Revista de Cultura nº 11

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Revista de Cultura AJUFE

DEIXE A CULTURA TE EMOCIONAR

ANO 8 ∙ JUNHO DE 2016 ∙ Nº 11

Visite os espaços CAIXA Cultural de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza e Curitiba.

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Bate papo

Sérgio Resende conta como foi transformar um juiz federal em personagem de cinema.

Inspiração Poética

Juízes federais que escrevem além das sentenças: em verso, rima, ritmo e métrica.

Cliques pelo mundo

Os olhares dos juízes federais intermediados pela caixa-preta e pelo pincel.

Danila Gonçalves de Almeida - Costiera Amalfitana Óleo sobre tela (90x100cm) - 2015

caixa.gov.br/cultura

PATROCINADORA DA CULTURA NO BRASIL.


FOTO: JIRLAN BIAZATTI

Registro do pôr do sol em Canindé do São Francisco (SE), durante a 4ª edição da Expedição da Cidadania



Expediente

Revista de Cultura Ajufe - 11ª Edição

Diretoria da Ajufe • Biênio 2014/2016

Presidente Antônio César Bochenek Diretor da Revista Paulo César Villela Souto Lopes Rodrigues Vice-Presidente da 1ª Região: Candice Lavocat Galvão Jobim Edição: Telmo Fadul Revisão: Jéssica Eufrásio Fotografia: Jirlan Biazatti Colaboração: Mirian Silva e Pedro Lacerda Diagramação: Everton Pinheiro - Proativa Comunicação Ilustrações: Rafael Mota Projeto Gráfico: Eye Design Imagem da Capa: Danila Gonçalves de Almeida - Costiera Amalfitana Óleo sobre tela (90x100cm) - 2015

Vice-Presidente da 2ª Região: Eduardo André Brandão de Brito Fernandes Vice-Presidente da 3ª Região: Fernando Marcelo Mendes Vice-Presidente da 4ª Região: Rodrigo Machado Coutinho Vice-Presidente da 5ª Região: André Luís Maia Tobias Granja Diretoria Secretário-Geral: Roberto Carvalho Veloso Primeira Secretária: Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni Tesoureiro: Alexandre Ferreira Infante Vieira Diretor Cultural: Marcel Citro de Azevedo Diretora Social: Maria Divina Vitória Diretora de Relações Internacionais: Raquel Coelho Dal Rio Silveira Diretor de Assuntos Legislativos: José Marcos Lunardelli

Ajufe • Associação dos Juízes Federais do Brasil Setor Hoteleiro Sul - Quadra 6 - Bloco E - Conjunto A - Sala 1305 Brasil 21 - Ed. Business Center Park. CEP 70322-915 Tel.: (61) 3321-8482 | Fax.: (61) 3224-7361 www.ajufe.org.br

Diretor de Relações Institucionais: André Prado de Vasconcelos Diretor de Assuntos Jurídicos: José Maximiliano Machado Cavalcanti Diretor de Esportes: Murilo Brião da Silva Diretora de Assuntos de Interesses dos Aposentados: Marianina Galante Diretora de Comunicação: Marcelle Ragazoni Carvalho Diretor Administrativo: Frederico José Pinto de Azevedo Diretora de Tecnologia da Informação: Cristiane Conde Chmatalik Coordenadora de Comissões: Clara da Mota Santos Pimenta Alves Diretor de Prerrogativas: Helder Teixeira de Oliveira Suplente: Sérgio Murilo Wanderley Queiroga

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Suplente: Leonardo Vietri Alves de Godoi Suplente: Roberto Fernandes Junior Conselho Fiscal

É proibida a reprodução total ou parcial dos textos, fotos e ilustrações sem prévia autorização.

Membro do Conselho Fiscal: Márcia Vogel Vidal de Oliveira Membro do Conselho Fiscal: Alessandro Diaféria Membro do Conselho Fiscal: Carlos Felipe Komorowski

Revista não destinada à venda. Distribuição realizada pela Ajufe.

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Membro do Conselho Fiscal (Suplente): Jaílsom Leandro de Sousa


Palavra do Presidente Colegas,

É com enorme satisfação que entregamos aos associados o novo número da Revista de Cultura da Ajufe. Mais uma vez, reunimos aqui trabalhos que representam a manifestação da sensibilidade e do lado artístico de alguns dos juízes federais que fazem parte da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Movidos pela aspiração às artes, os magistrados que contribuíram com esta edição mostram que o Direito não é a única das especialidades que dominam. O primor e a dedicação com que se conduzem na vida profissional também se refletem nos textos e nas belíssimas cenas que se encontram na Galeria desta edição. A habilidade de tratar dos conflitos humanos, que também é inerente ao ofício do magistrado, já se manifesta nos primeiros textos da seção Narrando Histórias. Dois curiosos casos de relacionamentos amorosos ganham as páginas seguintes à entrevista realizada com o cineasta Sérgio Rezende. Depois de tomar conhecimento de um segredo envolvendo um líder religioso e sua correspondente postal, Antônio Francisco Pereira discorre de forma bem-humorada sobre a “paixão” entre o papa João Paulo II e a filósofa Anna-Teresa Tymieniecka, cujo desenrolar foi registrado em mais de 300 cartas trocadas entre os dois. “Quando o Outro é o Papa” é o nome da crônica. Tratando de tema semelhante, mas desta vez tendo o homem no papel de quem nutre dois relacionamentos, Edilson Pereira Nobre Júnior narra a história de João de Castro Alves, que, curiosamente, compartilha com o poeta não só o sobrenome, como também o fato de estar envolvido em uma relação extraconjugal. A crônica se desenvolve com o relato de um eventual encontro entre suas duas companheiras. Na editoria A Justiça Compartilhada, André Prado de Vasconcelos e Nagibe de Melo Jorge Neto dividem conosco seus olhares sobre alguns

aspectos do trabalho na Justiça. O primeiro narra seu testemunho como participante de um projeto de conciliação realizado na Serra Canastra (MG), o segundo compartilha suas impressões a respeito do Direito visto como uma ciência desconhecida. A Revista de Cultura da Ajufe também conta com um artigo de B. G. da Costa Fontoura, que fala sobre a polêmica acerca da paternidade das obras de William Shakespeare, e com os registros fotográficos, capturados nos mais diversos locais do mundo, de Bernardo Carneiro, Carlos Geraldo Teixeira e Fabíola Queiroz – além das cenas minuciosamente retratadas em pinturas a óleo por Danila Gonçalves de Almeida. Em “É Como Deixar de Cruzar Pontes”, toda a delicadeza empregada por Francisco de Barros e Silva para descrever as relações humanas e as mudanças inevitáveis ocasionadas pelo tempo, tanto na natureza quanto em cada um de nós. Uma temática análoga também é consta dos versos de Marcos Mairton, em seu poema “O Fim” – intencionalmente selecionado para finalizar esta edição. Há ainda as poesias de Luiz Airton de Carvalho e Francisco Alves dos Santos Júnior; o conto “Ladrões”, escrito por Marcos Mairton; uma reflexão sobre o cotidiano no texto “A Lei da Gravidade”, por Rafael Ianner Silva; as proezas de um falso juiz descritas por Roberto Lemos dos Santos Filho; o relato sobre um carismático personagem, cujas façanhas são contadas na crônica “Um Campeão de Bom Humor”, de Carlos Geraldo Teixeira; além do conto “Um Galo”, de Gilberto Mendes. Os conteúdos e a própria revista foram produzidos com grande esmero. Esperamos que permaneçam registrados não apenas no papel, mas também, e principalmente, nas memórias dos que souberam deles desfrutar. Antônio César Bochenek Presidente da Ajufe

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Sumário

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Ponto de Vista – Entrevista com o cineasta Sérgio Rezende – Por Telmo Fadul

Narrando histórias Crônicas – Antônio Francisco Pereira Edilson Pereira Nobre Júnior Carlos Geraldo Teixeira Roberto Lemos dos Santos Filho

16 Academia

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Artigo – B. G. da Costa Fontoura


Quem conta um conto Contos – Marcos Mairton Rafael Ianner Silva Gilberto Mendes Francisco de Barros e Silva

42 58

Cliques pelo mundo

Galeria – Bernardo Carneiro

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A justiça compartilhada Olhares – André Prado Nagibe de Melo Jorge Neto

Carlos Geraldo Teixeira Fabíola Queiroz Danila Gonçalves de Almeida


Versos

Ventos de julho Francisco Alves dos Santos Júnior Juiz federal

Vidraças tremem e uivam Com o açoite dos ventos Vindos do mar O barulho das ondas Quebrando na praia E o uivo dos ventos Assustam a cadela, que ladra e enrosca-se Nas pernas da moça Que reza baixinho Pedindo aos santos P’ros ventos cessarem. A noite aprofunda-se Os ventos aumentam As ondas agigantam-se E, assustadoramente, Levam as palafitas Invadem as ruas Próximas do mar

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O medo aumenta Com a chegada da chuva Chuva de vento Que açoita e destroi Encharca os morros Que se desmoronam, Matando e enterrando Pobres e pobreza Num quase alívio De tanta miséria, de tanto sofrer. Sob uma triste sinfonia Do surdo dos trovões Do uivo dos ventos Do açoite das chuvas Do clarão dos relâmpagos Do silêncio das trevas da morte Debaixo da lama Debaixo das águas Num quase alívio De tanto sofrer.

Dedico este poema a “Seu” Geraldo, pai do compositor-cantor Lenine, poema este que foi feito sob o impacto da notícia da sua morte. O “Seu” Geraldo, com quem tive o prazer de conviver por certo tempo, era um homem dedicado aos pobres e ao aprimoramento dos seres humanos. E este poema foi feito num dia de muito vento, relâmpagos, trovões e chuva na cidade do Recife-PE, vindos certamente para levá-lo com maior rapidez e festividade para um mundo melhor. Recife, Praia de Boa Viagem, em 16/07/2015, às 21h05.

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Ponto de vista

Quando um juiz federal vira personagem de cinema Inspirado na trajetória do juiz federal Odilon de Oliveira no julgamento de casos de tráfico de drogas e contrabando no Mato Grosso do Sul, “Em Nome da Lei” estreou nos cinemas de todo o país no final de abril. O filme conta com Mateus Solano, Paolla Oliveira e Chico Díaz no elenco. Confira a entrevista concedida pelo diretor do longa-metragem, Sérgio Rezende, antes da pré-estreia do filme em Brasília: Por Telmo Fadul

“Em Nome da Lei” é baseado na vida do juiz federal Odilon de Oliveira. Como você chegou a essa história? Foi há quatro anos. Eu estava lendo o jornal e, por coincidência, havia uma matéria com a história do juiz Odilon, que tinha ido para Ponta Porã e que enfrentou a máfia de contrabando e de tráfico que lá estava instalada. Essa máfia da fronteira já reinava há anos no local – há décadas, na verdade. Fiquei fascinado com a coragem e a determinação do cara. Fui para Campo Grande, o conheci e ele foi muito simpático. Conversamos muito, fiquei sabendo de detalhes do que ele fez por lá, e fui me apaixonando cada vez mais por esse tema. Foi aí que surgiu a ideia do filme? Sim. Eu viajei para a fronteira, pesquisei, conversei com muita gente e achei que havia espaço no Brasil para um filme sobre

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isto: sobre fronteira, sobre justiça. Naquela época, não havia toda essa coisa que nós estamos vivendo – este momento muito aquecido – mas, havia um clamor público da sociedade por justiça, por um Judiciário mais correto, por juízes mais combativos. Então, eu achei que era um tema inédito, sobre o qual valeria a pena fazer um filme. Foi isso que me estimulou. Embora se inspire na trajetória de uma pessoa real – o juiz federal Odilon de Oliveira – o filme traz uma narrativa ficcional? Sim, até porque ele tem um pouco de outras histórias que ouvi. Uma delas, que não é do juiz Odilon, fala sobre quando a Polícia Federal chegou na porta da casa de um desses mafiosos no dia do casamento da filha dele, com um mandado de prisão. Ele botou uma escopeta no peito do agente federal. Aí, você imagina: convidados, toda


FOTO: JIRLAN BIAZATTI FOTOS:: MARCOS MORTEIRA

“O filme, embora não tenha nenhuma ligação com o que estamos vivendo hoje, pode ajudar um pouco na reflexão sobre a Justiça brasileira, sobre o Judiciário, e sobre a presença e a figura do juiz.” aquela gente, e o escândalo daquela coisa. Esse foi um fato que se passou em outra cidade. E o cinema tem um pouco disto: como é um filme de ficção, a gente tem certa liberdade criativa diante de histórias boas que caibam no filme e que possam ser usadas. Foi isso que fiz. Por que esse interesse pelo Poder Judiciário? Na verdade, eu acho que este é um mundo muito rico e muito pouco explorado. Qualquer pessoa que você conheça e com quem você converse te dá histórias incríveis, que ninguém ainda usou. Naturalmente, há um lado subterrâneo, do qual as pessoas, às vezes, não querem falar, nem contar; mas, com calma – e cinema é uma coisa demorada, em que se tem muito tempo para pesquisar – a gente foi pescando, aqui e ali, as nossas pérolas. E assim conseguimos compor o filme.

Sérgio Rezende

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Ponto de vista

Para provocar o interesse da plateia, o cinema precisa de boas imagens. O que havia de visual naquela história que merecesse o enfoque da câmera? A paisagem onde o filme se passa é muito pouco conhecida no Brasil. E ela é deslumbrante. Parte da região da fronteira do Mato Grosso do Sul está, hoje, tomada por plantações de soja, terra vermelha, poeira... Ali há uma imagem e um universo visual muito forte e muito pouco conhecido. O cinema brasileiro, ou mesmo a televisão, se concentra muito nas grandes cidades, ou no Nordeste, que é um grande cenário brasileiro. Essa região do Centro-Oeste passa despercebida, e isso atraiu muito. Por outro lado, o cinema – além da imagem e do som, que formam o espetáculo cinematográfico – é uma experiência sensorial. Seria essa “experiência sensorial” a marca distintiva do cinema? Sim. Há uma diferença colossal em relação a assistir a um filme na televisão, na poltrona de casa. O cinema tem um negócio sensorial superdimensionado – uma imagem enorme, uma tela grande, um som poderoso. Fora isso, a parte fundamental e essencial é a narrativa, a dramaturgia, a história que você está contando. Isso, no final das contas, é o roteiro. Em todo filme, o trabalho de escrever o roteiro, que às vezes demora um ou dois anos, sempre consome muito mais tempo do que as filmagens propriamente ditas, que demoram, em geral, dois meses. No caso de “Em Nome da Lei”, foi a conjugação da força da “Em Nome da Lei” foi lançado em um história dos personagens momento em que o papel do juiz nunca esteve em tanta evidência no Brasil com a beleza – ou, mais

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do que isso, a força visual do lugar – que se complementaram para que pudéssemos fazer um filme bacana. A história da Justiça está escrita nos processos e vinculada a um universo de linguagem singular: o jurídico. Como levar para o cinema – um meio que deve falar para todos, indistintamente – uma narrativa nascida em um ambiente tão específico? Essa tarefa é facilitada na medida em que o filme se volta para outros personagens. O juiz chega numa cidade de fronteira e se defronta com o dono da cidade, o rei da fronteira. O juiz está sempre no seu gabinete, tomando suas decisões, mas, há outros personagens muito importantes. Um deles é um agente da polícia federal, interpretado pelo Eduardo Galvão; outra personagem é uma promotora, interpretada pela Paolla Oliveira. O Mateus Solano é o juiz. Há ações da polícia, ações da promotoria, reações e vice-versa, por parte dos bandidos e criminosos. Embora o juiz esteja quase sempre no seu gabinete e na sala de audiência, esse é um universo que também está rolando nas ruas. “Em Nome da Lei” foi lançado em um momento em que o papel do juiz nunca esteve em tanta evidência no Brasil. O filme contribui para desmitificar essa figura ou ajuda a mitificar ainda mais? Essa coisa do Sérgio Moro e da Operação Lava-Jato está tão quente agora que as pessoas acham que eu fiz um filme em cima disso. E não é verdade. Eu comecei a pensar neste filme há quatro anos. Naquela época, o que estava em evidência nacionalmente era o caso do Mensalão. Era outro contexto da vida brasileira. Eu acho que o filme, embora não tenha nenhuma ligação com o que estamos vivendo hoje, pode ajudar um pouco na


reflexão sobre a Justiça brasileira, sobre o Judiciário, e sobre a presença e a figura do juiz. Como se dá essa contribuição? No filme, eu procurei trazer um pouco da ideia de que o juiz não é um modelo de perfeição. Ele é um ser humano como todo ser humano, capaz de erros e equívocos. No cinema, a gente precisa de personagens que tenham grandeza humana. Foi isso que eu procurei neste meu juiz, e não projetar um modelo. O diretor de cinema, o criador, o artista não é o juiz moral dos seus personagens: ele expõe os seus personagens ao espectador. E o espectador vai fazer uma imagem que, nesse sentido, contribuirá para o seu pensamento sobre o Judiciário e a figura-chave dele: o juiz, o magistrado. Qual o lugar de “Em Nome da Lei” no contexto geral do cinema brasileiro? Eu sou um diretor de cinema que se preocupa e se ocupa com o Brasil. O meu primeiro filme foi rodado em Brasília. Era um filme de jovens, um pouco da primeira geração da cidade. Depois, fiz “O Homem da Capa Preta”, a história de um político formidável do Rio de Janeiro. Fiz ainda “Guerra de Canudos”, “Mauá”, “Lamarca”, “Zuzu Angel”. O meu último filme foi “Salve Geral”, sobre as rebeliões nas penitenciárias de São Paulo. “Em Nome da Lei” procura atrair e dialogar com o espectador, com um olhar voltado ao Brasil – esse é um traço marcante do cinema brasileiro. Os grandes sucessos são filmes que falam da nossa realidade, seja “Tropa de Elite”, seja “Gonzaga: De Pai para Filho” – um musical inspirado num grande artista brasileiro. O cinema nacional tem esse compromisso e eu navego nessas águas. Você continuará trabalhando com histórias relacionadas ao Poder Judiciário? Como dizia o padre Antônio Vieira: “o homem carrega a si consigo”. A gente tem um interesse, um traço marcante da nossa própria personalidade, nossos gostos... Eu também tenho desenvolvido um trabalho na televisão nessa seara. Já dirigi duas temporadas de uma série chamada “Questão de Família”, que também é sobre um juiz – um juiz de família.

Mateus Solano Perseguição e tensão permeiam a jornada do destemido e idealista Vitor (Mateus Solano)

É uma série de três episódios e, em cada um deles, o personagem julga um caso. Eu já fiz duas temporadas e, em breve, vou fazer a terceira. Ao tratar de questões sociais, o cinema ajuda a resolver esses conflitos? Eu acho que não. Resolver conflitos, não. Isso é uma tarefa do cidadão, das instituições. Por outro lado, eu acho que o cinema ajuda quando nós fazemos filmes sobre as coisas que acontecem, sobre o país em que vivemos e sobre as circunstâncias em que estamos. Isso sempre servirá como uma reflexão. Mas acho que a solução dos problemas está longe das salas de cinema. E o que “Em Nome da Lei” diz sobre o Brasil de hoje? Hoje a gente está vivendo uma fronteira no Brasil. O clima no país é de fronteira e há uma divisão profunda de coisas para cá e para lá. O filme debate a questão da Justiça. Qual é o preço da Justiça? É em nome da lei? De qual lei? Eu acho que o filme pode ser de entretenimento, como ele de fato é, mas, acabada a sessão, a pessoa pode voltar para casa, refletir sobre alguma coisa e usar o filme como um ponto para discutir. E é isso que eu acho que todo brasileiro precisa fazer hoje: debater, discutir, refletir e pensar, para que a gente possa andar com este país de uma maneira decente.

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Crônica

Quando o outro é o papa Antônio Francisco Pereira Juiz federal

Vamos supor que você, católico praticante, descobre um dia que sua mulher está perdidamente apaixonada pelo... papa. Isso mesmo. Não é o vizinho, o colega de trabalho, nem o galã da novela. É simplesmente o sumo pontífice que arrebatou o coração de sua mulher, com quem você tem três filhos. Qual a sua reação? Vou dar três opções: a) indignado, você a expulsa de casa: b) vingativo, você arma um flagrante dos dois e joga na internet (há

“Os olhos dela se derretendo e suplicando que aquele gesto avançasse mais alguns centímetros. Mas, até onde se sabe, as mãos dele se recolhiam, disciplinadas.” precedentes: lembre-se do Gordinho da Saveiro); c) feliz, você se sente abençoado pelo santo chifre que lhe poderá garantir, sem maiores formalidades, um camarote no céu.

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A questão não é retórica. É um drama real vivido por um economista americano, cuja mulher, Anna Teresa (não vou escrever o sobrenome porque é muito complicado) manteve uma caudalosa correspondência com Karol Wojtyla por mais de 30 anos. Nas cartas – mais de 300, segundo a Biblioteca Nacional da Polônia – Anna confessa ao arcebispo, depois cardeal e depois papa João Paulo II, um amor que ia além do ofertório. Mas o religioso – faça-se-lhe justiça – nunca disse amém a esses arroubos, embora revelasse nas suas respostas o dilema que afligia as duas almas. E o dilema não era pequeno. Para ela, adultério, se levarmos em conta que, aos olhos da Igreja, o pecado é multiforme: pensamento, palavras e obras. Para ele, dupla transgressão: o voto de castidade e o nono mandamento. Cara... que barra! E foram 30 anos com o diabinho sussurrando no ouvido: “Papa, Paulo! Papa, Paulo!” Não foi uma noite de réveillon ou três dias de carnaval. Foram três décadas, mano.


Não quero parecer sacrílego, mas até a provação de Cristo durou menos: 40 dias no deserto. A carne é fraca, dizem. Mas o espírito é forte, digo eu. E, como se vê, não foram apenas os disparos de um terrorista, em 1981, que transfixaram o peito do carismático pontífice, mas também as flechas de Cupido. Em ambas as ocasiões ele pode ter cambaleado, mas saiu ileso. A fé removeu montanhas. E prevaleceu também nas ocasiões em que os dois correspondentes se encontraram dentro ou fora do Vaticano. Aí, o contato físico não passava de um respeitoso ósculo, um afago disfarçado nos cabelos da admiradora. Os olhos dela se derretendo e suplicando que aquele gesto avançasse mais alguns centímetros. Mas, até onde se sabe, as mãos dele se recolhiam, disciplinadas. Quem sofreu mais? Ele, ao sufocar por toda a vida o torvelinho da paixão, ou ela, condenada a

amar o mais inacessível dos homens? Quieto, no meu cantinho, não tenho motivos para censurar um ou outro. Bem sei que o amor ama os paradoxos. Desconhece fronteiras. É raio que cai em qualquer terreno. Mas tiro o chapéu (ou o solidéu) para Karol Wojtyla. Quem sabe foi por isso que ele foi canonizado em tempo recorde? Porque superou os próprios limites do amor. Com essa dúvida, eu volto ao primeiro parágrafo: Como você se sentiria, paciente leitor, se descobrisse que sua mulher está apaixonada por sua santidade, o papa? Indignado? Vingativo? Ou alegre? Eu insisto na pergunta porque, aqui em casa – coincidência ou não –, minha mulher vive dizendo que “adoooora o Papa Francisco”. Acho que vou colocar minhas barbas de molho.

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Crônica

Encontro Edilson Pereira Nobre Júnior Juiz federal

Em crônica escrita em 11 de julho de 1971, Mauro Mota, na sua leve e costumeira prosa, quase ao ritmo da poesia, relembrou Castro Alves, enfatizando que o Recife deu-se a Castro Alves e Castro Alves ao Recife, pois talvez sem a cidade cortada pelo Capibaribe aquele não teria sido o que representou. Foi além, descortinando que o poeta da liberdade teve aqui dois amores, um deles Idalina que, prendada, cantava e tocava piano, e outro, Eugênia Câmara, de perfil tumultuoso.

por João. Não tinha o menor pendor literário, sendo, antes, um ferroviário de nível médio, mais precisamente um auxiliar de maquinista. Pois bem. O João de Castro Alves, no alto dos seus quarenta e dois anos, patrocinava a proeza de manter, nos dias atuais, dois relacionamentos conjugais. Um deles com Antônia Maria, abençoado pela Igreja Apostólica Romana; o outro, com Dorotéia, documentado pelo registro civil, pois esta era agnóstica, em face da admiração, quando jovem, do socialis-

“O João de Castro Alves, no alto dos seus quarenta e dois anos, patrocinava a proeza de manter, nos dias atuais, dois relacionamentos conjugais. Um deles com Antônia Maria, abençoado pela Igreja Apostólica Romana; o outro, com Dorotéia, documentado pelo registro civil, pois esta era agnóstica [...]” O coração bipartido não é privilégio nem atributo dos famosos. Convive também com o cotidiano dos homens simples. É o caso daquele que, possuindo pela junção dos apelidos das famílias materna e paterna o sobrenome Castro Alves, não tinha o prenome Antônio Frederico, sendo, ao invés, chamado

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mo romântico, por ser a única forma com que enxergava ser possível o desaparecimento das injustiças do mundo. O escasso salário, gravado pela duplicidade da família, fez com que estabelecesse as suas duas residências no mesmo quarteirão, com uma distância de


aproximadamente cinco casas entre as duas moradas, pois era preciso economizar com transporte. Não se apercebeu da advertência, sábia, aliás, de que o barato muitas vezes pode sair caro. Assim, num dia chuvoso, necessitavam tanto Antônia quanto Dorotéia se deslocar para resolver assuntos de suas casas, o que lhes impelia tomar um ônibus na parada mais próxima. Não deu outra: ambas se encontraram frontalmente, justamente no instante no qual se aproximava o veículo de transporte coletivo. Assim, numa reação, antes mais inesperada do que combinada, ambas as mulheres, ao invés de ingressarem na lotação, resolveram-se dar as costas uma à outra como forma de indignação. O resultado não poderia ser diferente: o ônibus, após o ingresso dos ávidos passageiros, fez com que a estação ficasse unicamente com a presença das rivais, as quais,

desistindo da busca pelo transporte, voltaram às suas moradias com uma raiva maior do que a de boi picado de cobra. Numa primeira impressão, o leitor pode ter imaginado que o nosso Castro Alves tenha sofrido castigos piores do que os escravos que o seu antecessor procurara libertar pelos versos. Ledo engano. Se não sabia declamar, o nosso personagem tinha uma lábia encantadora, a qual somente a hipertrofia da imaginação poderia explicar, tendo convencido suas consortes de que tudo não passara duma peça do destino, contra o qual nada é possível, nem mesmo o amor. No final das contas, quem tinha razão era Gustave Flaubert que, em carta a Louise Colet, com quem manteve um íntimo e longo relacionamento, disse que a gente somente deve acreditar na eternidade de uma coisa, qual seja a ilusão, que é a verdadeira verdade, pois todas as outras são relativas. E assim todos viveram felizes para sempre.

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Crônica

Um campeão de bom humor Carlos Geraldo Teixeira Juiz federal

Prazeroso no centro-oeste mineiro é passar um final de semana na beira do rio ou de um lago, melhor ainda se for pra comemorar a despedida de solteiro de um amigo. Numa dessas despedidas, se na lista de mantimentos não podia faltar cerveja, na lista de convidados da turma da Equitropa não podia faltar o “Gerardo”.

“Numa dessas despedidas de solteiro, em uma casa à beira do Lago de Furnas, no município de Formiga, próximo a Arcos, por volta das 7 horas da noite de uma sexta-feira, “Gerardo” chegou todo satisfeito em seu Monza verde escuro.” “Gerardo”, cabra bom. Apresentava-se tímido com aqueles que ainda não tinha relacionamento, mas à medida que ia conhecendo o pessoal, ficava bem à vontade.

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Já se sentia em casa quando estava com os amigos da Equitropa. Numa dessas despedidas de solteiro, em uma casa à beira do Lago de Furnas, no município de Formiga, próximo a Arcos, por volta das 7 horas da noite de uma sexta-feira, “Gerardo” chegou todo satisfeito em seu Monza verde escuro. Apesar de falar pouco, já se via o entusiasmo e animação do festejado companheiro logo ao descer do carro. Cumprimentou todos, sempre fazendo uma brincadeira ou uma menção que lembrasse um ocorrido ou envolvesse uma característica de cada um que apertava a mão. Tudo temperado com irreverência e na sua forma peculiar de falar, carregada e pausada, que contagiava e fazia rir o mais introspectivo dos companheiros. Após os cumprimentos, no mesmo tempo que falava da alegria de reencontrar aqueles amigos, pediu ajuda para esvaziar o carro. Não queria perder tempo. Ajeitar as coisas, no mais ligeiro, para começar a participar da festa.


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Crônica

“Após mais algumas rodadas de cerveja, sempre entremeada com tira-gosto – um caldo de galinha ou de feijão, um pedaço de costela ou de um churrasco sempre feito na horinha – “Gerardo” já estava se apresentando como professor também de improvisos e de cantoria.” Tinha de quase tudo naquele carro. Homem prevenido. Apesar de não estar num rancho à beira do São Francisco, de regra sem infraestrutura, “Gerardo” levava colchão, travesseiro e roupa de cama. Numa caixa de papelão, carregava camisinha de lampião, querosene, lamparina, lanterna, velas, pilhas, uns quatro baralhos, corda de violão, canivete, fumo de rolo e palha pra cigarro. Os apetrechos de pescaria estavam numa caixa menor. “Gerardo”, sorrindo, anunciava que ainda iria comprar uma camionete, para não faltar nem as iscas; evitava, de toda forma, falar em minhocas, já que era avesso a qualquer lembrança de coisas roliças e compridas do tipo linguiça. Interessante é que não tocava violão nem pescava. Saboreava um peixe frito pescado na hora, de preferência acompanhado de uma cachaça da região e apreciado numa roda de violão. Gabava-se, no entanto, de cantar como ninguém e explicava: carrego tudo isso para servir os amigos desprevenidos, mas que gostam de pescar, e também evitar aquela decepção de ver uma roda de violão se desfazer por falta de corda para substituir alguma que arrebentasse. Coisa que acontecia, segundo “Gerardo”, justamente quando a roda estava animada e antes de tocar uma de suas músicas favoritas: a inesquecível Boate Azul. Como precavido, para aquela pescaria, ou melhor, despedida de solteiro, levou numa caixa de isopor cheia de gelo uns peixes frescos comprados de um pescador da região. O resto do espaço do carro era praticamente só cerveja e cigarro. “Gerardo” sempre brincava que, além dele, não podia levar mais ninguém no carro, para não comprometer o espaço reservado para as Brahmas.

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Esvaziado o carro. O sorridente tomou conhecimento do lugar de dormir, do que não esperava fazer uso tão cedo. A noite começava e prometia. Música sertaneja e de raiz já ecoava de um toca-fitas. Tira-gosto da melhor qualidade e abundante na mesa da cozinha, local da casa preferido nessas ocasiões. Cerveja gelada e uma pinguinha esperavam por ele. Uma conversa aqui, outra acolá, desfazendo um pouco da ansiedade de todos para pôr os assuntos e novidades em dia, e muita alegria no reencontro, cujo único compromisso até o domingo à tarde era com a felicidade, regada à cerveja, muita comida e brincadeiras. Não demorou muito para se formar uma mesa de truco. Naquela noite, “Gerardo” estava iluminado e com muita sorte no jogo de cartas. Ganhou praticamente todas as rodadas. Convencido de ser um campeão nato, passou a apresentar-se como professor e oferecer aulas para quem quisesse não só aprender a jogar, mas ser vencedor no truco. Lembrava que não importava quem fosse seu parceiro, vez que naquela noite revezou com vários, e saiu vencedor, e quando o parceiro se tornava adversário, esse perdia. De forma que não tinha outra conclusão, os méritos da vitória eram de “Gerardo”. Cansado de ganhar, deixou a mesa de truco e foi para uma varanda, onde alguns amigos ensaiavam uma roda de desafio, versos rimados de improviso, que envolviam algum acontecimento ou característica dos presentes. Gerardo foi, sem dúvida, o melhor. Mais à noite, sob os efeitos desinibidores do álcool, quando a turma começou a cantar, o campeão, mais uma vez, não ficou pra trás, estava convencido que tinha cantado melhor que todos. E não se pode negar. Lembrou letras completas de antigas canções e cantou no ritmo e afinado,


considerando as circunstâncias de diversas garrafas já vazias naquele momento. Após mais algumas rodadas de cerveja, sempre entremeada com tira-gosto – um caldo de galinha ou de feijão, um pedaço de costela ou de um churrasco sempre feito na horinha – “Gerardo” já estava se apresentando como professor também de improvisos e de cantoria. Substituiu na churrasqueira por menos de meia hora e alardeava ter feito o melhor churrasco. Dizia-se um mestre-cuca das grelhas. A cerveja que serviu era sempre a mais gelada. E num ponto toda a turma concordava: os causos que envolviam “Gerardo” eram sempre os mais engraçados. Com simpatia, presença de espírito e irreverência, cooptava a atenção e interesse de todos. Os companheiros davam corda ao “Gerardo”. Tudo muito divertido e agradável. Após muitas gargalhadas e horas de diversão, e sob muitos protestos e resmungos, foram dormir. Ao despedir-se de cada um, “Gerardo” não cansava de repetir: “hoje você conheceu um verdadeiro campeão. Não se preocupe se vier a sonhar comigo. Campeão, como eu, impressiona mesmo!” No sábado, a performance de campeão se repetiu. Brincou que tinha pescado tudo que estava na caixa de isopor. Apresentou-se imbatível no jogo de cartas, seus causos continuavam a despertar o interesse de todos, e, ao final da noite e após muitas cervejas, se apresentava novamente como professor. Repetia que um verdadeiro campeão deve ensinar e formar novos campeões. Não queria aqueles talentos só para ele. No domingo, já amanheceu distribuindo propagandas dos cursos de como ser um campeão. Como se diz na região: estava num enjoamento de dar dó, que só ele aguentava.

Como a cerveja tinha acabado, a turma, agora no quintal da casa que dava fundos para o lago, passou a tomar chope numas canecas de alumínio. Era um dia muito bonito e a turma continuava animada, agora regada também por um bicarbonato, sal de fruta, Engov, chá de boldo e de folha de mamão. Os fígados já davam mostras de cansaço, mas era preciso acabar com o estoque de mantimentos e de bebidas. A volta com sobra, principalmente de bebida, era um descrédito para a turma. Uns encarregados do churrasco, outros do almoço, e todos servindo chope ao “Gerardo”, o mínimo que podiam fazer para um campeão, como ele dizia ao agradecer a cada um que sempre lhe mantinha a caneca cheia do chope mais gelado. Naquele dia, um dos companheiros, a mais ou menos cem metros do quintal da casa, pescava umas piabinhas que logo viravam tira-gosto. Outro dos companheiros, num lapso de descuido do “Gerardo”, pegou uma piabinha viva e colocou na caneca do campeão. Contou a façanha para cada um dos demais, menos, naturalmente, pro convencido, ou melhor, pro campeão. Após, e quando todos já sabiam que tinha uma piabinha naquela caneca, discreta e propositadamente, deixaram de servir “Gerardo”. Todos de olhos bem atentos para aquela caneca e a reação do “Gerardo”. Ele, ao ver o bichinho no fundo, fez questão de mostrar a todos e dizer: “Vejam só o que é ser campeão. A vida de campeão tem seus privilégios e até a natureza reconhece. Enquanto aquele amigo está lá no sol, tentando com muita dificuldade pescar umas piabinhas, essas, sabendo que eu adoro um peixe com chope, veio direto para a minha caneca.” Realmente, depois dessa, todos tinham uma certeza: “Gerardo” era um campeão de presença de espírito. Nada o apertava nem o deixava sem graça ou sem uma saída com muito bom humor.

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CrĂ´nica

Salvador Pacheco: o falso juiz Roberto Lemos dos Santos Filho Juiz federal

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“Chamou o ilustre Advogado e ponderou que os processos estavam muito atrasados, situação absurda e inconcebível para a boa administração da Justiça, e que por ele conhecer os processos o auxiliaria proferindo decisões e sentenças.”

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Crônica

Com certo temor de experimentar processo por remoto dano moral, me arrisco a escrever sobre Salvador Pacheco, também conhecido como “O pilantraço”. Dos poucos registros existentes (artigos publicados pelos ilustres Desembargadores Vladimir Passos de Freitas – Revista Consultor Jurídico, Romero Osme Dias Lopes – Jornal da AMAMSUL, e Heliophar Serra – “A fascinante natureza humana” - obra editada em 1991), foi extraído o a seguir narrado. O ano era de 1958. Local, a pacata cidade de Porto Murtinho-MS, conhecida como a última guardiã do rio Paraguai, que teve população estimada pelo IBGE no censo de 2010 em 15.372 habitantes. Município criado por lei editada em 20 de setembro de 1911, cresceu à beira do rio Paraguai em razão de porto fluvial instalado nas barrancas da Fazenda Três Barras para o escoamento da produção de erva mate. Possui clima tropical, com temperaturas que variam em média entre 10º no inverno e 40º no verão1. No dia 20 de outubro de 1958, pelo avião da Real Aerolíneas, chegou à cidade indivíduo que se apresentou como Salvador Pacheco. Publicamente, Salvador Pacheco comunicou que havia sido nomeado Juiz de Direito pelo Exmo. Governador do Estado, e nessa qualidade iria tomar posse do cargo no dia seguinte. Às 15h do dia 21 ocorreu a solenidade de posse, no Clube dos Caiçaras, com discursos de saudação e agradecimento, ao final celebrada com alegre coquetel regado por champanhe e uísque. Ao que consta, chegou disposto a colocar o serviço em dia. Passou a despachar processos que tramitavam perante os dois cartórios da Comarca. No dia 22 de outubro de 1958, um dia após a posse, convocou o Tribunal do Júri, presidiu o sorteio de jurados e designou a sessão de julgamento para o dia 24 novembro. Arguto, logo viu que o culto, honesto e respeitado Advogado Hermínio Batista de Azevedo, futuro brilhante Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, poderia o auxiliar.

Chamou o ilustre Advogado e ponderou que os processos estavam muito atrasados, situação absurda e inconcebível para a boa administração da Justiça, e que por ele conhecer os processos o auxiliaria proferindo decisões e sentenças. Dr. Hermínio retrucou e foi advertido por Salvador Pacheco: “- Deixe seus escrúpulos de lado, estou depositando no senhor minha máxima confiança, porque fiz pesquisa e sei que o senhor é a pessoa da mais absoluta idoneidade moral desta cidade”. Demonstrando ser perspicaz e talvez visionário, antecipando o que somente no ano de 2004 foi reconhecido pelo legislador brasileiro como garantia de todos – art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição (Emenda Constitucional nº 45/2008) – , Salvador Pacheco advertiu ao eminente Advogado recém-convocado a auxiliá-lo da necessidade de solução mais célere de litígios, no mínimo para ele mais simples: “- Não quero sentenças enfeitadas. Quero sentenças curtíssimas e objetivas”. Salvador Pacheco iniciou coleta de dinheiro. Chamava comerciantes da localidade e explicava que, para atender pedido do Presidente do Tribunal, teve que se deslocar às pressas para Porto Murtinho, desprovido de numerário. E assim, sempre louvando o alto gabarito moral e outras qualidades pessoais dos interlocutores, obteve empréstimos de consideráveis valores dos incautos tabaréus ignaros da distante cidade fronteiriça, que se orgulhavam por merecer a confiança do meritíssimo novo juiz.

1 Sobre a história de Porto Murtinho, vale conferir o precioso vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=hRdUcnXgkQ8

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“Oferecido uísque como aperitivo, Salvador Pacheco declarou preferir cachaça. A mulher do anfitrião se viu em dificuldade, tendo que servir pinga “Três Tombos”, guardada para embebedar peru de natal. Servida a dose, Salvador Pacheco levantou o cálice, contemplou a brancura do líquido, e ingeriu tudo em um só golpe [...]” Ainda logo após a assunção da Comarca, foi à casa do “colega” da cidade de Aquidauana na companhia de um rábula que atuava na região. Oferecido uísque como aperitivo, Salvador Pacheco declarou preferir cachaça. A mulher do anfitrião se viu em dificuldade, tendo que servir pinga “Três Tombos”, guardada para embebedar peru de natal. Servida a dose, Salvador Pacheco levantou o cálice, contemplou a brancura do líquido, e ingeriu tudo em um só golpe, exclamando após: “- Excelente, excelente!”. O proceder de Salvador Pacheco chamou a atenção do Magistrado de Aquidauana que, desconfiado, recusou convite para jantar. Segundo os poucos registros encontrados, antes da data designada para a realização do Júri, a esposa do Advogado convocado por Salvador Pacheco para auxílio, funcionária da agência dos Correios da cidade, comunicou ao novo julgador o recebimento de telegrama noticiando a chegada do juiz que o antecedera na Comarca em viagem de férias com a família. No mesmo dia Salvador Pacheco procurou o então Advogado e auxiliar do “mutirão” que havia iniciado, e a ele narrou que necessitava se deslocar a Cuiabá em razão de convocação do Presidente do Tribunal. Alegou que estava desprovido de recursos, e pegou vinte mil cruzeiros de empréstimo do valoroso causídico e auxiliar. Em seguida, conseguiu uma viatura militar e se mandou. Acabou preso em Jardim, sendo apurado que anteriormente procedeu da mesma maneira na Comarca de Rio Brilhante.

O final de todo o ocorrido é controverso, não há nos parcos registros conclusão uniforme. Vladimir Freitas narra que Salvador Pacheco foi preso em Nioaque e encaminhado de trem, sob escolta, para Campo Grande. Teve facilitada fuga para evitar exposição do verdadeiro constrangimento às autoridades locais. Diz-se que numa parada do trem a escolta aliviou a atenção para o falso juiz ir ao banheiro fazer necessidades, quando então ele escapou para a liberdade. Romero Osme Dias Lopes e Heliophar Serra narram que Salvador Pacheco embriagou os policiais que o escoltavam, e fugiu numa parada do trem antes de Campo Grande. Acrescentam que dias após a fuga Salvador Pacheco, de Bauru-SP, enviou um telegrama ao Promotor de Justiça nos seguintes termos: “Dr. Eloy V. de Toledo –– peço mil desculpas - não poderei comparecer à audiência que será designada por essa desmoralizada justiça (...)” Certo é que o narrado deu início à ação penal intentada por denúncia ofertada pelo Promotor de Justiça César Fróes em 04.12.1958, na mesma data recebida pelo Juiz de Paz ao tempo em exercício na Comarca de Porto Murtinho. Também é certo que, por decisão lavrada aos 05.04.1974, Salvador Pacheco teve reconhecida a extinção da punibilidade em razão da prescrição da pena. Esse é o caso do falso juiz Salvador Pacheco, “O pilantraço”. Em remate, conforme dito popular, acentuo: quem quiser que conte outra.

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Academia

William Shakespeare: a polêmica sobre a paternidade das obras, quatrocentos anos após a sua morte (1616 – 2016) B. G. da Costa Fontoura Juiz federal aposentado

“There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy.” SHAKESPEARE, William Hamlet, Prince of Denmark, act I, scene 5

1 – Em 23 de abril de 1616, conforme a maioria, ou na véspera, 22, conforme outros, morria em Madri MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA (n. Alcalá de Henares, 29 de setembro de 1547). Naquela mesma data de primavera europeia, 23, morria em Stratford-upon-Avon, distrito de Stratford-on-Avon, condado de Warwickshire, o teatrólogo que viria a ser o mais representado no mundo, proclamado poeta nacional da Inglaterra, hoje identificado como Bardo do Avon ou simplesmente como Bardo: WILLIAM SHAKESPEARE. Embora, em princípio, costume-se afirmar que aqueles dois expoentes das letras encerraram as suas vidas no mesmo dia, a verdade é que houve um lapso de um decêndio entre os dois óbitos. De fato, a bula pontifícia Inter-Gravissimas, de 24 de fevereiro de 1582, do papa Gregório XIII (1502 –

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1585), instituíra a reforma do calendário, suprimindo os dias compreendidos entre 5 e 14 de outubro de 1582 e os dias 29 de fevereiro dos futuros anos seculares, cujo respectivo cardinal não fosse divisível por quatrocentos (metemptose). Ora, como o Reino Unido, dissentindo do papado, só veio a se reconciliar com a correta translação da Terra em 1752, quando perfilhou, com cento e setenta anos de atraso, a reforma gregoriana e promoveu a supressão dos dias entre 3 e 13 de setembro daquele ano, até então estabelecera-se lá uma desarmonia com o calendário adotado pelas potências católicas, como a Espanha. De tal sorte, conquanto Cervantes e Shakespeare tenham perecido, aparentemente, na mesma data, tais fatos não ocorreram no mesmo dia nem no mesmo mês, mas sim com um intervalo de dez dias,


Atribui-se ao BARDO, ao todo, a autoria

Em 1582, aos 18 anos, SHAKESPEARE desposa Anne Hathaway (c. 1556 – 1623), tendo essa

de cinco poemas, Vênus e Adônis (1593),

união gerado Susanna (1582 – 1648) e os gêmeos

A queixa de uma amante (1593), Lucrécia

Hamnet (1585 – 1596) e Judith (1585 – 1662).

(1594), O peregrino apaixonado (1599)

Desde o nascimento destes dois últimos e até

e A fênix e a pomba-rola (1601), de 154 sonetos (1609) e de 37 peças teatrais

por volta de 1592, ocorre uma lacuna em sua

(1590 – 1613).

biografia: são os chamados “Lost Years”.

1590-1613

1582

respectivamente em 23 patronímico, significando de abril e em 3 de maio de “agita lança”, era bastante 1616, correspondendo comum nas classes baixas aquela primeira data no do meio rural de algumas Reino Unido (O. S. – old regiões inglesas. Em 1582, style) a esta última data nas com dezoito anos de idade, nações alinhadas com Roma. ele desposa Anne Hathaway 2 – Se a aventurosa (c. 1556 – 1623), tendo existência do criador do essa união gerado Susanna engenhoso fidalgo (1605) e (1582 - 1648) e os gêmeos engenhoso cavaleiro (1615) Hamnet (1585 – 1596) e Dom Quixote da Mancha Judith (1585 - 1662). Desde se mostra relativamente o nascimento destes dois bem documentada para últimos e até por volta de a posteridade, o mesmo 1592, ocorre uma lacuna em não acontece com a sua ambígua biografia: são relativamente obscura os chamados “Lost Years”. existência de Shakespeare, Desnudo de muitos estudos Shakspeare, Shaksper, regulares e sem atingir o Shakeshafte, Shagspere patamar universitário, ele ou Shaxpere, ainda que deixa a família residindo William Shakespeare, National Portrait Gallery, London identificado com outras em Stratford, em companhia variadas grafias. Sequer dos seus pais, e se transfere se sabe a data precisa de seu nascimento, mas apenas sozinho para Londres, em época imprecisa, a fim de a presumida, 23 de abril de 1564, dia de São Jorge, se tornar ator, vindo a ingressar como tal na trupe de patrono da Inglaterra, tendo sido batizado, na igreja Lorde Chamberlain (Chamberlain’s Men). Com o passar da Santíssima Trindade, Stratford-upon-Avon, em 26 do tempo, torna-se titular do direito sobre um décimo de abril de 1564, como filho de John Shakespeare (c. da renda do célebre Teatro Globo, direito esse que ele 1531 – 1601) e de Mary Arden (c. 1537 – 1608). Seu aliena em 1611.

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Academia

Na era elisabetana, findada em 1603, porém, ainda subsiste a ridícula vedação, de origem religiosa, coibindo a atuação de mulheres no palco, salvo para a mímica, de modo que não existem atrizes e os papéis femininos são desempenhados por mancebos travestidos.

1603

3 – Atribui-se ao Bardo, ao todo, a autoria de cinco poemas, Vênus e Adônis (1593), A queixa de uma amante (1593), Lucrécia (1594), O peregrino apaixonado (1599) e A fênix e a pomba-rola (1601), de cento e cinquenta e quatro sonetos (1609) e de trinta e sete peças teatrais1 (1590 – 1613), empregando mais de oitocentos personagens. Tradicionalmente estão tais peças classificadas: a) quatorze como comédias, b) treze como tragédias e c) dez como dramas históricos, muitos destes últimos carentes de compromissos para com a verdade, como, e.g., ocorre na forma aplicada para retratar Jeanne d’Arc, dita Jeanne la Pucelle (1412 – 1431), em Rei Henrique VI – 1ª parte, ato V, cena 4. 4 – Ignoram-se, contudo, os motivos pelos quais iria o Bardo retornar à sua cidade natal em 1613, três anos antes de morrer, para se dedicar a atividades distintas do teatro, abandonando uma triunfante carreira artística, e, até mesmo, a exata causa mortis nem se acha suficientemente esclarecida. Expurgando a tragédia Péricles (com final feliz e não relacionada ao estadista ateniense homônimo), a primeira publicação conjunta das peças ocorre post mortem, em 1623: é o First Folio, organizado pelos atores John Heminges (c. 1556 – 1630) e Heny Condell (? – 1627). Graças ao escandaloso exercício do plagiato naqueles tempos, 1

a indigência da originalidade sobressai e a articulação dos enredos não constitui o ponto elevado daquelas obras, pois, dentre as comédias, apenas Trabalhos de amor perdidos e A tempestade aparentam não ter fontes imediatas de inspiração. As demais comédias e todas as tragédias se inspiram diretamente em obras de L. Ariosto, J. Ayrer, M. Bandello, G. Boccaccio, H. Boece, A. Brooke, G. Chaucer, G. Cinthio, G. Fiorentino, C. Gonzaga, J. Gower, R. Greene, R. Holinshed, T. Lodge, Luciano de Samósata, J. de Montemor, Ovídio, W. Painter, Plauto, Plínio o Jovem, Plutarco, Saxo Grammaticus, N. Secchi, Sêneca, P. Sidney, E. Spenser, G. Straparola e Terêncio. Emerge aí uma inquestionável supremacia de literatos italianos e clássicos da antiguidade greco-romana, ressaltando o triunfo da renascença ítala, no seio da qual se esculpiu a mais linda história de amor do mundo ocidental, a partir do conto de Luigi Da Porto (1485 – 1529), reelaborado por Matteo Bandello (1485 – 1561) e, ao depois, teatralizado pelo Bardo, a respeito do desditoso casal de adolescentes veroneses Romeo Montecchio e Giulietta Capuleto. ”Amor omnia vincit”. 5 - Interessada em teatro, frequenta récitas privadas a rude e erudita Elizabeth I (1533 – 1603), cujo extenso reinado (1558 – 1603) baliza o áureo ocaso da dinastia Tudor (1485 – 1603). Na era elisabetana, porém, ainda

Para a cronologia das trinta e sete peças, consultar o apêndice no final

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Morre ROGER MANNERS, 5º conde de RUTLAND. SHAKESPEARE trabalha para ele na feitura de um escudo e teria cessado de escrever exatamente no ano seguinte ao de sua morte.

1612

subsiste a ridícula vedação, de origem religiosa, coibindo a atuação de mulheres no palco, salvo para a mímica, de modo que não existem atrizes e os papéis femininos são desempenhados por mancebos travestidos. Assim, sob os trajes da geniosa Catarina, de Julieta, de Titânia, das duas Pórcias, de Viola, de Ofélia, de Desdêmona, de Cordélia e de outras personagens que decoram a galeria shakespeariana, ocultam-se estruturas masculinas, desprovidas de feminis proeminências mamárias, mas providas de protuberâncias varonis, as quais, obviamente, não são abandonadas nos camarins quando das entradas em cena. Paradoxalmente, existe uma mulher reinante, mas nenhuma mulher reinando nos palcos. “Shocking!” Conjetura-se até que a expressão drag queen se origina da expressão Dressed As Girl (vestido como garota), forma de assinalar, nos textos teatrais da época, a intervenção de ator em trajes femininos, sendo drag, portanto, um acrograma daquela expressão. Somente ao tempo de Charles II (1630 – 1685), de alegre reinado (1660 – 1685), décadas após a morte de Shakespeare, é que a grotesca proibição viria a ruir e, então, a espirituosa e carismática Nell Gwyn (1650 – 1687) poderia cessar de vender laranjas na plateia, para subir ao palco como comediante e ir aninhar-se na alcova real como a carinhosa favorita e mãe de filhos do monarca. Tanto na era elisabetana como na fase dos Stuarts, o teatro é prestigiado por gente de diversas camadas sociais, o que não acontece no soturno

Em 23 de abril de 1616, conforme a maioria, ou na véspera, 22, conforme outros, morria em Madri MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA. Naquela mesma data, morria em Stratford-upon-Avon, condado de Warwickshire, o poeta nacional da Inglaterra: WILLIAM SHAKESPEARE.

1616

interregno puritano da Commonwealth (1649 – 1660), quando os espetáculos resultam banidos, sob o pretexto de se desestimularem hábitos uranistas. 6 – Entusiasta de música, Shakespeare serve-se dela para adornar quase todas as comédias e tragédias, recorrendo a composições de Thomas Morley (1557 – 1602) para acompanhamento de excertos cantados por personagens, mas, infelizmente, parece que a maioria das partituras não sobrevive. De qualquer sorte, a influência das suas obras teatrais no campo musical assume proporções de inquestionável magnitude, inspirando composições instrumentais e vocais, onde se destacam obras de F. Schubert, H. Berlioz, F. MendelssohnBartholdy, P. Tchaikovsky, E. Elgar, C. Debussy, R. Vaughan Williams, C. Orff, W. Walton, D. Shostakovich e outros, dentre os quais, todavia, não pode ser arrolado L. van Beethoven, porquanto a sua abertura Coriolano se destina à tragédia homônima de H. von Collin, e não à do Bardo. Paralelamente, a quase totalidade das comédias e tragédias e alguns poucos dramas históricos servem como base para libretos operísticos, moldados em idiomas distintos e musicados por H. Purcell (The Fairy Queen), G. Rossini (Otello ossia Il moro di Venezia), H. Berlioz (Béatrice et Bénédict), O. Nicolai (Die lustigen Weiber von Windsor), A. Thomas (Hamlet), R. Wagner (Das Liebesverbot, oder Die Novize von Palermo), G. Verdi (Macbetto, Otello e Falstaff), Ch. Gounod (Roméo et Juliette), F. Faccio (Amleto), H. Goetz

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Academia

Em 1769, um século e meio após a morte do BARDO, aparece a primeira publicação hostil à sua autoria, a anônima The Life and Adventures of the Common Sense: An Historical Allegory, escrita presumivelmente por HERBERT LAWRENCE, um possível amigo de DAVID GARRICK, poeta, teatrólogo e ator shakespeariano.

1769

(Der widerspenstigen Zähmung), R. Vaughan Williams (Sir John in Love), G. Malipiero (Giulio Cesare), R. Zandonai (Giulietta e Romeo), B. Blacher (Romeo und Julia), S. Barber (Anthony and Cleopatra), H. Sutermeister (Romeo und Julia), B. Britten (A Midsummer Night’s Dream), A. Reimann (Lear) e outros, dentre os quais, todavia, também não podem ser arrolados G. Händel (Giulio Cesare in Egitto), porquanto o libreto se aparta do texto shakespeariano, e V. Bellini (I Capuleti ed i Montecchi), porquanto o libreto observa mais a tradição itálica do que a versão shakespeariana. No panorama geral, de qualquer maneira, destacam-se, entretanto, libretistas e compositores de variadas nacionalidades, adeptos de diferentes correntes musicais, ao longo de mais de trezentos anos. 7 – Em 1807, Charles Lamb (1775 – 1834) e sua irmã Mary Lamb (1764 – 1847), venerando o Bardo, publicam Tales from Shakespeare, uma coletânea de contos nos quais foram metamorfoseadas peças teatrais, tendo como alvo o público infantil, o que alarga o universo leitor, embora sejam inapropriados para crianças alguns dos textos mais violentos, originalmente escritos para

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deleite de plateias prenhes de espectadores sedentos de sangue. Mais tarde, com o advento da cinematografia, torna-se inexorável o consórcio entre o teatro e a sétima arte, multiplicando-se astronomicamente a porção de espectadores. Avultam-se, então, cineastas de marcantes personalidades, que enriquecem a percepção das peças, fazendo uso de recursos impensáveis para a limitação dos palcos. Centenas de produções baseadas em obras shakespearianas atingem as telas (só em Hamlet apoiamse cerca de trinta). A título ilustrativo, listam-se apenas dez das mesmas, porém algumas delas consideradas antológicas: Sonho de uma noite de verão (1935), de M. Reinhard; Hamlet (1948), de L. Olivier; Othello (1951), de O. Welles; Júlio César (1952), de J. Mankiewicz; Ricardo III (1955), de L. Olivier; A megera domada (1967) e Romeu e Julieta (1967), ambas de F. Zeffirelli; Henrique V (1989), de K. Branagh; Noite de Reis (1997), de T. Nunn; e O mercador de Veneza (2004), de M. Radford. 8 – Em 1769, um século e meio após a morte do Bardo, aparece, porém, a primeira publicação hostil à sua autoria, a anônima The Life and Adventures of


the Common Sense: An Historical Allegory, escrita presumivelmente por Herbert Lawrence, um possível amigo de David Garrick (1717 – 1779), poeta, teatrólogo e ator shakespeariano. Estava semeada uma imensa suspeita, a partir da qual germinariam teorias sobre mais de sessenta possíveis candidatos à genuína paternidade daquelas obras, máxime das trinta e sete peças teatrais. A partir daquela tenra semente, surgem mais de cinco mil livros manifestando contestações à autoria das obras atribuídas a Shakespeare: é a posição exteriorizada pelos antistratfordianos, assim denominados por se oporem aos stratfordianos, partidários do Bardo. Se alguém quiser ler todos aqueles livros, à razão de um por dia, sem interromper em sábados, domingos e feriados, despenderá mais de treze anos e oito meses até completar a leitura do último. Em consonância com

tal realidade, a classificação bibliográfica instituída em 1876 por Melvil Dewey (1851 – 1931), a mais utilizada no mundo e constantemente atualizada, estabelece uma subclasse específica para individualizar as obras que tratam das controvérsias sobre a autoria do legado shakespeariano (822.33A). Por outro lado, aquele sistema classificatório estabelece, outrossim, subclasses específicas para individualizarem: a) biografia, críticas, fontes, condensações e outros aspectos alusivos ao Bardo (822.33B a 822.33H), o que faz dele o único ficcionista considerado também assunto; e b) conjuntos ou, em separado, a quase totalidade de cada uma das obras a ele atribuídas (822.33I a 822.33Z), o que o torna o único autor a merecer tal peculiaridade distintiva. 9 – As teses dos antistratfordianos se arrimam, precipuamente, nas circunstâncias: a) da origem humilde

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Academia

Hamlet, 1789, Ato I, Cena IV, por Henry Fuseli

de Shakespeare; b) de seus incipientes estudos; c) da ignorância de seus pais e de sua prole supérstite; d) da obscuridade de sua vida; e) do total desaparecimento dos manuscritos originais das obras; f) da inexistência de cartas por ele escritas; g) da surpreendente ausência de menção ao destino dos livros integrantes de sua presumível biblioteca e ao destino de suas obras, no minucioso e estranho testamento de 25 de março de 1616; e h) da absoluta falta de uma homenagem póstuma, prestada por intelectuais coevos, comum em casos de óbitos de outros literatos. A rigor, a partir do exame do conteúdo das obras atribuídas ao Bardo, os antistratfordianos sustentam que o autor das mesmas deveria: a) ser um aristocrata, à vista do desembaraço com que descreve a vida nas cortes e as atividades de caça e de falcoaria, inerentes à nobreza; b) possuir instrução de nível superior, por entender de direito e de medicina, além de manter interesse em alquimia, astrologia, astronomia, filosofia, heráldica e mágica; c) ter participado de viagens a vários locais, sobretudo a cidades situadas no norte italiano, além de conhecer idiomas como francês, italiano e latim; d) ter experiência com navios, com navegação e tempestades marítimas e com operações bélicas, como as de assédio; e) ter participado de um duelo, como contendor ou, ao menos, como testemunha; f) dispor de uma bem sortida biblioteca, pois se valeu ele de vinte mil vocábulos diferentes, ao passo que para John Milton (1608 – 1674) bastaram oito mil. E Shakespeare de

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Stratford não chega a satisfazer a tais requisitos. 10 – O complexo de mais de seis dezenas de candidatos apontados abrange cinco condes, duas condessas, combinações dos mesmos, a própria rainha Elizabeth I, Sir Francis Bacon, quinze literatos contemporâneos do Bardo e outras dezenas mais, de forma que a multiplicidade de correntes antistratfordianas implica a debilitação da causa comum. Para aniquilar estas candidaturas, os stratfordianos contratacam, argumentando que, enquanto vivo o Bardo, jamais fora questionada a autoria das obras e chegam a aceitar até a coautoria para algumas delas. Ora, as famílias de origem nobre de então desaprovam os seus membros que escrevem para o teatro, considerando tal ocupação degradante, embora os tolerem como patronos de trupes. Aliás, os espetáculos acontecem apenas no turno vespertino, porque nas cercanias dos teatros londrinos é comum o funcionamento de lupanares à noite com a presença de uma vizinhança boêmia e pouco recomendável para aquelas famílias. Supondo-se que o verdadeiro autor fosse um aristocrata que, a fim de resguardar a sua peculiar situação diante dos preconceitos da época, desejasse manter-se no anonimato, é óbvio que não haveria quem soubesse ou quem pudesse contestar a autoria daquele que lhe emprestara o nome, explicando-se, por outra, o desaparecimento dos manuscritos originais como uma providência de proteção àquele anonimato, consistente em frustrar, para o futuro, eventuais exames grafotécnicos.


Hermia e Lysander. Sonho de uma noite de verão, por John Simmons, 1870

Quatro candidatos integrantes da aristocracia preenchem todos ou a maior parte dos requisitos e se destacam dos demais, apresentando mais nítida viabilidade e mostrando-se mais plausíveis. 10.1 – Edward de Vere, 17º conde de Oxford (1550 – 1604). Poeta lírico, escreve, na juventude, peças teatrais, mas cessa de fazê-lo quando aparece o Bardo. Residiu na Itália. Ora, a) sete comédias são ambientadas na Itália, total ou parcialmente, ou, pelo menos, têm personagens predominantemente italianos: A megera domada, Os dois cavalheiros de Verona, O mercador de Veneza, Muito barulho por nada, Bem está o que bem acaba, Conto de inverno e A tempestade; e b) dez tragédias são ambientadas, total ou parcialmente, na Itália ou na antiguidade grecoromana: Tito Andrônico, Romeu e Julieta, Júlio César, Tróilo e Cressida, Otelo (ato I), Antônio e Cleópatra, Coriolano, Tímon de Atenas, Péricles e Cimbelino. A época de sua morte (Newington, 24 de junho de 1604), nove anos antes do início da inatividade literária do Bardo, embaçalhe a candidatura, qual calcanhar de aquiles, mas pode supor-se que tenha ele deixado obras armazenadas, trazidas à luz apenas postumamente. A Encyclopaedia Britannica registra que, no século XX, Oxford se revela como o mais forte dos candidatos. 10.2 – Francis Bacon, visconde de St. Albans (1561 – 1626). Estadista, advogado, filósofo e ensaísta muito culto, deixa obras publicadas, sendo um dos criadores do método experimental e indutivo. Esotérico e

talvez iniciado na Fraternidade Rosa-Cruz. Seu irmão Anthony, residente na corte francesa, também figura como candidato. Em Trabalhos de amor perdidos, comédia ambientada na Navarra francesa, o bobo Costard emprega o termo honorificabilitudinitatibus (ato V, cena 1), que seria um anagrama latino de “Hi ludi F. Baconis nati tuiti orbi” (“Estas peças, nascidas de F. Bacon, estão preservadas para o mundo”)... São baconianos os romancistas Mark Twain (1835 – 1910) e Henry James (1843 – 1916) e o ator shakespeariano Michael York (n. 1942). 10.3 – William Stanley, 6º conde de Derby (1561 – 1642). Quando jovem, frequenta ele as cortes francesa e navarrina, onde presencia incidentes mais tarde retratados em Medida por medida e Trabalhos de amor perdidos. As suas viagens por cerca de cinco anos ecoam em A megera domada, Os dois cavalheiros de Verona, O mercador de Veneza e Bem está o que bem acaba, comédias ambientadas na Itália. Possui ele as mesmas iniciais do Bardo: W. S. A comédia Sonho de uma noite de verão teria sido composta para ser encenada durante o seu casamento com Elizabeth de Vere, filha do conde Oxford, também candidato, a quem Derby pode ter sucedido como autor das peças, a partir de 1604. William Stanley ainda é o nome de um personagem do terceiro drama histórico sobre Henrique VI. 10.4 – Roger Manners, 5º conde de Rutland (1576 – 1612). Estudioso, linguista e viajante, que, entre outras

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Academia

Em 1807, Charles Lamb e sua irmã, Mary Lamb, venerando o BARDO, publicam Tales from Shakespeare, uma coletânea de contos nos quais foram metamorfoseadas peças teatrais, tendo como alvo o público infantil, o que alarga o universo leitor.

1807

cidades, conhece Pádua, Verona e Veneza, onde são ambientadas as comédias A megera domada (Pádua), Os dois cavalheiros de Verona e O mercador de Veneza e as tragédias Romeu e Julieta (Verona) e Otelo, o mouro de Veneza (ato I). Também anda por terras danesas, ambiente de Hamlet, tendo o texto desta tragédia sofrido alterações após a viagem do conde. A sua biblioteca engloba muitos livros utilizados para a composição das peças. Shakespeare trabalha para ele na feitura de um escudo e teria cessado de escrever exatamente no ano seguinte (1613) ao da morte do mesmo (1612). 11 – O bom senso aconselha cautela e a não se apedrejar um monstro sagrado de forma leviana. Exista ou não um único ghostwriter, existam ou não dois ou mais ghostwriters, prevalece em favor do Bardo, na dúvida quanto à paternidade dos trabalhos literários, uma presunção de autenticidade, alicerçada na inércia que caracteriza o longo período transcorrido sem que se controvertesse a autoria, mas tal presunção poderá ser elidida a partir de uma sólida prova, que identifique

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categoricamente outrem como o lídimo autor. Ora, até o presente tal prova ainda não foi produzida de maneira suficiente, conquanto subsistam indícios de que terceiro, ainda não bem identificado, tenha redigido os textos ou grande parte deles. Nos últimos quatrocentos anos, o Avon despejou muita água no mar e talvez muita ainda há de despejar até que se consiga conhecer toda a verdade, mas é legítimo nutrir a esperança de que, durante o ano do quarto centenário da partida do Bardo, mais luzes se projetem sobre o enigma da paternidade literária. Parodiando a fala do protagonista da mais longa das tragédias shakespearianas, reputada obra-mestra, a qual epigrafa este texto, compete assinalar: Há mais coisas em Shakespeare e a respeito dele, espectador, do que são sonhadas pela tua imaginação.

bgdacostafontoura@gmail.com Rio, novembro de 2015.


APÊNDICE Cronologia das peças, conforme pesquisas de Sir Edmund Kerchever CHAMBERS (1866 - 1954). 1590/1591, Rei Henrique VI - 2ª e 3ª partes (DH); 1591/1592, Rei Henrique VI - 1ª parte (DH); 1592/1593, Rei Ricardo III (DH), A comédia dos erros (C); 1593/1594, Tito Andrônico (T), A megera domada (C); 1594/1595, Os dois cavalheiros de Verona (C), Trabalhos de amor perdidos (C), Romeu e Julieta (T); 1595/1596, Rei Ricardo II (DH), Sonho de uma noite de verão (C); 1596/1597, Rei João (DH), O mercador de Veneza (C); 1597/1598, Rei Henrique IV - 1ª e 2ª partes (DH); 1598/1599, Muito barulho por nada (C), Rei Henrique V (DH); 1599/1600, Júlio César (T), Como gostais (C), Noite de Reis (C); 1600/1601, As alegres comadres de Windsor (C), Hamlet, príncipe da Dinamarca (T); 1601/1602, Tróilo e Cressida (T); 1602/1603, Bem está o que bem acaba (C); 1603/1604, (nihil); 1604/1605, Medida por medida (C), Otelo, o mouro de Veneza (T); 1605/1606, Rei Lear (T), Macbeth (T); 1606/1607, Antônio e Cleópatra (T); 1607/1608, Coriolano (T), Tímon de Atenas (T); 1608/1609, Péricles (T); 1609/1610, Cimbelino (T); 1610/1611, Conto de inverno (C); 1611/1612, A tempestade (C); 1612/1613, Rei Henrique VIII (DH). *Abreviaturas: C = comédia; DH = drama histórico; T = tragédia.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA BATA, András (Dir.) Opéra: Compositeurs – Oeuvres - Interprètes. Trad. Olivier Mannoni et alii. Cologne: Könemann, 2000. BRYSON, Bill. Shakespeare: o mundo é um palco: uma biografia. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. DEWEY, Melvil. Dewey Decimal Classification and Relative Index. Ed. 21. Albany, NY: Forest Press, 1996. v. 3.

DONATO, Hernâni. História do calendário. 3. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1993. DUNCAN, David Ewing. Calendário. Trad. João Domenech. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, The New. 15th ed. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1990. EVANS, A. J. Shakespeare’s Magic Circle. Freeport, NY: Books for Libraries Press, 1970. HAREWOOD, Conde de (Ed.). Kobbé: o livro completo da ópera. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994. KENNEDY, Michael. Dicionário Oxford de música. Trad. Gabriela Gomes da Cruz e Rui Vieira Nery. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994. KENT, Princesa Michael de. As grandes amantes da história. Trad. Cláudia Gerpe Duarte. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996. LAMB, Charles, & LAMB, Mary. Contos de Shakespeare. Trad. Mário Quintana. 2. ed. Porto Alegre: Ed. Globo, 1964. MASSIN, Jean, et alii. História da música ocidental. Trad. Maria Teresa Resende Costa et alii. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. MAY, R. Who Was Shakespeare? The Man – The Times – The Works. New York: St. Martin’s Press, Inc., 1974. MOURTHE, Claude. Shakespeare. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2007. POHL, F. J. Like to the Lark. New York: Clarkson N. Potter, Inc., 1972. SHAKESPEARE, William. Os sonetos completos. Trad. Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2014. Edição bilíngue inglês - português. ______. Teatro completo de Shakespeare: Comédias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.] ______. Teatro completo de Shakespeare: Dramas históricos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.] ______. Teatro completo de Shakespeare: Tragédias. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.] ______. The Complete Illustred Works. London: Bounty Books, 2013. TULARD, Jean. Dictionnaire du cinema. 8. éd. Paris: Éd. Robert Laffont, 2007. VIOTTI, Sérgio. O teatro de Shakespeare. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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FOTO: JIRLAN BIAZATTI

Família ribeirinha do sertão baiano espera atendimento durante a 4ª edição da Expedição da Cidadania


Versos

A gaivota Luiz Airton de Carvalho Juiz federal aposentado

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I Pare um pouco, escute o som da vida, Ouça o canto do “Bem-te-vi”, O lamento da rolinha no quintal, O grito angustiado da seriema. II Ouça, escute, perceba tudo isso, Depois, procure no céu um ponto distante, Bem longe, lá no azul infindo, Alce com teu espírito o vôo da gaivota. III Paire no alto e, livremente, contempla tua vida, Deixe-se planar livre, feliz, contente de viver. Depois, bem depois, desça a uma praia linda, Escondida lá no fundo de ti mesmo, teu inconsciente. IV Caminhe tranquilo, sinta a areia morna nos pés, Deixe a brisa quente tocar teu rosto, Encontre-se contigo mesmo, Perscrute tudo de bom que aí está. V Encontrarás escombros. Devolva-os ao mar. Verá a tua vida renovar. Te surpreenderás com teus mistérios. O sol iluminará teu rosto. Teus olhos brilharão. Não tenhas medo de olhar-te. Conheça-te a ti mesmo. Sejas Feliz.

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Contos

LadrĂľes Marcos Mairton Juiz federal

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Um homem caminhava por uma estrada, quando percebeu que outro homem também vinha por ela, só que no sentido oposto. Ao chegarem a poucos metros de distância um do outro, o primeiro apontou para o segundo e disse: – Você é um ladrão! Deve estar vindo me roubar! O outro respondeu perguntando: – E quem é você para me chamar de ladrão? Pensa que não sei que você é um dos maiores ladrões das redondezas? Mas o primeiro não deu atenção àquelas perguntas e continuou gritando: – Um ladrão! Um ladrão! Um ladrão quer me roubar! Logo o outro homem pôs-se a gritar também:

Até que um dos guardas suspeitou que o ladrão que causara toda aquela celeuma talvez estivesse escondido. Chamou os colegas, que entraram na mata e passaram a fazer buscas. Minutos depois, os policiais voltaram para a estrada, trazendo preso um homem. Era um conhecido ladrão, que eles vinham investigando há meses, por vários roubos praticados ali mesmo, naquela estrada. Ao ser arrastado da mata para a estrada, o ladrão preso viu os dois homens que ali estavam. Percebendo de quem se tratava, o preso revoltou-se com os policiais e indagou deles: – Por que vocês não prendem aqueles homens também? Eles são tão ladrões quanto eu. Mas os policiais nada responderam. Apenas o mandaram calar a boca, e o levaram para apresentar ao delegado.

– Você é o ladrão aqui! Socorro! Um ladrão! E tanto gritaram que alguns policiais que estavam por perto ouviram e correram para o local. Lá chegando, viram os dois homens gritando “Ladrão! Ladrão!”, e quiseram saber: – Onde? Onde está o ladrão que os atacou? Mas os dois homens não respondiam. Apenas continuavam a gritar “Ladrão! Ladrão!” deixando os policiais bem confusos.

Enquanto isso, os dois homens afastaram-se, cada um para seu lado, indignados com o fato de o preso os tentar incriminar.

Sugestão de moral da história (ficando o leitor inteiramente à vontade para escolher outra): Ladrões geralmente se conhecem. Podem colaborar entre si, quando lhes convém, mas isso não significa que sejam amigos.

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Contos

Lei da gravidade Rafael Ianner Silva Juiz federal

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Ele acordou sem saber se ainda era cedo ou tarde. Resignado, cumpriu seu ritual: barba, banho, beijinho na Esposa, brioches. Ao pé da mesa, o cão e sua festa solitária. No Elevador, um bom dia furtivo saltou do canto da boca em direção aos Vizinhos dos Andares Inferiores. Evitando olhares e conversas, fingiu procurar algo ou alguém no Celular, último modelo da série Diamond Ultra Plus, Geração 6, Sistema Operacional Bionic Marshmallow.

“Desesperado, teve vontade de chorar, mas logo percebeu que de nada adiantaria, pois as lágrimas cairiam para cima e não cumpririam a sua função.” São e salvo na garagem, vestiu seu Automóvel, 0 a 100 em 4,4 Segundos, 231 Cavalos de Potência e Blindagem Nível III-A, à prova de súplicas. E partiu para a guerra.

No semáforo, as Palhetas do Para-Brisa, rápidas e negativas, afastavam ofertas e apresentações circenses. Distraído e tenso, não testemunhou a felicidade do mendigo, Nota de Dez Reais levantada como um Troféu. Nunca saberia que o Doador da Nota ali comprava a indulgência semanal, tampouco que o mendigo dividiria a Nota com mais três. Trânsito parado, sacou o Celular para enviar mensagens desinteressantes para Pessoas Nem Tão Interessantes. Precisava manter ativa a sua Network! Concentrado, não ouviu no Rádio a história de uma mãe, um salário mínimo por mês, que tocava sozinha um orfanato com mais de cem crianças. Tudo corria como o esperado, até que quase tudo foi varrido por uma tempestade sonora e luminosa. Repentinamente, o vácuo foi tomado por milhões de vozes de atendentes de telemarketing e de operadores da bolsa de valores, urrando scripts e cifrões, e a escuridão, inundada por lâmpadas LED em quantidade suficiente para iluminar milhares de Times Squares. Assombrado, percebeu que estava flutuando. Com ele, automóveis, celulares, elevadores... tudo se distanciava rapidamente do solo. Desesperado, teve vontade de chorar, mas logo percebeu que de nada adiantaria, pois as lágrimas cairiam para cima e não cumpririam a sua função. No chão da Terra, somente o Cão, o Mendigo com Mais Três e a Mãe de Mais de Cem. Ele e tudo mais, soltos no espaço. Sem rumo.

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Contos

Um galo Gilberto Mendes Juiz federal

Sonolento, ainda sobre a cama, pensava na morte do galo que o acordava com o canto. Teria de matá-lo naquele mesmo dia. Não lhe queria mal, mas o ensopado deliciava a mulher. Tinha os temperos, e na vila compraria o tomate. Levantou-se, abriu a janela e aspirou um bom tanto de ar. Viu seus carneiros e julgou-os muitos. Depois, foi lavar-se. A mulher serviu-lhe bolo entre poucas palavras. Não tinha material para frases de que não precisava. Bastavam gado, sim, porco, horta, deus, vila, louça etc. Saciado, passou à ordenha. Uma hora depois, saía a galope. Mas não chegou à vila. Antes que cruzasse a ponte, ouviu uma voz que dizia que era Simão, o sitiante. A voz saíra dele mesmo. De súbito, tomou o primeiro desvio e seguiu ao monte. Lá, sentado na relva, recordava-se de suas terras, do curral, dos carneiros, das plantações, da mulher, e inspecionava suas pernas e braços maltratados. Alguém lhe dissera que do outro lado da última montanha era estrangeiro. Lá, não se via crescer o que se comia. Mas até mesmo para o centro da aldeia tinha medo de se transferir. À tarde, matou o galo.

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Contos

É como deixar de cruzar pontes Francisco de Barros e Silva Juiz federal

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“Eu vivi quando esta campina era um grande delta: tudo era ilha, riacho, camboa, tudo era rio quando a maré enchia. E todos nós éramos pontes e pontilhões: vivíamos como atravessadores, de nós mesmos.”

“É como deixar de cruzar pontes”, concluiu. Pouco antes, lhe disse do meu cansaço de viver, do que falo e escrevo, de perceber cada pessoa como um sistema que, enfim, ninguém conhece. E assim me forçar a acreditar numa comunicação cada vez menos crível. A princípio não me respondeu, abriume seu sorriso e me sentou no seu colo, como se eu ainda pudesse me equilibrar em pé em suas pernas, como criança, com suas mãos nas minhas. Como uma memória feliz. Depois me contou uma estória para não dormir. Você nasceu na época dos aterros e dos grandes edifícios. Eu vivi quando esta campina era um grande delta: tudo era ilha, riacho, camboa, tudo era rio quando a maré enchia. E todos nós éramos pontes e pontilhões: vivíamos como atravessadores, de nós mesmos. Vivi para ver a construção dessas pontes que ainda restam. Vê aquela grande, que algema Antônio Vaz ao Bairro do Recife? Primeiro construíram um pilar em pedras, abraçado pelo rio. Esperou-se mais de ano para ver se ainda estaria em pé ou se iria abençoar o mar. Sem pressa. Como

resistiu, construíram outros pilares até que se acabaram as pedras: e isso ainda hoje nos diz muito, aqui as pedras têm um fim. Quando se acabaram as pedras usaram uma madeira escura, que aparenta ser verde quando secam as marés: haveríamos de terminar. A ponte de nada vale quando incompleta: é uma relação humana. Antes de você nascer aterraram tudo: em vez de construírem pontes, eliminaram as ilhas. Aterraram um rio e construíram por cima um canal, para lembrar que ali existiu água. É assim quando se escuta o rio subterrâneo: acredita-se num canal pouco crível. Mas os rios ainda estão por aí. E as pontes. E as ilhas. Numa noite silenciosa ande descalço pelo bairro antigo e sentirá a água sob os seus pés. A água ainda flui pelas ruas, ainda que extintas. Não se pode impedi-las de chegar ao mar. Feche os olhos, meu querido, e veja quantos caminhos. Ao olhar para você eu fecho os meus olhos, e agora você é todo lembrança. Vejo os caminhos de suas palavras: até o mar. Não deixe que aterrem tudo. Desacreditar: é como deixar de cruzar pontes.

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Olhares

Testemunho de um juiz federal sobre o projeto de conciliação da Serra da Canastra André Prado de Vasconcelos Juiz federal

Tendo sido designado pelo Presidente da AJUFE para representar a instituição no projeto de Conciliação da Serra da Canastra, no final da tarde do dia 23 de fevereiro de 2.015 pus-me a caminho, saindo de Belo Horizonte, para uma viagem de mais de 300 quilômetros ao distrito de São José do Barreiro, no município de Vargem Bonita, aos pés da “Casca D’anta” 1. Lá ocorreria a segunda rodada através da respectiva audiência de conciliação. Já no caminho confesso que, mesmo sendo da região, sentia-me um pouco desanimado por várias razões: a distância a ser percorrida de carro, ainda mais quando se considera que o trecho final se

faz em rodovia sem asfalto; a descrença na viabilidade de um processo de entendimento envolvendo uma gama tão variada de interesses; o preconceito contra atividades com alto potencial de degradação, como é o caso da mineração etc. As indagações eram muitas e o otimismo parecia ter um só defensor, o colega Bruno Augusto Santos de Oliveira, condutor e idealizador do projeto que ficava insistindo na necessidade de a AJUFE se fazer presente naquele momento, segundo ele, histórico. Cheguei tarde da noite não me encontrando com os demais partícipes do evento, os quais só vi na manhã seguinte, já no início dos trabalhos. Uma audiência

1 A Cachoeira Casca D’Anta tem queda livre de 186 metros. O nome vem da árvore Casca D’Anta (Drimys winteri) que, por sua vez, foi assim batizada porque tem propriedades medicinais, cicatrizantes. Segundo os pesquisadores, a anta se esfrega no tronco da árvore para curar ferimentos superficiais (in http://www.serracanastra.com.br/atracoes/outras_atracoes.html - visto em 03/2015).

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pública muito bem estruturada. Solenidade da qual participaram todas as autoridades envolvidas no conflito, além do povo da região que aguardava uma solução para seus problemas. Aliás, problemas para resolver é o que mais tem ali naquele rincão: populações tradicionais que pleiteiam sua permanência no local; proprietários de terras procurando indenização em razão da impossibilidade de se produzir nas áreas consideradas como integrantes do parque; e mineradores do quartzito. Os exemplos citados são só para que se tenha uma noção do imbróglio que o projeto tem como escopo solucionar.

A solenidade inaugural ocorreu com a formação de uma ampla mesa co-presidida pela Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso, coordenadora do SISTCON do TRF da 1ª Região, pelos Juízes Federais Miguel Ângelo de Alvarenga Lopes, Diretor do Foro da Seção Judiciária de Minas Gerais, e Bruno Augusto Santos de Oliveira, coordenador da Subseção Judiciária de Passos. Compunham, ainda, o rol de autoridades o Deputado Federal Carlos Melles, o Deputado Estadual Antônio Carlos Arantes, o Procurador Chefe da AGU junto ao ICMBio Carlos Vitor Bezerra, o Juiz Federal Substituto em auxílio ao “Projeto Canastra – Justiça

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Olhares

“Já na plateia estavam o povo da região, suas lideranças políticas, a Igreja, enfim, todos os que depositavam confiança de que, daquele ato processual, sairia um norte para resolução dos problemas jurídicos que tanta insegurança geraram e geram em todos aqueles que ali vivem.”

e Reconciliação” Marco Antônio Barros Guimarães, o representante do Ministério Público Federal em Passos Gustavo Henrique Oliveira, o representante da Defensoria Pública da União Estevão Ferreira Couto, o Presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, Roberto Ricardo Vizentin, o Presidente da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil em Passos - Seção de Minas Gerais, Denis Provenzani, além de mim. Já na plateia estavam o povo da região, suas lideranças políticas, a Igreja, enfim, todos os que depositavam confiança de que, daquele ato processual, sairia um norte para a resolução dos problemas jurídicos que tanta insegurança geraram e geram em todos aqueles que ali vivem. Os problemas jurídicos a que faço menção tiveram origem ainda quando da criação do Parque Nacional da Serra da Canastra – PNSC pelo Decreto 70.355, de 03-04-1972, que abarcou o Chapadão da Canastra (norte) e o Chapadão da Babilônia (sul), perfazendo

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uma área estimada em 200.000 ha (duzentos mil hectares). De lá para cá houve regularização de área correspondente a 71.525 ha. O restante, pendente de regularização fundiária, tem sido palco de conflitos de interesses diversos: contrapõem-se aspirações de preservação ambiental, exploração econômica minerária, turística e agropecuária, manutenção de patrimônio sócio-cultural tradicional, etc 2. Abertos os trabalhos e após a manifestação da Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso, coordenadora do SISTCON do TRF da 1ª Região, e do Juiz Federal Bruno Augusto Santos de Oliveira, coordenador da Subseção Judiciária de Passos, ocupou a tribuna o Deputado Federal Carlos Melles, que fez uma ampla defesa da manutenção do parque em sua extensão atual já regularizada, a saber, os 70.000 hectares atuais. Com o fim da manifestação do parlamentar, tive a primeira grande surpresa, eis que tomou a palavra o senhor Nilson Ferreira – Presidente da Associação dos

In http://jfpassos.wix.com/conciliarcanastra#!caso/c14e3 − visto em 03/2015.

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Moradores de São José do Barreiro. O senhor Nilson pode ser descrito como um típico morador tradicional da região, um cidadão de estatura mediana, semblante envelhecido pelo sol, mãos grossas e calejadas pelo trabalho com a terra. Pois bem, ao tomar a palavra, fazendo uso de uma linguagem idiossincrática, própria das pessoas daquela região, aquele camponês agigantou-se, falou de sua história de vida, de como saiu da região para estudar, como voltou para trabalhar a terra de seus antepassados, como ajudou a organizar os “canastreiros” em uma cooperativa, enfim, da luta desse contingente populacional para preservar seu modo de vida. Foi um momento muito emocionante. A partir daí, tive a certeza de que o otimismo do Bruno tinha razão de ser. Seguiram-se as manifestações do Deputado Estadual Antônio Carlos Arantes, e do Presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, Roberto Ricardo Vizentin.

A cerimônia já se encaminhava para o fim quando a Desembargadora Maria do Carmo Cardoso, com a sensibilidade de quem atuou muito tempo na advocacia, abriu a palavra a todos os componentes da mesa para se manifestar. Essa quebra de protocolo propiciou à comunidade ver que as autoridades que ali estavam ouviram, de forma atenta, o que o povo tinha a dizer. Junto ao povo, sem compor a tribuna de honra, estava a igreja, através de vários padres além do bispo D. Mauro Morelli. Em minha manifestação, aliás, comecei cumprimentando os presentes na figura desse sacerdote que, apesar de não se encontrar na mesa de honra, foi lembrado por todos os que usaram da palavra, num sinal de profundo respeito por sua história de vida. Talvez um tributo à humildade tão pregada por São Francisco, disse eu. À solenidade seguiram diversas palestras sobre como ocorre a produção do queijo canastra, como o ICMBio faz a proteção do parque, qual o ponto de vista dos ambientalistas nessa questão e, por fim, quais as

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Olhares

descobertas da “Comissão da Verdade” 3 acerca do desrespeito aos direitos das populações locais com a instituição do parque. Ao amanhecer do segundo dia, teve início a primeira audiência formal tendo como pauta o acordo a respeito da prevenção e medidas não emergenciais de prevenção a incêndios decorrentes de caso fortuito e força maior no âmbito do parque. Primeiro acordo concluído com sucesso. Seguiu-se ao início das discussões a respeito do valor de indenização das terras pertencentes a pessoas não componentes das populações tradicionais, de forma a integralizar a área regularizada do parque. Negociação tensa, até porque não podia ser diferente eis que ali estavam sendo fixados os critérios definitivos para resolução e resolução fundiária da maior parte da área em litígio. A discussão avançou dia adentro, até ser suspensa para avaliação das partes. Nesse momento, fez-se a oitiva dos mineradores de quartzito, outra vertente da disputa, parte contra a qual, confesso, tinha eu, pessoalmente, certa resistência. Outro momento tenso, com depoimentos carregados de rancor, raiva aplacada pelo Juiz Federal condutor com sua manifestação onde mostrou, ao mesmo tempo, imparcialidade e escuta atenta. Após o cair da chuva do fim de tarde, seguimos para fora do galpão onde ocorria a negociação para presenciar manifestações culturais com desfile de

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carro de boi e folia de reis e uma missa rezada por 1 Bispo, 6 Padres e 1 Frei Franciscano. Uma cerimônia inesquecível independentemente da fé professada por quem teve o privilégio de lá estar. D. Mauro Morelli, às portas da igreja, salientava que depois da chuva haviam se formado, ao pé da canastra, dois arcos-íris, pouco antes do anoitecer. Dizia ele: - São o sinal da aliança, teremos coisas boas ocorrendo ainda hoje!! Aliás, D. Mauro foi uma presença especial naqueles dias. Segundo ele, as bacias hidrográficas são a coisa mais antiga do mundo porque todas as civilizações se desenvolveram em volta delas, mas, ao mesmo tempo, a coisa mais nova do mundo, porque, se não cuidarmos delas, a civilização, como conhecemos, perecerá. A cerimônia religiosa acabou quando já era noite e as previsões de D. Mauro começaram a se confirmar. Logo na saída, encontrei-me com o Procurador da República Gustavo Henrique Oliveira, que me disse que não havia participado da missa em razão de reunião que manteve com os peritos do Parquet Federal, de onde teve a notícia de que, de fato, os canastreiros, levando em conta os critérios científicos, têm que ser considerados como populações tradicionais. Então, o conceito de ocupação do parque pelos canastreiros já não mais existia. Fora substituído por uma nova forma de pensar, a ideia de “manejo”. As reuniões para estabelecimento do paradigma

Comissão criada para investigar os abusos cometidos na criação do parque.

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de indenização dos proprietários não inseridos nas populações tradicionais foram retomadas. As discussões seguiram noite adentro, até que o acordo foi fechado, já no meio da madrugada. As previsões do D. Mauro se concretizaram. Esse esforço tinha resultado em uma saída muito boa para uma grande parte dos problemas que afetam aquela região. Da minha parte e sob a ótica de um Juiz Federal restaram algumas constatações que vale a pena mencionar: a) A conciliação é um instrumento extraordinário de realização da pacificação social, porque permite a “escuta desarmada” do outro. Num momento em que tanta informação nos chega de forma tão rápida, temos que nos preocupar em ouvir, de fato, o que o outro tem a nos dizer;

b) O “Projeto Canastra – Justiça e Reconciliação” tem de prosseguir, pois em cerca de 1 ano conseguiu resolver grande parte do problema que 40 anos de jurisdição ordinária foram incapazes de solucionar; c) Quando os homens de bem se reúnem, independentemente de sua posição eventualmente ser conflitante, a solução justa ocorre; d) Somente o ambiente democrático é capaz de gerar soluções definitivas não só para os processos que demandam prestação jurisdicional, mas, sobretudo, para as lides que permeiam esses mesmos processos; e) Todo servidor público tinha que ter o direito de comparecer a um ato processual como esse. Como constatação final desse testemunho, afirmo que, ao longo de minha trajetória, poucas vezes tive tanto orgulho de pertencer aos quadros da Justiça Federal.

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Olhares

O direito, esse desconhecido Nagibe de Melo Jorge Neto Juiz federal

Quando escolhi o Direito, não sabia ao certo o que era o Direito. A faculdade me ensinou um pouco, a magistratura e a academia têm me ensinado muito. O trabalho diuturno de descoberta das normas, de interpretação dos fatos, de argumentação, de procurar a resposta, a melhor resposta, o melhor argumento, de

“Meu pai dizia que o Direito é difícil. Muito difícil. Mais que difícil, o Direito é frustrante.” procurar sem descanso a solução mais justa para o caso. É isso que fazemos nós, os juristas: os advogados públicos e privados, os juízes, os promotores. Dia após dia. Meu pai dizia que o Direito é difícil. Muito difícil. Mais que difícil, o Direito é frustrante. Uma frustração boa, algumas vezes desconfortável, mas sempre estimulante e desafiadora. Aqueles que vivem do Direito e com o Direito convivem todos os dias com o desco-

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nhecido: uma nova interpretação, uma legislação nova, o último precedente do Supremo, o cancelamento daquela súmula do STJ, a superação do entendimento da TNU. E sempre um argumento novo, e sempre a surpresa. Conviver com o desconhecido é assombroso. Trabalho sisífico. Posso estar enganado, mas não lembro de muitas profissões em que o trabalho do profissional seja estudar, ler, interpretar e reinterpretar textos e contextos. Ao contrário do que pensam alguns, o Direito não é meramente uma técnica de aplicação da Lei. Fosse uma técnica, poderíamos aprendê-la, dominá-la e pronto! Uma vez que soubéssemos a receita, repeti-la-íamos e eis o bolo, mais um. Uma falha na execução aqui e acolá, um bolo mais doce, outro mais pesado, outro dia maior atenção e um bolo mais macio, mas sempre o mesmo bolo, sempre a mesma receita, sempre a mesma técnica. Não, não. Nada é tão simples. O Direito envolve criação e descobrimento à custa de muito estudo, leitura e dedicação. Como costumo dizer aos


alunos, quem quiser trabalhar com o Direito, passará o resto dos seus dias lendo e escrevendo, o que pode ser o paraíso para alguns, mas um pesadelo para outros. Muitas pessoas não sabem ao certo o que os juízes e advogados fazem. Bom, se estão fazendo certo, em grande parte do tempo o que fazem é estudar. Trabalhar com o Direito é estudar o Direito à exaustão e, ainda assim, debater-se todos os dias com os próprios limites, com as fronteiras do que ainda não sabemos, do que ainda não criamos. Trabalhar com o Direito é tentar entender, interpretar do modo mais adequado, uniformizar. Mas nada disso é feito sozinho, o que seria bem mais fácil. E muito mais perigoso. Fazemos isso a muitas mãos, argumentado e contra-argumentando, testando nossos pontos de vista, convencendo e sendo convencidos. Nossa interpretação será sempre desafiada e submetida a um novo teste. Replicamos. A Justiça nos escapa. Lá vamos nós de novo, ler mais uma vez o dispositivo legal. Será que é isso mesmo que diz a Lei? Será que é isso mesmo que a Lei quis dizer? É isso mesmo que a Lei deve dizer? Interpretar novamente o precedente,

buscar a filigrana, fazer da filigrana a pedra angular e interpretar o caso de modo diferente, a uma nova luz, uma luz que seja capaz de descobrir a Justiça. Ontem participei mais uma vez de uma sessão da Turma Regional de Uniformização e, como acontece também nas sessões da Turma Recursal e todos os dias, essas emoções me vieram novamente, mas de modo mais agudo. Nove colegas, além do presidente, todos afiadíssimos, preparadíssimos, alguns que conheci há mais de dez anos, ainda no concurso. Todos prontos para testar as interpretações e argumentos uns dos outros. Uma arena argumentativa onde, ao menor deslize, qualquer um será sacrificado no altar da Justiça. Sempre saio cansado, algumas vezes frustrado frente a esse desconhecido Direito, mas também saio leve e com a sensação do dever cumprido. Levo comigo algumas certezas. Sabemos muito pouco, mas isso não é motivo para desesperança. A Justiça, como as estrelas, é inalcançável, mas todas as noites as estrelas iluminam os homens. Fiz a escolha certa. Falo da escolha profissional. Tenho medo dos juízes que têm absoluta certeza de suas interpretações e decisões.

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Galeria

Cliques pelo mundo I - BERNARDO CARNEIRO Juiz federal Confira fotos produzidas pelo juiz federal Bernardo Carneiro em viagens a lugares como Jericoacoara, Cidade do Cabo e Kruger Park, na África do Sul, e Zanzibar, na Tanzânia.

Cidade do Cabo, África do Sul

Pôr do sol no Kruger Park, África do Sul

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Família de elefantes no Kruger Park, África do Sul

Impalas no Kruger Park, África do Sul

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Galeria

Stone Town, Tanzânia

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Zanzibar, Tanzânia

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Galeria Jangadeiro em Canoa Quebrada (CE)

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Vista da Duna do PĂ´r do Sol em Jericoacoara (CE) Parapente em Canoa Quebrada (CE)

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Galeria

II - CARLOS GERALDO TEIXEIRA Juiz federal O juiz federal Carlos Geraldo Teixeira esteve na Praia de Guarajuba, em Camaçari (BA), no último mês de janeiro e fez este lindo registro.

Praia de Guarajuba, Camaçari (BA), Janeiro de 2016

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III - FABÍOLA QUEIROZ Juíza federal A juíza federal Fabíola Queiroz visitou Austrália e Estados Unidos e compartilha com a Revista de Cultura Ajufe estes belos cliques.

Monte Uluru/Ayers Rock, Austrália

Monument Valley, EUA

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Galeria

IV - DANILA GONÇALVES DE ALMEIDA Juíza federal Confira algumas telas pintadas pelas mãos da talentosa juíza federal Danila Gonçalves de Almeida.

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Júlia - Óleo Sobre Tela (50x60cm), 2015


San Giorgio Maggiore - Óleo Sobre Tela (18x25cm), 2014

Aurora - Óleo Sobre Papel (50x65cm), 2015

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Versos

O fim Marcos Mairton Juiz federal

Quando a terra começa a tremer, E as paredes começam a ruir, Quando não há lugar para fugir, E não há mais aonde se esconder. Quando espaço não há para correr, E se vê que é inútil reagir, Sem espada capaz de agredir, Nem escudo que possa defender. É preciso, talvez, ter humildade, Ou, quem sabe, até serenidade, Para ver que as coisas são assim: Muitas vezes, buscando uma vitória, Construímos nós mesmos uma história Cujo epílogo é o nosso próprio fim.

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FOTO: JIRLAN BIAZATTI

Retrato de um pequeno kurumin no colo da mãe tirado durante visita da 4ª edição da Expedição da Cidadania à tribo dos Atikuns, na Bahia.



Revista de Cultura AJUFE

DEIXE A CULTURA TE EMOCIONAR

ANO 8 ∙ JUNHO DE 2016 ∙ Nº 11

Visite os espaços CAIXA Cultural de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza e Curitiba.

BAIXE O APLICATIVO E VEJA A PROGRAMAÇÃO.

Bate papo

Sérgio Resende conta como foi transformar um juiz federal em personagem de cinema.

Inspiração Poética

Juízes federais que escrevem além das sentenças: em verso, rima, ritmo e métrica.

Cliques pelo mundo

Os olhares dos juízes federais intermediados pela caixa-preta e pelo pincel.

Danila Gonçalves de Almeida - Costiera Amalfitana Óleo sobre tela (90x100cm) - 2015

caixa.gov.br/cultura

PATROCINADORA DA CULTURA NO BRASIL.


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