sustento do Estado sempre advirá da atividade executiva, que repassa os recursos ao Judiciário. Inevitavelmente, portanto, será difícil dimensionar a justa medida necessária ao repasse, de modo que não seja feita nem aquém nem além de suas reais necessidades. A atribuição de garantias institucionais decerto facilita a tarefa; todavia, nem sempre são elas suficientes para dirimir os problemas verificados, em especial nos países em desenvolvimento, onde escassos são os recursos e múltiplas são as demandas a serem satisfeitas. O artigo 99 da Constituição de 1988, ao assegurar autonomia administrativa e financeira ao Poder Judiciário, estipula que a proposta de orçamento para esse Poder será apresentada consoante os limites estipulados com os demais; ou seja, todos dialogariam “harmonicamente” para estabelecer, em conjunto, o valor adequado.

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Na prática, todavia, não é simples; seja porque o Executivo tende a forçar sua posição, fortalecida por ser o detentor dos recursos, seja porque os demais Poderes naturalmente tendem a defender os interesses próprios de suas funções, sem possuir conhecimento mais aprofundado das funções dos outros Poderes.

4 O Poder Judiciário e a criação dos conselhos de justiça no direito comparado Excetuados os costumes ingleses, que há tempos previam certa autonomia para os magistrados no exercício de suas funções judicantes, em regra, até a Revolução Francesa, a prática na Europa continental era a de os juízes agirem por delegação do rei (em seu nome) no exercício de uma função especializada do Estado. Não por outra razão, os “parlamentos”30 e seus juízes, tão associados ao poder real, tornaram-se, após a Revolução, alvos de desconfiança; tanto que, originada dúvida sobre a interpretação de uma lei, devia o juiz encaminhar a questão à Assembleia Nacional31. Assim, embora formalmente assegurada a vitaliciedade aos juízes – quando não eleitos (principalmente após 1793), eram escolhidos em listas –, não foram poucas as ocasiões, no curso do século XIX, até a Lei de 30/01/1873, na França, em que foram promovidos expurgos de magistrados (um quarto deles nessa Lei). Em 1799, ainda, o Ministro da Justiça tinha poder de direção de certos tribunais e de aplicação de sanção a magistrados32. Nesse contexto, pois, era marcante a diferença entre o sistema continental e o anglo-saxônico, lastreado em conceito mais flexível de lei, principalmente se considerada a práxis norte-americana, Designação dada aos antigos tribunais de justiça criados, na França, por Luis IX (século XII), cujos cargos, no Antigo Regime, primeiro atribuídos a certas pessoas, depois passaram a ser comprados ou herdados (como o foi por Montesquieu). Foram dissolvidos em 1789. 31 SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit., p. 14. 32 SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit., p. 15. 30

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derivada de sua Constituição e da compreensão desta pela Suprema Corte, desde o caso Marbury v. Madison33. No entender dos constitucionalistas americanos, que tanto influenciaram outros, como o nosso Pedro Lessa, é irrelevante a objeção – de alguns (leia-se, em especial, o sistema francês) – referente à impossibilidade de um poder ser nomeado ou eleito por outro, porque “nunca se exigiu em direito público a eleição direta ou imediata pelo povo para a constituição de todos os poderes do Estado”34, pois em qualquer deles o representante do poder político seria o chefe do Executivo. Contudo, se, ao menos na aparência, o princípio democrático (na linha de Rousseau) era atendido com a praxe francesa, que, inclusive, em determinado momento, veio a outorgar certas garantias ao Judiciário – como a vitaliciedade –, cedo foi percebida a necessidade de reforçar essas garantias contra intervenções inadequadas que pudessem ser praticadas pelos outros poderes em detrimento do cidadão. Na França, diante das inúmeras demissões de magistrados supostamente vitalícios, era nítida a pouca valia dada a essa espécie de garantia. Natural, portanto, era a insegurança disso decorrente, grandemente reforçada pela dependência orçamentária em relação ao Executivo, tanto no tocante ao aparelhamento da instituição, quanto no tocante à política remuneratória dos magistrados. Paulatinamente, os países da Europa continental, a começar pela França e depois pela Itália, conceberam a existência de um órgão colegiado, encarregado de preservar a independência do Judiciário: os Conselhos de Magistratura. Na França, o Conselho Superior da Magistratura originou-se de Lei de 1883, correspondente à reunião de todas as Câmaras da Corte de Cassação, para deliberar sobre questões disciplinares. Posteriormente, passou por diversas mudanças, entre as quais a da VASCONCELOS, Pedro Carlos Bacelar de. Teoria Geral do Controle do Poder Público. Lisboa: Cosmos, 1996, p. 183. Segundo ele, foi essa menor rigidez que permitiu, mais facilmente, o advento do judicial review. 34 LESSA, Pedro, op. cit., p. 4. 33

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Constituição de 1946, quando se tornou órgão auxiliar do Presidente da República (que preside o Conselho), e as da Lei Constitucional de 27/07/1993 e da Lei Orgânica de 05/02/1994, que retomaram a eleição para os conselheiros magistrados. Composto, além do Presidente da República, pelo Ministro da Justiça (Vice-presidente do Conselho), por doze representantes do Judiciário e do Ministério Público, um integrante do Conselho de Estado e três pessoas escolhidas pelo Presidente da República, o Conselho francês tem por principais competências a indicação de nomes para as Cortes de Cassação e de presidentes para as Cortes de Apelação e outros Tribunais (a indicação dos demais magistrados é de iniciativa do Ministro da Justiça, mediante aprovação do Conselho), a apreciação de promoções, a matéria disciplinar e, em especial, a defesa da independência do Judiciário. Para tanto, recolhe dados da realidade, inspeciona as unidades e apresenta relatórios sobre seu funcionamento, apontando os problemas verificados nas Cortes e na Escola de Magistratura e sugerindo providências ao Presidente da República. Presta, ainda, informações sobre questões atinentes ao Judiciário, em cuja defesa, por exemplo, repudiou a convocação de magistrados por uma CPI em 200635. No entanto, o fato de suas decisões poderem ser revistas pelo Conselho de Estado reforça sua condição de órgão administrativo. Ademais, também se critica uma suposta ideologização do colegiado e partidarização da magistratura, o que causaria divisão nas eleições dos conselheiros36. Na Itália, as atribuições do Conselho Superior da Magistratura, desde 1907 estabelecido como órgão consultivo do Ministério da Justiça e também presidido pelo Presidente da República, não destoam muito do congênere francês no qual se inspirou. Esse Conselho tem por objeto a seleção, remoção e promoção de juízes, a designação de magistrados, por mérito, para a Corte de Cassação, bem

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SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit., p. 183-185. SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit., p. 184-185.

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como a de professores e advogados, e, além das matérias atinentes à organização judiciária, deve disciplinar a administração da justiça e os serviços auxiliares. Composto, além de seu Presidente, pelo Presidente da Corte de Cassação, pelo Procurador-Geral, por dezesseis membros do Judiciário e dez juristas escolhidos pelo Parlamento – estes dois últimos com mandato de quatro anos –, também a ele ultimamente têm sido dirigidas críticas por sua defesa pública de juízes, a gerar crises com o governo e o parlamento37. Do ponto de vista administrativo, como salienta Pizzorusso, é o vértice do Poder. Foi de grande importância no curso das operações “mãos limpas” e na defesa contra a mídia e a iniciativa política para redução das prerrogativas dos magistrados38. Na Espanha, por sua vez, o Conselho Geral do Poder Judiciário é integrado pelo Presidente do Tribunal Supremo e por vinte membros nomeados pelo rei, por recomendação do parlamento, para mandato de cinco anos: doze oriundos do Judiciário, quatro indicados pelo Congresso de Deputados e quatro, pelo Senado, eleitos por 3/5 dos seus membros dentre juristas com experiência superior a quinze anos. Igualmente, incumbe-se da seleção e nomeação de juízes, e dos cursos de formação a serem adotados por meio da Escola; define promoções e questões administrativas relativas aos juízes, controla sua disciplina e realiza inspeções judiciais. Antes de tudo, porém, defende a independência do Judiciário, manifestando-se sobre os projetos de lei do seu interesse, bem como sobre as normas processuais que afetem os direitos dos tribunais e o funcionamento dos juízos, elaborando relatórios anuais sobre a situação, o funcionamento e a atividade do Judiciário e do Conselho, destacando suas necessidades. Na Espanha, é considerado órgão autônomo, externo aos três Poderes39, com saldo, no geral, positivo, por ter, mesmo em clima adverso, garantido a independência da magistratura. Idem, p. 186. CARVALHO, Ernane. Controle Externo do Poder Judiciário. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 43, n. 170, abr./jun. 2006. 39 SAMPAIO, op. cit., p. 188. 37 38

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Já em Portugal, o Conselho Superior da Magistratura é presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e composto por 16 membros ordinários: dois indicados pelo Presidente da República, sete pelo Parlamento e sete pelo Judiciário (um do STJ, para exercer a função de vice-presidente, dois juízes do Tribunal de Relação e quatro juízes de direito, um de cada distrito, eleitos, para um mandato de três anos por sufrágio universal e secreto, por meio de listas. Lá, o Conselho apresenta-se como órgão de gestão e disciplinar da magistratura, para o que acompanha a vida funcional dos magistrados, aos quais provê a formação, suas remoções, promoções e exonerações. Possui, outrossim, a função de salvaguardar sua independência e cuidar dos cursos de formação ocorrentes no Centro de Estudos Judiciários. Não detém poderes de iniciativa de lei, mas pode emitir pareceres sobre a composição das seções dos tribunais e distribuição dos processos, para assegurar a igualdade40. Considera-se que uma maioria de membros desvinculados da magistratura atribui maior legitimidade democrática e é capaz de evitar uma gestão corporativa41. Na Alemanha, por sua vez, embora ainda não haja um Conselho, a administração da Justiça é em parte dependente do Executivo, estando em discussão a criação desse órgão42. Atualmente, os Conselhos estão presentes em vários países do mundo, onde começaram a se disseminar na década de 1960, com a função precípua de garantir a independência do Judiciário. Amiúde, atuam, ainda, como órgãos de planejamento, gestão e controle disciplinar, bem como, às vezes, de seleção de magistrados. Na Europa, onde em geral o Conselho é considerado como evolução ao sistema de freios e contrapesos43, há dois modelos: (i) o latino-europeu, no qual predominam os laços com o Executivo (sistema francês, SAMPAIO, op. cit., p. 189. CARVALHO, Ernane, op. cit. 42 CAMARGO, Maria Auxiliadora Castro e. Reforma do Judiciário. Tribunal Constitucional de Conselho Nacional de Justiça. Controles Externos ou internos? Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 41, n. 164, out./dez. 2004, p. 373. 43 CARVALHO, Ernane, op. cit., p. 105-106. Na Suécia, a composição é: 1 Diretor-Geral, 4 juízes (2 presidentes de Corte de Apelação), 2 representantes do Parlamento, 1 advogado e 2 representantes sindicais. 40 41

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italiano etc.); (ii) o nórdico-europeu, surgido na Suécia em 1975, que formula o projeto de orçamento do Judiciário e cuida de sua distribuição entre os diversos ramos, coordena toda a política de custeio e investimentos, gerencia os recursos humanos, físicos e logísticos, além de se encarregar do recrutamento e treinamento dos juízes. É seu plenário que faz, ainda, a distribuição dos recursos, apresentando balanço anual e justificativa de gastos44. É seguido, também, pela Dinamarca. Na América Latina, o processo de reforma do Judiciário, com o objetivo de aprimorar a administração da Justiça e possibilitar ampliação ao seu acesso, bem como a simplificação de procedimentos, teve o apoio do Banco Mundial, a despeito das críticas de que, em regra, neste continente os Judiciários não dependem do Ministério da Justiça45, diversamente da Europa. A esse respeito, é de relevo citar o Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial, o qual prescrevia a reforma do Judiciário pela adoção: (i) de um órgão de controle externo; (ii) de meios alternativos de solução de conflitos; (iii) da prevalência da jurisprudência dos órgãos de cúpula46. Nessa parte do hemisfério, além do Brasil, pode-se citar a constituição de Conselhos, entre outros, na Argentina (1994)47, na Colômbia (desde 1886, reformado na Constituição de 1991), no Peru e no México (1994).

4 A experiência do Brasil: o Conselho Nacional de Justiça – CNJ Diante das sólidas garantias de independência outorgadas ao Judiciário pela Constituição de 1988, institucionais (externas) – SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit., p. 192-193. SAMPAIO, op. cit., p. 196. 46 GRAMSTRUP, Erik Frederico. Conselho Nacional de Justiça e Controle Externo: roteiro geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvin e outros (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 196. 47 Na Argentina, os juízes são minoria no Conselho, composto, além do Presidente da Suprema Corte, de 4 juízes (2 de primeira instância), 8 legisladores, 4 advogados, 1 representante do Executivo e 2 do mundo acadêmico; apud SAMPAIO, op. cit., p. 197. 44 45

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reveladas pela autonomia administrativa, orçamentária e financeira – e pessoais (internas), isto é, a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos (que aqui, como nos Estados Unidos, entende-se somente referir-se aos nominais, e não aos reais), evidentemente, seria desnecessária a instituição de um Conselho, no Brasil, nos moldes europeus, apenas com a finalidade de preservar a independência da instituição. A preocupação, na verdade, era diversa: a de imprimir maior eficiência à administração da Justiça, melhorar seu acesso à população, conferir-lhe celeridade e coibir a corrupção e outros desmandos, em especial nos tribunais, até então imunes à atuação correcional de outros órgãos, ressalvada a competência própria dos Tribunais de Contas. Problemas tão antigos que, como apontou Almir Pazzianotto, já em 1655 Padre Vieira acusava o julgador de dilatar por “oito meses a demanda que se pudera concluir em oito dias”48. Certamente, desde o advento da Emenda Constitucional n. 7/1977, editada com base no Ato Institucional n. 5/1968, havia o Conselho Nacional de Magistratura (art. 112, II, da Constituição de 1969 – EC 1/69)49, formado por sete ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, escolhidos entre eles próprios, com poderes para correcionar os tribunais e avocar processos disciplinares contra juízes de primeira instância (art. 120). Contudo, não obstante a defesa veemente à sua criação pelo Presidente do STF à época, Ministro Antônio Neder50, esse órgão nunca teve atuação relevante nem alcançou seu verdadeiro desiderato, que era o controle das instâncias inferiores. Na Constituinte, desde 1987, foi amplo e profícuo o debate sobre o Judiciário; ponderou-se desde a conveniência da manutenção da estrutura dual de Justiça, com a extinção da Justiça Federal – ao argumento de que, ressalvada a organização judiciária, toda a 48 PINTO, Almir Pazzianotto. A Face Executiva da Corregedoria. (Coleção Revista Jurídica Consulex 16 anos.) 49 Integrante do Poder Judiciário. 50 SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit., p. 240.

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legislação básica aplicável era federal –, até a adoção da estrutura atualmente implantada, com a instauração de um controle externo a esse Poder. Discussão sobre isso já constara do texto do anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, que fora apoiado, na época, pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, presidida por Márcio Thomaz Bastos (posteriormente Ministro da Justiça no governo Lula) e pelo constituinte Nelson Jobim (futuro Ministro da Justiça, no governo Fernando Henrique Cardoso, e do STF, do qual foi Presidente). Em sentido contrário, o discurso de Josaphat Marinho acusava, nessa intenção, a violação à separação dos poderes51. Foi, todavia, o agravamento da situação do Judiciário, decorrente de uma primeira ampliação de seu acesso a partir da maior divulgação dos direitos – também estes ampliados (em escala crescente, desde o reconhecimento de direitos sociais)52 e melhor assegurados na nova Constituição – e da exponencial multiplicação dos conflitos surgidos com a adoção de seguidos e frustrados Planos Econômicos de combate à hiperinflação verificada nesse período, em especial o Plano Collor (1990)53, agregada à natural demanda oriunda dos questionamentos relacionados à transição do ordenamento, da velha à nova ordem54, que tornou mais visível a necessidade de reforma do sistema normativo, bem como da gestão SAMPAIO, idem, p. 241. A esse propósito, é importante, também, o aspecto levantado por Zaffaroni a respeito do incremento da complexidade do Estado e de suas normas, decorrente da maior variedade e complexidade de tarefas hoje a ele atribuídas em virtude do reconhecimento desses direitos sociais, bem como o papel desempenhado, na América Latina, pelo retorno à democracia, considerada a atrofia do Judiciário durante as ditaduras locais (ZAFFARONI, op. cit., p. 23 e 25). 53 Citem-se, a respeito, a partir do Plano Cruzado (28/02/1986), não tão contestado, os Planos Bresser (1987), Verão (1989), Collor I e II (1990 e 1991, respectivamente), além dos empréstimos compulsórios sobre a aquisição de combustíveis e veículos. 54 Questionamentos, por exemplo, sobre a COFINS (Lei Complementar n. 70/1991), sobre a nova contribuição social sobre o lucro – CSL (Lei n. 7.689/88), sobre o PIS (Decretos-Leis n. 2.445 e 2.449, ambos de 1988), bem como sobre a Lei de Benefícios da Previdência (Lei n. 8.213/1991). 51 52

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processual e administrativa, de maneira a mitigar o problema da excessiva morosidade da Justiça55. Ademais, com a maior liberdade e penetração56 da mídia e as novas atribuições conferidas ao Ministério Público pela Constituição, relativas à defesa da lei, da cidadania e dos direitos difusos, mais conflitos se instalaram e mais divulgados foram os abusos, de modo a, também isso, robustecer a demanda do Judiciário. Evidentemente, com o aumento da consciência dos direitos e o amadurecimento da sociedade, mais elevadas tornaram-se as críticas às práticas antigas, como o clientelismo, o nepotismo e a corrupção, nos três Poderes, ainda que (em especial a última) mais pontuais no Judiciário. Nesse terreno, emblemático foi o caso do Fórum Trabalhista, do qual resultou a prisão do ex-Presidente do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, Nicolau dos Santos Neto, depois de milhões terem sido desviados dos cofres públicos, e, ainda, após isso, o referente à “venda de decisões”, objeto da assim denominada “Operação Anaconda”, da qual resultou a prisão de advogados e de um juiz federal. Em suma, não eram poucos os problemas e as críticas ao funcionamento do Judiciário – considerado inadequado para lidar, satisfatoriamente, com a demanda existente e em contínua expansão –, bem como ao comportamento de alguns tribunais, fosse pela ineficiência, fosse pelo nepotismo ou, ainda, pela estreita ligação, nos Estados, com políticos locais. Daí os debates e estudos, como os que resultaram no citado Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial57, o qual, dentre ouVeja-se, a esse propósito, discurso pronunciado no Senado pelo Sen. Pedro Teixeira, em que destaca a ânsia por uma reforma no Judiciário desde 1970, em especial de 1974 a 1978, com o propósito de conferir-lhe maior celeridade, bem como problemas com sua instalação, burocracia, procedimentos procrastinatórios, impunidade e dificuldade de acesso. Ao fim, propõe o debate, também, sobre um órgão de controle externo a esse poder (Diário do Congresso de 02/10/1993). 56 A liberdade, pela redemocratização; a penetração, por conta do natural desenvolvimento social e tecnológico, em um processo ainda não esgotado, como o demonstram os reflexos oriundos do advento da internet. 57 Documento produzido pelo Banco Mundial em junho de 1996, denominado “O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe – Elementos para Reforma”, 55

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tras medidas, recomendava a adoção de um órgão de controle externo ao Judiciário, além dos travados no Congresso Nacional e em outras instituições, inclusive na mídia58. Conquanto várias críticas tenham sido dirigidas ao aludido Documento Técnico, sob o argumento de servir unicamente ao capital internacional, sob qualquer prisma é inegável que não somente no seio de uma economia globalizada, mas, igualmente, levando-se em conta apenas a economia interna, são adequadas muitas de suas proposições, embora importe sempre estar atento à independência do Judiciário (fato não refutado pelo documento)59. Não se pode desconhecer, na montagem de um quadro propício aos negócios e, portanto, ao desenvolvimento (um dos fins propugnados em nossa Constituição – art. 3º, II), a importância de uma Justiça célere, eficaz e imparcial, cujas decisões sejam pautadas em fundamentos técnicos, e nunca políticos, populistas, emocionais ou imorais60. Daí, também – fora propiciar a ampla defesa –, a importância da fundamentação da decisão, estipulada no art. 93, IX, da Constituição. Vencida, na Constituinte, a tese da instituição do controle externo, nem por isso a ideia esmoreceu, como o confirmam os pelos técnicos Malcolm D. Rowat, Sri Ram Aiyer e pelos pesquisadores Manning Cabrol e Bryant Garth, com base nas experiências obtidas com a reforma judiciária em alguns países da América Latina, dentre os quais a Argentina. E, ainda que se diga ignorar ele algumas das causas da morosidade, como a reiterada violação das normas pelo Poder Público, não deixa de ter razão quanto a outros fatores, como o excesso de recursos e a ausência de mecanismos consensuais de resolução de controvérsias (total àquele tempo). 58 Veja-se discurso proferido pelo Sen. Bernardo Cabral, no Senado, em agosto de 1995, em que aborda os problemas do Judiciário e aponta artigo de Miguel Reale, publicado no jornal “O Estado de S. Paulo” em 02/08/1995, defendendo a reforma do Judiciário e a adoção de um órgão de controle externo, com ampla função fiscalizadora, para coibir a inépcia e a corrupção (Anais do Senado Federal, agosto 1995, p. 462). 59 A esse respeito, veja-se artigo do juiz Hugo Cavalcanti Melo Filho, que, não obstante aponte essa mazela, reconhece acertos no diagnóstico do Estudo (MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. A Reforma do Poder Judiciário Brasileiro: motivação, quadro atual e perspectivas. Revista CEJ, Brasília, abr./jun. 2003, p. 79-86). 60 A decisão fruto de ato de corrupção, além do aspecto criminoso, viola a imparcialidade.

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debates travados no Congresso Nacional ao longo de 1993. Retornou com a Proposta de Emenda Constitucional – PEC n. 112/95, de José Genoíno, a qual foi apensada à PEC n. 96/199261, de autoria do Deputado Hélio Bicudo, que propunha a extinção da Justiça Federal de Primeiro Grau, da Justiça Militar e da representação classista na Justiça do Trabalho de Primeira Instância. O texto foi aprovado na Câmara em 2000, com os substitutivos da Deputada Zulaiê Cobra e do Deputado Jairo Carneiro. No Senado, recebeu várias emendas, entre as quais a PEC 29/2000, do Senador Bernardo Cabral. Nesse entretempo, o Ministério da Justiça criou, em 2003, a Secretaria da Reforma do Judiciário, que buscou aprovar as propostas do governo62. O intuito, com relação ao Conselho, era, essencialmente, conferir maior unidade ao sistema e que ele servisse de canal de interlocução com a sociedade. Ademais, que atuasse como órgão de planejamento e disciplinarmente em relação aos juízes e tribunais. Alguns defensores mais ardorosos argumentavam que quem dispunha de inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos, vitaliciedade e autonomia administrativa e financeira deveria aceitar alguma limitação em contrapartida63. Assim, diante dos problemas existentes – alguns decorrentes de fatores externos inevitáveis, como o incremento da demanda, pelas razões assinaladas, e a ausência de uma reforma legislativa imediata, que racionalizasse e conferisse celeridade ao processo, e outros derivados de deficiências internas (v.g., problemas de gestão, nepotismo, clientelismo em alguns Estados e insuficiência disciplinar, em especial nas segundas instâncias) –, não podia ser outro o desfecho, senão a aprovação da assinalada Reforma do Judiciário, que culminou na aprovação das referidas Propostas, como a Emenda Constitucional n. 45, em 08/12/2004, cujo artigo 1º, mediante A PEC 96/1992, em 1993, foi convertida em Proposta de Emenda Revisional. Arquivada em 1999, foi desarquivada 20 dias depois pelo rel. Dep. Nelson Jobim, que a ela apensou várias PECs. 62 SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Considerações sobre a Reforma do Judiciário. Revista CEJ, Brasília, n. 23, out./dez. 2003; p. 74. 63 SAMPAIO, José Adércio Leite, op. cit., p. 242. 61

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a introdução do inciso I-A ao artigo 92 da Constituição, fez criar o Conselho Nacional de Justiça. A rigor, porém, não se trata de um órgão de controle externo ao Judiciário; para que o fosse, seria preciso: (1) que ele não estivesse formalmente afeto à estrutura do Poder Judiciário; (2) que fosse composto, majoritariamente, por pessoas estranhas a essa instituição; (3) que suas decisões não pudessem ser por ele contrastadas. Presentes essas três características, ou ao menos as duas últimas, indubitavelmente o órgão seria externo. É impossível cogitar a pertença ao sistema de quem nele não se inclui nem pela forma nem pelo conteúdo, seja porque seus membros são majoritariamente estranhos à carreira, seja porque suas decisões, mesmo administrativas, situam-se em nível superior às de qualquer órgão judicial. Aliás, mesmo se o Conselho estivesse formalmente inserido no Judiciário, presentes as demais características (conselheiros estranhos à carreira e decisões incontrastáveis), ainda assim tratar-se-ia de órgão de controle externo, por ser impossível considerar algo diverso, se a maioria dos seus membros advém de órgãos exteriores à estrutura judicial e suas decisões são inoponíveis ao Judiciário. Ausentes, porém, as três características citadas, decerto tratar-se-á de órgão de controle interno, pelos motivos expostos. De fato, previsto no capítulo da Constituição correspondente ao Poder Judiciário (art. 92, I-A)64 e composto majoritariamente por magistrados, o CNJ, cujas decisões são jurisdicionalmente controladas pelo Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula desse Poder, só pode situar-se no âmbito interno deste. Consoante o artigo 103-B da Constituição, o CNJ é composto de quinze membros, com idade entre trinta e cinco e sessenta e seis anos, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, das seguintes origens: um Ministro do STF; um Ministro do STJ; um Ministro do TST65; um Desembargador de Tribunal de Justiça; um

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Trata-se do Capítulo III do Título IV da Constituição. Esses Ministros são indicados pelos respectivos Tribunais.

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juiz estadual66; um Desembargador Federal; um juiz federal67; um juiz do TRT; um juiz do trabalho68; um membro do Ministério Público da União; um membro do Ministério Público do Estado69; dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); e dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, um indicado pela Câmara e outro, pelo Senado Federal. Aprovados os nomes pela maioria absoluta do Senado Federal, são nomeados pelo Presidente da República70, cabendo a presidência do Conselho ao Ministro do STF (art. 103-B, § 1º, CF). Desse modo, dos quinze membros, somente seis, ou seja, 40% (quarenta por cento), não são, em princípio, magistrados: os representantes do Ministério Público, os da OAB e os do Congresso (dois de cada)71. O índice é semelhante ao da Espanha (oito entre vinte) e ao da Itália (doze entre trinta e dois), mas é inferior ao de Portugal (50%), onde apenas oito dos dezesseis membros advêm da magistratura72. O fato de uma parcela de seus membros ser composta de pessoas não integrantes da carreira da magistratura não afasta a conclusão acima explanada, por não ser estranho ao Judiciário a outorga de poderes a pessoas nessa condição – inclusive jurisdicionais –, como ocorre na hipótese dos jurados, ainda que sob certas limitações, e no fato de a quinta parte dos juízes dos tribunais de segundo grau serem oriundos do Ministério Público ou da advocacia. Nos tribunais superiores, por sinal, nem essa limitação persiste, podendo haver nomeações dentre pessoas com notório saber jurídico, com Esses, oriundos da magistratura estadual, são indicados pelo STF. Os representantes da Justiça Federal são indicados pelo STJ. 68 Os representantes da Justiça do Trabalho são indicados pelo TST. 69 Os membros dos Ministérios Públicos Federal e Estadual são indicados pelo Procurador-Geral da República. No último caso, porém, dentre os nomes indicados por cada uma das instituições estaduais. 70 Art. 103-B, § 2º, CF. 71 Desse modo, o número de membros externos ao Judiciário, no Conselho (6 dentre 15), corresponde a 40% (quarenta por cento), semelhante àquele presente no texto final da Câmara e intermediário entre os propostos por Zulaiê Cobra (46% – 6 membros dentre 13), Jairo Carneiro (13% – 2 membros dentre 15) e Aloysio Nunes (33% – 3 membros dentre 9). 72 Em todos esses casos, com a Presidência atribuída a um magistrado. 66 67

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idade entre trinta e cinco e sessenta e cinco anos, a incluir, portanto, outros profissionais do direito, como os acadêmicos73. A Constituição, no art. 103-B, § 4º, atribuiu ao Conselho competência para o controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário, bem como do cumprimento, pelos juízes, de seus deveres funcionais, sem prejuízo das funções previstas no Estatuto da Magistratura, e da atuação dos Tribunais de Contas, conforme previsto nos artigos 31, § 1º, e 71 da Carta Magna. Naturalmente, exercido esse controle por órgão dessa ordem, interno ao Poder, ainda que externo a cada um dos tribunais, e limitada a fiscalização à atuação administrativa e financeira desses colegiados, no quanto possam exorbitar do seu poder de autogestão, e à conduta funcional dos magistrados – e nunca à conduta jurisdicional de quaisquer destes –, não há como verificar inconstitucionalidade nas competências do Conselho, ainda que não previstas pelo constituinte original, principalmente se suas decisões podem ser revistas jurisdicionalmente pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, r, CF), sendo, ainda, Ministro dessa Corte o Presidente do CNJ (art. 103-B, § 1º, CF). Em momento algum, por sinal, questionou-se o controle exercido pelo Tribunal de Contas acerca das matérias de sua competência. Afinal, é inerente à separação dos poderes a existência de freios e contrapesos, do mesmo modo como é inerente ao Estado Democrático a transparência da gestão pública, que deve guiar-se pela razoabilidade e moralidade (art. 37 da Constituição). Não obstante, principalmente antes da reforma, era grande a resistência dos magistrados à criação do CNJ: apenas 20% eram favoráveis caso incluíssem membros externos à magistratura; esse percentual se elevava a 48,5% se fossem compostos de membros apenas do Judiciário. Quanto ao Conselho, em si, somente 39% eram favoráveis à sua criação74. Nessa linha, também CAMARGO, Maria Auxiliadora Castro e, op. cit., p. 373. Pesquisa coordenada por Maria Tereza Sadek (SADEK, M. Tereza. Os juízes e a reforma do judiciário: textos para discussão. São Paulo: IDESP, 2001, apud CARVALHO, Ernane. Brasília, a. 43, n. 170 abr./jun. 2006, p. 106). 73 74

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Ao expor sua posição sobre a matéria, o STF, por seu Pleno, no seio da ADIn n. 3.367, impetrada pela AMB antes da publicação da EC n. 45/2004, negou afronta ao princípio da separação dos poderes, porquanto estaria preservada a função jurisdicional típica do Poder Judiciário, bem como as condições materiais para o seu exercício imparcial e independente. Na ocasião, frisou tratar-se de controle limitado à atividade administrativa, financeira e disciplinar, dirigida apenas aos órgãos e juízes situados hierarquicamente abaixo do STF, sobranceiro ao Judiciário e, inclusive, ao CNJ (ADIn n. 3.367, rel. Min. Cesar Peluso, j. 13/04/2005, DJ 22/09/2006). No julgamento, é elucidativo atentar para a diferença apontada entre esse caso e o previsto na Súmula n. 649 do STF75, lastreada nos julgados das ADIns n. 197 (rel. Min. Gallotti, DJ 25/05/1990), 251 (rel. Min. Aldir Passarinho, DJ 02/04/1993), 135 (rel. Min. Gallotti, DJ 15/08/1997), 98 (rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 31/10/1997) e 137 (rel. Min. Moreira Alves, DJ 03/10/1997)76, porquanto, nesses casos, à parte a instituição de Conselho por Estado Federado (só a Constituição Federal poderia prevê-lo), os Conselhos foram criados como órgãos de controle externo ao Poder Judiciário, sem que, em nenhum caso, o número de juízes fosse majoritário (na melhor das hipóteses, era igual ao de não juízes). Nestes dez primeiros anos de existência, não houve situação pela qual se pudesse atribuir ao CNJ o protagonismo de qualquer ação em desfavor da independência do Judiciário. Ao contrário, ao buscar a melhoria da gestão institucional, com o estabelecimento de metas qualitativas (resolução dos processos mais antigos ou concernentes a determinadas matérias consideradas prioritárias; controle dos réus presos ou condenados por improbidade e das escutas, entre outras medidas), em conjunto com a adoção de regras uniformes a Súmula 649: “É inconstitucional a criação, por Constituição Estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes e entidades”. 76 Casos referentes às Constituições dos Estados de Sergipe (ADIn 197), Paraíba, Mato Grosso, Ceará e Pará. 75

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todos os tribunais relativamente a certas matérias (v.g., autorização para viagens de crianças e adolescentes, concursos, formação de juízes e promoções), e, ainda, melhor planejamento (no qual se insere o esforço para mudar a cultura de solução de litígios, incentivando as soluções de cunho consensual), além de medidas moralizantes, como as tomadas contra o nepotismo, é inegável que sua atuação só favoreceu a posição do Judiciário. Por outro lado, décadas de experiência mostraram a ineficiência das corregedorias internas antes da criação do CNJ, bem como a inexistência de freios quanto à magistratura de segundo grau. Prevista essa instância externa aos tribunais, só por sua própria existência o controle das corregedorias tende a ser mais eficaz. É o que já se percebe.

6 Da competência disciplinar do CNJ No aspecto disciplinar, instalou-se polêmica sobre se o poder disciplinar do Conselho seria concorrente ou subsidiário ao das corregedorias dos tribunais. A primeira posição, sustentada basicamente por diversas vozes da sociedade civil, teve defensores dentro do Judiciário, como os Ministros Carlos Mário Veloso (STF)77, Edson Vidigal78, Eliana Calmon e Gilson Dipp79 (STJ). Argumentava, por exemplo, o Presidente da OAB, Roberto Busato – que afastava a participação, no Conselho, dos não operadores do Direito, em especial de outros Poderes –, ser impensável tirar a independência do juiz para julgar, pois isso seria o fim da Justiça, embora, do ponto de vista adminisSem, contudo, a participação de políticos (Revista Jurídica Consulex 16 anos, 31/03/2004). 78 VIDIGAL, Edson. É tempo de governança no Judiciário. Revista do TCU, ano 35, n. 101, jul./set. 2004, p. 13-14. 79 DIPP, Gilson. A Corregedoria Nacional de Justiça, o CNJ e a Constituição. Coleção Revista Jurídica Consulex 16 anos, 15/12/2009. Segundo este, “não se cogita de interferir na jurisdição, ou seja, na independência que o juiz tem que ter para suas decisões judiciais. O que se quer, porque é necessário, é racionalizar os recursos, é acabar com o arquipélago deste conjunto de ilhas de muitos donos”. 77

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trativo, fosse preciso “saber, por exemplo, por que alguns juízes julgam e outros não julgam. Ou a razão de um processo demorar dois ou até três anos para sair de um gabinete a outro”80. A segunda corrente teve como defensores de destaque o Ministro Cesar Peluso, em especial como Presidente do Supremo Tribunal Federal e, portanto, do próprio CNJ, a Ministra Ellen Gracie, para quem a Corregedoria do CNJ só deveria atuar quando houvesse inação das corregedorias locais81, e os Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio. Segundo este último, em voto na ADIn n. 4.638, de 19/12/2011, para não avançar no “autogoverno dos tribunais”, tampouco invadir a esfera de competência do legislador, a atividade do CNJ haveria de ser sempre “subsidiária”, observando-se os pressupostos assinalados pelo Min. Celso de Mello: (i) a inércia dos tribunais na adoção de medidas disciplinares; (ii) a simulação investigatória; (iii) a indevida procrastinação dos atos de fiscalização; (iv) a incapacidade de o tribunal promover, com independência, procedimentos administrativos para apurar a responsabilidade dos magistrados82. Também em sentido contrário ao controle externo posicionou-se J. E. Carreira Alvim83. Inaceitável é a tese exposta por uns poucos, como José Carlos Arouca, juiz do TRT da 2ª Região, o qual, embora preserve o controle da função típica do poder – julgar –, defende um controle popular pelos sindicatos, conselhos comunitários, associações de bairros, aposentados, etc., legitimados desde os Municípios84. Embora o cidadão tenha direito de acompanhar as ações estatais e questioná-las, BUSATO, Roberto. O Controle Externo. Revista Jurídica Consulex 16 anos, 31/03/2004. NORTHFLEET, Ellen Gracie. Palestra ministrada na Escola de Magistrados do TRF da 3ª Região em 22/08/2014 (http://web.trf3.jus.br/noticias/Noticias/ Noticia/Exibir/317219). 82 ADIn n. 4.638, rel. Min. Marco Aurélio, apud BRITTO, Roberto Cajubá da Costa. A Atuação do CNJ no campo disciplinar. (Coleção Revista Jurídica Consulex 16 anos.) 83 ALVIM, J. E. Carreira. Controle externo do Poder Judiciário: meditação que se impõe, in O Terceiro no Processo Civil Brasileiro e Assuntos Correlatos. São Paulo: Revista dos Tribunais. 84 AROUCA, José Carlos. Controle externo popular para todos os poderes oficiais e oficiosos. Revista Consulex 16 anos, 31/03/2004. 80 81

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não parece produtivo, para dizer o mínimo, implementar uma estrutura nos moldes “bolivarianos”; basta essas instâncias reportarem aos agentes competentes o que entenderem de direito. No âmbito da Justiça Federal, em acréscimo à situação das corregedorias regionais85, poder-se-ia questionar, ainda, a possível duplicidade de atuação entre o Conselho Nacional de Justiça – CNJ e o Conselho da Justiça Federal – CJF, órgão vinculado ao Superior Tribunal de Justiça86, principalmente no tocante à atividade disciplinar, exercida por sua Corregedoria-Geral, uma vez que o art. 1º do Regimento Interno veiculado pela Resolução CJF n. 42, de 19/12/2008, atribui a este último a supervisão orçamentária e administrativa da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, “como órgão central de sistema e com poderes correcionais, tendo suas decisões caráter vinculante”, conforme o art. 105, parágrafo único, II, da Constituição Federal e a Lei n. 11.798/200887. Entretanto, o primeiro indicativo da falta de contradição entre as normas regimentais do CJF e as que atribuem poder semelhante ao CNJ (a servir de parâmetro para todos os demais casos) está no fato de o artigo 15, IX, do Regimento Interno do CJF deixar claro incumbir à Corregedoria-Geral deste manter contato direto com as Corregedorias dos Tribunais Regionais Federais e com a Corregedoria Nacional de Justiça – CNJ, enquanto o § 1º do artigo 17 do RI do CJF determina que “as sindicâncias, inspeções e correições serão realizadas sem prejuízo da atuação disciplinar e correicional do Conselho Nacional de Justiça”. Ademais, dita o inciso XXV deste RI que incumbe ao CJF “zelar pelo cumprimento das decisões do Conselho Nacional de Remetemo-nos àquelas referentes aos Tribunais Regionais Federais. A despeito da vinculação, é de ressaltar a autonomia institucional do CJF, à luz do art. 14 do respectivo RI. 87 A esse respeito, ver, em especial, o art. 8º do Regimento Interno do CJF, que trata da atuação de ofício ou de recurso de magistrado contra decisão administrativa dos Tribunais Regionais Federais, do julgamento de processos administrativos contra membros dessas Cortes e avaliação dos sistemas contábeis, orçamentários, financeiros, patrimoniais, de pessoal, dentre outros, da Justiça Federal, de primeiro e segundo grau, no Brasil, bem como o art. 15, incisos II, III, IV e V, referente à instauração de sindicâncias, inspeções e processos disciplinares. 85 86

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Justiça, no âmbito da Justiça Federal”. Suas decisões são vinculantes a ambos os graus de jurisdição (art. 8º, § 2º, do RI). No caso das contas, aprovadas estas pelo Plenário, o Presidente do Conselho (que também é o do Superior Tribunal de Justiça) encaminha relatório ao Tribunal de Contas da União e ao Congresso Nacional (art. 10, XXI). Assim, trabalham todos em estreita colaboração, como convém a sistema que se pretende harmônico. Apenas, enquanto as atribuições do CJF dirigem-se exclusiva e especificamente à Justiça Federal, da qual, no âmbito administrativo, ele é órgão de cúpula, o campo de ação do CNJ é bem mais largo, por alcançar todo o Poder Judiciário (art. 8º, I, do Regimento Interno do CNJ, na redação da Ementa Regimental n. 1, de 09/03/2010). Ao final do julgamento da ADIn n. 4.638, que apreciava justamente essa questão, decidiu o STF, por apertada maioria (6 votos a favor, 5 contra), ser a competência correcional do CNJ originária e concorrente com a dos tribunais. Como afirmado, na ocasião, pelo Min. Gilmar Mendes, componente da posição majoritária, “até as pedras sabem que as corregedorias não funcionam quando se cuida de investigar os próprios pares”, e, negado o poder originário do CNJ, este estaria esvaziado. Vários exemplos foram mencionados sobre essa dificuldade nos tribunais locais. Destarte, ficou assente no STF a competência do CNJ para processar e julgar qualquer reclamação ou denúncia contra magistrado de qualquer grau, independentemente da atuação de outro órgão correcional. Em suma, no âmbito do planejamento e controle das funções administrativas do Judiciário, deve haver relação de coordenação entre o CNJ, órgão de cúpula nessa matéria para o Judiciário, o CJF (na Justiça Federal) e os demais órgãos responsáveis pela administração de cada um dos Tribunais de Justiça. Quanto à competência disciplinar, o constituinte derivado fixou-a como sendo concorrente, de modo que qualquer ação dessas corregedorias (observada sua competência), voltada a apurar irregularidades ou denúncias, não obstará a atuação da outra, seja a do Estado, a do Distrito Federal, a do CJF ou, ainda, a do CNJ.

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É certo que semelhante situação poderá dar azo a procedimentos simultâneos, dúplices, que, se, por um lado, podem representar perda de tempo para o Poder Público, podem, de outro, colocar o investigado na incômoda situação de defender-se em várias frentes, simultaneamente, de um mesmo fato. Ainda assim, sopesados os valores em jogo, não há dúvida de que, entre ser ou não ser concorrente a competência, a opção que melhor atende aos propósitos do Estado Democrático de Direito é a trilhada pelo STF, a qual pode ser perfeitamente amoldada ao princípio da razoabilidade. Nada impede o CNJ de sustar sua atuação, se verificar conduta adequada do órgão correcional local. Para isso, bastará ao Relator requerer informações à corregedoria pertinente. Tudo dependerá do caso concreto. Com isso, ao mesmo tempo em que se onera menos o serviço público e o investigado, sem elidir transparência às ações estatais, assegura-se a submissão do servidor à lei e ao interesse público, salvaguardando a res publica e propiciando mais largo e minucioso controle relativamente às ações do Judiciário e de seus agentes. É pensamento similar àquele que presidiu, na constituinte, a outorga a uma pluralidade de pessoas da iniciativa das ações diretas de inconstitucionalidade e, posteriormente, das declaratórias de constitucionalidade, alargando o espectro de pessoas para isso, até a ocasião, legitimadas88: não deixar ao alvedrio de um só ou mesmo de poucos o questionamento de uma ilicitude89. Frise-se, para essa tarefa, poder a Corregedoria “requisitar das autoridades fiscais, monetárias e outras informações, exames, perícias ou documentos, sigilosos ou não, imprescindíveis ao esclarecimento de processos ou procedimentos submetidos à sua apreciação, dando conhecimento ao Plenário” (art. 8º, V), e “manter contato direto com as demais Corregedorias do Poder Judiciário” (art. 8º, XVI, RI – CNJ). Até o advento da Constituição de 1988, somente o Procurador-Geral da República detinha legitimidade para essa espécie de ação. 89 O art. 8º do Regimento Interno do CNJ atribui várias competências à sua Corregedoria-Geral, salvaguardando a possibilidade de iniciativa das demais Corregedorias. 88

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7 Conclusão Embora o princípio da separação dos poderes não revele uma fórmula fechada – ele se limita a apontar a um fim, deixando em aberto o caminho para alcançá-lo –, sua essência repousa na garantia da independência no exercício das funções básicas de cada Poder, em relação à intromissão dos demais, e, por consequência, na garantia da liberdade dos cidadãos, da segurança jurídica e da preservação do Estado de Direito. É impensável a liberdade onde não há garantia do exercício independente das funções pelas pessoas competentes. Foi lenta, todavia, a consolidação do princípio. Gestado a partir da prática política e constitucional da Inglaterra, no seio do common law, logo foi teorizado pelos juristas e filósofos dessa terra, antes de repercutir no pensamento iluminista, em especial em Montesquieu. Daí o conceito se desdobrou, de um lado, na experiência francesa, enquanto, de outro, sofria nova evolução por influência do pensamento constitucional norte-americano, particularmente sob o influxo dos autores de “O Federalista”, Hamilton, Madison e Jay, e, ainda, de John Marshall, para quem, reconhecida a supremacia da Constituição, não havia como deixar o Judiciário de exercer o controle dos atos legislativos e executivos praticados em franca violação àquela (Marbury v. Madison, 1803). Nada mais, portanto, que o reconhecimento da necessidade de “freios e contrapesos” entre os Poderes. Diante da diversidade de visões pragmáticas do princípio, no entanto, diferentes modelos foram implementados: o inglês, lastreado no common law e no parlamentarismo; o francês, com suas especificidades; e o norte-americano, mais forte no reconhecimento do controle mútuo entre os Poderes, realizado, principalmente, embora não só, a partir do controle difuso de constitucionalidade, ao qual se conjuga o princípio do stare decisis, denotativo do caráter vinculante das decisões da Suprema Corte. Assim, enquanto na Inglaterra e nos países parlamentaristas, regra geral, é maior a limitação do Executivo frente ao Legislativo,

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nos países influenciados pelo modelo francês, cedo disperso pela Europa continental, é menor a autonomia institucional do Judiciário. De todo modo, no que se refere à implementação do princípio, importa, também, verificar se o país adota o controle difuso de constitucionalidade ou, tão somente, o concentrado, no qual a função de “freio e contrapeso” deriva da atuação de um único órgão, composto de poucas pessoas. Embora, à evidência, não seja a adoção de um ou outro sistema de controle que garante maior ou menor independência ao Judiciário, por depender isso de outros fatores, é certo que, ao menos em princípio, se eficaz e livremente exercido, o controle tenderá a ter sua potencialidade maximizada, se albergados ambos os sistemas no ordenamento90. É decorrência natural da pulverização dos centros de controle. Na verdade, para que o exercício da função jurisdicional seja livre, incluído o controle da constitucionalidade dos atos dos demais Poderes, é preciso que – de fato – o ato de julgar seja exercido com independência, sem influência de qualquer espécie de pressão interna, quer oriunda da própria instituição ou de pessoas a ela vinculadas, ou externa, assim entendida a derivada de outras instituições, públicas ou privadas, ou, ainda, de grupos sociais não formalmente institucionalizados91. Afinal, é o livre exercício da função ZAFFARONI aponta não serem raros os ordenamentos que contemplam ambos os sistemas (op. cit., p. 61). Por outro lado, fala-se “em princípio”, pois, embora essa seja a semântica exata que se extrai dessa combinação de sistemas, não necessariamente a prática há de seguir essa lógica, havendo o que Zaffaroni aponta de diferença entre as funções “manifestas” e as “latentes” de um órgão, geradas por influências políticas e, principalmente, culturais, que leva a uma vivência prática diversa daquela manifestada no discurso oficial. 91 Normalmente, as “pressões externas” hão de decorrer, com maior ou menor força, sutileza e eficácia, dos Poderes Executivo e Legislativo. Em países pouco desenvolvidos ou de cultura significativamente diversa da ocidental, todavia, não é impossível que provenham de outras instituições públicas (v.g., Exército) ou privadas (v.g., empresa monopolista ou cartel representativo de segmento básico para o funcionamento da economia local, ou, ainda, de um Conselho de Clérigos, como no Irã, responsável por ditar as diretrizes supremas da nação). Tampouco, independentemente do grau de desenvolvimento, não se pode olvidar a possibilidade de pressão por parte de estruturas informais, como o crime organizado, em especial na hipótese de essa interferência, dada a falência do Estado, tornar-se diuturna e generalizada. 90

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jurisdicional, nos moldes retratados, que definirá a independência do Judiciário. Desse modo, não será, necessariamente, a existência ou não de Conselho de Magistratura que definirá a independência do Judiciário. Isso dependerá da real dinâmica do sistema, afetada pelos fatores culturais que moldam a estrutura política, social, econômica e jurídica do país, bem como da rede de garantias, funcionais ou institucionais, implantadas com o propósito de salvaguardar o livre exercício da atividade jurisdicional. Não é por outra razão que, verificados os riscos à atividade jurisdicional derivados do sistema francês, os países que o seguiram – a começar pela França (1883), seguida pela Itália (1907) – instituíram Conselhos cujo principal propósito era, ao menos manifestamente, o de assegurar a independência do Judiciário, como modo de equilibrar uma balança cujo peso preponderante era, normalmente, o do Executivo92. Sob essa perspectiva, esse órgão, nesses países, tem a função de garante da independência jurisdicional. Nada impediria, todavia, de ser o inverso, de ele servir de freio às pressões gestadas no interior do organismo judiciário, tendentes à libertação: poderia, mais que mantê-lo coeso, organizado e amoldado à legalidade, ser utilizado para, lícita93 ou ilicitamente, intervir no exercício livre de suas funções. É a prática constitucional, portanto, que definirá exatamente a posição do Conselho em determinado momento: se garantidor da independência e eficiência do Judiciário ou se seu órgão censor e manipulador. É verdade que essa conclusão não passa, tão somente, de digressão teórica, pois, considerados os principais ordenamentos dos quais se tem notícia (v.g., os da Europa Ocidental), nada leva a concluir em favor dessa segunda posição. Ao que consta, neles Segundo Zaffaroni, é certo que, no momento inicial, a preponderância, na França, era a do Legislativo; com o tempo, porém, ainda antes do I Império (1804), migrou para o Executivo. 93 Nos casos em que a própria moldura constitucional limita a atividade jurisdicional, o que, eventualmente, poderá revelar problema de legitimidade da ordem legal. 92

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está sendo cumprida a função de garante. Contudo, nada obsta que, presentes as condições necessárias, determinado ordenamento não se oriente rumo à segunda posição. Crucial na delimitação da diferença entre esses dois caminhos é – à parte a possível distância entre a norma manifesta e o comportamento efetivamente praticado, pelas razões culturais apontadas – o desenho, na primeira posição, das competências do Conselho, seus objetivos e sua composição. Particularmente quanto a esta, nota-se que, se ponderável o risco à independência do Judiciário ao compor o Conselho com pessoas majoritariamente oriundas de instituições externas a esse Poder – em especial se vinculadas a outros Poderes e, principalmente, se um for o preponderante –, não será salutar, para o próprio Poder julgador, que precisa legitimar-se perante a sociedade, se sua composição for excessivamente corporativista e alheia à visão do todo, isto é, do Estado e da sociedade. Importa, portanto, ainda que não seja fator necessariamente comprometedor, o equilíbrio na composição do órgão. Nesse passo, a linha de formação desenhada para o Conselho Nacional de Justiça, no Brasil, pela Emenda Constitucional n. 45/2004, mostra-se bastante salutar, pois eis que, embora composto majoritariamente por magistrados (60%), representativos de diferentes tribunais e instâncias, possui significativa participação (40%) de pessoas oriundas de outras instituições (Ministérios Públicos Federal e Estadual, OAB e pessoas indicadas pela Câmara e pelo Senado). Isso oferece não só maior garantia de independência ao Poder Judiciário e de compreensão de suas vicissitudes, por conta da preponderância de juízes, mas, também, considerada a origem dos demais, uma abertura pela qual se permite reflexão sobre a visão do restante da sociedade sobre as mazelas e problemas desse Poder, bem como de novas possibilidades de gestão e de soluções para essas questões. Ademais, o fato de, sem ser órgão externo ao próprio Poder, sê-lo em relação a todos os tribunais, confere-lhe bastante isenção

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para discernir, com equilíbrio, sobre a conduta dos magistrados neles atuantes, e conhecer, globalmente, a situação e os problemas existentes, de forma a exercer importante papel estratégico no planejamento das ações desse Poder; quiçá, sua competência mais relevante. Isso só é reforçado pela colocação do CNJ no ápice da estrutura administrativa do Judiciário, próximo ao Supremo Tribunal Federal, seu órgão de cúpula, que, justamente por isso, acaba por controlar, jurisdicionalmente, as decisões administrativas do CNJ. Destarte, mesmo no seio desse Poder verifica-se a instalação de “freios e contrapesos”, os quais, se, de um lado, impedem atos capazes de vulnerar sua independência jurisdicional, de outro permitem melhor planejamento e fiscalização de suas ações, em coro com os princípios da eficiência e da moralidade administrativa. Na medida em que essas ações surtam seus resultados, como, até agora, parece ser o caso brasileiro, o CNJ não pode ser ignorado ou menosprezado. Antes, merece ser valorizado, em especial pelo caráter legitimador que pode ter de um Poder, sempre acusado de distante e alheio aos reclamos da população.

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CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, SELETIVIDADE E ISS: por um sistema tributário progressivo e isonômico Hélio Silvio Ourém Campos Juiz Federal. Líder de Grupo de Pesquisa – CNPq: “Política e Tributação: aspectos materiais e processuais”; Professor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco; Professor Titular e Membro do Conselho Superior da Universidade Católica de Pernambuco (Graduação, Mestrado e Doutorado); Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutorado pela Faculdade Clássica de Direito de Lisboa; Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Faculdade Clássica de Direito de Lisboa – (Equivalência); Ex-Procurador do Estado de Pernambuco; Ex-Procurador do Município do Recife; Ex-Procurador Federal; Pós-doutorado pela Universidade Clássica de Lisboa.

Daniele Késia Marcelino dos Prazeres Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2016). Pesquisadora do grupo de pesquisa: Política e Tributação no Brasil: Um Sistema Tributário Regressivo. Aspectos Materiais e Processuais.

Resumo

Abstract

A tributação sobre o consumo representa um grande peso na renda da população brasileira, e isso se deve à primazia que o Estado dá a esta modalidade de tributo. O citado fato reflete a escolha de uma política fiscal altamente

Taxation on consumption represents a large weight in the income of the Brazilian population, and this is due to the primacy that the State gives this tribute mode. The aforesaid fact reflects the choice of a highly regressive

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regressiva, visto que os tributos sobre o consumo, por serem considerados indiretos, são embutidos nos preços das mercadorias e serviços, e o ônus tributário acaba sendo transferido para o consumidor final, onde nem sempre a sua capacidade econômica é respeitada. Assim, o propósito deste trabalho foi analisar o conteúdo do princípio da capacidade contributiva, a fim de demonstrar que ele não é respeitado pelo Imposto Sobre Serviços, bem como defender a importância da aplicabilidade dos critérios da progressividade e da seletividade ao referido imposto, já que estes são critérios realizadores do princípio da capacidade contributiva. Palavras-chave: Impostos sobre o consumo – Capacidade contributiva – Seletividade – Progressividade – ISS.

tax policy as taxes on consumption, because they are considered indirect, are embedded in the prices of goods and services, and the tax burden ends up being transferred to the final consumer, where not always its economic capacity is respected. Thus, the purpose of this study was to analyze the content of the principle of ability to pay, in order to demonstrate that it is not respected by the Service Tax and advocate the importance of applicability of progressiveness criteria and selectivity to the tax, as these are filmmakers criteria the principle of ability to pay. Keywords: Consumption tax – Ability to pay – Selectivity – Progressiveness – ISS.

1 Introdução Uma das principais características do sistema tributário brasileiro é a primazia que ele dá aos impostos sobre o consumo. Esse fato reflete a escolha de uma política fiscal que insiste em onerar mais aqueles que menos possuem poder econômico, uma vez que os impostos indiretos repercutem na cadeia de consumo transferindo o ônus tributário ao consumidor final, incorporando o tributo no preço das mercadorias e serviços. No tocante aos impostos indiretos incidentes sobre as mercadorias e serviços, destacam-se os seguintes impostos: o IPI – Imposto Sobre Produtos Industrializados, que é de competência da União; o ICMS – Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação, que é de competência estadual e distrital; e o ISS – Imposto Sobre Serviços, que é de competência municipal e distrital, sendo este último o objeto deste trabalho.

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O ISS é considerado um imposto indireto e real, ou seja, não leva em consideração os aspectos subjetivos dos contribuintes1. Além disso, apresenta sérios problemas no que diz respeito à aplicação dos princípios da capacidade contributiva e da seletividade, o que dificulta ainda mais a construção de uma matriz tributária progressiva. Sendo assim, o propósito deste trabalho é analisar o conteúdo do princípio da capacidade contributiva, a fim de demonstrar que ele não é respeitado pelo Imposto Sobre Serviços, bem como visa defender a importância da aplicabilidade dos critérios da progressividade e da seletividade ao referido imposto, já que estes são critérios realizadores deste princípio. Para tanto, este artigo irá expor a importância do princípio da capacidade contributiva como princípio limitador do poder de tributar do Estado e como instrumento para se alcançar a justiça social. Ademais, procurar-se-á demonstrar que o aludido princípio deve ser visto como a causa jurídica do imposto2 e meio para se buscar a progressividade dos impostos sobre o consumo.

2 Princípio da capacidade contributiva Quando se fala sobre o princípio da capacidade contributiva, é inevitável realizar certos questionamentos, tais como: ele alcançaria somente os impostos ou às demais espécies tributárias? Aplicar-se-á este princípio apenas aos impostos diretos ou também aos indiretos? Sendo assim, para que estes questionamentos sejam aclarados, se faz necessário conceituar o mencionado princípio, e demonstrar como este se encontra positivado no ordenamento jurídico nacional. O princípio da capacidade contributiva está disposto no artigo 145, § 1º, da Constituição vigente na seguinte forma: 1 2

ALEXANDRE, 2013, p. 73. LEÃO, 1999, p. 39.

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Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte3.

Além do conceito expresso na Constituição, Aliomar Baleeiro leciona que a capacidade contributiva é o atributo que deve qualificar alguém aos olhos do legislador para o sujeito passivo da relação tributária4. Portanto, este princípio visa proteger o contribuinte de excessos tributários realizados pelo Estado, como um bom princípio limitador do mesmo. Além do mais, por envolver a ideia de justiça, ele está diretamente ligado ao princípio da isonomia, isto é, quando obedece a um dos aspectos da igualdade, que é dar tratamento desigual para os desiguais. Logo, a incidência do tributo não pode ignorar as diferentes potencialidades econômicas dos indivíduos. No tocante ao vocábulo “imposto” contido na Constituição Federal de 1988, cumpre salientar que ele surgiu em substituição ao vocábulo “tributo”, existente na Constituição Federal de 1946, onde preceitua, em seu artigo 202, que os tributos deveriam ser graduados conforme a capacidade econômica dos contribuintes. Todavia, com a utilização do primeiro vocábulo em detrimento do segundo, pode-se denotar a ideia de que o princípio da capacidade contributiva não se aplica às demais espécies tributárias. Mesmo assim, a doutrina majoritária não vem seguindo esta interpretação tão restritiva. Nesse sentido, sustenta Luciano Amaro: Embora a Constituição (art. 145, § 1º) só se refira a impostos, outras espécies tributárias podem levar em consideração a capacidade contributiva, em especial as taxas, cabendo lembrar que, em diversas situações, o próprio texto constitucional veda 3 4

Cf. Artigo 145, § 1º, da CRFB/88. BALEEIRO, 1992, p. 259.

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a cobrança de taxas em hipóteses nas quais não se revela capacidade econômica5.

Como dito antes, o princípio da capacidade contributiva envolve a ideia de justiça, e, por conseguinte, deve-se seguir o entendimento da doutrina majoritária de que tal princípio deve alcançar as outras espécies tributárias. A aludida percepção toma como pressuposto o fato de que este preceito é dotado de força vinculante, tanto para o legislador ordinário, como para o intérprete e aplicador da norma. Logo, a sua concretização e aplicação são autoaplicáveis, assim como os demais princípios concebidos pela Carta Magna de 1988. Para finalizar os questionamentos acerca dos alcances do princípio da capacidade contributiva, convém expor sobre a polêmica expressão “sempre que possível” contida no início do artigo 145, § 1º, da Constituição Federal. Esta passagem no texto constitucional refere-se ao princípio da personalização dos impostos, que se traduz na “adequação do gravame fiscal às condições pessoais de cada contribuinte”6. Tem-se aqui uma questão muito complexa, pois esta se trata da dificuldade de aplicação do princípio da capacidade contributiva aos tributos indiretos. Surgem então as seguintes dúvidas: o “sempre que possível” trata-se da possibilidade dos tributos terem caráter pessoal sempre que isto for possível? Ou significa que sempre que possível o princípio da capacidade contributiva deve ser observado? Uma parcela da doutrina entende que esta expressão torna facultativa a aplicação do princípio da capacidade contributiva e a outra interpreta que ela torna facultativa apenas a possibilidade de os impostos serem pessoais. No entanto, apenas em uma análise superficial deste comando constitucional é que se poderia supor que a graduação dos impostos segundo a capacidade contributiva seria uma regra facultativa. 5 6

AMARO, 2013, p. 167. AMARO, 2013, p. 165.

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Desta feita, o princípio da capacidade contributiva deve ser interpretado como vinculativo e obrigatório para todos os impostos, sejam eles diretos ou indiretos. Assim, entende-se que sempre que possível os tributos terão caráter pessoal, e todos os tributos observarão o princípio da capacidade contributiva.

3 A progressividade e a seletividade do ISS como expressões do respeito ao princípio da capacidade contributiva Como é sabido, o Imposto Sobre Serviços é um imposto indireto que incide sobre o consumo, e como foi demonstrado acima, tais impostos também devem adequar-se ao princípio da capacidade contributiva, haja vista que este é um dos meios de promover a justiça tributária. Entretanto, vale frisar que ele enfrenta uma enorme dificuldade de se incorporar ao princípio citado. Mas, antes de começar a demonstrar as possibilidades de ele ser progressivo e seletivo, é importante destacar o seu conceito e aspectos gerais. O ISS é um imposto Municipal e Distrital, criado pela reforma de 1965, destinado a recair sobre serviços de qualquer natureza. Estava previsto no Código Tributário Nacional, nos artigos 71 e seguintes, sendo estes artigos revogados pelo Decreto-Lei nº 406/68. Este Decreto-Lei, por sua vez, teve seus artigos 8º, 10, 11 e 12 revogados pela Lei Complementar nº 116/2003. Esta espécie de tributo, também está prevista no artigo 156, III, e § 3º da CF, onde tais dispositivos remetem para a Lei Complementar a fixação de suas alíquotas máximas e mínimas; a exclusão da sua incidência nas exportações e serviços para o exterior; e, a regulação das formas e condições pelas quais as isenções e incentivos fiscais serão concedidos e revogados. A Lei Complementar nº 116, estabeleceu as normas gerais; fixou a alíquota máxima em 5%, mas não chegou a fixar a mínima, sendo aplicado, desta forma, a que está no art. 88 do ADCT;

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ratificou a exclusão de sua incidência na exportação de serviços para o exterior, porém, também não regulou a forma e as condições de concessão e revogação de isenções. Feitas estas considerações, passa-se a explanar sobre a aplicação dos critérios da progressividade e da seletividade no ISS. No que concerne à progressividade, é pertinente destacar que um sistema tributário progressivo é aquele que aumenta a tributação quando a renda dos contribuintes aumenta, e não o contrário, como se observa nos impostos sobre o consumo, onde o ônus tributário recai igualmente para todos os contribuintes, sem levar em consideração o seu poder aquisitivo. O princípio da progressividade, além de decorrer do princípio da capacidade contributiva, também representa uma garantia para os consumidores, pois a lei que criar os impostos deverá estruturá-los para que as alíquotas variem para mais ou para menos, à medida que forem aumentadas ou diminuídas as bases de cálculo. Desta maneira, alivia-se o ônus tributário carregado pelas classes desfavorecidas. Por exemplo, levando-se em conta que é o consumidor quem vai arcar com o custo do ISS embutido no preço do serviço, é possível colocar uma alíquota maior em um determinado tipo de serviço supérfluo, já que é presumível que aquele serviço é consumido por quem tem mais dinheiro. No âmbito jurisprudencial, extrai-se do acórdão do Recurso Extraordinário nº 153.771/MG, que o Supremo Tribunal Federal adota a tese da necessidade de previsão constitucional expressa para a aplicação da progressividade. No referido julgado, a Corte interpretou que ao IPTU não seria possível aplicar a progressividade, tendo em vista que esse imposto tem caráter real, o que, segundo os ministros, é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte7. 7

Cf. RE 153.771/MG.

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Por outro lado, a legislação constitucional avançou com a criação da EC nº 29/00, que deu nova redação ao art. 156, § 1º, da CF, prevendo a progressividade do IPTU, vinculada à capacidade contributiva e calculada em razão do valor venal do imóvel. Já no que tange ao critério da seletividade, insta salientar que por meio dele o gravame fiscal tende a ser inversamente proporcional à essencialidade do bem8. Ou seja, a seletividade supõe a adoção de uma lista de alíquotas diferenciadas conforme forem essenciais ou não as mercadorias e serviços. Também é importante destacar que a Constituição Federal não faz qualquer alusão sobre a possibilidade de o ISS ser seletivo. Neste caso, apenas estabelece que a seletividade deve ser obrigatória para o IPI, em função da essencialidade do produto (art. 153, § 3º, I); e facultativo para o ICMS, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços (art. 155, § 2º, III). Contudo, nada impede que, em função da natureza do serviço, o ISS seja seletivo, desde que respeitadas as suas alíquotas mínimas e máximas. Ou seja, com base no princípio da isonomia e no princípio da capacidade contributiva, é perfeitamente possível que o princípio da seletividade seja aplicado ao Imposto Sobre Serviços. Dessa forma, se os serviços essenciais forem menos tributados, eles serão mais acessíveis para os indivíduos de baixa renda. Por fim, resta evidente que estas medidas visam favorecer os consumidores finais, já que, no final das contas, são os que suportam a carga econômica dos tributos indiretos9.

4 Conclusões Por adotar uma política de valorização da tributação sobre o consumo, o sistema tributário brasileiro é considerado injusto e regressivo. Por esse motivo, o presente trabalho se preocupou em apontar algumas alternativas para atenuar esse problema. 8 9

AMARO, 2013, p. 166. CARRAZZA, 2010, p. 105.

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No estudo sobre a possibilidade de aplicação do princípio da capacidade contributiva no Imposto Sobre Serviços, procurou-se conceituar o referido princípio, bem como os subprincípios da progressividade e seletividade, a fim demonstrar a sua importância para a construção de um sistema tributário mais isonômico e progressivo. Ao longo da pesquisa, foi demonstrado que o princípio da capacidade contributiva não só deve ser aplicado aos impostos, como diz o texto do art. 145, § 1º, da Constituição, como também deve ser aplicado a todos os tributos, uma vez que é dotado de forma vinculante, tanto para o legislador ordinário, como para o intérprete e aplicador da norma. Além disso, restaram evidenciadas as possibilidades de aplicação dos critérios da progressividade diante de serviços considerados supérfluos; bem como o da seletividade, com a adoção de alíquotas diferenciadas conforme forem essenciais ou não os serviços. Assim, ao analisar este fato sobre o viés de determinados ditames constitucionais, algumas sugestões, tais como a de aplicação da isonomia, da progressividade e da seletividade no Imposto Sobre Serviços podem parecer inconcebíveis. Em contrapartida, a Constituição é um documento que deve ser interpretado integralmente e não em retalhos, onde o legislador tem o papel de usar os tributos como ferramentas capazes de concretizar os objetivos fundamentais da República, elencados no artigo 3º e seus incisos.

Referências ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 7. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à Ciência das Finanças. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.

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CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. LEÃO, Armando Zurita. Direito constitucional tributário: o princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.

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o direito de superfície na Alemanha E O SEU caráter social Leonardo Estevam de Assis Zanini Pós-doutorado em Direito Civil pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Alemanha). Pós-doutorado em Direito Penal pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela USP. Juiz Federal. Professor Universitário. Pesquisador do grupo Novos Direitos CNPq/UFSCar. Autor de livros e artigos publicados nas áreas de direito civil, direitos intelectuais, direito do consumidor e direito ambiental. Foi bolsista da Max-Planck-Gesellschaft e da CAPES. Ex-Delegado de Polícia Federal. Ex-Procurador do Banco Central do Brasil. Ex-Defensor Público Federal. Ex-Diretor da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Ex-Diretor Acadêmico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores da Justiça Federal em São Paulo.

Resumo

Abstract

O artigo aborda os aspectos mais relevantes do direito de superfície na Alemanha, dando enfoque à sua função social. Inicia as investigações com um breve estudo histórico, no qual são destacadas as particularidades do seu desenvolvimento. Realiza um exame da matéria na Alemanha, com destaque para alguns pontos como: natureza jurídica, utilidade prática, áreas de utilização,

The article discusses the most important aspects of the above-ground rights in Germany by focusing its social function. It initiates the investigations with a brief historical study, in which are highlighted the peculiarities of its development. The work conducts an examination of the matter in Germany, highlighting some points such as: legal nature, practical use, areas of

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caráter social, constituição, transferência e extinção desse direito. Por fim, o trabalho questiona a não utilização do instituto no Brasil, o que pode ser repensado se considerarmos o exemplo alemão, em especial no que toca ao seu possível aspecto social.

use, social character, establishment, transfer and extinction of that right. Finally, the work questions the non-use of the institute in Brazil, which can be rethought if we consider the German example, especially with regard to its possible social aspect.

Palavras-chave: Direito de superfície – Direitos reais – Direito alemão – Função social.

Keywords: Above-ground rights – Real rights – German law – Social function.

1 Introdução O presente artigo objetiva apresentar breves considerações sobre o direito de superfície na Alemanha, examinando seus aspectos mais relevantes. Não se trata, obviamente, de uma análise exaustiva ou minuciosa do tema, o que é feito pela doutrina alemã em trabalhos que consomem, muitas vezes, mais de quinhentas páginas. De qualquer forma, nosso estudo dará ao leitor uma visão geral desse instituto, permitindo também sua comparação com a legislação brasileira. A proposta decorre da curiosidade de se saber como o direito de superfície é regulado e utilizado em um ordenamento jurídico que já o conhece há muito tempo. Tal curiosidade se deve ao fato de que, em nosso país, dada a sua recente reintrodução na legislação civil, a utilidade prática do instituto ainda não se revelou. A falta de relevância prática pode decorrer de diversos fatores, como o seu desconhecimento pela população, a ausência de tradição na sua utilização, ou mesmo por desconfiança, pelo fato de criar um direito real sobre um terreno alheio, que certamente dá muitas garantias ao superficiário. Diferentemente do Brasil, na Alemanha, como veremos, a superfície não é um instituto sem utilização, existindo um número considerável de imóveis construídos sobre terrenos de terceiros. Além disso, é de se notar que ela foi um instrumento fundamental

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para a organização de espaços urbanos, para a reconstrução do país após as duas grandes guerras, bem como para o cumprimento da função social da propriedade. Desse modo, acreditamos que algumas considerações a respeito do direito de superfície na Alemanha podem permitir reflexões acerca do papel desse instituto não somente no âmbito jurídico brasileiro, mas também no que toca à sua possível utilização socioeconômica.

2 Histórico 2.1 Das origens romanas ao final do século XIX O direito de superfície, presente no Código Civil brasileiro de 2002 (arts. 1.369 a 1.377) e no ordenamento jurídico de muitos países ocidentais, não é nenhuma novidade. Suas origens remontam ao Direito Romano, que previa o instituto da superfícies. Originariamente, a superfícies não era um direito real, mas sim uma espécie de contrato de locação por longo prazo, que tinha como partes Roma e um particular (perpetuarius), objetivando a regulação das relações decorrentes de construções que esse particular havia erigido em solo público (superficiariae aedes), o que incluía o pagamento de uma contraprestação, chamada de solarium. Para imóveis rurais também havia um instituto correspondente, denominado ager vectigalis1. Entretanto, com o passar do tempo, o instituto, concebido inicialmente como um contrato integrante dos direitos obrigacionais (pessoais), passou a receber, por obra pretoriana, proteção dos interditos, tornando-se, paulatinamente, um direito real. Na Idade Média, a superfície, apesar de conhecida, não foi muito utilizada, dando espaço ao desenvolvimento de outros ins1 BALLIF, Alban. Le droit de superfície. Eléments réels, obligations propter rem et droits personnels annotés. Zürich: Schulthess, 2004, p. 1.

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titutos muito próximos, como é o caso da chamada “städtische Bauleihe” (ou Bodenleihe)2. Tal instituto jurídico foi bastante importante para o desenvolvimento de muitas cidades alemãs, possibilitando a concessão de um direito real sobre um terreno, uma espécie de propriedade útil (dominium utile) sobre a construção nele realizada, surgindo como contrapartida o pagamento de uma prestação, normalmente anual. Esse direito era transmissível por herança, mas não podia ser alienado3. A despeito da semelhança com a superfície, assevera-se que a Bauleihe surgiu pelo fato de que as casas na Alemanha eram consideradas como propriedade distinta do solo, como bens móveis. E isso se explica porque na maioria das vezes eram construídas em madeira e tinham poucas fundações, o que permitia que fossem desmontadas e construídas em outros lugares. Por consequência, dada a facilidade de retirada da casa, o instituto da superfície perdia a razão de existir4. Mais tarde, com o processo de recepção do direito romano na Alemanha (Rezeption des römischen Rechts), o princípio da acessão, que tinha se perdido, passou a ser aplicado a tudo aquilo que se ligava ao solo de maneira durável (superfícies solo cedit), particularmente às plantações, e não somente às construções5. Em função da mudança, foi incorporada a superfícies romana ao direito vigente, mas houve uma parcial mistura do instituto romano com a “städische Bauleihe”6. Assim, a partir da fusão entre o instituto romano e o germânico, surgiram direitos (híbridos) que

INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed. Düsseldorf: Werner, 2001, p. XXI. 3 OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 13. 4 BALLIF, Alban. Le droit de superfície, p. 2. 5 INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed. Düsseldorf: Werner, 2001, p. XXI. 6 DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1394. 2

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receberam várias denominações, como Superfiziarrecht, Platzrecht, Baurecht ou Kellerrecht7,8. Com a Revolução Francesa, as raízes romanas da propriedade foram recobradas, passando-se a uma concepção individualista. Em virtude dessa concepção, o direito de superfície foi visto como um corpo estranho e colocado em segundo plano, uma vez que as ideias revolucionárias não se adaptavam a qualquer instituto que remetesse ao período medieval: ao direito feudal e seus privilégios. A dogmática da época era contra institutos jurídicos que desmembrassem o direito de propriedade9, como era feito na Idade Média, o que levou à utilização bastante reduzida da superfície no século XIX10,11.

2.2 Da entrada em vigor do Código Civil alemão à Lei do Direito de Superfície A despeito da orientação francesa pregando sua abolição, o Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), em vigor desde 1.1.1900, não chegou a excluir a superfície de suas disposições. Entretanto, a matéria foi tida pela codificação como sem importância, sobretudo como um corpo estranho no âmbito da propriedade, tendo sido regulamentada de forma incompleta nos §§ 1012 a 1017 do BGB12. RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 4. 8 Vale notar que, no âmbito dos países de língua alemã, o instituto da superfície não tem denominação uniforme, diferentemente do que ocorre nos países de língua neolatina. Na Áustria, por exemplo, o instituto é denominado Baurecht (IRO, Gert. Bürgerliches Recht. Sachenrecht. Wien: Springer, 2000, v. IV, p. 173). 9 OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 14. 10 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 4. 11 O mesmo não ocorreu, por exemplo, na Inglaterra, onde houve a expansão de instituto com raízes semelhantes, a chamada “building lease” (OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C. H. Beck, 2009, v. 6, p. 1505). 12 OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C. H. Beck, 2009, v. 6, p. 1505. 7

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Contudo, após a entrada em vigor do BGB, houve, no início do século XX, um grande aumento da população, o que conduziu, consequentemente, a uma elevação na demanda por moradias e a uma valorização do preço dos imóveis. Em função dessas mudanças socioeconômicas, viu-se a necessidade da utilização do instituto da superfície (Erbbaurecht), que na prática não vinha encontrando uso, para o combate à especulação dos preços dos imóveis, bem como para dar oportunidade à população mais carente de adquirir uma propriedade13. Assim, como a regulamentação pelo BGB era insuficiente, praticamente não permitindo o uso do instituto, a única solução encontrada para resolver o problema foi a elaboração de uma nova legislação para cuidar de toda a matéria atinente ao direito de superfície. Com isso, os §§ 1012 a 1017 do BGB foram substituídos pela Ordenança sobre o Direito de Superfície (Verordnung über das Erbbaurecht – ErbbauVO), que entrou em vigor em 22.1.1919 e regulou a matéria de forma detalhada14. De qualquer forma, conforme o § 38 da referida legislação, os §§ 1012 a 1017 do BGB continuaram em vigor, particularmente no que toca às superfícies constituídas até a entrada em vigor da ErbbauVO. Posteriormente, com uma Lei de 23.11.2007, houve a alteração da denominação da ErbbauVO, que passou a ser chamada de Lei do Direito de Superfície (Erbbaurechtsgesetz – ErbbauRG). Contudo, a alteração promovida foi apenas no nome do instituto, não sendo realizada nenhuma reforma no conteúdo propriamente dito da legislação15.

3 Caráter social O direito de superfície foi estabelecido na Alemanha com a finalidade de promover a construção de moradias, particularmente OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 14. VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 599. 15 BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht, p. 382. 13

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para as classes sociais menos favorecidas, e também como instrumento de combate à especulação imobiliária16. Nessa linha, o direito de superfície tem considerável importância social, uma vez que permite a construção de casas para moradia, sem que haja necessidade de dispêndio de dinheiro para a aquisição do terreno. Assim, a pessoa pode deixar de empregar o capital na aquisição do terreno e, em contrapartida, simplesmente paga uma espécie de remuneração (Erbbauzins) correspondente apenas ao valor da utilização do terreno17. Logicamente referida remuneração também não pode ter caráter especulativo, devendo estar ao alcance daqueles que pretendem construir seu imóvel. Com isso, há uma redução no custo total que seria empregado na aquisição de uma casa, visto que aquele que pretende realizar a construção não precisará se privar de suas economias com a compra do terreno, necessitando se preocupar apenas com a construção de sua moradia18. E mesmo no que toca à construção, é interessante observar que na Alemanha, como regra, é possível a obtenção de financiamento com taxas de juros bem reduzidas, muito diferentes das cobradas no Brasil. Vale ainda notar que a propriedade da edificação não está ligada, pelo menos do ponto de vista jurídico, à propriedade do terreno. Assim, tanto o proprietário do terreno onerado como o superficiário participam da valorização imobiliária proporcionada pela construção19. Ademais, em razão de eventual contratação por um prazo bastante amplo, o superficiário chega mesmo a ter a impressão de que é o proprietário não somente da edificação, mas também do terreno, já que muitas vezes o acordo pode vigorar por duas ou três gerações20. OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 15. BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht, p. 382. 18 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 379. 19 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 599. 20 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 379. 16 17

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Outrossim, na hipótese de concessão estatal do direito de superfície, com o decurso do prazo da contratação é possível que o terreno venha a ter outra finalidade pública, isto é, a construção que lá ficou pode ser posteriormente utilizada pelo ente estatal, por exemplo, para ser sede de um órgão público. Ainda, a superfície pode ser renovada em condições favoráveis, sem ser considerada a sua valorização. Por outro lado, é de se notar que na Alemanha os governos locais também passam por dificuldades orçamentárias, de modo que não é tarefa fácil a aquisição de grandes áreas, relativamente caras, para o posterior estabelecimento do direito de superfície em favor daqueles que estão incluídos na política habitacional. Isso sem falar na necessidade do estabelecimento de remuneração razoável pelo direito de superfície21. Por conseguinte, ainda que existam dificuldades, não se pode deixar de apontar a importância da superfície na facilitação do acesso à moradia, bem como na organização da política urbana, em função do loteamento de imóveis para tal finalidade. Desse modo, a concessão do direito de superfície continua, na atualidade, tendo significação social na Alemanha, havendo, nesse sentido, especial atenção dos governos locais e das instituições religiosas22.

4 Outras áreas de utilização Como foi visto, após a entrada em vigor da Ordenança sobre o Direito de Superfície (ErbbauVO), iniciou-se a concessão desse direito, principalmente por parte dos entes estatais e de instituições religiosas, que em razão de considerações de ordem social, procuraram auxiliar famílias carentes a ter um imóvel para moradia23. OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 15. DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1394. 23 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 599. 21

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Vale notar, entretanto, que o instituto não ficou limitado à construção de moradias, sendo possível sua instituição para construção de áreas, por exemplo, para prática de esportes, com fins comerciais ou industriais, bem como para instituições científicas ou de ensino24. Aliás, nos casos em que normalmente o Poder Público brasileiro realiza uma contratação por um longo prazo, cedendo um terreno em comodato para determinada instituição, na Alemanha temos, na mesma situação, a utilização do direito de superfície, que dá maior proteção para aquele que irá realizar a construção no terreno, isto é, há maiores garantias por se tratar de um direito real e não meramente obrigacional25. Ademais, a superfície também é utilizada por particulares que querem aproveitar economicamente seus terrenos, permitindo, assim, a realização de construções para fins não somente residenciais, mas também comerciais ou industriais26, como é o caso da utilização de um terreno para construção de usinas de energia eólica ou para a edificação de um centro de compras. Destarte, a superfície pode ser utilizada não somente para construção de moradias, mas para todo tipo de edificação a ser realizada em terreno alheio, tendo relevância tanto pelo seu aspecto social como econômico.

5 Significação prática O direito de superfície é um instituto que encontra reflexo no tráfego jurídico alemão. Em um primeiro momento houve o aumento de sua utilização no início do século XX, em função da demanda BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht, p. 383. Nesse ponto, podemos citar, por exemplo, o caso do Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht, que recebeu o direito de superfície sobre um terreno da municipalidade de Hamburgo para a edificação de sua sede. 26 BAUR, Fritz; STÜRNER, Rolf. Sachenrecht. 18. ed. München: C.H. Beck, 2015, p. 387. 24 25

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por moradias. Posteriormente, houve forte expansão da sua utilização no período que se seguiu ao término na Segunda Guerra Mundial, em virtude dos trabalhos de reconstrução do país27. De fato, conforme dados oficiais relativos a pesquisas realizadas nos registros imobiliários dos estados da Baviera e de Hessen, em 1970 existiam 39.278 direitos de superfície na Baviera, enquanto que Hessen contava com 19.556. As pesquisas ainda apontaram que nos livros de registro de imóveis o volume do direito de superfície correspondia a 1,7% das propriedades na Baviera e a 1,41% em Hessen. Ademais, em outra pesquisa, realizada em bancos hipotecários (Hypothekenbanken), foi verificado que 3% do total dos empréstimos foram realizados para fins de superfície28. Outrossim, a importância do instituto fica ainda mais evidente quando nos deparamos com um estudo da “Initiative Erbbaurecht”, de 2008, o qual apontou que cerca de 5% das áreas de moradia na Alemanha foram constituídas com a existência do direito de superfície. E a expansão tem contado mais recentemente com áreas cada vez maiores e com a concessão não apenas pela Igreja, por entes estatais ou ligados ao Estado, mas também por proprietários particulares29. Por conseguinte, o direito de superfície na Alemanha não é um instituto sem utilidade, meramente previsto no BGB e na legislação. Trata-se de instituto que realmente tem aproveitamento prático.

6 Natureza jurídica A natureza jurídica do direito de superfície no Direito alemão apresenta discussão doutrinária. Em realidade, o debate decorre da 27 OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C. H. Beck, 2009, v. 6, p. 1506. 28 OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 18. 29 OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 19.

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própria forma de estruturação desse direito, que difere da existente no Código Civil brasileiro, onde, até pela localização da matéria, está claro se tratar de um direito real sobre coisa alheia. Inicialmente, deve-se observar que, conforme o disposto no § 12 da ErbbauRG, não vigora em face do direito de superfície o princípio de que toda edificação que se liga ao solo passa a ser componente integrante do imóvel (superfícies solo cedit) e, por conseguinte, propriedade de seu titular. Nesse contexto, segundo parte da doutrina, como a legislação alemã considera que o superficiário se torna proprietário da edificação, a superfície não consistiria em um desdobramento da propriedade e nem em um regime de copropriedade. Desse modo, asseveram os estudiosos que a superfície concede a possibilidade de alguém ser proprietário de um edifício, sem ser, ao mesmo tempo, proprietário do imóvel onde foi erigida a construção, de maneira que não somente no aspecto econômico, mas também no âmbito jurídico o proprietário do imóvel e o proprietário da construção estão separados, são titulares de direitos não idênticos30. Assim, conforme tal linha de raciocínio, a superfície pode ser tratada como um direito de propriedade, de forma que pode ser transferida, onerada e registrada em livro próprio no registro de imóveis, denominado Erbbaugrundbuch (§ 14 ErbbauRG)31. Aliás, como se concede não somente a propriedade sobre a construção, mas também um direito real à utilização de um terreno pertencente a outra pessoa, não estaríamos, conforme entendimento de parte da doutrina, diante de um direito real limitado. Tratar-se-ia, então, de um direito sui generis, situado entre as servidões pessoais e a propriedade fundiária. INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed. Düsseldorf: Werner, 2001, p. XXI. 31 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 600. 30

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Por outro lado, há estudiosos que afirmam ser um direito real sobre um terreno alheio, que, com determinadas exceções, é tratado como o direito de propriedade, sobretudo pelo fato de poder ser onerado32. Argumentam que a concepção da superfície como um direito real sobre coisa alheia deflui do texto legal, o qual menciona que: “um terreno pode ser onerado do modo...” (§ 1 ErbbauRG). Ora, tal expressão seria a mesma utilizada nos direitos reais limitados, ou seja, nos §§ 1018, 1090, 1094, 1105, 1113, 1191 do BGB, o que levaria à conclusão de se tratar de um direito real limitado33. De qualquer modo, não obstante a existência dos mencionados entendimentos, não há dúvida que, do ponto de vista do proprietário do terreno, o direito de superfície é um direito real limitado, que onera sua propriedade. Ademais, é certo que tal direito real limitado é tratado de forma assemelhada a uma propriedade imobiliária34. Por isso, a maioria da doutrina considera que esse direito tem dupla natureza jurídica (Doppelnatur).

7 Conceito O direito de superfície é um direito real de utilização e edificação em um terreno alheio35. A concessão desse direito é, do ponto de vista jurídico, uma forma de onerar a propriedade de um terreno com um direito real limitado36.

STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007, v. 15-1, p. 302. 33 OEFELE, Helmut Freiherr von; WINKLER, Karl. Handbuch des Erbbaurechts, p. 23. 34 BAUR, Fritz; STÜRNER, Rolf. Sachenrecht. 18. ed. München: C.H. Beck, 2015, p. 385. 35 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 3. 36 INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed. Düsseldorf: Werner, 2001, p. 231. 32

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Conforme a definição extraída do § 1 da ErbbauRG37, o direito de superfície é um direito concedido a uma pessoa, alienável e transmissível por sucessão38, que grava um terreno, permitindo a realização de construções sobre a sua superfície e no seu subsolo. Possibilita, assim, a edificação em um terreno de propriedade de outra pessoa, bem como sua utilização por determinado prazo39. Destarte, trata-se de um direito que, salvo exceções previstas pelo § 11, está submetido às disposições concernentes aos imóveis. Assemelha-se ainda à propriedade pelo fato de possuir registro próprio no registro imobiliário, bem como por poder ser cedida e gravada independentemente da propriedade do terreno.

8 Definição de construção e de edifício A legislação faz uso dos conceitos de construção (Bauwerk) e edifício (Gebäude), no entanto, não apresenta uma definição legal. Com isso, esses preceitos necessitaram ser extraídos da linguagem geral e dos usos do tráfego jurídico40.

Como já foi mencionado, a matéria não encontra atualmente regulação no BGB, mas eventuais superfícies constituídas até 22 de janeiro de 1919 continuam sendo tratadas apenas pelos §§ 1012 a 1017 do BGB. Também vale notar que a ErbbauVO recebeu importante complementação pela Lei de alteração do direito das coisas, de 21.9.1994 (SachenRÄndG). Ademais, pelo art. 25 da Lei de 23.11.2007 houve a alteração do nome da legislação, que passou a ser Erbbaurechtsgesetz (PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 372). 38 O nome do instituto no idioma alemão decorre justamente do fato de se tratar de uma construção (ou edificação) transmissível por herança, daí a expressão Erbbaurecht, que seria, em uma tradução literal para o português, um direito de construção herdável (RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 3). 39 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 599. 40 DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1398. 37

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No que toca à expressão construção (Bauwerk), podemos encontrar várias definições na doutrina, mas ainda é usual a utilização da concepção apresentada pelo antigo Tribunal do Império (Reichsgericht), que a considerava como a coisa imóvel (ligada ao solo) e produzida com a utilização de trabalho e materiais estranhos ao solo. Tal concepção é ainda hoje adotada pela doutrina majoritária41. O conceito de edifício (Gebäude) dado pelo Bundesgerichtshof – BGH42, por seu turno, considera se tratar de uma construção delimitada espacialmente e protegida contra a influência exterior, cuja entrada de pessoas demanda autorização43. Por conseguinte, no âmbito do direito de superfície estão incluídas todas as espécies de edificação, localizadas na superfície ou no subsolo (auf oder unter der Oberfläche)44. Como exemplos, extraídos da prática, podemos citar: moradias, garagens subterrâneas, instalações portuárias e ferroviárias, prédios, postos de gasolina, quadras esportivas, playgrounds, monumentos e instalações relacionadas ao tráfego, como pontes e viadutos. Nessas hipóteses, a edificação é considerada um componente do direito de superfície, fazendo parte da propriedade do superficiário e não do dono do terreno45.

9 A superfície e outros institutos similares No âmbito dos direitos reais, o usufruto (Nieβbrauch) não se adequa às mesmas finalidades da superfície. De fato, conforme o Transcrevemos a definição no original: “eine unbewegliche, durch Verwendung von Arbeit und Material in Verbindung mit dem Erdboden hergestellte Sache” (DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1398). 42 O BGH é um tribunal alemão que corresponderia, no Brasil, ao STJ. 43 Transcrevemos a definição no original: “eine unbewegliche, durch Verwendung von Arbeit und Material in Verbindung mit dem Erdboden hergestellte Sache” (DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1398). 44 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 23. 45 WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015, p. 35. 41

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§ 1061, 1 do BGB, o usufruto se extingue com a morte do usufrutuário, sendo intransferível (§ 1059). Também é intransferível o direito de habitação (Wohnungsrecht), conforme estabelecem os §§ 1092 e 1093 do BGB46. O direito alemão igualmente distingue a superfície do contrato de locação (Mietvertrag) ou do arrendamento (Pachtvertrag). Realmente, enquanto a superfície cria um direito real, a locação ou o arredamento constituem apenas um direito obrigacional. Além disso, o superficiário pode alienar ou onerar seu direito, o que não é admitido na locação ou no arrendamento. Outro ponto de divergência é o prazo de duração, pois a superfície pode ser concedida por longo prazo, já no contrato de locação os prazos são, em geral, mais reduzidos, podendo ser admitida a contratação por até 30 anos ou pelo tempo de vida do locatário (§ 544 do BGB)47.

10 Objeto (Belastungsgegenstand) O objeto a ser onerado é o imóvel em sua integralidade, isto é, um terreno (Grundstück). Não pode se tratar apenas de uma parte do terreno ou de uma parte de uma copropriedade, visto que é necessário que uma parte real (e não ideal) seja objeto de registro imobiliário48. Todavia, o exercício da superfície pode ser limitado a uma parte do imóvel. Ademais, também se admite a constituição de um direito de superfície sobre mais de um terreno (Gesamterbbaurecht)49. Não é permitido onerar um condomínio edilício com a superfície, pois no caso não se trata de um terreno para edificação. Além disso, sobre o terreno do condomínio igualmente não seria BREHM, Wolfgang; BERGER, Christian. Sachenrecht, p. 382. RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 3-4. 48 STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007, v. 15-1, p. 302. 49 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 375. 46 47

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possível, visto que não se permite o estabelecimento de superfície quando haja uma propriedade especial ou uma utilização especial dessa propriedade decorrente da regulamentação do condomínio. Todavia, essa última questão é discutível50. Outrossim, a doutrina alemã se divide quanto à admissão de uma sobrelevação ou subsuperfície (Untererbbaurecht)51. Nesse caso, não seria onerado propriamente um terreno, mas sim uma outra superfície. Entretanto, a legislação sobre registro de imóveis (Grundbuchordnung – GBO) reconhece a possibilidade em seu § 6, 2, mencionando-a expressamente. Diferentemente do que ocorre no Brasil, não cabe na Alemanha o direito de superfície para fins de plantação52. Para remediar essa impossibilidade, as partes do imóvel que não forem necessárias para a construção da edificação podem ser usadas para tal finalidade, como é o caso de jardins de ornamentação. Em todo caso, a edificação continua sendo o objeto principal53.

11 Conteúdo legal (Gesetzlicher Inhalt) O conteúdo legal da superfície deve existir, pois caso contrário não haverá o surgimento desse direito. A matéria é definida pelo § 1 da ErbbauRG, que inclui como conteúdo obrigatório a existência de um direito real sobre a superfície de um terreno ou ao seu subsolo, permitindo-se a realização de edificações. Consequentemente, o RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 24. 51 Vale notar que o BGH reconhece a subsuperfície (BGHZ 62, 179 = NJW 1974, 1137). 52 No Direito brasileiro, a constituição de superfície para fins de plantação está expressamente prevista no art. 1.369 do Código Civil. 53 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 26. 50

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titular do direito de superfície torna-se proprietário das obras realizadas no imóvel54. A superfície constitui, no Direito alemão, o maior ônus que pode ser imposto sobre uma propriedade, visto que o proprietário do terreno perde a sua posse direta e o superficiário pode erigir uma construção, ocupá-la, utilizá-la, destruí-la e substituí-la. De qualquer forma, vale observar que na concessão do direito de superfície deve ser prevista, de forma mais ou menos clara, como a edificação será realizada55. De fato, o gênero da construção e a sua extensão devem necessariamente ser definidos, visto que um direito real deve ser suficientemente determinado (Bestimmtheitsprinzip). Aliás, é esse conteúdo determinado que levará à aquisição, por parte do superficiário, da propriedade sobre a construção. Outrossim, a cessibilidade (Veräuβerlichkeit) e a transmissibilidade por herança (Vererblichkeit) fazem parte dos elementos característicos obrigatórios do direito de superfície. Por fim, além do direito de edificação como elemento principal, também se garante eventual direito acessório de uso sobre áreas não edificadas.

12 Conteúdo contratual (Vertraglicher Inhalt) O conteúdo legal do direito de superfície não é suficiente para regular as relações entre superficiário e o proprietário do terreno. Ao lado do conteúdo legal, o § 2 da ErbbauRG dispõe que as partes podem, contratualmente, criar outros direitos e obrigações, o que na prática é muito comum56.

VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 601. 55 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 601. 56 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 373. 54

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Como regra, tal contratação deveria ter efeito meramente obrigacional, não valendo contra qualquer sucessor, particularmente se este não teve conhecimento do vínculo obrigacional. Contudo, no que toca ao conteúdo do direito de superfície, a legislação protege a contratação com eficácia real. Assim sendo, ficam vinculados ao estabelecido tanto os atuais como os futuros proprietários do terreno e superficiários57. O possível conteúdo contratual é enumerado, de forma não taxativa, pelo § 2 da ErbbauRG, podendo abranger disposições sobre: 1) a construção, a manutenção e a utilização da edificação; 2) o seguro da edificação e sua reconstrução em caso de destruição; 3) a responsabilidade por encargos públicos e privados; 4) a obrigação do superficiário, se preenchidas determinadas condições, de transferir a superfície ao proprietário do terreno (reversão – Heimfall); 5) responsabilidade do superficiário pelo pagamento de multas contratuais; 6) concessão de direito de preferência ao superficiário para a renovação da superfície depois de decorrido seu prazo; e 7) a obrigação do proprietário do terreno de vendê-lo ao superfíciário58. Além disso, pode ser também estabelecido, como conteúdo contratual, a necessidade do consentimento do proprietário do terreno para a alienação da superfície pelo superficiário, bem como para o estabelecimento de hipoteca (Hypothek), de dívida imobiliária (Grundschuld), de dívida imobiliária em forma de renda (Rentenschuld) ou de ônus reais (§ 5 da ErbbauRG). Ficam sem validade eventuais obrigações estabelecidas sem a observância do necessário consentimento do proprietário do terreno (§ 6 da ErbbauRG). PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 373. § 2 da ErbbauRG: “Zum Inhalt des Erbbaurechts gehören auch Vereinbarungen des Grundstückseigentümers und des Erbbauberechtigten über: 1. die Errichtung, die Instandhaltung und die Verwendung des Bauwerks; 2. die Versicherung des Bauwerks und seinen Wiederaufbau im Falle der Zerstörung; 3. die Tragung der öffentlichen und privatrechtlichen Lasten und Abgaben; 4. eine Verpflichtung des Erbbauberechtigten, das Erbbaurecht beim Eintreten bestimmter Voraussetzungen auf den Grundstückseigentümer zu übertragen (Heimfall); 5. eine Verpflichtung des Erbbauberechtigten zur Zahlung von Vertragsstrafen; 6. die Einräumung eines Vorrechts für den Erbbauberechtigten auf Erneuerung des Erbbaurechts nach dessen Ablauf; 7. eine Verpflichtung des Grundstückseigentümers, das Grundstück an den jeweiligen Erbbauberechtigten zu verkaufen”. 57 58

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Portanto, pode-se notar que vários elementos previstos legalmente como integrantes do direito de superfície no Brasil, como é o caso do direito de preempção, não são concedidos pela legislação alemã, sendo necessário seu estabelecimento pela via contratual. Há então uma maior autonomia no Direito alemão no que toca à constituição de direitos e obrigações das partes.

13 Surgimento e transferência (Entstehung und Übertragung) A concessão e a transmissão do direito de superfície seguem os princípios gerais atinentes à propriedade imobiliária (§§ 873 e ss do BGB). O surgimento da surperfície não segue, entretanto, a forma estabelecida para alienação da propriedade imobiliária, mas sim as disposições atinentes à sua oneração59. Pressupõe a existência de dois contratos. O primeiro negócio jurídico, um contrato no qual alguém se obriga a fazer a concessão (ou transmissão) do direito de superfície, deve seguir a forma estabelecida no § 311b 1 BGB e deve ser realizada perante o notário. Trata-se de um contrato regido pelo direito obrigacional, que cria obrigações para as partes, semelhante ao contrato de compra e venda60. Contudo, é necessário, conforme o § 873 do BGB, um segundo negócio jurídico, que constitui um acordo real de cumprimento (dingliches Erfüllungsgeschäft). Até a entrada em vigor da ErbbauVO, tal acordo tinha a forma da Auflassung (§ 925 do BGB)61, mas essa forma não é mais prescrita (§ 11, 1 ErbbauRG). Por fim, há o registro RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 41. 60 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 374. 61 No Direito brasileiro não há um tipo de negócio jurídico como a Auflassung. Ela constitui um acordo de transferência da propriedade relativa a um imóvel, que segue a forma prevista no § 925 do BGB (JAYME, Erik; NEUSS, Jobst-Joachim. Wörterbuch Recht und Wirtschaft. Deutsch-Portugiesisch. 2. ed. München: C.H. Beck, 2013, t. 2, p. 20). 59

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imobiliário (Eintragung im Grundbuch), surgindo então o direito de superfície62. Outrossim, também existem outras formas de surgimento, como: a desapropriação (Enteignung), que sucede em função da legislação federal ou dos estados63 e; a usucapião tabular (Tabularersitzung), conforme o § 900, 2 do BGB, que ocorre se a superfície ficou durante 30 anos erroneamente registrada no registro imobiliário e aquele que a registrou a possuiu durante esse tempo como se fosse sua, não se fazendo necessária a prova de boa-fé64. A superfície é duplamente registrada no registro de imóveis, o que é feito no livro referente à propriedade do terreno e em um livro específico, atinente ao direito de superfície65. No registro imobiliário do imóvel gravado é feito o registro acerca da sua criação, extinção ou alteração de conteúdo, o que tem efeito constitutivo66. Tais atos devem ser realizados no local onde foi registrada a propriedade do terreno a ser onerado, sendo então evidente ser a circunscrição imobiliária do local do terreno a competente para o registro67. Além disso, o conteúdo, a transferência e eventuais ônus sobre a superfície devem ser registrados em um livro específico, chamado Erbbaugrundbuch, conforme dispõe o § 14 da ErbbauRG. Seja como for, esse último registro não é constitutivo do direito, mas tão somente uma formalidade do registro imobiliário68.

INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed. Düsseldorf: Werner, 2001, p. 231. 63 DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1401. 64 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 42. 65 STÜRNER, Rolf. Verordnung über das Erbbaurecht. In: Soergel Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 13. ed. Stuttgart: Kohlhammer, 2007, v. 15-1, p. 345. 66 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 375. 67 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 600. 68 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 600. 62

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14 Tratamento semelhante ao do direito de propriedade O direito de superfície é um direito real (dingliches Recht) ao qual é dado um tratamento semelhante ao direito de propriedade imóvel69, com exceção das normas atinentes à Auflassung (§ 11, 1 da ErbbauRG). Assim sendo, vigoram para a superfície, por exemplo, as regras sobre o regime patrimonial de bens entre os cônjuges (ehelichen Güterrecht) e as regras do direito das sucessões70. O tratamento assemelhado ao direito de propriedade também leva à constrição da superfície, da mesma maneira que a propriedade, no decorrer de um processo judicial de execução (Zwangsvollstreckung). E não poderia ser diferente no que toca aos ônus, sendo admissível sua instituição sobre a superfície, ainda que se trate, conforme entendem parte da doutrina e o BGH, da constituição de outra superfície (superfície de segundo grau ou subsuperfície), ou seja, uma superfície onerando uma superfície (Untererbbaurecht)71. Por fim, em caso de esbulho ou turbação, o superficiário, tal qual o proprietário, dispõe de pretensões para a proteção de seu direito, previstas nos §§ 985 e 1004 do BGB (direitos de restituição e de abstenção de distúrbios).

15 Renda do direito de superfície (Erbbauzins) O proprietário do imóvel gravado obtém uma contraprestação em dinheiro, relativamente moderada, conhecida como Erbbauzins (solarium), que é paga pelo superficiário. Tal remuneração é devida pelo fato de ter sido concedido o direito de superfície pelo proprietário do imóvel, que abriu mão de sua posse direta e da possibilidade de sua utilização (§ 9 ErbbauRG)72. RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 18. 70 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 375. 71 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 376. 72 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 601. 69

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De acordo com a legislação alemã, tanto o montante como o prazo da Erbbauzins devem ser fixados antecipadamente, para toda a duração da superfície, o que certamente representa um risco para o proprietário do imóvel. Realmente, a necessidade de projeção dos os valores a serem pagos (§ 9 ErbbauRG) pode ser um fator bastante complicado se houver instabilidade econômica, mesmo porque não existe na Alemanha o instituto da correção monetária73. Na prática, no entanto, desenvolveram-se cláusulas obrigacionais de adequação, as quais possibilitaram o aumento e a redução da Erbbauzins, o que, por outro lado, passou a ameaçar o caráter social da superfície. Para contornar a situação, procurando-se assegurar o caráter social do instituto, foi introduzido o § 9º da ErbbauRG, que previu ser possível que se estabeleça, obrigacionalmente, a modificação da Erbbauzins para a sua adequação à alteração de circunstâncias. Aliás, no caso de elevação, o § 9ª da ErbbauRG prevê restrições para a proteção do caráter social da superfície 74. Por derradeiro, vale observar que a obrigação de pagamento do Erbbauzins não é propriamente conteúdo do direito de superfície, mas um ônus em favor do proprietário do imóvel que a concedeu. Para que seja assegurada eficácia absoluta à remuneração a ser paga, é necessário seu registro como um ônus real (§§ 1105 e ss do BGB)75.

16 Término do direito de superfície (Beendigung des Erbbaurechts) 16.1 Rescisão (Aufhebung) O direito de superfície pode ser rescindido, conforme estabelece o § 875 do BGB, mas é necessária a declaração do superficiário PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 373. OEFELE, Helmut Freiherr von. Gesetz über das Erbbaurecht. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. 5. ed. München: C. H. Beck, 2009, v. 6, p. 1506. 75 VIEWEG, Klaus; WERNER, Almuth. Sachenrecht. 7. ed. München: Vahlen, 2015, p. 601. 73 74

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no sentido de que está renunciando a seu direito, bem como o consentimento do proprietário do terreno (§ 26 da ErbbauRG)76. O § 26 da ErbbauRG trata então de uma forma de extinção do direito de superfície através de um negócio jurídico, que depende da declaração de vontade do superficiário e do proprietário do terreno. Isso significa que a superfície, nessa hipótese, somente se extinguirá com a manifestação do proprietário do terreno, não tendo efeito jurídico uma renúncia apenas por parte do superficiário77. Deve-se notar ainda que a rescisão não se confunde com uma condição resolutiva, mesmo porque, conforme o § 1, 4 da ErbbauRG, não é permitida a constituição de superfície na qual se estabeleça que o superficiário renunciará ao seu direito caso haja a ocorrência de determinadas condições78. Em todo caso, deve-se observar que a declaração do superficiário pode ser emitida diante do registro imobiliário ou do proprietário do terreno. O consentimento do proprietário, que é irrevogável, é provado através de documento público ou com fé pública. Ademais, eventualmente também será necessário o consentimento de terceiros que tiverem outros direitos reais sobre a superfície, como um direito real de garantia (e.g. hipoteca)79. Por fim, a extinção demanda seu registro no registro imobiliário, o que é feito tanto no livro onde está registrado o terreno (Grundbuch) como no livro especial de registro da superfície (Erbbaugrundbuch).

WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015, p. 42. 77 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 171-172. 78 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 171-172. 79 RAPP, Manfred. Gesetz über das Erbbaurecht. In: J. Von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen. Buch 3. Sachenrecht. Berlin: Sellier, 2009, p. 171-172. 76

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16.2 Extinção por decurso de prazo (Zeitablauf) A superfície se extingue normalmente com o decurso de determinado prazo estabelecido no negócio jurídico80, matéria que é regulada pelos §§ 27 a 30 da ErbbauRG. Na prática, os prazos de contratação variam entre 30 e 100 anos, sendo muito comum a fixação do prazo de 99 anos81. Contudo, como não há um prazo limite estabelecido pela legislação82, entende-se que é possível sua contratação por prazo indeterminado (ewiges Erbbaurecht)83 Decorrido o prazo, encerra-se a superfície automaticamente, sem necessidade de uma declaração de vontade específica. Com isso, a propriedade sobre a construção passa também automaticamente ao proprietário do terreno84. Nesse contexto, em função do decurso do prazo, fica o registro imobiliário incorreto, sendo necessária a sua retificação (Grundbuchberichtigung). O proprietário do imóvel pode, conforme o § 894 do BGB, exigir o consentimento do superficiário para a regularização do registro imobiliário, caso o próprio superficiário não tenha já tomado tal medida (§ 22, 2 da Ordenança de Registro Imobiliário – Grundbuchordnung – GBO)85. Extinta a superfície pelo decurso de prazo, cabe ao titular do direito de superfície, contra o proprietário do imóvel, uma pretensão legal ao pagamento de indenização (§ 27 I ErbbauRG)86. 80 WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015, p. 42. 81 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 377. 82 No Brasil, o direito de superfície, regulado pelo Código Civil, deve ser concedido por prazo determinado (art. 1.369 do CC). No Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), por outro lado, a concessão do direito de superfície poderá ser por tempo determinado ou indeterminado (art. 21). 83 DAUNER-LIEB, Barbara; HEIDEL, Thomas; RING, Gerhard. Anwaltkommentar BGB: Sachenrecht. Bonn: Deutscher Anwaltverlag, 2004, v. 3, p. 1400. 84 INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed. Düsseldorf: Werner, 2001, p. 309. 85 INGENSTAU, Heinz; INGENSTAU, Jürgen; HUSTED, Volker. Kommentar zum Erbbaurecht. 8. ed. Düsseldorf: Werner, 2001, p. 309. 86 WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007, p. 383.

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As partes podem deliberar, como conteúdo da superfície, acerca do valor da indenização ou sobre sua exclusão, o que terá eficácia real sobre o imóvel e sobre a superfície (§ 27, I, 2 da ErbbaRG). Na falta de referida disposição em sentido contrário, a própria obrigação legal de indenizar também terá a mesma eficácia87. Ademais, para evitar o pagamento de indenização, o proprietário do terreno pode oferecer ao superficiário, antes do decurso do prazo, a possibilidade de prorrogação de seu direito pelo tempo de vida previsível da edificação. Em caso de recusa do superficiário, há então a extinção do dever de pagamento da indenização88. Por derradeiro, o § 29 da ErbbauRG prevê ainda que o credor titular de um direito de garantia sobre a superfície, mesmo com o decurso do prazo da superfície, ainda se beneficia dessa garantia no que toca ao valor da indenização paga.

16.3 Reversão (Heimfallrecht) A chamada reversão se distingue da extinção da superfície, pois nesse caso o superficiário está obrigado a transferir seu direito ao proprietário do terreno. Assim, não há propriamente extinção da superfície, cabendo ao proprietário do terreno decidir se depois irá extinguir ou transferir a superfície a um terceiro89. Também não há extinção dos direitos reais de garantia (Grundpfandrechte) que oneram a superfície, permanecendo sua existência, desde que eles não caibam ao proprietário do terreno (§ 33 da ErbbauRG). A reversão é acordada pelo proprietário do terreno e pelo superficiário (§ 2, 4 da ErbbauRG), como regra, já no momento em que a superfície é constituída. Trata-se de uma espécie de direito real de aquisição (dingliches Erwerbsrecht), que onera o direito de superfície e se liga inseparavelmente à propriedade do terreno (§ 3 da ErbbauRG)90. PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 377. WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007, p. 383. 89 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 377. 90 WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007, p. 384. 87 88

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As razões para a ocorrência da reversão podem ser acordadas livremente pelas partes, mas devem ter relação objetiva com o direito de superfície91. Nessa linha, o principal caso é o atraso no pagamento do solarium (Erbbauzins), mas a pretensão à reversão somente será cabível se pelo menos dois anos de solarium estiverem em atraso (§ 9 IV ErbbauRG)92. Outras hipóteses normalmente acordadas são o atraso na construção, a alteração não autorizada do uso, a negligência na manutenção, a insolvência do superficiário, bem como a morte do proprietário do terreno ou do superficiário93. Com o preenchimento da pretensão de reversão, há a transferência da superfície e o superficiário perde a propriedade sobre a construção, que em regra ele mesmo construiu. Não é permitido ao superficiário, com a reversão ou com a extinção da superfície, a retirada da construção ou a apropriação de parte dela (§ 34 ErbbauRG). Em contrapartida, o superficiário tem uma pretensão de reembolso, senão o proprietário do terreno se enriqueceria às suas custas (§ 32 ErbbauRG) 94. Os valores são, como regra, fixados antecipadamente na contratação feita entre as partes (§ 32 I 2 ErbbauRG). É possível a exclusão da pretensão de reembolso em favor do superficiário, mas é raro isso ocorrer95.

16.4 Destruição da edificação (Untergang des Bauwerks) A destruição da edificação não causa a extinção do direito de superfície, matéria expressamente regulamentada pelo § 13 da ErbbauRG96. De fato, como se considera que o direito de superfície possibilita a construção de um edifício, não seria nenhuma condição WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015, p. 43. 92 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 378. 93 WIELING, Hans Josef. Sachenrecht. 5. ed. Berlin: Springer, 2007, p. 384. 94 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 378. 95 PRÜTTING, Hanns. Sachenrecht. 35. ed. München: C.H. Beck, 2014, p. 378. 96 § 13 ErbbauRG: “Das Erbbaurecht erlischt nicht dadurch, daß das Bauwerk untergeht”. 91

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jurídica a existência da edificação para o surgimento do direito de superfície97. Por conseguinte, não existindo vinculação entre a existência da edificação e o direito de superfície, a destruição da primeira não leva à extinção do segundo.

17 Considerações finais A superfície é um importante instrumento de política do solo, que infelizmente não tem encontrado grande utilização no Direito brasileiro. Os entes públicos podem, através dela, promover a urbanização e o aproveitamento de bens públicos dominicais (terras estatais sem uso), mesmo porque muitas vezes o Poder Público, apesar de possuir patrimônio, não tem recursos para a sua utilização, em especial quando se trata de edificação. Nesse contexto, a superfície, ao lado dos tradicionais contratos de concessão ou de comodato, muito difundidos quando um ente público autoriza outro ente público a edificar em terreno de sua propriedade, bem como a utilizá-lo por determinado prazo, poderia ser uma opção à disposição daqueles que pretendem uma contratação com maior segurança, cujos efeitos jurídicos não são meramente obrigacionais, mas reais. Ademais, na mesma senda, também é possível seu uso em empreendimentos particulares, nos quais, aqueles que vão realizar edificações em propriedade alheia, não pretendem estar garantidos por mera contratação, sendo muito mais segura a constituição de um direito real de superfície. Por conseguinte, considerando essa análise do Direito alemão, parece-nos que no Brasil esse direito real precisa ser melhor utilizado, o que permitirá, retomando mesmo suas origens 97 WEBER, Ralph. Sachenrecht. Grundstücksrecht. 4. ed. Baden-Baden: Nomos, 2015, p. 44.

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romanas, seu emprego para uma mais adequada realização do princípio da função social da propriedade.

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A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E IRREVERSIBILIDADE DA TUTELA PROVISÓRIA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/15 Mônica Lúcia do Nascimento Frias Professora e Juíza Federal Titular da Vara Federal de Colatina-ES

Resumo

Abstract

Este trabalho teve o objetivo de estudar o papel da antecipação dos efeitos da tutela de mérito, prevista no artigo 294 do Código Processo Civil, mormente o seu requisito negativo, qual seja, a ausência de perigo de irreversibilidade dos efeitos do provimento, quando exista o perigo de irreversibilidade tanto para o autor como para o réu. Para alcançar esse propósito, sob o enfoque teórico-metodológico, buscou-se fundamento que será complementado ao longo da pesquisa, em doutrina especializada, na jurisprudência atual dos nossos tribunais, a partir da vigência do instituto. Verificamos ao final que para resolver o conflito entre os princípios da segurança jurídica e efetividade

The objective of the present work is to study the anticipatory nuisance, which is prescribed by the article 294 of the Civil Procedural Law, specially its negative requirement, the non existence of risk of a decision that can’t be undone, when the risk of inalterability exists for both parts involved. To achieve this goal, a theoretic methodological view was used, by research on specialized doctrine, and also on the cases already judged since the institute was born. We had in mind that, in order to solve the conflict between the principles of juridical security and effectiveness of the procedural law, it’s important to use the technique of the balancing of test, that is a constitutional doctrine

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deve ser aplicada a técnica da ponderação de interesses, tendo como critério o princípio da proporcionalidade para aferir-se qual decisão concretizará o valor dignidade da pessoa humana, afastando-se o interesse meramente patrimonial e privilegiando-se os direitos da personalidade. Palavras-chave: Segurança – Tutela Efetividade.

invoked when the damage to one’s right is slight as compared with the injury offending the other party. This kind of doctrine must be used when the dignity of the human being is endangered to determine that the personal rights will prevail over patrimonial interests. Keywords: Security – Requirement Effectiveness.

1 Introdução Segundo Alexandre Freitas Câmara tutelas provisórias são tutelas jurisdicionais não definitivas, fundadas em cognição sumária (isto é, fundadas em um exame menos profundo da causa, capaz de levar à prolação de decisões baseadas em juízo de probabilidade e não de certeza)1. O Código de Processo Civil de 2015 dedica seu livro V, as disposições gerais da tutela provisória, compreendida em tutela de urgência e tutela de evidência, regradas a partir do art. 294, e no art. 300, unifica os requisitos para concessão para concessão da tutela de urgência cautelar e antecipada. O parágrafo terceiro do artigo 300 do Código de Processo Civil de 2015, da mesma forma que o parágrafo segundo do artigo 273 do Código de 1973, veda a concessão da antecipação da tutela de urgência, quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos práticos da decisão. Para solucionar os casos de irreversibilidade dos efeitos da tutela provisória, em regra trata de hipóteses fundadas em antecipação da tutela, pois nestas é possível que ocorra perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão nos dois sentidos, ou seja, pode ser irreversível para o autor, como para o réu. CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 155.

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Nesse contexto, para solucionar esse impasse deverá o operador do direito se valer do princípio da proporcionalidade, que é um critério utilizado dentro da ponderação de interesses. A ponderação de interesses é considerada um postulado normativo2 “método destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam, sem referência a pontos de vista materiais que orientem esse sopesamento.”3 A propósito, ressalta Humberto Ávila4 que a razoabilidade e proporcionalidade se diferenciam, pois a proporcionalidade atua mais no campo dos princípios no controle de medidas restritivas, e a razoabilidade é aplicada mais para afastar regras de casos concretos. Neste contexto, para este doutrinador a razoabilidade teria como campo de aplicação as regras e a proporcionalidade seria aplicada para ponderar princípios. No entanto, os termos razoabilidade e proporcionalidade têm sido empregados como conceitos fungíveis na França, assim como no Brasil. Conforme Luis Roberto Barroso,5 em que pese se reconheça a diferença de origens e de conteúdo das expressões, tem a razoabilidade origem no devido processo legal do direito norte-americano, enquanto a proporcionalidade tem sua origem no direito alemão6. Postulados normativos “são normas imediatamente metodológicas, que estruturam a interpretação e aplicação de princípios e regras mediante a exigência, mas ou menos específica, de ralações entre elementos com base em critérios.” ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 168. 3 ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 168. 4 “Com efeito, o exame de razoabilidade-equivalência investiga a relação entre duas grandezas ou entre uma medida e o critério que informa sua fixação. O exame de proporcionalidade investiga a relação entre a medida adotada, a finalidade a ser atingida e o grau de restrição causado aos direitos fundamentais atingidos. O exame da proibição de excesso analisa a existência da invasão no núcleo essencial de um princípio fundamental.” ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 165. 5 BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 314-315. 6 “Para alguns doutrinadores, a proporcionalidade está imbricada à razoabilidade, enquanto desdobramento substantivo da cláusula do devido processo legal (substantive due process), entre nós positivada no inciso LIV do artigo 5° da Constituição Federal de 1988. Para outros, a fonte do princípio da proporcionalidade residiria na cláusula síntese do Estado Democrático de Direito.” CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Op. cit. p. 199. 2

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2 A dupla face do princípio da proporcionalidade Lênio Luiz Streck leciona, com muita propriedade, que o principio da proporcionalidade possui uma dupla face, qual seja, proteção positiva e de proteção de omissões estatais, que tem sido afirmada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal7. Por outro lado, autores como Celso Antonio Bandeira de Mello preferem não diferenciar razoabilidade de proporcionalidade, sob o argumento de que “o princípio da proporcionalidade não é senão uma faceta do princípio da razoabilidade”8. Quanto ao fundamento normativo no nosso ordenamento jurídico destes princípios, tem prevalecido a posição do Min. Celso de Mello de que se encontra na cláusula do devido processo legal9, consagrada nos seus dois aspectos, substantivo e processual, nos Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwagung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador’ ( Streck, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Ubermassverbot) à proibição de proteção deficiente ( Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, ano XXXII, n° 97, março/2005, p. 180)” STRECK, Lênio Luiz. Verdade & consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 231. 8 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 68. 9 “A norma legal, que concede a servidor inativo gratificação de férias correspondente a um terço (1/3) do valor da remuneração mensal, ofende o critério da razoabilidade que atua, enquanto projeção concretizadora da cláusula do substantive due process of law, como insuperável limitação ao poder normativo do Estado. Incide o legislador comum em desvio ético-jurídico, quando concede a agentes estatais determinada vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa” (ADI 1.158-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 29-12-94, DJ de 26-5-95). Grifo nosso. 7

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incisos LIV e LV do art. 5º, respectivamente. Due process of law, com conteúdo substantivo – Substantive due process – constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality)10. Por outro lado, há quem afirme que a proporcionalidade e razoabilidade têm como fonte normativa a cláusula geral de abertura do art. 5º, § 2º, CR, sendo estes princípios considerados direitos fundamentais implícitos. Todavia, autores como Carlos Roberto Siqueira Castro11 afirmam que o princípio da proporcionalidade não está expressamente positivado em nossa Constituição Federal de 1988, mas na legislação infraconstitucional, no art. 2° da Lei n° 9.784/99. Claro está que a proporcionalidade não está positivada expressamente na Constituição de 1988, mas possui status de princípio constitucional, conforme tem afirmado reiterada jurisprudência dos nossos Tribunais. Sem embargo, há respeitável entendimento em sentido contrário do Min. Eros Grau do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a razoabilidade, assim como a proporcionalidade, a razoabilidade é um postulado normativo da interpretação/aplicação do direito, não sendo possível aplicá-la como se princípio fosse, permitindo que o Poder Judiciário atue de modo a usurpar competência legislativa em afronta ao princípio da harmonia e equilíbrio entre os Poderes12. Com a devida vênia, entendemos correta a posição de Paulo Bonavides, no sentido de que fundamento normativo destes princípios é o postulado do Estado Democrático de Direito13 (CF, ADI 1.511-MC, voto do Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-10-96, DJ de 6-6-03. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 195. 12 Informativo 425 ADI 2591/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, 4.5.2006. 13 “No Brasil a proporcionalidade pode não existir enquanto norma geral de direito escrito, mas existe como norma esparsa no texto constitucional. A noção mesma se infere de outros princípios que lhe são afins, entre os quais avulta, em primeiro lugar, o princípio da igualdade, sobretudo em se atentando para a 10

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art. 1º, caput) e com as consequências político-jurídicas que derivam da consagração constitucional do princípio republicano e da separação de poderes. Em síntese, a proporcionalidade é o dever jurídico do intérprete e aplicador do direito buscar “sempre a almejada justa medida no trato intersubjetivo”, que Aristóteles em Ética a Nicômacos, já se referia como o meio termo14. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho,15 o princípio da proporcionalidade também é conhecido como princípio da proibição do excesso, desdobrando-se em três subprincípios, quais sejam, a adequação, necessidade ou exigibilidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Desta forma, o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade permite ao Judiciário controlar atos legislativos ou administrativos, através da análise de seus três subprincípios. Neste sentido, verifica-se primeiro se há adequação entre o fim almejado e o instrumento empregado (adequação); e segundo lugar se a medida é exigível ou necessária. passagem da igualdade-identidade à igualdade-proporcionalidade, tão característica da derradeira fase do Estado do Direito. O princípio da proporcionalidade é, por conseguinte, direito positivo em nosso ordenamento constitucional. Embora não haja sido ainda formulado como ‘norma jurídica global’, flui do espírito que anima em toda a sua extensão e profundidade o § 2° do art.5°, o qual abrange a parte não-escrita ou não expressa dos direitos e das garantias da Constituição, a saber, aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da natureza do regime, da essência impostergável do Estado de Direito e dos princípios que este consagra e que fazem inviolável a unidade da Constituição. Poder-se-á enfim dizer, a esta altura, que o princípio da proporcionalidade é hoje axioma do Direito Constitucional, corolário da constitucionalidade e cânone do Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo de autoridade. A ele não poderia ficar estranho, pois, o Direito Constitucional brasileiro. Sendo, como é, princípio que embarga o próprio alargamento dos limites do Estado ao legislar sobre matéria que abrange direta ou indiretamente o exercício da liberdade e dos direitos fundamentais, mister se faz proclamar a força cogente de sua normatividade”. BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional. Op. cit. p. 434-436. 14 “(...) o justo é uma das espécies do gênero ‘proporcional...proporcional é um meio termo... (de modo que) a injustiça é excesso e falta, no sentido de que ela leva ao excesso e á falta”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 93. 15 CANOTILHO. José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2002, p. 383.

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Ou seja, se há meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso) e, por fim, se há proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito)16. Assim, a proporcionalidade deve ser aferida sob três aspectos ou subprincípios da proporcionalidade. Destarte, uma norma ou ato administrativo será adequado quando atingir o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e proporcional, se produzir mais vantagens do que desvantagens17.

3 O requisito negativo da tutela provisória no Código de Processo Civil/15 Como vimos, o parágrafo terceiro do artigo 300 do CPC/15 prevê que o juiz concederá a antecipação da tutela verificando a presença de seus requisitos e desde que não sejam irreversíveis os efeitos fáticos do deferimento. Por conta disso, o requisito inexistência de perigo de irreversibilidade é denominado de “requisito negativo18” da antecipação da tutela. Acerca do requisito negativo, o professor Alexandre Freitas Câmara19 nos explica com mestria: “Trata-se de um requisito negativo: não se admite tutela de urgência satisfativa que seja capaz de produzir efeitos irreversíveis (art. 300, § 3°). É que não se revela compatível com

BARROSO, Luis Roberto. Op. cit. p. 315. “A rigor a razoabilidade, tal como sua prima-irmã, a proporcionalidade (a escolha dos meios necessários e suficientes para atender aos fins, porém sem excessos de coerção, custos ou perdas), é antes uma técnica integrativa de interpretação jurídica do que princípio reitor de um sistema jurídico.” PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Controle judicial da administração pública: da legalidade estrita à lógica do razoável. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 49. 18 BUENO. Cássio Scarpinella. Tutela antecipada. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 63. 19 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 157. 16 17

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uma decisão baseada em cognição sumária (e que, por isso mesmo, é provisória) a produção de resultados definitivos, irreversíveis. Pense-se, por exemplo, em uma decisão concessiva de tutela provisória que determinasse a demolição de um edifício ou a destruição de um documento. Pois em casos assim é, a princípio, vedada a concessão da medida.”

O parágrafo terceiro do artigo 300 estabelece que a mera possibilidade de um risco de irreversibilidade basta para a não concessão da antecipação dos efeitos da tutela. A expressão “irreversibilidade dos efeitos da decisão” deve ser entendida no sentido de irreversibilidade dos efeitos do provimento antecipado, ou seja, quando houver impossibilidade material de se voltarem às coisas ao estado anterior, a antecipação da tutela não será admissível20. Todavia, a irreversibilidade não é a mera impossibilidade de indenização do réu. Nesse sentido, José Carlos Barbosa Moreira21 ao analisar o parágrafo 4° do art. 273 do CPC/73, afirmava que este pressuposto negativo da antecipação de tutela não se refere ao provimento antecipatório, pois este é sempre revogável, eis que a antecipação, em seus efeitos processuais, é provisória e nunca poderá ser concedida se não comportar reversibilidade22. É sabido que a decisão que conceder a antecipação de tutela é revogável, pois é proferida sem uma cognição exauriente que observa o devido processo legal, com o contraditório pleno no qual se formará a coisa julgada.

“A irreversibilidade se traduz na impossibilidade material de se voltarem as coisas ao estado anterior. É preciso que o quadro fático, alterado pela tutela, possa ser recomposta. Irrelevante, para os fins em vista, é a circunstância de poder a irreversibilidade ser reparada em dinheiro.” MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória e Julgamento Antecipado. Op. cit., p. 18. 21 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual: oitava série. Antecipação da tutela: algumas questões controvertidas São Paulo: Saraiva, 2004, p. 82. 22 A irreversibilidade se traduz na impossibilidade material de se voltarem as coisas ao estado anterior. É preciso que o quadro fático, alterado pela tutela, possa ser recomposta. Irrelevante, para os fins em vista, é a circunstância de poder a irreversibilidade ser reparada em dinheiro. 20

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Nesse sentido, se infere que a irreversibilidade exigida pelo legislador não diz respeito à antecipação da tutela como ato judicial que é reversível, pois pode ser substituída por outra. Em outros termos, a reversibilidade exigida diz respeito aos fatos decorrentes do cumprimento da decisão e não a decisão em si mesma. Portanto, para que seja deferida a antecipação de tutela é necessário que os efeitos práticos produzidos por esta decisão sejam passíveis de retorno ao status quo ante. São exemplos de medidas irreversíveis submeter uma menor à transfusão de sangue contra a vontade de seus pais, a apreensão de jornal que ofende a honra do autor, pois é nítida a irreversibilidade nos dois sentidos e a vedação da antecipação de tutela também causará efeitos irreversíveis23. Todavia, deve-se afastar o requisito negativo (parágrafo terceiro do artigo 300 do CPC/15), pois há casos em que está configurado o “periculum in mora inverso”, eis que há “irreversibilidade recíproca”, isto é, o indeferimento da tutela pode causar um dano mais grave do que o seu deferimento24. Entendemos que neste caso há um paradoxo, pois o juiz corre um risco ao deferir ou indeferir a antecipação de tutela, conforme sua expectativa de manter sua decisão no momento da sentença. Ademais, como bem esclarece Eduardo José da Fonseca Costa, havendo irreversibilidade recíproca deverá o juiz sacrificar o direito improvável, pois “não há sentido em sacrificar o direito provável ameaçado pelo dano iminente em nome de uma possível, mas improvável, situação de irreversibilidade.”25 23 “Como antecipar a tutela em ação de alimentos de rito comum, se o réu, condenado provisoriamente a pagá-los, não estará obrigado a restituí-los, se o pedido, ao final vier a ser julgado improcedente, já que alimentos não se restituem, ainda que indevidamente pagos? Como antecipar a tutela em ação de despejo, se obtido o desalijo, o locatário, no caso de improcedência do pedido, não poderá reaver a posse direta do imóvel, que o locador, tão logo a conseguiu, apressou-se em alugar a outro inquilino?” MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória e Julgamento Antecipado. Op. cit. p.17. 24 CARNEIRO, Athos Gusmão. Op. cit. p, 88. 25 COSTA, Eduardo José da Fonseca. Antecipação de Tutela. Revista de Processo, SP, 29 (115): 55-73, maio/jun. de 2004, p. 62.

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Todavia, como toda decisão importa em risco, deverá o juiz “balancear os dois males para escolher o menor”26, tendo como critério a técnica da ponderação de interesses, utilizando-se do princípio da proporcionalidade. Para Zavascki a falta de relativização do requisito negativo da antecipação da tutela comprometeria “quase por inteiro o próprio instituto da antecipação da tutela.”27 Com efeito, assiste razão à Luiz Fux ao afirmar que o legislador foi acanhado ao prever o requisito negativo, desconsiderando a necessidade do ativismo judicial como postulado da efetividade processual. Nesse sentido, Luiz Fux adverte: “Não se atentou para o fato de que, na grande, maioria dos casos da prática judiciária, as situações de urgência que reclamam a antecipação da tutela geram, inexoravelmente, situações irreversíveis, porque encerram casos em que a satisfação deve ser imediata, como, v.g., aquele em que é autorizada uma viagem, uma cirurgia, ou uma inscrição imediata em concurso etc.28” É verdade que não é possível se prever regras abstratas para resolver o conflito entre urgência da medida solicitada pelo demandante e a segurança jurídica do demandado, que impõe a reversibilidade dos efeitos gerados pela antecipação da tutela29. Por outro lado, a concessão da antecipação da tutela pode ser o único instrumento para assegurar o resultado útil do processo para o demandante. Daí, será necessário que o juiz encontre a solução para o conflito entre a efetividade e a segurança jurídica à luz do princípio da proporcionalidade, para que o núcleo essencial dos direitos fundamentais seja preservado. Sem embargo, pode-se afirmar que o pedido de antecipação da tutela possa ser atendido, ainda que os efeitos fáticos da antecipação sejam irreversíveis, na medida em que a sua não-concessão, ou a sua falta, possa acarretar, em função dos interesses em jogo, MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit, p. 82. ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de Tutela. 5. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007, p. 101. 28 FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 58. 29 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias de urgência. Op. cit. p.352. 26 27

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prejuízo igualmente irreversível, violando direitos fundamentais concretizadores do valor dignidade da pessoa humana30. Assim, a solução para as hipóteses de irreversibilidade recíproca será recorrer ao princípio da proporcionalidade, com a ponderação do interesse de maior relevância para o direito no caso concreto31. Nesse caso, se os interesses em conflito forem de igual valor deve ser tutelado o direito mais provável32. Em outras palavras, quando a concessão da antecipação da tutela for capaz de causar prejuízo irreversível ao direito do demandado, será necessário que o juiz leve em consideração os direitos em litígio. Por conseguinte, somente se justifica a possibilidade de relativização do requisito negativo da antecipação da tutela com a restrição do valor segurança assegurado ao demandado, quando imprescindível para salvaguardar direitos não-patrimoniais.

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INTERPRETAÇÃO FORENSE: a experiência prática da Justiça Federal de Guarulhos e o treinamento de intérpretes Paulo Marcos Rodrigues de Almeida Juiz Federal Substituto da 2ª Vara Federal de Guarulhos. Coordenador da Central de Conciliação da Justiça Federal de Guarulhos

Jaqueline Neves Nordin Intérprete forense na Justiça Federal de Guarulhos de 2005 a 2013; Especialista em Interpretação e Tradução pela Faculdade Gama Filho-São Paulo; Observadora de Intérprete no Fórum Federal de San Francisco-CA, EUA, em 2012; Palestrante na “3ª Conferência Internacional sobre tradução e interpretação não-profissional” [Suíça, 2016], com o tema “Ética e Diretrizes Profissionais para intérpretes judiciais ad hoc”; atualmente vive em Tallin, na Estônia, onde é membro do conselho administrativo da Escola Internacional Americana na Estônia

Resumo

Abstract

A partir de sua experiência prática na Justiça Federal de Guarulhos (em que a imensa maioria dos réus presos é formada por estrangeiros envolvidos com o tráfico internacional de drogas), os autores (um juiz federal e uma intérprete forense) examinam a atuação dos intérpretes nas audiências criminais. De início, aponta-se a precariedade do modelo atual, em que os intérpretes são

From their practical experience at the Federal Courts of Guarulhos (where the great majority of defendants are foreigners involved in international drug trafficking), the authors (a federal judge and a court interpreter) analyze the role of interpreters at criminal hearings. Initially, they address the precariousness of the current model, with interpreters being assigned to

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contratados caso a caso, sem exigência de comprovação da competência linguística ou de formação específica, inexistindo orientação formal sobre a atuação esperada. O artigo então destaca a importância (sobretudo do ponto de vista jurídico-constitucional) de se compreender corretamente qual é a função do intérprete forense, expondo as dificuldades criadas pelos próprios juízes federais, que quase sempre ignoram as técnicas e regras básicas da intepretação forense. Em seguida, analisam-se as três modalidades de interpretação normalmente utilizadas no ambiente judiciário (interpretação simultânea, interpretação consecutiva e interpretação à prima vista). Por fim, os autores propõem a adoção de um programa oficial de seleção e treinamento de intérpretes e de orientação para os juízes, sugerindo a adoção de um código de ética e de padronização de conduta para os intérpretes forenses.

court procedures without any prior investigation into their linguistic expertise or specific background, completely unaware of what is expected from their performance. Accordingly, this article highlights the importance (primarily from the constitutional point of view) of properly understanding what the role of the court interpreter is, bringing to light the difficulties created by the federal judges themselves, who often ignore the basic rules and techniques of court interpretation. Subsequently, the three modes of interpretation commonly used in the legal environment are analyzed (simultaneous interpreting, consecutive interpreting and sight interpreting). Finally, the authors suggest/propose the adoption of an official screening and training program for interpreters as well as some guidance for judges, encouraging compliance with a proper code of ethics and professional standards for court interpreters.

Palavras-chave: Justiça Federal. Intérpretes. Audiências criminais. Estrangeiros. Técnicas. Treinamento.

Keywords: Federal Courts. Court interpreters. Criminal hearings. Foreigners. Techniques. Training.

1 Introdução Muito embora o uso de intérpretes como auxiliares da Justiça não seja novidade no Brasil (sendo o tema já disciplinado pelo Código de Processo Penal, de 1941), o intenso contato com réus estrangeiros não falantes da Língua Portuguesa era simplesmente impensável décadas atrás, quando a flexibilização das fronteiras, o intenso fluxo migratório e os voos turísticos internacionais eram ainda uma realidade distante. A atuação desses auxiliares da Justiça, assim, acontecia em número pouco significativo e incapaz de despertar a atenção da Administração do Poder Judiciário.

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Atualmente, contudo, a globalização e a disseminação da criminalidade organizada internacional (sobretudo para o tráfico internacional de drogas) faz comparecer às salas de audiência criminais do País centenas de estrangeiros que, não falando o idioma nacional, têm de enfrentar o sistema de justiça criminal brasileiro, participando de atos processuais e tomando conhecimento de decisões judiciais que só podem compreender por meio, justamente, de um intérprete forense. Nesse contexto, seria de se imaginar que, ao menos nas localidades com intensa circulação de estrangeiros (como, por exemplo, a cidade de Guarulhos, no Estado de São Paulo, onde se localiza o maior aeroporto internacional da América Latina), a Justiça Federal brasileira estivesse devidamente aparelhada para o encontro com centenas de réus estrangeiros (somente no ano de 2015, segundo dados do Setor de Distribuição da Subseção Judiciária de Guarulhos, foram mais de 300 novos casos criminais envolvendo estrangeiros). Todavia, não é isso o que se vê. Com efeito, predomina na Justiça Federal brasileira (e particularmente na de Guarulhos) o absoluto amadorismo, despreocupação e improviso na seleção, treinamento, orientação, atuação e remuneração dos “intérpretes forenses”, que, muitas vezes, são meros conhecedores do idioma estrangeiro sem formação específica alguma em tradução e interpretação (alguns, estrangeiros residentes há anos no Brasil, sem nenhum estudo lingüístico específico além do aprendizado regular da língua estrangeira materna e do Português prático do dia a dia). O “preparo” e a “orientação” dos intérpretes, por sua vez, ficam – de forma absolutamente pontual e assistemática – a cargo de juízes federais mais interessados ou de intérpretes mais experientes. É nesse cenário – pouco profissional e despreocupado da efetiva compreensão, pelos réus estrangeiros, das decisões judiciais e dos atos processuais que lhes dizem respeito no processo penal – que se insere o presente estudo. Focando na atuação dos intérpretes forenses em audiências criminais, o presente trabalho aborda

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a realidade judiciária de Guarulhos e procura delinear o que é, realmente, a interpretação forense, apresentando a forma como a interpretação forense é tratada (com muito mais apuro e cuidado) em outros países e afirmando a absoluta necessidade de profissionalização dos intérpretes da Justiça Federal brasileira, propondo diretrizes para a instituição de um programa permanente de treinamento a ser implementado no âmbito dos Tribunais Regionais Federais ou, ainda, em caráter nacional, pelo Conselho da Justiça Federal ou pelo Conselho Nacional de Justiça. Dada a amplitude e a multidisciplinaridade do tema – que bem poderia render monografias na área do Direito, da Administração, da Psicologia e das Letras – o presente estudo, longe de pretender esgotar o assunto, almeja, de um lado, servir como um convite à reflexão e, de outro, contribuir, ainda que modestamente, com sugestões para a solução dos problemas que afligem essa essencial atividade auxiliar da Justiça, que não vem recebendo a atenção devida dos operadores e administradores do sistema de justiça criminal.

2 A realidade da interpretação forense na Justiça Federal de Guarulhos De 1999 a 2014, 76% dos réus processados na Justiça Federal de Guarulhos por envolvimento com o tráfico internacional de drogas eram de estrangeiros (cfr. Pesquisa “Tráfico Internacional de Entorpecentes: o fluxo no maior aeroporto internacinal do Brasil – Aeroporto de Guarulhos”, IFDDH, agosto de 2016, p. 25), já tendo os Juízes Federais de Guarulhos se deparado com mais de cinquenta idiomas diferentes nas audiências criminais. Deveras, além das línguas estrangeiras mais comuns, como o Inglês, o Espanhol, o Francês, o Alemão, o Italiano, o Árabe, o Mandarim e o Russo, já passaram pelos bancos dos réus de Guarulhos idiomas de menor difusão (como Húngaro, Romeno, Estoniano, Letão, Croata, Búlgaro, Eslovaco, Polonês, Grego, Holandês, Sírio,

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Hebraico, Turco, Persa, Swahili, Malaio, Tailandês, Indonésio) e também inúmeras línguas e dialetos extremamente restritos (por isso chamados “exóticos”), como, por exemplo, o Igbo e o Yorubá (falados em regiões da Nigéria), o Cantonês (falado em partes da China, em Hong Kong e Macau) e variações do Holandês (faladas na África do Sul, nas Guianas e no Suriname). Com essa absurda riqueza étnica e idiomática, seria de se supor que a Justiça Federal de Guarulhos, instalada em 1999, já contasse hoje com um corpo consolidado de intérpretes forenses capacitados e rigorosamente selecionados, que atuassem segundo normas e orientações profissionais específicas que conferissem padrão e uniformidade (ética, inclusive) à sua atuação. Todavia, a realidade é bem diferente. Em primeiro lugar, inexiste um programa de seleção dos intérpretes forenses na Justiça Federal. Os “intérpretes forenses” são, no mais das vezes, pessoas conhecidas dos juízes ou servidores do Judiciário com conhecimento do Português e de alguma língua estrangeira. Não há prova de seleção, exigência de comprovação da competência lingüística ou entrevista prévia padronizada: identificada a necessidade de uma dada língua (pela prisão de estrangeiro ou ajuizamento de ação penal contra ele), a Secretaria do juízo competente (são cinco Varas criminais em Guarulhos) simplesmente tenta localizar algum falante do idioma em questão e o convida a atuar como auxiliar da Justiça, sem nenhuma exigência de formação específica em intepretação (e, muito menos, em intepretação forense). Aceito o convite, o agora “intérprete forense” (a tanto promovido pela só nomeação judicial) não recebe do tribunal treinamento específico algum, contando apenas com a boa vontade e a disponibilidade de alguns juízes, servidores, advogados e procuradores mais experientes para receber alguma orientação prévia sobre as audiências e o que se espera dele, intérprete. Esse amadorismo e improviso na seleção e treinamento dos intérpretes conduz não só à nomeação de falantes de idioma estrangeiro absolutamente despreparados para desempenhar a função de

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intérprete forense (o que, no mais das vezes, somente se descobre no curso da própria audiência, com todos os prejuízos daí decorrentes), como, por vezes, chega a quase inviabilizar a conclusão do processo penal, pela extrema dificuldade de se encontrar intérpretes capacitados com a urgência que os processos com réus presos requerem. A realidade cotidiana de Guarulhos é plena de casos assim. Certa vez, diante de um processo contra três rés tailandesas, a dificuldade para encontrar um falante de Português/Tailandês foi tão grande que, arrastando-se a ação penal já por meses sem que se encontrasse um intérprete, o juízo não teve outra alternativa senão convocar uma outra presa tailandesa, que, falando também o Inglês, havia participado meses antes da audiência de seu processo. O juízo então nomeou duas intérpretes: uma de Português/Inglês/Português (a co-autora deste ensaio) e outra (a presa do outro processo) para funcionar como intérprete de Inglês/Tailandês/Inglês.1 A audiência realizada dessa forma heterodoxa, conquanto tomando várias horas paras as sucessivas traduções consecutivas (do Português para o Inglês, do Inglês para o Tailandês, deste para o Inglês e finalmente para o Português, separadamente para cada uma das três rés), transcorreu tranqüilamente, tendo sido a solução inusitada utilizada ainda em outros casos semelhantes. A esse cenário precário de seleção e treinamento dos “intérpretes forenses” se soma o fato – mais comum que o desejado – de que os demais participantes da audiência criminal quase sempre desconhecem a forma correta de interagir com o intérprete forense, dificultando ainda mais o desempenho da função. Deveras, muitos juízes, procuradores, advogados e defensores públicos ignoram completamente a técnica correta de condução das perguntas direcionadas aos réus estrangeiros, dirigindo-se ao intérprete, com uso do discurso indireto (na terceira pessoa do singular), ao invés de dirigir-se diretamente ao réu, com utilização do discurso direto (na primeira pessoa do singular). Tal prática – banida há 1

Ação Penal nº 0009044-77.2012.403.6119.

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décadas em países desenvolvidos2 – dificulta sobremaneira a atuação do intérprete em audiência, que se vê obrigado a, antes de verter as perguntas para o idioma estrangeiro, converter mentalmente o discurso indireto para a forma direta, consumindo ainda mais sua concentração e energia mental. Demais disso, a complexidade lingüística naturalmente envolvida numa audiência criminal (recheada de termos técnicojurídicos) aliada à folclórica prolixidade dos operadores do direito no Brasil acaba por complicar ainda mais a vida dos intérpretes forenses. Períodos muito extensos, construções confusas, longas “introduções” de perguntas, interrupções abruptas e indagações que não terminam com um ponto de interrogação são apenas alguns dos desafios com que se deparam os intérpretes em audiência. Se muitos espectadores brasileiros já não seriam capazes de compreender e repetir muito do que é dito numa sala de audiências, que dizer dos intérpretes forenses que, em frações de segundo, têm que compreender que é dito em Português jurídico e verter imediatamente para o idioma estrangeiro, de forma clara e compreensível para o réu. Verdade seja dita, o estilo rococó e o discurso por vezes confuso de muitos operadores do direito não têm a intenção deliberada de dificultar a vida dos intérpretes, revelando mais a despreocupação de muitos juízes, procuradores e advogados com a compreensão (ou não) do que é dito em audiência. Seja por reprovável desinteresse ou pouco caso com os réus, seja pela ilusão de que o domínio exclusivo de fórmulas e discursos misteriosos e inacessíveis confere maior importância ou prestígio a quem os utiliza. Por fim, a multiplicidade de cenários em que o intérprete é chamado a atuar no processo penal empresta complexidade ainda maior à sua atividade. Deveras, são no mínimo seis momentos processuais distintos em que atua o intérprete forense na Justiça Federal Nos Estados Unidos, por exemplo, a prática foi abandonada há 25 anos – cfr. MIKKELSON, Holly; GONZÁLEZ, Roseann Dueñas; VÁSQUEZ, Victoria F. Fundamentals of Court Interpretation – theory, policy and practive, 1991, § 1.1.6.

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de Guarulhos: a) a entrevista prévia reservada com o defensor; b) as explicações preliminares do juiz; c) a oitiva das testemunhas; d) o interrogatório do réu estrangeiro; e) as alegações finais e a leitura da sentença; f) a discussão de eventual apelação com o defensor. Cada um desses momentos processuais envolve situações, atores e discursos diversos, exigindo do intérprete o domínio e o uso de técnicas interpretativas também distintas, como, por exemplo, a interpretação simultânea sussurrada, a interpretação consecutiva e a interpretação “a prima vista”. Tudo isso, sem esquecer dos imperativos éticos de sua profissão. À vista deste breve relato da experiência prática da Justiça Federal de Guarulhos, já se nota que a interpretação forense é atividade auxiliar da Justiça muito mais complexa e sensível do que a pobreza de sua disciplina normativa faria supor, estando a merecer tratamento mais cuidadoso e profissional da parte do Poder Judiciário.

3 O que é, realmente, a interpretação forense? Ao contrário do que se poderia supor, a interpretação forense não é, singelamente, a “tradução” de termos e fórmulas processuais do Português para idiomas estrangeiros e vice-versa, no papel ou oralmente em audiências. Tal concepção simplista (e, por que não dizer, simplória) revela não só ignorância das sutilezas dessa atividade essencial do processo penal em que intervêm réus e/ou testemunhas estrangeiros, como evidencia, também, profundo desprezo pela concretização das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (que, sabidamente, se aplicam a brasileiros e estrangeiros processados no País). Em primeiro lugar, a interpretação forense é ferramenta de implementação do devido processo legal e de asseguração da ampla defesa e do contraditório no processo penal. Para se compreender o alcance dessa afirmativa, basta que o leitor brasileiro se imagine sendo processado criminalmente em

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países de línguas completamente diversas do Português, como o Russo, o Árabe, o Swahili ou o Chinês, sem ter o auxílio de um serviço competente de interpretação forense. Desse singelo exercício de imaginação já se percebe que relegar a interpretação forense ao improviso ou tratá-la como simples “tradução” entre idiomas (a ser feita por qualquer pessoa que “conheça” a língua estrangeira ou, pior, por tradutores eletrônicos como o “google tradutor”) pode causar sérios danos ao processo penal e aos direitos fundamentais do réu estrangeiro, que se verá mergulhado em fórmulas, discursos e atos processuais incompreensíveis, ficando verdadeiramente impedido de exercer plenamente sua defesa perante a autoridade judicial brasileira. Com efeito, não são apenas imperativos cristãos de compaixão e alteridade que exigem que se permita ao réu estrangeiro compreender e ser compreendido durante o processo penal. É a própria Constituição Federal e o Código de Processo Penal que impõem que se garanta (e não apenas que se prometa) ao réu estrangeiro plena oportunidade de contraditório e de ampla defesa no processo penal, o que somente se alcança com um serviço de interpretação forense profissional e de qualidade. Não constitui exagero afirmar que é pressuposto básico do contraditório e do exercício do direito de defesa a própria compreensão do que se passa no processo, seja em requerimentos e decisões judiciais, seja em audiências para oitiva de testemunhas ou interrogatório do réu. Deveras, se ao réu estrangeiro não é dado compreender em sua língua o conteúdo de requerimentos, decisões, documentos e depoimentos passados em Português, é evidente que ele não reunirá condições mínimas de defender-se. É a Constituição Federal, assim, que, ao exigir o devido processo legal, a oportunidade de contraditório e a garantia de ampla defesa, impõe a necessidade de plena compreensão, pelo réu estrangeiro, do que se passa no processo penal brasileiro. Demais disso, o Código de Processo Penal estabelece que “quando o interrogando não falar a língua nacional, o interrogatório será feito por meio de intérprete” (art. 193) e que “quando a testemunha não

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conhecer a língua nacional, será nomeado intérprete para traduzir as perguntas e respostas” (art. 223). Da combinação desses dois dispositivos, aliás, pode-se deduzir uma terceira norma, implícita: nos casos em que a língua nacional seja de conhecimento da testemunha, mas não do réu (como rotineiramente acontece em Guarulhos), também deverá estar presente o intérprete para traduzir, para conhecimento do réu, as perguntas e respostas do depoimento da testemunha. A Justiça Federal norte-americana, por exemplo, reconhece que “o uso de intérpretes forenses competentes em procedimentos envolvendo falantes de línguas diversas do idioma nacional é fundamental para assegurar que a justiça seja verdadeiramente entregue aos réus e outros interessados”.3 A principal função do intérprete forense, assim, é permitir que o réu esteja presente de forma linguística em todas as etapas do processo, tornando igualmente possível que os demais envolvidos no processo compreendam o que é dito pelo acusado. Em segundo lugar, cumpre lembrar que a interpretação forense é campo próprio do conhecimento, área técnica específica que não se confunde nem mesmo com a tradução. Interpretação é a transferência de uma língua oral (língua de partida) para outra língua oral (língua de chegada), ao passo que tradução é a transferência de uma língua escrita para outra língua escrita (sendo a tradução propriamente dita a passagem do texto estrangeiro para o Português, enquanto a versão é a passagem do Português para idioma estrangeiro). Nesse contexto, interpretação forense é a atividade profissional específica dos intérpretes que atuam em audiências judiciais, cíveis ou criminais, atividade essa que exige não só o pleno domínio das línguas que se vai interpretar e das técnicas de interpretação (formação genérica), como intimidade e desenvoltura com a terminologia técnico-jurídica e com os ritos e procedimentos judiciais (formação específica). Cf.: <http://www.uscourts.gov/services-forms/federal-court-interpreters> – tradução livre dos autores.

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De fato, o ambiente de uma sala de audiências é muito diferente do de uma sala de reuniões ou de uma cabine em salas de conferência, situações comuns em que são requisitados intérpretes no mundo globalizado de hoje. Enquanto num ambiente negocial o intérprete lida com pessoas de nível educacional equivalente e pode ainda reformular, clarificar e simplificar discursos, numa audiência criminal o intérprete forense tem diante de si pessoas com níveis educacionais muito diversos e está obrigado a transmitir fielmente os discursos proferidos nos mais diversos estilos, não podendo em hipótese alguma reformulá-los, corrigi-los ou simplificá-los, sob pena de comprometimento da intepretação pela perda de autenticidade das mensagens (sobretudo das testemunhas e dos réus). Do mesmo modo, uma sala de audiências nunca proporcionará o ambiente sereno e tranquilo de uma cabine de salas de conferência à prova de som, em que o intérprete tem o equipamento de áudio próximo do ouvido e está livre de interferências sonoras externas. Muito ao contrário, numa audiência criminal o intérprete forense senta-se próximo do réu estrangeiro e deve, com todas as distrações e ruídos desse ambiente intranquilo, ouvir as manifestações do juiz, do procurador, do advogado, das testemunhas e do réu e retransmiti-los prontamente na língua de chegada. Vê-se, assim, que a comunicação na sala de audiências pode ser bem mais complexa que em qualquer outro cenário ou situação cotidiana. Por isso mesmo, o conhecimento e as habilidades exigidas de um intérprete forense (além da proficiência em Português e no idioma estrangeiro) são também altamente complexos. Se é certo que nem todo bilíngue pode, só por isso, ser intérprete, não menos certo é que nem todo intérprete está preparado, com sua formação genérica, para servir como intérprete forense. Em realidade, tantas são as habilidades mentais e processos cognitivos envolvidos no ato de interpretar, e tantos são os desafios e surpresas à espreita numa sala de audiências, que, guardadas as proporções dos riscos em jogo, não constitui exagero comparar o grau de estresse profissional dos intérpretes forenses aos dos

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controladores de vôo, sendo seguramente idêntico, ao menos, o permanente estado de concentração e tensão em ambas as atividades.

4 As diferentes modalidades de interpretação utilizadas em juízo Como já assinalado, a experiência prática da Justiça Federal de Guarulhos revela ser necessária a atuação do intérprete forense em pelo menos seis momentos processuais distintos:4 a) a entrevista reservada com o defensor antes da audiência; b) as explicações preliminares do juiz no início da audiência; c) a oitiva das testemunhas; d) o interrogatório do réu estrangeiro; e) as alegações finais orais e a leitura da sentença em audiência; f) a discussão de eventual apelação com o defensor ao término da audiência.5 E uma vez que cada um desses momentos processuais envolve situações, atores e discursos diversos, são exigidos do intérprete forense o domínio e o uso de técnicas interpretativas também distintas, as quais cabe agora ver com mais detença.

4.1 A interpretação simultânea A interpretação simultânea talvez seja o modo de interpretação que mais evidencia que, para ser intérprete, não basta falar mais de uma língua. Ela demanda o talento raro de ser capaz de ouvir em uma língua e falar em outra, processo cognitivo altamente sofisticado que exige níveis elevados de concentração e depende do domínio de terminologia específica de várias áreas do conhecimento e da capacidade de rápida tomada de decisão na escolha das palavras. Não se está, aqui, falando de tradução “stricto sensu”, o que exclui, portanto, a tradução de peças processuais e documentos, que pode dar-se em momentos processuais diversos daqueles em que ocorre a interpretação. 5 Sem prejuízo do prazo para recurso, o final da audiência é a oportunidade que o defensor tem de conversar pessoalmente com o réu preso, explicar o resultado da sentença e perguntar sobre o desejo de recorrer. 4

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Bem por isso, intérpretes simultâneos não se formam senão depois de anos de educação especializada e incansável treinamento prático. Na interpretação simultânea, o intérprete forense, depois de começar a ouvir o discurso que vai interpretar (na língua de partida, que pode ser o Português ou o idioma estrangeiro, conforme o caso), precisa se preocupar, em frações de segundo, com a sintaxe e a semântica da língua de chegada antes de se expressar nela, sem perder a atenção das frases subseqüentes que continuam a ser ditas na língua de partida pelo locutor. E isso sem contar que, em algumas línguas, como o alemão e o hebraico, o verbo de ação às vezes vem ao final da frase, o que impede o intérprete de começar a interpretação antes da frase se completar e fazer sentido. Para se ter uma ideia da alta complexidade da intepretação forense simultânea, basta que se tente, sendo brasileiro, repetir mentalmente mesmo em Português o que é dito por testemunhas brasileiras numa audiência qualquer, continuando a ouvi-las. A dificuldade hercúlea da tarefa para quem não seja da área é suficiente para dar uma ideia de quão mais difícil é, mesmo para especialistas, a interpretação simultânea de uma língua estrangeira para o Português e vice-versa. Em realidade, profissionais da área que dominam esse modo de interpretação com excelência são disputadíssimos no mercado, sendo requisitados com meses de antecedência para eventos e, não raras vezes, são contratados permanentemente por organismos internacionais. Numa audiência criminal, a interpretação simultânea normalmente é utilizada durante a oitiva das testemunhas: sentado ao lado do réu estrangeiro, o intérprete forense ouve o depoimento das testemunhas em Português e, simultaneamente, o retransmite ao acusado em seu idioma. A dificuldade da tarefa é agravada pela sensível diferença de registros e estilos linguísticos utilizados pelas diferentes testemunhas: há os policiais, que usam a linguagem e os jargões próprios de sua profissão; há os técnicos e especialistas sobre determinado assunto, que se valem de terminologia técnica específica; e há as pessoas de educação mais modesta, que fazem

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uso de registros informais do Português e por vezes se expressam de forma confusa e linguisticamente imprecisa. Embora importante também nas demais modalidades de interpretação, é na intepretação simultânea que o alinhamento entre juiz federal e intérprete se mostra essencial, na medida em que compete ao magistrado que preside a audiência proporcionar condições adequadas para que o intérprete forense bem desempenhe sua função. De fato, ruídos, distrações ou mesmo a disposição da sala de audiência podem impedir o intérprete de ouvir claramente as perguntas feitas à testemunha e as suas respostas. Do mesmo modo, se os locutores estiverem falando muito rápido, o intérprete pode não conseguir acompanhá-los. Ainda, audiências muito longas podem esgotar as forças físicas e mentais do intérprete, eliminando sua capacidade de concentração e interpretação. Em qualquer desses casos, é dever do juiz intervir, de ofício ou a pedido do intérprete, para eliminar a causa do desconforto e proporcionar a realização da audiência em condições adequadas para o trabalho do intérprete. Uma medida judicial simples capaz de evitar esses percalços é o esclarecimento prévio, feito pelo juiz no início da audiência, em que ele explica às partes e às testemunhas as peculiaridades de uma audiência com réu estrangeiro e as convida a colaborar com o intérprete, falando mais lentamente, utilizando frases curtas, construções verbais simples e diretas e não se interrompendo ou falando ao mesmo tempo. Embora seja recomendável que os juízes tenham bom conhecimento das particularidades da interpretação forense – para que possam, por si próprios, se antecipar às dificuldades dos intérpretes e solucioná-las de ofício – não há vergonha alguma (antes, é dever ético do auxiliar do juízo, como se verá abaixo) em que os próprios intérpretes interrompam sua participação na audiência e peçam o auxílio do magistrado. Com efeito, solicitações respeitosas (como, e.g., “Excelência, o senhor poderia pedir à testemunha que fale mais devagar, por favor?”, ou “Excelência, seria possível fazermos um intervalo de

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alguns minutos para que eu possa recompor minha concentração em nível satisfatório para continuar a interpretação?”) não só não prejudicam o andamento da audiência como são bem vindas, por viabilizarem o bom desempenho profissional do intérprete e, por conseqüência – como visto acima – a plena realização do devido processo legal previsto na Constituição.

4.2 A interpretação consecutiva A interpretação consecutiva é aquela em que o intérprete vai tomando notas enquanto ouve o discurso, para, em seguida, em uma pausa do locutor, fazer a interpretação para a língua de chegada. Ela utiliza a habilidade cognitiva da memória de curto prazo e, precisamente por isso, reclama que os discursos a serem interpretados não ultrapassem dois minutos ou contenham mais de cinqüenta palavras,6 sob pena de o intérprete não conseguir apreender e reproduzir com fidelidade o que acabou de ser dito. Por sua própria natureza, é modalidade de interpretação que emprega tempo consideravelmente maior que a simultânea.7 As escolas de interpretação empregam inúmeras técnicas e exercícios para desenvolver tanto a memória de curto prazo, quanto a forma de anotação e apreensão do discurso a ser interpretado, havendo técnicas mnemônicas e ideogramas próprios para a facilitação do trabalho. Não raras vezes, os intérpretes consecutivos acabam desenvolvendo códigos de símbolos próprios para tomar notas de palavras chave do discurso e agilizar a interpretação. Nada obstante, tal qual na interpretação simultânea, são necessários anos de prática para que se alcance excelência (caracterizada pela absoluta fidelidade na transmissão da mensagem) na interpretação consecutiva. Cfr. MIKKELSON, Holly. The interpreter’s edge: practical exercises in Court Interpreting, 3. ed., Ed. Acebo, 1995. 7 No exemplo citado acima, da ação penal envolvendo três rés tailandesas, em que foi convocada uma presa tailandesa processada em outra ação penal para funcionar como segunda intérprete ao lado da intérprete de Inglês, era de interpretação consecutiva que se tratava. 6

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Nas audiências criminais, ela é largamente utilizada, surgindo já na entrevista prévia do réu estrangeiro com seu defensor, passando pelas explicações preliminares do juiz no início da audiência e reaparecendo no encerramento, para discussão com o defensor sobre eventual apelação. É no interrogatório do acusado, porém, que a interpretação consecutiva assume protagonismo absoluto: o intérprete vai vertendo para o idioma estrangeiro, pouco a pouco, as perguntas do juiz, do procurador e do defensor a respeito do mérito da acusação e, com as respostas do réu – também interpretadas consecutivamente – vai se desenhando a versão do acusado para os fatos, com a admissão ou negação da culpa. Não obstante sua larga utilização, muitos juízes, procuradores e advogados continuam a atrapalhar consideravelmente o trabalho dos intérpretes durante a interpretação consecutiva, simplesmente por ignorar o modo de funcionamento dessa específica modalidade interpretativa. Como já assinalado, é comum o equívoco de juízes, procuradores e defensores8 de se dirigirem ao intérprete (com uso do discurso indireto, na terceira pessoa do singular), ao invés de se dirigirem diretamente ao réu (com utilização do discurso direto, na primeira pessoa do singular). Considerando que o intérprete consecutivo tem dever de máxima fidelidade ao discurso do locutor (impondo-se a reprodução da forma, do estilo, do tom, de eventuais erros, hesitações, interrupções e reformulações de frases), a utilização do discurso indireto o obriga a empregar tempo e energia mental extras, para converter mentalmente o discurso indireto para a forma direta antes de transmitir a mensagem ao réu no idioma estrangeiro. A técnica correta, simples e natural, manda que as partes e o juiz se dirijam, mesmo em Português, diretamente ao réu, como se ele compreendesse o discurso. O intérprete forense então transporta a mensagem tal como construída para o idioma estrangeiro e, ao Tal equívoco dificilmente ocorre da parte do réu estrangeiro, que, indagado pelo intérprete em sua língua materna, tende a responder em primeira pessoa, por meio do discurso direto.

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ouvir a resposta do réu, faz o mesmo, respondendo à indagação, em Português, também na primeira pessoa do singular, como se fosse mero amplificador da voz do acusado. Mas não é só. O abuso da terminologia jurídica, o uso de construções verbais demasiadamente complexas ou eruditas, de frases longas e de confusas “introduções” às perguntas (ou mesmo de “perguntas” às quais não se segue o necessário ponto de interrogação) complicam desnecessariamente o trabalho dos intérpretes forenses. Não se pode olvidar, no ponto, que os réus estrangeiros não dispõem de conhecimento técnico-jurídico (e ainda que dispusessem, não seria do direito brasileiro), obrigando os intérpretes a uma imprópria – porém indispensável, no caso – simplificação do discurso, sob pena de absoluta incompreensão por parte do acusado, mesmo em seu idioma (tal qual sucede com muitos réus brasileiros não esclarecidos pelos juízes). Também aqui, a solução é fácil: a utilização, pelas partes e pelo juiz, de frases curtas e simples e, na medida do possível, a substituição de termos técnicos ou muito específicos por possíveis sinônimos ou breves explicações mais acessíveis em Português (a critério, note-se, dos próprios juízes, procuradores e advogados, e não mais do intérprete, a quem não cabe tamanha responsabilidade). Ainda, cabe ao juiz orientar as partes e o réu – e interrompê-los momentaneamente, quando o caso – a falarem por períodos curtos de tempo, para permitir a pronta interpretação consecutiva, fazendo os depoimentos caminharem de forma entrecortada, passo a passo. Há, também, pequenos deslizes de partes e juízes decorrentes de mera desconcentração, como os que acontecem quando eles, inquiridores, também falam o idioma estrangeiro do acusado. Por vezes, depois de ouvir e compreender a resposta do réu na língua estrangeira, juízes, procuradores e advogados desatentos põem-se de imediato a fazer novas perguntas, sem deixar que o intérprete traduza o que foi dito para o Português (o que é indispensável para os registros da audiência). Muito embora se trate de irregularidade

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quase inofensiva, a demora do juiz em perceber o incidente e corrigi-lo (permitindo que todas as respostas do réu sejam devidamente transportadas para o Português pelo intérprete) pode acabar ensejando até mesmo a nulidade da audiência, pelo não registro do interrogatório do acusado em Língua Portuguesa. De outro lado – justiça seja feita – há também os intérpretes forenses que, ainda despreparados para a função (por formação deficiente ou falta de experiência), acabam por comprometer seu trabalho ao desrespeitar as regras técnicas básicas da interpretação consecutiva. Deveras, a mera ignorância, pelo intérprete, de seu dever funcional de máxima fidelidade ao discurso interpretado pode causar sérios mal entendidos e até mesmo prejudicar ou favorecer indevidamente o estrangeiro acusado. Como já assinalado, o intérprete consecutivo deve evitar ao máximo omitir ou adicionar informações ao discurso interpretado, bem como deve furtar-se a embelezar o vocabulário ou corrigir erros gramaticais ou de estilo. Se, por exemplo, o réu estrangeiro acusado de tráfico internacional de drogas é indagado se “sabia se havia droga escondida em sua bagagem”, eventual hesitação, falso início de frase ou resposta sem sentido devem ser fielmente reproduzidos pelo intérprete, a quem não cabe repreender o acusado por não ter respondido à indagação, nem muito menos “reinquiri-lo” na busca de uma resposta mais completa. A Justiça Federal de Guarulhos reúne verdadeiro anedotário com episódios envolvendo intérpretes despreparados (ou momentaneamente desconcentrados) que acabaram por prejudicar as audiências criminais de que participaram. Certa feita, desconfiado de que um réu estrangeiro simplesmente inventara o nome de um possível mandante do crime (para minimizar sua participação no delito), o membro do Ministério Público continuou sua inquirição fazendo inúmeras perguntas estranhas ao assunto, para retomar a questão minutos depois, na esperança de surpreender o acusado já esquecido do nome que inventara. Repetindo então a indagação “qual era mesmo o nome da

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pessoa que lhe deu a droga no Brasil?”, qual não foi a surpresa do procurador quando a própria intérprete, sem sequer traduzir a pergunta, respondeu de pronto com o nome dito inicialmente pelo réu, que ela havia anotado em seu caderno. Aliás, mais de uma vez aconteceu de o juiz (entre outros, o coautor deste ensaio) indagar sobre a vida pessoal e familiar do acusado e o intérprete, inadvertidamente, também sem sequer traduzir a pergunta, por-se a responder, posto que já obtivera tais informações do réu durante a entrevista prévia reservada com o defensor. Noutro episódio, numa audiência de custódia – em que se decidia sobre a manutenção da prisão em flagrante do estrangeiro ou a concessão de liberdade provisória – o magistrado indagou do acusado o que ele faria se fosse posto em liberdade. Claramente enfurecido por se sentir, segundo afirmava, enganado por um seu conhecido (que teria escondido drogas em sua bagagem sem seu conhecimento), o estrangeiro respondeu, em Inglês, que iria procurar o responsável e matá-lo; o intérprete, contudo, ao transportar a frase para o Português, omitiu a parte final, dizendo apenas “vou procurar meu amigo”. Tendo compreendido a resposta em Inglês, e surpreso com a omissão indevida do intérprete, o juiz mandou que ele, intérprete, traduzisse fielmente o que foi dito, sobrevindo então a frase completa, com a menção à intenção de “matar o responsável”, o que acabou por ensejar, naquele momento, a manutenção da prisão, pelo receio quanto à real disposição do acusado de se vingar de seu conhecido. Fosse o caso com uma língua estrangeira ignorada pelo julgador, a má atuação do intérprete consecutivo seguramente teria passado despercebida e poderia até mesmo ter ensejado uma tragédia. A despeito dos casos mais folclóricos, é inegável que a forma de falar do acusado, o estilo e o tom de seu discurso, a convicção ou hesitação em suas afirmações, os rodeios, os falsos inícios de frase e mesmo os erros gramaticais e as frases sem sentido fornecem ao magistrado informações importantíssimas quanto ao modo de ser

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e à capacidade de compreensão do réu (circunstâncias relevantes, por exemplo, para formação do juízo quanto à consciência e voluntariedade do acusado a respeito de todas as circunstâncias do crime de que é acusado e também para fins de dosimetria da pena). Se a audiência é a oportunidade do juiz de travar contato direto com o réu e assim conhecê-lo um pouco mais, o intérprete forense que ignora as regras e técnicas da interpretação consecutiva, omitindo ou acrescentando informações, ou substituindo o estilo linguístico do réu estrangeiro pelo seu próprio, acaba por embaçar a imagem do acusado e impedir o magistrado de conhecer verdadeiramente a pessoa que deve julgar (em claro prejuízo da Justiça e do próprio réu).

4.3 A interpretação à prima vista Na interpretação à prima vista o intérprete lê um documento escrito em um idioma e, ao mesmo tempo, o transporta oralmente para língua diversa. Essa modalidade é bastante semelhante à interpretação simultânea, diferindo essencialmente quanto ao veículo que traz ao intérprete a mensagem a ser traduzida: na intepretação simultânea, é alguém que fala; na interpretação à prima vista, é um texto escrito, com o qual o intérprete está tomando contato pela primeira vez.9 Por exigir a imediata tradução oral do documento, conforme o intérprete o vai lendo pela primeira vez, essa técnica exige as mesmas habilidades da interpretação simultânea, como a alta concentração, a rapidez de raciocínio e a capacidade de separação mental do que se lê e do que se fala quase ao mesmo tempo. Mas não só. Por normalmente envolver a tradução de documentos técnicos, escritos em linguagem especializada, a interpretação à prima 9 Trata-se, como visto, de interpretação e não de tradução, atividade essencialmente diversa, em que o tradutor dispõe inclusive de tempo e acesso a dicionários e textos de apoio para concluir seu trabalho, que será apresentado posteriormente por escrito.

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vista exige conhecimento ainda mais aprofundado do vocabulário específico empregado no escrito que se vai traduzir oralmente. Bem por isso, é considerada uma das modalidades mais difíceis para o intérprete forense. Na Justiça Federal de Guarulhos, conquanto possa ser utilizada antes (como, e.g., na leitura da denúncia para notificação da acusação aos réus estrangeiros), o momento por excelência da interpretação à prima vista é a leitura da sentença penal. Quando a sentença é proferida em audiência, na presença do réu, normalmente o juiz a lê em voz alta e o intérprete realiza a intepretação simultânea para o réu estrangeiro; quando, todavia, a sentença é proferida depois de encerrada a audiência de instrução, normalmente se realiza uma segunda audiência (em videoconferência), apenas para a leitura da sentença pelo intérprete. E tal leitura será feita, precisamente, com utilização da interpretação à prima vista. No processo penal, a leitura de uma sentença de absolvição é seguramente momento de alegria e alívio para o réu (estrangeiro ou brasileiro), sendo comum até mesmo certa descontração dos presentes, que humanamente se solidarizam com o fim do martírio representado pela acusação da prática de um crime. A tarefa do intérprete forense, assim, não apresenta, nesse contexto, dificuldades maiores que as já inerentes a qualquer interpretação à prima vista. Bem diversa, contudo, é a situação quando se trata da leitura de uma sentença penal condenatória. As reações de um réu que ouve sua condenação em audiência podem variar da silenciosa e contida resignação à mais enfurecida e ruidosa revolta, sendo mesmo imprevisível. Destarte, é de extrema importância, especialmente nesse cenário, que a mensagem transmitida pelo intérprete forense seja absolutamente fiel ao conteúdo da sentença lida, levando ao conhecimento do réu condenado, em seu idioma materno, as razões concretas de sua condenação, a extensão e os fundamentos de sua pena (com explicitação das eventuais atenuantes e agravantes, minorantes e majorantes). Por mais que hoje se busque a simplificação dos textos jurídicos e o descarte de floreios linguísticos inúteis, a sentença

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penal condenatória, por ser peça processual eminentemente técnica e disciplinada em lei, inescapavelmente terá de fazer uso da terminologia própria do direito penal, valendo-se de inúmeras expressões e vocábulos técnicos, que quase sempre terão seus equivalentes no idioma estrangeiro. Desse modo, é absolutamente indispensável que o intérprete forense esteja não só familiarizado com a linguagem do direito penal brasileiro como, também, com a terminologia jurídica da língua estrangeira falada pelo réu, de modo a garantir a plena compreensão do conteúdo da sentença pelo acusado. O intérprete forense deve, ainda, cercar-se de cuidados para não se permitir externar aprovação ou reprovação do desfecho da ação penal (ainda que por meio de meras expressões faciais durante a leitura da sentença) e, em hipótese alguma (por mais difícil que isso seja na prática), deve tentar “consolar” o réu (seja com a inofensiva lembrança da possibilidade de apelação, seja com afirmações mais temerárias, como, por exemplo, a de que “outros receberam penas maiores em casos semelhantes”). Embora seja da natureza humana buscar consolar o semelhante que sofre, esse papel, no processo penal, compete ao defensor e à família do condenado, nunca ao intérprete, que é auxiliar técnico do Poder Judiciário e deve pautar-se por absoluta sobriedade e imparcialidade no desempenho de sua função. É comum (e plenamente compreensível, sob o aspecto humano) que os réus estrangeiros vejam no intérprete forense quase um amigo, pelo só fato de ser alguém com quem conseguem se comunicar. Ademais, o contato próximo e permanente com o intérprete durante quase todo o tempo de permanência no Fórum Federal, bem como a circunstância de que não cabe a ele tomar qualquer decisão sobre o destino do processo, podem ensejar no réu estrangeiro uma natural simpatia pelo auxiliar do juízo e, por vezes, até mesmo uma ilusória sensação de intimidade. Não custa lembrar, contudo, que o intérprete forense é auxiliar do juízo e não do réu estrangeiro. Deve primar, assim, por dever de ofício, por uma atuação absolutamente neutra e imparcial, objetiva e transparente, evitando criar laços emocionais com o acusado es-

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trangeiro. Do contrário, o intérprete forense pode ver-se colocado em situações extremamente delicadas, como quando o réu se sente à vontade para pedir um conselho, ou para perguntar se o juiz de seu caso é “severo” ou “liberal”, se o procurador é “mau” ou se seu defensor está fazendo uma “boa defesa”. Sem dúvida nenhuma, o momento de olhar nos olhos de um réu e proferir sua condenação (por vezes, a anos de prisão em regime fechado) não é fácil nem mesmo para os juízes, que estão ali para cumprir sua missão jurídico-constitucional e têm a consciência tranqüila de ser, a sua sentença condenatória, a decisão imposta pela prova dos autos e a mera conseqüência das más escolhas do acusado. O intérprete, contudo, não tem a responsabilidade de examinar a prova produzida no processo, tampouco a de decidir pela condenação ou absolvição ou de dosar a pena a ser aplicada. Por isso mesmo, deve estar sempre atento e vigilante para não se envolver emocionalmente com a desventura do estrangeiro condenado.

4.4 Da inadmissibilidade da utilização de tradutores eletrônicos (e.g., “Google Tradutor”) como substitutos da tradução ou da interpretação à prima vista Recentemente, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região afirmou a legalidade da utilização da ferramenta eletrônica “Google Tradutor” para traduzir a sentença de um réu estrangeiro,10 baseando-se no entendimento da Corregedoria-Regional da Justiça Federal da 3ª Região, que, em 2011, considerou o uso do “Google Tradutor” como uma “boa prática processual”, uma “medida idônea, célere e com resultados satisfatórios”, afirmando, diante das dificuldades que a 3ª Região encontrava para traduzir processos criminais, que “não se torna necessário aguardar, como tem ocorrido atualmente nas diversas varas federais com competência penal, o lapso de tempo de às vezes diversos meses até a obtenção de tradutor/in10 TRF3, Apelação Criminal nº 0006151-21.2009.4.03.6119/SP, Primeira Turma, Rel. Desembargador Federal WILSON ZAUHY, DJe 08/04/2016.

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térprete pelas vias mais convencionais”.11 Precisamente nessa linha de entendimento, algumas Varas Federais ainda hoje têm utilizado o “Google Tradutor” para traduzir denúncias, sentenças e até pedidos de colaboração jurídica internacional. A decisão, contudo – seja-nos permitido dizê-lo com o máximo respeito – vai de encontro à orientação de todos os países mais avançados no estudo e na prática da interpretação e da tradução forense, como, por exemplo, a quase totalidade dos países europeus, os Estados Unidos da América, o Canadá, o Japão e a África do Sul. Aliás, seria de se perguntar por que o Parlamento Europeu e a Comissão Européia, por exemplo, contratam tradutores e intérpretes de praticamente todos os idiomas dos países pertencentes à União Européia, gastando milhões de euros todos os anos com seus salários, se o serviço deles poderia tranquilamente ser substituído, com enorme vantagem econômica e ganho de tempo, por uma ferramenta eletrônica disponível gratuitamente na internet. O desconforto da indagação chama à lembrança a sabedoria popular de que, para todo problema complexo, existe uma solução simples. E errada. Não há dúvida de que o “Google Tradutor” é uma ferramenta extremamente útil para o uso privado em situações cotidianas envolvendo estrangeiros. Funciona como um ágil dicionário que permite a compreensão básica do que se diz em idiomas diversos e, assim, enseja interações sociais e comerciais que não tenham maiores repercussões. Entretanto, quando se pretende utilizar tal dispositivo eletrônico primário no ambiente judicial, em substituição ao trabalho de intérpretes e tradutores forenses, não só se assume o risco (altíssimo) de grave atentado ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, como se passa atestado de profunda ignorância linguística. Deveras, somente quem não conheça outra língua além do Português (e, assim, seja incapaz de conferir o resultado proporcionado pelo tradutor eletrônico em um idioma estrangeiro) pode 11

Expediente Administrativo nº 2011.01.0218 COGE.

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afirmar que o “Google Tradutor” é uma ferramenta “idônea” que oferece “resultados satisfatórios”. Qualquer bilíngue, seja de quais idiomas se trate, atestará sem hesitação a absoluta precariedade do tradutor eletrônico, que além de não oferecer segurança na versão de textos científicos com vocabulário técnico, simplesmente não consegue traduzir, com sentido, parágrafos com mais de duas linhas de extensão. Se o texto técnico a ser traduzido for jurídico, então, a precariedade se agrava insuperavelmente, mesmo que se trate de línguas com terminologia jurídica semelhante (como o Português, o Espanhol e o Italiano), dada a profusão de falsos cognatos existentes nas línguas latinas. Contudo, se a língua de chegada for radicalmente diversa do Português (como o Inglês, o Alemão, o Russo, o Árabe, o Swahili etc.), a confusão da tradução promovida pelo tradutor eletrônico chegará às raias do ridículo e do constrangedor (sem que o juiz, que dificilmente falará tantas e tão variadas línguas, possa conferir e corrigir o resultado). E o constrangimento e a vergonha poderão ser internacionais – com prejuízo irreparável à imagem e à credibilidade do Judiciário brasileiro – se o “Google Tradutor” for utilizado, por exemplo, para tradução de um pedido de colaboração jurídica internacional. Demais disso, admitir a utilização de uma ferramenta eletrônica absolutamente precária e limitada – como o “Google Tradutor” – para verter para idiomas estrangeiros sentenças proferidas em Português culto e técnico, somente pode revelar pouco apreço pelos valores constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, além de indisfarçável desprezo pela frágil situação do réu estrangeiro no processo penal brasileiro. Certamente que a diplomacia brasileira não admitiria a utilização do “Google Tradutor” para verter para o Inglês uma simples “carta de boas vindas” a um novo embaixador britânico, pelo risco do ridículo e do mal entendido; tratando-se de “réus” estrangeiros, porém, a plena compreensão do conteúdo da sentença que selará seu destino no País é vista por alguns como mero detalhe insignificante, incapaz de despertar a busca de soluções menos preguiçosas.

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É fora de dúvida – como visto com vagar acima – que a Justiça Federal brasileira é despreparada e enfrenta sérias dificuldades para encontrar tradutores e intérpretes forenses capacitados e em condições de fazer frente à enorme demanda de algumas regiões (como na cidade de Guarulhos, por exemplo). A solução, todavia, não há de ser a disseminação do uso de uma ferramenta eletrônica absolutamente débil e insegura. Muito ao contrário, é a implementação de um programa oficial de seleção e treinamento de intérpretes forenses – tal como feito em muitos países do mundo – que proporcionará, gradualmente, a profissionalização dessa atividade auxiliar e o pleno atendimento das necessidades da Justiça.

5 Da necessidade de profissionalização do serviço de interpretação forense da Justiça Federal Sem embargo da absoluta necessidade dos intérpretes forenses na Justiça Federal (e da essencialidade de sua função no processo penal, como visto), inexiste regramento específico sobre a sua contratação. O Código de Processo Penal, ao tratar dos “Peritos e Intérpretes”, determina apenas que “os intérpretes são, para todos os efeitos, equiparados aos peritos” (art. 281) e que “as partes não intervirão na nomeação do perito” (art. 276). Já a Resolução nº 127/2011 do Conselho Nacional de Justiça determina que “a designação de perito, tradutor ou intérprete é cometida exclusivamente ao juiz da causa, sendo-lhe vedado nomear cônjuge, companheiro(a) e parente, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, de magistrado ou de servidor do juízo” (art. 4º). E o art. 23 da Resolução nº 305/2014 do Conselho da Justiça Federal estabelece que “a nomeação de advogados voluntários, advogados dativos, curadores, peritos, tradutores e intérpretes é ato exclusivo do juiz, que poderá optar por selecionar o profissional mediante sorteio eletrônico pelo Sistema AJG/JF [Assistência Judiciária Gratuita da Justiça Federal]”. Nesse contexto, atualmente inexiste um programa oficial de seleção dos intérpretes forenses na Justiça Federal, tampouco um cadastro

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regional ou nacional dos intérpretes habilitados a atuar em juízo. Os “intérpretes forenses”, assim, continuam a ser nomeados caso a caso pelos juízes federais, entre pessoas conhecidas do juízo com conhecimento do Português e de alguma língua estrangeira. Como já assinalado, não há prova de seleção nem exigência de comprovação da competência linguística dos contratados.12 Do mesmo modo, não existe um “manual de padronização da atuação dos intérpretes forenses” (como, e.g., aqueles editados pelo Conselho Nacional da Justiça e os Tribunais Regionais Federais para os conciliadores e mediadores judiciais nos termos da Resolução nº 125/2010 do CNJ),13 nem um código de ética profissional estabelecido. E o “treinamento” do intérprete forense se limita, de forma absolutamente assistemática e destituída de método, a poucas orientações prévias passadas minutos antes de uma audiência por alguns juízes, servidores, advogados e procuradores mais experientes e de boa vontade. Lamentavelmente, mesmo se tratando da Justiça Federal e de um dos maiores Tribunais do País (o Tribunal Regional Federal da 3ª Região), e mesmo existindo dois órgãos de cúpula destinados justamente a implementar ações administrativas que melhorem a eficiência do Judiciário Federal (o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho da Justiça Federal), tudo continua a ser feito de forma improvisada e amadora. E a quase invisibilidade do problema (visto que não costumam despertar grande interesse as dificuldades e problemas enfrentados por réus estrangeiros em sua maioria pobres e sem acesso a grandes e midiáticos escritórios de advocacia criminal) impede que ele ganhe a repercussão necessária para que mudanças institucionais sejam adotadas. Precisamente por essa precariedade na seleção e contratação dos intérpretes, já por mais de uma vez o juiz veio a descobrir, apenas no curso da audiência, a absoluta incompetência linguística do “intérprete” nomeado, tendo de destituí-lo na hora e adiar a audiência, para que outro mais capaz fosse contratado. 13 Vide o “Manual da Conciliação da Justiça Federal da Terceira Região” – <http:// www.trf3.jus.br/trf3r/index.php?id=1271>. 12

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A experiência internacional, entretanto, demonstra que não só é necessário mudar, como é possível fazê-lo sem grandes revoluções administrativas, bastando a firme disposição de profissionalizar o serviço judiciário de intepretação forense e a adoção sistemática de medidas de curto e médio prazo para que, paulatinamente, o Poder Judiciário tenha à sua disposição um corpo de auxiliares de competência reconhecida e atuação padronizada. Os europeus e os norte-americanos, por exemplo, desde os famosos julgamentos de Nuremberg, ao final da Segunda Guerra Mundial, se preocupam com a formação e treinamento de seus intérpretes forenses. E a realidade atual da União Europeia, de um lado, e o intenso fluxo migratório recebido pelos Estados Unidos, de outro, provaram a esses países que a preocupação com a preparação competente dos intérpretes forenses é um investimento que se paga com vantagem sobre a aparente economia do improviso e do amadorismo (no que se inclui, como visto, a utilização do “Google Tradutor”).

5.1 A interpretação forense no exterior É hoje inconcebível, nos países mais avançados no trato do assunto, a idéia de utilização de intérpretes forenses sem formação acadêmica específica e a contratação caso a caso (ad hoc) para atuar em audiências criminais. Países como a Alemanha, por exemplo, se escandalizam com a mera cogitação de que intérpretes sem certificação específica sejam chamados para atuar perante os tribunais.14 Em muito países da Europa e no Japão, não há registro de intérpretes que falem “somente” duas línguas trabalhando em tribunais, admitindo-se exceções apenas para línguas exóticas ou de

Tal aconteceu na apresentação, durante a “3ª Conferência Internacional sobre tradução e interpretação não profissional” [Suíça, 2016], do trabalho da co-autora deste artigo intitulado “Ética e Diretrizes Profissionais para intérpretes judiciais ad hoc”, em que se pode testemunhar o espanto e a indignação dos alemães com a possibilidade de atuação judicial, ainda hoje, de intérpretes não certificados pelos tribunais. 14

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baixa difusão. Mesmo em países ditos “periféricos”, as exigências de qualificação técnica para que se admita a atuação de alguém como intérprete em audiências judiciais são altíssimas. Na Estônia, por exemplo, os que queiram se habilitar como intérpretes junto aos tribunais devem terminar o curso de “interpretação de conferência” ministrado na universidade da capital, Tallin (com duração de dois anos) e, depois, especializar-se em interpretação forense (em curso sucessivo também de dois anos). Dada a proximidade geográfica com países como Finlândia, Suécia, Rússia, Polônia, Letônia e Lituânia, os intérpretes estonianos falam quatro línguas em nível proficiente e frequentemente flutuam em duas ou mais outras línguas em nível passivo. E o Tribunal local disponibiliza em sua página na internet uma lista com os nomes e as línguas de especialidade dos intérpretes certificados.15 Já na justiça federal norte-americana, o serviço de interpretação forense é disciplinado em lei (Court Intepreters Act, de 28/10/1978), sendo o objetivo da normatização “dar aos réus não falantes do Inglês ou com deficiência de fala ou audição uma oportunidade igual para compreender e participar nos julgamentos civis e criminais na justiça federal” (tradução livre dos autores). Dispõe, ainda, de uma página própria dentro da página de internet da United States Courts (http://www. uscourts.gov/services-forms/federal-court-interpreters), em que são listadas as categorias de intérpretes e as habilidades exigidas, bem como a forma de contratação e remuneração. A justiça federal norte-americana disponibiliza eletronicamente, ainda, o “Manual de Orientação e Glossário do Intérprete da Justiça Federal” (em que consta o código de ética profissional) e o National Court Interpreter Database (NCID) Gateway (http://www. uscourts.gov/services-forms/federal-court-interpreters/nationalcourt-interpreter-database-ncid-gateway) que vem a ser um cadastro nacional de todos os intérpretes forenses certificados, com as

15 Informações obtidas diretamente em visitas locais da coautora do artigo, que vive há dois anos no país.

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respectivas áreas de atuação (cível, criminal, família) e os idiomas de especialidade, para ser utilizado pelos juízes federais de localidades que não disponham de corpo próprio de intérpretes ou que se deparem com línguas exóticas ou de baixa difusão.

5.2 Um modelo possível de seleção e treinamento para a Justiça Federal brasileira A Resolução nº 127/2011 do Conselho Nacional de Justiça (que dispõe “sobre o pagamento de honorários de perito, tradutor e intérprete, em casos de beneficiários da justiça gratuita, no âmbito da Justiça de primeiro e segundo graus”) prevê que “os Tribunais poderão manter banco de peritos credenciados, para fins de designação, preferencialmente, de profissionais inscritos nos órgãos de classe competentes e que comprovem a especialidade na matéria sobre a qual deverão opinar, a ser atestada por meio de certidão do órgão profissional a que estiverem vinculados” (art. 2º). Pela mesma Resolução, “as Presidências dos Tribunais ficam autorizadas a celebrar convênios com profissionais, empresas ou instituições com notória experiência em avaliação e consultoria nos ramos de atividades capazes de realizar as perícias requeridas pelos juízes”. Considerando que, nos termos da lei, como visto, “os intérpretes são, para todos os efeitos, equiparados aos peritos” (Código de Processo Penal, art. 281), vê-se que já está autorizada a criação, pelos tribunais, de um “cadastro regional de intérpretes e tradutores forenses”, em que poderão ser inscritos os intérpretes e tradutores que demonstrem a qualificação técnico-linguística necessária. Não se trata, contudo, simplesmente de um cadastro para fins de pagamento dos honorários devidos (como o já existente “AJG” – Sistema da Assistência Judiciária Gratuita), mas sim de um refinamento desse banco de dados, para atender à finalidade de certificar a proficiência linguística e a excelência profissional dos intérpretes e tradutores nele inscritos. Precisamente por essa razão, o aprimoramento do cadastro já existente (em que todos os intérpretes e tradutores forenses hoje já

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devem se inscrever para receber o pagamento de seus honorários)16 demanda o estabelecimento de padrões oficiais de qualificação técnica, de critérios científicos de avaliação e de um manual de padronização ético-profissional. Estabelecido um cadastro regional (ou até mesmo nacional, via Conselho Nacional de Justiça ou Conselho da Justiça Federal) nestes moldes, estaria viabilizada até mesmo a utilização de intérpretes residentes em localidades distantes do Fórum Federal, pelo sistema de videoconferência, sempre que a urgência do caso ou a raridade do idioma exigido inviabilizassem a convocação dos intérpretes locais cadastrados. No que toca especificamente à qualificação linguística, parece fora de dúvida, diante de todo o exposto até aqui, que a mera circunstância de alguém ser bilíngue ou compreender outras línguas além do Português não o autoriza, só por isso, a atuar como intérprete forense. A relevância constitucional da função e os valores em jogo impedem que se permita que pessoas despreparadas tecnicamente para o desempenho da atividade sejam admitidas ao serviço. É preciso, assim, que os intérpretes judiciais profissionais tenham recebido educação formal específica (tanto linguística, em Português e nas línguas em que se propõe a atuar, quanto em interpretação), dominando em alta performance as diferentes habilidades dos distintos modos de interpretar. Ademais, é indispensável que os intérpretes forenses, antes de serem considerados aptos para a função, passem por um “estágio supervisionado” com intérpretes mais experientes (tal como já acontece com os conciliadores e mediadores formados pela Justiça Federal, nos termos da Resolução nº 125/2010 do CNJ). Não se ignora a impossibilidade de se implementar um tal modelo do serviço de interpretação forense do dia para a noite, e até mesmo sua inviabilidade no que diz respeito a línguas mais raras ou de baixa difusão. Nada obstante, ainda que como um plano de médio prazo, a exigência intransigente de excelência profissional é não só Atualmente, um intérprete forense da justiça federal ganha por volta de R$ 200,00 por audiência de até três horas realizada.

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necessária, como plenamente possível, ao menos para os idiomas mais comuns nas audiências criminais, como o Inglês e o Espanhol (cujos falantes abundam no Brasil e podem perfeitamente ser treinados para a intepretação forense). Nesse cenário, a despeito dos cursos formais – e necessários – de línguas e de interpretação (muitas vezes oferecidos como especialização ou pós-graduação lato sensu pelas faculdades brasileiras), os Tribunais Regionais Federais, o Conselho Nacional de Justiça ou o Conselho da Justiça Federal poderiam oferecer cursos regulares (semestrais ou anuais) de capacitação de intérpretes forenses (também nos moldes dos já existentes para a formação de conciliadores e mediadores), com carga horária teórica e prática (estágio supervisionado). Os aprovados seriam então cadastrados pelos tribunais como intérpretes certificados. Paralelamente, os intérpretes ainda não certificados pelo Judiciário, mas com reconhecida competência linguística e experiência na área, poderiam inscrever-se no cadastro como intérpretes com domínio de língua estrangeira e, no futuro, submeter-se ao curso regular de certificação. Desse modo, preservar-se-ia o possível, sem perder de vista o ideal, plenamente alcançável em médio prazo. Já os falantes de línguas raras ou de baixa difusão poderiam ser cadastrados em categoria própria, como intérpretes de idioma raro ou de baixa difusão, em relação aos quais seria dispensada a exigência de certificação (dada a pouca frequência de sua atuação), bastando o conhecimento de um “código de ética e de padronização de conduta”.

6 Da necessidade de um “código de ética e de padronização de conduta” e de orientações para juízes, procuradores e defensores sem experiência com réus estrangeiros Diante da precariedade atual do serviço de interpretação forense da Justiça Federal – em que inexiste uma orientação única

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e segura sobre como esses auxiliares devem se comportar em audiência, com todos os riscos daí decorrentes – a simples adoção de um “código de ética e de padronização de conduta dos intérpretes forenses” já permitiria, sem nenhuma outra providência adicional mais custosa, a melhoria da qualidade desse serviço público. Com efeito, é indisputável que os intérpretes forenses – sobretudo por sua condição de garantidores do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa para os réus estrangeiros – devem respeitar certas balizas éticas e obedecer a regras específicas de atuação que podem não se fazer necessárias em outros campos da interpretação, como a de conferência ou de acompanhamento de autoridades. Mas, tal qual a mulher de César, não basta que os intérpretes observem as boas regras de conduta; devem, também, comportar-se publicamente de maneira que não deixe dúvida alguma quanto à sua total obediência aos elevados padrões éticos de sua profissão, durante todo o tempo em que estiverem a serviço da Justiça Federal.

6.1 Uma sugestão de “código de ética e de padronização de conduta” A partir das normas éticas inerentes à interpretação forense, e à vista dos códigos já positivados por alguns países, é possível elencar cinco deveres éticos que, observados por aqueles que se proponham a atuar como intérpretes em audiências judiciais, podem consubstanciar o núcleo essencial (o mínimo ético) de um futuro Código de Ética e Padronização de Conduta a ser elaborado pelos Tribunais Regionais Federais, pelo Conselho Nacional de Justiça ou pelo Conselho da Justiça Federal. São eles: a) Dever de precisão e completude: o intérprete forense deve realizar a interpretação do que foi dito da forma mais completa, exata e precisa possível, preservando o nível linguístico e o tom do locutor, sem alterar, omitir ou acrescentar o que quer que seja ao discurso interpretado, nem mesmo explicações.

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Embora pareça simples e evidente, esse dever ético pode reservar grandes desafios ao intérprete, seja quando o discurso interpretado não faz sentido na língua de partida (e deve, da mesma forma e nos mesmos limites, também não fazer sentido no idioma de chegada), seja quando o locutor utiliza palavras ambíguas de seu idioma (obrigando o intérprete, quando o esclarecimento imediato não seja possível, a arriscar-se na escolha de um dos significados possíveis na língua de chegada), seja, ainda, quando o réu estrangeiro descreve cenas constrangedoras ou repulsivas, ou faz uso de palavras de baixo calão, ofensivas ou racistas (que devem, ainda assim – e talvez com maior razão – ser fielmente reproduzidas pelo intérprete em Português).17 b) Dever de neutralidade, imparcialidade e distanciamento: o intérprete forense deve ser imparcial e livre de preconceitos e deve evitar toda e qualquer proximidade afetiva ou envolvimento emocional com o réu estrangeiro, não devendo, durante os procedimentos judiciais, conversar em caráter pessoal com as partes (procurador e defensor), testemunhas, amigos ou familiares do acusado sem expressa autorização judicial, abstendo-se de dar sua opinião pessoal sobre qualquer assunto. Conquanto também este dever ético possa parecer singelo e de fácil observância, não serão raras as vezes em que o réu surpreenderá o intérprete com perguntas aparentemente inocentes, mas que demandam sua opinião pessoal (“o juiz do meu caso é muito rigoroso?”, ou “você gosta do defensor público que indicaram para mim?”); também o ambiente da sala de audiências – em que testemunhas, procuradores e defensores não raro se conhecem – pode ensejar “conversas laterais” (sobre o tempo, o noticiário, etc.) que, a despeito de sua banalidade, podem ser mal interpretadas Recentemente, a Alemanha vem enfrentando problemas com intérpretes muçulmanos xiitas, que têm repreendido mulheres vítimas de violência doméstica por denunciarem seus maridos e utilizarem palavras como “sexo” e “estupro” em seus depoimentos, supostamente blasfemando e ofendendo o Islã. Cf. <https://www. gatestoneinstitute.org/8391/germany-muslim-interpreters>. 17

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pelo réu estrangeiro como amizade íntima ou conluio para prejudicá-lo. Ainda, histórias tristes e acontecimentos terríveis relatados por réus e testemunhas podem marear os olhos ou embargar a voz do intérprete mais desavisado. Os deveres de neutralidade, de imparcialidade e de distanciamento, ainda, obrigam o intérprete forense a apontar eventual conflito de interesses (como, e.g., quando tenha tido envolvimento de qualquer natureza com o réu, testemunhas, procurador ou defensor do caso), bem como o proíbe de aceitar quaisquer presentes ou recompensas de qualquer dos envolvidos no procedimento judicial. c) Dever de confidencialidade: o intérprete forense deve guardar sigilo de toda e qualquer informação a que tenha acesso no exercício de sua função, sobretudo sobre fatos que lhe sejam revelados apenas durante a entrevista reservada do réu com seu defensor. Ainda que a versão apresentada pelo acusado estrangeiro ao seu defensor, durante a entrevista prévia, seja absolutamente distinta da oferecida perante o juiz, em audiência, o intérprete deve abster-se de revelar qualquer inconsistência do depoimento, ainda que por trejeitos e expressões faciais. O dever de confidencialidade, contudo, pode ser excepcionalmente afastado pelo intérprete, em situações limite em que se põem em risco valores constitucionalmente mais importantes, como a vida e a integridade física de terceiros e a ordem pública (como, e.g., quando o réu revela em sigilo a iminência da prática de outro crime, o cativeiro de vítimas de sequestro, ou, ainda, quando um mau defensor orienta o acusado a fugir ou praticar violência na sala de audiências). Em tais situações excepcionais, o intérprete tem o dever de se dirigir ao gabinete do juiz e, antes mesmo da audiência, informar o ocorrido. d) Dever de honestidade e transparência quanto às qualificações profissionais: o intérprete forense deve apresentar suas credenciais técnicas ao Poder Judiciário com absoluta fidelidade e precisão, furtando-se a aceitar a nomeação quando seu nível de treinamento e experiência não permitirem o bom desempenho

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profissional de acordo com o nível de responsabilidade exigido pela função. e) Dever de compostura e permanente atualização profissional: o intérprete forense deve se comportar, dentro e fora do Fórum Federal, de maneira compatível com a dignidade da Justiça, sendo o mais discreto possível na sala de audiências, e deve buscar, permanentemente, sua atualização profissional.

6.2 Orientações para juízes, procuradores e defensores sem experiência com réus estrangeiros Os exemplos citados ao longo deste ensaio demonstram que a preparação apenas dos intérpretes forenses pode não ser bastante para que as audiências criminais transcorram sem sobressaltos, sendo indispensável que também os juízes, procuradores e advogados que se vejam na contingência de trabalhar com réus estrangeiros saibam como interagir com o intérprete em audiência. Para tanto, é suficiente o conhecimento das regras básicas das diferentes modalidades da interpretação forense e a observância de algumas poucas orientações: a) O juiz federal que preside a audiência deve lembrar que tudo é misterioso e sem sentido para o réu estrangeiro, que, além da Língua Portuguesa (quando não lusófono), ignora por completo também os ritos, fórmulas e cerimônias do direito brasileiro. A isso se acrescenta a circunstância de que, enquanto aguarda o julgamento na prisão, o acusado estrangeiro seguramente receberá, de seus colegas de cárcere mais experientes, explicações fantasiosas sobre os ritos e procedimentos e “conselhos” sobre como se comportar em audiência.18

De fato, é surpreendente a quantidade reiterada de casos (sempre com estrangeiros) em que, encerrado o interrogatório e dada a palavra ao réu para eventuais acréscimos finais, o acusado faz uso de um discurso quase ensaiado, pedindo desculpas ao magistrado, ao povo e ao governo brasileiros e pedindo clemência, por vezes deixando a cadeira e ajoelhando-se diante do juiz. 18

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É fundamental, assim, que, ao início da audiência criminal, o juiz se dirija ao réu e explique com detalhe o papel de cada um dos presentes na sala de audiências e o que vai acontecer dali em diante (a oitiva de testemunhas, o interrogatório, a ordem das perguntas, a oportunidade ao final para acrescentar o que quiser, as alegações finais orais e a prolação de sentença etc.). Esse simples e rápido esclarecimento tranquiliza o acusado e, via de consequência, minimiza o risco de incidentes provocados pela tensão natural que cerca toda audiência criminal, especialmente as com réus presos. b) o juiz e as partes (procurador e defensor) devem sempre se dirigir, em Português, ao próprio réu, em discurso direto, e não ao intérprete, em terceira pessoa; c) o juiz e as partes, ao elaborar suas perguntas (seja às testemunhas, seja ao réu interrogado) devem usar frases curtas e palavras simples, para facilitar o trabalho de interpretação; d) o juiz deve estar atento às necessidades do intérprete durante a audiência, intervindo sempre que solicitado ou mesmo de ofício, quando perceber desconforto da parte do auxiliar do juízo; e) na medida do possível, o procurador e o defensor devem, ao final de suas alegações finais orais, sumariar seus fundamentos em linguagem mais simples, para permitir a apresentação, pelo intérprete, de um resumo ao réu, quando não seja possível a interpretação simultânea; f) do mesmo modo, na medida do possível, o juiz deve, ao proferir sua sentença em audiência, sumariar seus fundamentos em linguagem mais simples, para permitir a apresentação, pelo intérprete, de um resumo ao réu, quando não seja possível a interpretação simultânea.

7 Conclusões A realidade exposta neste ensaio aponta para a urgente necessidade de mudança da forma como o Judiciário Federal brasileiro vem li-

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dando com o serviço (público) de interpretação forense. Se não por outras razões, pelo simples dever de obediência à Constituição Federal e de implementação concreta de seus mandamentos. É comum, em temas como o que se vem de tratar – em que outros países enfrentaram problemas semelhantes e hoje estão a milhas de distância à nossa frente – olhar com certa inveja e desalento para a posição em que as nações mais desenvolvidas se encontram atualmente, desapercebendo-se de todo esforço e sacríficio que outros povos suportaram para chegar lá. É mesmo habitual do brasileiro resignar-se com a absurda diferença de qualidade entre os serviços públicos prestados aqui e em países mais civilizados, como se nada houvesse a fazer. Mas há. Além do estudo e aprofundamento das modestas sugestões lançadas neste artigo, entende-se que parcerias e intercâmbios com órgãos judiciários internacionais (como, e.g., o Federal Judicial Center, nos Estados Unidos, e seus congêneres na Europa e na Ásia) podem proporcionar a força criativa capaz de acelerar a profissionalização de todos os setores do Judiciário Federal brasileiro, em benefício último do cidadão, brasileiro ou estrangeiro, que comparece nos fóruns Brasil afora. Acredita-se que, se o próprio Poder Público abandonar a macunaímica preguiça brasileira e a tolerância com a incompetência e o mal feito, passando a não aceitar a prestação de um serviço público que não seja de excelência, naturalmente os arremedos e improvisos no desempenho das funções públicas serão abandonados, substituídos republicanamente pelo profissionalismo e pela competência.

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A REGRA LEGAL TRIBUTÁRIA NON OLET E SUA REPERCUSSÃO NO PROCESSO PENAL RELATIVO A CRIMES TRIBUTÁRIOS, NO QUE CONCERNE À CONEXÃO E COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL Rodrigo Reiff Botelho Juiz Federal na Seção Judiciária do Espírito Santo

Resumo

Abstract

O presente trabalho procura analisar a repercussão, no processo penal relativo a crimes tributários, da regra legal tributária conhecida como non olet (art. 118, I, CTN), investigando acerca da existência ou não de conexão entre o crime tributário e o crime anterior coincidente com o fato gerador e a (in)competência da Justiça Federal para julgar este último.

This paper intends to analyse the results and influences of the legal rule as known as non olet (art. 118, I, CTN) over the criminal procedure relating to tax crimes, investigating if exists or not any connection between the tax crime and the precedent wrongdoing which is also a taxable event, and consequently the establishment or not of the Federal Court jurisdiction.

Palavras-chave: Processo penal – Crime tributário – Non olet conexão – Competência – Justiça Federal.

Keywords: Criminal procedure – Tax crime – Non olet – Connection – Jurisdiction – Federal court

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1 Introdução Tem sido cada vez mais comum, perante as Varas Federais Criminais, o oferecimento de denúncias versando sobre os crimes tributários em geral, em especial as chamadas sonegações fiscais puramente omissivas, previstas no artigo 1º, incisos I e II, da Lei nº 8.137/90, quando o contribuinte dolosamente suprime ou reduz tributo omitindo informação à autoridade fazendária relativamente à ocorrência do fato gerador do tributo, ou omitindo operação de qualquer natureza, dotada de relevância tributária, em documento ou livro exigido pela lei fiscal. Tais denúncias trazem um arcabouço fático-circunstancial muito variado. Há, por um lado, imputações mais simples, versando períodos/competências tributárias curtos, ou um único tributo sonegado, com a imputação isolada do crime tributário. Por outro lado, há relatos de atuação criminosa mais elaborada, em que a sonegação se constitui apenas em um fato a mais no retrato fático descrito na denúncia e imputado ao agente. Em tais casos, a sonegação pode se apresentar descrita dentro de um contexto criminoso maior, operado por uma organização criminosa, ou como parte integrante de um esquema de “lavagem de dinheiro”. Ou um misto dessas circunstâncias. E em tais hipóteses, por vezes as atuações criminosas se mostram tão imbricadas umas nas outras que acabam sendo denunciadas em uma mesma ação penal, alegando-se a conexão entre os crimes apurados e, a depender dos detalhes de cada caso, são eles imputados em concurso material ou formal. No entanto, vez ou outra, ao se analisar a narrativa da denúncia, depara-se com a coincidência entre o fato gerador de um tributo e um determinado crime, havendo, posteriormente a imputação tanto deste crime inicial (coincidente com o fato gerador) e própria sonegação (decorrente da omissão dolosa da ocorrência do fato gerador). Esses delitos são narrados como conexos e praticados em concurso material.

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Mas, nesta última hipótese apresentada (que é precisamente o objeto do presente trabalho), haveria realmente essa conexão, ante a regra peculiar vigente em Direito Tributário conhecida como non olet, insculpida no art. 118, I, do Código Tributário Nacional? Referida norma não teria o condão de afastar a conexão entre o crime coincidente com o fato gerador e o crime tributário? Conexos ou não, seria sempre a mesma Justiça a competente para ambos, ante o entendimento jurisprudencial sumulado do STJ (Enunciado nº 122: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art.78, II, “a”, do Código de Processo Penal”)? O presente estudo, portanto, pretende traçar algumas análises sobre essas questões, que não raramente se apresentam ao conhecimento do magistrado federal e que repercutem em várias esferas do processo penal: a precisa narrativa das imputações, a correta competência do Juízo Federal, a adequada instrução (quais teses e, por conseguinte, quais provas seriam úteis às partes), a clareza da sentença quanto ao fato criminoso e suas circunstâncias na aferição do dolo e, também, na individualização da pena acaso aplicada.

2 A regra tributária conhecida como non olet e sua repercussão no âmbito criminal Como se sabe, vigora no Direito Tributário, no que tange ao fato gerador do tributo, a regra legal conhecida doutrinariamente como non olet (do latim: sem cheiro). Com efeito, o art. 118, inciso I, do CTN proclama que a definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos. Disso decorre facilmente a conclusão de que a lei tributária não descreverá como hipótese de incidência tributária algum fato

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ilícito, o que não impedirá, contudo, que um fato gerador decorra de circunstâncias ilícitas. Há que se fazer um parêntese aqui para ressaltar a já clássica distinção doutrinária entre fato gerador e hipótese de incidência. Segundo leciona Hugo de Brito Machado: “A expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto a expressão fato gerador diz da ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito na lei. A hipótese é simples descrição, é simples previsão, enquanto o fato é a concretização da hipótese, é o acontecimento do que fora previsto” (MACHADO, 2001, p. 109).

Referida distinção, embora ainda guarde controvérsias no campo doutrinário do Direito Tributário1, é especialmente relevante na análise que se faz neste estudo, especialmente por ressaltar a diferença entre fato e norma, e a autonomia entre o fato enquanto crime e o mesmo fato como gerador de tributação. Ainda sobre o tema, prossegue o escólio de Hugo de Brito Machado: “A ilicitude do ato praticado nada tem a ver com a relação tributária. Isto não implica admitir-se a tributação de atos ilícitos. É indispensável, a este propósito, estabelecer-se uma diferença entre o ato ilícito como elemento da hipótese de incidência do tributo e a ilicitude que eventualmente pode verificar-se na ocorrência do fato gerador do tributo. Uma coisa é considerar-se, por exemplo, a manutenção de casa de prostituição como hipótese de incidência de um tributo. Outra coisa é admitir-se a incidência de imposto de renda sobre os rendimentos auferidos na referida atividade. A hipótese de incidência do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou de proventos de qualquer natureza (CTN, art.43). É irrelevante que tal aquisição se tenha verificado em decorrência de atividade lícita ou ilícita. Controvérsia doutrinaria muito bem dissecada por Luciano Amaro, em seu Direito Tributário Brasileiro, p. 247-252, 7. ed. 2001.

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Não se pode, entretanto, admitir um tributo em cuja hipótese de incidência se inclua a ilicitude. A compreensão do que se está afirmando é facilitada pela distinção, inegável, entre hipótese de incidência e fato gerador do tributo. Cuida-se, com efeito, de dois momentos. O primeiro é aquele em que o legislador descreve a situação considerada necessária e suficiente ao surgimento da obrigação tributária. Nessa descrição a ilicitude não entra. O outro momento é o da concretização daquela situação legalmente descrita. Nessa concretização pode a ilicitude eventualmente fazer-se presente. Aí estará, assim, circunstancialmente. Sua presença não é necessária para a concretização da hipótese de incidência do tributo. Mas não impede tal concretização, até porque, para o surgimento da obrigação tributária, como já visto, a concretização do previsto é bastante. Por isso, a circunstância ilícita, que sobra, que não cabe na hipótese de incidência tributária, é, para fins tributários, inteiramente relevante” (MACHADO, 2001, p. 109/110).

À mesma conclusão chegam diversos tributaristas, tais como o professor e juiz federal Mauro Luís Rocha Lopes, ao dizer que “ocorrida a situação estabelecida na definição legal do fato gerador, tem-se por imediatamente inaugurada a relação tributária, pouco importando se o contribuinte agiu licita ou ilicitamente” (LOPES, 2009, p. 145). Igualmente o também professor e juiz federal Leandro Paulsen comenta: “Jamais um ato ilícito estará descrito na norma como hipótese de incidência da obrigação tributária. Mas se algum fato ilícito implicar situação que, por si só, não seja ilícita e que esteja prevista como hipótese de imposição tributária, a ilicitude circunstancial não terá qualquer relevância, não viciará a relação jurídica tributária” (PAULSEN, 2010, p. 957).

Consequentemente, para a imposição tributária, pouco importa se o fato gerador em si circunstancialmente também seja enquadrado como criminoso, sempre haverá a tributação e as obrigações tributárias decorrentes (principal e acessórias). Daí porque

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tal regra alude à expressão pecunia non olet (do latim: o dinheiro não tem cheiro), alusiva a diálogo atribuído ao imperador romano Vespasiano a seu filho Tito, quando este lhe questionou acerca da tributação sobre os usuários de banheiros públicos na Roma Antiga. E tal regra também deita efeitos no Direito Penal, eis que a origem ilícita dos recursos tributados não afasta, a priori, a tipicidade das diferentes sonegações previstas no ordenamento penal. Por exemplo, a sonegação fiscal em sua modalidade mais simples – a não declaração de renda tributável: tanto o comerciante honesto quanto o bandido que aufere renda assaltando bancos, em tese, possuem igual obrigação tributária acessória de declarar suas rendas auferidas, em determinado período de tempo, com suas respectivas atividades (lícitas e ilícitas), propiciando a tributação. O Direito Tributário não os distingue, nesse ponto. Por consectário lógico, também o Direito Penal que tutela, em última ratio, o Direito Tributário não deverá traçar distinções na conduta tipificada de sonegação. Assim, responderá por sonegação, sem qualquer repercussão na tipicidade e na antijuridicidade, tanto o comerciante legal que dolosamente omite lucros quanto o assaltante que não declara suas rendas. Eventual distinção pode surgir no campo da culpabilidade, para fins de exculpação ou de individualização das penas. De tal modo, pois, preserva-se a lógica do sistema tributário e do sistema penal, permitindo que tanto o “sonegador honesto” como o “sonegador bandido” respondam pelo delito, não permitindo que esse último venha a se beneficiar com sua própria torpeza. Nesse sentido, vale destacar o quanto noticiado no Informativo 637 STF, a respeito do julgamento do HC 94240/SP, rel. Min. Dias Toffoli: “Non olet” e atividade ilícita É possível a incidência de tributação sobre valores arrecadados em virtude de atividade ilícita, consoante o art. 118 do CTN (“Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros,

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bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos”). Com base nessa orientação, a 1ª Turma conheceu parcialmente de habeas corpus e, na parte conhecida, por maioria, denegou a ordem. Na espécie, o paciente fora condenado pelo crime previsto no art. 1º, I, da Lei 8.137/1990 (“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”) e sustentava a atipicidade de sua conduta, porque inexistiria obrigação tributária derivada da contravenção penal do jogo do bicho (Decreto-Lei 6.259/44, art. 58). O Min. Dias Toffoli, relator, assinalou que a definição legal do fato gerador deveria ser interpretada com abstração da validade jurídica da atividade efetivamente praticada, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos. Ressaltou que a possibilidade de tributação da renda obtida em razão de conduta ilícita consubstanciar-se-ia no princípio do non olet. Assim, concluiu que o réu praticara sonegação fiscal, porquanto não declarara suas receitas, mesmo que resultantes de ato contravencional. O Min. Luiz Fux aludiu ao caráter sui generis da teoria geral do direito tributário. Acrescentou que seria contraditório o não-pagamento do imposto proveniente de ato ilegal, pois haveria locupletamento da própria torpeza em detrimento do interesse público da satisfação das necessidades coletivas, a qual se daria por meio da exação tributária. Vencido o Min. Marco Aurélio, que concedia a ordem por entender que recolhimento de tributo pressuporia atividade legítima. Precedente citado: HC 77530/RS (DJU de 18.9.98). HC 94240/SP, rel. Min. Dias Toffoli, 23.8.2011. (HC-94240)

E nesse sentido caminha a jurisprudência majoritária: “RECURSO ESPECIAL. PENAL. PECULATO. CONDENAÇÃO. SONEGAÇÃO FISCAL PROVENIENTE DE ATUAÇÃO ILÍCITA. TRIBUTABILIDADE. INEXISTÊNCIA DO ‘BIS IN IDEM’, BENS JURIDICOS TUTELADOS NOS TIPOS PENAIS DISTINTOS. PUNIBILIDADE. São tributáveis ‘ex vi’ do art.118, do Código Tributário Nacional, as operações ou atividades ilícitas ou imorais, posto a definição legal do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis ou terceiros, bem como da natureza do

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seu objeto ou dos seus efeitos...” (STJ, 5ª Turma, REsp 182563/RJ, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, out/1998).

Certo é, contudo, que, como quase tudo em Direito, também a amplitude que ora se sustenta de tal regra de Direito Tributário e sua repercussão no âmbito criminal não goza de unanimidade em doutrina e jurisprudência. Há autores e juízes que não a aceitam, seja por entenderem que a tributação, como ato estatal, portanto regido pelo princípio da legalidade e moralidade, sempre pressuporia uma atividade lícita, não podendo o Estado figurar, por via transversa, como uma espécie de sócio do criminoso nos proveitos do crime, através da tributação destes; seja por vislumbrarem uma suposta incompatibilidade de tal tributação (e por conseguinte da responsabilidade criminal pela sonegação) com todo o sistema de valores e instrumentos do ordenamento jurídico2. Todavia, referidos entendimentos são minoritários e não espelham a melhor aplicação da lei e da lógica que o ordenamento jurídico deve preconizar, conforme será melhor demonstrado adiante.

3 A repercussão da regra no processo penal: conexão e competência Via de consequência, considerando que é indiferente à caracterização do crime de sonegação a eventual origem criminosa dos recursos sobre os quais os tributos são sonegados, sendo influente tal circunstância apenas em sede de culpabilidade e individualização da pena, como visto anteriormente, não se vislumbra possível, em regra, a conexão (por qualquer de suas formas) entre a sonegação e o crime anterior que coincida circunstancialmente com o fato gerador. Argumenta-se, por exemplo, que o próprio Direito Penal e Processual Penal já preveem mecanismos voltados a neutralizar do criminoso o proveito do crime (sua capacidade contributiva), seja pela perda de bens e direitos, ressarcimentos, sequestros, restituições etc.

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Por óbvio, não há a conexão intersubjetiva, prevista no art. 76, I, CPP3. Também não se vislumbra imediatamente a conexão material ou teleológica, materializada no art. 76, II, CPP. Trata-se de hipótese em que, no mesmo caso, as infrações são praticadas objetivando facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas. Com efeito, tal modalidade de conexão pressupõe um vínculo volitivo e teleológico mais direto e imediato entre as infrações, e não remoto e incidental, como seria a relação entre o crime anterior e a sonegação. O crime anterior existe e assim existiria independentemente de se sonegar ou não posteriormente a renda ou o produto obtido através do delito. A sonegação, por seu turno, sobretudo quando ocorrida na modalidade puramente omissiva, não é realizada, como regra, para ocultar ou conseguir impunidade ou vantagem relativamente ao crime anterior. Normalmente a omissão está atrelada a determinados prazos legais ou regulamentares previstos nas normas tributárias, ou ainda a exigências legais de registros em livros e documentos comerciais e fiscais. A omissão, portanto, é verificável após o esgotamento do prazo, em momento posterior ao(s) crime(s) anterior(es), seja para declaração (casos de pessoas físicas e suas rendas anuais, seja para empresas e as diversas declarações periódicas), seja para a escrituração contábil (casos de empresas e respectivos gestores). Obviamente, não se pode negar que a omissão na declaração ou registro contábil acaba, na prática, por dificultar muita coisa, não só a título de fiscalização tributária, mas também da vida da pessoa ou empresa. Mas trata-se de aspecto acidental, que apenas impede a produção de mais um indício sobre a existência do crime anterior, “Art. 76. A competência será determinada pela conexão: I – se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras.”

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não tendo o condão de impedir, em absoluto, qualquer investigação ou prova mais direta daquela infração penal antiga. Assim, na hipótese, a motivação da sonegação como um meio ou instrumento para garantir a impunidade do crime anterior (coincidente com o fato gerador) é excepcional, a exigir, portanto, uma fundamentação mais clara na denúncia por parte do órgão acusador e que também esteja respaldada em elementos probatórios seguros a demonstrar este vínculo volitivo-teleológico. Por fim, sequer haveria a conexão probatória (art. 76, III, CPP), já que a prova da infração anterior, coincidente com o fato gerador, em nada influiria na prova da existência e caracterização do crime posterior de sonegação, e vice-versa, justamente em razão da já mencionada regra legal conhecida como non olet (o crime anterior apenas serviria como circunstância, a deitar efeitos, como já visto, no âmbito da culpabilidade e individualização de pena). Como já exposto em linhas acima, o crime anterior e a sonegação, especialmente na modalidade puramente omissiva, ocorrem em momentos distintos, com circunstâncias distintas de lugar. O crime tributário já pressupõe o descumprimento de normas tributárias relativas a obrigações acessórias, podendo haver ou não a exigência da supressão/redução de tributo, a depender da descrição típica. Sua apuração, portanto, exige provas relativas à vida financeira e patrimonial do acusado, sua capacidade contributiva, movimentação bancária, registros comerciais, perícia contábil etc. E em se tratando de crime tributário em que a descrição típica exige a supressão/redução do tributo, crime material portanto, há ainda que se aguardar a constituição definitiva do crédito tributário, com o encerramento na seara administrativa do processo de lançamento do tributo, consoante entendimento jurisprudencial consolidado. O crime anterior, por seu turno, pode corresponder a uma variada gama de tipos penais: extorsão mediante sequestro, peculato, corrupção passiva, roubos, estelionatos, até mesmo pagas por homicídios (clássico exemplo do “matador de aluguel”), exploração de casa de prostituição, etc., que obviamente demandam variados

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tipos de provas acerca das circunstâncias, motivações, consequências entre outros aspectos e que não guardam nenhuma correlação necessária de influência com a sonegação. A prova desta não influi nas provas daqueles. Poder-se-ia, talvez, argumentar que a prova da existência do crime anterior influenciaria na prova da sonegação, posto que, não sendo provada a existência daquele, consequentemente não haveria provas do próprio fato gerador do tributo sonegado. Todavia, tal hipótese, na prática, quase não se verifica. Isso porque ao órgão acusador, para demonstrar a materialidade do crime tributário, relativamente à prova da existência do fato gerador do tributo sonegado, basta a comprovação do lançamento definitivo do crédito tributário e respectivo processo administrativo, que goza de presunção relativa de legitimidade e veracidade quanto aos fatos ali certificados. Desnecessário à acusação, portanto, o ônus de provar o crime anterior. Basta provar o fato gerador, a capacidade contributiva dele decorrente, como consectário lógico da regra non olet. Daí porque, em uma denúncia, o órgão ministerial não se veria compelido, pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal e pela regra processual de conexão, a tentar provar o crime anterior para conseguir provar o crime tributário. Não estaria, assim, obrigado a denunciar, de uma só vez, ambos os crimes. A apuração do primeiro seguiria de forma independente, em outras vias, pelos órgãos de persecução e de jurisdição competentes (que podem coincidir ou não com aqueles competentes para o crime tributário, a depender de cada caso). Caberia, então, à defesa tentar desfazer a presunção decorrente do lançamento tributário, tentando demonstrar que, independentemente da caracterização ou não do crime anterior, não houve o fato gerador que ensejasse capacidade contributiva, não havendo a sonegação, portanto. E tal prova pode se operar tanto dentro do próprio processo penal já instaurado para apuração e julgamento do crime tributário, como em ação cível anulatória do crédito tributário, podendo a existência desta última demanda até mesmo

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ensejar a suspensão do processo criminal nos termos do art.93 do Código de Processo Penal. A regra non olet retira, pois, a utilidade da defesa do acusado em tentar provar a inexistência do crime anterior. O enfoque da defesa deve se voltar sobre a prova da inexistência do fato gerador, da ausência de capacidade contributiva. Até mesmo porque pode prevalecer o crime tributário ainda que não haja provas suficientes do crime anterior, mas haja lançamento definitivo do crédito fiscal, a revelar a materialidade do fato gerador/capacidade contributiva. Um exemplo: em um suposto contexto criminoso de peculato, com desvio de recursos públicos para terceiros particulares, pode não haver provas contundentes deste crime, mas, por outro lado, poderá haver prova irrefutável, quanto aos supostos terceiros recebedores dos recursos, de pagamentos sem origem comprovada/ declarada, com depósitos em conta-corrente sem causa que o justifique, a ensejar responsabilidade criminal por sonegação. Enfim, a regra non olet tem justamente o condão de afastar qualquer conexão probatória (e também as demais formas de conexão) entre o suposto crime anterior coincidente com o fato gerador do tributo e a sonegação desse mesmo tributo. Se a circunstância ilícita é indiferente para a incidência do tributo, assim também o será para a sonegação deste mesmo tributo. A lógica deve ser a mesma. O crime tributário, então, deverá ser processado em ação penal específica e desvinculada de eventual ação penal relativa ao crime anterior coincidente com o fato gerador. Esta última pode, às vezes, nem vir a existir, ou ainda ser processada em Justiça diversa ou em local diverso, conforme as regras constitucionais e legais de competência. A se pensar de forma diversa, e aplicando sem qualquer limite crítico o entendimento da Súmula 122 do STJ, poder-se-ia chegar a conclusões absurdas, como, por exemplo, considerar atraída à competência da Justiça Federal todos os crimes anteriores de notórios assaltantes a bancos ou de notórios traficantes de entorpecentes, pelo simples fato de não terem posteriormente declarado

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rendimentos de suas atividades (ilícitas) à Receita Federal, sonegando assim imposto de renda. Imaginemos a reunião, na Justiça Federal, de todos os processos penais de tráfico de entorpecentes e formação de quadrilha aos quais responde, por exemplo, famoso narcotraficante carioca, tão-somente por ele não ter declarado ao Fisco Federal os seus ganhos ilícitos, sonegando os tributos federais incidentes (imposto de renda, por exemplo). Trata-se da formulação de uma hipótese exagerada, é verdade. Mas tal exagero – figura de linguagem conhecida como disfemismo – serve justamente para ressaltar o que se quer demonstrar. Portanto, pode haver crime tributário de competência da Justiça Federal relativo a tributo federal cujo fato gerador coincida com crime de competência da Justiça Estadual (peculato na administração estadual, por exemplo). Pode até mesmo ocorrer que a descoberta deste crime estadual se dê justamente no bojo de alguma fiscalização tributária federal (hipóteses não raras). Assim, tão-só o fato de que o “estopim” da investigação do crime estadual tenha se dado em um contexto de fiscalização federal é insuficiente para entrelaçar os delitos como conexos e forçar a competência da Justiça Federal para ambos. O inverso também pode ocorrer. Ou seja, é possível que no bojo da apuração de um crime federal ambiental, por exemplo, relacionado com a exploração mineral clandestina, se constate também a sonegação de tributos estaduais, como o ICMS. A Justiça Federal seguirá competente apenas para o primeiro, enquanto a Justiça Estadual permanecerá com sua competência para o segundo.

4 Conclusões A regra legal conhecida doutrinariamente como non olet, prevista no art. 118 do Código Tributário Nacional, não apenas encontra aplicabilidade no âmbito do Direito Tributário. Ela repercute também no âmbito criminal e no processo penal.

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Muito embora a lei tributária não preveja como hipótese de incidência tributária algum fato ilícito, é possível, contudo, que um fato gerador de tributo decorra de circunstâncias ilícitas ou criminosas. Por conseguinte, havendo coincidência entre um crime e um fato gerador de tributo, abre-se a possibilidade também de que o agente incida em um crime tributário/sonegação relativamente a tal tributo. Tem-se, então, o crime anterior, coincidente com o fato gerador, e o crime tributário posterior. Se pela regra non olet, para a imposição tributária, pouco importa se o fato gerador em si circunstancialmente também seja enquadrado como criminoso, sempre havendo a tributação e as obrigações tributárias decorrentes (principal e acessórias), também no âmbito criminal, pouco importará, seja para a caracterização do crime tributário, seja para a instrução do processo quanto à prova da materialidade, as circunstâncias criminosas coincidentes com o fato gerador. Tais circunstâncias apenas ganham relevância no processo penal relativo ao crime tributário para fins de aferição do grau de culpabilidade e individualização da pena. De igual modo, a regra non olet rompe qualquer liame possível entre os referidos crimes (o anterior coincidente com o fato gerador e o crime tributário posterior), impedindo, via de regra, qualquer modalidade de conexão objetiva entre eles. Consequentemente, à luz da inteligência do enunciado 122 da Súmula do STJ, a Justiça Federal, em se tratando de crime de sonegação de tributo federal, apenas será competente para este crime, via de regra, não havendo que se cogitar de conexão nem de qualquer vis atractiva de competência para o crime anterior coincidente com o fato gerador.

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Referências AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. LOPES, Mauro Luís Rocha. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Ímpetus, 2009. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: RT 2005. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. PAULSEN, Leandro. Direito tributário. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

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O PAPEL DEONTOLÓGICO DO JUIZ NO NOVO CPC Alexandre Elias Calixto Juiz Federal, titular da 1ª Vara Federal de Ribeirão Preto (SP). Doutor em Direito pela PUC-SP

Resumo

Abstract

O novo Código de Processo Civil trouxe importantes novidades no tocante aos procedimentos a serem adotados nas demandas de natureza civil. Recursos foram extintos, figuras processuais foram acrescidas e modificações ocorreram em relação a alguns institutos do processo civil. Além das mudanças de ordem procedimental, o novo CPC trouxe apresentou também uma nova postura do juiz em face do processo, que o converte, sobretudo, em verdadeiro gestor do processo, em colaboração com as partes. Vários instrumentos foram criados para isso, como não se viu antes no processo civil brasileiro, possibilitando maior flexibilidade do procedimento e a intervenção pessoal do juiz

The new Civil Procedure Code has brought important changes about the procedures that must be observed in civil demands. Some appeals were eliminated, procedural figures were created and other changes occurred in some procedural institutes. Besides the procedural changes, the new code also presented a new posture of the judges, in which he will become an actual gestor of the procedure, with the consent of the parties. Various instruments were created for that, making possible most flexibility of procedure and a personal intervention of judge for a better result. Some analyses are made about those instruments. It’s a great challenge for judges, who must take ahead their

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para que o processo se torne mais eficaz e mais justo na composição da lide. São devidamente analisados alguns destes instrumentos. Um grande desafio aos juízes, que deverão cumprir com esta nobre missão, na busca da efetividade do processo e da constante afirmação do Estado do Social do Direito. Palavras-chave: Brasil – Novo Código de Processo Civil – Novidades – Juízes – Nova postura – Gestão processual – Efetividade – Deontologia judicial – Ambiente de cooperação – Flexibilização de procedimentos – Instrumentos – Desafios – Estado Social Democrático – Nobre missão.

noble mission, in order to give more effectivity to the procedure and to consolidate the State of Law. Keywords: Brazil – The new Civil Procedure Code – Judge – A new posture – Gestor of the procedure – Effectivity – Judicial Deontology – Cooperation – Flexibility of procedures – Instruments – Challenges – Social Democratic State – Consolidation – Noble mission.

1 Introdução O novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 13.105/15 e logo alterado pela Lei 13.256/16, é portador de inúmeras mudanças nas regras procedimentais a serem utilizadas nas demandas de natureza civil, com vigência a partir de 18 de março de 2016. Não poucos questionaram a necessidade de um novo código, pois entendiam que várias mudanças já tinham sido patrocinadas por alterações pontuais do código anterior. Além disso, observavam que diversas controvérsias já tinham sido resolvidas e sedimentadas pela jurisprudência dos tribunais superiores. Todavia, o exame mais acurado do novo estatuto processual, acompanhado das devidas reflexões, conduzirá à conclusão de que foi benéfica a aprovação de novo código. A par de importantes alterações estruturais, como a unificação do rito cognitivo ordinário, a eliminação dos processos cautelares autônomos e a opção de não regular a execução contra devedor insolvente, o novo CPC trouxe algumas novidades interessantes, dentre as quais podemos mencionar os procedimentos da

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desconsideração da personalidade jurídica e da intervenção do “Amicus Curiae”, ambos inseridas no capítulo das Intervenções de Terceiros. Houve também significativas alterações em alguns institutos processuais, como a eliminação do princípio da identidade física do juiz, a exclusão da possibilidade jurídica do pedido como uma das condições da ação (art. 17) e a extinção de recursos como o agravo retido e os embargos infringentes. Enfim, estas e várias outras mudanças foram introduzidas pelo novo código, quase todas sob o signo da simplificação e da efetividade da tutela jurisdicional. Todavia, não será exagero afirmar que uma das principais mudanças patrocinadas pelo novo CPC diz respeito à posição deontológica do juiz no processo civil, aqui entendida como “teoria do dever” ou o que a sociedade espera do juiz em face da nova realidade processual. Claro que as premissas básicas da atuação judicial não sofreram alterações radicais, pois os magistrados continuam submetidos, v.g., ao princípio dispositivo e à exigência de imparcialidade, de forma que seguem não tendo a capacidade de iniciar o processo e nem podem deixar de lado a isenção no julgamento da causa. Mesmo assim, há uma sensível mudança na lei processual em relação ao compromisso do juiz com a efetividade do processo, em consonância com os novos rumos do processo civil. Estes novos rumos, no dizer de Humberto Theodoro Junior1, se acentuaram nas últimas décadas, quando “o estudo do processo civil desviou nitidamente sua atenção para os resultados a serem concretamente alcançados pela prestação jurisdicional”. Efetividade é o que mais se espera da atividade judicial, com a colaboração das partes, o que torna o juiz um verdadeiro gestor do processo, em sintonia com seu dever de imparcialidade e sua autoridade para dar a palavra final do processo. 1

Curso de direito processual civil, p. 8.

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2 O juiz: distante da “boca inanimada da lei” É conhecida a frase de Montesquieu de que o juiz deve ser a boca inanimada da lei, que outrora simbolizou a exigência de imparcialidade judicial. Despiciendo frisar que jamais se mostrou factível esta postura judicial anódina, que mais se traduz em neutralidade – pois via no juiz um simples emissário da vontade intrínseca da lei. Mesmo assim, ainda existem traços desta concepção no positivismo jurídico, aqui entendido como método interpretativo que se prende ao rigor formal dos textos legais, sem qualquer atividade valorativa do juiz em face dos esquemas normativos. No direito processual, essa postura revela-se no demasiado apego às formas, levando o juiz a transbordar para o formalismo, em que pouca importância é atribuída à efetividade do processo. Ocorre que o novo CPC não apenas marca firme posição contra o formalismo – v.g., quando praticamente extermina a chamada “jurisprudência defensiva” dos tribunais -, como também proclama que o juiz não é um simples garantidor das formas, ao contrário do que prega o chamado “garantismo processual”. Concedendo-se licença a uma metáfora, o juiz não pode ver-se como um simples “maquinista” da locomotiva processual, no sentido de garantir que o processo não sairá dos trilhos até chegar ao seu final. Mais do que isso, o novo código converte o juiz em verdadeiro estratego do processo, a quem caberá a insubstituível missão de traçar a rota que melhor conduza à efetividade da tutela jurisdicional, valendo-se, sempre que possível, da colaboração das partes. A nosso ver, esta nova concepção processual do juiz é uma exigência da democracia moderna, que tem sofrido enorme crise de legitimidade quando o estado não consegue proporcionar aos cidadãos o mínimo que se espera dele.

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Em profundo estudo sobre a evolução do poder político, o festejado Francis Fukuyama2 anota que a incapacidade de muitos estados de cumprir as expectativas democráticas tem levado a uma séria crise de legitimidade destes sistemas políticos, sobretudo em razão da incapacidade de prestar os serviços básicos que o povo exige dos governos. No caso, é fato inconteste que o Poder Judiciário, no Brasil e em outros países, tem ficado muito aquém das expectativas e necessidades da sociedade, em que pesem vários esforços para reverter esta situação. A realização do Direito, dada a sua intrínseca relação com o estado, está condicionada à concepção que se tem do próprio Estado, suas funções, atribuições e limites. No dizer de Plauto Faraco de Azevedo, a justificação do estado não se encontra fora do âmbito da indagação jurídica, constituindo, na realidade, um de seus núcleos fundamentais, senão o seu ponto de partida3. Exatamente por isso, não se pode deixar de reconhecer no estado contemporâneo os elementos que lhes são distintivos e que sugerem um tratamento filosófico-jurídico condizente com a sua realidade. Acentuando a importância dos fins do Estado, Dalmo de Abreu Dallari4 alude a várias teorias que, tendo em conta certo comportamento em função dos objetivos a atingir, propõem fins expansivos, fins limitados e fins relativos do Estado. Os fins relativos, que contam com a adesão de Jellinek, Clóvis Beviláqua e Groppali, fundam-se na ideia de solidariedade e do princípio básico de que os elementos fundamentais da cultura de um povo residem nos indivíduos e na sociedade. Sintetizando sua exposição, Dallari afirma que o Estado é meio para que os indivíduos e demais formas de sociedades As origens da ordem política, p. 19. Aplicação do direito e contexto social, p. 16. 4 Elementos de teoria geral do estado, p. 61. 2 3

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possam atingir seus respectivos fins particulares, ou seja, o bem comum, entendido como o conjunto de todas as condições da vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana5. Portanto, a procura do bem comum através da atividade reguladora do Estado leva ao Estado Social, para distingui-lo do Estado Liberal, cujo princípio básico é a quase total abstenção, a não ser para garantir a liberdade, a propriedade e a segurança dos cidadãos. Esta é, também, a visão de Manuel García-Pelayo6, para quem uma das principais missões do estado é a responsabilidade da procura existencial dos cidadãos, ou seja, levar a cabo as medidas que assegurem ao homem as possibilidades de existência que não pode assegurar por si mesmo. Nestes termos, o Estado Social é quase uma imposição da sociedade tecnológica, posto que o Estado Liberal, a par do seu histórico fracasso como órgão de ordenação social, estaria totalmente desajustado das características do mundo contemporâneo, ao menos naqueles países que têm um razoável grau de industrialização e consideráveis massas urbanas. Assim, no Estado Social, o Poder Judiciário deve assumir novas feições, as quais explicam, em boa parte, a decantada crise que há tempos vem enfrentando e que retrata uma crise do próprio estado. Eugenio Raúl Zaffaroni assevera que tal crise se deve, em linhas gerais, a uma demanda de protagonismo do Poder Judiciário, que é chamado a assumir novas responsabilidades com a incorporação dos direitos sociais à agenda pública7. Mauro Cappelleti também observa a expansão do estado em todos os seus ramos, desaguando no agigantamento do papel do Poder Judiciário como necessário contrapeso no sistema checks and balances, em que se assiste à paralela expansão dos demais ramos políticos8. Op. cit., p. 87 ss. Las transformaciones del estado contemporáneo, p. 13-28. 7 Poder Judiciário: crises, acertos e desacertos, p. 23-24. 8 Juízes legisladores?, p. 19. 5 6

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Portanto, no atual estágio da civilização ocidental, é necessário que os magistrados estejam conscientes do seu novo papel no âmbito do Estado Social Democrático. E o novo CPC vem a inserir-se exatamente neste contexto, em que a efetividade deve sobrepor-se ao formalismo do processo.

3 Regras processuais que denotam a nova posição do juiz Várias são as situações em que o novo CPC convola o juiz em autêntico estrategista processual, cuja principal missão é alcançar a efetividade da tutela jurisdicional e proporcionar à sociedade o que ela espera e precisa. O novo código começa por imprimir um forte viés constitucional ao processo, dizendo que ele deverá ser ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e normas fundamentais estabelecidos na Constituição Federal (art. 1º). O que pode aparentar uma simples homenagem ao texto constitucional é, a nosso ver, uma vigorosa mensagem ao juiz e demais atores processuais no sentido de que o processo constitui um agente indispensável à concretização dos valores e normas fundamentais da Carta Maior, dentre os quais se destacam a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Este comando inicial é reforçado por outros dispositivos do novo CPC, como o art. 4º e o art. 139, II, que reconhecem o direito das partes à duração razoável do processo, repetindo, desta forma, o princípio insculpido no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal. Neste sentido vai também o art. 8º do novo código, ao dispor que o juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico, atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana, com observância dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência. A única forma de atender a todos esses comandos é o compromisso pessoal do juiz com a efetividade e justiça do processo, pois

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conceitos como proporcionalidade, razoabilidade e eficiência não se concretizam senão à vista da atuação valorativa do magistrado, exigindo dele uma postura nitidamente axiológica. Nada estará mais distante disso do que o juiz formalista e indiferente à eficácia jurisdicional, a desvelar um ator descompromissado e insensível à importância da sua missão. O novo CPC espera do magistrado a postura de quem sabe que é muito mais do que a boca inanimada da lei; é verdadeiro realizador da ordem jurídica, ainda que seja importante colaboração dos demais sujeitos processuais, nos expressos termos do seu art. 6º. Fruto disso é que deverá, sempre que possível, estimular a conciliação das partes envolvidas (art. 2º, § 3º; art. 139, V, do CPC). Ademais, são várias as situações em que o juiz recebeu do CPC os poderes necessários para fazer do processo um instrumento mais eficaz. Um bom exemplo disso é que, de ofício, ele poderá considerar ineficaz a cláusula de eleição do foro quando ela se mostrar abusiva, mediante a devida fundamentação (art. 63, § 3º). Poderá também resolver pelo parcelamento das despesas processuais que não forem alcançadas pela concessão da gratuidade processual, quando houver a concessão apenas parcial do benefício (art. 98, § 6º). Ao juiz, ainda, caberá resolver pela admissão ou não da figura do “Amicus Curiae” no processo, em decisão irrecorrível (art. 138, caput). Poderá também dilatar prazos e alterar a ordem da produção das provas, adequando-os às necessidades do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito (art. 139, VI). Outro poder conferido ao juiz é o de autorizar modificações no procedimento a fim de ajustá-lo às peculiaridades da causa, a pedido das partes, e até mesmo fixar um calendário para a prática dos atos processuais (arts. 190 e 191). Sempre que necessário, poderá também promover à adequação da tutela de urgência requerida pelo autor (art. 297).

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Em matéria probatória, poderá distribuir o ônus da prova da forma que entender mais equilibrada (art. 373, § 1º), alterar a ordem de inquirição de testemunhas (art. 456, parágrafo único) e determinar a produção de prova técnica simplificada, ao invés da perícia (art. 464, § 2º). Concede-se ao juiz até mesmo o poder de reduzir prazos peremptórios, se as partes estiverem de acordo – e segundo o entendimento de alguns, poderá também ampliar estes prazos, sem a necessidade daquela concordância (art. 222, § 1º). No que diz respeito ao processo de execução, além de decidir sobre a concessão de efeito suspensivo à impugnação ao cumprimento de sentença (art. 525, § 6º) e aos embargos à execução (art. 919, § 1º), poderá também alterar a ordem legal dos bens penhoráveis, com exceção do dinheiro (art. 835, § 1º). Tantos poderes instrumentais não se comprazem com a figura insossa e distante do juiz formalista, que se posiciona como um simples coadjuvante das normas processuais. Mais do que nunca, o novo CPC tornou o juiz um autêntico timoneiro do processo, que deve conduzir a sua nau pelos caminhos que se mostrarem menos revoltos e mais seguros. Isso é impossível de conseguir sem o envolvimento pessoal e a disposição do juiz para fazer do processo um instrumento de justiça efetiva e célere.

4 Conclusões Verifica-se que o novo CPC buscou prestigiar a atuação jurisdicional, na medida do possível, municiando-a com diversos instrumentos que possam trazer mais efetividade ao processo. Isso não significa converter o juiz em personagem extremista do “ativismo judicial”, que pode fazer o que bem quiser do processo. Como anota Humberto Theodoro Junior9, não se deve confundir ativismo judicial com gestão do processo pelo juiz. O que se 9

Curso de direito processual civil, p. 432.

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quer do juiz não é uma postura autoritária, mas o comando firme do processo; imparcial, mas não indiferente à justiça do provimento a ser produzido, em clima de efetiva cooperação entre todos os sujeitos da relação processual. É o que Fredie Didier Jr..10 classifica como Neoprocessualismo, em que, além da preocupação com a efetividade do processo, que caracterizou o Instrumentalismo, há também o compromisso ético de concretizar os valores constitucionais e a pauta de direitos fundamentais, com especial destaque para a afirmação do princípio da cooperação. Percebe-se, neste cenário, que o novo CPC vem a constituir um grande desafio ao juiz contemporâneo, que deve estar em sintonia com o que se espera dele no Estado Social Democrático. Convertido em personagem ainda mais proeminente do processo, deve o juiz cumprir o seu papel.

Referências CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. Título original: Giudici Legislatori? DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. v. 1. FUKUYAMA, Francis. As origens da ordem política: dos tempos pré-humanos até a Revolução Francesa. Tradução de Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. 10

Curso de direito processual civil, p. 46 e 47.

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GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del estado contemporáneo. 2. ed. Madri: Alianza Editorial, 1996. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 57 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016. v. I. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. Tradução de Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

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BREVES NOTAS SOBRE A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL EFETIVA E OS CAMINHOS APONTADOS PELO NOVO CPC: a ampliação do acesso à justiça em face dos métodos autocompositivos de solução dos conflitos Sylvia Marlene de Castro Figueiredo Juíza Federal, Doutoranda em Direito pela PUC-SP, Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e Especialista em Direito Público pela PUC-SP

Resumo

Abstract

No presente estudo, focaliza-se a ampliação do acesso à Justiça através utilização do Poder Judiciário para a aplicação de métodos autocompositivos na solução dos conflitos. O objeto primordial deste trabalho visa examinar a possibilidade de utilização do Poder Judiciário para o aumento do acesso à Justiça, mediante a implantação de métodos pacíficos de solução de conflitos, dentre eles a conciliação e a mediação judicial. Aborda-se a conciliação judicial como um método ampliativo do acesso à jurisdição, pelo efetivo exercício da cidadania, no qual o jurisdicionado adquire conhecimento e exercita

This study focuses on expanding access to justice through the use of the judiciary for applying autocompositivos methods in solving conflicts. The main object of this paper aims to examine the possibility of using the judiciary to increase access to justice through the implementation of peaceful methods of conflict resolution, including conciliation and judicial mediation. Approaches to judicial conciliation as a method ampliative access to jurisdiction, the effective exercise of citizenship, in which the claimants acquires knowledge and exercise their constitutional rights. It is shown that,

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seus direitos constitucionais. Demonstra-se que, através da conciliação, a prestação jurisdicional é efetiva e atende ao princípio da razoável duração do processo, instituído pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004. Para tanto, são examinados os princípios, que norteiam a conciliação e a mediação judicial, como os princípios da neutralidade e imparcialidade, da aptidão técnica, da autonomia privada, da decisão informada, da confidencialidade, da normalização do conflito e do empoderamento. Aborda-se, também, a qualidade dos métodos de resolução de conflitos, com vistas a ser preservada a efetividade na prestação jurisdicional, inclusive. O tema tratado é de grande importância, por representar amplo acesso à jurisdição célere e eficaz, devendo ser utilizada a metodologia que observe os princípios basilares da conciliação, visando gerir um programa conciliatório de qualidade, o qual satisfaça plenamente as partes envolvidas no processo de conciliação.

by conciliation, adjudication is effective and meets the principle of reasonable duration of the procedure, established by Constitutional Amendment No. 45 of December 08, 2004. Therefore, the principles are examined, guiding conciliation and judicial mediation, the principles of neutrality and impartiality, technical aptitude, private autonomy, informed decision, confidentiality, normalization of the conflict and empowerment. Addresses is also the quality of the methods of conflict resolution, in order to be preserved effectiveness in adjudication, inclusive. The treaty issue is of great importance, as it represents broad access to fast and effective jurisdiction and shall be used the methodology to observe the basic principles of conciliation, seeking to manage a quality conciliatory program, which fully meets the parties involved in the conciliation process. Keywords: Autocompositivos methods – Conflicts – Empowerment

Palavras-chave: Métodos autocompositivos – Conflitos – Empoderamento

1 Introdução O objeto primordial deste trabalho visa examinar a possibilidade de utilização do Poder Judiciário para a ampliação do acesso à Justiça, mediante a implantação de métodos pacíficos de solução de conflitos, dentre eles a conciliação e a mediação judicial. A Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou o inciso LXXVIII, ao artigo 5º da Constituição Federal, tratando do princípio da razoável duração do processo e dos meios para a garantia da celeridade processual. Inicialmente, cumpre registrar que, na Justiça Federal, a previsão legal de desapropriação, mediante acordo, existe, ao menos,

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desde o Decreto-Lei nº 3.365/41, no caso de desapropriação. Todavia, a prática conciliatória, rotineira e organizada, remonta aos idos dos anos 2000, principalmente nos casos de Sistema Financeiro de Habitação (SFH), em que se implantou o projeto de conciliação com o objetivo de celebrar acordos relativos ao SFH em processos que tivesse a CEF como parte. Ocorre que, com o crescimento do movimento conciliatório, surgiu a necessidade de capacitar Juízes e conciliadores. Nesta seara, em 2010, o Conselho Nacional de Justiça deu um importante passo no processo de mediação e da conciliação no Poder Judiciário, ao editar a Resolução nº 125/10, que instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, objetivando assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 constitui um divisor de águas em matéria de solução de conflitos. Em seu Capítulo Primeiro, do Título Único, Livro I, da Parte Geral, dedicado às Normas Fundamentais do Processo Civil, assevera ser permitida a arbitragem, na forma da lei; afirma caber ao Estado a promoção da solução consensual dos conflitos; e determina que os operadores do direito deverão estimular a solução em tela (artigo 3º, respectivamente §§ 1º, 2º e 3º1). Dessa maneira, recepciona as Leis 9.307/1996, 13.129/2015 e 13.140/2015. A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que versa sobre o Novo Código de Processo Civil, demonstra ter alterado a percepção do processo judicial, ao destacar, em seu artigo 3º, § 3º, do Novo Código de Processo Civil, que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, art. 3o: “Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1o É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2o O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.

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juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.” Ademais, o artigo 6º2, do citado diploma legal, prevê que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.” A conciliação e a medição judicial são regidas pelos artigos 165 a 175 do CPC 2015. O artigo 165, §§ 2º e 3º3, traça as diferenças entre conciliação e mediação. Anote-se, outrossim, que a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, chamada de “Lei da Mediação”, dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Neste diapasão, tem-se o advento da Resolução CJF-RES 2016/00398, de 4 de maio de 2016, que institui, no âmbito da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, a Política Judiciária de solução consensual dos conflitos de interesses, com vistas à efetiva resolução e pacificação social. Destaque-se que, de acordo com “Relatório dos 100 Maiores Litigantes”, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2012, o setor público federal ocupa o primeiro lugar no ranking que envolve não apenas a Justiça Federal, mas também a Justiça Estadual Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, art. 6o: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. 3 Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, art. 165: “Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. § 1o A composição e a organização dos centros serão definidas pelo respectivo tribunal, observadas as normas do Conselho Nacional de Justiça. § 2o O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem. § 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos”. 2

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e do Trabalho. O maior litigante individual na consolidação dos três ramos do judiciário (Justiça Federal, Justiça Estadual e do Trabalho) é o INSS, com 4,38% do total dos processos distribuídos entre 01/11/2011 a 31/12/20114, do que se extrai a importância e a necessidade da ampliação dos métodos de autocomposição dos conflitos.

2 A conciliação e os princípios da conciliação e mediação judicial A conciliação pode ser definida como um processo autocompositivo informal, pacífico e cooperativo de solução de conflitos, que visa um acordo rápido, voluntário e negocial, porém, estruturado, no qual um terceiro, neutro ao conflito, ou mais facilitadores ajudam as partes a encontrar uma solução aceitável e justa para todos5. Vale destacar que, a negociação é assistida e catalisada por um terceiro, mas as decisões cabem aos envolvidos, de modo que o conciliador atua como facilitador do acordo, sendo certo que as partes podem com ele concordar ou discordar, optando, assim, pela via judicial de solução de conflitos. O artigo 1666, da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, explicita os princípios que devem nortear a atividade dos envolvidos na prática dos métodos de autocomposição judicial. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/59351-orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica>. Acesso em: 17 maio 2016. 5 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). Manual de Mediação Judicial, 5. ed., 2015, Brasília: CNJ, p. 21. 6 Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, art. 166: “A conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada. § 1o A confidencialidade estende-se a todas as informações produzidas no curso do procedimento, cujo teor não poderá ser utilizado para fim diverso daquele previsto por expressa deliberação das partes. § 2o Em razão do dever de sigilo, inerente às suas funções, o conciliador e o mediador, assim como os membros de suas equipes, não poderão divulgar ou depor acerca de fatos ou elementos oriundos da conciliação ou da mediação. § 3o Admite-se a aplicação de técnicas negociais, com o objetivo de proporcionar ambiente favorável à autocomposição. § 4o A mediação e a conciliação serão regidas conforme a livre autonomia dos interessados, inclusive no que diz respeito à definição das regras procedimentais”. 4

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Pensamos, outrossim, que os seguintes princípios merecem destaque:

2.1 Princípio da neutralidade e imparcialidade Segundo esse princípio, o mediador deve agir com neutralidade e respeito, não podendo haver valoração por parte do mediador. Ora, para as partes envolvidas, o mérito é de extrema importância, o que na valoração do mediador pode não ocorrer. Daí porque o mediador deve agir com neutralidade e respeito, independente do tipo de questão apresentada e por quem foi apresentada, preservando-se, assim, o procedimento de mediação. Além disso, na prática, o mediador encontra-se acima das partes e de forma eqüidistante, isso significa dizer que ele irá ouvir as duas partes de forma igual e não irá representar ou aconselhar nenhuma delas. O conciliador é imparcial, porque não está do lado de nenhuma das partes e não pode ter interesse em nenhuma das questões ali discutidas. Deve-se ressaltar que a imparcialidade do mediador deve ser sentida pelas partes, de modo que permaneçam confiantes na autocomposição proposta.

2.2 Princípio da confidencialidade De acordo com esse princípio, o mediador e o conciliador têm o dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão conciliatória, salvo autorização contrária das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo ser testemunha do caso, nem atuar como advogado dos envolvidos, em nenhuma hipótese.7 Vale destacar, ainda, que as comunicações realizadas na autocomposição não poderão ser ventiladas fora desse processo, nem poderão ser apresentadas como prova em eventual julgamento do caso na esfera litigiosa, nem em outros processos judiciais. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). Manual de Mediação Judicial, 5. ed., 2015, Brasília: CNJ, p. 246.

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Acreditamos que a eficiência da solução consensual dos conflitos está diretamente ligada à confiança que as partes depositam no mediador e à segurança de que alguns pontos, eventualmente, debatidos naquela esfera, não poderão ser utilizados em esfera judicial.

2.3 Princípio da consciência relativa do processo As partes devem compreender as consequências de sua participação no processo autocompositivo, bem como que têm a liberdade de encerrar a mediação a qualquer momento. Nesse contexto, as partes devem ser estimuladas a tratarem o momento da conciliação como uma efetiva oportunidade de se comunicarem de forma franca e direta, estando este princípio adstrito ao princípio da confidencialidade, já que as partes devem ser alertadas acerca do funcionamento do processo de autocomposição e do sigilo que deve permear a discussão travada no momento da conciliação.

2.4 Princípio da decisão informada As partes têm o direito de receber informações quantitativas e qualitativas dos acordos que estarão sendo efetuados, ou seja, devem ser devidamente informadas das consequências da solução escolhida para o conflito, para que não sejam surpreendidas por algo desconhecido. O Princípio da Decisão Informada constitui condição de legitimidade para a autocomposição.8

2.5 Princípio do consensualismo processual As partes têm sua autonomia preservada, cabendo-lhes decidir seus conflitos, sem interferência do Estado. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). Manual de Mediação Judicial, 5. ed., 2015, Brasília: CNJ, p. 246.

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Destaque-se que, a despeito de alguns ordenamentos jurídicos estabelecerem a obrigatoriedade da autocomposição, a maior parte da doutrina especializada entende que a participação voluntária mostra-se necessária, em especial em Países que ainda não desenvolveram adequadamente uma cultura autocompositiva.

2.6 Princípio da aptidão técnica O conciliador e o mediador devem promover a conciliação, valendo-se de aptidão técnica, de modo que as partes se sintam seguras e confiantes na condução dos trabalhos conciliatórios. Assim, o mediador, ou o conciliador, devem estar, adequadamente, capacitados para atuar em cada caso, com os necessários fundamentos teóricos e práticos definidos pelas instituições públicas ou privadas responsáveis pela administração do procedimento.

2.7 Princípio pax est querenda, ou princípio da normalização do conflito o conciliador deve promover a tranquilidade das partes, pois, se a desavença é um produto natural da sociedade, da mesma forma a solução destes embates constitui um produto natural da sociedade. Cabe ao conciliador tranquilizar os componentes integrantes da lide, uma vez que a resolução do conflito interessa a todos.

2.8 Princípio do empoderamento O princípio do empoderamento possui um caráter pedagógico de ensinar os envolvidos na lide, a serem cidadãos pacificadores de litígios futuros, caso estejam envolvidos, por meio da experiência vivenciada. É dever do mediador facilitar a tomada de consciência das partes, a fim de que eles estejam mais habilitados a melhor

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resolverem seus conflitos presentes e futuros, em função da experiência de justiça vivenciada na conciliação.

2.9 Princípio da validação É necessário validar as vontades das partes, na conciliação, sem obscuridade, para que as lides não voltem a acontecer de maneiras diferentes. Por este princípio o acordo deve atender os requisitos da certeza, liquidez e exigibilidade. É dever do mediador estimular os interessados a perceberem-se, reciprocamente, como seres humanos merecedores de atenção e respeito, independente das suas diferenças.

2.10 Outros valores a serem observados na conciliação judicial Além dos princípios acima indicados, dentre outros princípios existentes, devem ser observados outros valores, quais sejam: • 2.10.1. Respeito; • 2.10.2. Reconhecimento da diversidade, possibilitando a consistência das diferenças culturais, sociais e raciais. • 2.10.3. Ética: Conduta pautada pela dignidade, honestidade e respeito à dignidade das pessoas. • 2.10.4. Compromisso: Responsabilidade e comprometimento contínuo com a promoção da paz social. • 2.10.5. Responsabilidade Social: Benefício às comunidades, oferecendo acesso à solução de conflitos com o amparo do Poder Judiciário. Feito o exame dos principais princípios que permeiam a conciliação judicial, urge examinar a qualidade nos processos de conciliação, que representam maior acesso à Justiça e que, por consequência, a tornam mais eficaz, em face da satisfatividade do cidadão com a solução compositiva adotada.

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3 Qualidade: conceito e aplicação na conciliação André Gomma de Azevedo e Roberto Portugal Bacellar9 assinalam que a qualidade de serviços autocompositivos se justifica pelo fato de se encontrar na satisfação do jurisdicionado uma das formas de aumentar o acesso à Justiça, porque se estabeleceu como premissa que o nível de satisfação com a experiência de resolução de conflitos no Poder Judiciário constitui constante indicador de acesso à Justiça. O próprio conceito de qualidade na prestação de serviços tem como indicador constante a satisfação do jurisdicionado, pois esta qualidade se define em função da satisfação do usuário. Assim, a qualidade de serviços de mediação e conciliação se justifica pelo fato de configurar as expectativas dele quanto à sua forma de avaliação tanto pelo supervisor como pelo usuário. Nesse contexto, na formação de mediadores e conciliadores, as premissas básicas se reportam a aspectos relacionados à Ciência da Administração e ao tema de gestão de qualidade.10 A gestão de qualidade pode ser utilizada como modelo gerencial para a obtenção de melhores resultados na mediação: a preocupação com a qualidade tem se movido na direção dos serviços jurídicos, o que significa (1) padronização de serviços jurídicos, (2) garantia de qualidade desses serviços, (3) redução do número de conflitos dentro de relações comerciais por departamentos jurídicos em empresas (como, p. ex., Motorola e General Electric – que entendem o litígio como consequência de uma falha de comunicação em relações de negócios: por isso as empresas procuram localizar onde tem havido disputas para descobrir o que vem causando disputas e, então, corrigir tal falha) e (4) busca e uso de novos mecanismos PELUSO, Antonio Cezar; RICHA. Morgana de Almedia (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. AZEVEDO, André Gomma; BACELAR, Roberto Portugal. A formação em processos autocompositivos. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 274. 10 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org). Manual de Mediação Judicial, 5. ed., 2015, Brasília: CNJ, p. 100. 9

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como Métodos Apropriados de Resolução de Disputas (MRADs) tais como conciliação e mediação com o intuito de reduzir custos com litígios e preservar relações comerciais. Nesse contexto, há conceitos básicos e questões em gestão de qualidade direcionadas a mediações e conciliações realizadas no Poder Judiciário. Para tanto, devem ser objeto de análise: a definição de qualidade em contexto de mediação realizadas no Poder Judiciário e o estabelecimento de um programa de gestão de qualidade e exemplos de ferramentas para melhoria contínua de qualidade.11

3.1 Qualidade: sua conceituação e a qualidade em mediação 3.1.1 Qualidade: sua conceituação André Gomma de Azevedo e Roberto Portugal Bacellar assinalam que “a maioria das definições de qualidade aborda dois significados básicos: (i) Qualidade consiste em características do produto (ou serviço) que atendam aos anseios dos usuários e, portanto, proporcionem satisfação; e (ii) ausência de deficiências.”12 Quase toda a doutrina sobre gestão de qualidade sustenta que a qualidade é primariamente determinada pelos usuários.

3.1.2 A qualidade em mediação Referem os mesmo autores que “(...), a qualidade de uma mediação é baseada na perspectiva das partes em relação ao próprio processo de resolução de disputas e das características de uma autocomposição.”13 11 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. 5. ed. Brasília: CNJ, 2015, p. 100. 12 PELUSO, Antonio Cezar; RICHA. Morgana de Almedia (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. AZEVEDO, André Gomma; BACELAR, Roberto Portugal. A formação em processos autocompositivos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 275. 13 PELUSO, Antonio Cezar; RICHA. Morgana de Almedia (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. AZEVEDO, André

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Citados autores anotam que há quatro linhas de qualidade que devem ser atendidas, no processo de conciliação, a saber: “1. qualidade técnica: as habilidades e técnicas autocompositivas necessárias para a satisfação do usuário; 2. qualidade ambiental: a disposição de espaço físico apropriado para se conduzir um processo autocompositivo; 3. qualidade social: o tratamento e o relacionamento existentes entre todos os envolvidos no atendimento ao jurisdicionado; 4. qualidade ética: a adoção de preceitos mínimos de conduta que se esperam dos autocompositores e demais pessoas envolvidas no atendimento ao usuário.”14

Citados autores destacam que: “Nesse contexto, a definição de qualidade em processos consensuais consiste no conjunto de características necessárias para o processo autocompositivo que irá, dentro de condições éticas, atender e possivelmente até exceder as expectativas e necessidade do usuário.”15

Feita a conceituação supra, pensamos que são aspectos qualitativos na mediação: (1) a satisfação do usuário; (2) a plena informação das partes e (3) a conduta ética no processo.16 (1) A satisfação do usuário: Pode-se, portanto, considerar “bem-sucedida” a mediação quando o “sucesso” está diretamente relacionado à satisfação da parte. Questões frequentemente discutidas na literatura sobre autocomposição, tais como se facilitadores deveriam analisar as forças e fraquezas das partes e revelar-lhes uma opinião de um justo ou Gomma; BACELAR, Roberto Portugal. A formação em processos autocompositivos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 275. 14 PELUSO, Antonio Cezar; RICHA. Morgana de Almedia (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. AZEVEDO, André Gomma; BACELAR, Roberto Portugal. A formação em processos autocompositivos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 276. 15 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. 5. ed. Brasília: CNJ, 2015, p. 100. 16 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. 5. ed. Brasília: CNJ, 2015, p. 101.

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possível resultado em um tribunal ou procedimento de arbitragem, ou se deveriam apenas ajudar (facilitar) as partes a entender opções, interesses ocultos, e ajudá-las a desenvolver e escolher soluções próprias, deveriam ser decididas por usuários após avaliações continuadas do programa de mediação judicial com quesitos sobre satisfação com a conduta do mediador. Nesse corolário, o papel do autocompositor deveria depender da satisfação do usuário. Os autocompositores deveriam se perguntar como poderiam se utilizar de capacitação técnica, mecanismos de superação de barreiras de comunicação, reconhecimento e validação de sentimentos e outras técnicas e características do processo autocompositivo para satisfazer seus usuários em uma mediação. Apesar de ser a satisfação do usuário fundamental na mediação, também constitui seu aspecto qualitativo: a plena informação das partes e a conduta ética no processo também são essenciais. (2) A plena informação das partes Por plena informação das partes entende-se que a parte só poderá ser considerada como “satisfeita” quando tiver tomado decisões no processo autocompositivo, após ter sido plenamente informada do contexto fático em que está envolvida e de seus direitos (3) a conduta ética no processo. A conduta ética constitui aspecto qualitativo no processo de conciliação. Exemplo: imaginemos uma mediação em que uma das partes faz uma oferta ilegal ou antiética, como fraude de seguro ou fixação de preço incompatível com a livre concorrência. Embora percebendo que a oferta foi ilegal ou antiética, a outra parte aceita, e a mediação acaba com um acordo. Quando perguntadas sobre o nível com a autocomposição, ambas as partes respondem por “satisfeitas” com o processo. Neste caso, embora estejam informadas sobre todos os aspectos da mediação e se sintam “satisfeitas” com o processo, não há “qualidade” devido à falta de conduta ética pelas partes e pelo

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mediador, que deveria interromper o processo assim que tal conduta fosse identificada.

3.2 As metas de um programa de gestão de qualidade: deve-se buscar desenvolver uma estrutura, ou um conjunto de conceitos e ferramentas por meio das quais os métodos consensuais de resolução de disputas serão continuamente melhorados17 Como consequência, as partes (usuários) tenderão a achar o processo cada vez mais satisfatório. Portanto, André Gomma de Azevedo e Roberto Portugal Bacellar recomendam que nos treinamentos de técnicas autocompositivas se adotem formulários para acompanhamento das técnicas e habilidades e citam o exemplo desenvolvidos pelas Professoras Sally Ganong Pope e Lela Porter para o Centro de Mediação do Brookliynm em 1992, e revisado pela Prof. Carol B. Liebman, em 1997, que pode ser utilizado tanto no treinamento como na aferição de mediações reais por mediadores recém-treinados.18 Nessa seara, pensamos que a qualidade nos métodos autocompositivos de solução de conflitos, os quais precedem a judicialização das controvérsias, devem ser pautados pela satisfação do usuário, pela plena informação das partes – tudo regado pela ética. Os métodos autocompositivos de solução de conflitos possibilitam o efetivo acesso à cidadania, na medida em que o cidadão adquire conhecimento de seus direitos e cede parte deste direito para a solução pacífica dos conflitos. A autocomposição dos conflitos com qualidade representa um avanço social na pacificação dos conflitos, já que há a satisfação

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. 5. ed. Brasília: CNJ, 2015, p. 101. 18 PELUSO, Antonio Cezar; RICHA. Morgana de Almedia (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. AZEVEDO, André Gomma; BACELAR, Roberto Portugal. A formação em processos autocompositivos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 277-280. 17

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das partes e o respeito à ética, além de se observar a celeridade e efetividade, observando-se o princípio da razoável duração do processo, inclusive.

4 Conclusões Acreditamos que os métodos autocompostivos na solução dos conflitos são essenciais para o aumento do acesso à Justiça e para a efetiva prestação jurisdicional. Com efeito, a solução pacífica dos conflitos representa uma prestação jurisdicional efetiva, na medida em que o cidadão, através dos princípios do empoderamento, da decisão informada e do consensualismo processual, dentre outros princípios, torna-se parte com voz ativa para a solução da controvérsia. Esse empoderamento da parte é representado pelo exercício efetivo da cidadania, uma vez que o cidadão adquire conhecimento de seu direito, cedendo parte dele para a autocomposição. Neste passo, revela-se necessário o consciente exercício da cidadania, “mediante a exigência, por via de articulação política e de medidas judiciais, da realização dos valores objetivos e dos direitos subjetivos constitucionais.”19 Pensamos que o movimento conciliatório é muito positivo, já que os conflitos judiciais são resolvidos de forma célere e satisfatória para o jurisdicionado, o que acarreta, por consequência, a efetividade na prestação jurisdicional. Tanto o jurisdicionado como a parte contrária, que, na Justiça Federal, são os entes públicos, devem ceder uma parte de seu direito e, com isso, acaba-se gerando um empoderamento para a parte, porque ela passa a ter voz ativa nesse processo de solução consensual dos litígios, observando-se, neste tópico, a tríade da qualidade, consistente na satisfação do usuário, plena informação das partes e ética, que compõem a qualidade na conciliação. 19 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 256.

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Cremos, por fim, que a conciliação constitui um avanço social por se tratar de uma forma de pacificação de conflitos, que gera cidadania, amplo acesso à Justiça e efetividade na prestação jurisdicional, dada a sua celeridade, efetividade e satisfatividade dos envolvidos, remanescendo ao encargo do Poder Judiciário tão-somente a solução de controvérsias que não forem passíveis de autocomposição e que representem lides a serem judicialmente resolvidas.

Referências BACELLAR, Roberto Portugal. Técnicas de mediação para magistrados. Rio de Janeiro: Forense, 2011. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de mediação judicial. 5. ed. Brasília: CNJ, 2015. PELUSO, Antonio Cezar; RICHA. Morgana de Almeida (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. GRINOVER, Ada Pellegrini. Conciliação e mediação judiciais no projeto de novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 171-179. _______; RICHA, Morgana de Almeida (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. BACELLAR, Roberto Portugal. Técnicas de mediação para magistrados. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 181-197. _______; RICHA, Morgana de Almeida (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional – CNJ. GABBAY, Daniela Monteiro. Negociação. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 211-225.

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LOS DERECHOS HUMANOS DE LOS REFUGIADOS: ¿por qué respetarlos? Tarcísio Corrêa Monte Juiz Federal Titular. Mestre em Direito Constitucional na Universidad de Sevilla na Espanha

Resumo

Abstract

O objetivo deste trabalho é enfocar como poderia ser exigido da Comunidade Internacional obediëncia âs normas sobre acolhimento de refugiados. No contexto do Pós Segund Guerra, depois que o mundo havia visto as atrocidades causadas pelo nazismo, as Nações Unidas promulgaram o documento de maior importância para a história dos Direitos Humanos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948, que consagra a concepção de que a democracia é o único meio político capaz de assegurar a dignidade humana e os direitos humanos. Dispositivos de monitoramento para o cumprimento das obrigações ante outros países e da comunidade

The aim of this work is proposing how it could be required from the International Community the obedience of regulations about hosting and protecting refugees. Following World War II, right after the World had seen the atrocities caused by Nazism, the United Nations promulgated the document with greatest importance for the History of Human Rights: the Universal Declaration of Human Rights on December 10, 1948, which guarantees the conception that democracy is the only political means capable of ensuring human dignity and human rights. Monitoring devices for compliance with obligations for other countries and the international community

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internacional são concebidos. As origens do sistema internacional de proteção dos refugiados estão no período após a Primeira Guerra Mundial, quando se deu a conjuntura de deslocamento internacional de milhões de pessoas atingidas na Europa. Neste contexto, como um quadro histórico de importância decisiva para os direitos dos refugiados e até mesmo para os Direitos Humanos, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados surge então - ACNUR em 1950, com a missão de ajudar milhões de apátridas no globo. Nos últimos 60 anos, o ACNUR desenvolveu os conceitos da Convenção de 1951, desempenhando sua tarefa de órgão internacional humanitário. Este trabalho visa a traçar um perfil histório da evolução dos Direitos dos Refugiados assim como tratar da importância de sua proteção. Palavras-chave: Direitos Humanos – Refugiados - Efetividade.

were then conceived. The origins of the international system of refugees protection are in the period after the First World War, when the conjuncture of international displacement of millions of people struck countries. In this context, as a historical frame of decisive importance for the Rights of Refugees and even for Human Rights, the United Nations High Commissioner for Refugees arises then - UNHCR in 1950, with the mission to help millions of stateless and uprooted people on the globe. Over the past 60 years, UNHCR has developed the concepts of the 1951 Convention, developing their task as an international humanitarian organ. This article intends to analyze the evolution of Refugees rights and show the importance of their protection. Keywords: Human Rights – Refugees Effectivity.

1 Desarrollo de los Derechos Humanos a lo largo de la Historia 1.1 Antigüedad Este trabajo tiene como objetivo plantear un debate sobre la protección de los Derechos Humanos de los Refugiados en el contexto actual ante el argumento de soberanía de los Estados europeos. Para empezar se hará una verificación del desarrollo de los Derechos Humanos desde su origen hasta el presente. En este ámbito, se entiende que la Edad Antigua es el periodo que va desde el momento desde la invención de la escritura, alrededor del año 4000 a.C. en Mesopotamia, hasta la caída del Imperio Romano de Occidente en el año 476 d.C, en que hubo una forma rudimentaria de Derechos Humanos.

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Se sabe pues que las normas que reglaban la conducta humana en los primeros siglos tenían una fuerte base religiosa, sobre todo la idea de respeto a los dioses. Según esta concepción,14 normas como el Código de Hammurabi1, la Torá y el Código de Manu fueron creados. Solo después poco a poco el derecho pasó a secularizarse, como en la Ley de las Doce Tablas en Roma. Los primeros escritos normativos sobre el comportamiento humano fueron producidos en la Mesopotamia antigua del pueblo sumerio. Así, fueron elaborados los Códigos de Urukagina, UrNammu, Lipit-Ishtar y de Hammurabi. Con el Código de Urukagina (2350 a.C.), la idea central era proteger al más débil ante el más fuerte, garantizándose la prohibición de las extorsiones, la disminución de impuestos, el perdón para los presos y la protección de los derechos de los ciegos, viudas, huérfanos e indigentes. El Código de Ur-Nammu (2000 a.C.) tuvo el mérito de cambiar la pena del Talión (ojo por ojo, diente por diente) por penas pecuniarias. En cuanto al Código de Lipit-Ishtar (1870 a.C.), éste tenía como objetivo garantizar el bienestar de los pueblos de las ciudades, según las determinaciones dadas por los dioses. Finalmente, el Código de Hammurabi (1700 a.C.), que estaba basado sobre todo en la Ley de Talión (ojo por ojo, diente por diente). Este Código tenía por objetivo proteger la primacía de la ley de los gobernantes, la familia, la dignidad, el honor, la propiedad y la vida. Incluía entre BERNAL GÓMEZ, Beatriz. Historia del derecho. México. Nostra Ediciones, 2010. “Ahora bien, el texto legislativo más destacado y completo del mundo mesopotámico es el famoso Código de Hamurabi, descubierto en Susa (1901-1902) por el arqueólogo Mecqenem y que actualmente se encuentra en el museo del Louvre en París; código que, según las últimas investigaciones fue promulgado en 1753, a.C. Este cuerpo jurídico, que más que un código es una recopilación de leyes y costumbres anteriores, se atribuye a Hammurabi, sexto rey de la primera dinastía babilónica, quien logró expandir su supremacía sobre varios pueblos vecinos, fundando un sólido imperio que perduró hasta la época helenística (500 a.C.), así como establecer un verdadero Estado laico en el cual el rey asumió todos los poderes (Legislativo, Ejecutivo y Judicial) y donde prevaleció el poder temporal sobre el religioso.” Disponible en: <http://0-app.vlex.com.fama.us.es/#/vid/283130975> y <http://vlex.com/source/ historia-derecho-5503>. Acceso en: 11/03/2016.

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sus artículos la15 posibilidad de aplicación de penas tales como corte de partes del cuerpo o de la lengua, empalamiento o ahogamiento. En lo que se refiere a la influencia judaica, se constata la gran importancia de la Torá (1200 a.C), que es obra de Moisés y está presente en los primeros libros de la Biblia, siendo un conjunto de reglas religiosas, sociales y morales, cuyo fundamento son los diez mandamientos. La idea central entonces es que hay una nueva visión sobre el ser humano, pues Dios creó el hombre a su imagen y semejanza. Los diez mandamientos, de esta forma, se convierten en un fuerte y original código ético y de conducta social, con un claro carácter humanista-religioso. Cabe mencionar también el Código de Manu, de la India Antigua escrito entre el siglo II a.C. y el II d.C., basado en las ideas de respeto, justicia y verdad. Pero es una ley profundamente elitista, según la cual la clase de los sacerdotes es la casta más importante y con más derechos. A continuación, no se puede olvidar la enorme relevancia que tiene la Grecia Antigua (1000 a.C. – siglo II a.C.) en esta evolución histórica. Con el pueblo griego, pues, se empezó la gran discusión filosófica de la separación del derecho de los dioses del derecho de los hombres, surgiendo la idea de que la promulgación de una ley o su revocación no tienen carácter divino. En este contexto, se sabe que las leyes griegas más importantes fueron la Ley de Dracón (621 a.C.) y Ley de Solón (594 a.C.). La Ley de Dracón incluyó el deber de honrar a los padres y a los héroes del país. Aunque creó el gobierno de las leyes, mantuvo la tradición religiosa. Pero posibilitó una gran evolución al impedir los abusos de la venganza privada familiar, limitando el derecho que los nobles tenían de hacer justicia por sí mismos. Sin embargo, preveía reglas tan rígidas que servían como mecanismo de fortalecimiento del gobierno de entonces. Pero el progreso fue enorme, pues pasó a ser posible conocer las leyes, lo que estaba establecido por ellas, creándose la legitimación de las leyes de los hombres, separándolas de las leyes divinas. Esto fue muy importante para el surgimiento

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de la democracia, pues el legislador ya no es una deidad, sino la voluntad del pueblo. En cuanto a Solón, este acabó con la severidad de las leyes de Dracón, otorgándole un carácter más humano a la legislación, posibilitando incluso el perdón para los más pobres en cuanto a parte de sus crímenes. Se ve pues que los griegos desarrollaron el concepto de libertad, dignidad e igualdad. Pero los derechos humanos no tenían un base legal, en el sentido de existencia de una ley que permitiera su alegación ante el propio Estado. Siendo así, la contribución de los griegos fue mayor en el campo de las ideas: dignidad humana, moralidad, racionalidad y libertad. En Roma, un gran marco histórico fue la Ley de las Doce Tablas (450 a.C.)2, sobre todo por el alejamiento del derecho público y conocido de todos ante el derecho divino. Así, tuvo lugar una revolución de conceptos, pues la ley ya no es una tradición religiosa. Es hecha por los hombres, siendo ahora propiedad de todos los ciudadanos. Fueron el primer conjunto de normas protectoras de los derechos de los ciudadanos, de la propiedad y de la libertad. BERNAL GÓMEZ, Beatriz. Ob Cit.: “Etapa del derecho romano preclásico, que abarca desde la promulgación de las Leyes de las XII Tablas hasta la Ley Aebutia, que da paso al procedimiento formulario en 126 a.C. Durante este periodo Roma lleva acabo la conquista de la península itálica y se extiende hacia ultramar. Por consiguiente, se pasa de la etapa de Roma-ciudad a la de Roma nación itálica y a la de Roma-metrópoli después de la última guerra púnica (149 a.C.) que los romanos libraron contra los cartagineses. Como resultado de ello, pasa de una economía familiar cerrada a un régimen de mercantilismo económico abierto a la cuenca del Mediterráneo: el Mare Nostrum de los romanos. A pesar de que es ésta la etapa de mayor apogeo del sistema republicano, los factores externos (conquista y rápida extensión territorial) dan lugar a que se agudicen las contradicciones internas, razón por la cual se intensifica la lucha de clases aunque, a pesar de la gesta de Espartaco, se consolida el régimen esclavista. Por otra parte, el derecho se seculariza y, al hacerlo, sienta las bases de su ulterior desarrollo. Además, surgen otras fuentes del derecho como la ley, los plebiscitos, los edictos de los magistrados que alcanzan su máximo esplendor a través de la labor del pretor peregrino quien integra el ius gentium al ius honorarium, así como la jurisprudencia, con la aparición de importantes juristas que integran la escuela de los veteres (viejos).” Disponible en: <http://0-app.vlex.com.fama.us.es/#/vid/283130975> y <http://vlex.com/ source/historia-derecho-5503>. Acceso en: 11/03/2016.

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Entonces se constata que el mundo greco-romano no reconoció los derechos humanos de manera expresa. Sin embargo, creó las bases para la doctrina clásica del derecho natural. Es interesante, pues en Roma de aplicaba el concepto de cosa para algunos seres humanos, sobre todo con la idea de poder absoluto del padre de familia o la primacía de Roma sobre las provincias. Pero derechos fundamentales ante el Estado, intocables, no tenían ni siquiera los ciudadanos romanos. Por lo tanto, en las civilizaciones antiguas, no fueron elaboradas leyes positivas de protección de los derechos humanos ante el Estado, ni de protección de los individuos ante los demás individuos. Pero esto no evitó que sus filósofos y legisladores crearan las raíces de la teoría del derecho natural. Por desgracia, se ve que desde entonces hasta hoy, hay una discrepancia entre teoría y práctica en lo que se refiere a la efectividad de los derechos humanos. En este contexto, la gran revolución teórica, el cambio de perspectiva fundamental vino con el Cristianismo en el siglo I. Se pasó de la idea del ser humano como animal político, ciudadano por pertenecer al Estado, a la concepción de persona dotada de un valor en sí mismo. La idea de fraternidad universal y dignidad traídas por Cristo cambian toda la forma con que se veía el ser humano hasta entonces. La persona es dotada de alma y finalidad propia – es hijo, con imagen y semejanza a Dios, siendo todos hermanos de Jesús, hijos del mismo padre sagrado. Con esto, ya no hay hombres o mujeres, hombres libres o esclavos, judíos o romanos: todos son iguales e hijos de Dios. La fraternidad es el centro del Cristianismo, con el dogma del amor al prójimo y la caridad universal. Todo esto tuvo una influencia enorme sobre la cultura e incluso sobre el reconocimiento de los derechos de los individuos por el Estado y por la sociedad. Interesante es que en 392 d.C3., el National Geografic España: “El 8 de noviembre del año 392, hace exactamente 1620 años, triunfó el cristianismo. El emperador romano Teodosio I el Grande, a la edad de 45 años –tres años antes de fallecer–, prohibió totalmente el paganismo e 3

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Cristianismo se convierte en la religión oficial del Imperio Romano y la Iglesia Católica se consolida como la institución más poderosa del medievo. En este ámbito, las ideas de fraternidad y dignidad humana del Cristianismo se convierten en las bases de la teoría de los derechos humanos en la Edad Media.

1.2 Edad Media Aunque haya críticas sobre el desarrollo de los derechos humanos durante la Edad Media, sobre todo en relación a la tolerancia con la esclavitud y la persecución de los herejes llevada a cabo por la Inquisición, fue en este periodo que surgió la idea de derecho de resistencia ante el poder estatal: establecer ciertas obligaciones al soberano y garantizar determinadas libertades y derechos de los ciudadanos mediante un documento firmado por el rey. En este contexto, el ejemplo histórico más ilustre es la Carta Magna4 de 15 de julio de 1215, firmada por el Rey Juan Sin Tierra, considerada una auténtica declaración de derechos, reconocida como el primer documento histórico que crearía las bases para el surgimiento del Constitucionalismo, garantizando los derechos de los barones y disminuyendo el poder absoluto del Monarca. En este sentido, enseña el Profesor Pérez Royo: “Es cierto que muchos siglos antes de la Revolución se hace uso del término ‘derechos’ o ‘libertades’ en casi todos los países europeos. En Inglaterra en primer lugar con la impuso el cristianismo, la religión llegada del Próximo Oriente que no había dejado de ganar terreno, sobre todo desde el reinado de Constantino a principios del siglo IV. El llamado edicto de Constantinopla prohibía toda práctica no cristiana, incluida aquella de carácter privado. En el año 380, Teodosio aseguró el triunfo del cristianismo al publicar en Tesalónica un edicto que imponía a sus súbditos la ortodoxia católica. El edicto de Tesalónica contenía los principios legales para erradicar el paganismo.” Disponible en: <http://www.nationalgeographic.com. es/historia/actualidad/teodosio-i-el-grande-y-el-triunfo-del-cristianismo_6742>. Acceso en: 11/03/2016. 4 PÉREZ ROYO, Javier. Curso de Derecho Constitucional. Madrid. Ediciones Jurídicas y Sociales S.A. 2014. P. 180.

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Magna Carta de 1215, pero también en el continente poco después: la Goldone Bulle de Andreas II en Hungría en 1222, la Confirmatio fororum et libertatum en 1283 y el Privilegio de la Unión de 1287, ambos en Aragón, las Bayerische Freiheitsbriefe und Landesfreiheitserklärungen desde 1311, la Joyeuse Entrée de Brabante de 1356 y un largo etcétera.”

Así que en este momento se fijan las prerrogativas sociales como privilegios de una pequeña parte de la población, como comercio, libre empresa, propiedad. Los conceptos de igualdad y libertad son diseñados para proteger los intereses económicos y políticos de entonces. Como defendía Santo Tomás de Aquino5 (1225-1274), el ser humano tiene derechos que son parte de su propia naturaleza, pues les fueron dados por Dios.

1.3 Edad Moderna Después de la Carta Magna, fueron editados muchos documentos políticos sumamente importantes para la relación entre Estado e individuos: Petition of Rights de 1628, Ley de Habeas Corpus de 1679, Bill of Rights de 1689, Act of Settlement de 1701, Declaración de Derechos del Estado de Virginia de 1776, Declaración de Independencia de Estados Unidos de 1776, Constitución de

DE ZAN, Juan Carlos. Propiedad privada, ¿derecho natural?: desde los estoicos a Santo Tomás de Aquino. Argentina: Editorial Biblos, 2012. “En el capitulo V, en base a una obra insigne que data juntamente de los años de su encuentro con los textos originales de Aristóteles, la Catena Aurea, fuimos recorriendo las raíces evangélico-tradicionales de la definitiva toma de posición de Santo Tomás en favor de San Isidoro y de Graciano, en oposición a su concepción primera agustinianoaristotélica. De ello concluimos que los textos de San Ambrosio y San Basilio que Santo Tomás privilegia en la cuestión 66 de la sección B de la Segunda Parte de la Summa (en la IIª-II), junto a los de San Isidoro y Graciano, están asumidos con plena conciencia del valor evangélico que ellos encierran. Se trata de destacar el derecho natural primario que asiste a la libertad y al uso de los bienes: su destinación universal para todo hombre, que, por el hecho de serlo, tiene derecho al uso de los mismos y al libre ejercicio de su libertad.” Disponible en: <http://0site.ebrary.com.fama.us.es/lib/unisev/reader.action?docID=10806649>. Acceso en: 11/03/2016.

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Estados Unidos de América de 1787 y Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano de 1789. Estos documentos empezaron a tratar varios temas como la prohibición de penas crueles, la elección libre al Legislativo y la libertad de expresión. Europa entonces pasaría por muchas transformaciones socio-políticas y por el surgimiento de nuevas religiones cristianas con la Reforma. La Iglesia Católica empieza a perder poder, pues con el fin del Imperio Romano surge una nueva consciencia nacional con mayor afirmación del poder de los reyes ante la Iglesia. Todo esto fue el terreno propicio para un surgimiento del Derecho Internacional, en un contexto ahora de muchos países soberanos en que se hacía necesario concebir la idea de un respeto recíproco entre países. Sin embargo, la idea de derechos inherentes a los seres humanos solo tuvo lugar en el siglo XVIII con las declaraciones de derechos y con la afirmación clara de la creencia en la existencia de un derecho natural que nace con el ser humano y es vinculado a su naturaleza humana. Los fundamentos teóricos modernos del derecho natural y del derecho internacional fueron creados por el filósofo Hugo Grocio6 en su clásico De jure belli ac pacus de 1625. Él defendía un fundamento racional del derecho natural, siendo ésta la cualidad moral que hacía que fuera justo y cierto que alguien hiciera o tuviera algo. Creó una diferenciación entre derecho natural y derecho positivo. El ARRIOLA, Jonathan; BONILLA SAUS, Javier; CAMPO, Macarena del. Hugo Grocio: en los orígenes del pensamiento internacional moderno. Montevideo. Universidad ORT Uruguay. Facultad de Administración y Ciencias Sociales. Octubre de 2010. “La obra de Grocio descansa en el supuesto que las leyes naturales son intrínsecamente simples y evidentes; poseen, parafraseando a Descartes, una“claridad” y “distinción” tales que cualquiera que utilice adecuadamente su razón no puede menos que reconocerlas y obedecerlas. Siendo la recta razón, y sólo ésta, la que ordena obedecer los principios de la naturaleza, ni Dios ni el hombre son los fundamentos del carácter obligatorio del Derecho. La ley natural, concebida “grocianamente”, está al alcance de cualquier ser racional y no necesitaría, teóricamente, de complejos ejercicios hermenéuticos.” Disponible en: <www.ort. edu.uy/facs/pdf/documentodeinvestigacion59.pdf>. Acceso en: 11/03/2016.

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derecho natural, incluso, no dependía de cualquier derecho divino o manifestación transcendental. Tenía una visión laica del derecho natural, que debería ser concebido solo a través de la razón. En este contexto, el derecho positivo, aplicado y ejecutado por los jueces, solo obliga y tiene fuerza cuando está en convergencia y de acuerdo con el derecho natural, el propio Estado existe para garantizar los derechos naturales, el derecho natural es un conjunto de reglas que son posibles de verificar a través de la razón y los derechos naturales son absolutos y eternos, teniendo validez para todos los hombres en todos los lugares y en todos los tiempos. Es interesante, pues, la idea central de que los seres humanos nacen libres, dignos e iguales, por fuerza de una razón natural. Los derechos de los individuos a la libertad, seguridad, vida etc. existen independientemente de su reconocimiento por el Estado. Los derechos humanos son inalienables y eternos, inherentes a todo el sistema estatal y social, teniendo una relación intrínseca con la naturaleza esencial del individuo. El más importante punto de la Carta Magna fue poner la ley por encima de cualquier privilegio o poder. Los documentos siguientes como la Petition of Rights, la Ley de Habeas Corpus o el Bill of Rights tuvieron como objetivo proteger los derechos individuales, garantizando la libertad de los súbditos, su propiedad y su vida, consagrando el poder de la burguesía. Con la Declaración de Derechos del Estado de Virginia7 de 1776 llegaba a América la consagración de los ideales de seguridad, felicidad y libertad. El individuo, entonces, pasa a ser concebido como dotado de dignidad, teniendo un fin en sí mismo. Es diferente, pues, de las cosas. El ser humano no tiene precio, no tiene un valor relativo8. Disponible en: <http://www.amnistiacatalunya.org/edu/docs/e-hist-Virginia. html>. Acceso en: 11/03/2016. 8 SENSEN, Oliver. Kant-Studien Ergänzungshefte : Kant on Human Dignity. Berlin, DEU: Walter de Gruyter, 2011. “Three months before his death, Kant received a visit from his physician. Although he was nearly collapsing from weakness, Kant remained standing even after his doctor invited him to sit. Wasianski, a former 7

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Todos estos documentos históricos y declaraciones fueron el origen de los derechos fundamentales, aunque al principio los derechos humanos declarados fueran utilizados en favor de los aristócratas, pues había una gran desigualdad de hecho en lo que se refiere a impuestos, acceso a cargos públicos y a la educación.

1.4 La Edad Contemporánea La Revolución Francesa en 1789, por lo tanto, es un gran marco histórico que aparece como punto de inflexión para poner fin al antiguo régimen y acabar con los privilegios exagerados del clero y de la nobleza. En este momento se acaban la servidumbre y los derechos feudales y se crea uno de los documentos más importantes para la historia de los Derechos Humanos: la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano de 26 de agosto de 1789. Un punto interesante e importante de esta Declaración es que incluía algo nuevo: no trataba de derechos únicamente para student and now a trustee of Kant’s, explained to the physician that Kant would only sit down after his visitor had been seated. When the physician reacted with disbelief, Kant took all his strength to say: “The sense of humaneness has not yet left me.” (Wasianski 1804, 263 f.) It is central to Kant’s moral philosophy that one should always respect all other human beings. He famously credits Rousseau for his appreciation of the importance of respecting all human beings: I am an inquirer by inclination. I feel a consuming thirst for knowledge […]. There was a time when I believed this constituted the honor of humanity, and I despised the people, who know nothing. Rousseau set me right about this. This binding prejudice disappeared. I learned to honor humanity, and I would find myself more useless than the common laborer if I did not believe this attitude of mine can give worth to all others in establishing the rights of humanity. 4 Kant holds that all human beings should be respected. Even a vicious man [Lasterhafte] deserves respect as a human being (cf. TL 6:463). Kant articulates this requirement in his Formula of Humanity as an end in itself, which he calls the supreme limiting condition of one’s freedom: “So act that you use humanity, whether in your own person or in the person of any other, always at the same time as an end, never merely as a means.” (GMS 4:429) However, the exact reason why one should respect others remains a matter of debate. The prevailing view in the Kant literature is that one should respect other human beings because of an absolute inner worth or value 5 all human beings possess. The absolute value is often called “dignity” 6, and this value is said to be the reason why one should respect others. 7” Disponible en: <http://0-site.ebrary.com.fama.us.es/lib/ unisev/reader.action?docID=10515760&ppg=153>. Acceso en: 11/03/2016.

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los ciudadanos de un determinado país, como las declaraciones inglesas y americana. Proclamaba derechos universales, para toda la humanidad y no solo para los ciudadanos de Francia – derechos individuales con validez para todos los seres humanos de todos los países, en todos los tiempos. Por esto es un marco también de la Edad Contemporánea. En este contexto, se destaca su artículo XVI9: “Toda Sociedad en la que la garantía de los Derechos no esté asegurada, ni la separación de poderes determinada, no tiene Constitución”. Es importante constatar que esta Declaración tiene un fuerte carácter individualista, sometiendo la vida social de la persona y atribuyendo al Estado la tarea de preservación de estos derechos. En este punto, la Declaración del Estado de Virginia iba más allá, pues, según sus características, la sociedad no podría impedir a las personas de obtener bienes o buscar seguridad y felicidad. En la Declaración de 1789 de Francia, había una fuerte concepción pasiva del Estado, como un protector de derechos ya garantizados, sin un papel decisivo en cuanto a aquellos que todavía no tenían derechos a proteger. Así se concebían los derechos fundamentales de primera generación: poner freno a los poderes del Estado, pero no le obligan a proporcionar prestación de beneficios o generar algún servicio positivo. El papel del Estado es de abstención. Lo más importante es que esté libre la actividad burguesa para que pueda desarrollarse normalmente. Esta era la semilla necesaria para todo un proceso que vino después para hacer positivos los derechos individuales y garantizar su protección judicial. Entonces varias fueron las Constituciones que incorporaron los derechos humanos en sus textos para la vigencia interna: Constitución de Francia de 1793, Constitución de México de 1917, Declaración Soviética de los derechos del pueblo trabajador y explotado de 1918, Constitución de Weimar de 1919 y Carta del Trabajo de Italia de 1927. Disponible en: <www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/.../es_ ddhc.pdf>. Acceso en: 11/03/2016.

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De enorme importancia, entonces, en el siglo XX, surge el 26 de junio de 1945 las Naciones Unidas, organización permanente para la acción conjunta de los Estados para la defensa de la paz mundial. En un contexto de pos-guerra, apenas tres años después de que el mundo viera el fin de las atrocidades provocadas por el Nazismo, la Organización de las Naciones Unidas promulga el documento de mayor importancia para la historia de los derechos humanos: la Declaración Universal de los Derechos Humanos de 10 de diciembre de 194810, que incluyó la concepción según la cual la democracia es la única vía política capaz de garantizar la dignidad humana y los derechos humanos, así como derechos inalienables como la paz, la justicia y la libertad. Son en total artículos y un preámbulo, en el que se proclama el derecho de resistencia a la opresión, la democracia basada en el progreso cultural y socio-económico, la protección de la paz, de la justicia, de la libertad y de la dignidad humana. Otro punto interesante es tener en cuenta abiertamente que la idea puesta es de existencia de los derechos humanos independientemente de cualquier formalidad, voluntad, reconocimiento o concesión. Siendo así la propia ONU, los Estados, los gobiernos, cualquier entidad o individuo deben respetar y garantizar la protección de los derechos humanos, que son universales e inherentes a la condición humana. Sin embargo, mirando la cuestión desde una perspectiva simplemente de Derecho, la Declaración Universal de los Derechos Humanos no es una Resolución. Como la Asamblea General de la ONU no tiene poder para elaborar normas de cumplimiento imperativo por los Estados, la Declaración no tiene contenido obligatorio, no siendo un pacto o convención. La eficacia de los Derechos Humanos, entonces, depende de su establecimiento a nivel interno en las leyes y Constituciones de cada Estado: su contenido, extensión y protección jurisdiccional. Disponible en: <http://www.un.org/es/documents/udhr/>. Acceso en: 11/03/2016. 10

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En este ámbito entra el trabajo incesante de los políticos, de los militantes y de los académicos al requerir el cumplimiento universal de estas normas, dejando a un lado la lógica pura y simple del individualismo en pro del bien común de todos en el planeta. En este contexto, empezó un movimiento de introducción de los Derechos Humanos en las Constituciones de los Estados, sobre todo en capítulos referentes a derechos y garantías individuales, para que como derecho positivo tuvieran eficacia jurídica. Después, a lo largo del siglo XX, otros documentos internacionales de protección de los Derechos Humanos fueron elaborados. Para empezar se puede mencionar el Pacto Internacional de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 16 de diciembre de 1966 cuyos puntos más importantes son la igualdad entre hombres y mujeres, el derecho a la seguridad social, la no discriminación social por cuestiones de color, raza, lengua, religión, opinión política, nacionalidad, origen social, situación económica etc., el derecho de huelga y organización sindical, la remuneración justa y mejores condiciones de trabajo.11 Otro documento importante fue el Pacto Internacional de los Derechos Civiles y Políticos de 16 de diciembre de 196612, que prevé la creación de un Comité de Derechos Humanos para la supervisión y ejecución de las medidas de protección de los Derechos Humanos. Su tarea entonces es recoger informaciones acerca de las acciones tomadas por los Estados y los progresos alcanzados y recibir comunicaciones de personas que se consideren víctimas de violaciones de sus derechos civiles y políticos. En este sentido, el Pacto prevé que los Estados Partes respetarán los derechos y las demás disposiciones consagradas en la Carta de las Naciones Unidas:

Disponible en: <https://www.boe.es/diario_boe/txt.php?id=BOE-A-197710734>. Acceso en: 11/03/2016. 12 Disponible en: <https://www.boe.es/diario_boe/txt.php?id=BOE-A-197710733>. Acceso en: 11/03/2016. 11

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“Artículo 1 1. Todos los pueblos tienen el derecho de libre determinación. En virtud de este derecho establecen libremente su condición política y proveen asimismo a su desarrollo económico, social y cultural. 2. Para el logro de sus fines, todos los pueblos pueden disponer libremente de sus riquezas y recursos naturales, sin perjuicio de las obligaciones que derivan de la cooperación económica internacional basada en el principio de beneficio recíproco, así como del derecho internacional. En ningún caso podría privarse a un pueblo de sus propios medios de subsistencia. Los Estados Partes en el presente Pacto, incluso los que tienen la responsabilidad de administrar territorios no autónomos y territorios en fideicomiso, promoverán el ejercicio del derecho de libre determinación, y respetarán este derecho de conformidad con las disposiciones de la Carta de las Naciones Unidas.”

En 1993, se proclama la Declaración de Derechos Humanos de Viena13, incluyendo la protección de los Derechos Humanos como prioridad de la comunidad internacional, pues todos los Derechos Humanos tienen como base la dignidad, valor inherente al ser humano, sujeto primordial de las libertades fundamentales. Su intención era garantizar un sistema de cooperación internacional eficaz para el respeto de los Derechos Humanos, según lo que preveía la Carta de las Naciones Unidas de 1945. Tiene entonces como pilares los conceptos de indivisibilidad y universalidad de los Derechos Humanos, que deben ser tratados de manera equitativa, justa y global, siendo protegidos independientemente de cuál sea el sistema cultural, económico o político en el que haya una situación de lesión o amenaza de lesión. Desarrollo, democracia y derechos humanos están conectados en una relación intrínseca. Otro gran marco histórico para la protección de los Derechos Humanos fue el Estatuto de Roma que instituyó la Corte Penal Internacional en 1998.14 Disponible en: <http://www.un.org/es/development/devagenda/ humanrights. shtml>. Acceso en: 11/03/2016. 14 CABEZUDO RODRÍGUEZ, Nicolás. La Corte Penal Internacional. Madrid. Dykinson. 2002. “El Estatuto de la Corte Penal Internacional (ECPI.) consta de un 13

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El objetivo de su creación fue acabar con la impunidad de los crímenes más graves que afectan a la comunidad internacional. Por lo tanto, la represión debe ser efectiva tanto en el ámbito doméstico como en ámbito internacional. La idea central, pues, es que la efectiva protección de los derechos humanos siempre ha sido el gran reto de esta rama del derecho internacional. La evolución que tenemos hoy en día permite ver un proceso de justicialización del derecho internacional, sobre todo de los derechos humanos. Una demostración de esto está en el Estatuto de Roma15: “Artículo 1. La Corte. Se instituye por el presente una Corte Penal Internacional («La Corte»). La Corte será una institución permanente, estará facultada para ejercer su jurisdicción sobre personas respecto de los crímenes más graves de trascendencia internacional de conformidad con el presente Estatuto y tendrá carácter complementario de las jurisdiccionales penales nacionales. La competencia y el funcionamiento de la Corte se regirán por las disposiciones del presente Estatuto. Artículo 5. Crímenes de la competencia de la Corte. 1. La competencia de la Corte se limitará a los crímenes más graves de trascendencia para la comunidad internacional en su conjunto. La Corte tendrá competencia, de conformidad con el presente Estatuto, respecto de los siguientes crímenes: a) El crimen de genocidio; b) Los crímenes de lesa humanidad; c) Los crímenes de guerra; El crimen de agresión.”

Sin embargo, se sabe que la jurisdicción de la Corte Penal Internacional es complementar a la jurisdicción de los Estados. Preámbulo y 128 artículos estructurados en 13 Partes, resultando normativamente un ‘híbrido’ entre la tradición jurídica de los ordenamientos del ‘common law’ y los de derecho continental. Pretende ser un texto normativo completo que abarque tanto por las normas materiales como también por las procesales que regirán el normal funcionamiento de esta jurisdicción supranacional.” Disponible en: <http://0-app.vlex.com.fama.us.es/#/vid/180147>. Acceso en: 11/03/2016. 15 Disponible en: <http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2002-10139>. Acceso en: 07/03/2016,

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Entonces ella solo actúa cuando haya una omisión o incapacidad del sistema judicial doméstico de determinado país. Es un caso de responsabilidad subsidiaria. Otro punto fundamental es que la Corte se basa en el principio de la cooperación. En este sentido los Estados miembros deben ayudar a la Corte en lo que se refiere al proceso e investigación de crímenes bajo su jurisdicción. Se ve que el sistema de la Corte se forma para respetar la soberanía de los Estados, pero al mismo tiempo busca el fin de la impunidad y el acceso a la justicia. Otro aspecto muy importante es que un principio fundamental es la Universalidad, visto que el Tratado de Roma se aplica a todos los Estados miembros, siendo todos estos iguales ante el Tribunal, no habiendo distinción entre Estados débiles o fuertes en términos económico-políticos. Como se puede ver, entonces, este conjunto de normas aquí mencionadas como la Carta de las Naciones Unidas, la Declaración Universal de los Derechos Humanos, la Convención de Viena y el Estatuto de Roma, ha tenido una fuerte influencia sobre el mundo actual, lo que garantizó la consagración del término “derechos humanos”. Esto es interesante pues tiene una relación directa con la valorización del concepto de dignidad humana como valor esencial y principio de hermenéutica tanto en Derecho Constitucional como en Derecho Internacional. En este contexto, a lo largo del desarrollo de los derechos humanos siempre se ha visto una contradicción contundente entre la teoría y la práctica. Cada vez más hay una evolución en términos de elaboración de decisiones, recursos en los tribunales, declaraciones, tratados y avances teóricos en la academia, pero las violaciones hoy en día siguen siendo graves. Y en este contexto se ve la situación de los refugiados en Europa, que vienen de zonas de guerra como Siria, Afganistán e Iraq: los que no se ahogan en el Mediterráneo encuentran un recibimiento en general caracterizado por cercas de alambre de espino y estancia forzada en campos de refugiados16. 16 Disponible en: <http://www.clarin.com/mundo/Inmigracion-Europacontroles_0_1430857336.html>. Acceso en: 11/3/2016.

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Pero los paradigmas en la comunidad internacional han cambiado mucho. Hoy en día, tenemos no solo una comunidad de Estados sino también una comunidad de personas. Todo esto hace que se empiecen a cambiar conceptos tradicionales en pro de una más reciprocidad entre los países. Y en esta situación económicopolítica global, la noción de soberanía clásica no se mantiene más. Es necesario, por lo tanto, concienciarse sobre la necesidad del respeto universal de los derechos humanos, algo que empezó con una fuerza mucho más clara tras la Segunda Guerra Mundial con la percepción de las atrocidades cometidas por el Nazismo. La búsqueda de una sociedad no basada en el individualismo y egoísmo, sino en la solidaridad entre naciones de la comunidad internacional, empezaba a ganar terreno en el Derecho. Así surge la disciplina del Derecho Internacional de los Derechos Humanos, cuyo mayor reto es darles eficacia, protegiéndose en la práctica el honor, la seguridad, la libertad, la dignidad y la vida de las personas de modo universal. Por supuesto, no ha sido fácil llevar a cabo la implementación de estos derechos, sobre todo al considerarse las peculiaridades de su aplicación, teniendo en cuenta las diferencias culturales entre países, la complejidad fenoménica del mundo contemporáneo, el ámbito espacial global de extensión y el hecho de que es una rama del derecho relativamente reciente, de desarrollo real posterior a la Segunda Guerra Mundial. En 1948, con la Declaración Universal de los Derechos Humanos, se tiene por primera vez la idea de universalidad. A partir de entonces empiezan a surgir varios tratados sobre la protección de los derechos humanos. Tiene inicio un nuevo derecho internacional no preocupado principalmente por cuestiones de paz y guerra, pero sí por nociones de solidaridad internacional y cooperación. En este contexto, el sistema se va estructurando hacia mecanismos de monitorización del cumplimiento de las obligaciones asumidas antes otros países y la comunidad internacional. Siendo así, no tarda a aparecer la necesidad de transformación irreversible y

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gradual del concepto de soberanía, pues se refuerza la noción de que los derechos humanos son inherentes a la condición humana, que no puede quedarse desprotegida bajo un argumento de blindaje interno del derecho de cada Estado. Los instrumentos internacionales de protección, entonces, cobran poder para transponer estas barreras y proteger las personas donde quiera que ellas estén. La idea central, entonces, pasa a ser garantizar la dignidad humana, el ser humano como un fin en sí mismo, algo para sentar raíces definitivas en la consciencia de la comunidad internacional. La vida humana no es desechable: no era la vida de un judío en 1943 en Polonia en plena Segunda Guerra, no es la de un sirio en la frontera entre Grecia y Macedonia hoy. Por lo tanto, los derechos humanos han sido cada vez más consagrados en documentos internacionales siempre teniendo como pilares las ideas de universalidad (basta ser persona para ser titular de dignidad y derechos) e indivisibilidad (la protección de los derechos políticos y civiles es necesaria para la real protección de los derechos sociales, económicos y culturales y viceversa). Para que esto todo sea efectivo, sin embargo, es necesario que los mecanismos de control y responsabilidad internacional puedan ser accionados de manera concreta por las personas afectadas e incluso por los Estados de la comunidad internacional. En este ámbito, en la Convención de Viena de 1993 se consagran los conceptos fundamentales según los cuales: no se puede argumentar en favor del incumplimiento de los derechos humanos con base en el relativismo cultural de cada país; la soberanía estatal no puede ser usada como escudo para la manutención de violaciones de los derechos humanos.17 Filosofía Sobre Todo: “Relativismo Cultural: Toda la Verdad es Local El Relativismo Cultural es la idea que los sistemas morales o éticos, los cuales varían de cultura a cultura, son todos igualmente válidos, y ningún sistema es en realidad “mejor” que otro. Esto está basado en la idea de que no existe ningún estándar definitivo del bien y del mal, así que cualquier juicio acerca del bien y del mal es un producto de la sociedad. Por lo tanto, cualquier opinión sobre la moralidad o ética está sujeta a la perspectiva cultural de cada persona. Finalmente, esto significa que 17

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Por lo tanto, se ve que el concepto tradicional de soberanía es incompatible con el principio de la universalidad de la protección de los derechos humanos. Se pone fin al dogma clásico de no injerencia en los asuntos internos de un país como era concebido y se pasa a tener presente en la consciencia de la comunidad internacional que las personas y los Estados tienen deberes de solidaridad ante sus semejantes, debiendo haber un verdadero compromiso de ayuda entre los pueblos de todo el planeta.

2 Situación Jurídica de los Refugiados La mayoría de las personas que buscan protección en otros países vienen de áreas afectadas por conflictos armados o intensa violación de derechos humanos. En el momento en el que estamos, el continente europeo se enfrenta a un grave problema con el mayor flujo migratorio visto desde el fin de la Segunda Guerra Mundial, con la llegada de millares de personas todos los meses, que vienen de regiones como Siria, Iraq y Afganistán. Es la mayor crisis humanitaria que está viviendo Europa en los últimos 60 años. En este contexto, la situación demográfica en Europa Occidental pasa por índices de fertilidad que están debajo de lo necesario para que se mantenga el equilibrio de la población y de las finanzas de la seguridad social. En esta situación, un flujo de inmigrantes podría representar una compensación en términos de crecimiento de la población. Así que a principios de 2015, hubo momentos en que los inmigrantes eran recibidos con aplausos y saludos de bienvenida en Alemania, pues representaban una mano de obra interesante para el desarrollo de la economía. ningún sistema moral o ético puede ser considerado como el “mejor” o el “peor,” y ninguna posición particular moral o ética puede realmente ser considerada “buena” o “mala”.” Disponible en: <http://www.allaboutphilosophy.org/ spanish/relativismo-cultural.htm>. Acceso en: 11/03/2016.

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Lo que pasa es que este camino no ha sido tranquilo en los últimos meses, sobre todo con los movimientos de extrema derecha y el miedo al terrorismo, que han creado un clima de xenofobia contra personas de origen musulmán provenientes de Asia y África. Todo esto ha creado una situación de grave tensión política entre diferentes partidos y grupos formadores de opinión acerca de la llegada de los refugiados, sobre todo con el argumento de que serían un problema social, cultural y económico para las naciones europeas. En la práctica, entonces, algunos países como Austria, Dinamarca18 y Hungría han empezado a adoptar medidas más restrictivas en relación a la concesión de refugio, lo que ha creado desafíos para cooperación internacional en materia de protección de los Derechos Humanos. Empieza, por lo tanto, a darse una situación contradictoria, pues el discurso que muchas naciones defienden es el derecho individual de emigración, y sin embargo al mismo tiempo creen en el derecho de cada Estado de determinar soberanamente cuántos y quienes tendrán acceso y permiso de residencia en sus territorios. No se puede olvidar el hecho de que hubo una gran evolución en el tema de protección de los Derechos Humanos a partir del final de la Segunda Guerra Mundial, y sobre todo con el fin de la Guerra Fría, aumentando su defensa en la comunidad internacional. Pero la paradoja actual es: el mayor numero de naciones democráticas en Europa en las últimas décadas no parece reflejar una mayor democracia en la relación entre ellas, pues en situaciones como la cuestión de los refugiados por ejemplo, siguen persiguiendo sus intereses nacionales. Así pues, países del Norte de Europa por The Guardian: “Denmark is set to force refugees to hand over their valuables in order to pay for their accommodation while applying for asylum, in a move the UN has warned may fuel fear and xenophobia. The Danish government has secured a parliamentary majority in favour of legislation that will severely curb the rights of refugees”. Disponible en: <http://www.theguardian.com/world/2016/jan/12/ denmark-to-force-refugees-to-give-up-valuables-under-proposed-asylum-law>. Acceso en: 11/03/2016. 18

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ejemplo como Dinamarca o Inglaterra han empezado a declararse en contra incluso de políticas de cotas para el recibimiento de extranjeros, no habiendo una auténtica preocupación o solidaridad con países donde la situación es más alarmante, como Italia, en Lampedusa19, o Grecia, en Lesbos20. Resulta interesante que, al principio, principalmente después de la Primera Guerra Mundial, el pensamiento dominante en cuanto a los refugiados era de la asistencia que les sería dada no por los Estados, sino por organizaciones voluntarias que ya les habían amparado durante la Guerra. Pero quedó claro que sería insuficiente este tipo de tratamiento de la situación dado el potencial de inmigración en Europa de toda la masa de refugiados y ex prisioneros de guerra al finalizar la misma. La salida entonces sería crear mecanismos multilaterales, para que la actuación de los Estados se produjera de manera colectiva con vista a obtener mejores resultados. Las personas buscando refugio dejaban de ser un problema doméstico para ser un reto para El País. Naufragios en Lampedusa. La desesperación supera al horror. “La oleada de barcazas continúa pese a los naufragios de los últimos días. Tiene que quemar mucho la tierra, la propia tierra, para lanzarse al mar sin saber nadar, con un hijo a punto de nacer de las entrañas, en la bodega de un viejo pesquero donde cientos de desesperados, apretujados unos contra otros, se tienen que hacer sus miedos encima, no tanto porque solo hay un retrete a bordo, sino porque, si se mueven, el barco puede irse a pique.” Disponible en: <http://elpais.com/tag/c/6 a8a9067368101cc0ad30be4a9cf8a0b/>. Acceso en: 11/3/2016. 20 BBC. Mundo: Llorar y correr en Lesbos: mi experiencia como voluntaria en el corazón de la crisis de refugiados en Europa. “La primera vez que lloré desconsolada en la isla griega de Lesbos llevaba 10 días como voluntaria. Ese día también me fumé mi primer cigarrillo en siete años. Y también el segundo. Y el tercero. Eran las 2 de la tarde en el campo de refugiados “Better days for Moria” y me acababa de despedir de Mohammed, un iraquí de unos 60 años que llevaba varios días en nuestro campo. Mohammed había decidido viajar esa misma noche en un ferry a Atenas, desde donde continuaría su periplo con la esperanza de encontrar asilo en Alemania. Pero no fue sólo nuestra despedida la que detonó mi tristeza. Era una sumatoria de impotencia y agotamiento, de días y días atendiendo gente a mansalva, tratando de ayudar a aliviar las consecuencias humanitarias de una crisis que vista de cerca supera al entendimiento.” Disponible en: <http://www. bbc.com/mundo/noticias/2016/03/160308_grecia_crisis_refugiados_sirios_ser_ voluntario_lesbos_ng>. Acceso en: 11/03/2016. 19

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la comunidad internacional. Para que esto de hecho sucediera era necesaria la existencia de un órgano internacional, una autoridad independiente y externa para la coordinación de la situación, con la necesaria contrapartida de disminución de la soberanía de los Estados al menos en este tema de protección de Derechos Humanos de inmigrantes. Muchos entonces fueron los obstáculos puestos por los países, sobre todo con políticas restrictivas de inmigración. Así que solo después de la Segunda Guerra Mundial el mero discurso se convirtió en un verdadero tratamiento de la cuestión, con una inspiración humanitaria apuntada hacia la voluntad de disminuir el sufrimiento de las poblaciones afectadas. Hay que constatar que incluso mientras la Segunda Guerra transcurría los países ya veían delante el problema de los desplazamientos forzados de enormes cantidades de personas. Las raíces del sistema internacional de protección de los refugiados se hallan en el periodo posterior a la Primera Guerra Mundial, cuando la situación de desplazamiento internacional de millones de personas llamó la atención de los Estados. Antes de este momento, las cuestiones sobre el tema eran tratadas con los institutos de la extradición o del asilo. Claro que el mundo de entonces no tenía pues la complejidad fenoménica que tiene hoy, marcado como está por el papel actual de las empresas multinacionales, el movimiento fluctuante del capital, las intrínsecas relaciones político-económicas y las desigualdades entre naciones. Después de la Revolución Bolchevique21 más de 1 millón de personas salieron de Rusia hacia los Balcanes y el Europa del Este. Se produjeron otros desplazamientos también como los de los turcos Humanities: Fleeing Revolution. “In the Russian Revolution of 1917 and its civil war, thousands fled, many making their way to China. There they found refuge for a while, only to be forced into a second mass exodus by the Chinese Communists. The stories they tell are documented in a collection of papers held by the Museum of Russian Culture of San Francisco. The papers are included in fortythousand documents being microfilmed and put online with help from the Hoover Institution for War, Revolution and Peace and support from NEH.” Disponible en: <http://www.neh.gov/humanities/2001/mayjune/feature/fleeing-revolution>. Acceso en: 11/03/2016. 21

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y griegos como consecuencia del conflicto ente Grecia y Turquía en 192222, en un momento de graves dificultades políticas y grandes cifras de paro. Se buscó, en aquel entonces, por medio de la Liga de las Naciones en 1920 una manera de zanjar el problema con base en la cooperación internacional. Pero poco pudo hacer visto que el argumento de la soberanía absoluta entonces utilizado por los Estados servía como obstáculo a la protección efectiva de los refugiados. Con el final de la Segunda Guerra, la situación en el continente se agravó aún más, pues el mayor reto era hacer que los todos los prisioneros o refugiados volviesen a sus países de origen. Así que el 20 de agosto de 1946 es creada la Organización Internacional para los Refugiados, pero esta dejó de funcionar en 1952. En este contexto, como marco histórico de enorme importancia para los Derechos de los Refugiados e incluso para los Derechos Humanos, surge entonces el Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados – ACNUR en 1950, con la misión de International Committee of the Red Cross. El conflicto entre Grecia y Turquía. “Tras la Primera Guerra Mundial, Turquía parece quedar muy debilitada, y Grecia estima que podrá extender su soberanía en Asia Menor. En mayo de 1919, un cuerpo de expedicionarios griegos desembarca en Esmirna y emprende la conquista tierra adentro, llegando hasta la región central de Anatolia. Pero los turcos resisten; comienzan a recuperarse en agosto de 1922, y el 9 de septiembre reconquistan Esmirna. Se firma el armisticio en Moudania (Anatolia) el 11 de octubre de 1922. En enero de 1923, se reúne en Lausana una conferencia de todas las potencias interesadas en que se restablezca la paz en Oriente Próximo. El 30 de enero, Grecia y Turquía firman un acuerdo en el que se prevé la repatriación de todos los internados civiles por ambas partes, cualquiera sea el número de ellos, y de todos los prisioneros de guerra turcos, así como de un número igual de prisioneros de guerra griegos. El resto de los prisioneros de guerra griegos serían repatriados después de la firma del tratado de paz, el 24 de julio de 1923. Estas operaciones de repatriación se llevarían adelante bajo los auspicios de una comisión de ejecución. Además, el conflicto greco-turco provocaría el éxodo hacia Grecia de millares de personas de origen griego, asentadas en Asia Menor, al tiempo que millares de habitantes de origen turco huirían de Tracia con destino a Turquía.” Disponible en: <https://www.icrc.org/spa/resources/documents/misc/5tecdp.htm>. Acceso en: 11/03/2016. 22

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proteger y ayudar a millones de personas apátridas y desarraigadas en el mundo. 23 En este sentido: “ACNUR surgió al término de la segunda guerra mundial para ayudar a los europeos desplazados por ese conflicto. Muy optimista, la Asamblea General de Naciones Unidas creó el 14 de diciembre de 1950 el Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados con un mandato de tres años para completar sus labores y luego disolverse. Al año siguiente, el 28 de julio de 1951, fue adoptada la Convención de Naciones Unidas sobre el Estatuto de los Refugiados, el fundamento legal para ayudar a los refugiados y el estatuto básico que rige el trabajo del ACNUR. En 1956 ACNUR se enfrentó su primera emergencia de grandes dimensiones: la llegada masiva de refugiados cuando las fuerzas soviéticas aplastaron la revolución húngara. Cualquier expectativa que el ACNUR sería pronto innecesario desapareció. En 1960 la descolonización de África generó la primera de muchas crisis de refugiados en ese continente que han requerido la intervención del ACNUR. En las dos décadas siguientes, ACNUR ayudó en crisis de desplazamiento en Asia y América Latina. Hacia finales de la década hubo situaciones de refugiados nuevas en África repitiéndose la historia, con nuevas afluencias de refugiados en Europa a causa de las guerras en los Balcanes.”

Entonces se empieza toda una construcción jurídica de protección alrededor de la figura de los refugiados. Así que el propio establecimiento de criterios para la identificación de quién es refugiado es muy relevante, pues una persona que tenga tal estatus será titular de un conjunto de derechos específicos, teniendo la prestación de una asistencia humanitaria y un régimen legal de protección garantizados. Este último está compuesto por muchas normas, sobre todo tratados internacionales, siendo el más

Disponible en: <http://www.acnur.org/t3/el-acnur/historia-del-acnur/>. Acceso en: 11/03/2016. 23

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importante la Convención sobre El Estatuto de los Refugiados de 1951 y su protocolo de 1967.24 Hay así un sistema de responsabilidad del Estado ante el refugiado. En este ámbito se constata que el primer punto que deflagra todos los mecanismos de protección es el reconocimiento del estatus de refugiado, cuyo acto es declaratorio de su condición. Por lo tanto, el refugiado no pasa a ostentar esta calidad en base a una decisión constitutiva del Estado. Este solo verifica un conjunto de características ya existente. Hace entonces un examen acerca de la persona que pide refugio y si de hecho ésta merece la protección internacional según las definiciones correspondientes al caso. Se ve así que el refugiado es un individuo que busca protección en situaciones personales o sociales intolerables. El punto fundamental es, según la Convención de 1951 y su Protocolo de 1967, el temor fundado a ser perseguido por motivos de raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u opiniones políticas. Es una definición que fue ampliamente ratificada por los países e incluye los parámetros de calificación de refugiados a ser seguidos por el ACNUR.25 En este contexto, la Amnistía Internacional destaca que: “Los refugiados se han visto obligados a abandonar sus hogares, sus amigos y su medio de vida. Algunos han respondido instintivamente a una amenaza inmediata y terrible. Otros han tomado la dolorosa decisión de abandonar su país tras un largo periodo de incertidumbre, cuando todas las demás opciones han fallado. Todos han visto sus vidas trastocadas por fuerzas que escapaban a su control, y todos correrían un grave peligro de sufrir violaciones de derechos humanos si volvieran a su hogar. Todo refugiado tiene derecho a la protección internacional. Sin embargo, el sistema internacional que se supone que los protege está en crisis. En los últimos años, el número de refugiados se ha incrementado significativamente.” Disponible en: <http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-1978-26331>. Acceso en: 11/03/2016. 25 Amnistía Internacional, ed. Refugiados. Los derechos humanos no tienen fronteras. España: Editorial Amnistía Internacional, 1997. Disponible en: <http://0-site. ebrary.com.fama.us.es/lib/unisev/reader.action?docID=10083469>. Acceso en: 11/03/2016. 24

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Son pues las personas que se ven forzadas a abandonar su país de origen para buscar protección en otro país. Desde esta perspectiva se ve como es importante la propia existencia de una definición de refugiado y sus entornos pues siempre ha habido, sobre todo hoy, una tendencia de los Estados a disminuir las hipótesis de reconocimiento. Esto ocurre en situaciones de flujos migratorios provenientes de países vecinos en que el Estado receptor trata de impedir o persuadir que los grupos no pidan refugio en su territorio. En este contexto, resurge con mucha fuerza el tema de la diferenciación entre refugiados e inmigrantes económicos, en el que los Estados europeos hacen hincapié como argumento para intentar disminuir las cifras de inmigración. En este caso, tienen razón con el argumento de que hay de hecho una diferencia, pues el inmigrante económico huye de su país para buscar mejores condiciones económicas de vida en otro Estado. En teoría, no estaba en una situación límite, de violación de todos sus derechos humanos más sensibles. Este tipo de inmigrante no tiene derecho a la misma protección de los refugiados. Este en realidad no tiene elección: en muchas situaciones incluso o huye con su familia o muere, como se ve con lo que pasa a los sirios que abandonan sus ciudades dominadas por continuas atrocidades del Estado Islámico26. En cuanto a los RT. Atrocidades del EI: cortan cabezas y obligan a sus esclavas a desnudarse para venderlas. “Una mujer reveló a RT las brutalidades del Estado Islámico: “Cortan cabezas y secuestran a chicas y mujeres para llevarlas a Raqa. ¿Qué culpa tenían las esclavas? Es un pecado”. Un hombre destacó la hipocresía de la organización terrorista mencionado que mientras los yihadistas insisten en que las mujeres sean recatadas y castas, las mandan a las barras de estriptis para ganar dinero. “Obligaban a las mujeres a que se cubrieran por completo y a que nunca mostraran ninguna parte del cuerpo”, dijo. “No obstante, mandaban a sus esclavas hacer estriptis para venderlas. Para las mujeres está prohibido mostrar cualquier parte de cuerpo. Si alguien la pillara en la calle durante la oración, la mujer recibiría 100 latigazos”. Otro hombre recordó que los terroristas secuestraban mujeres y chicas cristianas y destruían iglesias. “Robaron nuestra propiedad y destruyeron las iglesias. Nuestras hermanas cristianas fueron secuestradas. Tomaron como rehenes a algunas de ellas para pedir rescate”, dijo el hombre. La explotación sexual y el tráfico de personas son medios habituales de obtención de ingresos en el Estado Islámico. Según los datos de la ONU presentados por Bloomberg, los terroristas venden a niñas de nueve años por alrededor de 165 de dólares mientras que por 26

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inmigrantes económicos, corresponde a la comunidad internacional buscar soluciones de ayudas humanitarias y mecanismos a medio y largo plazo para la reducción de desigualdades entre países e incluso entre continentes. Siendo así, se constata que el Derecho de los Refugiados surge en el contexto del desarrollo de los Derechos Humanos. Así pues, en 28 de julio de 1951 la Conferencia de Las Naciones Unidas adopta la Convención sobre el Estatuto de los Refugiados, hasta hoy el documento más importante acerca del tema: “La Convención fue el primer instrumento verdaderamente internacional que contempla los aspectos más importantes de la vida de un refugiado. Explica detalladamente una serie de derechos humanos fundamentales de todo refugiado que deben ser protegidos a un nivel al menos equivalente a las libertades que disfrutan los extranjeros en un país determinado y en muchos casos a las de los ciudadanos de dicho Estado. Reconoce el alcance internacional del problema de los refugiados, y la necesidad de la cooperación internacional para su solución, destacando la importancia de compartir la responsabilidad entre los Estados. La Convención define lo que significa el término refugiado. Describe los derechos de los refugiados, incluyendo conceptos como la libertad de religión y de movimiento, el derecho a la educación y a disponer de documentos de viaje, así como la posibilidad de trabajar. También subraya las obligaciones de los refugiados para con el gobierno de acogida. Una de las disposiciones clave estipula que un refugiado no debe ser devuelto a un país donde teme ser perseguido. También explica detalladamente qué tipo de personas o grupos de personas no están comprendidas en los alcances de la Convención. El Protocolo elimina las limitaciones geográfica y temporal contenidas en la Convención original, que estipulaban que,

las mujeres que tienen más de 40 años cobran tan solo 41 dólares.” Disponible en: <https://actualidad.rt.com/actualidad/193083-estado-islamico-atrocidadesrevelaciones>. Acceso en: 11/03/2016.

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en principio, sólo los europeos que se convirtieron en refugiados antes del 1 de enero de 1951 podían solicitar asilo.”27

No se trata de un documento que tenga pretensiones de ser exclusivo o impedir la adopción de criterios por los diversos Estados, aunque contenga una definición clásica del tema y haya sido incorporada por los ordenamientos jurídicos de variados países. Según su texto, refugiado es toda persona: “Que, como resultado de acontecimientos ocurridos antes del 1 de enero de 1951 y debido a fundados temores de ser perseguida por motivos de raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u opiniones políticas, se encuentre fuera del país de su nacionalidad y no pueda o, a causa de dichos temores, no quiera acogerse a la protección de tal país; o que, careciendo de racionalidad y hallándose, a consecuencia de tales acontecimientos, fuera del país donde antes tuviera su residencia habitual, no pueda o, a causa de dichos temores, no quiera regresar a él.”28

Resulta interesante que la reserva temporal que hizo en cuanto a los eventos sucedidos antes del 1 de enero de 1951 fue incluida para garantizar los derechos de los grupos que buscaron refugio hasta esta fecha, pero fue derogada por el Protocolo de 1967. En este también se derogó la limitación espacial que establecía su aplicación tan solo a Europa. En cuanto al criterio adoptado por la Convención para la definición de refugiado, se ve que se eligió el carácter subjetivo, basado en motivos de temor de persecución. Entonces el Estado que recibe el candidato a refugio tendrá la tarea de evaluar si es razonable y fundado el motivo para acogida. Así se ve que la Convención es limitada, pues no comprende otras situaciones que pasan hoy en día. Así, no contempla situaciones Disponible en: <http://www.acnur.org/t3/el-acnur/historia-del-acnur/laconvencion-de-1951/>. Acceso en: 09/03/2016, 28 Disponible en: <http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-1978-26331>. Acceso en: <09/03/2016>. 27

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de inestabilidad institucional, conflictos civiles o guerras capaces de amenazar la integridad física de los inmigrantes. Al contemplar los criterios de pertenencia a grupos sociales, opinión política, nacionalidad, religión y raza, la Convención excluyó a varios grupos de personas en situaciones de peligro. La idea, pues, era resolver la situación y proteger a las personas que se veían en condición de ex prisioneros o forajidos en el año de 1951, muchas veces sin documentos de identificación o de viaje y que necesitaban regresar a sus países en un contexto económico-geográfico de profunda crisis, en el que varias de las vías de circulación estaban destruidas e incluso el transporte era difícil. A lo largo de los últimos 60 años, el ACNUR ha desarrollado las definiciones y conceptos de la Convención de 1951, haciendo su trabajo de órgano internacional, apolítico y humanitario. Su actuación tiene lugar bajo la autoridad de la Asamblea General de las Naciones Unidas y trata de ofrecer auxilio y asistencia a los refugiados, buscando soluciones duraderas a través del trabajo en cooperación con los gobiernos de cada país. La competencia del ACNUR es determinada por un criterio ratione personae en lo que se refiere a los destinatarios de su protección. Por lo tanto, su actuación no depende de factores temporales o territoriales, ni siquiera está sometida a la anuencia de los Estados involucrados. Más allá de su trabajo de proteger a los refugiados, la Asamblea de la ONU ha determinado que el ACNUR actúe en otros eventos de auxilio a grupos en situación de necesidad de ayuda humanitaria. Tiene también la responsabilidad de verificar la implementación de la Convención de 1951, según su artículo 3529: “Artículo 35. Cooperación de las autoridades nacionales con las Naciones Unidas. 1. Los Estados Contratantes se comprometen a cooperar con la Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas Disponible en: <http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-1978-26331>. Acceso en: <10/03/2016>. 29

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para los Refugiados, o con cualquier otro organismo de las Naciones Unidas que le sucediere en el ejercicio de sus funciones, y en especial le ayudarán en su tarea de vigilar la aplicación de las disposiciones de esta Convención. 2. A fin de permitir a la Oficina del Alto Comisionado, o a cualquier otro organismo de las Naciones Unidas, que le sucediere, presentar informes a los órganos competentes de las Naciones Unidas, los Estados Contratantes se comprometen a suministrarles en forma adecuada las informaciones y los datos estadísticos que soliciten acerca de: a) La condición de los refugiados. b) La ejecución de esta Convención. c) Las leyes, reglamentos y decretos que estén o entraren en vigor, concernientes a los refugiados.”

Es interesante en este momento observar que el refugiado tiene derecho a un complejo conjunto de prerrogativas. Así, la propia Declaración Universal de los Derechos Humanos30 prevé que: “Artículo 14. 1. En caso de persecución, toda persona tiene derecho a buscar asilo, y a disfrutar de él, en cualquier país. 2. Este derecho no podrá ser invocado contra una acción judicial realmente originada por delitos comunes o por actos opuestos a los propósitos y principios de las Naciones Unidas.”

En este contexto, su más relevante derecho está en el Principio de Non-Refoulement: si el retorno forzado a su país de origen o a un tercer país causare lesión o amenaza de lesión a sus derechos fundamentales, el refugiado no podrá ser rechazado en el país donde se encuentre. Es pues una norma de categoría jus cogens, pues sin su reconocimiento y aplicación no hay protección integral del individuo exiliado. Es curioso que es una norma que se aplica incluso a países no signatarios de la Convención y que no está condicionada al previo reconocimiento del estatus de refugiado Disponible en: <http://www.un.org/es/documents/udhr/index_print. shtml>. Acceso en: 10/03/2016, 30

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para su plena imposición. Tiene su fuerza tajante también por ser una norma imperativa de la costumbre internacional. Sobre el tema, enseña Camps Mirabet31: “En este contexto debe traerse a colación el principio de no devolución — non refoulement — en tanto que limite a la prerrogativa estatal en materia de asilo: en el caso de que no se conceda el asilo a una persona, ésta no podrá ser expulsada o devuelta a cualquier estado donde pueda ser objeto de persecución (art. 3.1), excepto por razones fundamentales de seguridad nacional o para salvaguardar a la población, como en el supuesto de una afluencia en masa de personas (art. 3.2). (…) MARIÑO MENÉNDEZ sostiene que, a la luz de la práctica de los últimos años, puede afirmarse que “está vigente una norma de derecho internacional general que obliga a los estados a actuar de modo que no se impida o no se dificulte irrazonablemente tanto la presentación por un “perseguido” de su solicitud de asilo ante cualquier estado capaz de atenderla, como el goce así obtenido”. En todo caso, atendiendo a la realidad internacional, ALLAND sostiene que actualmente el derecho de asilo es un derecho susceptible de dos velocidades: por un lado, la jurídica, sofisticada y minoritaria, propia de los países occidentales y encaminada a controlar los movimientos de población (refuerzo de los controles fronterizos y limitación de la protección de los solicitantes de asilo); por otro, la política, masiva y mayoritaria, propia de los países del sur y que es desbordada por los movimientos de población incontrolados. Así, la cuestión a dilucidar es la consistente en establecer qué adaptaciones son necesarias respecto de los mecanismos jurídicos para dar solución a las nuevas realidades sociales en la materia, cuestión que debe ser abordada tanto en los foros internacionales como en sede interna.”

Su previsión normativa está en el artículo 33 de la Convención32: CAMPS MIRABET, Núria, ed. El Derecho internacional ante las migraciones forzadas: refugiados, desplazados y otros migrantes involuntarios. España: Edicions de la Universitat de Lleida, 2005. Disponible en: <http://0-site.ebrary. com.fama.us.es/lib/unisev/reader.action?docID=10732756#>. Acceso en: 11/03/2016. 32 Disponible en: <http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-1978-26331>. Acceso en: 10/03/2016. 31

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“Artículo 33. Prohibición de expulsión y de devolución (‘refoulement’). 1. Ningún Estado Contratante podrá, por expulsión o devolución, poner en modo alguno a un refugiado en las fronteras de territorios donde su vida o su libertad peligre por causa de su raza, religión, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social o de sus opiniones políticas. 2. Sin embargo, no podrá invocar los beneficios de la presente disposición el refugiado que sea considerado, por razones fundadas, como un peligro para la seguridad del país donde se encuentra o que, habiendo sido objeto de una condena definitiva por delito particularmente grave, constituya una amenaza para la comunidad de tal país.”

Conviene en este momento reforzar que el acto de concesión del refugio tiene carácter declaratorio, pues refugiado es aquel que cumple los requisitos previstos en la Convención. El acto entonces se basa en su situación de hecho que preexiste al reconocimiento formal estatal. Es necesario destacar que la expresión “en modo alguno” prevista en el artículo tiene por propósito evitar cualquier forma de salida forzada, lo que incluye extradiciones o deportaciones ilegales. También el uso del término” territorios” en vez de “Estados” visa a garantizar más amplia protección, pues no importa el estatus político o legal del destino, mientras este contenga una realidad material de serios riesgos. Los límites de configuración de esta amenaza están en que esté basada en criterios de opinión política, grupos sociales, nacionalidad, religión o raza. La práctica y la doctrina han mostrado que estos parámetros deben ser vistos como bases mínimas de identificación para no restringir demasiado el ámbito de protección de los refugiados con inspiración en los preceptos de la Declaración Universal de los Derechos Humanos de 1948. Finalmente, es relevante notar que la Convención incluyó una especie de válvula de escape para los Estados al prever que estos pueden, como excepción, rechazar a personas que por razones fundadas representen un peligro para la nación y para la seguridad interna, que hayan sufrido condenas por crímenes graves o incluso

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sean una amenaza para la comunidad nacional. Es un precepto importante sobre todo en tiempos de crímenes graves contra la humanidad como han ocurrido en los últimos años. Esto da poder a los Estados europeos (con auxilio de sus órganos de inteligencia) para rechazar a individuos indeseables y filtrar los solicitudes de refugio para rechazar e incluso arrestar a personas involucradas en actos u organizaciones terroristas. Es una excepción que refuerza la utilización de la regla para la manutención de la protección de las personas que verdaderamente necesitan ayuda en el plano internacional. Finalmente, en cuanto a los demás derechos, la Convención incluye un amplio abanico de importantes prerrogativas: “La Convención de 1951, que define quien es un refugiado, contiene una serie de sus derechos y también pone de relieve sus obligaciones hacia el país de acogida. La piedra angular de la Convención es el principio de no devolución. De acuerdo con este principio, un refugiado no debe ser devuelto a un país donde se enfrenta a graves amenazas a su vida o su libertad. Esta protección no puede reclamarse por los refugiados que están considerados un peligro razonable para la seguridad del país, que hayan sido condenados por un delito particularmente grave o que se consideren un peligro para la comunidad. Los derechos contenidos en la Convención de 1951 incluyen: El derecho a no ser expulsado, excepto bajo ciertas condiciones estrictamente definidas; El derecho a no ser castigado por entrada ilegal en el territorio de un Estado contratante; El derecho al empleo remunerado; El derecho a la vivienda; El derecho a la educación pública; El derecho a la asistencia pública; El derecho a la libertad de religión; El derecho al acceso a los tribunales; El derecho a la libertad de circulación dentro del territorio; El derecho a emitir documentos de identidad y de viaje. Algunos derechos básicos, incluido el derecho a ser protegidos contra la devolución, se aplican a todos los refugiados. Un refugiado adquiere el derecho a otros derechos cuanto más

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tiempo permanezca en el país anfitrión, derecho basado en el reconocimiento de que cuanto más tiempo permanece en calidad de refugiado, más derechos necesita.”33

Siendo así, analizado el tratamiento normativo de su situación, se sabe que hoy la situación de los refugiados demuestra que las decisiones de solicitud de refugio son aceptadas teniendo en cuenta las circunstancias culturales, políticas y sociales de los candidatos, lo que puede crear estereotipos, con una fuerte tendencia para prejuicios y representaciones equivocadas acerca de personas y sus comunidades. El funcionario encargado de tal tarea hace un análisis que muestra su visión acerca de las condiciones de protección de los Derechos Humanos en otros países. En este contexto, hay otro problema contemporáneo que consiste en la concepción de que los inmigrantes representan una amenaza a la identidad cultural de los países europeos. Por esto, bajo el discurso de la necesidad de proteger su seguridad nacional y sus valores culturales, algunos países aprueban reglas de seguridad que fijan criterios sobre quienes puedan entrar en sus territorios o quienes tendrán derecho de ejercer la ciudadanía. Todo esto refleja diferentes puntos de vista acerca de cómo perciben la llegada de refugiados, muchas veces considerando tal flujo como una amenaza a la seguridad interna o incluso una causa de inestabilidad política.34 33 Disponible en: <http://www.un.org/es/events/refugeeday/helping.shtml>. Acceso en: 10/03/2016. 34 La Vanguardia. Historias del mundo. Guerra de albóndigas en Dinamarca. “Dinamarca ha ocupado las portadas de todos periódicos por su polémica ley que permite confiscar dinero y objetos de valor a los refugiados, . Una norma considerada cruel e inhumana y que ha sido rápidamente condenada por la propia ONU y numerosas organizaciones solidarias. Pero no es ni de lejos el único ejemplo del combate que la ultraderecha viene liderando contra la inmigración, especialmente la musulmana, en esta pequeña nación del norte de Europa. La última anécdota la encontramos en la localidad de Randers, en el centro del país, donde hace unos días se aprobó una ordenanza que obliga a las instituciones públicas a servir cerdo en su menú.La medida, impulsada por el Partido Popular Danés, contrario a la inmigración, busca preservar la identidad a través de un ingrediente, el cerdo, considerado típico de la gastronomía nacional. Los populistas, pues, son los verdaderos artífices de la nueva ley que ordena confiscar los bienes de valor

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Otras veces los inmigrantes son vistos como un peso para la situación socio-económica de cada país35. Son rechazados como personas socialmente indeseables36, minorías étnicas o criminales que fueron echados de sus países de origen por ser una masa teóricamente sostenida por la economía nacional. Sin embargo, todo este esfuerzo de algunos europeos parece ser en vano, pues la creación de barreras e implementación de procedimientos restrictivos de admisión no van a frenar los flujos migratorios. Solo una toma de consciencia de la necesidad de cooperación internacional para el tratamiento del problema podrá crear camino hacia su solución. Se sabe, pues, que en Derecho Internacional el concepto de soberanía ha sufrido una gran transformación a lo largo de las últimas décadas, sobre todo con el impacto proveniente del

superior a las 10.000 coronas (unos 1.340 euros) a los refugiados. Son normas simbólicas que, más que atajar una problemática real, lo que buscan es lanzar un mensaje de hostilidad hacia los inmigrantes.” Disponible en: <http://www. lavanguardia.com/internacional/20160203/301857911685/guerra-albondigasdinamarca.html>. Acceso en: 11/03/2016. 35 El País. Hungría cierra otra frontera y fuerza a los refugiados a buscar nuevas rutas. Disponible en: <http://internacional.elpais.com/internacional/2015/10/16/ actualidad/1445019134_419058.html>. Acceso en: 11/03/2016. 36 Le Monde: La justice autorise l’expulsion des migrants de la zone sud de la ‘jungle’ de Calais: “Le tribunal administratif de Lille a rejeté, jeudi 25 février, le recours des associations qui s’opposaient à l’évacuation d’une partie du camp de Calais. L’expulsion de la zone sud de la ‘jungle’ ne s’appliquera cependant pas aux ‘lieux de vie’. Selon l’ordonnance, il s’agit des ‘lieux de culte, d’une école, d’une bibliothèque, d’un abri réservé à l’accueil des femmes et des enfants, des théâtres, d’un espace d’accès au droit, et d’un espace dédié aux mineurs’. Ce sont des lieux ‘soigneusement aménagés qui répondent à un besoin réel’, note la juge. Huit associations (Emmaüs, Fnars, Médecins du monde…) avaient saisi la justice en référé à ce sujet, arguant que l’opération de démantèlement, prévue mercredi, avait été décidée sans proposer de solutions de remplacement suffisantes. Les organisations soulignaient en outre que le nombre de migrants concernés par l’évacuation, de l’ordre d’un millier selon l’Etat, était en réalité plus de trois fois plus élevé. Après l’annonce de la décision du tribunal administratif de Lille, les associations ont décidé de se pourvoir en cassation, mais la procédure n’est pas suspensive.” Disponible en: <http://www.lemonde.fr/ police-justice/article/2016/02/25/la-justice-autorise-l-expulsion-des-migrantsde-la-zone-sud-de-la-jungle-de-calais_4871825_1653578.html>. Acceso en: 11/03/2016.

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surgimiento de los tratados de Derechos Humanos. Aunque haya todavía en la comunidad internacional una práctica de respeto a la territorialidad, a la soberanía y a la autonomía estatal, no se puede negar la presencia de una fuerte tendencia de construcción de un espacio planetario de cooperación de rompe las tradicionales fronteras de los países. Lo que pasa es que los avances son todavía modestos. La cooperación internacional aún camina despacio hacia el enfrentamiento de la crisis humanitaria de los refugiados y depende mucho de las iniciativas asistenciales de los Estados. Existe la posibilidad siempre presente de actuación del ACNUR en su labor de supervisar el cumplimiento de las normas de la Convención de 1951, pero su autoridad e influencia sobre los Estados sigue no siendo sustancial. Se ve entonces que tal responsabilidad y sobre todo la creación de mecanismos imperativos no puede ser considerada solo incumbencia de este órgano de la ONU. Corresponde a los Estados garantizar que los preceptos de la Convención sean obedecidos, pues el ACNUR no dispone de todas las herramientas y el poder de los Estados para ejercer la suficiente presión. En este campo, merece la pena mencionar que determinados organismos internacionales también pueden ejercer su fuerza práctico-política para conseguir la aquiescencia de Estados en el cumplimiento de la protección de los derechos de los refugiados. Se sabe pues, por ejemplo, que el Consejo de Seguridad de la ONU37 tiene gran poder para aplicar sanciones efectivas a países que no obedezcan las normas internacionales. Como el tema de los Derechos Humanos tiene relación también con la protección de la paz y de la seguridad mundial38, este órgano y los Estados pueden El País: El Consejo de Seguridad impone nuevas sanciones a Corea del Norte, Disponible en: <http://internacional.elpais.com/internacional/2016/03/02/ actualidad/1456934249_378804.html>. Acceso en: 11/03/2016. 38 GARCÍA, Romualdo Bermejo; DÍAZ, Eugenia López-Jacoiste: De la Intervención por causas humanitarias a la Responsabilidad de Proteger. Fundamentos, similitudes y diferencias. Dialnet. Unirioja. 2013. “La práctica internacional, 37

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ejercer presión eficaz sobre la opinión pública global y sobre la comunidad internacional, sobre todo al verse que el desarrollo de los Derechos Humanos es desde hace décadas un factor de tensión sobre el concepto antiguo y clásico de soberanía. No se puede esperar que solo un órgano como el ACNUR, con sus limitaciones políticas y de recursos, pueda solucionar la situación de crisis humanitaria vivida hoy por Europa. Debe haber la creación de mecanismos eficaces que sean una solución práctica y jurídica para la cuestión. Por lo tanto, se constata que la importancia y el espacio que los refugiados tienen en el contexto del Derecho Internacional actual tiene todavía un largo camino por recorrer. Las concepciones clásicas de soberanía no encajan en un mundo tan marcado por el fenómeno de la globalización tecnológica, económica, socio-política y cultural en que vivimos. Los argumentos de insumisión a ninguna autoridad exterior o de autonomía jurídica plena no pueden ser aceptados en el contexto de derechos de la humanidad, siendo la solidaridad uno de los valores más caros al Derecho Internacional de los Derechos Humanos. Personas en situación de drama personal y humanitario, que huyen de sus países de origen ya destruidos por guerras donde ni tanto en el derecho internacional clásico como en el contemporáneo, nos ofrece abundantes casos en los que la comunidad internacional no solo se ha conmovido ante ciertas atrocidades cometidas por parte de algunos estados, tanto en tiempo de paz como de guerra (conflicto armado), sino que en algunos de ellos se llegó a intervenir a pesar de que dicha comunidad internacional no contaba con un sistema institucionalizado en relación con el uso de la fuerza. Claro está, intervenciones denominadas ya en esa época de derecho internacional clásico como ‘humanitarias’ o por ‘causas de humanidad’(8) se llevaban a cabo por algún o algunos estados, y no planteaban en realidad serios problemas, ya que además no existía una prohibición general del uso de la fuerza. Conviene apuntar que, al margen de esta cuestión, los países que recurrían a esta figura, para impedir por la fuerza armada que se siguieran cometiendo esas atrocidades, lo hacían convencidos de que el derecho internacional les otorgaba este derecho de intervención. En efecto, las raíces de esta figura remontan, como se sabe, al concepto de ‘guerra justa’, sobre todo en Francisco de Vitoria y Suárez invocando la intervención a favor de los inocentes(9).” Disponible en: <https://dialnet.unirioja.es/descarga/ articulo/4173276.pdf>. Acceso en: 11/03/2016.

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siquiera hay hospitales o sus propias casas39 tienen derecho a una protección garantizada por convenciones internacionales. El rol del Derecho Internacional de los Refugiados es exactamente fortalecer el amparo a estas personas que no pueden contar con el apoyo soberano de sus países de origen. Así que el principio de non-refoulement se mantiene como importante instituto jurídico pues no representa una negación de soberanía del país de acogida, que mantiene su posibilidad de rechazar terroristas o criminales por ejemplo. Lo que garantiza el principio es que un refugiado no será expulsado de cualquier Estado cuando este acto de retorno forzado pueda significar riesgo para su libertad o su vida. La realidad hoy en día, sin embargo, muestra situaciones de refugiados en un limbo jurídico como lo que pasa en la frontera entre Hungría y Serbia. 40 ACNUR: Millones de sirios necesitan un refugio. “Tras más de cuatro años de guerra en Siria, millones de personas han tenido que huir y abandonar sus casas y todo lo que tenían para intentar buscar seguridad en otros países. La emergencia de los refugiados sirios es una de las mayores crisis humanitarias de nuestro tiempo y las necesidades de estas familias siguen aumentando. Hombres, mujeres, niños, ancianos, enfermos...Todos han huido de un terrible conflicto que ha generado ya más de 4 millones de refugiados. Los países limítrofes están al límite, miles de familias están intentando sobrevivir como pueden en condiciones muy difíciles y muchos refugiados están poniendo en peligro su vida tratando de llegar a Europa.” Disponible en: <https://www.eacnur.org/emergencia/refugiados-sirios-necesitanayuda?gclid=CO-E-PrQuMsCFcFAGwodYq0O4g>. Acceso en: 11/03/2016. 40 Agencia EFE: “Belgrado ha advertido de que no permitirá que Hungría devuelva a los refugiados a su territorio, y si los refugiados no pueden entrar tampoco en Hungría quedarían varados en un “limbo legal”, advirtió la Agencia de Naciones Unidas para los Refugiados (ACNUR). “Los refugiados que se encuentran entre las fronteras húngara y serbia se encuentran en una trampa” de difícil salida, aseguró a Efe Ernö Simon, portavoz de ACNUR en Budapest. El ex primer ministro húngaro, el socialdemócrata Ferenc Gyurcsány, ahora en la oposición, resumió la situación a Efe tras visitar el paso fronterizo de Horgos: “No podrían salir de las zonas de tránsito, no tendrían permiso para entrar en Hungría y los serbios no les permitirían volver. Estarían atrapados entre dos fuerzas”. Por otra parte, la Policía húngara hizo hoy las primeras detenciones de refugiados en aplicación de la dura ley migratoria que entró en vigor la pasada medianoche y que fija hasta tres años de cárcel por entrar en el país sin la documentación en regla.” Disponible en: <http:// www.efe.com/efe/espana/mundo/los-refugiados-quedan-atrapados-en-unlimbo-legal-entre-hungria-y-serbia/10001-2712441>. Acceso en: 10/03/2016, 39

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En este contexto práctico, lo que ha pasado es que si un Estado no desea o no está dispuesto a recibir una persona en su territorio, él busca una salida alternativa como remitir el refugiado a otro país. Pero sí se constata la situación de falta de tutela de los refugiados tal acogida habrá sido de poca duración y poco efectiva.

3 Conclusión Por lo tanto, resulta necesario cambiar la práctica actual, pues esta no se traduce en un amparo o ayuda para personas que verdaderamente la necesitan. Si se considera que el individuo no tiene derecho de recibir el asilo (como ha sido la conducta de algunos países europeos), teniendo el Estado poder discrecional de conceder o no la acogida y determinar su contenido y forma, millares de personas se quedarán desamparadas, como ha pasado en el invierno 2015/2016.41 Por su parte, el ACNUR sigue con su tarea de supervisar la aplicación de las medidas previstas en la Convención de 1951, pero depende de la voluntad política de los Estados para la implementación real de actos de defensa de los refugiados. La creación de órganos supranacionales y de un sistema de protección internacional fue la salida hallada por los Estados en El Periódico Internacional. La travesía a –17º. “Parecen imágenes invernales corrientes: familias junto a campos nevados y paisajes cubiertos de blanco. No lo son. Son las escenas más crudas de un viaje cada vez más complicado. Son los campos que separan Slanishte, en el norte de Macedonia, de Miratovac, en el sur de Serbia. Es un sendero de diez kilómetros sin iluminación ni pavimentación alguna que conecta ilegalmente ambos países. Es un camino en el que taxistas piratas serbios tratan de hacer negocio con la desesperación de los refugiados cobrándoles precios disparatados por ahorrarles unos pocos pasos de camino. Cuando EL PERIÓDICO estuvo allí a mediados de noviembre, el termómetro marcaba un solo dígito y las familias se desesperaban por encontrar refugio en alojamientos deficientes de la serbia Presevo al precio de un buen hotel. Muchos, por falta de medios o de disponibilidad en estos establecimientos, dormían en la calle. El pasado fin de semana, las temperaturas cayeron hasta los –17ºC.” Disponible en: <http://www.elperiodico.com/es/noticias/internacional/frio-las-nuevas-trabasrecrudecen-invierno-los-refugiados-los-balcanes-4828303>. Acceso en: 11/03/2016.

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el contexto posterior a la Segunda Guerra para resolver el drama que vivía Europa entonces, con millones de personas expatriadas. En este momento histórico surgió el ACNUR. Pero, como aquí se ha demostrado, hace falta tomar de medidas más eficaces, no siendo suficiente el tratamiento que la cuestión ha recibido contemporáneamente. Depender solamente de la voluntariedad de los Estados para la implementación de esfuerzos y creación de una agenda política interna ha dado al Derecho Internacional de los Refugiados poca efectividad. Así que la resistencia de la comunidad internacional a reconocer autoridad efectiva a los órganos internacionales competentes en la materia y aceptar como ius cogens sus determinaciones solo ha creado más problemas para la consolidación del sistema. Se ve pues que crear límites al régimen internacional de protección y atribuir la responsabilidad exclusiva de enfrentamiento del problema al ACNUR en la aplicación de sus preceptos es dejar de concebir la enorme importancia del rol de los Estados, cuyas prácticas diplomáticas multilaterales e iniciativas pueden eficazmente frenar los actos de abusos de los derechos humanos. En este ámbito, se percibe que la cifra de individuos que desean abandonar sus países se va a mantener mayor que el número de Estados dispuestos a recibirlos. Sin embargo, cada vez más la inmigración es concebida por los Estados como una amenaza a su seguridad nacional. Debe haber entonces un esfuerzo auténtico para la imposición de mecanismos vinculantes para Estados e individuos. Solo la cooperación internacional y el reparto de responsabilidades entre los Estados harán posible un auxilio auténtico y comprensivo a los refugiados. Y para lidiar con estos desplazamientos en masa de millares de exiliados, nuevos mecanismos y nuevas formas de ver el problema deberán ser adoptados, mientras antiguos conceptos tradicionales clásicos como el de soberanía estarán sujetos a fuertes transformaciones.

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Os fóruns promovidos pela AJUFE A Ajufe é protagonista na elaboração de eventos no formato de Fórum, modelo consagrado pelos resultados obtidos e efetividade alcançada. A dinâmica dos Fóruns consiste em apresentar, por meio de painéis, soluções teóricas e práticas para os rumos da justiça no Brasil e, em especial, propostas de uniformização dos procedimentos aplicáveis no julgamento de processos similares de competência da Justiça Federal, bem como de rotinas administrativas do sistema de justiça. Em eventos dessa natureza, os participantes dividem-se em grupos temáticos para debaterem e elaborarem enunciados, recomendações e deliberações para que possam contribuir para a solução do processamento e julgamento das demandas similares dentro de determinado tema, e, sobretudo, para a melhoria da administração da justiça em conectividade com a dinâmica das atividades contemporâneas. Além de elaborar novas propostas, os Fóruns destinam-se também à revisão dos enunciados aprovados em eventos anteriores, de modo a adequá-los às constantes modificações a que se submete o Direito e a prática judiciária, a fim de se assegurar uma prestação jurisdicional sempre justa e célere, conforme os ditames constitucionais, além de servir como suporte orientativo das atividades jurisdicionais e administrativas dos magistrados federais brasileiros. Por fim, os enunciados propostos são apresentados em sessão plenária e submetidos à votação, podendo ser aprovados ou não.

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O documento final é publicado e entregue aos órgãos superiores do Poder Judiciário, como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho da Justiça Federal (CJF) e os Tribunais Regionais Federais (TRFs). A seguir, transcrevem-se os enunciados do V Fórum Nacional dos Juízes Federais Criminais (Fonacrim), do XIII Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (Fonajef), do II Fonacon e do II Fórum Nacional de Execuções Fiscais (Fonef).

V FONACRIM SÃO PAULO (SP) – 2016 Enunciados aprovados 1. Em caso de foro por prerrogativa de função, a reunião de processos por conexão ou continência constitui medida excepcional (aprovado). 2. Não viola o princípio da presunção de inocência a execução da pena após decisão condenatória proferida em 2º grau de jurisdição (aprovado). 3. O início da execução da pena após decisão penal condenatória proferida em 2º grau de jurisdição tem amparo na interpretação sistemática da Constituição (art. 5º, LVII e LXVI), do Código de Processo Penal (art. 283 c/c art. 637) e nos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil (aprovado). 4. Compõe ônus da delegação pública a realização, pelos cartórios extrajudiciais, dos atos necessários à instrução de feitos criminais, nos termos dos artigos 1º e 2º do Decreto-lei nº 1.537/77, recepcionado pelo artigo 236, § 2º, da CF/88 (aprovado). 5. À luz do artigo 798 do CPP, o artigo 220 do CPC não se aplica ao processo penal (aprovado).

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6. A regra prevista no artigo 12 do CPC não se aplica ao processo penal (aprovado). 7. Em se tratando de prisão em flagrante, é válido o acesso a conversas e dados contidos em dispositivo informático ou de telecomunicação, inclusive em relação a interlocutores e/ou terceiros mencionados, desde que haja autorização judicial ou consentimento do detentor (aprovado). 8. A autorização judicial para busca e apreensão em determinada localidade inclui a apreensão de quaisquer dispositivos informáticos ou de telecomunicações, permitindo a busca pessoal naqueles que se encontrem no local (aprovado). 9. A negativa de fornecimento de informações judicialmente requisitadas sujeita-se à imposição de multa (astreintes), bloqueio de ativos, de transferências internacionais e prisão, assim como quaisquer outras medidas judiciais necessárias ao cumprimento da decisão (aprovado). 10. As astreintes fixadas no processo penal, em razão do descumprimento de ordem judicial, não possuem natureza penal e fundam-se no artigo 536, § 1º, do CPC, não tendo destinação legal específica (aprovado). Recomendações 1. Recomenda-se a redução do número de cargos públicos com foro por prerrogativa de função, mantendo-se apenas aqueles cuja decisão tenha grande impacto na estabilidade política nacional (aprovado). 2. Recomenda-se a alteração do regimento interno dos Tribunais, atribuindo a órgão fracionário especializado em matéria penal competência para processar e julgar autoridades com foro por prerrogativa de função (aprovado). 3. Recomenda-se a imediata aprovação de lei que preveja a ação de extinção civil de domínio como instrumento de combate à criminalidade organizada que possibilite a retirada de valores da esfera de disponibilidade dos agentes, independentemente da condenação penal transitada em julgado (aprovado).

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4. A criação do instituto do Juiz de Garantias previsto no projeto de Lei do Novo Código de Processo Penal não se justifica seja porque comprometerá a efetividade da jurisdição criminal, seja porque já existem normas suficientes para garantir a imparcialidade do julgamento (aprovado). 5. Recomendar à Diretoria da AJUFE que atue no Conselho Nacional de Justiça a fim de assegurar a inaplicabilidade da Resolução CNJ n. 244/2016 ao processo penal (aprovado). 6. A execução de medidas coercitivas decorrentes do descumprimento de decisão judicial por terceiros dar-se-á em autos apartados, que não contenham informações sobre as investigações em andamento (art. 536, § 1º, do CPC, c/c art. 3º do CPP (aprovado). 7. Recomenda-se que a AJUFE elabore proposta de autorização legislativa, no sentido de que provedores de aplicativos de comunicação assegurem a utilização de tecnologias que permitam o acesso ao conteúdo das conversas, mediante requisição judicial, sob pena de proibição de funcionamento do serviço no Brasil (aprovado).

XIII FONAJEF RECIFE (PE) – 2016 Enunciado nº 1 O julgamento liminar de mérito não viola o princípio do contraditório e deve ser empregado na hipótese de decisões reiteradas de improcedência pelo juízo, bem como nos casos que dispensem a fase instrutória, quando o pedido contrariar frontalmente norma jurídica (Revisado no XI FONAJEF). Enunciado nº 2 Nos casos de julgamentos de procedência de matérias repetitivas, é recomendável a utilização de contestações depositadas na

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Secretaria, a fim de possibilitar a imediata prolação de sentença de mérito (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 3 A auto intimação eletrônica atende aos requisitos das Leis nºs 10.259/2001 e 11.419/2006 e é preferencial à intimação por e-mail. (Revisado no IV FONAJEF). Enunciado nº 4 Na propositura de ações repetitivas ou de massa, sem advogado, não havendo viabilidade material de opção pela autointimação eletrônica, a parte firmará compromisso de comparecimento, em prazo pré-determinado em formulário próprio, para ciência dos atos processuais praticados (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 5 As sentenças e antecipações de tutela devem ser registradas tão-somente em meio eletrônico (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 6 Havendo foco expressivo de demandas em massa, os juizados especiais federais solicitarão às Turmas Recursais e de Uniformização Regional e Nacional o julgamento prioritário da matéria repetitiva, a fim de uniformizar a jurisprudência a respeito e de possibilitar o planejamento do serviço judiciário (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 7 Nos Juizados Especiais Federais o procurador federal não tem a prerrogativa de intimação pessoal (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 8 É válida a intimação do procurador federal para cumprimento da obrigação de fazer, independentemente de ofício, com base no artigo 461 do Código de Processo Civil (Aprovado no II FONAJEF).

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Enunciado nº 9 Além das exceções constantes do § 1º do artigo 3º da Lei n. 10.259, não se incluem na competência dos Juizados Especiais Federais, os procedimentos especiais previstos no Código de Processo Civil, salvo quando possível a adequação ao rito da Lei n. 10.259/2001 (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 10 O incapaz pode ser parte autora nos Juizados Especiais Federais, dando-se-lhe curador especial, se ele não tiver representante constituído (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 11 No ajuizamento de ações no JEF, a microempresa e a empresa de pequeno porte deverão comprovar essa condição mediante documentação hábil (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 12 No Juizado Especial Federal, não é cabível o pedido contraposto formulado pela União Federal, autarquia, fundação ou empresa pública federal (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 13 Não são admissíveis embargos de execução nos JEFs, devendo as impugnações do devedor ser examinadas independentemente de qualquer incidente (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 14 Nos Juizados Especiais Federais, não é cabível a intervenção de terceiros ou a assistência (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 15 Na aferição do valor da causa, deve-se levar em conta o valor do salário mínimo em vigor na data da propositura de ação (Aprovado no II FONAJEF).

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Enunciado nº 16 Não há renúncia tácita nos Juizados Especiais Federais para fins de fixação de competência (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 17 Não cabe renúncia sobre parcelas vincendas para fins de fixação de competência nos Juizados Especiais Federais (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 18 No caso de litisconsorte ativo, o valor da causa, para fins de fixação de competência deve ser calculado por autor (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 19 Aplica-se o parágrafo único do art. 46 do CPC em sede de Juizados Especiais Federais (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 20 Não se admite, para firmar competência dos juizados especiais federais, o fracionamento de parcelas vencidas, ou de vencidas e vincendas, decorrentes da mesma relação jurídica material (Revisado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 21 As pessoas físicas, jurídicas, de direito privado ou de direito público estadual ou municipal podem figurar no polo passivo, no caso de litisconsórcio necessário (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 22 A exclusão da competência dos Juizados Especiais Federais quanto às demandas sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos somente se aplica quanto a ações coletivas (Aprovado no II FONAJEF).

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Enunciado nº 23 Nas ações de natureza previdenciária e assistencial, a competência é concorrente entre o JEF da Subseção Judiciária e o da sede da seção judiciária (art. 109, § 3º da CF/88 e Súmula 689 do STF) (Cancelado no V FONAJEF). Enunciado nº 24 Reconhecida a incompetência do Juizado Especial Federal, é cabível a extinção de processo, sem julgamento de mérito, nos termos do art. 1 da Lei n. 10.259/2001 e do art. 51, III, da Lei n. 9.099/95, não havendo nisso afronta ao art. 12, § 2º, da Lei 11.419/06. (Revisado no V FONAJEF) Enunciado nº 25 No ato do cadastramento eletrônico, as partes se comprometem, mediante adesão, a cumprir as normas referentes ao acesso (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 26 Nos Juizados Virtuais, considera-se efetivada a comunicação eletrônica do ato processual, inclusive citação, pelo decurso do prazo fixado, ainda que o acesso não seja realizado pela parte interessada (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 27 Não deve ser exigido o protocolo físico da petição encaminhada via internet ou correio eletrônico ao Juizado Virtual, não se aplicando as disposições da Lei n 9.800/99 (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 28 É inadmissível a avocação, por Tribunal Regional Federal, de processos ou matéria de competência de Turma Recursal, por flagrante violação ao art. 98 da Constituição Federal (Aprovado no II FONAJEF).

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Enunciado nº 29 Cabe ao Relator, monocraticamente, atribuir efeito suspensivo a recurso, não conhecê-lo, bem assim lhe negar ou dar provimento nas hipóteses tratadas no artigo 932, IV, ‘c’, do CPC, e quando a matéria estiver pacificada em súmula da Turma Nacional de Uniformização, enunciado de Turma Regional ou da própria Turma Recursal (Revisado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 30 A decisão monocrática referendada pela Turma Recursal, por se tratar de manifestação do colegiado, não é passível de impugnação por intermédio de agravo interno (Revisado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 31 O recurso de agravo interposto contra decisão que nega seguimento a recurso extraordinário pode ser processado nos próprios autos principais, dispensando-se a formação de instrumento no âmbito das Turmas Recursais (Cancelado no V FONAJEF). Enunciado nº 32 A decisão que contenha os parâmetros de liquidação atende ao disposto no art. 38, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95. Enunciado nº 33 Qualquer membro da Turma Recursal pode propor emissão de enunciado o qual terá por pressuposto demanda excessiva no JEF acerca de determinada matéria ou quando verificada, o julgamento de caso concreto, a necessidade de uniformização de questão processual. A aprovação, alteração e cancelamento de enunciado sujeita-se ao quórum qualificado estabelecido pela Turma Recursal (Cancelado no IV FONAJEF) Enunciado nº 34 O exame de admissibilidade do recurso poderá ser feito apenas pelo relator, dispensado o prévio exame no primeiro grau (Cancelado no XII FONAJEF).

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Enunciado nº 35 A execução provisória para pagar quantia certa é inviável em sede de juizado, considerando outros meios jurídicos para assegurar o direito da parte (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 36 O momento para oferecimento de contrarrazões de recurso é anterior ao seu exame de admissibilidade (Cancelado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 37 Excepcionalmente, na ausência de Defensoria Pública, pode ser nomeado advogado dativo ou voluntário, ou ser facultado à parte o preenchimento de termo de recurso, por analogia ao disposto no Código de Processo Penal (Cancelado no IV FONAJEF). Enunciado nº 38 A qualquer momento poderá ser feito o exame de pedido de gratuidade com os critérios da Lei nº 1.060/50. Para fins da Lei nº 10.259/01, presume-se necessitada a parte que perceber renda até o valor do limite de isenção do imposto de renda (Revisado no IV FONAJEF). Enunciado nº 39 Não sendo caso de justiça gratuita, o recolhimento das custas para recorrer deverá ser feito de forma integral nos termos da Resolução do Conselho da Justiça Federal, no prazo da Lei n 9.099/95 (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 40 Havendo sucumbência recíproca, independentemente da proporção, não haverá condenação em honorários advocatícios (Cancelado no V FONAJEF).

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Enunciado nº 41 Devido ao princípio da celeridade processual, não é recomendada a suspensão dos processos idênticos em primeiro grau, quando houver incidente de uniformização de jurisprudência no STJ ou recurso extraordinário pendente de julgamento (Cancelado no V FONAJEF). Enunciado nº 42 Em caso de embargos de declaração protelatórios, cabe a condenação em litigância de má-fé (princípio da lealdade processual) (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 43 É adequada a limitação dos incidentes de uniformização às questões de direito material (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 44 Não cabe ação rescisória no JEF. O artigo 59 da Lei n 9.099/95 está em consonância com os princípios do sistema processual dos Juizados Especiais, aplicando-se também aos Juizados Especiais Federais (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 45 Havendo contínua e permanente fiscalização do juiz togado, conciliadores criteriosamente escolhidos pelo Juiz, poderão para certas matérias, realizar atos instrutórios previamente determinados, como redução a termo de depoimentos, não se admitindo, contudo, prolação de sentença a ser homologada (Aprovado no II FONAJEF). Enunciado nº 46 A litispendência deverá ser alegada e provada, nos termos do CPC (art. 301), pelo réu, sem prejuízo dos mecanismos de controle desenvolvidos pela Justiça Federal (Aprovado no I FONAJEF).

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Enunciado nº 47 Eventual pagamento realizado pelos entes públicos demandados deverá ser comunicado ao Juízo para efeito de compensação quando da expedição da Requisição de Pequeno Valor (Aprovado no I FONAJEF). Enunciado nº 48 Havendo prestação vencida, o conceito de valor da causa para fins de competência do Juizado Especial Federal é estabelecido pelo art. 260 do CPC (Aprovado no I FONAJEF). Enunciado nº 49 O controle do valor da causa, para fins de competência do Juizado Especial Federal, pode ser feito pelo juiz a qualquer tempo (Aprovado no I FONAJEF). Enunciado nº 50 Sem prejuízo de outros meios, a comprovação da condição sócio econômica do autor pode ser feita por laudo técnico confeccionado por assistente social, por auto de constatação lavrado por oficial de justiça ou através de oitiva de testemunha (Revisado no IV FONAJEF). Enunciado nº 51 O art. 20, parágrafo primeiro, da Lei 8742/93 não é exauriente para delimitar o conceito de unidade familiar (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 52 É obrigatória a expedição de Requisição de Pequeno Valor – RPV em desfavor do ente público para ressarcimento de despesas periciais quando este for vencido (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 53 Não há prazo em dobro para a Defensoria Pública no âmbito dos Juizados Especiais Federais (Aprovado no III FONAJEF).

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Enunciado nº 54 O artigo 515 e parágrafos do CPC interpretam-se ampliativamente no âmbito das Turmas Recursais, em face dos princípios que orientam o microssistema dos Juizados Especiais Federais (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 55 A nulidade do processo por ausência de citação do réu ou litisconsorte necessário pode ser declarada de ofício pelo juiz nos próprios autos do processo, em qualquer fase, ou mediante provocação das partes, por simples petição (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 56 Aplica-se analogicamente nos Juizados Especiais Federais a inexigibilidade do título executivo judicial, nos termos do disposto nos arts. 475-L, § 1º e 741, parágrafo único, ambos do CPC (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 57 Nos Juizados Especiais Federais, somente o recorrente vencido arcará com honorários advocatícios (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 58 Excetuando-se os embargos de declaração, cujo prazo de oposição é de cinco dias, os prazos recursais contra decisões de primeiro grau no âmbito dos Juizados Especiais Federais são sempre de dez dias, independentemente da natureza da decisão recorrida (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 59 Não cabe recurso adesivo nos Juizados Especiais Federais (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 60 A matéria não apreciada na sentença, mas veiculada na inicial, pode ser conhecida no recurso inominado, mesmo não havendo a oposição de embargos de declaração (Aprovado no III FONAJEF). Revista Ajufe

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Enunciado nº 61 O recurso será recebido no duplo efeito, salvo em caso de antecipação de tutela ou medida cautelar de urgência (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 62 A aplicação de penalidade por litigância de má-fé, na forma do art. 55 da Lei nº 9.099/95, não importa na revogação automática da gratuidade judiciária (Revisado no IV FONAJEF). Enunciado nº 63 Cabe multa ao ente público pelo atraso ou não-cumprimento de decisões judiciais com base no art. 461 do CPC, acompanhada de determinação para a tomada de medidas administrativas para apuração de responsabilidade funcional e/ou dano ao erário, inclusive com a comunicação ao Tribunal de Contas da União. Havendo contumácia no descumprimento, caberá remessa de ofício ao Ministério Público Federal para análise de eventual improbidade administrativa (Revisado no XI FONAJEF). Enunciado nº 64 Não cabe multa pessoal ao procurador ad judicia do ente público, seja com base no art. 14, seja no art. 461, ambos do CPC (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 65 Não cabe a prévia limitação do valor da multa coercitiva (astreintes), que também não se sujeita ao limite de alçada dos Juizados Especiais Federais, ficando sempre assegurada a possibilidade de reavaliação do montante final a ser exigido na forma do § 6º do artigo 461 do CPC (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 66 Os Juizados Especiais Federais somente processarão as cartas precatórias oriundas de outros Juizados Especiais Federais de igual competência (Aprovado no III FONAJEF).

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Enunciado nº 67 O caput do artigo 9º da Lei n. 9.099/1995 não se aplica subsidiariamente no âmbito dos Juizados Especiais Federais, visto que o artigo 10 da Lei n. 10.259/2001 disciplinou a questão de forma exaustiva (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 68 O estagiário de advocacia, nos termos do Estatuto da OAB, tão-só pode praticar, no âmbito dos Juizados Especiais Federais, atos em conjunto com advogado e sob responsabilidade deste (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 69 O levantamento de valores e Precatórios, no âmbito dos Juizados Especiais Federais, pode ser condicionado à apresentação, pelo mandatário, de procuração especifica com firma reconhecida, da qual conste, ao menos, o numero de registro do Precatório ou RPV ou o número da conta de depósito, com respectivo valor (Revisado no V FONAJEF). Enunciado nº 70 É compatível com o rito dos juizados Especiais Federais a aplicação do art. 112 da Lei n. 8.213/1991, para fins de habilitação processual e pagamento (Revisado no V FONAJEF). Enunciado nº 71 A parte autora deverá ser instada, na fase da execução, a renunciar ao excedente à alçada do Juizado Especial Federal, para fins de pagamento por Requisições de Pequeno Valor, não se aproveitando, para tanto, a renúncia inicial, de definição de competência (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 72 As parcelas vencidas após a data do cálculo judicial podem ser pagas administrativamente, por meio de complemento positivo (Aprovado no III FONAJEF).

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Enunciado nº 73 A intimação telefônica, desde que realizada diretamente com a parte e devidamente certificada pelo servidor responsável, atende plenamente aos princípios constitucionais aplicáveis à comunicação dos atos processuais (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 74 A intimação por carta com aviso de recebimento, mesmo que o comprovante não seja subscrito pela própria parte, é válida desde que entregue no endereço declarado pela parte (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 75 É lícita a exigência de apresentação de CPF para o ajuizamento de ação no Juizado Especial Federal (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 76 A apresentação de proposta de conciliação pelo réu não induz a confissão (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 77 O ajuizamento da ação de concessão de benefício da seguridade social reclama prévio requerimento administrativo (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 78 O ajuizamento da ação revisional de benefício da seguridade social que não envolva matéria de fato dispensa o prévio requerimento administrativo, salvo quando houver ato oficial da Previdência reconhecendo administrativamente o direito postulado (Revisado no IX FONAJEF). Enunciado nº 79 A comprovação de denúncia da negativa de protocolo de pedido de concessão de benefício, feita perante a ouvidoria da Previ-

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dência Social, supre a exigência de comprovação de prévio requerimento administrativo nas ações de benefícios da seguridade social (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 80 Em juizados itinerantes, pode ser flexibilizada a exigência de prévio requerimento administrativo, consideradas as peculiaridades da região atendida (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 81 Cabe conciliação nos processos relativos a pessoa incapaz, desde que presente o representante legal e intimado o Ministério Público (Aprovado no III FONAJEF). Enunciado nº 82 O espólio pode ser parte autora nos juizados especiais cíveis federais (Aprovado no IV FONAJEF). Enunciado nº 83 O art. 10, caput, da Lei n. 10.259/2001 não autoriza a representação das partes por não advogados de forma habitual e com fins econômicos (Aprovado no IV FONAJEF). Enunciado nº 84 Não é causa de nulidade nos juizados especiais federais a mera falta de intimação das partes da entrega do laudo pericial (Cancelado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 85 Não é obrigatória a degravação, tampouco a elaboração de resumo, para apreciação de recurso, de audiência gravada por meio magnético ou equivalente, desde que acessível ao órgão recursal (Aprovado no IV FONAJEF).

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Enunciado nº 86 A tutela de urgência em sede de turmas recursais pode ser deferida de oficio (Aprovado no IV FONAJEF). Enunciado nº 87 A decisão monocrática proferida por Relator é passível de Agravo Interno (Aprovado no IV FONAJEF). Enunciado nº 88 Não se admite Mandado de Segurança para Turma Recursal, exceto na hipótese de ato jurisdicional teratológico contra o qual não caiba mais recurso. (Revisado no X FONAJEF). Enunciado nº 89 Não cabe processo cautelar autônomo, preventivo ou incidental, no âmbito do JEF (Aprovado no IV FONAJEF). Enunciado nº 90 Os honorários advocatícios impostos pelas decisões do Juizado Especial Federal serão executadas no próprio JEF, por quaisquer das partes. (Aprovado no IV FONAJEF) Enunciado nº 91 Os Juizados Especiais Federais são incompetentes para julgar causas que demandem perícias complexas ou onerosas que não se enquadrem no conceito de exame técnico (art. 12 da Lei 10.259/2001). Enunciado nº 92 Para a propositura de ação relativa a expurgos inflacionários sobre saldos de poupança, deverá a parte autora providenciar documento que mencione o número da conta bancária ou prova de relação contratual com a instituição financeira.

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Enunciado nº 93 Para a propositura de demandas referentes a contas de FGTS anteriores à centralização deverá a parte comprovar que diligenciou ou solicitou os extratos junto à CEF ou à instituição mantenedora das contas vinculadas anteriormente ao período de migração. Enunciado nº 94 O artigo 51, I, da Lei 9.099/95 aplica-se aos JEFs, ainda que a parte esteja representada na forma do artigo 10, caput, da Lei 10.259/01. Enunciado nº 95 Nas ações visando a correção do saldo das cadernetas de poupança, pode o juiz, havendo prova inequívoca de titularidade da conta à época, suprir a inexistência de extratos por meio de arbitramento. Enunciado nº 96 A concessão administrativa do benefício no curso do processo acarreta a extinção do feito sem resolução de mérito por perda do objeto, desde que corresponda ao pedido formulado na inicial. Enunciado nº 97 Cabe incidente de uniformização de jurisprudência quando a questão deduzida nos autos tiver reflexo sobre a competência do juizado especial federal. Enunciado nº 98 É inadmissível o reexame de matéria fática em pedido de uniformização de jurisprudência. Enunciado nº 99 O provimento, ainda que parcial, de recurso inominado afasta a possibilidade de condenação do recorrente ao pagamento de honorários de sucumbência.

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Enunciado nº 100 No âmbito dos Juizados Especiais Federais, a Turma Recursal poderá conhecer diretamente das questões não examinadas na sentença que acolheu prescrição ou decadência, estando o processo em condições de imediato julgamento (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 101 A Turma Recursal tem poder para complementar os atos de instrução já realizados pelo juiz do Juizado Especial Federal, de forma a evitar a anulação da sentença (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 102 Convencendo-se da necessidade de produção de prova documental complementar, a Turma Recursal produzirá ou determinará que seja produzida, sem retorno do processo para o juiz do Juizado Especial Federal (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 103 Sempre que julgar indispensável, a Turma Recursal, sem anular a sentença, baixará o processo em diligências para fins de produção de prova testemunhal, pericial ou elaboração de cálculos (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 104 Cabe à Turma de Uniformização reformar os acórdãos que forem contrários à sua jurisprudência pacífica, ressalvada a hipótese de supressão de instância, em que será cabível a remessa dos autos à Turma de origem para fim de adequação do julgado (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 105 A Turma de Uniformização, ao externar juízo acerca da admissibilidade do pedido de uniformização, deve considerar a presença de similitude de questões de fato e de direito nos acórdãos confrontados (Aprovado no VI FONAJEF).

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Enunciado nº 106 Cabe à Turma Recursal conhecer e julgar os conflitos de competência apenas entre Juizados Especiais Federais sujeitos a sua jurisdição (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 107 Fora das hipóteses do artigo 4º da Lei 10.259/2001, a impugnação de decisões interlocutórias proferidas antes da sentença deverá ser feita no recurso desta (art. 41 da Lei nº 9.099/95) (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 108 Não cabe recurso para impugnar decisões que apreciem questões ocorridas após o trânsito em julgado (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 109 A tempestividade do recurso pode ser comprovada por qualquer meio idôneo, inclusive eletrônico (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 110 A competência das turmas recursais reunidas, onde houver, deve ser limitada à deliberação acerca de enunciados das turmas recursais das respectivas seções judiciárias (Aprovado no VI FONAJEF). Enunciado nº 111 Tratando-se de benefício por incapacidade, o recolhimento de contribuição previdenciária não é capaz, por si só, de ensejar presunção absoluta da capacidade laboral, admitindo-se prova em contrário. (Cancelado no XI FONAJEF) Enunciado nº 112 Não se exige médico especialista para a realização de perícias judiciais, salvo casos excepcionais, a critério do juiz.

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Enunciado nº 113 O disposto no art. 11 da Lei 10.259/2001, não desobriga a parte autora de instruir seu pedido com a documentação que lhe seja acessível junto às entidades públicas rés. Enunciado nº 114 Havendo cumulação de pedidos, é ônus da parte autora a identificação expressa do valor pretendido a título de indenização por danos morais, a ser considerado no valor da causa para fins de definição da competência dos Juizados Especiais Federais. Enunciado nº 115 Para a reunião de processos, a competência funcional dentro dos Juizados Especiais Federais se define em virtude da natureza do pedido do qual decorra a pretensão de indenização por danos morais. Enunciado nº 116 O dever processual, previsto no art. 11 da Lei 10.259/2001, não implica automaticamente a inversão do ônus da prova. Enunciado nº 117 A perícia unificada, realizada em audiência, é válida e consentânea com os princípios informadores dos juizados especiais. Enunciado nº 118 É válida a realização de prova pericial antes da citação, desde que viabilizada a participação das partes. Enunciado nº 119 Além dos casos de segredo de justiça e de sigilo judicial, os documentos digitalizados em processo eletrônico somente serão disponibilizados aos sujeitos processuais, vedado o acesso à consulta pública fora da secretaria do juizado.

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Enunciado nº 120 Não é obrigatória a degravação de julgamentos proferidos oralmente, desde que o arquivo de áudio esteja anexado ao processo, recomendando-se o registro, por escrito, do dispositivo ou acórdão. Enunciado nº 121 Os entes públicos, suas autarquias e empresas públicas não tem legitimidade ativa nos Juizados Especiais Federais. Enunciado nº 122 É legítima a designação do oficial de justiça, na qualidade de longa manus do juízo, para realizar diligência de constatação de situação socioeconômica. Enunciado nº 123 O critério de fixação do valor da causa necessariamente deve ser aquele especificado nos arts. 259 e 260 do CPC, pois este é o elemento que delimita as competências dos JEFs e das Varas (a exemplo do que foi feito pelo art. 2º, § 2º, da Lei 12.153/09). Enunciado nº 124 É correta a aplicação do art. 46 da Lei 9.099/95 nos Juizados Especiais Federais, com preservação integral dos fundamentos da sentença. Enunciado nº 125 É possível realizar a limitação do destaque dos honorários em RPV ou precatório. Enunciado nº 126 Não cabe a presença de advogado em perícia médica, por ser um ato médico, no qual só podem estar presentes o próprio perito e eventuais assistentes técnicos.

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Enunciado nº 127 Para fins de cumprimento do disposto no art. 12, § 2º, da L. n. 10.259/01, é suficiente intimar o INSS dos horários preestabelecidos para as perícias do JEF. Enunciado nº 128 O condomínio edilício, por interpretação extensiva do art. 6º, I, da lei 10.259/01, pode ser autor no JEF. Enunciado nº 129 Nos Juizados Especiais Federais, é possível que o juiz determine que o executado apresente os cálculos de liquidação. Enunciado nº 130 O estabelecimento pelo Juízo de critérios e exigências para análise da petição inicial, visando a evitar o trâmite de ações temerárias, não constitui restrição do acesso aos JEFs. Enunciado nº 131 A Turma Recursal, analisadas as peculiaridades do caso concreto, pode conhecer documentos juntados na fase recursal, desde que não implique apreciação de tese jurídica não questionada no primeiro grau. (Revisado no XI FONAJEF). Enunciado nº 132 Em conformidade com o art. 14, § 9º, da Lei n. 10.259/2001, cabe ao colegiado da Turma Recursal rejulgar o feito após a decisão de adequação de Tribunal Superior ou da TNU (Aprovado no X FONAJEF). Enunciado nº 133 Quando o perito médico judicial não conseguir fixar a data de início da incapacidade, de forma fundamentada, deve-se considerar para tanto a data de realização da perícia, salvo a existência de outros elementos de convicção (Aprovado no X FONAJEF).

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Enunciado nº 134 O cumprimento das ordens judiciais que determinam concessão de medicamentos deve ser feito prioritariamente pela parte ré, evitando-se o depósito de valores para aquisição direta pela parte (Aprovado no X FONAJEF). Enunciado nº 135 A despeito da solidariedade dos entes da federação no âmbito do direito à saúde, a decisão judicial que conceder medicamentos deve indicar, preferencialmente, aquele responsável pelo atendimento imediato da ordem (Aprovado no X FONAJEF). Enunciado nº 136 O cumprimento da decisão judicial que conceder medicamentos deve ser feito prioritariamente pelo Estado ou Município (aquele que detenha a maior capacidade operacional) ainda que o ônus de financiamento caiba à União (Aprovado no X FONAJEF). Enunciado nº 137 Nas ações de saúde, a apresentação pelas partes de formulário padronizado de resposta a quesitos mínimos previamente aprovados por acordo entre o judiciário e entidades afetadas pode dispensar a realização de perícia (Aprovado no X FONAJEF). Enunciado nº 138 A despeito da solidariedade, as decisões judiciais podem indicar a qual da federação incumbe o dispêndio financeiro para atendimento do direito reconhecido, nos termos da Portaria 1.554, de 30 de julho de 2013 do Ministério da Saúde ou outro ato que vier a substituí-la (Aprovado no X FONAJEF). Enunciado nº 139 Não serão redistribuídas a Juizado Especial Federal (JEF) recém-criado as demandas ajuizadas até a data de sua instalação,

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salvo se as varas de JEFs estiverem na mesma sede jurisdicional (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 140 A fixação do valor do dano moral deve representar quantia necessária e suficiente para compensar os danos sofridos pelo autor da demanda, como também para desestimular futuras violações de mesma natureza (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 141 A Súmula 78 da TNU, que determina a análise das condições pessoais do segurado em caso de ser portador de HIV, é extensível a outras doenças igualmente estigmatizantes (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 142 A natureza substitutiva do benefício previdenciário por incapacidade não autoriza o desconto das prestações devidas no período em que houve exercício de atividade remunerada (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 143 Não importa em julgamento extra petita a concessão de benefício previdenciário por incapacidade diverso daquele requerido na inicial (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 144 É cabível recurso inominado contra sentença terminativa se a extinção do processo obstar que o autor intente de novo a ação ou quando importe negativa de jurisdição (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 145 O valor dos honorários de sucumbência será fixado nos termos do artigo 55, da Lei nº 9.099/95, podendo ser estipulado em valor fixo quando for inestimável ou irrisório o proveito econômico

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ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo, observados os critérios do artigo 20, § 3º, CPC (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 146 A Súmula 421 do STJ aplica-se não só à União como também a todos os entes que compõem a Fazenda Pública (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 147 A mera alegação genérica de contrariedade às informações sobre atividade especial fornecida pelo empregador, não enseja a realização de novo exame técnico (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 148 Nas ações revisionais em que se se postula aplicação da tese de direito adquirido ao melhor benefício, é requisito da petição inicial que seja apontada a data em que verificada tal situação (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 149 É cabível, com fundamento no art. 14, p. único, do CPC, a aplicação de multa pessoal à autoridade administrativa responsável pela implementação da decisão judicial (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 150 A multa derivada de descumprimento de antecipação de tutela com base no artigo 461, do CPC, aplicado subsidiariamente, é passível de execução mesmo antes do trânsito em julgado da sentença (Aprovado no XI FONAJEF). Enunciado nº 151 O CPC/2015 só é aplicável nos Juizados Especiais naquilo que não contrariar os seus princípios norteadores e a sua legislação específica (Aprovado no XII FONAJEF).

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Enunciado nº 152 A conciliação e a mediação nos juizados especiais federais permanecem regidas pelas Leis 10.259/2001 e 9.099/1995, mesmo após o advento do novo Código de Processo Civil (Revisado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 153 A regra do art. 489, parágrafo primeiro, do NCPC deve ser mitigada nos juizados por força da primazia dos princípios da simplicidade e informalidade que regem o JEF (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 154 O art. 46, da Lei 9.099/1995, não foi revogado pelo novo CPC (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 155 As disposições do CPC/2015 referentes às provas não revogam as disposições específicas da Lei 10.259/2001, sobre perícias (art. 12), e nem as disposições gerais da Lei 9.099/1995 (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 156 Não se aplica aos juizados especiais a técnica de julgamento não unânime (art. 942, CPC/2015) (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 157 Aplica-se o art. 1.030, parágrafo único, do CPC/2015 aos recursos extraordinários interpostos nas Turmas Recursais do JEF (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 158 Conta-se em dias corridos o prazo para confirmação das intimações eletrônicas (art. 5º, § 3º, Lei 11.419/2006) (Aprovado no XII FONAJEF).

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Enunciado nº 159 Nos termos do enunciado nº 1 do FONAJEF e à luz dos princípios da celeridade e da informalidade que norteiam o processo no JEF, vocacionado a receber demandas em grande volume e repetitivas, interpreta-se o rol do art. 332 como exemplificativo (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 160 Não causa nulidade a não-aplicação do art. 10 do NCPC e do art. 487, parágrafo único, do NCPC nos juizados, tendo em vista os princípios da celeridade e informalidade (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 161 Nos casos de pedido de concessão de benefício por segurado facultativo de baixa renda, a comprovação da inscrição da família no CadÚnico é documento indispensável para propositura da ação, sob pena de extinção sem exame do mérito (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 162 Em caso de incapacidade intermitente, o pagamento de parcelas anteriores à perícia depende da efetiva comprovação dos períodos em que o autor esteve incapacitado (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 163 Não havendo pedido expresso na petição inicial de aposentadoria proporcional, o juiz deve se limitar a determinar a averbar os períodos reconhecidos em sentença, na hipótese de o segurado não possuir tempo de contribuição para concessão de aposentadoria integral (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 164 Julgado improcedente pedido de benefício por incapacidade, no ajuizamento de nova ação, com base na mesma doença, deve o

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segurado apresentar novo requerimento administrativo, demonstrando, na petição inicial, o agravamento da doença, juntando documentos médicos novos (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 165 Ausência de pedido de prorrogação de auxílio-doença configura a falta de interesse processual equivalente à inexistência de requerimento administrativo (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 166 A conclusão do processo administrativo por não comparecimento injustificado à perícia ou à entrevista rural equivale à falta de requerimento administrativo (Aprovado no XII FONAJEF). Enunciado nº 167 Nas ações de benefício assistencial, não há nulidade na dispensa de perícia socioeconômica quando não identificado indício de deficiência, a partir de seu conceito multidisciplinar (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 168 A produção de auto de constatação por oficial de justiça, determinada pelo Juízo, não requer prévia intimação das partes, sob pena de frustrar a eficácia do ato, caso em que haverá o contraditório diferido (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 169 A solução de controvérsias pela via consensual, pré-processual, pressupõe a não distribuição da ação (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 170 Aos conciliadores que atuarem na fase pré-processual não se aplicam as exigências previstas no art. 11 da Lei 13.140/2015 (Aprovado no XIII FONAJEF).

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Enunciado nº 171 Apenas a prescrição médica não é suficiente para o fornecimento de medicamentos e/ou insumos não incluídos nas listas do SUS (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 172 Nas demandas individuais de saúde, a decisão judicial acerca da pretensão de fornecimento de medicamentos, insumos ou procedimentos não fornecidos pelo SUS deve ser fundamentada, sempre que possível, na medicina baseada em evidências (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 173 Nas demandas individuais de saúde veiculando pretensão de fornecimento de medicamentos, insumos ou procedimentos não fornecidos pelo SUS pode o juiz exigir que a parte instrua a demanda com elementos mínimos oriundos da medicina baseada em evidências (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 174 Por falta de previsão legal específica nas leis que tratam dos juizados especiais, aplica-se, nestes, a previsão da contagem dos prazos em dias úteis (CPC/2015, art. 219) (Aprovado no XIII FONAJEF) Enunciado nº 175 A previsão contida no art. 51, § 1º, da Lei 9.099/1995 afasta a aplicação do art. 317 do CPC/2015 no âmbito dos juizados especiais (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 176 É medida contrária à boa-fé e ao dever de cooperação, previstos nos arts. 5º e 6º do CPC/2015, a impugnação genérica a cálculos, sem a indicação concreta dos argumentos que justifiquem a divergência (Aprovado no XIII FONAJEF).

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Enunciado nº 177 A tutela provisória em caráter antecedente não se aplica ao rito dos juizados especiais federais, porque a sistemática de revisão da decisão estabilizada (art. 304 do CPC/2015) é incompatível com os arts. 4º e 6º da Lei nº 10.259/2001 (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 178 Cumpre os requisitos do contraditório e da ampla defesa a concessão de vista do laudo pericial pelo prazo de cinco dias, por analogia ao caput do art. 12 da Lei 10.259/2001 (Aprovado no XIII FONAJEF). Enunciado nº 179 O intervalo entre audiências de instrução (CPC/2015, art. 357, § 9º) é incompatível com o procedimento sumaríssimo (CF, art. 98, I) e com os critérios de celeridade, informalidade, simplicidade e economia processual dos juizados (Lei 9.099/1995, art. 2º) (Aprovado no XIII FONAJEF).

II FONACON FLORIANÓPOLIS (SC) – 2016 1. As Centrais de Conciliação exercem atribuição jurisdicional. 2. As Centrais de Conciliação podem praticar atos instrutórios que visem à operacionalização de composições. 3. Os juízes vinculados às Centrais de Conciliação podem, excepcionalmente, apreciar pedidos de tutela provisória relacionados ao cumprimento de acordos. 4. Não havendo vedação legal expressa, o princípio da indisponibilidade do interesse público não é óbice à conciliação nos conflitos administrativos (art. 3º da Lei 13.140/2015 e art. 334, § 4º, II, CPC/2015).

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5. A falta de prova ou a incerteza quanto à matéria de fato não torna a questão automaticamente intransigível. 6. O estágio supervisionado do ciclo de formação de conciliadores/mediadores da Justiça Federal deverá ser realizado preferencialmente in loco e por supervisores integrantes dos CEJUSCONS. Quando necessário, poderá ser conduzido total ou parcialmente à distância, por videoconferência ou por meio de plataforma virtual (art. 18; parágrafo único, Res. 398/2016). 7. O conteúdo teórico elementar da formação de conciliadores/ mediadores, no âmbito da Justiça Federal, deverá contemplar as particularidades deste ramo da jurisdição (art. 6º, inciso II, Res. 398/2016). 8. A certificação para efeito de atividade jurídica, bem como a manutenção no cadastro do respectivo tribunal, pressupõe dedicação por tempo mínimo pelo conciliador/mediador, consoante as peculiaridades locais. 9. A submissão ao ciclo de formação de formadores em conciliação/mediação demanda, necessariamente, prévia conclusão das partes teórica e prática do ciclo básico e reiterada prática no exercício da atividade. 10. A formação em conciliação/mediação, seja qual for o nível ou público-alvo, deverá contemplar a educação para cidadania. 11. O tema da resolução consensual de disputas deverá ser contemplado na formação continuada de magistrados. 12. Os contatos interinstitucionais para a busca da solução consensual de conflitos devem ser promovidos pelos coordenadores regionais e locais da conciliação, no âmbito de suas atribuições. 13. Considerando que as Centrais de Conciliação exercem atribuição jurisdicional (Enunciado nº 1), a elas se aplicam as disposições dos arts. 67 a 69 do CPC/2015 quanto à Cooperação Nacional. 14. As Centrais de Conciliação podem atuar em qualquer matéria e alçada para fins de conciliação, mediação ou outro método consensual de solução de conflitos.

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15. Os CEJUSCONS podem firmar convênios com universidades para que, nas matérias com interesse científico e jurídico, representantes atuem como facilitadores nas audiências de conciliação/mediação. 16. A conciliação/mediação por meio eletrônico poderá ser utilizada em qualquer procedimento e grau de jurisdição. 17. Os conciliadores/mediadores atuarão nas audiências do art. 334 do CPC, sendo facultativa sua atuação em sessões de negociação direta por meio eletrônico. 18. As formas de realização das audiências de conciliação/mediação (presencial, eletrônica, por videoconferência ou em sistema itinerante) não são excludentes entre si e podem ser escolhidas de acordo com as especificidades do caso concreto. 19. A escolha da forma de realização da audiência de conciliação/mediação (presencial, eletrônica, por videoconferência ou em sistema itinerante) será feita, preferencialmente, pelas Centrais de Conciliação. 20. Os materiais pedagógicos dos cursos de formação em conciliação/mediação devem ser elaborados com atenção às necessidades e particularidades da Justiça Federal, envolvendo, inclusive, causas de alta complexidade e demandas repetitivas. 21. O material pedagógico dos cursos de formação deve conter termos de audiência de conciliação/mediação, com os respectivos itens obrigatórios, de acordo com as particularidades da matéria. 22. O material pedagógico dos cursos de formação em conciliação/mediação deve conter materiais audiovisuais, tais como vídeos, gravações e outras mídias digitais. 23. O material pedagógico dos cursos de formação em conciliação/mediação deve abranger noções elementares do direito material subjacente às causas mais comuns nos processos conciliatórios da Justiça Federal, inclusive mediante intercâmbio científico entre as instituições neles envolvidas. 24. O material pedagógico dos cursos de formação em conciliação/mediação deve abranger conteúdo que tenham como

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destinatários os magistrados, seja na condição de gestores de Centros de Conciliação, seja como presidentes de sessões de conciliação. O material pedagógico dos cursos de formação em conciliação/mediação deve abranger técnicas de relacionamento interinstitucional. Apesar da distinção conceitual entre a mediação e a conciliação, ambas devem ser tratadas conjuntamente nos materiais pedagógicos e nos cursos de formação voltados à Justiça Federal. A atuação das Centrais de Conciliação não ofende o juízo natural, a teor da sistemática estabelecida no CPC em vigor. Os representantes da União, autarquias, fundações públicas e empresas públicas federais já possuem expressa autorização legal para conciliar, transigir e desistir, nos termos do art. 10, parágrafo único, da Lei 10.259/2001. A ausência de Decreto Regulamentar não é óbice à solução autocompositiva de conflitos, nos termos do art. 1º da Lei n° 6.469/97, com a redação conferida pela Lei nº 13.140/2015.

Recomendações 1. Recomenda-se a celebração de convênios de cooperação interinstitucional para a troca de experiências, formatação e repasse de conteúdos complementares e específicos (Ex.: SFH, previdenciário, recuperação de créditos etc. – art. 6º, V a VIII, Res. 398). 2. Recomenda-se o alinhamento na formação mínima de conciliadores/mediadores cadastrados perante outros Tribunais e que venham a atuar perante a Justiça Federal (art. 14, § 1º, da Res. 398). 3. Recomenda-se a permanente formatação de cursos de aprofundamento e atualização em mediação e conciliação. 4. Recomenda-se ao CNJ que, no exercício de seu mister de gestor da Política Judiciária de Solução Consensual de Conflitos, acompanhe o cumprimento da Resolução nº 125/2010 (art. 6º,

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XII) pelos Tribunais Regionais Federais, especialmente a criação dos CEJUSCONS. 5. Recomenda-se a criação de comissão judicial para prevenção e solução de litígios nas Seções Judiciárias, de composição aberta e com assento dos Coordenadores das Centrais de Conciliação, à qual caberá promover contatos interinstitucionais para o tratamento adequado dos conflitos de interesses. 6. Recomenda-se ao CJF que, reconhecendo a complexidade dos conflitos socioambientais e a urgência dos fatos em se tratando dessa matéria, forneça aos juízes o instrumental normativo e logístico necessário à solução desses conflitos, notadamente os recursos para pagamento de perícias complexas e multidisciplinares. 7. Recomenda-se ao CJF que celebre convênios com as universidades para o desenvolvimento de competências específicas para os juízes federais em conciliação em matéria socioambiental. 8. Recomenda-se ao CJF que mantenha banco de dados, estrutura de apoio de urgência aos juízes e convênios permanentes com instituições de ensino para viabilizar o apoio técnico na instrução das causas socioambientais, com atenção aos princípios da precaução e prevenção. 9. Recomenda-se ao CJF a tomada de medidas interinstitucionais a fim de viabilizar a utilização de recursos do Fundo de Defesa de Direitos Difusos para a gestão e instrução de processos com conflitos socioambientais. 10. Recomenda-se a criação de módulos eletrônicos de gerenciamento das unidades de conciliação e mediação, incluindo sistemas de agendamento eletrônico de audiências, cadastro de conciliadores e geração de relatórios para fins estatísticos. 11. Recomenda-se a participação ativa dos juízes das unidades jurisdicionais abrangidas pelos CEJUSCONS na formulação das políticas e dos fluxos de encaminhamentos e retorno de processos para as atividades de conciliação e mediação.

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12. Recomenda-se a criação de espaços físicos adequados para a realização de audiências de conciliação e mediação que observem os princípios e valores próprios à solução autocompositiva, inclusive quando realizadas audiências e sessões por videoconferência.

II FONEF BRASÍLIA (DF) – 2016 Enunciados e recomendações aprovados GRUPO 1: Enunciado 1: O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 133 do NCPC, não se aplica aos casos em que há pedido de inclusão de terceiros no polo passivo da execução fiscal de créditos tributários, com fundamento no art. 135 do CTN, desde que configurada a dissolução irregular da executada, nos termos da súmula 435 do STJ. APROVADO POR UNANIMIDADE. Enunciado 2: O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 133 do NCPC, é aplicável aos casos em que há pedido de redirecionamento da execução fiscal da dívida ativa, com fundamento na configuração de grupo econômico, ou seja, nas hipóteses do art. 50 do CC. APROVADO POR UNANIMIDADE. Recomendação: No caso de grandes devedores, os órgãos fazendários dos diversos entes políticos e o Ministério Público deverão ter um sistema eficiente de intercâmbio de informações para a correta identificação dos grupos econômicos, para evitar a prática de blindagem patrimonial, em consonância com o recente entendimento do STF a respeito do sigilo bancário, inclusive em relação à apuração da prática de infrações criminais. APROVADA POR UNANIMIDADE

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GRUPO 2: Enunciado 1 Na execução fiscal, o art. 854 do CPC/2015 autoriza a indisponibilidade de ativos financeiros antes da citação do executado, a título de arresto executivo. APROVADO POR MAIORIA Enunciado 2 Na execução fiscal, os prazos processuais deverão ser contados em dias úteis, nos termos do art. 219 do CPC/2015. APROVADO POR UNANIMIDADE Enunciado 3 Os meios de expropriação dos bens do devedor previstos no CPC/2015 aplicam-se ao sistema de cobrança das execuções fiscais. APROVADO POR UNANIMIDADE Enunciado 4 Tendo em vista os princípios da cooperação e da boa-fé, aplicáveis à execução fiscal, resta preclusa a alegação de impenhorabilidade, fundada no art. 854, § 3º, I, do CPC/2015, quando a liberação do excedente tenha decorrido de requerimento do executado. APROVADO POR MAIORIA Enunciado 5 Formada a convicção do juiz acerca do excesso de indisponibilidade, inicia-se o prazo de 24 horas previsto no art. 854, §1º, do CPC/2015, para que seja determinado o levantamento do bloqueio do montante excedente. APROVADO POR UNANIMIDADE Recomendação: Recomenda-se a criação de um grupo de trabalho para discutir e propor soluções ao administrador do sistema BACENJUD para criação de uma ferramenta no programa, no sentido de desbloquear automaticamente valores ínfimos abaixo de um limite indicado pelo juiz, assim como dar efetividade à Recomendação nº 7 do I FONEF. APROVADO POR UNANIMIDADE

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