Revista Direito Federal nº 94

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Direito Federal Revista da Ajufe



Associação dos Juízes Federais do Brasil Ano 27 - Número 94 1º semestre de 2014


Utilidade Pública Federal Decreto de 08/08/96 (DOU de 09/08/96, p.15057) Presidente: Antônio César Bochenek Diretor da revista: José Antonio Lisbôa Neiva Edição: Lúcio Vaz Ilustrações: Kleber Sales Projeto Gráfico e diagramação: Vaz Comunicação Revisão: Gabriela Artemis Impressão e Acabamento: Athalaia Gráfica e Editora Periodicidade: semestral Obs.: Os textos são de responsabilidade de seus autores.

ISSN 1676-2320

Associação dos Juízes Federais do Brasil SHS Quadra 6, Bloco E, Conj. A, sala 1305 a 1311 Brasil 21, Edifício Business Center Park 1, Brasília-DF CEP 70322-915 Tel.: (61) 3321-8482 Fax: (61) 3224-7361




Diretoria da Ajufe Biênio 2014/2016 Antônio César Bochenek

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Colégio de Delegados Seccionais Náiber Pontes de Almeida Aloysio Cavalcanti Lima Érico Rodrigo Freitas Pinheiro Jaiza Maria Pinto Fraxe Cynthia de Araujo Lima Lopes Júlio Rodrigues Coelho Neto Maria Candida Carvalho M. de Almeida Marcelo da Rocha Rosado Marcos Silva Rosa Pablo Zuniga Dourado Regis de Souza Araújo Renato Toniasso Silvio Coimbra Mourthé George Ribeiro da Silva Bianor Arruda Bezerra Neto Patrícia Helena Daher Lopes Panasolo Polyana Falcão Brito Marina Rocha Cavalcanti Barros Mendes Leonardo da Costa Couceiro Orlan Donato Rocha Marcelo Roberto de Oliveira Herculano Martins Nacif Gilberto Pimentel de Mendonça G. Junior Rafael Selau Carmona Bruno César Lorencini Gilton Batista de Brito Denise Dias Dutra Drumond

Acre Alagoas Amapá Amazonas Bahia Ceará Distrito Federal Espírito Santo Goiás Maranhão Mato Grosso Mato Grosso do Sul Minas Gerais Pará Paraíba Paraná Pernambuco Piauí Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul Rondônia Roraima Santa Catarina São Paulo Sergipe Tocantins



Índice Palavra do diretor............................................................................................................13 Seção de Doutrina...........................................................................................................15 A proteção à família, à maternidade e às crianças e aos adolescentes, no pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966...........................................17 Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorários maculados ............37 O terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança e a proibição do retrocesso no estado democrático de direito..........................................................................................71 A tutela das criações intelectuais e a existência do direito de autor na antiguidade clássica .......91 Direito, Soberania e Efetividade Jurídica.......................................................................111 A execução de decisões judiciais contra a administração pública em uma perspectiva comparada .....................................................................................................................137 Os efeitos da dualidade de instâncias no direito antitruste brasileiro e breve análise jurisprudencial...............................................................................................................161 Uma espectrografia ideológica do debate entre garantismo e ativismo....................177 Da ofensa do voto duplo aos princípios constitucionais da igualdade e do Estado Democrático de Direito......................................................................................................201 Estados Liberal, Social e Democrático de Direito: noções, afinidades e fundamentos..............223 Reflexões sobre o auxílio direto: fundamentos normativos e posição jurisprudencial........245 A igualdade no país do futebol.............................................................................................281



Palavra do Diretor Caros associados, É com grande honra e satisfação que apresento mais uma edição da Revista de Direito Federal, sempre com ampla diversidade temática, abarcando os diferentes ramos jurídicos, e trazendo discussões sempre atuais, objetivas e de destacada importância prática, especialmente no âmbito federal. No campo jusfilosófico e da Teoria Geral do Direito, interessante reflexão acerca do conceito de soberania e da importância do Estado na concretização do Direito, garantindo-lhe efetividade. Destacam-se, ainda, estudo acerca dos Estados Liberal, Social e Democrático, com a indicação de seus pontos de contato e suas estruturas político-econômicas, bem como de suas contribuições para o Estado Democrático de Direito, além de relevante artigo que trata da influência das ideologias políticas sobre a forma como se enxerga o processo, com críticas à imprecisão teórica que domina o debate entre garantismo e ativismo. O Direito Processual ganha relevo em estudo de Direito Comparado referente à execução contra a Administração Pública, a partir da análise dos sistemas alemão, norte-americano, espanhol, português e argentino, com proposta de superação do dogma tradicional da impenhorabilidade dos bens públicos, com vistas a garantir maior efetividade à execução forçada em face da Fazenda Pública. Ainda, surge relevante reflexão acerca do contexto ditatorial do nascimento do instituto da suspensão de segurança (Lei nº 4.348/64), posteriormente ampliado pela Lei nº 8.437/92, no contexto de bloqueio dos cruzados do Plano Collor, bem como questionamento quanto à constitucionalidade formal da MP nº 2.180-35 e, em relação ao Direito Ambiental, demonstra-se a preocupação com a proliferação abusiva destes incidentes, o que pode ocasionar o amesquinhamento da atuação do Poder Judiciário na concretização do comando contido no art. 225, caput, da CRFB/88.


O Direito Internacional mereceu destaque em artigo relacionado ao tratamento do Direito de Família no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e seu reflexo no ordenamento jurídico constitucional pátrio, bem como em estudo relativo aos instrumentos de cooperação jurídica internacional, em especial do auxílio direto, importante mecanismo de combate aos delitos transnacionais, com críticas ao modelo atual, instituído pela Resolução nº 09/2005 do Superior Tribunal de Justiça em razão da inércia legislativa. A Propriedade Intelectual ganha espaço com um panorama histórico do tratamento dos direitos do autor na Antiguidade Clássica, com breve estudo do tema na Grécia Antiga e no Direito Romano. No que concerne ao Direito Econômico, pertinente o trabalho sobre os limites da atuação do Judiciário no controle das decisões do CADE, destacando, por um lado, a importância da atuação dos Tribunais na defesa da ordem econômica e, de outra banda, a necessidade de auto-contenção, sob pena de se legitimar a recorrente substituição do entendimento do CADE pela orientação das Cortes Federais, o que, em última análise, pode ocasionar o enfraquecimento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. No tocante ao Direito Penal, surge nova abordagem acerca do crime de lavagem de dinheiro, com enfoque no exame da teoria da cegueira deliberada - construção jurisprudencial norte-americana que se aproxima do instituto do dolo eventual - ainda incipiente na doutrina pátria, e da teoria dos honorários maculados, oportunidade em que se examina a possibilidade de responsabilização penal do advogado que recebe recursos sabidamente oriundos de infrações penais. Na esfera dos processos administrativos tributários, judicioso artigo examina a constitucionalidade do voto duplo adotado pelo Regimento Interno do CARF em caso de empate no julgamento de recurso voluntário, sob a ótica dos princípios da igualdade e do Estado Democrático de Direito. Least but not last, em tempos de Copa do Mundo, destaca-se interessante artigo questionando a regra isentiva criada pelo art. 41 da


Lei Geral da Copa - que afastou a incidência de imposto de renda e de contribuições previdenciárias sobre os prêmios pagos aos campeões mundiais de 1958, 1962 e 1970 -, sob a ótica do princípio da isonomia e de seus postulados constitucionais-tributários, cuja inconstitucionalidade fora, inclusive, arguida pela Procuradoria Geral da República na ADI 4.946/DF. Tenho convicção de que, mais uma vez, a qualidade dos trabalhos certamente agradará ao nível de exigência e qualificação de nossos associados. Atenciosamente, José Antonio Lisbôa Neiva



Seção de Doutrina



A proteção à família, à maternidade e às crianças e aos adolescentes, no pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966


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Marcelo Barbi Gonçalves Juiz federal substituto da Subseção de Alagoas/AL e mestrando em Direito Público na UFAL

Resumo: O presente artigo aborda a influência do artigo 10 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Palavras-chave: Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Proteção e assistência à maternidade, família e crianças e adolescentes. Constituição Federal de 1988. Abstract: This article analyzes the influence of the article ten from the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights of 1966 in the Brazil Constitution of 1988. Keywords: Economic, Social and Cultural Rights. Protection to the maternity, family and children. International Covenant. Brazil Constitution.

1. Introdução O art. 10 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (doravante PIDESC) prevê o dever de os Estados participantes reconhecerem a importância e dar a devida proteção e assistência à família, às mães e às crianças e aos adolescentes. Nesse pensamento, o Brasil ratificou, em 1992, o citado Pacto, comprometendo-se a tutelar a pessoa humana em sua concretude, ou seja, como ser econômico, social e culturalmente situado, frente ao novo modelo econômico neoliberal que regurgitava pelo mundo. A Constituição Federal de 1988 consagrou vários direitos, impondo deveres ao Estado a fim de que adotasse todas as medidas necessárias para garanti-los, assim como o fez na legislação infraconstitucional. No entanto, entre os vários direitos


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previstos, quais, de fato, se harmonizam perfeitamente com o art. 10 do PIDESC? 2. Considerações iniciais: uma visão do objetivo do pacto internacional dos direitos ecônomicos, sociais e culturais de 1966 2.1 Notas introdutórias Os pactos, ou tratados, existem desde a Antiguidade clássica, sendo consagrados como fonte do Direito Internacional após o Tratado de Paz de Vestfália. O direito dos tratados, como assevera Rezek, é uma parte essencial do Direito das Gentes, uma vez que repousa sobre o consentimento dos povos, sendo certo que até o fim do século XIX os tratados eram concretizados nas formas do direito consuetudinário. Veja-se: “O direito internacional repousa sobre o consentimento. Os povos – assim compreendidas as comunidades nacionais, e acaso, ao sabor da história, conjuntos ou frações de tais comunidades – propendem, naturalmente, à autodeterminação. Organizam-se, tão cedo quanto podem, sob a forma de Estados, e ingressam numa comunidade internacional carente de organização centralizada. Tais as circunstâncias, é compreensível que os Estados não se subordinem senão ao direito que livremente reconheceram ou construíram”. 1 O conceito de tratado não engendra significativa divergência entre os doutrinadores, pois grande parte concorda que se trata de um acordo formal, escrito e destinado a produzir efeitos entre seus participantes. Nesse sentido, Carlos Roberto Husek diz que: “Tratado é o acordo formal concluído entre os sujeitos de Direito Internacional Público destinado a produzir efeitos jurídicos na órbita internacional”.2 Paulo Henrique Gonçalves Portela, por

1   Rezek, José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 7. 2   HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Público. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 125.


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sua vez, vai mais além, trazendo o conceito de tratado adotado na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados em 1969: “O nosso conceito parte da noção fixada pelo artigo 2º, § 1º, ‘a’, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, que estabeleceu que tratado ‘significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua denominação específica’”. 3 A doutrina, conforme aduz Portela, elenca um rol com uma série de espécies de tratados, cada qual com denominação adequada a cada situação diferente nas relações internacionais, diante do conteúdo do acordo ou do interesse que se pretende. No entanto, a nomenclatura adotada não influencia o caráter jurídico do instrumento, não havendo nenhuma interferência no conteúdo caso tenha o nome de pacto ou tratado. Por derradeiro, os tratados não são meras declarações de caráter político e não vinculante. Objetivam, na realidade, produzir efeitos jurídicos, modificativos, extintivos ou constitutivos de obrigações e direitos, possibilitando, ainda, sanções face ao seu descumprimento. Assim se posiciona Rezek: “A produção de efeitos de direito é essencial ao tratado, que não pode ser visto senão na sua dupla qualidade de ato jurídico e de norma. O acordo formal entre Estados é o ato jurídico que produz a norma, e que, justamente por produzi-la, desencadeia efeitos de direito, gera obrigações e prerrogativas, caracteriza, enfim, na plenitude de seus dois elementos, o tratado internacional”. 4 3   PORTELA, Henrique Gonçalves Paulo. Direito Internacional Público e Privado. 3ª ed. Bahia: Juspodivm, 2011, p. 89. 4   Op. cit., p. 72.


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2.2 O surgimento do PIDESC Ao longo da história da humanidade, à medida que o poder de determinados grupos de indivíduos crescia, a desigualdade social começava a medrar na mesma proporção do desenvolvimento econômico, social e cultural dos povos. Com o passar do tempo, as desigualdades sociais se tornaram mais contundentes e socialmente injustas, percepção essa sentida notadamente com o aumento das relações comerciais e a consolidação do capitalismo no fim do séc. XIX. Mesmo com a Declaração Universal dos Direito Humanos, promulgada em 10 de dezembro de 1948, além de outros tratados substancialmente significativos para a proteção dos indivíduos surgidos após a Primeira e a Segunda Grande Guerra Mundial, era necessária, frente ao modelo econômico neoliberal, a constituição de um instrumento internacional que permitisse ao ser humano gozar não só de seus direitos civis e políticos, mas também dos direitos econômicos, sociais e culturais. Assim, em 16 de dezembro de 1966, na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi instituído o PIDESC, sendo ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992 e tendo entrado em vigor no país em 06 de julho do mesmo ano pelo Decreto n° 591/92. 2.3 O objetivo do PIDESC O referido tratado tem por escopo a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, devendo os Estados assegurarem o gozo destes aos seus cidadãos, por esforços próprios ou pela cooperação da própria sociedade internacional, utilizando todos os meios econômicos e técnicos possíveis. Conquanto tais direitos devam ser observados sem qualquer discriminação, mas tendo em vista a situação econômica dos países em desenvolvimento, o tratado prevê que os Estados poderão aplicar os direitos acordados no Pacto de acordo com um eventual quadro de escassez orçamentária, limitando, v.g, os direitos dos estrangeiros.5 5   Artigo 2º - 1. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a


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O PIDESC consagrou direitos em diferentes áreas, mas intimamente interligados à busca do respeito aos direitos que garantam, sem discriminações, a dignidade de todas as pessoas, através da garantia de direitos laborais, de existência do indivíduo, da saúde, educação e da família. No âmbito do direito laboral, o tratado consagrou a adoção de medidas estatais voltadas para o desenvolvimento econômico e a formação técnica e profissional dos trabalhadores. Além disso, nessa mesma seara, cristalizou: a liberdade sindical mediante o direito de fundar sindicatos, federações e confederações, tanto nacionais quanto internacionais; condições de emprego justas e favoráveis, incluindo remunerações equitativas que garantam a todos os trabalhadores dignidade; e a proteção das mulheres e das crianças, com um especial destaque à maternidade. Tratou, ainda, sobre a qualidade de vida do homem, prevendo o direito à alimentação, à vestimenta e à moradia adequadas. No mais, versou sobre a tutela à saúde, bem como a obrigação do Estado de tomar medidas voltadas à diminuição da mortalidade infantil; a busca pelo pleno desenvolvimento da personalidade humana; a promoção do direito à paz e à tolerância entre todos os grupos de indivíduos. Em face a este manancial de bens tutelados, destaca-se na análise aqueles encampados no art. 10, a saber, o direito à família, às mães durante a maternidade e às crianças e adolescentes. 3. O art. 10 Do pacto no ordenamento jurídico brasileiro 3.1 Da proteção e assistência à família6

assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. 2. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais. 6   Art. 10 - Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem que: 1 – Uma proteção e uma assistência mais amplas possíveis serão proporcionadas à família, que é núcleo elementar natural e fundamental da sociedade, particularmente com vista à sua formação e no tempo


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Ainda que o PIDESC tenha sido ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, à época da concepção da Carta Política de 1988, os constituintes já possuíam o entendimento de que a família era um dos pilares essenciais ao desenvolvimento de um país. O Estado Democrático de Direito não poderia ser construído sem dar a devida importância e zelo a um dos meios de solidificação de uma nação fundamentada na democracia. Dessa forma, no entendimento dos Founding Fathers, a família merecia um destaque especial na nova Constituição, realizando a constitucionalização do instituto familiar e consagrando mecanismos de proteção e assistência à família, especialmente no campo da seguridade social.7 Ressalte-se, ainda, no que diz respeito às relações familiares, que nada foi mais adiantado do que a legislação previdenciária, por acolher como legítimos dependentes do segurado aqueles decorrentes de uniões de fato ou de relações não matrimoniais. Nessa linha de intelecção, veja-se: “Singularmente inovador, para não dizer revolucionário, é o capítulo da constitucionalização da família, um terreno que no passado estava entregue, quase por inteiro, à livre discrição dos seus integrantes, com destaque para a figura paterna, na condição de chefe e condutor dos que gravitavam a seu redor, não só a esposa e os filhos, mas também aqueles que se relacionavam com ele por vínculos de dependência econômica, o que, tudo somando e guardurante o qual ela tem a responsabilidade de criar e educar os filhos. O casamento deve ser livremente consentido pelos futuros esposos. 7   Nesse panorama, merece destaque a legislação previdenciária, que muito antes da Constituição de 1988 e do Código Civil de 2002 — à luz das ideias de união de fato e de dependência econômica — já reconhecera como dependentes do segurado, para fins de proteção social, tanto a sua companheira quanto os filhos havidos com ela. No mesmo sentido, no julgamento do RE 66.347, o STF decidiu que a presunção de legitimidade da esposa, para fins de recebimento de pensão por morte do segurado, não pode ser absoluta, inelutável e invencível à própria realidade, decaindo ela do direito de postular esse benefício — em favor da companheira do segurado — porque ausente o seu maior pressuposto: a dependência econômica daquele de quem de há muito deixara de depender. A esse respeito, ver, entre outros, Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira, A previdência social brasileira e a sua nova organização, Rio de Janeiro: Record, 1960, e a coletânea Legislação Brasileira de Previdência Social (org.Victor Valerius), 4. ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, 1958.


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Revista da Ajufe dadas as distâncias, fazia lembrar o pater famílias do velho Direito Romano, [...] nada foi mais avançado do que a nossa legislação previdenciária, que já nos primórdios foi sincera com as uniões de fato, acolhendo como legítimos dependentes do segurado – para dispensar-lhes a necessária proteção social –, tanto a sua companheira quanto os filhos havidos dessa relação não matrimonial”.8

De relevo sublinhar que a Constituição de 1988 coloca os valores familiares como limite à liberdade de programação de rádios e da televisão, conforme se encontra previsto no art. 221 da Carta Política.9 Dessa forma, é possível perceber a importância da família no contexto do constituinte. A Constituição Federal, não obstante o explanado, constitucionalizou os mecanismos de proteção à família especialmente nos arts. 226 ao 230, além da criança, do adolescente e do idoso, todos com a sua devida importância para a família e para o desenvolvimento do Estado. O art. 226 da Constituição de 1988 estabelece que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, revelando a proteção do instituto familiar pelo Estado, além de cristalizar a importância da mesma para a sociedade. No § 3º do mesmo dispositivo, reconhece-se “a união estável entre o homem e a mulher como uma das entidades familiares, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento” para fins de proteção do Estado. Isso revela um pensamento muito avançado dos constituintes, tendo em vista que no ordenamento jurídico brasileiro a união estável não era legalizada, negando-se direitos pertinentes aos companheiros por não serem reconhecidos como uma entidade familiar. O Código Civil traz, em seu art. 1.723, um conceito bem mais aprofundado de

8   MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1425 ss. 9   Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


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união estável, expondo seus requisitos e ratificando que essa união é uma entidade familiar nos termos da Carta Política: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Hodiernamente, diante do enquadramento da união estável como uma entidade familiar, os direitos que são originados de um casamento são estendidos aos companheiros. Como exemplo, tem-se os dependentes da primeira classe do Regime Geral da Previdência Social – RGPS, nos termos do art. 16 da Lei nº 8.213/91: “o cônjuge, o companheiro, a companheira”. Além dessas entidades, a Constituição Federal consagrou como entidade familiar aquela monoparental/unilinear, a qual compreende a formação de uma família por um dos pais e seus descendentes, conforme se depreende da simples leitura do § 4º do art. 226 da Constituição Federal: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 687432/ MG, reconheceu que a união entre pessoas do mesmo sexo merece a aplicação das mesmas regras e consequências lógicas legítimas para a união heteroafetiva. Entendeu a Suprema Corte que os homossexuais têm o direito constitucional de ter a sua união estável reconhecida como um instituto familiar, devendo receber igual proteção político-administrativo, legal e social. Acrescentou-se, ademais, que o instituto familiar originado da união homoafetiva não pode sofrer nenhum tipo de discriminação, sendo-lhes devidos os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações inerentes às entidades familiares formadas pelo sexo distinto. Veja-se, neste diapasão, o seguinte excerto de lavra do ministro Luiz Fux: [...] “Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual.


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Revista da Ajufe (…) A família resultante da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas”.

Continuando os mecanismos de defesa da família, a Constituição, no § 8º do art. 226, estabeleceu que o Estado deverá garantir assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. O ordenamento jurídico possui mecanismos de proteção tanto da mulher, da criança e do idoso. Hoje, tem-se: a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que traz uma especial proteção da mulher em casos de violência doméstica; o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90), o qual busca a proteção efetiva da criança e do adolescente nos planos laboral, civil e penal; o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), protegendo o idoso do descaso pelas famílias e sociedade, especialmente. Além desses, existem outros mecanismos presentes na legislação brasileira que têm como fim proteger a família e os indivíduos que a formam, dando-lhes a devida assistência e proteção. Também é constitucionalmente prevista a igualdade entre os cônjuges, ditando que na sociedade conjugal os direitos e os deveres inerentes a mesma são exercidos de forma igual tanto pela mulher quanto pelo homem, nos termos do art. 226 § 5º da CF, extinguindo o instituto do pater familias. No mais, o artigo 1.513 do Código Civil, como forma de proteção, diz que: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Por fim, concretizando o reconhecimento aos direitos de proteção e assistência à família previstos no art. 10 do Pacto em exame, no artigo 226, §§ 1º e 2º, da Carta de 1988, estão insculpidos a gratuidade da celebração do casamento e o reconhecimento dos efeitos civis, nos termos da lei, do casamento no religioso.


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3.2 Da proteção e assistência à maternidade10 O objetivo de um Estado Democrático de Direito é construir uma sociedade fundamentada na isonomia entre os seus indivíduos, devendo-se garantir a igualdade de tratamento com todos os direitos e obrigações devidos respectivamente a cada um pertencente ao Estado. Nesse sentido, o Direito Internacional está fundado na igualdade entre os povos e todos que os constituem. No entanto, existem direitos que foram pactuados pelos Estados para garantir especial tratamento em relação às mulheres que passam pelo período de gestação e depois do nascimento de seus filhos, pelo tempo suficiente para garantir os cuidados necessários desses. Assim, o próprio Pacto buscou garantir uma proteção tanto às mulheres no período da maternidade quanto às crianças e aos adolescentes, demonstrando que para ser alcançada a igualdade é necessário, em certos casos, haver a desigualdade. 3.2.1 A legitimidade dos tratamentos especiais a determinados grupos pela Constituição Federal de 1988 É cediço que o ordenamento jurídico brasileiro encampa tratamento jurídico díspare face às desigualdades de fato de cada indivíduo. É nesse sentido que deve ser lido o artigo 193, o qual busca promover a igualdade de oportunidades àqueles que sofreram discriminação durante toda a sua existência. Para proteger os referidos grupos existem instrumentos, tais como o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03), entre outros vocacionados à tutela de setores estigmatizados pela sociedade, com o deliberado escopo de igualá-los em nível de oportunidades aos demais grupos sociais. As medidas que são tomadas para o cumprimento da justiça social e da igualdade de oportunidades são idôneas ao regime adotado pelo Estado brasileiro, um Estado Democrático de Direito, bem como às especiais formas de proteção da mulher e de outros grupos. Assim define o regime adotado José Afonso da Silva:

10    2. Deve-se conceder proteção às mães por um período de tempo razoável antes e depois do parto. Durante esse período, deve-se conceder às mães que trabalhem licença remunerada ou licença acompanhada de benefícios previdenciários adequados.


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Revista da Ajufe “A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que o Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica democrática liberal. A superação do liberalismo colocou em debate a sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. Chega-se agora ao Estado Democrático de Direito que a Constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave do regime adotado [...] O Estado Democrático de Direito reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação em status quo. Para compreendê-lo, no entanto, teremos que passar em revista a evolução e as características de seus elementos componentes, para, no final, chegarmos ao conceito síntese e seu real significado”. 11

Alguns dos dispositivos da Magna Carta brasileira revelam o regime de especial tratamento a ser adotado em face de alguns grupos sociais mais desfavorecidos. Os fundamentos e os objetivos do Brasil consubstanciam-se na busca por uma sociedade justa, em que a dignidade da pessoa humana se encontra em primeiro lugar, com base sempre no princípio aristotélico da isonomia. Para ser possível atingir o escopo sonhado pelos constituintes de uma justiça social, é necessária a discriminação positiva, sendo o agente promotor dessa o Estado. Em suma, não é a disparidade de tratamento vedada pela Constituição, senão autorizada pela própria Carta Política.

11   SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 112.


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Essa discriminação ocorre através de medidas estatais voltadas a certos grupos sociais desfavorecidos com a função de igualá-los aos demais. O Estado discrimina, mas não busca prejudicar e sim auxiliar aqueles que sofrem pela disparidade de oportunidades e protegê-los de circunstâncias prejudiciais. Tem-se como exemplo de algumas dessas ações a Lei Maria da Penha (Lei 11.340), que protege as mulheres que sofrem agressões de seus companheiros no âmbito doméstico e familiar, bem como as formas de proteção da mulher no mercado de trabalho estabelecido pela Constituição Federal e pela Consolidação das Leis Trabalhistas. 3.2.2 Das proteções às mães por um período de tempo razoável antes e depois do parto e dos benefícios previdenciários adequados A Constituição Federal, no art. 7º, XX adjudicou proteção específica ao mercado de trabalho da mulher, dispondo que, entre outros direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, deverá, nos termos da lei, ser dada especial proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos. Nesse mesmo sentido, com a mesma visão dos sujeitos participantes do Pacto, o constituinte disponibilizou vários mecanismos de proteção à maternidade, tendo grande reflexo na legislação infraconstitucional. A CF/88, no seu art. 10, II, “b”, dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, protege a mãe gestante com a proibição de dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto. No art. 7º, inciso XVIII, estabelece a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 (cento e vinte dias). Uma inovação constitucional que ampliou a antiga licença de 90 (noventa) dias. Nesse diapasão, a legislação infraconstitucional, a CLT, no art. 392, e a Lei do Regime Geral da Previdência Social (Lei 8.213/91), no art. 71, preveem que a empregada gestante tem direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do salário e do emprego. Ainda, na CLT, nos §§ 1º e 2º do dispositivo já citado, estabelece que a empregada gestante poderá se afastar entre o 28º dia antes do parto até a ocorrência desse, podendo ser aumentado de 2 (duas) semanas os períodos de repouso antes e depois do parto. À gestante é garantida, sem prejuízo do salário e demais direitos, nos termos do


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art. 392, §4º, I e II, da CLT, a transferência de função nos casos em que as condições de saúde o exigirem, assegurada a retomada da função anteriormente exercida, logo após o retorno ao trabalho, bem como a dispensa no horário de trabalho pelo tempo necessário para a realização de, no mínimo, 6 consultas médicas e demais exames complementares. Após o nascimento, para garantir os devidos cuidados com o bebê, a CLT impõe às empresas o dever de garantirem um espaço para que as mães possam cuidar dos filhos de colo. O art. 400 impõe que os locais destinados à guarda dos filhos das operárias, durante o período de amamentação, deverão conter, no mínimo, um berçário, uma saleta de amamentação, uma cozinha dietética e uma instalação sanitária. O art. 389, por sua vez, nos §§ 2º e 3º, atribui o dever de as empresas instalarem local apropriado onde seja permitido às empregadas guardarem sob a vigilância e a assistência seus filhos no período de amamentação, nos estabelecimentos em que trabalharem, pelo menos, 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos, podendo ser suprido por creches distritais mantidas diretamente pelo empregador ou por convênio com outras entidades. Além desses mecanismos, a CLT prever formas de garantia do emprego da gestante, consagrando, no art. 391, que a gravidez não constitui justo motivo para a rescisão do contrato de trabalho da mulher, bem como veda que haja regulamentos de qualquer natureza restringindo os seus direitos em decorrência desse estado. Nesse mesmo sentido, prevê o art. 391-A, incluído em 2013 pelo legislador, após a pacificação jurisprudencial12 e doutrinária, a estabilidade provisória da gestante, nos termos do art. 10, II, “b” do ADCT, durante o prazo do aviso-prévio trabalhado ou indenizado, principalmente nos contratos de emprego por tempo determinado. Há que se destacar, também, que a CF/88 consagrou, no campo previdenciário,

12   Súmula do TST n° 244 - GESTANTE. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item III alterada na sessão do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012 – DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade (art. 10, II, “b” do ADCT). II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade. III - A empregada gestante tem direito à estabilidade provisória prevista no art. 10, inciso II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato por tempo determinado.


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o dever de proteger a maternidade, especialmente a gestante, garantindo-lhe assistência por meio da Previdência Social. Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: [...] II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; Dessa forma, o RGPS garantiu o salário-maternidade às gestantes, sendo devido quando o parto ocorrer a partir do 6º mês ou na 23ª semana de gestação, adoção de crianças, guarda judicial de crianças para fins de adoção e em casos de aborto não criminoso. Ressalta-se, também, como um dos mecanismos de proteção da maternidade pelo ordenamento jurídico brasileiro baseado nos termos do pacto, a Lei 11.770/08, que instituiu o Programa Empresa Cidadã, destinado a prorrogar o prazo de licença-maternidade por mais 60 (sessenta) dias. Essa prorrogação, a título de informação, será garantida à empregada da pessoa jurídica que aderir ao referido programa, devendo ser requerida a prorrogação pela gestante até o fim do primeiro mês após o parto. Durante esse novo período, a empregada terá direito, nos termos do art. 3º da referida lei, à sua remuneração integral, da mesma forma que os devidos no período de percepção do salário-maternidade, sendo que será pago diretamente pelo empregador e não pela Previdência Social. 3.3 Da proteção e assistência às crianças e aos adolescentes13 O constituinte de 1988, na mesma toada do Pacto, consolidou no caput do art. 13   3. Devem-se adotar medidas especiais de proteção e de assistência em prol de todas as crianças e os adolescentes, sem distinção por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Devem-se proteger as crianças e os adolescentes contra a exploração econômica e social. O emprego de crianças e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos à saúde ou que lhes façam correr perigo de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento normal, será punido por lei. Os Estados devem também estabelecer limites de idade sob os quais fique proibido e punido por lei o emprego assalariado da mão de obra infantil.


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227 da CF/88 que é dever da família, da sociedade e do Estado garantir à criança, ao adolescente e ao jovem,14 com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de sempre garantir a segurança deles de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Tratado, no item 3 do seu art. 10, na parte inicial, revela que os Estados reconhecem que todas as crianças e os adolescentes merecem os mesmos direitos e garantias sem discriminações, salvo em nome do princípio isonômico. Nesse raciocínio, a CF/88 estabeleceu, no § 6º do art. 227, que os filhos, havidos ou não no casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Bem traduz esse artigo Inocêncio Mártires Coelho: “Quanto à pessoa dos filhos, é igualmente digna de louvor a determinação constitucional no sentido de que, havidos ou não dentro do casamento, ou por adoção, terão eles os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.15 Outra forma de proteção constitucional das crianças e dos adolescentes foi o dever da criação de um estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens, e a articulação de um plano nacional da juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução das políticas públicas voltadas para as crianças e os adolescentes. Com base nos princípios do Pacto e da Convenção dos Direitos da Criança de 1989, ratificado pelo Brasil em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), norteado na Doutrina da Proteção Integral, essa estabelecendo o dever do Estado, da sociedade e da família de tomarem os 14   O termo jovem não estava presente na redação original do texto da Carta Política, sendo acrescentada em 2010 pela Emenda Constitucional n° 65. 15   Op. cit., p. 1.426.


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devidos cuidados dos menores de forma absoluta, conforme já foi anteriormente estabelecido pelo Poder Constituinte no art. 227, dando-se assistência e proteção necessárias para as crianças e os adolescentes. Valter Kenji Ishida leciona que o ECA, com base na Doutrina da Proteção Integral, busca garantir todos os direitos especiais e específicos de todas as crianças e os adolescentes, além de dar especial proteção a elas. É uma forma de efetivação de todos os diretos fundamentais da criança e do adolescente e proteção, sem discriminação, garantindo-se os preceitos do pacto. Veja: “Segundo a doutrina, o Estatuto da Criança e do Adolescente perfilha a ‘doutrina da proteção integral’, baseada no reconhecimento de direitos especiais e específicos de todas as crianças e adolescentes. Foi anteriormente prevista no texto constitucional, no art. 227, instituindo a chamada prioridade absoluta. Constitui, portanto, em uma nova forma de pensar, com o escopo de efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. A CF, em seu art. 227, afastou a doutrina da situação irregular e passou a assegurar direitos fundamentais à criança e ao adolescente. Tratou na verdade de uma alteração de modelos ou de forma de atuação. A doutrina da situação irregular limitava-se basicamente a 3 (três) matérias: (1) menor carente; (2) menor abandonado; (3) diversões públicas”.16 No campo laboral, tanto a CLT quanto o ECA estabelecem situações de proteção, cuidados e vedações com os menores nas relações de emprego, dentro da visão do item 3 do artigo 10º do pacto: “Devem-se proteger as crianças e adolescentes contra a exploração econômica e social. O emprego de crianças e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos à saú16   ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criança e do Adolescente. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 1.


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A CF/88, como as citadas legislações pertinentes, estabeleceu o mecanismo inicial de proteção ao trabalho do menor e definiu a idade de início do trabalho e as vedações. No art. 7º, XXXIII, está a proibição do trabalho noturno, perigoso ou insalubre ao menor de 18 anos e de qualquer trabalho ao menor de 16 anos, ressalvado a partir de 14 anos na condição de aprendiz. Na CLT, o trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola, nos termos do art. 403. Ainda, nos arts. 405, 407, prever que dependerá de prévia autorização do juiz o trabalho realizado nas ruas, praças e outros logradouros, sendo que o mesmo deverá verificar se o trabalho é indispensável à subsistência do menor ou de seus pais, avós ou irmãos, sem, em qualquer caso, prejuízo à sua formação moral. Caso seja verificado que o trabalho é prejudicial à saúde, ao desenvolvimento físico ou moral, poderá a autoridade competente obrigar o menor a sair da ocupação ou fazer com que o empregador o mude de função. 4. Conclusão O constituinte de 1988, antes mesmo de o Estado brasileiro ratificar o pacto e dar-lhe vigência, já tinha consciência da imperiosa necessidade de dar especial proteção e assistência à família, às mães, antes e depois do parto, e às crianças e aos adolescentes. Destarte, as inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, após um longo período de tempo de regime ditatorial, revelam que o Brasil reconheceu e abraçou os ideais do PIDESC, em especial o art. 10 desse, antes mesmo de sua adesão em 1992. O Pacto consagrou a proteção a diversos direitos que possuem reflexos nos


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campos social, econômico e cultural. Os direitos que foram expostos mostram que o legislador brasileiro, em respeito tanto à CF/88 quanto ao Pacto, cumpriu com a missão, imposta pelo referido tratado, de dar a devida proteção e assistência à família, às mães durante o período da maternidade e às crianças e aos adolescentes. Sem sombra de dúvida, o Brasil consagra no plano do dever-ser os direitos consagrados no art. 10 do Pacto, em especial nos âmbitos laboral, civil, previdenciário, entre outros, previstos os direitos e as garantias fundamentais para os grupos referidos no tratado. Não obstante isso, são notórias as dificuldades para a aplicação da legislação. Muitas decorrem da falta de estrutura, corrupção, fraude e do sentimento egocêntrico em prejuízo da coletividade. No entanto, no campo teórico, é importante exaltar todas as inovações trazidas e reconhecer que o Brasil está caminhando de acordo com os fins que garantem a dignidade da pessoa humana. 4. Referências Bibliográficas HUSEK, Carlos Roberto. Elementos de Direito Internacional Público. São Paulo: Malheiros, 1995. ISHIDA, Valter Kane. Estatuto da Criança e do Adolescente. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. PORTELA, Henrique Gonçalves Paulo. Direito Internacional Público e Privado. 3ª ed. Bahia: Juspodivm, 2011. REZEK, José Francisco. Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.



Breves notas sobre lavagem de dinheiro: cegueira deliberada e honorรกrios maculados


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Vlamir Costa Magalhães Mestre em direito penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Pós-graduado em Regulação e Direito Público da Economia pela Universidade de Coimbra/Portugal. Juiz Federal.

Sumário: 1. Relato histórico; 2. A contextualização da lavagem de dinheiro no cenário jurídico-penal contemporâneo; 3. A realidade atual da lavagem de dinheiro; 4. Compliance: o dever de colaboração antilavagem; 5. A teoria da cegueira deliberada; 6. A teoria dos honorários maculados; 7. Conclusão; 8. Referências. Resumo: O estudo aborda a lavagem de dinheiro como espécie criminosa, abrangendo desde o seu histórico até a realidade atual. Neste aspecto, busca-se contextualizar o tema no cenário do mundo globalizado, enfatizando-se a responsabilidade de advogados e agentes econômico-financeiros quanto à colaboração no combate à lavagem de dinheiro, sobretudo no tocante à teoria da cegueira deliberada e à teoria dos honorários maculados. Palavras-chave: lavagem – dinheiro – cegueira – deliberada – honorários - maculados Abstract: The study deals with money laundering as criminal specie, ranging from its history to the present reality. In this regard, the author seek to contextualize the subject in the scene of a globalized world, emphasizing the responsibility of lawyers and economic agents in combating money laundering, particularly as regards the theory of willful blindness and the theory of fees tainted. Keywords: laundering - money - blindness - willful - fees - tarnished “A democracia liberal protege os direitos do homem e não os crimes do homem. Maldita seria a democracia liberal, se se prestasse a uma política de


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cumplicidade com a delinquência.”1 1. Relato histórico A ciência penal enfrenta atualmente uma nova era da criminalidade marcada pela organização, internacionalidade e poderio econômico.2 As tendências do sistema punitivo são, mais do que nunca, pautadas pelas nuances econômico-sociais. Neste contexto, a camuflagem do patrimônio de origem ilícita tem se revelado como instrumento de perpetuação do ciclo vicioso de refinanciamento da delinquência moderna, motivo pelo qual significativa parcela da doutrina vem contrariando o já corriqueiro discurso de crítica ao alargamento temático do ordenamento criminal, uma vez que se reconhece no combate à lavagem de dinheiro um claro exemplo de expansão razoável3 do Direito Penal. Em linhas gerais, pode-se afirmar que o encobrimento do produto patrimonial de infrações penais resume a essência do que se convencionou chamar de lavagem de dinheiro e a tipificação penal desta conduta não representou a simples adição de um delito ao catálogo legal, mas sim a implementação de inédita política de enfrentamento das graves e incisivas manifestações crimi-

1   Cf. HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Cláudio Heleno. Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo I: arts. 1o ao 10. 5a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 67. 2   SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002, p. 80. 3   Pela pertinência do trecho, vale a transcrição: “O que interessa ressaltar neste momento é tão-somente que existe, seguramente, um espaço de ‘expansão razoável’ do Direito Penal, ainda que, com a mesma convicção próxima da certeza, se deva afirmar que também se dão importantes manifestações da ‘expansão desarrazoada’. A título puramente orientativo: a entrada maciça de capitais procedentes de atividades delitivas (singularmente, do narcotráfico) em um determinado setor de economia provoca uma profunda desestabilização desse setor, com importantes repercussões lesivas. É, pois, provavelmente razoável que os responsáveis por uma injeção maciça de dinheiro negro em um determinado setor da economia sejam sancionados penalmente pela comissão de um delito contra a ordem econômica. Mas, vejamos, isso não faz, por si só, razoável a sanção penal de qualquer conduta de utilização de pequenas (ou médias) quantidades de dinheiro negro na aquisição de bens ou retribuição de serviços. A tipificação do delito de lavagem de dinheiro é, enfim, uma manifestação de expansão razoável do Direito Penal (em seu núcleo, de alcance muito limitado) e de expansão irrazoável do mesmo (no resto das condutas, em relação as quais não se possa afirmar em absoluto que, de modo específico, lesionem a ordem econômica de modo penalmente relevante).” Cf. SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María, op. cit., p. 28.


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nosas que, de regra, precedem ou envolvem a lavagem de dinheiro.4 Há milênios, o Código de Hamurabi já punia, com a pena de morte, aquele que se encontrasse na posse ou fruição de bens da Corte, da Igreja ou de escravos de terceiros, sem a devida comprovação da licitude da aquisição.5 Há, no entanto, quem aponte que a incriminação mais assemelhada à lavagem teve origem na China, onde, há cerca de três mil anos, era previsto o sancionamento penal de mercadores que transferissem a terceiros bens sonegados perante o Estado.6 Se por um lado, perdem-se no tempo as tentativas de fazer valer o ditado segundo o qual o crime não compensa - ou não deve compensar -, por outro lado, é recente o processo de sofisticação da reciclagem patrimonial. Na interessante dicção de AMBOS,7 a mentalidade reitora da vigente política criminal pretende que o criminoso seja obrigado a permanecer sentado em seu capital sujo, o que deve se dar, segundo a complementação de MORO,8 até que o Estado lhe tome o assento. É extensa a variedade de denominações aplicadas à dissimulação de bens decorrentes da prática de infrações penais, sendo colacionadas pela doutrina especializada as seguintes: blanchiment d’argent (França e Bélgica); blanchissage (Suíça); gelwäsche (Alemanha); blanqueo de capitales (Espanha); riciclaggio di denaro sporco (Itália); lavado de dinero (Argentina); money laudering (EUA e Reino Unido) e branqueamento de capitais (Portugal). Desta exposição, constata-se que a preocupação em torno do tema está longe de ser exclusiva de determinado país ou região, sendo, ao revés, compartilhada universalmente. Acolheu-se no Brasil a expressão “lavagem de dinheiro”, o que, segundo a

4   MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 16. 5   GIORDANI, Mário Curtis. História do Direito Penal entre os povos antigos do oriente próximo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 12/17. 6   Neste sentido: MACEDO, Amilcar Fagundes Freitas. O crime de lavagem de dinheiro – algumas reflexões. Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AJURIS, março/2008, p. 10. 7   AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 63. 8   MORO, Sérgio Fernando. Op. Cit., p. 16.


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exposição de motivos da Lei n. 9.613/98,9 ocorreu com base em duas justificativas: (1) a tentativa de uniformização mediante acolhimento da linguagem usualmente empregada em tratados internacionais sobre a matéria e (2) a intenção de afastar possíveis conotações racistas decorrentes do termo “branqueamento”. Entretanto, subsiste crítica doutrinária que vislumbra a opção do legislador como atécnica e desafortunada10, seja pelo indevido emprego de linguagem figurada, seja porque, segundo a própria dicção legal, o comportamento incriminado abrange como possível objeto material não apenas dinheiro em espécie, mas quaisquer bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, da prática de infração penal. Etimologicamente, costuma-se atribuir o surgimento da expressão “money laudering” (lavagem de dinheiro, em tradução literal) ao fato de Alphonsus Gabriel Capone, criminoso ítalo-americano conhecido como Al Capone ou Scarface, ter utilizado lavanderias de roupas e automóveis para mascarar sua ilícita evolução patrimonial. Vale lembrar que, apenas em 1931, Capone veio a ser condenado por sonegação de imposto de renda, sendo certo que jamais foi responsabilizado pelo crime que o notabilizou, qual seja o contrabando de bebidas alcoólicas durante a vigência da Lei Seca nos EUA.11 No interessante relato de MORRIS12 consta que os agentes públicos res-

9   O texto integral consta do seguinte endereço eletrônico: https://www.coaf.fazenda.gov.br. Acesso em 21.06.2013. 10   Há quem proponha a denominação “lavagem de ativos”. Neste sentido: CALLEGARI, André Luís; Scheid, Carlos Eduardo e Andrade, Roberta Lofrano. Breves anotações sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 92. São Paulo: RT, setembro/2011, p. 247. Embora seja correta a crítica doutrinária, serão indistintamente utilizadas neste trabalho as expressões lavagem de dinheiro e de capitais, haja vista a corriqueira utilização de ambas no âmbito doutrinário e jurisprudencial.. 11   Sobre o tema, segue a interessante impressão de FROSSARD:“Desde a famosa condenação de Al Capone por sonegação de imposto de renda, sabemos que o aspecto financeiro é o ponto muitas vezes vulnerável de organizações criminosas. No entanto, não somos apenas nós, autoridades públicas, que aprendemos com a experiência. O crime organizado também aprende sua lição e sabe que é preciso ocultar, cada vez melhor, os rendimentos obtidos com a prática de delitos. Essa realidade exige de nós a atualização permanente.” Cf. FROSSARD, Denise. A Lavagem de Dinheiro e a Lei Brasileira. In: Revista de Direito Penal n. 01. Porto Alegre: Editora Magister, agosto/2004, p. 30. 12   MORRIS, Stanley E. Ações de combate à lavagem de dinheiro em outros – experiência americana. In: Anais do Seminário Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Brasília: Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, 2000, p. 37.


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ponsáveis pela captura de Capone não eram policiais fortemente armados, conforme retratado no premiada produção hollywoodiana intitulada “Os Intocáveis”, mas sim contadores da agência de tributos dos EUA (atualmente Secretaria da Receita Federal), então chefiados pelo economista Eliot Ness. Este dado enfatiza a realidade típica de uma criminalidade inteligente, requintada e que foge do estereótipo predominantemente violento ao qual o sistema penal está acostumado. Tanto é assim que o insucesso de Capone no encobrimento da raiz criminosa de sua renda estimulou outros criminosos a contratarem profissionais do campo jurídico-financeiro visando à criação de métodos que os livrassem do mesmo destino, o que deu origem, por exemplo, à ideia de investimento em cassinos de Las Vegas e Cuba. Inicia-se, então, a tendência de terceirização e especialização da lavagem fazendo com que, a cada ação repressiva das autoridades estatais, novas metamorfoses sejam notadas no tocante ao aperfeiçoamento técnico e expansão mercadológica da lavagem de dinheiro. Estudos recentes apontam, por exemplo, que, sobretudo na Itália e na Inglaterra, clubes de futebol vêm servindo como veículos para reciclagem de recursos ilícitos.13 Talvez por mera coincidência (talvez não), clubes brasileiros remeteram, entre os anos de 2002 e 2012, cerca de cento e noventa milhões de dólares para países considerados paraísos fiscais (dentre eles, Ilhas Virgens e Bahamas) em negociações de direitos federativos sobre atletas.14 Por todas as vicissitudes demonstradas, a lavagem de dinheiro tem se desenhado como viva expressão de teoria criminológica da aprendizagem social, também denominada associação diferencial,15 o que importa em re-

13   Neste sentido: GREER, Charlie. Money laudering in football. Texto em idioma inglês disponível em: http://www.proximalconsulting.com/. Acesso em 01.05.2013. 14   Conforme matéria publicada, no dia 14.07.2013, pelo jornal Folha de São Paulo (p. D1) baseada em dados do Banco Central. Também alertando sobre o tema: DE SANCTIS, Fausto Martin. Lavagem de dinheiro: jogos de azar e futebol – análise e proposições. Curitiba: Juruá, 2010. 15   Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Sobre a impunidade da macro-delinquência econômica desde a perspectiva criminológica da teoria da aprendizagem. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 3. Número 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, julho-setembro de 1995, p. 172. A teoria da associação diferencial ou da aprendizagem social foi vislumbrada por Edwin H. Sutherland na década de 30 e prega que a atuação criminosa é difundida por meio de um processo de convivência e comunicação denominado interacionismo simbólico. Assim, a verdadeira origem da delinquência econômica moderna estaria ligada


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afirmar o equívoco de não se enxergar que organizações criminosas têm tirado lições de suas próprias falhas de modo a estarem sempre um passo à frente do Estado, tarefa na qual, infelizmente, têm logrado êxito. O marco normativo internacional acerca da incriminação da lavagem de capitais somente adveio em 20.12.1988,16 com a celebração da Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes,17 na qual se determinou (art. 3) aos Estados signatários a tipificação penal da dissimulação de bens oriundos da exploração do narcotráfico, o que é compreensível, haja vista ser este, ainda hoje, o delito mais lucrativo que se conhece.18 Assim, reconhecida a independência do interesse jurídico tutelado por meio da incriminação da lavagem de dinheiro em relação ao delito antecedente,19 os ordenamentos nacionais passaram a incriminar a lavagem de capitais e não mais à transmissão de informações, racionalizações e motivos favoráveis ao caminho criminoso. Em suma, o crime não seria um fato hereditário, fortuito ou irracional: o crime se aprende e a transmissão deste ensinamento provoca uma reação em cadeia (efeito ressaca ou espiral). Sobre o tema: SERRANO MAÍLLO, Alfonso. Introdução à Criminologia. 1a ed. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 202; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 275 e HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 60. 16   A Itália foi o primeiro país a criminalizar a lavagem de capitais, o que se deu em 1978. Os EUA o fizeram em 1986, por meio da edição do Money Laudering Control Act. 17   No Brasil, o Decreto n. 154, de 26.06.1991, promulgou a Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. 18   A Conferência das Nações Unidas sobre o crime organizado global de 1994 estimou que o tráfico mundial de drogas auferia em torno de 500 milhões de dólares anualmente, ou seja, um volume lucrativo maior que o do comércio mundial de petróleo. Cf. ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuición a la determinación del injusto penal de organización criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, p. 3. 19   Embora haja divergência quanto ao interesse jurídico tutelado por meio da incriminação da lavagem de dinheiro, reconhece-se maciçamente a autonomia deste em relação ao crime antecedente e, por conseguinte, a não aplicação do princípio da consunção à hipótese e o não cabimento da alegação de dupla punição pelo mesmo fato (bis in idem). Neste sentido: CALLEGARI, André Luís; SCHEID, Carlos Eduardo e ANDRADE, Roberta Lofrano. Breves anotações sobre a lei de lavagem de dinheiro. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 92. São Paulo: RT, setembro/2011, p. 244. Registre-se, porém, que GRECO FILHO defende isoladamente que o crime de lavagem de dinheiro não tem autonomia, eis que tutelaria exclusivamente um bem jurídico “satélite” ou “periférico” já protegido pelo crime antecedente. Neste sentido: FILHO, Vicente Greco. Tipicidade, bem jurídico e lavagem de valores. Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentais. In: Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso Brasileira. Coord. José de Faria & Silva e Marco Antonio Marques da Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 454.


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considerá-la como mera fase de exaurimento do crime antecedente. Paralelamente, foram envidados esforços no sentido de criar entidades e instrumentos internacionais antilavagem, destacando-se, neste particular, a criação do GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional, organismo intergovernamental criado em dezembro de 1998 e que tem o objetivo de colher dados e editar recomendações20 sobre medidas de combate à lavagem de dinheiro, bem como avaliar o cumprimento destas mediante listagem de países não-cooperantes. É imperativo esclarecer que as eufemísticas alcunhas de paraíso fiscal, tax haven ou país não-cooperante podem induzir à falsa noção de mera caracterização de imunidade tributária. Em verdade, a denominação é aplicável a Estados que, com o intuito de atrair capitais de qualquer procedência, promovem a profunda desregulamentação de seus sistemas bancários e financeiros, abdicando ou fazendo vistas grossas em relação à diretriz know your customer, isto é, a política de identificação dos titulares dos investimentos e manutenção de registros das respectivas operações.21 Após longo período de certa condescendência22 com o crime de lavagem 20   As 40 recomendações do GAFI foram prolatadas em 1990 e revistas pela primeira vez em 1996. Nesta última versão, foram adotadas por mais de 130 países, passando a constituir o padrão internacional de combate à lavagem de dinheiro. Este histórico e o teor de todas as recomendações mencionadas encontram-se disponíveis, em idioma inglês, no seguinte endereço eletrônico: http://www.fatf-gafi.org. Acesso em 05.01.2013. 21   Cite-se o exemplo das Ilhas Cayman que possuíam, no ano 2000, cerca de 36 mil habitantes e uma taxa de 1,25 empresas por habitante, além de um total de 596 bancos e 1.800 fundos de investimentos, nos quais encontravam-se alocados cerca de 500 bilhões de dólares, o que tornava este pequeno país no quinto centro financeiro do mundo. Ocorre que, do total citado, apenas 110 bancos mantinham sede física no país e os demais estariam situados em “coqueirinhos”, sendo assim chamadas as caixas postais do local. Um estudo do FMI datado de 1997 já retratava o crescimento do montante em dinheiro depositado em paraísos fiscais, de um total de 3,5 trilhões e meio de dólares em 1992 para 4,8 trilhões de dólares em 1997, sendo que 1/3 deste valor estaria em paraísos caribenhos. Curiosamente, o ciclo histórico denota que, no passado, os piratas medievais teriam escondido naquelas ilhas seus tesouros surrupiados ao passo que, no presente, são os piratas econômico-financeiros da modernidade que voltam a fazer o mesmo, mas de maneira muito mais sofisticada e sorrateira. Cf. MORAES, Deomar de. Paraísos fiscais, centros offshore e lavagem de dinheiro. Anais do Seminário Internacional sobre Lavagem de Dinheiro. Vol. 17. Brasília: Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, 2000, p. 95/103. 22   Em entrevista publicada no jornal Folha de São Paulo, em 28.10.2005, p. A-7, o então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, afirmou o seguinte: “Existe hoje no Brasil, solidamente estabelecida, uma cultura de condescendência com a lavagem de dinheiro.” Ainda segundo o então Ministro, a luta contra a lavagem de dinheiro precisaria prosseguir por vá-


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de dinheiro, o Brasil começa a dar sinais de que pretende alinhar-se ao movimento internacional a fim de não se tornar mais um refúgio seguro para capitais de origem ilícita. Fato é que, ao menos por ora, as normas antilavagem têm escassa aplicação no Brasil e somente em casos pontuais o assunto toma a atenção da sociedade, o que se dá, sobretudo, por impulso de manchetes jornalísticas. 2. A contextualização da lavagem de dinheiro no cenário jurídico-penal contemporâneo Costuma-se atribuir ao movimento iluminista a formação do Direito Penal chamado doutrinariamente de liberal, tradicional ou clássico e que teria se constituído a partir da segunda metade do século XVIII. Tratava-se do esboço de um sistema de garantias voltado a albergar liberdades individuais em face das arbitrariedades típicas da era feudal. Neste contexto, desenvolveu-se um conjunto de ideias que funcionou como plataforma de resistência ao sistema punitivo do Estado Absolutista. Nota-se, entretanto, que a pauta de discussões penais gravita atualmente sobre delitos distintos do paradigma clássico e, neste aspecto, perde força o protagonismo dos crimes violentos (ou de sangue) e da delinquência patrimonial em sentido estrito, tópicos dominantes no século XIX e em boa parte do século XX. Há décadas, BARATTA já assinalava que os interesses que pertencem ao âmbito da incolumidade física e patrimonial individual são historicamente privilegiados em relação aos interesses difusos ou coletivos (também do ponto de vista jurídico-processual), ainda que estes últimos não sejam menos importantes para a qualidade de vida dos indivíduos e afetem a um número maior deles. Logo, o Direito Penal não pode se furtar ao cumprimento de sua missão fundamental concernente à proteção dos bens jurídicos mais importantes para a sociedade de sua época. Neste aspecto, para além da liberdade e do patrimônio meramente individual, o ordenamento penal deve

rios motivos e arrematou que: “(...) o principal deles é que (a lavagem) atrapalha a luta contra o crime organizado, porque essa massa de dinheiro acaba se misturando com o dinheiro do traficante de drogas, do traficante de seres humanos, de armas, que, esses sim, estão condenados ao caixa dois e têm de ser combatidos fortemente pelo poder público”.


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proteger também as circunstâncias econômico-sociais necessárias à convivência pacífica e ao desenvolvimento da cidadania, bem como o funcionamento do aparato estatal destinado ao atendimento destes objetivos. Sob risco de injustificável ucronismo,23 já não se mostra viável a centralização do debate jurídico-penal na criminalidade das ruas (patrimonial e violenta), com seus métodos explícitos, além de autores e vítimas bem identificados individualmente. Há que se atentar para o fato de que as mais fortes expressões da macrocriminalidade moderna (v.g.: tráfico de armas, pessoas e entorpecentes; crimes econômico-empresariais; fraudes fiscais, dentre outros) atingem interesses não diretamente individuais, mas sim de toda a coletividade. No mesmo diapasão, a impressão de FELDENS dá conta de que, na era da sociedade em rede, a criminalidade violenta vê-se substituída pela astúcia, pelo enleio, pelo ardil, pela fraude e pelo artifício num contexto em que as ruas cedem espaço às infovias, fazendo do computador e da tecnologia instrumentos do crime. Na dinâmica do planejamento da delinquência moderna, observa-se que a dissimulação do patrimônio de procedência ilícita tem funcionado como mola propulsora de grupos criminosos estruturados que, desta forma, garantem a preservação e, não raramente, o incremento de seu poder econômico. Não há dúvidas de que a reciclagem de dinheiro sujo propicia também amplas possibilidades de inserção de delinquentes no tecido social, em especial por meio do exercício de atividades aparentemente inofensivas. Desta forma, a um só tempo, logra-se a dissimulação do patrimônio de origem ilegal e, de quebra, aufere-se prestígio junto à sociedade. Com amparo em ampla convergência doutrinária, reconhece-se que a lavagem de capitais e as organizações criminosas mantêm ligação não só antiga, mas, acima de tudo, umbilical.24 No bojo do processo sócio-econômico

23   SILVA-SÁNCHEZ emprega a expressão “ucronismo” para expressar a mescla entre utopia e história, uma espécie de exercício mental de imaginar a história da forma como ela poderia ter sido e não como realmente transcorreu. Neste sentido, o aludido autor chama de ucronismo a resistência de parcela da doutrina quanto à modernização do Direito Penal e tentativa de retorno ao modelo centrado na proteção exclusiva de interesses individuais. Cf. SILVA-SÁNCHEZ , Jesús-Maria. Op. cit., p. 136. 24   GODINHO Jorge Alexandre Fernandes. Do crime de “branqueamento” de capitais: introdução e tipicidade. Coimbra: Almedina, 2001, p. 31.


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da lavagem de capitais ganha ênfase a crescente associação negocial entre a macrodelinquência e os colarinhos brancos, sendo estes personificados por profissionais que dominam as estratégias de escamoteamento e movimentação de ativos, com destaque para a robusta utilização de artifícios cibernéticos. Esta sintonia fina denota o perfeito enquadramento da criminalidade hodierna nas características primordiais da delinquência do colarinho branco,25 sendo este também um dos fatores que sinalizam a inserção da lavagem de dinheiro no contexto do Direito Penal Econômico,26 em quaisquer de suas acepções.27 Em meio ao declínio da noção tradicional de soberania, o mundo passou a assistir, a partir do final do século XX, a profundas mudanças nas mais variadas searas da atuação e do conhecimento, sendo estas alavancadas pelo avanço tecnológico sem precedentes. Na visão ostentada por BECK,28 aliada à revolução dos meios de comunicação e informação, a crescente interação do comércio internacional e conexão dos mercados financeiros são as marcas fundamentais do irreversível processo de globalização. A extrema volatilidade dos fluxos financeiros internacionais tornou difícil a identificação da procedência dos recursos, bem como a aferição das intenções dos que os manipulam à distância. Os atores do mercado se converteram em uma nova classe de legisladores virtuais29 sem pátria que con-

25   MAIA, Rodolfo Tigre. Algumas reflexões sobre o crime organizado e a lavagem de dinheiro. In: Revista da AJURIS. Ed. Especial. Porto Alegre: AJURIS, julho/1999, p. 191/192. 26   Sobre o enquadramento da criminalidade organizada moderna nas características típicas da criminalidade do colarinho branco: SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Da Criminologia à Política Criminal. Direito Penal Econômico e o novo Direito Penal. In: Inovações no direito penal econômico: contribuições criminológicas, político criminais e dogmáticas. Brasília: ESMPU, 2011, p. 106. No mesmo sentido: CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de prevenção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p. 17. 27   O Direito Penal Econômico em sentido estrito representaria o conjunto de infrações penais que protegem a ordem econômica, isto é, a regulação jurídica do intervencionismo estatal na economia. Já sob o prisma amplo, o Direito Penal Econômico seria constituído pelo conjunto de normas jurídico-penais que protegem as relações de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Neste sentido: BAJO FERNANDEZ, Miguel e BACIGALUPO, Silvina. Derecho Penal Económico. Madrid: Editorial Centro Estudos Ramón Areces, 2001, p. 11 e 15. 28   BECK, Ulrich. O que é globalização: equívocos do globalismo, respostas à globalização. Trad. André Carone. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999, p. 30/31. 29   CASTILHO, Ela Wiecko V. De. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro


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trolam a capacidade financeira dos governos, o que influi não apenas no desempenho da macroeconomia, mas também nas opções internas da política educacional, ambiental, de seguridade social e de emprego, afetando, decisivamente, os valores e a vida dos cidadãos. Com efeito, a utilização de empresas, instituições financeiras e profissionais especializados tornou-se ferramenta imprescindível ao sucesso das grandes operações de lavagem de capitais, sendo esta a razão pela qual, já há algum tempo, a tendência de terceirização das atividades de lavagem de capitais chama a atenção das autoridades.30 Segundo as estimativas mais recentes, são movimentados, diariamente, mais de dois trilhões de dólares no fluxo financeiro mundial, o que embasa a advertência de LILLEY31 no sentido de que a velha imagem do traficante de drogas carregando uma mala abarrotada de dinheiro já não é comum ou necessária e, portanto, não deve ser esperada. A lavagem de capitais veio a ser facilitada e potencializada como paradoxo perverso32 decorrente do citado processo de interatividade econômica. Destarte, na pujança de sua complexidade, a globalização legou ao mundo a “empresarialização”33 da delinquência que, a título de ilustração, pode, por nacional (Lei n. 7492, de 16 de junho de 1986). 1ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 90. 30   GOMES, Luiz Flávio. Lavagem de capitais e quebra do segredo profissional do advogado. Texto disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em 01.05.2013, p. 2. 31   LILLEY, Peter. Lavagem de dinheiro: negócios ilícitos transformados em atividades legais. Trad. Eduardo Lasserre. São Paulo: Futura, 2001, p. 15. 32   Sobre a internacionalização da criminalidade propiciada pela integração financeira e comunicativa dos países: FERRAJOLI, Luigi. Criminalità e Globalizzzione. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 42. São Paulo: RT, janeiro/2003, p. 79. 33   DE SANCTIS, Fausto. Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática. Campinas: Millennium, 2008, p. 5. No mesmo sentido é a preleção de ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, in verbis: “La criminalidad organizada se ha convertido em una verdadera ‘empresa del crimen’. En los últimos tiempos del desarollo de la globalización y la supremacía de las relaciones de producción capitalistas, monopólicas y financieras, la criminalidad organizada ha extendido sus tentáculos a las empresas legales y al mundo financiero formal, con un efecto ‘contaminación’. La criminalidad organizada ha pasado de realizar sus actividades tradicionales, a participar en actividades no tradicionales como es la creación de empresas, conglomerados financieros, inversiones en empresas y en la bolsa, para reciclar el dinero negro. De esta manera, ha logrado corromper las actividades legales de bancos, empresas constructoras, fundaciones, etc., asumiendo un rol empresarial y aprovechando las estructuras económicas y empresariales de la economia formal para reciclar el dinero obtenido ilícitamente. También ha creado empresas ficticias o contratado adminsitradores de paja para dominar empresas ya constituidas legalmente. El blanqueo de dinero se ha mostrado como el gran corruptor de toda la activi-


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meio da rede mundial de computadores, fazer com que divisas de valor estratosférico circulem de um extremo ao outro do planeta em uma fração de segundo. Tais fatores são as causas do desenvolvimento da lavagem de dinheiro como espécie criminosa,34 o que ganha relevo no peculiar momento em que investimentos do mundo inteiro serão concentrados no Brasil dada a iminência da realização de eventos internacionais importantes (Copa do Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos, principalmente). Por todo o exposto, na condição de importante expressão moderna da criminalidade econômica,35 a lavagem de capitais afigura-se como tema de relevância indubitável. 3. A realidade atual da lavagem de dinheiro Estima-se que, anualmente, são lavados ao redor do mundo algo entre oitocentos milhões e dois bilhões de euros, ou seja, o equivalente ao montante entre 2 e 5 % da produção econômica global, o que é aproximável, por exemplo, ao produto interno bruto da Alemanha, maior economia da Europa na atualidade.36 Ainda assim, é extremamente pequeno o número de obras científicas, investigações e decisões judiciais sobre o crime de lavagem de capitais, não sendo outra a razão pela qual, já há algum tempo, os autores

dade económica legal.” ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, Laura. Criminalidad organizada y sistema de derecho penal: contribuición a la determinación del injusto penal de organización criminal. Granada: Editorial Comares, 2009, P. 143. 34   PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei 12.683/2012). In: Revista dos Tribunais v. 926. São Paulo: RT, dezembro/2012, p. 403/404. 35   Sobre a atualidade das importantes repercussões do tema, esta é a preleção de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE: “A criminalidade econômica, nas suas formas clássicas ou modernas, é um tema de marcada actualidade. Pela dimensão dos danos materiais e morais que provoca, pela sua capacidade de adaptação e sobrevivência às mutações sociais e políticas, pela sua aptidão para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe são dirigidas, a criminalidade econômica é uma ameaça séria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada. Daí que a invenção de formas eficazes de luta seja hoje preocupação das instâncias governamentais, judiciais, policiais, etc., de todos os países.” Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; COSTA ANDRADE, Manoel da. Problemática geral das infrações contra a economia nacional. In Direito penal econômico e europeu: textos doutrinários. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 319/320. 36   CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de prevenção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p. 8.


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têm chamado a atenção para a necessidade de fomentar, no Brasil37 e no exterior,38 o estabelecimento uma autêntica cultura de investigação e persecução quanto ao crime de lavagem de capitais. Na esteira deste raciocínio, a ENCCLA - Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, comissão multidisciplinar constituída no âmbito do Ministério da Justiça, reconhece a carência brasileira quanto ao aprofundamento teórico-acadêmico nesta seara e, por conseguinte, estabeleceu, como meta específica,39 a propositura da inclusão do estudo da lavagem de dinheiro nos currículos universitários de graduação e pós-graduação. Paradoxalmente, propaga-se, como dito, a percepção equivocada de que somente os crimes de sangue ou contra o patrimônio individual teriam relevância e, por consequência, os tipos penais que tutelam interesses difusos são tradicionalmente tidos como crimes menores, sem vítimas ou consequências dignas de consideração. Esta visão é absolutamente insustentável no presente estágio de desenvolvimento da humanidade em que a agilização e internacionalização dos efeitos de determinadas condutas delitivas demonstram que até mesmo localidades aparentemente beneficiadas com a captação de recursos ilícitos podem ser repentinamente atiradas em situação de grave desequilíbrio financeiro. Cite-se, como exemplo, o caso do Chipre, país europeu que recentemente vivenciou o colapso de seu sistema econômico-financeiro pela repentina fuga de capitais de titularidade e origem desconhecidas. Vale dizer que este país tem presença constante na listagem de Estados não-cooperantes do GAFI e chegou a possuir setor bancário com volume de recursos cerca de oito vezes maior que seu produto interno bruto. O resultado da política de

37   MORO, Sérgio Fernando. Op. cit., p. 98/99. 38   Por exemplo, CANAS relata que a escassez de dados estatísticos fiáveis é um dos fatores que impedem a maior efetividade da legislação penal antilavagem em Portugal. CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de prevenção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p. 07. 39   A ENCCLA foi criada em 2003 e atualmente congrega representantes de cerca de sessenta órgãos e entidades. A redação da Meta n. 26, no ano de 2004, da ENCCLA foi a seguinte: “Promover a inclusão nos currículos acadêmicos de graduação e pós-graduação do estudo da criminalidade transnacional e, especialmente, do combate à lavagem de dinheiro e da cooperação jurídica internacional.” Texto integral disponível em: www.portal.mj.gov.br/enccla. Acesso em 01.01.2013.


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afrouxamento das medidas antilavagem foi a necessidade de contrair empréstimos recentes no valor bruto aproximado de 10 bilhões de euros. Outros países europeus tradicionalmente classificados como paraísos fiscais, tais como Luxemburgo, Estônia e Malta, também estariam na iminência de colapso de seus sistemas financeiros.40 Desta maneira, o enorme volume de recursos gerado pelo branqueamento de capitais no âmbito do ordenamento financeiro global acaba, em última ponta, vulnerando economias nacionais e afetando a estabilidade da economia mundial ao sabor de decisões explicáveis apenas sob o ponto de vista da racionalidade criminosa. No plano microeconômico, os investimentos com dinheiro reciclado degeneram a concorrência licitamente feita por empresas conduzidas com recursos lícitos. No prisma macroeconômico, as nações e instituições financeiras utilizadas como instrumentos de lavagem de capitais perdem, numa espécie de efeito bumerangue,41 a credibilidade e a capacidade de gerir seu próprio destino.42 Outrossim, a crise econômica iniciada no ano de 2008 por conta da quebra do sistema hipotecário norte-americano fez com que, na busca pelas escassas divisas, diversas instituições financeiras multinacionais passassem a flexibilizar os controles sobre a origem dos capitais investidos.43 Aliás, a atratividade exercida pelas divisas de origem infracional ou de duvidosa legalidade tem conformado próximos e perigosos exemplos de ressurreição

40   Conforme matéria públicada no jornal Jornal Folha de São Paulo, em 26.03.2013, p. A-10. Em meio a uma ofensiva global contra a lavagem de capitais, vem sendo observado o recuo de tradicionais paraísos fiscais (Luxemburgo, Áustria e Ilhas Cayman) quanto ao absolutismo do sigilo bancário. Neste sentido: HIGGINS, Andrew. Paraísos fiscais europeus abandonam o antigo sigilo. Artigo publicado no Jornal The New York Times, em 03.06.2013, p. 2. 41   PINTO, Edson. Lavagem de capitais e paraísos fiscais. São Paulo: Atlas, 2007, p. 64. 42   CANAS, Vitalino. O crime de branqueamento: regime de prevenção e repressão. Coimbra: Almedina, 2004, p 18. 43   Este fato foi denunciado, em entrevista publicada no jornal El País, em 22.02.2009, por Antonio Maria Costa, ex-Diretor Executivo da Agência das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime. Segundo o mesmo, as instituições financeiras se viram atraídas pelos ganhos anuais das organizações criminosas transnacionais, que teriam auferido, somente com o narcotráfico em 2005, entre 300 e 350 milhões de dólares, segundo dados da ONU. Texto disponível no site: http://elpais.com/elpais. Acesso em 10.07.2013.


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do vetusto adágio pecunia non olet,44 ainda que a ingestão prolongada desta fórmula tenha representado para alguns povos a exclusão da igualdade de oportunidades, da livre concorrência, quando não a corrosão do próprio Estado Democrático de Direito.45 Em relação ao Brasil, no mais recente relatório de avaliação do GAFI46 sobre o sistema nacional antilavagem, foram apontados avanços pontuais (v.g.: a especialização de órgãos jurisdicionais em matéria de lavagem de capitais),47 mas também muitas deficiências persistentes (v.g.: baixo número de investigações e sentenças proferidas sobre o crime de lavagem de dinheiro;48 inexistência de estatísticas confiáveis; não submissão efetiva de empresas e profissionais autônomos às obrigações de colaboração com as autoridades, dentre outras). É neste último aspecto que se destacam, respectivamente, o instituto da compliance e assuntos relacionados, tais como a teoria da cegueira deliberada e a teoria dos honorários maculados. 4. Compliance: o dever de colaboração antilavagem Em meados da década de 1990, a expressão “compliance”49 surgiu no 44   Ditado, segundo o qual, o dinheiro não tem cheiro, ou seja, não importa de onde o capital venha, desde que ele venha. Neste sentido, em norma vigorante a partir de 01.07.2013, a Argentina anistiou, em termos penais e tributários, o regresso ao país de dólares não declarados eventualmente existentes em aplicações no exterior. Fonte: site do jornal Valor Econômico, matéria publicada em 01.07.2013, às 19:49 hs. Texto disponível em: www.valor.com.br/internacional. Acesso em 08.07.2013. 45   GOMES, Abel. A obrigação de comunicar operações suspeitas. Brasília: Revista da AJUFE - Associação dos Juízes Federais do Brasil, v. 21, 2004, p. 45. 46   O relatório mais recente é datado de 25.06.2010. Texto em idioma inglês disponível em: https://www.coaf.fazenda.gov.br/destaques/relatorio-de-avaliacao-mutua-do-brasil. Acesso em 01.01.2013. 47   Ainda assim, em 2001, uma pesquisa publicada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal apontou que 94 % dos magistrados federais jamais haviam participado efetivamente de qualquer curso ou atividade de especialização sobre lavagem de capitais e 63% dos membros do Ministério Público Federal afirmaram inexistir estrutura técnica especializada, o que inviabilizava a efetiva aplicação da legislação antilavagem. Cf. Uma análise crítica da lei dos crimes de lavagem de dinheiro. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2002, p. 56. 48   Em 2012, no âmbito de todas as Varas Federais do Brasil, havia em trâmite apenas 971 inquéritos policiais e 83 ações penais sobre lavagem de capitais, conforme matéria publicada no site do Conselho Nacional de Justiça: http://www.cnj.jus.br/noticias. Acesso em 21.06.2013. 49   O termo advém do verbo“to comply”, que no idioma inglês significa, em tradução literal,


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mercado financeiro como um mandamento ético de governança corporativa voltado à reorganização das rotinas operacionais de empresas. De modo geral, após sucessivos abalos gerados por comportamentos negociais obscuros, buscava-se preservar a reputação de grandes instituições privadas, disseminando-se o hábito de cumprimento dos deveres normativos pertinentes aos mais diversos ramos da economia. No entanto, o termo tem sido empregado em sentido mais restrito para espelhar não só o acatamento, mas o próprio conjunto de obrigações de colaboração antilavagem estabelecidas normativamente pelo Estado ou órgãos reguladores setoriais e que devem ser observadas por determinados profissionais e entidades, sob pena de responsabilização administrativa, cível e penal.50 O marco regulatório inicial sobre a matéria deu-se na Conferência de Haia, realizada em 1930, que estabeleceu a fundação do Bank for International Settlements – BIS, com sede na Suíça e que tem por finalidade proporcionar a cooperação entre os bancos centrais. Posteriormente, em meados da década de 1960, a Securities and Exchange Commission fomentou a contratação de compliance officers visando à criação de procedimentos internos de controle, treinamento de pessoas e o monitoramento e supervisão de atividades suspeitas. Ainda que considerados tais acontecimentos, o diploma legal precursor de determinações neste sentido foi a Lei Sarbanes-Oxley, de 2002, nos EUA.51 O conceito de criminal compliance surgiu mais recentemente como reflexo da expansão do Direito Penal Econômico e da criminalidade empresarial.52 A partir de então, tem sido comum nos EUA e em países da Europa

cumprir. Compliance é, portanto, o ato de cumprir normas e agir dentro de seus limites. 50   Em agosto de 2003, com atualização em julho de 2009, A ABBI – Associação Brasileira dos Bancos Internacionais e a FEBRABAN – Federação Brasileira de Bancos lançaram uma cartilha com regras básicas para exercício da compliance. Disponível no site: www.febraban. org.br. Acesso em 21.06.2013. 51   BERTONI, Felipe Faoro; CARVALHO, Diogo. Criminal compliance e lavagem de dinheiro. Texto disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/cienciascriminais/IV/08.pdf. Acesso em 01.01.2014. 52  Neste sentido: SAAVEDRA, Giovani Agostini. Compliance na Nova Lei de Lavagem de Dinheiro. In: Revista Síntese n. 75. Porto Alegre: Síntese, agosto/2012, p. 23. É sabido que, no Brasil, apenas a Lei n.º 9.605/1998 prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica e, ainda assim, somente nos casos de delitos contra o meio ambiente. Entretanto, vale mencionar o disposto no art. 41 do Projeto de Lei do Senado 236/2012, que amplia a responsabilização


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ocidental, especialmente na Alemanha, o estabelecimento de departamentos internos que teriam a missão específica de avaliar constantemente os procedimentos da empresa com vistas a garantir a conformidade de sua atuação com as exigências normativas, em especial quanto ao cumprimento das obrigações de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro.53 É sabido que, a partir de seu art. 9º, a Lei n. 9.613, de 03.03.1998, com a redação dada pela Lei n. 12.683, de 09.07.2012, alargou consideravelmente o rol de colaboradores obrigatórios e detalhou seus respectivos deveres.54 Embora não exista no ordenamento jurídico brasileiro55 um tipo penal específico,56 não há razão para afastar, de plano, que o reconhecimento de que o descumprimento doloso e injustificado dos deveres de colaboração antilavagem configura omissão penalmente relevante nos termos do art. 13, p. 2º, ´a´ do Código Penal,57 dentre outros fundamentos.58 de pessoas jurídicas para casos de atos praticados “contra a administração pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado, ou interesse ou benefício de sua entidade”. 53   SAAVEDRA, Giovani Agostini. Reflexões iniciais sobre o controle penal dos deveres de compliance. In: Boletim do IBCCRIM n. 226. São Paulo: RT, setembro/2011, p. 13/14. 54   As principais obrigações de colaboração antilavagem podem ser assim resumidas: identificação do cliente; manutenção do registro das transações; atendimento às requisições das autoridades; comunicação das operações suspeitas e preservação do sigilo destas. 55   Ao revés, o art. 14.3 do Regulamento Modelo sobre Crimes de Lavagem de Dinheiro, da Comissão Interamericana para Controle do Abuso de Drogas (CICAD), da OEA prevê o seguinte: “Comete delito penal a instituição financeira, seus empregados, funcionários, diretores, proprietários ou outros representantes autorizados, que, atuando, como tal, deliberadamente não cumpram as obrigações estabelecidas nos artigos 10 a 13 do presente Regulamento, ou que falseiem ou adulterem os registros ou informações aludidos nos mencionados artigos”. 56   DE SANCTIS propõe a criação de novo tipo penal incriminando o retardamento ou omissão da efetuação da comunicação de operações suspeitas, bem como a prestação de informação inexata ou revelação ao cliente da respectiva comunicação. Cf. DE SANCTIS, Fausto. Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática. Campinas: Millennium, 2008, p. 42. 57   Ao inaugurar a disciplina da Teoria do Crime, o Título II do Código Penal dispõe sobre a relação de causalidade nos seguintes termos: “Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.(...)§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”, 58   Considerando-se a já mencionada essencialidade da lavagem de dinheiro para subsistência e perpetuação das mais graves expressões da macrocriminalidade, relembre-se que o


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Em outras palavras, havendo a previsão normativa específica do dever de agir;59 sendo tais obrigações claras, plenamente conhecidas e de cumprimento viável, torna-se evidente o dever de cuidado, proteção e vigilância a caracterizar a posição de garante. Logo, caso a consciente inobservância de algum dos deveres inerentes à compliance venha a viabilizar ou, de alguma forma, facilitar a ocultação de patrimônio de origem ilícita, deve o agente ser penalmente responsabilizado pelo crime de lavagem de dinheiro.60 Quanto ao elemento volitivo, discute-se a possibilidade de que a punição do agente econômico-financeiro se dê com base em dolo eventual ou exclusivamente com base em dolo direto,61 havendo ampla divergência doutrinária e parca produção jurisprudencial a respeito no direito brasileiro. A corrente restritiva defende que o enquadramento penal do agente econômico-financeiro por lavagem de dinheiro exige prova cabal do dolo direto,62 ou seja, a demonstração da ciência plena do mesmo acerca da origem ilícita dos recursos manejados, embora não se exija o conhecimento exato sobre a espécie de infração penal (crime ou contravenção) que proporcionou o ganho patrimonial, nem detalhes de seu cometimento. Costuma-se alegar que os funcionários de bancos ou profissionais do sistema financeiro em geral não teriam o dever de averiguar a procedência art. 5º, XLII da CR/88 determina expressamente a punição daqueles que se omitirem, mesmo podendo evitar a prática do terrorismo, do narcotráfico e outros crimes hediondos. 59   Refiro-me à obrigação positiva de colaborar com as autoridades nos termos dispostos pelo art. 9º e seguintes da Lei n. 9.613/98, com a redação dada pela Lei n. 12.683/2012. 60   O enquadramento do agente econômico-financeiro a título de co-autor ou partícipe dependeria logicamente das circunstâncias do caso concreto que denotassem a relevância ou essencialidade da contribuição deste para a empreitada delitiva, nos termos do art. 29 do CP. 61   Ao contrário do que ocorre na Espanha (art. 301.3 do CP/1995), o ordenamento brasileiro não estabelece a punição da lavagem de dinheiro a título culposo, sendo aplicável, portanto, o disposto no art. 18, p. único do CP. 62   Neste sentido: CALLEGARI, André Luís. Participação criminal de agentes financeiros e garantias de imputação no delito de lavagem de dinheiro. In: Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 354; PITOMBO, Antonio Sérgio Altieri de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: RT, 2003, p. 136; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A particular imputação penal do agente financeiro nos crimes de lavagem de dinheiro. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 54. Outubro/2011, p. 237 e BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas. São Paulo: RT, 2008, p. 58.


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ilícita dos fundos ou, mesmo que saibam ou desconfiem da origem ilícita, se não participam do grupo, associação ou escritório destinado à lavagem, não ocupariam a posição de garantidores da ordem legal e, portanto, incorreriam no crime de lavagem pela simples efetuação de operações econômicas normais e cotidianas.63 Diz-se também que o livre exercício profissional e a normal circulação de riquezas seriam dificultados com a ameaça de incidência da norma penal. A seu turno, a corrente ampliativa entende ser cabível a punibilidade por dolo eventual, sendo desnecessária uma previsão legal específica neste sentido. Logo, para fins de responsabilização por lavagem de dinheiro, pouco importaria se o agente quis efetivamente ocultar patrimônio ilícito (dolo direto) ou assumiu o risco de contribuir para esse resultado ao inobservar espontaneamente algum dos deveres expressos de colaboração (dolo eventual). Parece-me que a razão está com esta última corrente, haja vista a suficiência do disposto art. 18, I, in fine c/c art. 12, ambos do Código Penal.64 Acrescente-se também que a interpretação explicitada pelo próprio legislador reforça esta conclusão.65 Sobre o tema, revela-se pertinente a teoria da cegueira deliberada, que será exposta a seguir. 5. A teoria da cegueira deliberada A teoria da cegueira deliberada (willful blindness), também conhecida como doutrina das instruções do avestruz (ostrich instructions) e doutrina da evitação da consciência (conscious avoidance doctrine), consiste em construção jurisprudencial assemelhada à formulação do dolo eventual e 63   Neste sentido: PRADO, Luiz Regis. O novo tratamento penal da lavagem de dinheiro (Lei 12.683/2012). In: Revista dos Tribunais v. 926. São Paulo: RT, dezembro/2012, p. 427. 64   Neste sentido: MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 69. 65   A Exposição de Motivos da Lei n. 9.613/98, no item 40, dispõe o seguinte: “40. Equipara o projeto, ainda, ao crime de lavagem de dinheiro a importação ou exportação de bens com valores inexatos (art. 1o, § 1o, III). Nesta hipótese, como nas anteriores, exige o projeto que a conduta descrita tenha como objetivo a ocultação ou a dissimulação da utilização de bens, direitos ou valores oriundos dos referidos crimes antecedentes. Exige o projeto, nesses casos, o dolo direto, admitindo o dolo eventual somente para a hipótese do caput do artigo.”


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por meio da qual se afigura possível o enquadramento, por lavagem de dinheiro, daquele que, mesmo ciente da elevada probabilidade da procedência ilícita dos recursos, assume o risco de produzir o resultado ao agir, ainda assim, de modo indiferente a este conhecimento.66 Desta forma, embora seja possível checar a natureza dos bens, o indivíduo que detém o dever de impedir o resultado (ex.: compliance officer ou agente econômico-financeiro) opta pela ignorância confortável, comportando-se como o avestruz que enterra a cabeça para não ver a luz do sol. Em bom português, o garante ou quem se encontre nesta posição faz vista grossa e ouvidos de mercador, viabilizando, dessarte, a ocultação de patrimônio ilícito pelo que responderá por lavagem de dinheiro, ainda que com base em dolo eventual. Ainda que considerada a origem inglesa e norte-americana, a tese tem proliferado mesmo em países que adotam o sistema civil law e consagram textualmente a possibilidade de punição por dolo eventual, como é o caso da Espanha, na qual, a partir do ano 2000, foram prolatadas dezenas de decisões pelo Tribunal Supremo acolhendo a teoria da cegueira deliberada. Apesar de se tratar de assunto ainda pouco discutido no Brasil, não se vislumbra obstáculo que impeça o acolhimento da teoria da cegueira deliberada, sendo este, ao revés, um imperativo de cunho moral com base legal (art. 18, I, in fine do CP). Quanto à aplicabilidade dos deveres inerentes à compliance aos advogados, em especial no tocante à obrigação de comunicação de operações suspeitas,67 o direito estrangeiro costuma distinguir a advocacia entre os 66   A origem histórica se dá no direito inglês, mais precisamente em 1861, no caso Regina vs. Sleep. Sleep era proprietário de uma ferragem e teria tentado remeter ao exterior parafusos de cobre desviados do patrimônio público. Nos EUA, o precedente teria se dado, em 1899, por ocasião do julgamento do caso United States vs. Spurr pela Suprema Corte norte-americana. Spurr era presidente do Commercial Bank of Nashville e teria certificado a existência de fundos em cheques emitidos por um cliente que não possuía recursos suficientes para cobri-los. No entanto, o precedente mais lembrado é o United States vs. Jewell, no qual este último teria alegado ignorar estar transportando entorpecentes e dinheiro, mesmo possuindo em seu carro particular um compartimento de fundo falso. Cf. BECK, Francis. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in) aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. In: Revista de Estudos Criminais n. 41. São Paulo: ITEC, abril/2011, p. 49/50. 67   O caráter inusitado e incomum de determinadas operações financeiras e sua desproporção para com o perfil sócio-econômico do interessado em realizá-las são alguns dos motivos


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ramos consultivo e contencioso. No primeiro caso, uma vez envolvida tão-somente a orientação sobre a condução negocial e patrimonial, é maciçamente reconhecido o dever do advogado de prestar informações às autoridades estatais sobre eventuais operações suspeitas de clientes.68 Neste diapasão, a Diretiva n. 91/308, de 10.06.1991 (itens 16 e 17), com a redação dada pela Diretiva n. 97, de 04.12.2001, ambas do Conselho da Comunidade Europeia, estabelece a obrigação de notificação de operações suspeitas para profissionais forenses, sobretudo notários e advogados, estes últimos expressamente alcançados quando da participação em atividades extrajudiciais (transações financeiras e empresariais) ou consultas jurídicas, excluído o dever de colaboração quando da atuação em processos judiciais. Neste caso, em havendo ocultação de patrimônio de origem ilícita, a consciente e espontânea inobservância de algum dos deveres de colaboração antilavagem enseja, em tese, a responsabilização do advogado por crime de lavagem de dinheiro, o que pode ocorrer, dependendo das circunstâncias do caso concreto, com base em dolo direto ou dolo eventual, este caracterizado por aplicação da já comentada teoria da cegueira deliberada. No Reino Unido (Satutory Instrument – The money Laudering Regulations/2003) e nos EUA (Sarbanes-Oxley Act/2002) já vigoram normas específicas que determinam a responsabilidade do advogado pelos controles para a prevenção à lavagem de dinheiro no exercício de seu ofício. No Brasil, a nova redação da Lei n. 9.613/98 é bastante clara ao estabelecer uma série de hipóteses (em especial, o art. 9º, p. único, XIV e XV) nas quais o advogado-consultor está enquadrado, assim como qualquer outro profissional. Isto se dá sem qualquer violação a prerrogativas profissionais ou direitos fun-

que orientam a elaboração da listagem de operações suspeitas que devem ser comunicadas aos órgãos competentes. De modo a atualizar esta lista, o Banco Central edita regularmente cartas-circulares, como, por exemplo, a de n. 3.542, de 12.03.2012. 68   Segundo CANAS, a descoberta deve ocorrer no curso do exercício da atividade profissional. Se, por exemplo, surgir, num almoço social, a informação de que um cliente a quem assiste está envolvido em operações de branquamento, não está o advogado obrigado ao comunicar, não se exigindo também que o advogado abandone a colaboração com o cliente, apenas que realize a comunicação. Neste sentido: CANAS, Vitalino. Op. cit., p. 61.


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damentais, conclusão reforçada pelo próprio Estatuto da Advocacia.69 Aliás, defender o contrário importaria em chancelamento do direito de orientação jurídica para práticas criminosas e socialmente perniciosas. Com a devida vênia, não há razão na afirmação de que, mesmo na função de consultor, o advogado não deveria ser incluído na política de prevenção à lavagem, sob risco de comprometimento e flexibilização de direitos fundamentais. Vale lembrar que os direitos fundamentais são flexíveis por natureza face à necessidade de convivência aplicativa com a generalidade dos interesses igualmente merecedores de proteção constitucional. Ademais, o livre exercício de qualquer profissão, inclusive a de advogado, é sujeita à regulamentação legal (art. 5º, XII, CR/88), o que, no caso específico, já ocorre (vide o disposto no art. 34, XVII da Lei n. 8.906/94). Já na hipótese de advocacia contenciosa, uma vez envolvido o exercício do direito de defesa em processos e investigações sancionatórias lato sensu,70 costuma-se afirmar o impedimento da exigência de colaboração do advogado sob o argumento de violação a direitos fundamentais e a prerrogativas profissionais (art. 34, VII da Lei n. 8.906/94),71 além de possível incursão no crime previsto no art. 154 do CP (violação do segredo profissional).72 Neste caso, a imunidade profissional teria também os seguintes fundamentos: liberdade e essencialidade da atividade advocatícia (art. 133 da CR/88); direito de escolha do defensor (art. 8º, 2, ‘d’ do Pacto de São José da Costa Rica – Decreto n. 678/92); impossibilidade de imputação objetiva do resultado (a 69   O art. 34, XVII e XVIII da Lei n. 8.906/94 veda ao advogado a prestação de concurso a clientes ou a terceiros para realização de ato contrário à lei ou destinado a fraudá-la, bem como a solicitação ou recebimento de qualquer importância para aplicação ilícita ou desonesta. 70   A meu sentir, em respeito ao princípio constitucional da ampla defesa, a imunidade advocatícia contenciosa quanto aos deveres de colaboração antilavagem abrangeria a totalidade das informações recebidas por atuação profissional não só em ações e investigações penais, mas em qualquer ação judicial, procedimento administrativo ou pré-processual que possa acarretar sancionamento de toda espécie para pessoas físicas ou jurídicas. 71   Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Lavagem de capitais e quebra do segredo profissional do advogado. Texto disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em 01.05.2013. 72   Em comentário aplicável ao histórico brasileiro, CANAS ressalta o especial valor do dever-direito de sigilo dos profissionais do foro, particularmente dos advogados, em países onde permanece ainda viva a memória de um regime autoritário onde o segredo profissional era uma das poucas barreitas à lesão de direitos fundamentais dos cidadãos. Cf. CANAS, Vitalino. Op. cit., p. 49.


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atividade advocatícia nestes casos configuraria um risco permitido); vulneração da relação de confiança defensor-investigado e aplicação da teoria da adequação social (teoria da ação neutra).73 6. A teoria dos honorários maculados É possível a responsabilização penal do advogado que recebe honorários pagos com recursos sabidamente oriundos da prática de infrações penais? A resposta a esta indagação demanda inicialmente uma singela distinção. De plano, não há dúvida de que a aceitação de honorários “fingidos”74 provocam a incursão do advogado na prática do crime de lavagem de dinheiro.75 Já quanto ao recebimento de honorários reais, ou seja, sem qualquer falsidade entre o valor contratado e efetivamente recebido, há fundada controvérsia quanto à repercussão penal deste comportamento. De um lado, há países que reconhecem a plena viabilidade da punição nestes casos, como ocorre em terras germânicas desde o início da década passada,76 quando se iniciou a tendência de que o recebimento de honorários conscientemente oriundos de atividades ilícitas acarrete a condenação

73   As chamadas ações neutras, socialmente adequadas ou standards seriam, em tese, atípicas por serem normalmente aceitas e praticadas no cotidiano da coletividade. 74   Por exemplo, no caso do advogado que aceite prestar declaração ou assinar contrato relatando falsa informação sobre o valor dos honorários efetivamente recebidos de modo a legitimar o patrimônio ilicitamente obtido por seu cliente. 75   Cf. SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Direito penal econômico: advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 219. 76   Neste sentido: AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007, p. 58. Em 04.07.2001, o Tribunal Constitucional da Alemanha manteve a condenação de um casal de advogados por lavagem de capitais (art. 261, II, 1 do CP), haja vista terem recebido honorários antecipados mesmo cientes da origem ilícita. No mesmo sentido, em 30.03.2004, o mesmo órgão jurisdicional manteve a condenação destes advogados por lavagem de capitais configurada esta a partir do recebimento de honorários oriundos de fraudes no mercado de investimentos financeiros. Em 14.01.2005, o mesmo Tribunal reconheceu a validade da busca e apreensão em escritório e residência de advogados diante de indícios da participação destes em atividades de lavagem de capitais. Em todos estes casos, o Tribunal considerou, para fins de configuração da aceitação dolosa de honorários maculados, a desproporcionalidade do valor dos honorários, bem como a forma de pagamento (em espécie). Cf. SCHORSCER, Vivian C. A responsabilidade penal do advogado na lavagem de dinheiro: primeiras observações. In: Revista dos Tribunais v. 863. São Paulo: RT, setembro/2007, p. 441.


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do advogado pela prática de lavagem de dinheiro. Nos EUA, visando à preservação do direito de assistência jurídico-criminal previsto na 6ª Emenda Constitucional, diversos órgãos e entidades advocatícias têm defendido a prerrogativa de exoneração da responsabilidade penal ao menos no tocante à atividade contenciosa, intenção que obteve êxito na regulamentação do diploma legal norte-americano antilavagem (Money Laudering Prosecution Improvements Acts, de 1988).77 No Brasil, não há tipo penal específico neste sentido e, por esta razão, em obediência ao princípio da legalidade, inexistindo prova da intenção de ocultação de patrimônio ilícito por meio do recebimento de honorários, não é viável o sancionamento penal do advogado na hipótese, mesmo ante a ciência deste sobre a origem ilícita dos recursos utilizados no pagamento. Porém, o conhecimento (real ou possível) sobre a maculação dos honorários não é desprovido de efeitos. Primeiramente, há que se dizer que a caracterização da ciência sobre a origem maculada dos honorários pode perfeitamente ser extraída das circunstâncias que envolvem a (des)propocionalidade entre o valor pago e o perfil sócio-econômico do cliente, bem como por uso de meios incomuns de pagamento (ex.: depósitos em paraísos fiscais, vultosos valores em espécie, etc.), nos mesmos moldes definidos pela teoria da cegueira deliberada, acolhida pela jurisprudência alemã e norte-americana. A exigência de um mínimo de cautela neste aspecto não faz necessariamente do advogado um investigador da vida pregressa de seu cliente e se mostra razoável, desde que real ou robustamente possível o acesso a este conhecimento. Dessarte, caso comprovada a ciência inequívoca ou mesmo a alta probabilidade de que os valores recebidos provinham de ilícitos penais, torna-se legítima a persecução, pelo Estado, dos bens e recursos que serviram para o pagamento da verba honorária, sujeitando-se o advogado aos efeitos das medidas patrimoniais assecuratórias legalmente previstas (busca e apreensão, sequestro, arresto e hipoteca legal), bem como à futura perda do montante auferido.78 77   AMBOS, Kai. Op. Cit., p. 85. 78   Cf. SCHORSCER, Vivian C. Op. cit., p. 445.


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A outra consequência refere-se à afirmação de que, também seguindo a linha já definida pela jurisprudência alemã e norte-americana, o direito de escolha do defensor não é absoluto, assim como não o é nenhum outro direito fundamental. Logo, a possibilidade de eleição do advogado pelo investigado está condicionada à possibilidade deste de pagar os respectivos honorários com recursos de origem comprovadamente lícita, salvo aceitação de atuação gratuita pelo causídico escolhido. Caso contrário, deve ser o investigado equiparado ao hipossuficiente, sendo-lhe nomeado defensor público ou advogado dativo para atuar em seu favor.79 Interpretação distinta resultaria na institucionalização do direito de pagar e receber honorários maculados ou, com exclusão do eufemismo, custeados com dinheiro sujo. Ademais, a independendência e a liberdade do exercício advocatício também deixariam de existir se admitido o pagamento de honorários maculados, haja vista que o advogado se tornaria dependente do crime organizado. Aliás, a proibição de receber recursos de origem ilícita recai sobre todos e não apenas sobre o advogado.80 Na jurisprudência norte-americana, registram-se há décadas louváveis reafirmações do descabimento de exceção quanto ao adágio segundo o qual o crime não deve compensar, nem mesmo para pagar o serviço de advo-

79   SCHORSCER, Vivian C. Op. cit., p. 442/443. 80   Já se ouviu, com indisfarçável excesso irônico, a indagação sobre o eventual enquadramento de um vendedor ambulante que recebe pagamento por um picolé vendido a, por exemplo, um conhecido narcotraficante ou explorador de jogo ilegal. Logicamente, o princípio da insignificância afastaria o enquadramento citado, o que não se aplica ao advogado e profissionais do mercado financeiro, cujo custo dos serviços e possibilidade de informação sobre a origem dos bens são evidentemente diferenciados.


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gados.81 Sendo assim, de lege ferenda,82 não se vislumbra empecilho83 ao estabelecimento da exigência legal de declaração do valor recebido a título de honorários (bem como comprovação da origem destes recursos) ou afirmação de atuação gratuita, o que poderia ser feito em autos apartados sob segredo de justiça, mas sempre sob pena de responsabilização por eventual falsidade das informações.84 7. Conclusão “O criminoso do colarinho branco goza de um cinturão de impunidade (...) No Brasil, criam-se, replicam-se e aplicam-se teses convenientemente desenvolvidas para a faixa de delitos onde prepondera o alto empresariado, banqueiros e os homens de negócios.”85

81   Do precedente da Suprema Corte norte-americana (US v. Peter Monsanto, julgado em 22.06.1989), extrai-se o seguinte trecho: “We conclude that there is no exemption from § 853’s forfeiture or pretrial restraining order provisions for assets which a defendant wishes to use to retain an attorney. In enacting § 853, Congress decided to give force to the old adage that ´crime does not pay.´ We find no evidence that Congress intended to modify that nostrum to read, ´crime does not pay, except for attorney’s fees´. If, as respondent and supporting amici so vigorously assert, we are mistaken as to Congress’ intent, that body can amend this statute to otherwise provide. But the statute, as presently written, cannot be read any other way.” Grifou-se. 82   A proposta é feita a despeito da ciência de tentativas anteriores. A respeito do tema, registrem-se os seguintes projetos de lei: (1) o PL n. 6.413/2000, de autoria do falecido Senador Antônio Carlos Magalhães, pretendia a alterar a redação do art. 261-A do CPP para estabelecer a imposição de defensor público ao acusado por lavagem; (2) o PL n. 577/2003 pretendia estabelecer a obrigação de comprovação da origem ilícita dos valores pagos a título de honorários; (3) o PL n. 5562/2005 pretendia obrigar o acusado da prática de crime hediondo a comprovar o valor e a origem dos honorários despendidos e (4)) o PL n. 712/2003 pretendia alterar o Estatuto da OAB para incluir como infração o recebimento de importância proveniente de atividades criminosas. Todos os referidos projetos de lei foram arquivados pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em 22.05.2007. 83   Em sentido contrário: SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. Direito penal econômico: advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 194. 84   Ao fim da palestra proferida por ocasião do Seminário Internacional de Direito Penal, realizado no dia 03.10.2013, Isidoro Blanco Cordero, Professor da Universidade de Alicante/Espanha, afirmou que as informações prestadas sobre os honorários podem ser, inclusive, confrontadas com a declaração anual de imposto de renda, o que ocorreria comumente na Europa. 85   SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Da Criminologia à Política Criminal. Direito Penal Econômico e o novo Direito Penal. In: Inovações no direito penal econômico: contribuições criminológicas, político criminais e dogmáticas. Brasília: ESMPU, 2011, p. 139.


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São incontáveis os casos diariamente noticiados nos quais delinquentes contumazes ou de alto poder político-econômico, mesmo desprovidos muitas das vezes de profissão ou fonte de renda lícita, investem o patrimônio obtido ilegalmente em grandes instituições financeiras e, quando investigados, contratam os mais renomados advogados e escritórios de advocacia sob valores de montante e origem convenientemente acobertados por manto argumentativo de suposto viés constitucional. O mesmo se diga em relação a alguns agentes públicos que, quando investigados pelos mais rumorosos escândalos de corrupção e desvio de recursos do erário, conseguem, sabe-se lá como, idêntica proeza financeira, mesmo tendo limitada remuneração de conhecimento coletivo86 e insípido patrimônio declarado ao fisco. Ainda não se conseguiu explicar no que exatamente estaria o direito de defesa cerceado com a mera explicitação da origem do custeio do serviço advocatício ou onde a livre circulação de riqueza (lícita) seria impedida pela simples imposição de cautelas e deveres aos agentes econômico-financeiros. A verdade é que, em que pesem as indiscutíveis repercussões contemporâneas, as teorias da cegueira deliberada e dos honorários maculados têm sido praticamente ignoradas no Brasil, ao contrário do que ocorre em países desenvolvidos. Cabe deixar claro que não se defende a acrítica importação da disciplina e interpretação destes tópicos para o cenário jurídico nacional, mas é indubitável que o premente enfrentamento do tema demanda desapego em relação a argumentos impertinentes, já exauridos e indignos de credibilidade. O escorreito exercício de atividades profissionais tão significativas para a sociedade, como a advocacia e a atividade financeira em geral, deve estar acima do corporativismo inócuo, quando não nocivo, bem como de interesses escusos impublicáveis, para que o Brasil possa enfim alcançar uma regulamentação justa e adequada para este assunto de singular importância. 8. Referências AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2007. 86   A Lei n. 12.527/2011 possibilita o amplo acesso à informação sobre a renda mensal de agentes públicos de quaisquer dos Poderes da República.


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O terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança E a proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito


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Souza Prudente Doutor e mestre em Direito Público-Ambiental pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor decano e fundador do curso de Direto da Universidade Católica de Brasília. Desembargador federal do TRF da 1ª Região.

Sumário: 1 – Introdução: O Perfil histórico do Poder Judiciário Republicano no Estado Democrático de Direito. 2 – A Reforma Processual Civil no contexto das garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito. 3 – O Terror jurídico-ditatorial da Suspensão de Segurança no contexto abusivo de Medida Provisória invasora da competência legislativa do Congresso Nacional. 4 – A contratutela procedimental da suspensão de segurança ambiental e a proibição do retrocesso no sistema de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 5 – O silêncio agressor do Congresso Nacional ante os abusos de Medida Provisória genitora do juízo de exceção da Suspensão de Segurança em atentado às garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito. Resumo: O presente artigo jurídico versa sobre o terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança e a proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito. Visualiza-se, de logo, o perfil histórico do Poder Judiciário Republicano no Estado Democrático de Direito, destacando-se, no contexto da Reforma Processual em tramitação no Congresso Nacional, a figura do juiz republicano, corajoso e independente, como indispensável à concessão das tutelas de urgência, estruturadas nas vertentes de um processo civil ágil, seguro, moderno e assim legitimado pela soberania popular a servir de instrumento apto ao exercício de uma jurisdição oportuna e efetiva na defesa dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil. Aponta-se, com prioridade, o terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança no contexto abusivo de Medida Provisória invasora da competência legislativa do Congresso Nacional, com manifesto propósito de estrangular a ordem jurídico-processual brasileira, restabelecendo os juízos de exceção nas cúpulas do Poder Judiciário, próprios dos regimes ditato-


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riais, visando anular o juízo natural das instâncias judiciais singulares e colegiadas de nossos Tribunais, em flagrante atentado à segurança jurídica do Estado Democrático de Direito. Destaca-se, por último, a contratutela procedimental da suspensão de segurança ambiental nos Tribunais Federais do Brasil, agredindo o princípio da proibição do retrocesso no sistema de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ante o silêncio agressor do Congresso Nacional, em face dos abusos da Medida Provisória genitora do odioso juízo de exceção da suspensão de segurança, em atentado às garantias fundamentais da República Federativa do Brasil na expressão literal de nossa Carta Política Federal. Palavras-chave: Poder Judiciário Republicano – Estado Democrático de Direito – Reforma Processual Civil – Garantias Constitucionais – Medida Provisória – Suspensão de segurança – Juízo de Exceção – Proibição do Retrocesso Ecológico – Silêncio Agressor do Congresso Nacional. Abstract: This article deals with legal-dictatorial terror of the suspension of security and of the prohibition of kicker in the Democratic Rule of Law. It is visualized, immediately, the historical profile of the Judiciary Republican in the Democratic Rule of Law, especially in the context of Procedure Reform in the National Congress, the figure of the judge republican, brave and independent, as indispensable to the granting of guardianships of urgency, structured in a modern civil proceeding, agile and safe, legitimized by popular sovereignty to serve as an instrument able to exercise jurisdiction in a timely and effective defense of the fundamental rights, guaranteed by the Constitution of the Federative Republic of Brazil. It is appointed, as a priority, the legal-dictatorial terror of the suspension of security in the abusive context of Provisional Measures invading the legislative competence of the National Congress, with the manifest purpose of strangling the Brazilian legal-procedural system, reestablishing the exception courts in the summits of the Judiciary, peculiar of dictatorial regimes, seeking to annul the natural judgment of the single judges and of the our collegiate courts, in flagrant violation of the legal security of the Democratic Rule of Law.


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It should be noted, finally, the procedural guardianship of the suspension of environmental security in the Federal Courts of Brazil, attacking the principle of prohibition of kicker at the protection system to an ecologically balanced environment faced with the aggressive silence of National Congress about the abuses of Provisional Measure, which is the progenitor of the odious exception courts of the suspension of security, in offense of the fundamental guarantees of the Federative Republic of Brazil in the literal expression of our Federal Charter Policy. Keywords: Republican Judiciary – Democratic Rule of Law - Civil Procedure Reform - Constitutional Guarantees - Provisional Measures- Suspension security – Exception Court - Prohibition of Ecological Rewind Aggressive Silence of National Congress.

1. Introdução: O Perfil histórico do Poder Judiciário Republicano no Estado Democrático de Direito No ideário de instalação de um Estado Democrático de Direito e de Justiça, as Constituições modernas, que consagram a divisão tripartite de poderes, apontam os juízes como legítimos representantes da soberania popular, resgatando-os do perfil fossilizante de seres inanimados, que, apenas, anunciam as palavras da lei, sem poder algum para lhe controlar o arbítrio e o rigor. Nesse sentido, advertia João Barbalho, em comentários à primeira Constituição Republicana do Brasil, nas letras seguintes: “A magistratura que agora se instala no país, graças ao regime republicano, não é um instrumento cego ou mero intérprete na execução dos atos do Poder Legislativo. Antes de aplicar a lei, cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção se ela lhe parecer conforme a lei orgânica. (...) Aí está posta a profunda diversidade de índole que existe entre o Poder Judiciário, tal como se achava instituído no regime decaído, e aquele que agora se inaugura, calcado sobre os moldes democráticos do sistema federal. De poder subordinado, qual era, transforma-se em poder soberano, apto, na elevada esfera de sua autoridade, para interpor a benéfica influência de seu critério


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decisivo, a fim de manter o equilíbrio, a regularidade e a própria independência dos outros poderes, assegurando ao mesmo tempo o livre exercício dos direitos do cidadão”.1 Nesse visor, merece destaque, aqui, a sábia reflexão do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, ainda na qualidade de Presidente da Escola Nacional da Magistratura, em prol de “um novo processo, uma nova Justiça”, nestes termos: “O Estado Democrático de Direito não se contenta mais com uma ação passiva. O Judiciário não mais é visto como mero Poder equidistante, mas como efetivo participante dos destinos da Nação e responsável pelo bem comum. Os direitos fundamentais sociais, ao contrário dos direitos fundamentais clássicos, exigem a atuação do Estado, proibindo-lhe a omissão. Essa nova postura repudia as normas constitucionais como meros preceitos programáticos, vendo-as sempre dotadas de eficácia em temas como dignidade humana, redução das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização, valorização do trabalho e da livre iniciativa, defesa do meio ambiente e construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária. Foi-se o tempo do Judiciário dependente, encastelado e inerte. O Povo, espoliado e desencantado, está nele a confiar e reclama sua efetiva atuação através dessa garantia democrática que é o processo, instrumento da jurisdição. É de convir-se, todavia, que somente procedimentos rápidos e eficazes têm o condão de realizar o verdadeiro escopo do processo. Daí a imprescindibilidade de um processo ágil, seguro e moderno, sem as amarras fetichistas do passado e do presente, apto a servir de instrumento à realização da Justiça, à defesa da cidadania, a viabilizar a convivência humana e a própria arte de viver”.2 2. A Reforma Processual Civil no contexto das garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito Com essa inteligência, o projeto de reforma processual civil, em trâmi-

1   Cavalcanti, João Barbalho de Uchoa. Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro, Typographia da Companhia Litho, 1902. p. 222. 2   Teixeira, Sálvio de Figueiredo. Estatuto da Magistratura e reforma do processo civil. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 26-27


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te no Congresso Nacional, visa implantar as regras de um novo Código de Processo Civil, no ordenamento jurídico nacional, resgatando o perfil republicano do juiz brasileiro, como garantia fundamental do processo justo e do acesso pleno à Justiça, na determinação de que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, não se excluindo da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, ressalvados os litígios voluntariamente submetidos à solução arbitral, na forma da lei. Em busca da realização do objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, visando “construir uma sociedade solidária, justa e livre” (CF, art. 3º, I), a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição e do pleno acesso à Justiça (CF, art. 5º, incisos XXXV e LXXVIII), se bem instrumentalizada, na procedimentabilidade do processo justo e na força determinante de sua autoaplicabilidade protetora e de eficácia imediata (CF, art. 5º, § 1º), com a técnica processual moderna da tutela mandamental-inibitória negativa ou positiva (antecipatória ou final), reprimirá os abusos, em tempo de evitar, em muitos casos, que a prática do ilícito aconteça (CPC, arts. 273, § 7º, e 461, §§ 3º, 4º e 5º), livrando, assim, o cidadão e a coletividade de correr atrás do prejuízo, em busca de uma indenização quase sempre injusta, ainda que tardia e materialmente possível. A dimensão da tutela jurisdicional assim prevista no ordenamento jurídico-processual brasileiro, com natureza mandamental e específica, ilumina-se nos ensinamentos de Cândido Dinamarco, quando afirma que “a reforma pretendeu armar o juiz de poderes muitos intensos, destinados a combater a resistência do obrigado, em todos os casos”, pois “inexiste tutela jurisdicional enquanto o comando na sentença permanecer só na sentença e não se fizer sentir de modo eficaz na realidade prática da vida dos litigantes. Agora, tudo depende da tomada de consciência dos juízes e da energia com que venham a exercer esses poderes, a bem da efetividade da tutela jurisdicional e da própria respeitabilidade de sua função e dos seus comandos”.3 3   DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil, Vol. II, São Paulo, Malheiros, 1995, pp. 143/144


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Destacam-se, nesse contexto de afirmação das garantias fundamentais do processo justo, dentre outras, as normas supressoras do duplo juízo de admissibilidade recursal, as que autorizam a tutela cautelar de urgência, na determinação judicial do efeito suspensivo dos recursos, bem assim as que visam afastar riscos ao direito das partes, garantindo o resultado útil do processo, como também aquelas que determinam a concessão da tutela de evidência, independentemente da demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação, quando ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte requerida, bem assim quando um ou mais dos pedidos cumulados ou parcelas deles mostrar-se incontroverso, a exigir, de logo, solução definitiva da lide, ou, ainda, quando a matéria for unicamente de direito e houver tese firmada em julgamento de recursos repetitivos ou resultar de enunciado de súmula vinculante. Não se cuida, assim, na sistemática do processo civil moderno, da implantação de um “ativismo judicial irresponsável”, como fator determinante de uma “ditadura do Judiciário”, a ferir postulados históricos de uma míope exegese privatista do direito, sob a luminosidade restrita dos tempos de Napoleão, mas, de um sistema de normas processuais, revelador do autêntico perfil constitucional do juiz, como agente da soberania nacional, no exercício pleno de seu poder geral de cautela, que de há muito rompera as mordaças da doutrina liberal, para garantir os direitos do cidadão, neste novo século, no exercício de uma comunhão difusa de sentimentos e de solidariedade, que se ilumina na inteligência criativa e serviente à aventura da vida, no processo de construção de uma democracia plenamente participativa. De ver-se, pois, que a tutela específica e processual de urgência, liminarmente antecipável, como já prevista no § 3.º do art. 461 do CPC, identifica-se, em seus pressupostos de admissibilidade, como aquela inserida no art. 7.º, III, da Lei 12.016, de 07.08.2009, bem assim com a antecipação de tutela cautelar, constante do § 7.º do art. 273 do CPC, na redação determinada pela Lei 10.444, de 07.05.2002, em harmonia com o art. 5.º, § 4.º, da Lei 4.717/1965 (Lei da Ação Popular) e com os arts. 4.º, 11 e 12 da Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) com força mandamental-inibitória, aplicável até mesmo, de ofício, em matéria ambiental, por imposição do comando constitucional da tutela caute-


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lar do meio ambiente (art. 225, caput, da CF/1988) e da instrumentalidade dos §§ 4.º, 5.º e 6.º, do aludido art. 461 do CPC, com a redação dada pela referida Lei 10.444/2002, visando a eficácia plena do progresso ecológico. A tutela jurisdicional-inibitória do risco ambiental, como instrumento de eficácia do princípio da precaução, resulta, assim, dos comandos normativos do art. 5.º, caput e incs. XXXV e LXXVIII e respectivo 2.º, c/c o art. 225, caput, da CF/1988, visando garantir a inviolabilidade do direito fundamental à sadia qualidade de vida, bem assim a defesa e a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, em busca do desenvolvimento sustentável e da minimização de riscos para as presentes e futuras gerações, em toda sua dimensão cósmico-difusa, planetária e global. No contexto dessas garantias constitucionais expressas, não há mais como se admitir a figura do juiz medroso, covarde e formalista, comprometido apenas com seus projetos egoístas de autopromoção política, a esconder-se em todo tempo, nas técnicas embaraçosas dos procedimentos tradicionais, sem o vigor psicológico e intelectual do juiz republicano, legitimado pela soberania popular, no perfil de coragem e independência, traçado na Carta Política Federal, como figura indispensável à concessão das tutelas de urgência, estruturadas nas vertentes do moderno processo civil brasileiro. Na conjuntura atual de uma globalização econômica cada vez mais insensível em seus projetos de acumulação de riqueza material em poder dos mais fortes e dominadores, numa ação gananciosa e aniquiladora dos valores fundamentais da pessoa humana e dos bens da natureza, há de se exigir, por imperativos de ordem pública, na instrumentalidade do processo civil, atualizado aos reclamos dos novos tempos, uma ação diligente e corajosa de um Judiciário republicano e independente, na defesa de uma ordem jurídica justa para todos, no exercício de uma tutela jurisdicional oportuna e efetiva, visivelmente comprometida com a defesa dos direitos e garantias tutelados pela Constituição da República Federativa do Brasil. 3. O Terror jurídico-ditatorial da Suspensão de Segurança no contexto abusivo de Medida Provisória invasora da competência legislativa do Congresso Nacional


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A esdrúxula figura da Suspensão de Segurança, nascida das entranhas da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no limiar sangrento da ditadura militar, visando amordaçar a magistratura independente do Brasil na truculência do regime de exceção que ali se instalava, editou normas processuais, apenas, relativas ao mandado de segurança, para aniquilar essa garantia fundamental de segurança, nas comportas autoritárias de conceitos indeterminados, assim redigidos: “Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o Presidente do Tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de (10) dez dias, contados da publicidade do ato” (art. 4º). Ampliando o perfil adamastor da suspensão de segurança para incluir, autoritariamente, a execução de liminares nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, no amparo do refrão normativo de conceitos difusos, com o suposto propósito de evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, sob o indisfarçável e ganancioso ideário capitalista selvagem do bloqueio dos cruzados, no governo Collor, em flagrante assalto aos ativos financeiros das economias populares, foi publicada a Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, dispondo sobre essa anômala figura, nos termos seguintes: “Compete ao presidente do Tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o poder público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” (art. 4º, caput), “aplicando-se o disposto nesse artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado” (art. 4º, § 1º). Assim editada em agressão a direitos e garantias fundamentais expressos no Texto Magno da Constituição Republicana, de 05 de outubro de 1988, sobretudo em afronta à garantia da inafastabilidade da jurisdição e do acesso pleno à justiça oportuna, através da instrumentalidade do processo justo, na


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determinação de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, XXXV), a malsinada Lei nº 8437, de 30/06/92, não conseguiu intimidar e amordaçar os corajosos juízes federais do Brasil, no propósito firme de cumprir sua missão constitucional de ministrar justiça rápida e oportuna, ante o espectro aterrorizante da “suspensão de segurança”, exumada dos fósseis normativos da ditadura militar, que se inaugurou nos idos de 1964, visando garantir, nesse novo e sombrio contexto histórico da ditadura do capitalismo neoliberal, o assalto oficial ao bloqueio dos cruzados, em flagrante sequestro às sobras dos ativos financeiros da tão confiscada população brasileira, nos espaços movediços das searas tributárias abusivas, nos quadrantes deste país. A farsa governamental do referido bloqueio dos cruzados, pelo visto, fora afastada, corajosamente, naquele momento histórico sombrio, pela magistratura federal do Brasil, no exercício pleno do controle difuso de constitucionalidade (CF, art. 97) e na instrumentalidade processual das tutelas de urgência, a despeito da instalação normativa da arrogante “suspensão de segurança”, no texto anômalo da Lei 8.437/92. Com a edição da Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, revigorando os cadáveres normativos do regime de exceção, para assegurar a política governamental das privatizações de empresas estatais, e, agora, também, o programa energético do Governo Federal, devastador das florestas brasileiras e, sobretudo, do bioma amazônico, bem assim, de seu patrimônio sócio-cultural, instalou-se no ordenamento processual do Brasil o terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança, no perfil arrogante da ideologia capitalista neoliberal, em permanente agressão ao princípio da proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito, com respaldo, agora, na contraditória Emenda Constitucional nº 32, de 2001, publicada no Diário Oficial de 12/09/2001, que, embora visando conter o abuso na edição dessas medidas provisórias, com proibição expressa para tratar de matéria de direito processual civil, entre outras, ali, elencadas, permitiu, expressamente, que “as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação dessa Emenda continuassem em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do


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Congresso Nacional” (art. 2º da EC nº 32/2001). A infeliz Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, corrompeu, visceralmente, em mutação cancerígena, o ordenamento jurídico-processual brasileiro, com a blindagem protetiva de caráter permanente, que obtivera logo após sua abusiva edição, ante o comando contraditório e inconstitucional do prefaldo art. 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, em manifesta agressão à cláusula pétrea de proteção dos direitos e garantias individuais, coletivos e difusos, constitucionalmente protegidos (CF, art. 60, § 4º, IV c/c o § 2º do art. 5º da mesma Carta Política Federal), afrontando expressamente as garantias fundamentais do pleno acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV), da segurança jurídica, que resulta da proteção constitucional do ato jurídico sentencial perfeito e da coisa julgada formal (CF, art. 5º, XXXVI), da proibição expressa do retrocesso ao juízo de exceção (CF, art. 5º, XXXVII), do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), das tutelas de segurança e de urgência dos mandados de segurança individual e coletivo, nos marcos regulatórios de suas hipóteses de incidência constitucional (CF, art. 5º, LXIX e LXX, a e b), da razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF, art. 5º, LXXVIII) e da eficácia plena e imediata dos direitos e garantias fundamentais, expressos em nossa Carta Magna e de outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (CF, art. 5º, §§ 1º e 2º). O rol de agressões ao texto constitucional republicano, que resulta do terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança no contexto normativo da malsinada Medida Provisória nº 2.180-35/2001 em manifesta afronta ao princípio da proibição do retrocesso no Estado Democrático de Direito, expressa-se no aditamento abusivo ao texto historicamente agressor da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, que passou a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 4º (...) - § 3º Do despacho que conceder ou negar a suspensão caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição. § 4º - Se do julgamento do agravo de que trata o § 3º resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presiden-


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te do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário. § 5º - É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 4º, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este artigo. § 6º - A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo. § 7º - O Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida. § 8º - As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original. § 9º - A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal”. De ver-se, assim, que o texto normativo em referência estrangula, com requintes de crueldade, a garantia constitucional do devido processo legal e da segurança jurídica, em tons de violência autoritária, próprios dos regimes ditatoriais, anulando-se o juízo natural das instâncias judiciais singulares e colegiadas (CPC, art.512)4, com o propósito indisfarçável de enfraquecer e intimidar os magistrados do Brasil, ao restabelecer o império do juízo de exceção na suspensão de segurança, no âmbito monocrático das decisões presidenciais de nossos Tribunais, que só tardiamente se manifestam em sessão de julgamento colegiado sobres essas suspensões, quando já se tornam irreversíveis e com danos irreparáveis ao interesse público, ante situações de fato consolidadas pelo decurso do tempo no processo. Aniquila, ainda, a segurança jurídica, que resulta das decisões colegiadas dos Tribunais de apelação, que não mantenham essas odiosas suspensões, anulando-se o fenômeno preclusivo das referidas decisões, a permitir, qual “fênix malignamente renascida”, a reedição da mesma pretensão de segurança perante, agora, a Presidência dos Tribunais Superiores (STJ e STF). Busca, também, nesse propósito, anular, por ato político ditatorial da suspensão de seguran-

4   CPC, art. 512: O julgamento proferido pelo Tribunal substituirá a sentença ou a decisão recorrida no que tiver sido objeto de recurso.


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ça, o exercício da jurisdição colegiada dos Tribunais do Brasil e a eficácia imediata de suas decisões, a permitir a instauração do pleito de suspensão da decisão judicial impugnada, quando já confirmada ou a se confirmar pelo juízo natural do órgão jurisdicional competente do próprio Tribunal (CPC, art.512), contrariando, assim, sabia orientação jurisprudencial do colendo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “em havendo superposição de controle judicial, um político (suspensão de tutela pelo presidente do Tribunal) e outro jurídico (agravo de instrumento) há prevalência da decisão judicial” (REsp. 47469/RJ. Segunda Turma, julgado em 20/03/2003. DJ de 12/05/2003, p. 297), a não se permitir qualquer relação de prejudicialidade do agravo de instrumento, em virtude de decisão proferida pela presidência do Tribunal, em sede de suspensão de segurança, posto que se afigura juridicamente impossível o ajuizamento de pedido de suspensão de segurança perante a presidência do tribunal de apelação, para cassar os efeitos da decisão judicial de qualquer dos órgãos fracionários do próprio tribunal, a negar vigência ao postulado normativo do mencionado artigo 512 do CPC. A referida Medida Provisória nº 2.180-35/2001 atinge o grau máximo desse terror jurídico-ditatorial na suspensão de segurança, quando determina que “a suspensão deferida pelo presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal”, nulificando, assim, a eficácia imediata das decisões judiciais impugnadas e dos direitos e garantias fundamentais por elas tutelados, abrindo, dessa forma, espaço odioso às intermináveis protelações recursais do poder público e de seus agentes sem escrúpulos, na busca irrefreada da consolidação de situações de fato pelo decurso do tempo no curso do processo, sobretudo naqueles feitos judiciais que envolvem interesses coletivos e difusos, contrariados e agredidos por mal-intencionadas políticas governamentais de natureza fiscal-tributária, econômica e ambiental. Observe-se, por último, que a Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009, ao disciplinar o mandado de segurança individual e coletivo, desgarrou-se de seu perfil constitucional, pois fora contaminada, também, pelo vírus letal da suspensão de segurança, nos parâmetros agressivos da aludida Medida Provisória nº 2.180-35/2001, como se vê nas letras do art. 15 e respectivos


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§§ 1º a 5º do referido texto legal. Nesse contexto, há de se observar a importância do juiz republicano como agente da soberania popular, ao ser convocado para o exercício da nobre função jurisdicional, a legitimar-se perante os destinatários dos atos de sua jurisdição, no elevado grau de justiça de suas decisões em defesa do bem comum e do desenvolvimento sustentável das presentes e futuras gerações. 4. A contratutela procedimental da suspensão de segurança ambiental e a proibição do retrocesso no sistema de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado Em artigo jurídico de minha autoria sobre “a missão constitucional do Poder Judiciário Republicano na defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável”, destaquei, em tom de alerta, a figura da contracautela de urgência e a consequente anulação das Varas Ambientais pelo abuso procedimental da suspensão de segurança nos Tribunais Federais do Brasil, observando o seguinte: “A instalação de Varas ambientais, no âmbito de competência da Justiça Federal, no território nacional, possui papel relevante no sistema de proteção do meio ambiente. Contudo, o procedimento que vem sendo adotado na localização dessas Varas, na escolha dos Juízes condutores dessa peculiar jurisdição e na postura dos Presidentes dos Tribunais Federais na apreciação dos incidentes de suspensão de segurança, cassando, sistematicamente e com razões padronizadas e contraditórias, as corajosas decisões de juízes singulares, nessas Varas Especializadas na defesa do meio ambiente, praticamente esvaziam seus objetivos institucionais. De notar-se que medidas administrativas e decisões judiciais também podem atentar contra o sistema de segurança ambiental, as quais, além de estarem incumbidas, constitucionalmente, de um dever permanente de desenvolvimento e concretização eficiente dos direitos fundamentais (de modo particular da defesa e proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado – CF, art. 225, caput), não podem, em qualquer hipótese suprimir pura e simplesmente, por ação ou omissão, o sistema de proteção constitucional do meio ambiente essencial à sadia qualidade de vida das


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presentes e futuras gerações, posto que estamos todos vinculados pelo Texto Magno ao fiel cumprimento dos princípios do progresso ecológico e da proibição do retrocesso ecológico, como garantias fundamentais de um desenvolvimento sustentável para todos. A proliferação abusiva dos incidentes procedimentais de suspensão de segurança, como instrumento fóssil dos tempos do regime de exceção, a cassar, reiteradamente, as oportunas e precautivas decisões tomadas em varas ambientais, neste país, atenta contra os princípios regentes da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), prestigiada internacionalmente pelo Projeto Redd Plus (Protocolo de Kyoto, COPs 15 e 16 – Copenhague e Cancún), e a garantia fundamental do progresso ecológico e do desenvolvimento sustentável, agredindo, ainda, os acordos internacionais, de que o Brasil é signatário, num esforço mundialmente concentrado, para o combate às causas determinantes do desequilíbrio climático e do processo crescente e ameaçador da vida planetária pelo fenômeno trágico do aquecimento global. A experiência forense nos tem revelado, com manifesta frequência, que o tempo médio de validade de uma decisão judicial, proferida por um Juízo singular de vara ambiental, amparada pela supremacia do interesse público em defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, equivale, apenas, ao tempo de que dispõe o Presidente de um Tribunal de Apelação para anular os seus efeitos, através do autoritário procedimento de suspensão de segurança, sob o pretexto de preservar o mesmo interesse público, que serviu de fundamento para aquela decisão monocrática, cercada de precaução e abusivamente cassada. Sem a urgente correção desses desvios procedimentais, as varas ambientais não cumprirão sua nobre missão constitucional nem poderão atingir seus objetivos legalmente previstos, em busca do progresso ecológico e do desenvolvimento sustentável, neste país, com reflexos difusos na vida do planeta”.5 E, no mesmo texto desse artigo jurídico, considerei que “se antes da

5   PRUDENTE, Antônio Souza. A missão constitucional do Poder Judiciário Republicano na defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável. Revista de Direito Ambiental – RDA, ano 17, 66, Abril-Junho, 2012. RT, p. 99.


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vigência da EC 32/2001, o abuso na edição e reedição de medidas provisórias caracterizava flagrante atentado ao Estado Democrático de Direito, por ato arrogante do Presidente da República ante a omissão agressora do Congresso Nacional, agora, esse abuso normativo se qualifica, já não mais pelo excesso editorial das medidas provisórias, feito exceção derrogatória do postulado da divisão funcional do poder, mas pela tipificação criminal do atentado expresso contra a Constituição Federal, especialmente quando o Presidente da República edita ato normativo contra o cumprimento das decisões judiciais. Nesse contexto, não se deve ignorar que o princípio da responsabilidade dos governantes, nos governos democráticos, fora adotado, em plenitude, pela Constituição da República Federativa do Brasil, em termos graves e expressos (arts. 85 e 86 da CF/1988)”.6 5. O silêncio agressor do Congresso Nacional ante os abusos de Medida Provisória genitora do juízo de exceção da Suspensão de Segurança em atentado às garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito Já desde os tempos idos de 1997, manifestei-me sobre “o poder abusivo das medidas provisórias”, com a convicção de que “medida provisória, no regime presidencialista do Brasil, é ato do Príncipe, que só tem validade jurídica, quando em seu uso constitucionalmente mitigado, recebe a pronta acolhida do Povo, através de seus representantes, no Congresso”.7 Contudo, até nos dias de hoje, o abuso na edição de medidas provisórias pelo Poder Executivo, no Brasil, continua em vigor, em termos cada vez mais ousados e truculentos perante a ordem jurídica nacional. O Príncipe (e agora, também, a Princesa) abusa e o Congresso se omite, quando não compactua expressamente com esse abuso na edição de medidas provisórias, como ocorrera em relação ao texto flagrantemente inconstitucional da referida Medida Provisória n. 2.180-35/2001, ao dispor sobre matéria de direito processual civil, que é da competência legislativa exclusiva do Congresso Nacional (CF, arts. 22, I e 48, caput), como assim lhe restou proibido pelo 6   PRUDENTE, Antônio Souza. Op. cit. p. 99. 7   PRUDENTE, Antônio Souza. Revista Panorama da Justiça. SP. 1997. RT, p. 42.


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art. 62, § 1º, b, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32/2001. Para que se afaste, de vez e logo, essa postura omissiva e de silêncio agressor das Casas Congressuais, ante a determinação expressa da aludida Emenda Constitucional nº 32/2001, no sentido de que o Congresso pode e deve deliberar sobre as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação dessa Emenda Constitucional, especialmente sobre o texto da malsinada Medida Provisória 2.180-35/2001, no que nela se contém de matéria processual civil, usurpando, expressamente, a competência congressual, na espécie, e, sobretudo, no que tange à implantação do juízo de exceção na suspensão de segurança, com o terror jurídico-ditatorial das cúpulas do Poder Judiciário do Brasil, em prejuízo do direito fundamental à jurisdição e do acesso pleno e oportuno à Justiça, na instrumentalidade do processo justo, compete ao Congresso Nacional, com urgência, “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros poderes”, por imperativo constitucional (CF, art. 49, XI), sob pena de restar cada vez mais enfraquecido perante os atos de dominação e abuso dos demais Poderes. E, a partir daí, em grave retrocesso histórico, com a quebra do princípio da independência e da harmonia entre os poderes da República Federativa do Brasil (CF, art. 2º), haverá o total aniquilamento do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto de abusos e danos irreversíveis, a ser evitado, com urgência, por atuação diligente e responsável do Congresso Nacional, no uso de sua competência legislativa plena, se assim não for, sempre que as decisões do Poder Judiciário independente, no Brasil, contrariarem interesses do Poder Executivo e aqueles gerenciados pelas multinacionais, que aqui campeiam, predatoriamente, explorando as sofridas economias da população brasileira e os valores fundamentais de sua dignidade, em afronta à soberania nacional, editar-se-ão medidas provisórias abusivas para reforçar os juízos de exceção das cúpulas do Poder Judiciário, visando anular as corajosas decisões monocráticas e colegiadas da Justiça brasileira. Já não haverá, assim, o tão sonhado Estado Democrático de Direito nem segurança jurídica, nem mesmo paz e tranquilidade social, em face do arbítrio e da truculência


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dos Poderes, avalizando, no país, as forças gananciosas do mercado global, sem qualquer compromisso com o desenvolvimento sustentável das presentes e futuras gerações.


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A tutela das criações intelectuais e a existência do Direito de Autor na Antiguidade Clássica


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Leonardo Estevam de Assis Zanini Pós-doutorado em Direito pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela USP. Juiz Federal. Diretor Acadêmico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento da Justiça Federal em São Paulo. Ex-Diretor da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Ex-delegado da Polícia Federal. Ex-procurador do Banco Central do Brasil. Ex-defensor público federal. Ex-bolsista da Max-Planck-Gesellschaft e da CAPES.

Resumo: O artigo aborda a proteção das criações intelectuais nas civilizações da Antiguidade Clássica. Inicia fazendo um breve estudo do tema na Grécia Antiga, passando, em seguida, ao estudo do Direito Romano. Analisa a consciência dos romanos em relação à proteção dos interesses morais do autor, o interesse econômico na produção intelectual e a possibilidade de tutela dos direitos da personalidade do autor pela actio iniuriarum. Por fim, aborda a discussão relativa à existência do Direito de Autor na Antiguidade Clássica. Palavras-chave: Direito de Autor; direitos da personalidade; direitos intelectuais; direitos morais do autor; direito romano; actio iniuriarum; direito grego; direito de paternidade; direito de divulgação; direito à integridade. Abstract: The article discusses the protection of the intellectual creations in the civilizations of antiquity. It starts with a brief analysis of the subject in Ancient Greece, passing then to analyze the Roman law. The consciousness of the romans in regard to the protection of the moral interests of the authors is analyzed as well as the possibility of safeguarding of the personality rights of the authors and the economic interest in intellectual production. Finally, the discussion focuses on the existence of copyright in Classical Antiquity. Keywords: Copyright; rights of personality; intellectual rights; moral rights; ancient roman law; actio iniuriarum; ancient greek law; right of paternity; right to publish; right of integrity.


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1. Introdução A tutela das criações intelectuais, na história do direito, não foi simplesmente ignorada, passando a ser objeto de regulamentação apenas a partir dos decretos revolucionárias franceses de 1791 e 1793. De fato, ainda que de forma incipiente, se comparamos com nossa realidade, há inúmeros registros históricos da proteção do autor em épocas bastante remotas, como é o caso das civilizações grega e romana. Nesse contexto, para uma melhor compreensão da necessidade de proteção das criações intelectuais na atualidade, focaremos, no presente trabalho, a eventual tutela concedida às obras do espírito na Antiguidade e procuraremos responder à indagação acerca da existência do Direito de Autor nas civilizações grega e romana. 2. A proteção autoral na Grécia Antiga Na Grécia Antiga, após o surgimento da escrita, era comum a transcrição de obras de vários escritores, as quais, a cada nova cópia, sofriam transformações, manipulações e modificações. Tal atividade era considerada lícita, visto que para os antigos gregos a imortalidade correspondia à recordação, ao fato de que após a morte do autor as novas gerações continuariam a aprender com seu trabalho, não importando se a obra tinha sido alterada.1 A cultura da época era predominantemente oral, de maneira que a literatura era bastante limitada e tinha que ser avaliada de acordo com as condições existentes. Era então compreensível, até pela necessidade de desenvolvimento das letras, a ausência de punição de determinadas condutas, hoje vedadas pelo Direito de Autor. Assim, fica evidente que após a distribuição da “primeira cópia de um livro, o autor não mais podia controlar seu destino”, pois não havia nenhuma forma de proteger a integridade de um texto ou de limitar o seu número de cópias.2 Em Atenas, entretanto, uma lei do ano de 330 a.C. mostrou-se bastante avançada, ordenando o depósito de cópias exatas das obras dos três grandes clássicos nos 1   GAUDENZI, Andrea Sirotti, Il nuovo diritto d’autore, p. 41. 2   CARBONI, Guilherme, Direito Autoral e Autoria Colaborativa: na Economia da Informação em Rede, p. 34.


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arquivos estatais. Com isso, os atores e os copistas deveriam respeitar o texto depositado, já que, até então, havia pouca consideração pelo texto original.3 Também no mundo helênico, por volta de 650 a.C., sabe-se que muitos pintores de vasos, como Aristonotos, Exekias, Eutimedes, Euphiletos e outros, garantiam o reconhecimento da autoria com a aposição de sua assinatura na obra,4 preservando-se, desse modo, o direito de paternidade. Procedimento semelhante foi adotado pelo renomado poeta Teógnis de Mégara, que criou um sinal de identificação em suas obras, com o objetivo de evitar a sua utilização sem indicação da autoria, bem como para garantir a integridade do texto.5 Outra manifestação interessante diz respeito às acusações de plágio. Era bastante comum a promoção de concursos em que o vencedor era aclamado publicamente e recebia prêmios. Em vista disso, sabe-se que acusações por plágio eram frequentes, lembrando Daniel Rocha que: Philóstrato de Alexandria acusava Sófocles de ter aproveitado de Ésquilo. A Ésquilo, de ter feito o mesmo com Frínico. A Frínico, de agir assim com seus antecessores. Platão censurava Eurípedes pela reprodução literal em seus coros da filosofia de Anaxágoras. Aristófanes, em “As rãs”, não poupa Eurípedes, e propõe que se coloque num prato da balança apenas os seus versos, e no outro, Eurípedes, mulher e filhos e Cephisophon (amigo e colaborador de Eurípedes) com todos os livros. Aristófanes não ficou imune à acusação de haver se aproveitado de Crátinos e Eupólis, o que levou a qualifi-

3   LIPSZYC, Delia, Derecho de autor y derechos conexos, p. 28 4   FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoral: da Antiguidade à Internet, p. 58. 5   FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoralautoral: da Antiguidade à Internet, p. 56-57


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97 car este último de “miserável plagiário” de sua obra Les Chevaliers (“As nuvens” – verso 553).6

É igualmente digno de nota, conforme relatou Suidas, o fato de que “Euforion, filho de Ésquilo, teria conquistado por quatro vezes a vitória nos torneios de tragédia, apresentando peças inéditas de seu pai como suas”. Isso levou Daniel Rocha a afirmar que o filho também herdava a obra intelectual paterna inédita como se fora uma res comum.7 Por outro lado, não se pode negar o interesse da pólis na coibição do plágio, o que guardava relação com a correta atribuição de autoria dos livros depositados nas bibliotecas gregas.8 Vê-se, portanto, que os gregos já tinham uma consciência incipiente acerca da necessidade da proteção da integridade e da paternidade da obra. No entanto, isso não nos permite afirmar que se fazia presente naquela sociedade o Direito de Autor. 3. A situação do autor no Direito Romano Os romanos não eram dotados de muita imaginação artística, por isso suas artes derivavam basicamente de influências recebidas de povos conquistados, especialmente dos gregos. Entrementes, é certo que os romanos deixaram sua marca nas artes herdadas9 e, ao que tudo indica, também deram sua contribuição, ainda que embrionária, ao que viria a ser conhecido como Direito de Autor. A ausência de disposição legal específica acerca das criações intelectuais não significou que os escritores e artistas em geral não pudessem ser, de alguma forma, pelo menos em tese, amparados pelo Direito Romano.10 Ao contrário, pode-se notar que os romanos tinham consciência acerca do direi-

6   ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 14. 7   ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 14. 8   CARBONI, Guilherme, Direito Autoral e Autoria Colaborativa: na Economia da Informação em Rede, p. 34. 9   EBOLI, João Carlos de Camargo, Pequeno Mosaico do Direito Autoral, p. 17. 10   COSTA NETTO, José Carlos, Direito autoral no Brasil, p. 52.


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to moral e patrimonial de autor. Apesar disso, não são conhecidas regras específicas a esse respeito e também não são conhecidos casos em que autores contestaram judicialmente o desrespeito à autoria.11 3.1. A consciência dos romanos em relação aos interesses espirituais e morais do autor Os romanos realmente estavam cientes do fato de que a publicação e a exploração da obra guardavam íntima ligação com interesses espirituais e morais, tanto é que cabia ao autor a decisão quanto à divulgação ou não de seu trabalho, e os plagiadores eram malvistos pela sociedade.12 Aliás, em Roma, tal qual na Grécia, era corrente o problema do plágio, palavra que chegou ao português pelo latim (plagium), decorrendo das previsões da Lex Fabia de Plagiariis, do século segundo antes de Cristo. O plágio do direito romano, entretanto, não tinha nada a ver com a acepção atual da palavra,13 pois os romanos, sob o nome de plagium, puniam “a escravização de homem livre, bem como a compra e venda ou assenhoreamento de escravo alheio”.14 Contudo, a expressão sofreu desvio histórico, atribuído ao poeta Marco Valério Marcial (42-104 d.C.), que comparou seus epigramas a escravos libertos, os quais estariam nas mãos de um sequestrador de nome Fidentino (plagiarius).15 Marcial escreveu em seus epigramas (Epigrama 30, Livro I): “Segundo consta, Fidentino, tu lês os meus trabalhos ao povo como se fossem teus. Se queres que os digam meus, mandar-te-ei de graça os meus poemas; se quiseres que os digam teus, 11   SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 66. Rehbinder, igualmente, aponta a inexistência, na Antiguidade, do reconhecimento de um direito do autor a um bem espiritual, não obstante a perfeita consciência acerca de uma “propriedade espiritual” (REHBINDER, Manfred, Urheberrecht, p. 7). 12   LIPSZYC, Delia, Derecho de autor y derechos conexos, p. 28. 13   Conforme esclarece Chinellato, durante a Renascença, os “jurisconsultos Duareno e Tomásio concluíram que o plágio era punido pela Lex Fabia de Plagiariis, entendimento que foi seguido por autores modernos, o qual, no entanto, baseou-se em erro” (CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Notas sobre plágio e autoplágio. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, v. 29, p. 305-328, jan./jun. 2012, p. 306). 14   HUNGRIA, Nélson, Comentários ao Código Penal, v. 6, p. 198. 15   REHBINDER, Manfred, Urheberrecht, p. 7.


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compra-os, para que deixem de ser meus”. E no quinto epigrama asseverou ainda o escritor latino: “Quem busca a fama por meio de poesias alheias, que lê como suas, deve comprar não o livro, mas o silêncio do autor”.16 Outro caso célebre de plágio envolveu Virgílio e Batilo. O autor da Eneida, ainda desconhecido do público, acusou Batilo de se apropriar da paternidade de um texto em honra de Augusto.17 Era época de jogos e Virgílio escreveu anonimamente, durante a noite, no pórtico do palácio imperial, em honra do imperador, o seguinte dístico: Nocte pluit tota, redeunt spectacula mane Divisum imperium cum Jove Caesar habet.18 O imperador, então, sentindo-se lisonjeado, quis saber quem tinha escrito os versos, apresentando-se Batilo como o autor. Inconformado, Virgílio, novamente de forma anônima, acrescentou aos versos anteriores mais um outro verso, seguido de quatro outros incompletos e repetidos:19 Hos ego versiculos fecit, tulit alter honoris: Sic vos non vobis Sic vos non vobis Sic vos non vobis Sic vos non vobis Diante do texto, o imperador Augusto pediu a Batilo a sua complementação, no entanto, ele não obteve êxito na tarefa, dando espaço para Virgílio, seu verdadeiro

16   ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 15 17  GAUDENZI, Andrea Sirotti, Il nuovo diritto d’autore, p. 41. 18   “Chove a noite toda, de manhã recomeçam os jogos. Deste modo, César divide o poder com Júpiter”. Tradução de Mauro Mendes (MENDES, Mauro. Virgílio e os cantadores. Disponível em: <http://www.arquivors.com/mmendes_virgilio.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2011). 19   MENDES, Mauro. Virgílio e os cantadores. Disponível em: <http://www.arquivors.com/ mmendes_virgilio.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2011.


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100 autor, que completou os versos da seguinte forma:20

Hos ego versiculos fecit, tulit alter honoris: Sic vos non vobis nidificates aves, Sic vos non vobis vellera fertis oves, Sic vos non vobis mellificatis apes, Sic vos non vobis fertis aratra boves21 E para além de todos esses casos, é muito marcante um episódio envolvendo uma disputa entre Cícero e o editor Dorus, que foi analisada de forma bastante sóbria por Sêneca, não deixando dúvida acerca da consciência dos romanos em relação à distinção entre a criação intelectual e o suporte físico. Segundo o filósofo romano, o litígio tinha, em realidade, dois lados, visto que Cícero reivindicava seus livros como autor (auctor), enquanto que Dorus o fazia como comprador (emptor).22 Pois bem, das passagens transcritas ficou evidenciado que os romanos tinham consciência acerca da autoria de uma obra, inclusive distinguindo o suporte físico (corpus mechanicum) da criação intelectual propriamente dita (corpus mysticum).23 Todavia, ao lado da consciência dos romanos, resta-nos indagar se seria possível a utilização dos instrumentos jurídicos da época para a proteção da obra e do autor. 3.2. A possibilidade de tutela dos direitos da personalidade do autor A actio iniuriarum era uma demanda relacionada com a iniuria e delitos seme20   CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 45. 21   “Eu escrevi estes versos, outro ficou com as honrarias: Assim vós, aves, não fazeis os ninhos para vós, assim vós, ovelhas, não produzis a lã para vós, assim vós, abelhas, não fabricais o mel para vós, assim vós bois, puxais o arado, mas não para vós.” Tradução de Ignácio Maria Poveda Velasco (VELASCO, Ignácio Maria Poveda. “Actio iniuriarum” e direito de autor. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, ano 17, p. 109-114, jan./mar. 1993, p. 113). 22   FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoral: da Antiguidade à Internet, p. 199 23   CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 32. Não é outra a lição de Gautier, o qual destaca que os romanos conheciam perfeitamente a noção de obra do espírito, de maneira que foram os pioneiros no que toca à distinção entre o suporte material e a obra do espírito (GAUTIER, Pierre-Yves, Propriété littéraire et artistique, p. 13).


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lhantes. Inicialmente, no período da República, o tipo da iniuria era interpretado restritamente, pois era necessário para sua configuração uma severa agressão contra uma pessoa. Porém, com o passar do tempo, a actio iniuriarum foi envolvendo um número cada vez maior de condutas, como, por exemplo, a contrariedade aos costumes e o ataque à boa fama de uma mulher.24 A extensão dada pelo pretor ao conceito de iniuria acabou, no decorrer da evolução do Direito Romano, assegurando a proteção contra qualquer lesão a um aspecto da personalidade, diferentemente do antigo conceito, que abarcava apenas as lesões físicas.25 Assim sendo, especula-se sobre a possibilidade de utilização da actio iniuriarum em casos como de plágio, de publicação sem o consentimento do autor e de desrespeito à integridade da obra.26 Nessa linha, poder-se-ia afirmar, por exemplo, que a publicação de uma obra sem autorização, por desrespeitar a vontade do autor e, por conseguinte, sua própria pessoa, ensejaria a aplicação da actio iniuriarium para garantir a proteção da honra.27 Esse raciocínio foi complementado por Carlo Fadda, ao esclarecer que “assim como ofendia a personalidade a ilícita revelação das disposições testamentárias, de segredos familiares ou do conteúdo de uma carta missiva, da mesma forma ofendia a divulgação de uma obra não destinada pelo autor a vir a público”.28 A tese poderia ser aplicada em um caso ocorrido em Roma, em que um editor, sem o consentimento do autor, publicou sua obra. Trata-se do quinto livro 24   SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 63. 25   VELASCO, Ignácio Maria Poveda, “Actio iniuriarum” e direito de autor, p. 111. 26   SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, passim. 27   SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 64. Na mesma linha, Santos Cifuentes aduz que os romanos “não concebiam que os frutos da inteligência ou da inspiração artística pudessem ser matéria de um ius especial; que o pensamento representaria um bem suscetível de proteção, à parte da matéria que serve de suporte”. Entretanto, lembra que se recorria à actio iniuriarum “quando a violação importava um ataque à personalidade, em particular se não se havia cedido a obra a ninguém” (CIFUENTES, Santos. Derechos personalíssimos. 3. ed. Buenos Aires: Astrea, 2008, 28   VELASCO, Ignácio Maria Poveda, “Actio iniuriarum” e direito de autor, p. 112.


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da obra De finibus, que chegou às mãos de Balbus por meio de Atticus, o que foi severamente criticado por seu autor, Cícero, pois isso ocorreu antes mesmo que Brutus, a quem foi dedicada, pudesse ter tido contato com o trabalho. Entrementes, Cícero não chegou a tomar medidas jurídicas contra Atticus, uma vez que possuíam amizade muito próxima.29 Aliás, não somente a publicação sem autorização, mas também a própria figura do plágio poderia ser considerada ilícita e tutelada pela actio iniuriarum.30 Nesse sentido, adverte Velasco que, se considerarmos a obra como projeção da personalidade de seu autor, então o plágio levaria à ofensa da personalidade e poderia ser punido com o uso da actio iniuriarum.31 Contudo, ao lado da possibilidade de proteção da autoria, da integridade e do ineditismo, em várias passagens de textos de Marcial fica evidente a possibilidade de transferência da autoria de escritos ainda não publicados, o que certamente configuraria uma afronta ao Direito de Autor atualmente em vigor. Realmente, conforme alguns doutrinadores, a figura do ghost writer, como a conhecemos na atualidade, não era repudiada pelo Direito Romano, posto que, às vezes, era permitido que autores, mediante pagamento, entregassem seus trabalhos não publicados a terceiros, que os assumiriam como seus.32 De qualquer forma, o tema é bastante discutível, não sendo possível saber se a autoria poderia ser ocultada por meio de contrato e se a suspensão de tal obrigação poderia ser conseguida à força, mesmo porque a reconstrução da exata organização romana existente à época é impossível.33

29   SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 57. 30   GAUDENZI, Andrea Sirotti, Il nuovo diritto d’autore, p. 42. 31   VELASCO, Ignácio Maria Poveda, “Actio iniuriarum” e direito de autor, p. 113. 32   Marcial, por exemplo, menciona um certo Paulo, que comprou poesias e as recitou como suas. E o próprio Marcial exigiu várias vezes de Fidentino a compra da autoria de textos, os quais poderiam, posteriormente, ser recitados em conformidade com o direito, visto que até então Marcial denominava-se dominus de suas poesias (SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 71). 33   SCHICKERT, Katharina, Der Schutz literarischer Urheberschaft im Rom der klassischen Antike, p. 72.


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3.3. O interesse econômico na produção autoral Os romanos tinham plena ciência da existência de interesse econômico na produção autoral. É notório, por exemplo, o benefício pecuniário que desfrutavam os poetas Horácio e Virgílio junto de Caius Maecenas, estadista romano cujo nome simboliza atualmente o patronato das artes.34 A existência do interesse econômico também fica patente em uma carta de Cícero dirigida ao seu amigo e editor Atticus, em que Cícero elogia o excelente trabalho do editor na “venda” do seu discurso Pro Ligario, afirmando o autor que no futuro entregaria a Atticus, para publicação, o que viesse a escrever.35 É certo ainda que o interesse despertado pelos espetáculos teatrais abriu novas perspectivas para os autores. De fato, vale lembar que Terêncio, então escravo cartaginês, recebeu por seus versos seis mil sestércios, pagos pelo edil Cecílio.36 Há, igualmente, outro relato da compra de versos do mesmo Terêncio. Segundo revelou Seutônio, os edis pagaram oito mil sestércios por duas representações da comédia “O Eunuco”.37 Poderíamos, ademais, para reafirmar o interesse econômico na produção intelectual, citar o caso de Plauto, “que adquiriu no teatro uma verdadeira fortuna, perdida depois no comércio, porque era simultaneamente autor, ator e diretor de companhia”.38 Porém, afora algumas exceções, deve-se notar que havia em Roma um comércio para as criações literárias e artísticas ao qual os autores estavam sujeitos de maneira muito similar àquela verificada mais tarde com a invenção da imprensa, ou seja, em Roma também era evidente a hipossuficiência dos autores. Os autores não tinham, como os livreiros, relações comerciais para vender e espalhar as obras por Roma e suas províncias. Também não tinham condições de 34   COSTA NETTO, José Carlos, Direito autoral no Brasil, p. 51. 35   FRAGOSO, João Henrique da Rocha, Direito Autoral: da Antiguidade à Internet, p. 61 36   JORDÃO, Levy Maria. A propriedade litteraria não existia entre os romanos. In: Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa: Classe de Sciencias Moraes, Políticas, e Bellas-lettras, tomo II, parte II. Lisboa: Academia, 1863, p. 10. 37   ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 15. 38   JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 12.


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reproduzir as obras, o que demandava trabalho enfadonho e, às vezes, necessitava de um copista com tal instrução que não era fácil encontrar. Isso sem falar na adulação e no servilismo, especialmente diante dos imperadores, o que acabava por ofuscar, muitas vezes, o gênio de muitos artistas romanos, que não podiam criar com independência.39 Realmente, até mesmo autores de sucesso não chegaram a se beneficiar com os lucros das vendas de seus textos, valendo aqui, mais uma vez, citar Marcial, que, apesar de toda a popularidade, viveu e morreu pobre, escrevendo: “Que me importa saber que os nossos soldados leem meus versos no interior da Dácia, e que os meus epigramas são cantados no fundo da Bretanha, se isto não aproveita à minha bolsa?”.40 Tácito também explicita a situação dos escritores no “Diálogo dos oradores” (Dialogus de oratoribus), evidenciando que o interesse moral era quase o único incitamento que impelia boa parte dos autores: “Os versos não dão fortuna, o seu fruto limita-se a um prazer curto, a louvores frívolos e estéreis; e a fama a que os poetas se sacrificam, e que confessam ser o único preço de seus escritos, ainda é inferior à dos oradores”.41 Ademais, é curioso observar que os romanos, tal como corriqueiramente vemos na atualidade, pagavam vultosas quantias por obras de arte de artistas já falecidos. Não davam, no entanto, o mesmo valor ao trabalho dos artistas vivos, o que fica muito claro nas palavras de Sêneca: “Adoramos as imagens e desprezamos os que as esculpem”.42 Vê-se, assim, que os autores e os artistas, no geral, não obtinham grande compensação financeira pelos seus trabalhos. Eram impulsionados, na realidade, mais pelo interesse moral, pela glória e pelo reconhecimento dos concidadãos, do que propriamente pela pretensão de lucro com a exploração da obra. Enfim, ao lado de todas essas dificuldades, deve-se ainda acrescentar que havia na sociedade romana repulsa e reprovação pela conduta do criador que explorava 39   JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 4-7. 40   JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 3. 41   JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 2-3. 42   EBOLI, João Carlos de Camargo, Pequeno Mosaico do Direito Autoral, p. 18.


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economicamente sua obra, o que configurava mais um obstáculo para o desenvolvimento dos direitos patrimoniais de autor.43

3.4. A defesa do autor como um problema atinente aos direitos reais O problema atinente ao reconhecimento dos chamados direitos patrimoniais do autor está ligado ao fato de se saber se o Direito Romano admitia a existência de direitos intelectuais. É certo que o livro, antes de sua publicação, era propriedade de seu autor, o qual poderia, inclusive, mantê-lo inédito. No entanto, a indagação que deve ser respondida refere-se à situação depois da venda ou da cessão da obra. Parece-nos acertada, apesar da grande polêmica existente sobre o tema, a posição de Lipszyc, a qual afirma que em Roma a “criação intelectual era regida pelo direito de propriedade comum”, já que o autor, ao criar uma obra literária ou artística, produzia uma coisa, a qual poderia ser alienada por seu proprietário, como qualquer outro bem material.44 Seja como for, a questão relativa à res incorporalis no Direito Romano está longe de ser pacífica. Pode-se citar, nessa linha, o estudo de Marie Claude D’Ock, o qual “atesta com robustez, que havia estruturas sociais e econômicas a demonstrar que a noção de ‘propriedade literária’ em Roma estava presente, ainda que indiretamente e em regiões localizadas”.45 A controvérsia surge, precipuamente, em razão do tratamento dado pelo Direito Romano aos textos literários (scriptura) e às pinturas (pictura). De acordo com Gaio, se alguém escreve em papiro ou em pergaminho, ainda que com letras de ouro, o objeto pertence ao proprietário do papiro ou do pergaminho. O mesmo não acontecia na hipótese de pintura, que pertencia ao pintor, a despeito de ter sido feita em tela alheia.46 O jurisconsulto considerava de difícil explicação a diversidade do tratamento dado ao tema (cuius diversitate vix idonea ratio reddi-

43   LEITE, Eduardo Lycurgo, Plágio e outros estudos em Direito de Autor, p. 116. 44   LIPSZYC, Delia, Derecho de autor y derechos conexos, p. 29. 45   CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 43. 46   ROCHA, Daniel, Direito de autor, p. 16.


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tur), mas deixou claro que a tela é que acede à pintura.47 A ideia também foi acolhida por Justiniano, nas Institutas (553 a.C.), o que pode ser observado no Livro Segundo, que trata “Da divisão das coisas” (Inst. 2.1.33 e Inst. 2.1.34).48 De fato, a solução acolhida pelo direito justinianeu é aquela que considerava principal não a coisa de maior valor ou volume, mas sim aquela que imprimia ao todo sua função social. Assim, no caso particular da pictura, os sabinianos consideravam principal a tela, enquanto que os proculianos a obra pintada. Justiniano, interrompendo a disputa, considerou que o quadro pertencia ao pintor, que deveria, porém, indenizar o valor da tela.49 Em relação ao tema, ensina Moreira Alves que nas hipóteses de acessão de coisa móvel a coisa móvel, “quanto à scriptura, sempre se julgou, no direito romano, que o escrito acede ao material sobre o qual se escreve; assim, se alguém escrevesse em material alheio, o escrito passava, materialmente (e não literalmente),” ao dono da matéria.50 Já no caso de pintura sobre tela alheia, destaca o romanista que no direito clássico havia divergência no tocante à solução do problema. Alguns entendiam que “as tintas acediam à tela, e, assim, o proprietário dela se tornava proprietário do quadro; outros eram de opinião contrária – o quadro passava à propriedade do pintor”. No entanto, no fim, como já mencionamos, prevaleceu a tese de que o quadro passava à propriedade do pintor, opinião seguida por Justiniano.51 Diante das soluções encontradas pelo Direito Romano, bem como com respaldo nas lições de Moreira Alves, conclui Chinellato que “os romanos tinham plena consciência da diferença entre suporte físico da obra e a criação intelectual que deu origem à terminologia de fundamental importância para o direito autoral: corpus mechanicum e corpus mysticum”.52 Em sentido contrário, Brunner assevera que “o direito romano não conhecia ne47   CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 29. 48   CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 29. 49   SANFILIPPO, Cesare, Istituzioni di diritto romano, p. 205. 50   ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano, v. 1, p. 299. 51   ALVES, José Carlos Moreira, Direito Romano, v. 1, p. 299 52   CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu, Direito de autor e direitos da personalidade, p. 32.


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nhuma diferenciação entre a propriedade do objeto no qual um trabalho intelectual estava incorporado e o trabalho em si mesmo”.53 Não é outro o entendimento de Picard, o qual lembra que repugnava ao espírito eminentemente positivo e materialista dos romanos a ideia de que uma “uma coisa puramente intelectual pudesse ser objeto de um direito”.54 Levy Maria Jordão, com efeito, atento ao problema mencionado, adverte que “a diversidade da solução das duas hipóteses não provinha da diferença entre o papel e a escrita, entre o quadro e a tela”, mas sim decorria do princípio da praevalentia.55 Parece-nos, a despeito das inúmeras interpretações voltadas para a análise da questão da pictura e da scriptura, que os romanos não estavam preocupados com nenhum tipo de questionamento envolvendo uma suposta “propriedade intelectual”, mas sim tinham em vista apenas a resolução do problema da atribuição da propriedade material em caso de escrito ou de pintura feitos em bens alheios.56 4. Considerações finais A partir dessas premissas, é fácil de se constatar que o Direito de Autor não existia em Roma e muito menos na Grécia. Em Roma, apenas de forma embrionária poderia ser assegurada a proteção de alguns aspectos da personalidade do autor, que, não obstante a ausência de registro histórico, poderiam ser tutelados pela actio iniuriarum. Ainda, ao que tudo indica, os romanos tinham consciência da distinção entre o corpus mechanicum e o corpus mysticum, porém, isso não outorgou à res

53   Tradução livre: “Das römische Recht kannte keine Differenzierung zwischen dem Eigentum an dem Gegenstand, in dem ein geistiges Werk verkörpert war und dem Werk selbst” (BRUNNER, Richard, Urheber- und leistungsschutzrechtliche Probleme der Musikdistribution im Internet: unter besonderer Berücksichtigung der Richtlinie 2001/29/EG und ihrer Umsetzung in deutsches Recht, p. 13). 54   PICARD, Edmond, Le Droit Pur, p. 93. 55   JORDÃO, Levy Maria, A propriedade litteraria não existia entre os romanos, p. 14. 56   Nesse sentido, também se manifesta Rehbinder, para quem a disputa entre os sabinianos e os proculianos em torno da pintura ou da escrita feita em objeto alheio diz respeito meramente ao problema da aquisição da propriedade de um novo bem, que surge como decorrência de uma especificação, não tendo a discussão nenhuma relação com o direito aos bens intelectuais (REHBINDER, Manfred, Urheberrecht, p. 7).


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incorporalis uma proteção patrimonial. E não poderia ser diferente, pois seria bastante difícil pretender que um povo aristocrático, pragmático e guerreiro, preocupado com questões concretas, pudesse ter reconhecido ao autor o direito exclusivo de reprodução de sua obra, bem como a remuneração pela produção de cada novo exemplar dela. Assim sendo, a despeito de o comércio de obras intelectuais ter se desenvolvido muito em Roma, os autores não obtinham grande compensação financeira pelos seus trabalhos, pois acabavam sendo explorados pelos editores e comerciantes. Por isso, pode-se afirmar que a glória e o reconhecimento dos concidadãos impulsionavam a produção de obras do espírito, ficando o lucro com sua exploração relegado a um segundo plano. Por conseguinte, acreditamos que, não obstante a importância dos desenvolvimentos ocorridos na Antiguidade Clássica, os direitos autorais não foram reconhecidos nas sociedades grega e romana, pois o que existiu foi apenas uma proteção embrionária e fragmentada de alguns pontos da matéria, que não pode ser comparada com a tutela posteriormente outorgada pelo Estatuto da Rainha Ana (1710) e pelos decretos franceses de 1791 e 1793. 5. Bibliografia ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. 1. BRUNNER, Richard. Urheber- und leistungsschutzrechtliche Probleme der Musikdistribution im Internet: unter besonderer Berücksichtigung der Richtlinie 2001/29/EG und ihrer Umsetzung in deutsches Recht. Berlin: Tenea, 2004. CARBONI, Guilherme. Direito Autoral e Autoria Colaborativa: na Economia da Informação em Rede. São Paulo: Quartier Latin, 2010. CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Notas sobre plágio e autoplágio. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, v. 29, p. 305328, jan./jun. 2012. _________. Direito de autor e direitos da personalidade: reflexões à luz do Código Civil. Tese para Concurso de Professor Titular de Direito Civil da


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Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. CIFUENTES, Santos. Derechos personalíssimos. 3. ed. Buenos Aires: Astrea, 2008. COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil. 2. ed. São Paulo: FTD, 2008. EBOLI, João Carlos de Camargo. Pequeno Mosaico do Direito Autoral. São Paulo: Irmãos Vitale, 2006. FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito Autoral: da Antiguidade à Internet. São Paulo: Quartier Latin, 2009. GAUDENZI, Andrea Sirotti. Il nuovo diritto d’autore. Santarcangelo di Romagna: Maggioli, 2009. GAUTIER, Pierre-Yves. Propriété littéraire et artistique. 7. ed. Paris: PUF, 2010. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, v. 6. JORDÃO, Levy Maria. A propriedade litteraria não existia entre os romanos. In: Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa: Classe de Sciencias Moraes, Políticas, e Bellas-lettras, tomo II, parte II. Lisboa: Academia, 1863, p. 1-15. LEITE, Eduardo Lycurgo. Plágio e outros estudos em Direito de Autor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. LIPSZYC, Delia. Derecho de autor y derechos conexos. Buenos Aires: UNESCO, 1993. MENDES, Mauro. Virgílio e os cantadores. Disponível em: <http://www. arquivors.com/mmendes_virgilio.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2011. PICARD, Edmond. Le Droit Pur. Paris: Ernest Flammarion, 1908. REHBINDER, Manfred. Urheberrecht. 16. ed. München: C. H. Beck, 2010. ROCHA, Daniel. Direito de autor. São Paulo: Irmãos Vitale, 2001. SANFILIPPO, Cesare. Istituzioni di diritto romano. 10. ed. Soveria Mannelli: Rubbettino, 2002.


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Direito, Soberania e Efetividade JurĂ­dica


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Reis Friede Desembargador Federal, ex-Membro do Ministério Público e Professor-Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Mestre e Doutor em Direito, é autor de inúmeras obras jurídicas, dentre as quais “Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica”, 8ª edição, Forense/ GEN, 2011, RJ (256 ps.), “Vícios de Capacidade Subjetiva do Julgador: Do Impedimento e da Suspeição do Magistrado nos Processos Civil, Penal e Trabalhista”, 6ª edição, Forense, 2010, RJ (532 ps.) e Lições Esquematizadas de Introdução ao Estudo do Direito, Ed. Freitas Bastos, 2ª edição, 2013, RJ (100 ps.).

Resumo: O presente artigo analisa o direito como uma realidade ficcional desprovido de qualquer efetividade própria. O direito somente se transforma em uma realidade efetiva na presença de elementos de concreção que são estranhos à realidade jurídica. Nesse sentido, o artigo tece considerações sobre o Estado como Principal Elemento de Concreção do Direito, através da efetivação da Soberania Nacional. Palavras-chave: Direito. efetividade. realidade jurídica e soberania. Abstract: this article examines the law as a fictional reality devoid of any own effectiveness. The law only becomes an effective reality in the presence of concretion elements that are foreign to the legal reality. In this sense, the article reflects on the state as Key Element of Concretion of the Law, through the enforcement of National Sovereignty. Keywords: Law. effectiveness. legal reality and sovereignty.

1. Introdução Sobre o direito, transcendendo sua noção, conceituação e finalidade social, deve ser assinalado, - em sublime ratificação à doutrina mais abalizada sobre o tema -, que este, isoladamente considerado, se constitui em uma inexorável e singela realidade ficcional, posto que, reconhecidamente, despro-


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vido de qualquer efetividade inerente ao mundo fático. Por efeito, é cediço concluir que o direito somente se transmuda em uma realidade efetiva na presença de indispensáveis elementos de concreção que, em princípio, são completamente estranhos à realidade jurídica. Tais elementos, de nítido caráter instrumental, revelam-se como autênticos mecanismos de conversão, permitindo que o direito, a partir de sua inerente percepção abstrata originária, possa se exteriorizar através de uma consequente percepção concreta derivada que viabilize, em última análise, a imprescindível sinergia à sua própria previsão teórica de sanção, provendo-lhe o seu indispensável fator de credibilidade.1

1   É a situação clássica (ainda que, nesse caso, meramente ilustrativa) de um garoto que, na inerente fragilidade física de seus 10 anos de idade, após comprar (com seu dinheiro) um sorvete – e, portanto, titularizar um Direito de propriedade e de posse sobre o mesmo –, é violentamente abordado por um adolescente de 16 anos (necessariamente provido de maior robustez atlética) que, através do simples uso da ameaça ou da própria força, lhe exige o sorvete, tomando-o, por fim, independentemente da insistente alegação, por aquele primeiro menor, de que ele é titular de indiscutíveis direitos sobre o objeto jurídico, de cuja posse, aliás deixou, pelo uso da força, de ser detentor. Nessa situação, o Direito revela-se, de forma insofismável, como uma inconteste realidade ficcional, posto que, não obstante a sua expressa previsão de sanção para a exata hipótese narrada, ele, por si só, não possui as condicionantes operativas que o tornam efetivo, dotando, em último grau, o Direito de uma necessária concretude. Todavia, o resultado final do caso descrito pode ser completamente diferente, na hipótese de o garoto de 10 anos ter, por exemplo, um irmão de 22 anos que, chamado em seu socorro, no exato momento da abordagem ameaçadora do adolescente de 16 anos, comparece imediatamente para fazer valer o direito titularizado por aquele, e de cuja simples alegação de existência não foi suficiente para inibir a ação antijurídica do agente. Ainda assim, é importante consignar que, - de forma diversa da relação direta entre o garoto de 10 anos e o adolescente de 16 anos, em que necessariamente este é maior e mais forte que aquele -, o irmão de 22 anos (inobstante possuir a mesma diferença de idade) não será obrigatoriamente capaz de impor o direito ao adolescente de 16 anos, considerando que, em uma situação real, ainda que em caráter excepcional, o rapaz de 22 anos - eventualmente intelectualizado e avesso a atividades físicas - pode não ser páreo para um possível adolescente de 16 anos, que seja praticante de fisiculturismo e iniciado em técnicas de lutas marciais. Nessa hipótese particular, não obstante a presença de um indiscutível elemento de concreção, mais uma vez o Direito continuará em seu âmbito ficcional, deixando de se projetar, no mundo real, de forma sinérgica e efetiva. No exemplo ilustrativo, que nada mais é do que uma analogia metafórica, vale assinalar que o irmão mais velho representa, sobretudo (ainda que não exclusivamente), o Estado, como instrumento por excelência de efetivação jurídica, sendo certo, nesse prisma analítico, que a simples presença do Estado, conforme assinalado, não é por si só fator suficiente e derradeiro para prover a necessária concretude ao Direito, sendo indispensável a existência do denominado Estado forte, ou seja, dotado de recursos e de disposição política para fazer valê-los.


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2. O estado como principal elemento de concreção do direito Muito embora o Estado não seja o único elemento de concreção do Direito, - considerando que, em princípio, toda forma de exteriorização de poder efetivo seja, em tese, capaz de fazer valer previsões abstratas de ordenação -, é, sem dúvida, o Estado (e, em particular, o Estado forte)2 a principal geratriz de produção e efetivação do Direito, o que é realizado, em última instância, através do elemento componente da soberania, na qualidade de virtual instrumento de vinculação político-jurídica e parcela, por excelência, de formação e irradiação de poder político e, nesse diapasão analítico, responsável pela necessária concreção do próprio Estado.3 2.1. Soberania como pressuposto de existência do Estado e do Direito Soberania, em termos objetivos, se traduz através de um conceito extremamente complexo. Trata-se de uma expressão que pode ser traduzida simultaneamente por intermédio de duas diferentes classes gramaticais, ou seja, a classe substantiva e a adjetiva. No sentido material (substantivo), é o poder que tem a coletividade humana (povo) de se organizar jurídica e politicamente (forjando, em última análise, o próprio Estado) e de fazer valer no seu território a universalidade de suas decisões. No aspecto adjetivo, por sua vez, a soberania se exterioriza conceitualmente como a qualidade

2   Estado Forte, por definição, como veremos mais detalhadamente, em capítulo próprio, é, em última análise, o Estado que edita e faz valer o direito positivo, assegurando não somente a plena realização prática de sua normatização, como bem assim a universalidade de suas decisões. O conceito técnico de Estado Forte, portanto, não guarda qualquer relação com a concepção estrutural de Estado Autoritário ou Totalitário, como igualmente não traduz qualquer necessária simetria com a noção básica de Estado Democrático, sendo certo que o autoritarismo, o totalitarismo e mesmo a democracia - na qualidade de regimes políticos - são apenas formas diferentes de exteriorização do poder estatal, inerentes ao Estado Forte. Não é por outra razão que é sempre lícito concluir inexistir verdadeira democracia - ou seja, democracia material (dotada de conteúdo substancial) - em Estados Fracos (ou seja, naqueles desprovidos de capacidade de realizar, em termos práticos e efetivos, o direito democrático legislado), caracterizando o que convencionalmente designamos por democracia formal (ou aparente). 3   Nesse especial aspecto, é forçoso concluir que, como numa autêntica espiral de derivação, é a soberania, em último grau, o elemento maior de caracterização do Estado, capaz de viabilizar a essência da projeção do poder político e, em consequência, a própria efetividade do Direito, transformando-o em uma realidade perceptível, capaz de prover, em sua plenitude, a sua função precípua de ordenação político-jurídica e de sinérgica projeção comportamental.


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suprema do poder, inerente ao Estado, como Nação política e juridicamente organizada.4 “O primeiro aspecto importante a considerar é o que se refere ao conceito de soberania. Entre os autores há quem se refira a ela como um poder do Estado, enquanto outros preferem concebê-la como qualidade do poder do Estado, sendo diferente a posição de KELSEN, que, segundo sua concepção normativista, entende a soberania como expressão da unidade de uma ordem. Para HELLER e REALE ela é uma qualidade essencial do Estado, enquanto JELLINEK prefere qualificá-la como nota essencial do poder do Estado. RANELLETTI faz uma distinção entre a soberania, com o significado de poder de império, hipótese em que é elemento essencial do Estado, e soberania com o sentido de qualidade do Estado, admitindo que esta última possa faltar sem que se desnature o Estado, o que, aliás, coincide com a observação de JELLINEK de que o Estado Medieval não apresentava essa qualidade” (DALMO DE ABREU DALLARI, 1994, p. 67). No sentido substantivo (que alguns autores salientam como o principal), a soberania é também concebida, em termos políticos, como o poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar competências (soberania como elemento de expressão última da plena eficácia do poder); em termos jurídicos, como o poder de decidir em última instância sobre a eficácia da 4   Deve ser observado que, pelo menos inicialmente, a maioria dos estudiosos do tema não conseguiu perceber o inconteste aspecto binário da caracterização conceitual da soberania, optando, por efeito, por traduzi-la ora por seu aspecto substantivo (acepção de poder efetivo), ora por seu aspecto adjetivo [como qualidade inerente (e essencial) do poder estatal]. RANELLETTI parece ter sido, nesse particular, o primeiro autor a arranhar a concepção contemporânea de soberania, permitindo a dupla tradução do vocábulo como poder (elemento essencial de caracterização do Estado) e como qualidade inerente ao Estado (embora, em termos mais corretos, a soberania deva ser percebida, em seu aspecto adjetivo, como qualidade do próprio poder e não do Estado, posto que todo Estado é, em tese, soberano).


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normatividade jurídica; e, em termos culturais (que alguns autores, como MIGUEL REALE, preferem denominar concepção política, mas que, em essência, é uma tradução mista político-jurídica), como o poder de organizar-se política e juridicamente e de fazer valer, no âmbito de seu território (princípio da aderência territorial), a universalidade de suas decisões no “limite dos fins éticos de convivência” (REALE, 1960, p. 127) ou, como preferimos, no limite da legitimidade (consensus) imposta pela coletividade humana originária (povo). Na expressão básica, de caráter material, a soberania pode ser ainda considerada como o pressuposto fundamental do Estado: é o poder de império (poder sobre todas as coisas no território pátrio) e o poder de dominação (poder sobre todas as pessoas no território pátrio), geradores, por sua vez, de um autêntico corolário de direitos e obrigações. É, por fim, o poder máximo do Estado, efetivando-se na organização política, social e jurídica de um Estado.5 Para alguns autores em particular (como CALMON, 1942, p. 177 e MALUF, 1995, ps. 29-30), o conceito de soberania está intrinsecamente relacionado ao conceito de Estado perfeito, como qualidade inerente ao mesmo (Estado soberano). Todavia, o mais correto é entender o fenômeno em questão como inconteste elemento de formação (ou caracterização) do Estado que possui, desta feita, dois âmbitos distintos de atuação: o interno (de caracterização institucional) e o externo (de projeção no cenário internacional). Internamente, é o direito de criar o governo, as instituições e a própria Constitui-

5   Deve ser consignado, por oportuno, que os conceitos de coisa e pessoa são excludentes no direito. Para o mundo jurídico, coisa é tudo aquilo que não é pessoa, ao passo que pessoa é tudo aquilo que não é coisa. Como a soberania, em seu aspecto substantivo, engloba o poder de império (sobre as coisas), e o poder de dominação (sobre as pessoas) abrange, por definição conclusiva, o poder sobre todos os aspectos físicos e humanos no território pátrio. Vale assinalar que alguns autores elencam a soberania como virtual expressão-origem, afirmando que a mesma não pode ser, nesse sentido, precisamente conceituada, posto que, em sua essência, o termo soberania representa a explicação inicial de diversos outros conceitos jurídicos (e, para certos estudiosos, também políticos) que encontram, desta feita, o seu inerente fundamento, em última análise, na própria soberania. Analogicamente, segundo essa doutrina, soberania representaria para o direito o mesmo que a expressão Deus (como entidade abstrata originária) para a vida (e a consequente explicação de sua origem, seu fundamento, seu objetivo etc.), o que, por si só, invalidaria qualquer tentativa de maiores explicações e análises sobre o vocábulo. Ainda nesse contexto, esses estudiosos chegam a comparar as diversas teorias justificativas da soberania com as várias religiões existentes no planeta.


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ção (por intermédio do denominado Poder Constituinte). Externamente, é o poder absoluto aderente ao território que propiciou forjar; no direito internacional público, o conceito basilar de não intervenção entre os Estados (soberanos) no contexto mundial.6

6   Vale assinalar que alguns autores elencam a soberania como virtual expressão-origem, afirmando que a mesma não pode ser, nesse sentido, precisamente conceituada, posto que, em sua essência, o termo soberania representa a explicação inicial de diversos outros conceitos jurídicos (e, para certos estudiosos, também políticos) que encontram, desta feita, o seu inerente fundamento, em última análise, na própria soberania. Analogicamente, segundo essa doutrina, soberania representaria para o direito o mesmo que a expressão Deus (como entidade abstrata originária) para a vida (e a consequente explicação de sua origem, seu fundamento, seu objetivo etc.), o que, por si só, invalidaria qualquer tentativa de maiores explicações e análises sobre o vocábulo. Ainda nesse contexto, esses estudiosos chegam a comparar as diversas teorias justificativas da soberania com as várias religiões existentes no planeta.


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2.2. Significado do termo Soberania, do latim super omnia ou de superanus ou supremitas (caráter dos domínios que não dependem senão de Deus), significa, vulgarmente, o poder supremo e, nesse aspecto, incontestável do Estado, acima do qual nenhum outro poder se encontra, ou mesmo tangencia. 2.3. Os variáveis conceitos de soberania A soberania, como bem observa PAUPÉRIO (1997, ps. 3-4), “é a causa formal do Estado; o que não impede, no entanto, que existam outras formas menores de associações humanas, como, por exemplo, a que se observa na família, com sua potestas dominativa ou econômica. É preciso convir, porém, que a potestas dominativa do pai de família é fundamentalmente privada, enquanto a potestas política do Estado é, por sua essência, pública”.


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A soberania “constitui, assim, para muitos, verdadeira diferença específica do Estado, a característica histórica e racional que distingue o poder político” (MACHADO PAUPÉRIO, ob. cit., p. 3). GERBER definiu-a como um poder de dominação (GERBER apud ADOLF POSADA, 1915, ps. 76 e 213). Já ORBAN define-a como a plenitude do poder público, a suprema potestas (apud VIVEIROS DE CASTRO, 1924, p. 47). SANTI ROMANO diz ser “o caráter que distingue o Estado de todas as pessoas territoriais que constituem o seu gênero próximo” (1931, p. 53), e CALMON conceitua a soberania como caracterização do Estado perfeito (ob. cit., p. 177). No sistema da técnica jurídica, diz CHIMIENTI que “a soberania é qualificada como fonte da capacidade jurídica do Estado” (1932, p. 27). MALUF conceitua soberania como “uma autoridade superior, que não pode ser limitada por nenhum outro poder” (ob. cit., p. 29). SINAGRA afirma: “Concebido o Estado como pessoa jurídica, a soberania pertence-lhe como um direito subjetivo, mas a soberania, antes de ser um direito, é um poder de fato, força material constringente” (apud PAUPÉRIO, ob. cit., p. 5). Segundo HAURIOU, o conceito de soberania, sob o ângulo da concepção política, consiste na ideia da independência fundamental do poder do Estado. A soberania-independência é o conceito negativo, pois limita-se a afastar do poder toda e qualquer ideia de limites, sem atender ao conteúdo positivo do poder (1993, ps. 16-17). Outro, porém, é o conceito quando uma lei básica estabelece, por exemplo, que “a soberania reside na Nação”, pois, nesse caso, impõe-se a concepção política, uma vez que se atende não só ao poder organizado como também à fonte, à maneira de constituir-se o poder. Soberania, então, é soberania política, exprimindo o fenômeno do poder desde o seu desdobramento como força social, até a sua caracterização como direito subjetivo do Estado constituído.7 7   A maioria das Constituições limita-se a declarar que a soberania é do povo ou da Nação, ou que o poder político emana do povo e em seu nome é exercido, sem maior preocupação técnica. Digno de especial menção é o art. 1º da Constituição da Irlanda, que frisa bem o significado político da soberania: “La nation Irlandaise proclame par la présente Constitution son droit inalénable, imprescriptible et souve- rain de choisir la forme de gouvernement qui lui agréera, de determiner ses rapports avec les autres nations, de développer sa vie politique,


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Revista da Ajufe “A soberania (majestas, summum imperium) significa, portanto, um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum outro na ordem interna; e por poder independente aquele que na sociedade internacional não tem de acatar regras que não sejam voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos. Do que ficou exposto, resulta que poder político e soberania não são a mesma coisa. A soberania é uma forma do poder político, correspondendo à sua plenitude: é um poder político supremo e independente. Se uma coletividade tem liberdade plena de escolher a sua Constituição e pode orientar-se no sentido que bem lhe parecer, elaborando as leis que julgue convenientes, essa coletividade forma um Estado soberano” (CAETANO, 1972, p. 132).

Hodiernamente, novos autores surgem com outras ideias, outros valores, outros conceitos, em face de um processo normal de desenvolvimento, sob todos os aspectos. Porém, sob qualquer ângulo analítico, não há como deixar de se reconhecer a soberania como o instrumento fundamental de concreção do direito, atribuindo-lhe, - através do poder estatal -, a necessária efetividade.

économique et culturelle, conformément à son génie propre et à ses traditions”. (Trad. adotada por GUETZÉVITCH, 1938, p. 337.)


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2.4. Titularidade (e justificação) da soberania No que concerne à titularidade da soberania e sua consequente justificação, basicamente duas diferentes teorias se apresentam buscando impor a explicação básica do fenômeno, em sua origem: as chamadas teorias teocráticas (de direito divino sobrenatural e providencial) e as denominadas teorias democráticas (soberania do povo, soberania da Nação e soberania do Estado).


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Além dessas, alguns autores, como MALUF e PAUPÉRIO, elencam a teoria das escolas alemã e austríaca (JELLINEK e KELSEN que, em certa medida, se confundem com a teoria da soberania do Estado), a teoria negativista da soberania (DUGUIT), a teoria realista e a teoria institucionalista da soberania. As teorias teocráticas, de modo geral, partem do pressuposto de que, direta (direito divino sobrenatural) ou indiretamente (direito divino providencial), a titularidade da soberania pertence ao monarca, como uma autêntica concessão divina. As teorias democráticas, por sua vez, reconhecem a inconteste titularidade do povo, ainda que adstrito a um contexto evolutivo que pode ser concebido desde a ideia primitiva de população (teoria da soberania do povo), passando pela noção de agrupamento com efetivo vínculo de nacionalidade (teoria da soberania da Nação), até chegar à concepção contemporânea (inaugurada no século XX) de povo como conjunto de nacionais, institutivamente considerado (teoria da soberania do Estado).


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2.5. Características (atributos) da soberania No que concerne às características basilares da soberania (que alguns autores denominam atributos), resta afirmar que a quase unanimidade dos autores reconhece que a soberania é sempre una (posta a impossibilidade de coexistência, no mesmo espaço territorial-estatal, de duas soberanias distin-


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tas), indivisível (considerando que se aplica à universalidade dos fatos político-jurídicos), inalienável (tendo em vista que uma vez concebida não pode ser desconstituída), imprescritível (no sentido de que não se encontra condicionada a termo temporal) e aderente ao território estatal e ao vínculo nacional [posto que concebida a partir da existência do elemento humano (povo) e do elemento físico (território)], e que corresponde, sob a ótica substantiva, a um poder que é necessariamente supremo (na acepção de sua inconteste superioridade), originário (tendo em vista que nasce concomitantemente com o próprio Estado, como elemento fundamental desse), ilimitado (posto que não encontra restrições objetivas), incondicionado (considerando que não se encontra adstrito a nenhuma regra ou limitação anterior), intangível (no sentido de que não é alcançado por outro poder, independentemente de sua natureza) e coativo (tendo em vista que o poder da soberania é exercido por ordem imperativa e através de instrumentos de coação). DUGUIT (1926, p. 116), acrescendo à relação de atributos formalizada por ZANZUCCHI (1948, p. 21), também assinala que a soberania se traduz em um poder de vontade subordinante (à medida que o poder soberano se relaciona com outros poderes através de uma relação entre subordinantes e subordinados) e em um poder de vontade independente (que, em essência, amplia a concepção clássica do poder incondicionado para a esfera internacional, impedindo que qualquer convenção seja automaticamente obrigatória para o Estado não signatário).


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3. Efetivação da soberania e concretização objetiva do direito e da realidade jurídica Destarte, a soberania constitui-se, desta feita, por excelência, no elemento abstrato – basilar e sinergético – de formação do Estado, que se cristali-


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za, em última instância, através do sincero e mais íntimo desejo do conjunto de nacionais (povo) em conceber uma comunidade (Nação) territorial onde a vontade individual ceda espaço para a imposição da vontade coletiva, por intermédio da caracterização última de um verdadeiro Poder Constituinte e de sua normatização consequente, ou seja, o Direito em sua concepção efetiva. Não é por outra razão, portanto, que o conceito próprio e específico de Poder Constituinte, na qualidade de poder originário e institucionalizante, é comumente sintetizado como a expressão máxima da soberania nacional, numa evidente alusão ao objetivo último desta modalidade suprema de exteriorização teórica do poder político que é exatamente a de transformar a Nação – dotando-a de uma organização político-jurídica fundamental (Constituição) e instrumentalizando-a normativamente – em um efetivo Estado.8 A soberania, por efeito consequente, caracteriza, em última instância, o próprio Estado, atribuindo-lhe a capacidade de forjar um direito interno ou, em outras palavras, dotando-o de instrumentos de regulação inerentes à vida de seus diversos integrantes, em princípio de forma legítima (consensual), ainda que, em sua ação prática, de modo compulsório.9

8   Não podemos nos esquecer, em harmonia com as teorias mais abalizadas sobre o tema, de que o Estado se constitui na soma de três elementos básicos, ou seja, povo (elemento humano), território fixo (elemento físico ou geográfico) e soberania (elemento abstrato de concreção), sendo certo que, de forma simples, o Estado representa a Nação dotada de uma Constituição, ou seja, de uma organização político-jurídica fundamental, em que é estabelecido o direito nacional em sua dimensão maior. Não é por outra razão que DEL VECCHIO entende que, além do povo e do território, o que caracteriza o Estado é a existência de vínculo jurídico. “Quanto às notas características do Estado Moderno, que muitos autores preferem denominar elementos essenciais por serem todos indispensáveis para a existência do Estado, existe uma grande diversidade de opiniões, tanto a respeito da identificação quanto a do número. (...) Para DEL VECCHIO, em especial, além do povo e do território, o que existe é o vínculo jurídico, que seria, na realidade, um sistema de vínculos, pelo qual uma multidão de pessoas encontra a própria unidade na forma do direito. (...)” (DALLARI, DALMO DE ABREU. 1994, ps. 60-61) Por outro lado, o Estado também se apresenta como uma entidade com fins precisos e determinados, razão pela qual alguns autores incluem, como uma espécie de quarto elemento de caracterização do Estado, a finalidade (A. GROPPALLI), considerando, sobretudo, a função estatal precípua de regular globalmente, em todos os seus aspectos, a vida social da comunidade, visando à realização do bem comum (cf. PALLIERI, GIORGIO BALLADORE. 1955, p. 10) 9   De fato, muito embora o Direito concebido pela função legislativa do Estado seja consensual, ou seja, resultado da vontade geral manifestada através dos representantes do povo em assembleia, ele também é obrigatório (uma vez publicado), independentemente da vontade de cada indivíduo, em face da prevalência, que passa a existir, da comunidade estatal sobre os seus componentes, individualmente considerados.


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Todavia, como a soberania também se constitui em uma inconteste abstração, o direito estatal que dela deriva para realmente valer, de maneira genérica vinculativa e obrigatória, necessita de algum tipo de elemento concreto, que tenha a capacidade de viabilizar, sob o ponto de vista real (factual) e efetivo, a indispensável concreção dos já mencionados poder de império (poder sobre todas as coisas no território estatal) e do denominado poder de dominação (poder sobre todas as pessoas no território estatal), inerentes ao poder político derivado da soberania. Este elemento de efetivação se traduz, em última análise, pela sinérgica existência de uma força coerciva de natureza múltipla (política, econômica, militar e/ou psicossocial), mas que, de modo derradeiro, se perfaz por meio de uma inexorável existência de capacidade política no sentido amplo da expressão. Desta feita, é sempre lícito concluir, neste contexto analítico restritivo, que a soberania (e o direito dela decorrente), embora inicialmente estabelecida por consenso, somente se efetiva, de modo amplo e pleno, através do necessário respaldo de uma capacidade de força efetiva, em mãos do Estado, que seja facilmente perceptível pelos diversos indivíduos que compõem a comunidade social, transformando a inicial abstração da soberania em uma acepção reconhecida e inexoravelmente concreta e a concepção ficcional (originária) do direito, por seu turno, em uma realidade universal e perceptível.10 “A lei deve ter autoridade sobre os homens e não os homens sobre a lei.” [PAUSÂNIAS - Geógrafo grego (4 a.C. - 65 d.C.)] Assim, de modo objetivo, é possível analisar didaticamente o que se convencionou denominar de anatomia da soberania, desvendando os seus variados graus de exteriorização (desde o sentido mais abstrato até o mais concreto) e, sobretudo, caracterizando conceitualmente, em síntese, os vo10   Não é por outro motivo que, nos Estados desprovidos de instrumentos de força coativa real, onde inexiste a garantia derradeira da imposição do direito estatal interno, é sempre permeável a indesejáveis possibilidades, tais como a do estabelecimento marginal (e paralelo ao Estado) de grupos de indivíduos que, através do uso da força, tornem toda a sociedade organizada refém de sua vontade (não legítima), independentemente da natural contrariedade que tal fato necessariamente acarrete em termos fáticos.


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cábulos poder (como elemento teórico de exteriorização da soberania abstrata, em que a mesma é revestida de autoridade, faculdade e possibilidade de ação, forjando a sua concepção teórica) e força (na qualidade de elemento efetivo de concreção do poder, em que esse é dotado de vigor e robustez em termos práticos, forjando a concepção da soberania em termos efetivos). Destarte, é exatamente nesse contexto que se enquadra a concepção clássica de que o Estado é o verdadeiro e principal (senão único) detentor do “monopólio do uso (legítimo) da violência”, permitindo dotar a positividade de seus regramentos de plena e necessária efetividade, ou, em outras palavras, transformando o direito positivo (legislado) em direito efetivo (aplicado).


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4. Estados Fortes e Estados Fracos Muito embora a doutrina tradicional não comente, pelo menos de modo mais detalhado, a questão da força imperativa do Estado, optando, muitas vezes, por simplesmente ignorar a moderna tendência política de se classifica-


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rem os Estados contemporâneos em Estados Fortes e em Estados Fracos, é extremamente importante, na atualidade, enfrentar essa questão que, de um modo muito especial, também se encontra associada à formação da concepção técnico-jurídica o próprio Estado e, em particular, da democracia material. Neste diapasão, vale registrar, inicialmente, que a noção mais elementar de Estado Forte se encontra irremediavelmente associada ao conceito amplo de Estado de legalidade, no exato sentido não só da efetiva constatação da presença de um sólido poder político, mas também da sinérgica disposição de utilizá-lo, de acordo com os ditames da ordem jurídico-política estabelecidos e, particularmente, em favor de sua completa concretização. Como toda democracia material (substantiva) necessariamente caracteriza-se pelo binômio associativo da legitimidade/legalidade – incluindo, através desse último atributo, a ideia da força imperativa estatal –, é lícito (e razoável) concluir que todo verdadeiro Estado democrático de direito se constitui inexoravelmente em um Estado Forte, não obstante ser igualmente verdadeira a máxima segundo a qual nem todo Estado reputado forte traduzir necessariamente um regime político genuinamente democrático, considerando a ausência de insuperável compromisso desse tipo de Estado com a questão ampla da legitimidade.


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4.1. Princípio da autoridade, autoritarismo e ausência de autoridade Por outro prisma, também resta obrigatório deduzir, para um melhor entendimento dos conceitos de Estado forte e Estado fraco, que o princípio da autoridade


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não possui qualquer correspondência com a noção conceitual de autoritarismo e muito menos com a simples ideia de ausência de autoridade. Em essência, o denominado princípio da autoridade é consequência natural da plena legitimidade do regime político democrático na construção de uma ordem jurídico-política e de sua sinérgica aplicação rigorosamente de acordo com as regras previamente estabelecidas, forjando, em última análise, a própria concepção do Estado democrático material, que associa, entre outros, no contexto do princípio da autoridade, a natureza nitidamente vinculativa do binômio poder-dever. O autoritarismo, neste diapasão analítico, corresponde a apenas um viés estritamente legalista do Estado, caracterizando, em sua tradução ampla, o que comumente ocorre, em diferentes graus, nos Estados Fortes rotulados no âmbito da ciência política como democracias formais legalistas, Estados autoritários e Estados totalitários. Finalmente, a acepção técnico-jurídica da ausência (parcial ou total) de autoridade, por sua vez, traduz-se pela falta de capacidade e/ou determinação política para impor a ordem jurídico-política estabelecida legitimamente (como no caso das democracias formais fundadas na legitimidade) ou imposta pela força (como na hipótese dos Estados autoritários e totalitários instáveis ou protegidos), caracterizando os chamados Estados Fracos.


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5. Conclusões Conforme expressamente registrado, o Direito, transcendendo sua noção, conceituação e finalidade social, constitui-se em uma inexorável e singela realidade ficcional, posto que, reconhecidamente, é desprovido de qualquer efetividade inerente ao mundo fático, sendo certo afirmar que o Direito somente se transmuda em uma realidade efetiva na presença de indispensáveis elementos de concreção. Embora o Estado não seja o único elemento de concreção do Direito, é, sem dúvida, a sua principal geratriz de produção e efetivação, o que é realizado através de seu elemento componente (fundamental) chamado soberania. A soberania, por sua vez, constitui-se no elemento abstrato de formação do Estado, que se cristaliza através do sincero e mais íntimo desejo do conjunto de nacionais (povo) em conceber uma comunidade (Nação) territorial onde a vontade individual necessariamente acabe por ceder espaço para a imposição da vontade coletiva, por intermédio da caracterização última de um sinérgico Poder Constituinte, criador do próprio Estado e, particularmente, normatizador de um direito dotado do necessário atributo de efetividade. Desta feita, é sempre lícito concluir que a soberania (e o direito dela decorrente), embora inicialmente estabelecida por consenso, somente se efetiva através do necessário respaldo de uma capacidade de força efetiva, em mãos do Estado, que seja facilmente perceptível pelos diversos indivíduos que compõem a comunidade social, transformando a inicial abstração da soberania em uma acepção reconhecida e inexoravelmente concreta e a concepção ficcional do direito, por seu turno, em uma realidade universal, sobretudo, perceptível no âmbito da “realidade jurídico-factual”. 6. Referências bibliográficas DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 18ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994. PALLIERI, Giorgio Balladore. In Diretto Constituzionale. 4ª ed., Milão, 1955. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Armado, vol.II, 1972. GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. São Paulo: Saraiva, 1962.


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MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 19ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1988. NEUMAN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. PAUPÉRIO, A. Machado. O Conceito Polêmico de Soberania. São Paulo: Freitas Bastos. REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 2ª ed. São Paulo: Ed. Martins, 1960. JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires: Ed. Albatroz, 1954. CALMON, Pedro. Curso de Direito Públicopúblico. 2ª ed., Rio de Janeiro, 1942. MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995. PAUPÉRIO, Machado. Teoria Democrática da Soberania. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, ps. 3-4. GERBER apud ADOLF POSADA. Tratado de Derecho Político. 2ª ed., revisada, Madri, 1915, tomo 1º, vol. 2º. ORBAN apud VIVEIROS DE CASTRO. Estudos de Direito Público. Rio de Janeiro, 1924. SANTI ROMANO. Corso di Diritto Costituzionale. 3ª ed., Padova, 1931. CHIMIENTI. Droit Constitutionnel Italien. Paris, 1932. HAURIOU. Précis Élémentaires de Droit Constitutionne. 3ª ed., 1993. CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. 6ª ed. Lisboa: Coimbra Ed., 1972. GUETZÉVITCH, MIRKINE. Les Constitutions de l’Europe Nouvelle. Paris, 1938, vol. II. DUGUIT. Léçons de Droit Public Général. Paris, Ed. de Boccard, 1926. ZANZUCCHI. Istituzioni di Diritto Pubblico. Milão, Ed. Giuffrè, 1948.



A execução de decisões judiciais contra a administração pública em uma perspectiva comparada


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Alexandre da Silva Arruda Juiz Federal Titular da Vara Federal de Magé-RJ; mestrando em Justiça Administrativa na Universidade Federal Fluminense

Resumo: Este texto trata da execução de decisões judiciais contra a Administração Pública no direito comparado, em especial na Alemanha, nos Estados Unidos da América e na Argentina, através da análise da evolução doutrinária, legislativa e jurisprudencial, para ao final extrair paradigmas e conclusões aplicáveis ao direito brasileiro. Sustenta que o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos não é levado ao extremo nos países estudados, os quais permitem a constrição judicial de bens públicos, em dadas condições, nas hipóteses de não cumprimento voluntário de sentença pecuniária pela Administração, com fundamento no princípio da tutela judicial efetiva. Afirma que o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos sempre foi tido como um dogma pela doutrina e jurisprudência brasileiras, mas que o panorama se modificou a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nas ADI 4357, 4372, 4400 e 4425, que julgou inconstitucional o regime especial de parcelamento previsto no art. 97 do ADCT. Palavras-chave: Administração pública, execução forçada, tutela judicial efetiva, direito comparado, precatório judicial, impenhorabilidade, bens públicos.

1. Introdução A execução de decisões judiciais proferidas contra a Administração Pública recebe diferentes abordagens de acordo com o ordenamento jurídico analisado, como naturalmente ocorre sempre que se estudam distintos países, cada um com institutos, história e cultura próprios. Contudo, o traço comum que se observa no direito comparado é a busca cada vez maior pela efetividade no cumprimento destas decisões, como forma de se assegurar o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo. Nesta perspectiva, a garantia de uma tutela judicial efetiva, consagradora não


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apenas do acesso formal aos tribunais, mas sobretudo do efetivo controle dos atos do Poder Público, vem se tornando o elemento central da ordem constitucional de diversos países, em especial da Europa, tais como Alemanha, França, Itália, Grécia, Portugal e Espanha. Tanto é assim que a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, adotada no ano 2000 pelo Parlamento Europeu, consagra o direito a uma tutela jurisdicional efetiva em seu artigo 47.1 Esta Carta passou a ter força vinculante no direito comunitário europeu após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2007. No continente americano também verificamos uma atenção cada vez maior a este princípio, inclusive no Brasil, como se mostrará neste trabalho. Pode-se afirmar, portanto, que o desenvolvimento do princípio da tutela efetiva vem impondo a construção de soluções legislativas e jurisprudenciais tendentes a assegurar uma efetividade cada vez maior no cumprimento de decisões judiciais em face da Administração Pública, o que, em uma análise mais abrangente, contribui para promover o respeito aos valores essenciais à existência do Estado de Direito. Com essas considerações, passa-se a analisar a sistemática adotada por diferentes países, para que ao fim possamos extrair conclusões e paradigmas que nos permitam entender o atual estágio do tema no direito brasileiro. 2. A execução contra a Administração no Direito alemão 2.1 Antecedentes Na Alemanha, a possibilidade de execução forçada de decisões judiciais contra a Administração não era uma ideia evidente. Otto Mayer, um dos precursores do Direito Administrativo alemão, afirmava que a execução forçada contra o Estado feria a sua dignidade, pois este não precisaria ser coagido para satisfazer seu próprio Direito. Por sua vez, o jurista alemão Así Ernst Forsthoff afirmava que o Estado seria sempre solvente (fiscus semper idoneus sucessor sit et solvendo), de modo que seria desnecessária a expropriação de seus bens para o cumprimento

1   “Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal.”


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de decisões judiciais. Contudo, a partir da edição da vigente Constituição alemã, em 1949, passou-se a entender que a possibilidade de execução forçada contra o Estado decorre da garantia de acesso ao Poder Judiciário, assegurado pelo artigo 19, IV, GG: “Àquele que for lesado em seus direitos pelo poder público é facultado o acesso à via jurisdicional” A jurisprudência da Corte Constitucional alemã extraiu deste dispositivo o direito do indivíduo a uma tutela efetiva de direitos subjetivos, o que abrange não apenas o acesso formal aos órgãos do Poder Judiciário, mas, principalmente, uma pretensão a um controle eficaz, que assegure instrumentos de coação para o cumprimento de decisões judiciais, inclusive em face do Estado.2 Ainda que parcela da doutrina alemã interprete restritivamente a expressão “poder público” contida no artigo 19, IV da Lei Fundamental, de modo a excluir de seu âmbito de incidência as atividades em que o Estado atue como particular, a Corte Constitucional estabeleceu que a pretensão genérica à tutela jurisdicional decorre também do princípio do Estado de Direito (artigos 20 e 28 GG), do direito geral de liberdade (artigo 2º, I, GG) e da garantia à propriedade (artigo 14, I, GG), o que vem a corroborar a possibilidade de execução forçada contra o Estado qualquer que seja a sua forma de atuação.3 Não obstante, a execução forçada contra a Fazenda Pública na Alemanha observa regras próprias, distintas das aplicáveis aos particulares, com o objetivo de resguardar o interesse da coletividade e manter a capacidade de funcionamento da Administração Pública. 2.2 A jurisdição administrativa na Alemanha A jurisdição no direito alemão é dividida em três ramos, que possuem códigos processuais específicos. Assim, coexistem no sistema alemão a jurisdição ordinária (cível e penal), a trabalhista e a administrativa. Esta última divide-se em jurisdi-

2   BverfGE 34, 52, 59;95, 1, 95 3   BverfGE 54, 277, 291;85, 337, 345 et seq.


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ção administrativa geral, jurisdição social e jurisdição de finanças. O Código de Processo Civil alemão (ZPO) aplica-se subsidiariamente às hipóteses não contempladas nos códigos processuais específicos dos diversos ramos da jurisdição. Nesta perspectiva, cada um dos ramos da jurisdição administrativa – geral, social e de finanças – possui normas especiais que regulam o processo de execução, destinadas a disciplinar o cumprimento das sentenças proferidas nas diversas espécies de demandas existentes no processo administrativo alemão. O Código de Jurisdição Administrativa (VwGO) prevê três espécies de ações, de acordo com o conteúdo da pretensão deduzida em juízo: ação constitutiva, ação condenatória e ação declaratória. A ação constitutiva mais relevante no contencioso administrativo alemão é a ação de impugnação (Anfechtungsklage),4 cuja finalidade é a anulação do ato administrativo. Caso a pretensão do autor seja a emissão de um ato administrativo, a ação cabível é a ação de condenação (Verpflichtungsklage).5 Para as demais prestações não incluídas no conceito de ato administrativo deve ser utilizada a ação condenatória geral (allgemeine Leistungsklage).6 2.3 O procedimento de execução forçada contra a Administração O procedimento de execução das sentenças proferidas contra a Administração está disciplinado nos §§ 167 a 172 do Código de Jurisdição Administrativa (VwGO), com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (ZPO). Não há regras específicas para a execução das sentenças proferidas em ações de impugnação e de declaração, pois a própria sentença produz o efeito pretendido pelo demandante, constituindo ou declarando a situação jurídica almejada. No que se refere às sentenças que condenam ao cumprimento de uma obrigação de fazer ou de não fazer, a execução se dá através da intimação da autoridade competente para editar o ato administrativo ou para abster-se de realizar a conduta vedada, sob pena de imposição de multa coercitiva. O § 172 do Código

4    §42, 1 e §113, 1 VwGO 5   § 42, 1 e §113, 5 VwGO 6   § 43, 2; 111; 113, 4; 169, 2, 170, 1 VwGO


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de Jurisdição Administrativa (VwGO) prevê a possibilidade de fixação de multa de até 10.000 euros, que poderá ser aplicada de forma reiterada caso persista o descumprimento. A fixação e a execução desta multa pode ser feita de ofício pelo próprio Tribunal. Já decidiu o Tribunal Constitucional alemão que o princípio do Estado de Direito exige respeito ao preceito da mais completa proteção jurídica possível, o que significa dizer que o Judiciário deve fazer tudo aquilo que a Administração se recusa a fazer, desde que se apresente como necessário ao pleno gozo dos diretos dos particulares. Na hipótese de execução de obrigação pecuniária contra a Federação ou um Estado, fundada em título originário da jurisdição civil, a execução somente poderá ter início quatro semanas após a manifestação formal do credor dirigida à autoridade que representa a entidade devedora, informando-a de sua intenção de promover a execução. No caso de execução contra um município, em regra, faz-se necessária a autorização da autoridade administrativa estatal a que o município está subordinado, a fim de fixar os objetos patrimoniais sobre os quais recairá a constrição e o período de tempo em que a execução ocorrerá. De se ressaltar, contudo, que esta autorização não constitui ato discricionário, uma vez que a autoridade somente poderá recusar a execução na hipótese de verificar a existência de causa excepcional que prejudique o funcionamento da Administração. Em se tratando de execução por quantia certa fundada em título oriundo da jurisdição administrativa, há uma disciplina única para todos os entes federados, prevista no Código de Jurisdição Administrativa (§ 170, VwGO). Antes de iniciada a execução propriamente dita, deve o juízo comunicar a sua existência à Administração, exortando-a ao cumprimento espontâneo da sentença, em prazo não superior a um mês. Em que pese a fixação deste prazo pelo §170, 2 VwGO, a Corte Constitucional entende que ele pode ser ampliado, em razão das peculiaridades do caso concreto. Satisfeita a obrigação, ainda que após a apresentação da demanda executiva, o processo é extinto, por falta de necessidade da tutela judicial. Terminado o prazo fixado pelo juízo para o cumprimento espontâneo da sentença pela Administração, inicia-se a execução forçada, através de ordem judicial que especifica as medidas coercitivas necessárias e determina ao órgão admi-


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nistrativo competente o seu cumprimento, sem que haja vinculação a pedidos do credor. Nada impede que o tribunal utilize-se de um órgão auxiliar para a concretização das medidas executivas, tais como o tribunal municipal (para efetivação da inscrição em registros de imóveis), o leiloeiro judicial (para a alienação de bens móveis) ou as próprias autoridades administrativas (à semelhança do commissario ad acta do direito italiano).7 Ressalte-se, contudo, que o Código de Jurisdição Administrativa (§ 170, 3) impede que a constrição recaia sobre bens pertencentes ao domínio público imprescindíveis ao exercício das funções públicas ou cuja venda seja contrária ao interesse público, tais como veículos da polícia e dos bombeiros, transportes coletivos, edifícios da Administração, museus, etc. A impenhorabilidade abrange, ainda, os fundos públicos destinados ao pagamento de créditos vencidos, mas não os demais créditos e direitos patrimoniais. Pode-se afirmar, assim, que o Direito alemão somente permite a constrição sobre bens pertencentes ao patrimônio financeiro da Administração, e não ao patrimônio administrativo. A Administração devedora pode formular objeção unicamente no que se refere à indispensabilidade do bem para o cumprimento de suas funções públicas ou que a alienação seja contrária ao interesse público, cabendo recurso contra a decisão que a rejeitar. Na prática, a execução forçada somente é levada a efeito em alguns poucos casos, em razão da cultura administrativa dominante de acatamento às decisões judiciais, corolário da estrita observância da Administração alemã ao princípio da legalidade, que inclui o dever de cumprir as decisões dos tribunais. Esta cultura encontra suas raízes no consenso formado na sociedade alemã após a Segunda Grande Guerra acerca da necessidade de preservar os direitos fundamentais do indivíduo em face do Estado. Neste sentido já afirmava O. Mayer: “Simplesmente torna-se dever das autoridades de finanças zelar para que seja saldada a dívida do Estado. Às responsabilidades funcionais, legais e constitucio-

7   Na Itália, o juiz administrativo nomeia comissários ad acta para exercerem atividades em substituição à Administração inadimplente.


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nais dos funcionários pertence a última palavra. E, por fim, deve tudo isto ser informado por um sadio sentimento de Justiça de parte da coletividade, sem o qual o mais belo direito administrativo nada poderá obter.”8 A Federação e os Estados não podem ser submetidos a processo de insolvência, conforme reconhecido pela jurisprudência da Corte Constitucional e positivado no §12, I da Lei de Insolvência (Insolvenzordnung). Tal garantia, em princípio, não se estende às demais pessoas jurídicas de direito público, como os municípios, salvo se assim determinar a legislação estadual, o que, na prática, comumente ocorre.9 Por fim, pode-se afirmar que o direito alemão busca alcançar o equilíbrio entre a tutela dos direitos subjetivos do cidadão e a continuidade da prestação dos serviços públicos, através de um sistema que protege os bens indispensáveis da Administração, mas, por outro lado, permite a expropriação forçada do patrimônio que não esteja afetado ao cumprimento de suas tarefas essenciais. 3. Execução contra a administração nos Estados Unidos da América 3.1 Imunidade soberana O direito americano adotou a doutrina da imunidade soberana vigente no direito anglo-saxão, em especial na Inglaterra, pela qual o rei não podia ser processado, sem o seu consentimento, perante a sua própria corte (conhecida como The king can do no wrong). Apesar de não haver norma expressa na Constituição dos Estados Unidos, esta doutrina foi acolhida pela Suprema Corte em 1793.10 Em 1896, a Suprema Corte estendeu esta proteção aos atos praticados por funcioná-

8   MAYER, 1924 apud BLANKE, Hermann-Joseph. El Patrimonio Financiero como Bien Público Ejecutable em el Derecho Alemán, Hermann-Joseph Blanke. In: PERLINGEIRO, Ricardo (Org.). Execução contra a Fazenda Pública. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, CJF, 2003. p. 433-447. 9   Em todos os estados alemães a legislação exclui o patrimônio dos municípios dos processos de insolvência, à exceção do estado de Mecklenburg-Vorpommern. 10   Chisholm vs Georgia, 2 U.S. (2 Dall.) 419 (1793)


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rio público, se a ação afetar as relações dos Estados Unidos ou seus bens.11 Contudo, o ato ilegal ou que extrapole a autoridade do funcionário não está abrangido pela imunidade soberana. No âmbito dos Estados, em razão da 11ª Emenda à Constituição americana – que impede o ajuizamento de ações pelos cidadãos contra seus próprios Estados em tribunais federais – também vigora a regra da imunidade soberana, com a disciplina prevista na respectiva Constituição estadual. Os Estados Unidos renunciaram a sua imunidade soberana no Ato de Litígios Contratuais de 1978, no Ato de Tucker e no Ato de Demandas. 3.2 O Ato de Litígios Contratuais de 1978 O Ato de Litígios Contratuais de 1978 (Contract Disputes Act of 1978) é aplicável às controvérsias contratuais entre particulares e órgãos da Administração Pública. Através dele, o Poder Executivo renúncia à imunidade soberana e submete-se à jurisdição dos tribunais federais. Contudo, faz-se necessário o prévio esgotamento da instância administrativa, antes da instauração de um processo de reparação, exceto nos contratos marítimos. O ato não se aplica aos contratos celebrados com governos ou órgãos públicos estrangeiros, ou organizações internacionais, se o chefe do órgão contratante determinar que essa aplicação seria contrária ao interesse público. Por outro lado, suas disposições regem as atividades dos fundos não-apropriados sobre os quais os tribunais atualmente possuem jurisdição. 3.3 Ato de Tucker Através do Ato de Tucker (Tucker Act) o governo americano renunciou à sua imunidade soberana em litígios fundados na Constituição, em ato do Congresso ou em regulamento de departamento do Poder Executivo, bem como em pretensão de condenação por perdas e danos não baseada em delito civil. Também submetem-se ao ato as controvérsias decorrentes de contratos celebrados com algumas agências do Departamento de Defesa dos Estados Unidos (Army and Air Force Exchange Service, Navy Exchange, Marine Corps Exchange, Coast Guard 11   Stanley vs Scwalby, 162, U.S. 255 (1896)


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Exchange e NASA). O Ato de Tucker permite ao tribunal emitir mandados dirigidos a qualquer oficial competente dos Estados Unidos, com as determinações que julgar adequadas e justas, tais como, recondução ao cargo, aposentadoria, etc. O ato pode ser dividido em “Big” Act Tucker, que se aplica às reivindicações acima de US $ 10.000 e dá jurisdição exclusiva ao Tribunal de Ações Federais, e o “Little” Tucker Act (28 USC § 1346), relativo aos créditos inferiores a US $ 10.000, que dá competência concorrente ao Tribunal de Ações Federais e aos Tribunais Distritais. 3.4. Ato de demandas extracontratuais O Ato de Demandas Extracontratuais (Tort Claims Act) autoriza o ajuizamento de ações civis contra os Estados Unidos, perante os Tribunais Federais, nas hipóteses de ressarcimento de tributos ou qualquer outra ação civil não superior a US $ 10.000,00. O Federal Tort Claims Act, promulgado em 1946, ampliou a renúncia da imunidade soberana do governo federal. Ele admite a responsabilidade civil dos Estados Unidos nos casos de danos causados por ato negligente ou doloso ou omissão de qualquer funcionário federal, agindo no âmbito de sua função, nas hipóteses em que uma pessoa privada pudesse ser responsabilizada pela demanda.12 Há três importantes exceções a esta regra, nas quais a Administração Pública americana não pode ser responsabilizada: a chamada doutrina Feres,13 que confere imunidade nos casos de ferimentos sofridos por militares em serviço; a discricionariedade, que imuniza os Estados Unidos por atos ou omissões de seus empregados que envolvam decisões políticas, ainda que o funcionário tenha agido de forma negligente no desempenho de seu poder discricionário; e a exceção do delito intencional, que impede ações contra o governo americano por assalto e agressão, dentre outros delitos intencionais, a menos que sejam cometidos em 12   “Public employers shall be liable for injury or loss of property, or personal injury or death caused by the negligent or wrongful act or omission of any employee of the government while acting within the scope of his office or employment, under circumstances where the United States, if a private person would be liable to the claimant in accordance with the law of the place where the act or omission occurred.” 28 U.S.C. § 1346(b). 13   Feres v. United States, 340 U.S. 135 (1950)


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razão da aplicação da lei federal ou por funcionários de investigação. Além destas exceções, os Estados Unidos não podem ser responsabilizados por juros antes do julgamento ou por danos punitivos (28 USC § 2674), pelo ato ou omissão de um funcionário que atue com o devido cuidado na execução de uma lei inválida ou regulamento (28 USC § 2680), pelas reivindicações decorrentes da perda ou da transmissão negligente de cartas ou material postal, pelas reivindicações decorrentes do lançamento ou cobrança de qualquer imposto ou direitos aduaneiros, ou a detenção de quaisquer bens, mercadorias ou outros bens por qualquer funcionário da alfândega, pelas reivindicações causadas pelas operações fiscais do Tesouro ou pela regulação do sistema monetário, pelas reivindicações decorrentes de atividades militares; ou reclamações provenientes de um país estrangeiro. 3.5 Execução de sentenças não-pecuniárias contra os EUA As sentenças não-pecuniárias (others than money judgments) são aquelas que impõem ao réu a obrigação de dar coisa diversa de dinheiro, de fazer ou de não-fazer, além das sentenças declaratórias e constitutivas. As sentenças não-pecuniárias são executadas mediante meios livremente estabelecidos pelo juiz, que deve fixar as medidas mais adequados a cada caso. Não há necessidade de autorização legislativa expressa para a fixação destas medidas, pois se entende que este é um poder inerente à jurisdição. Estes meios podem ser sub-rogatórios, pelos quais o juiz realiza a prestação devida substituindo-se ao devedor, ou coercitivos, com as quais ameaça o devedor a fim de induzi-lo a cumprir a prestação devida. As medidas coercitivas mais comuns no direito americano são a prisão civil e a multa. 3.6 Execução de sentenças pecuniárias contra os EUA O procedimento para a execução de sentenças por quantia certa contra o governo americano é disciplinado pelo Code of Federal Regulations (Pt. 256).14 Originalmente, no caso de condenações superiores a US$ 100.000, o credor

14   Disponível em <http://www.gpo.gov/fdsys/pkg/CFR-2002-title31-vol2/xml/CFR-2002-title31-vol2-part256.xml>, acesso em 30/07/2013


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deveria, através do Tribunal Federal de Demandas, enviar os autos originais da sentença ao Secretário do Tesouro, que solicitava ao Congresso a apropriação do pagamento. Após, o Gabinete-Geral de Contabilidade (Government Accountability Office - GAO), órgão vinculado ao Congresso, transmitia um certificado de liquidação ao Departamento de Tesouro. Com o passar do tempo, como a quantidade de condenações em valor superior a US$ 100.000 aumentou consideravelmente, o Congresso transferiu a competência para certificar o pagamento do GAO para o Financial Management Service, órgão do Departamento de Tesouro, que faz o pagamento diretamente ao credor através de cheque enviado pela via postal. Para as condenações inferiores a US$ 100.000, o procedimento era semelhante, exceto pelo fato de não haver atuação prévia do Departamento do Tesouro. Atualmente, em razão de não haver mais intervenção do Congresso no pagamento, o procedimento é único independentemente do valor da execução. Em regra, os recursos destinados ao cumprimento de sentenças judiciais contra a Administração são oriundos de um fundo permanente (Judgment Fund). Este fundo foi instituído em 1956 com o escopo de agilizar os pagamentos e reduzir o lançamento de juros contra o governo (nas hipóteses em que esta incidência seja permitida). O Fundo de Sentenças não está limitado ao ano contábil e o Congresso não está obrigado a destinar-lhe recursos anualmente, ou de forma periódica. Ele está disponível para o pagamento de sentenças que não podem ser apropriadas por outra via ou por um fundo já existente.15 O órgão cuja atuação gerou a condenação não está obrigado a reembolsar o fundo, salvo disposição legal em contrário. Admite-se a compensação de dívida do exequente com o governo americano por ocasião do pagamento do valor fixado na condenação. No caso United States vs Cohen, o Tribunal Federal de Apelação entendeu que o governo tem o direito de utilizar o valor da condenação para extinguir dívidas do contribuinte. 3.7 Execução de sentença no writ of mandamus Nos Estados Unidos, o writ of mandamus possui a finalidade de compelir um órgão, um oficial ou um funcionário americanos a cumprir uma obrigação legal. 15   Algumas situações em que não cabe o uso do Fundo de Sentenças: sentenças tributárias, sentenças em ações de desapropriação, etc.


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A competência originária para sua apreciação é do Tribunal Distrital e a ação somente é cabível para a prática de ato não discricionário, tratando-se de instrumento processual subsidiário, ou seja, somente é cabível quando outros meios estejam esgotados.16 No que se refere à execução de sentenças que concedem a ordem, a legislação americana autoriza o tribunal a suspender, de ofício ou a requerimento da parte, o ato impugnado ou a adotar as medidas necessárias para assegurar o direito do autor. Para isto, o tribunal expede uma ordem de execução (writ of execution), que deverá ser cumprida no prazo fixado (normalmente 30 dias), sob pena de contempt of court e consequente ação indenizatória contra a autoridade responsável. Em se tratando de situação em que haja perigo de dano irreparável, a parte deve apresentar uma interlocutory injunction, que deve ser decidida no prazo de 5 dias. No caso de obrigações de fazer, o tribunal pode estabelecer medidas específicas para o cumprimento da obrigação (dispositive order ou remedial decree), igualmente sob pena de contempt of court, tanto contra agentes públicos como particulares. Nas ações coletivas (class actions), o Tribunal nomeia um ou mais responsáveis pela execução (receive ou master), normalmente magistrados, advogados ou profissionais de renomada reputação, que disporão das faculdades e da estrutura necessárias ao cumprimento da sentença. 4. Execução contra a administração pública na Argentina 4.1 Antecedentes Tradicionalmente, o direito argentino conferia efeito meramente declaratório às sentenças condenatória em face do Estado, com fundamento na Lei 3.952 de 1900, que permitia o ajuizamento de demandas contra o Poder Público, mas obstava a execução da sentença. 16   A Suprema Corte americana estabeleceu orientações sobre os mandados de segurança em Kerr v United States District Court, 426 EUA 394, 96 S. Ct. 2119, 48 L. Ed. 2d 725 (1976). Neste precedente, a Suprema Corte entendeu que o writ interposto contra decisão judicial somente seria cabível se o tribunal decidisse erroneamente um problema, se a falha para reverter essa decisão tivesse prejudicado irreparavelmente uma parte e se não houvesse outro método para a correção do ato.


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Contudo, a Suprema Corte argentina abandonou esta concepção em 1966, no caso Pietranera Josefa e outros contra o Governo Federal, quando a Corte passou a entender que a Lei 3.952 tinha por objetivo evitar a perturbação da marcha normal da Administração, mas de forma alguma autorizava o descumprimento de decisões judiciais pelo Estado, sob pena de colocá-lo fora do ordenamento jurídico. Entendeu a Corte que era possível uma intervenção judicial na hipótese de uma desarrazoada demora da Administração para o cumprimento da sentença. A partir deste precedente, passou-se a exigir que o Estado fosse intimado para informar o prazo em que o pagamento seria feito, sob pena de, mantendo-se em silêncio ou fixando um prazo excessivo, o juiz estabelecer o prazo de cumprimento da obrigação. Em 1991, a Lei nº 23.982, invocando razões de emergência, estabeleceu a consolidação das dívidas do Estado e dilatou o pagamento por 16 anos, permitindo ao credor o recebimento em títulos da dívida pública. O citado diploma legal também estabeleceu o procedimento para a execução pecuniária em face do Estado, que será adiante analisado. A partir desta lei, considera-se definitivamente derrogada a Lei 3.952. 4.2 Execução forçada por quantia certa Com advento da Constituição de 1994, que estabeleceu a ação de amparo em seu art. 43,17 a doutrina argentina passou a extrair deste dispositivo o fundamento do direito à tutela judicial efetiva e, como consequência, a possibilidade de o juiz exercer plenamente o seu imperium, inclusive em face da Administração Pública. No plano infraconstitucional, a execução de sentença por quantia certa no direito argentino encontra-se disciplinada no artigo 22 da Lei 23.982/91, já referido anteriormente. O princípio geral estabelecido nesta norma é de que o crédito deve ser satisfeito no exercício financeiro seguinte ao ano de seu reconhecimento definitivo,

17   “ Art. 43.- Toda persona puede interponer acción expedita y rápida de amparo, siempre que no exista otro medio judicial más idóneo, contra todo acto u omisión de autoridades públicas o de particulares, que en forma actual o inminente lesione, restrinja, altere o amenace, con arbitrariedad o ilegalidad manifiesta, derechos y garantías reconocidos por esta Constitución, un tratado o una ley. En el caso, el juez podrá declarar la inconstitucionalidad de la norma en que se funde el acto u omisión lesiva.”


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destacando-se que, na Argentina, o ano orçamentário encerra-se em 30 de novembro. Caso não tenha havido a inclusão da verba no orçamento até esta data, a Lei Permanente de Orçamento permite a inclusão no ano subsequente, com o que se admite a dilação do prazo por até cerca de 2 anos. A omissão, negligente ou dolosa, da inclusão no orçamento da verba necessária ao cumprimento de sentença judicial pela autoridade pública poderá causar a sua responsabilização funcional, nos termos do art. 42 da Lei 24.156. Destaque-se que o prazo de espera não se aplica às ações de desapropriação, por força de norma constitucional expressa que determina a indenização prévia (art. 17).18 Uma vez transcorrido o prazo de pagamento, o credor pode requerer a execução forçada da sentença, que poderá incidirá sobre bens móveis e imóveis não afetados ao domínio público. Já afirmou a Corte Suprema argentina que um bem estará afetado ao domínio público por um feito ou por uma manifestação de vontade do poder público, quando haja sido incorporado a um uso ou proveito comum.19 A Corte admite a penhora de dinheiro, como se depreende do seguinte julgado: “O dinheiro, em seu caráter de coisa fungível que pode ser substituída por outra da mesma quantidade, não é equiparável aos bens do Estado afetados a um serviço público”. (Julgados: 116:80-81; 119:373) 5. Execução contra a Administração Pública no direito brasileiro No Brasil, a execução de sentenças contra a Administração Pública é tratada de forma assistemática. A execução de sentenças que condenam o Estado a uma obrigação de fazer ou não fazer é disciplinada pelo Código de Processo Civil e segue rito idêntico ao aplicado aos particulares. No que se refere à execução por quantia certa, há necessidade de observância do regime do precatório judicial, cuja disciplina encontra-se no artigo 100 da Constituição Federal.

18   “Art. 17.- La propiedad es inviolable, y ningún habitante de la Nación puede ser privado de ella, sino en virtud de sentencia fundada en ley. La expropiación por causa de utilidad pública, debe ser calificada por ley y previamente indemnizada. (...)” 19   Julgados 149: 71/76 e 161: 420/6


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Ricardo Perlingeiro afirma que o precatório judicial não constitui procedimento de execução, em razão da impossibilidade de expropriação forçada dos bens do Estado para a satisfação do direito do credor. Em sua concepção, trata-se de um procedimento administrativo, de natureza voluntária, uma vez que a satisfação do crédito depende de prévia disponibilidade orçamentária.20 No mesmo sentido é o magistério de Humberto Theodoro Júnior, para quem o procedimento “não tem a natureza própria da execução forçada, visto que se faz sem penhora e arrematação, vale dizer, sem expropriação ou transferência forçada de bens”.21 Nesta perspectiva, não se pode falar em execução forçada, pois não há substituição da vontade do devedor pela atividade jurisdicional. Fundada nesta mesma constatação, parcela da doutrina prefere afirmar que se trata de execução imprópria,22 o que não altera a essência do instituto do precatório. E isso é assim porque a jurisprudência nacional, fundada no dogma da total impenhorabilidade dos bens públicos, não admite a expropriação forçada para o cumprimento de decisões judiciais. Não obstante, mais recentemente, parcela da doutrina vem reconhecendo a possibilidade, em determinadas hipóteses, de constrição judicial de bens públicos. Ricardo Perlingeiro, de forma pioneira, já sustentava a admissibilidade de penhora sobre bens públicos em obra doutrinária.23 A jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal nega-se a autorizar a constrição de bens da Administração Pública para o pagamento de seus débitos, salvo na hipótese de preterição da ordem de precedência dos credores. O acórdão a seguir transcrito ilustra este entendimento: “Reclamação - Ordem de sequestro de verbas públi-

20   PERLINGEIRO, Ricardo. Redefinição de Papéis na Execução de Quantia Certa contra a Fazenda Pública (2005). Revista CEJ, Brasília, No. 31, p. 68- 74, 2005. Disponível em <http:// ssrn.com/abstract=2250524> 21   THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução. 23. ed., rev. e atual. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2005, p. 425 22    GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 94 23   PERLINGEIRO, Ricardo. Execução contra a Fazenda Pública. Rio de Janeiro: Malheiros, 1999


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155 cas - Trânsito em julgado não caracterizado - ofensa ao entendimento firmado na ADI nº 1.662/SP. 1. Natureza administrativa das decisões da presidência dos Tribunais no cumprimento dos precatórios judiciais, caráter que se estende também às decisões colegiadas dos recursos internos contra elas interpostos. Não há que se falar em trânsito em julgado, pois esse pressupõe decisão proferida por órgão do Poder Judiciário no exercício de sua função jurisdicional. 2. O vencimento de prazo legal para pagamento de precatório não é motivo suficiente para dar ensejo ao sequestro de verbas públicas, uma vez que não se equipara à preterição da ordem de precedência. 3. Reclamação procedente, agravos regimentais prejudicados.” (Rcl 2425, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 06/03/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-063 DIVULG 05-04-2013 PUBLIC 08-04-2013)

Não obstante, em casos excepcionais, nos quais o Poder Judiciário se vê diante da necessidade de conferir efetividade a direitos fundamentais de maior envergadura, como o direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal vem admitindo a mitigação do regime constitucional do precatório: “AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTOS. FORNECIMENTO A PACIENTES CARENTES. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. I - O acórdão recorrido decidiu a questão dos autos com base na legislação processual que visa assegurar o cumprimento das decisões judiciais. Inadmissibilidade do RE, porquanto a ofensa à Constituição, se existente, seria indireta. II - A disciplina do art. 100 da CF cuida do regime especial dos precatórios, tendo aplicação somente nas hipóteses de execução de sentença condenatória, o que não é


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Revista da Ajufe o caso dos autos. Inaplicável o dispositivo constitucional, não se verifica a apontada violação à Constituição Federal. III - Possibilidade de bloqueio de valores a fim de assegurar o fornecimento gratuito de medicamentos em favor de pessoas hipossuficientes. Precedentes. IV - Agravo regimental improvido.” (AI 553712 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 19/05/2009, DJe-104 DIVULG 0406-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-09 PP-01777 RT v. 98, n. 887, 2009, p. 164-167).

5.1 Do novo panorama após o advento da EC 62/2009 A EC 62/2009 promoveu uma série de modificações no regime do precatório judicial, alterando o artigo 100 da Constituição e inserindo o art. 97 no ADCT. Em apertada síntese, a EC 62/2009 instituiu um regime especial para pagamento dos precatórios dos Estados e Municípios, admitindo um parcelamento de até 15 anos dos precatórios vencidos (prorrogando, na prática, o parcelamento de 10 anos que havia sido criado pela EC 30/2000). A referida emenda determinou, ainda, que a quitação dos débitos da Fazenda Pública se desse através de depósitos mensais em conta judicial administrada pelo Tribunal competente, cujos valores seriam calculados sobre percentual incidente sobre a receita corrente líquida destes entes federativos (variável de 1% a 2%). Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADI 4357, 4372, 4400 e 4425 julgou inconstitucional o regime especial de parcelamento previsto no art. 97 do ADCT. A Corte também reputou inválida a possibilidade de compensação de precatórios judiciais com débitos do exequente perante a Fazenda Pública e a instituição do índice de correção das cadernetas de poupança para a atualização do valor devido pela Administração. Entendeu a Suprema Corte que o regime especial de parcelamento, ao prorrogar por 15 anos o cumprimento de sentenças judiciais transitadas em julgado, subverteria os valores do Estado de Direito, do devido processo legal, do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário e da razoável duração do processo. Importante ressaltar que a EC-62/2009 introduziu no texto permanente da


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Constituição a possibilidade de sequestro de verba pública em caso de descumprimento do precatório judicial por ausência de previsão orçamentária, como se pode verificar da nova redação do §6º do artigo 100: § 6º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exequenda determinar o pagamento integral e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de precedência ou de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito, o sequestro da quantia respectiva. Ocorre que a eficácia desta norma havia sido suspensa pela própria EC 62/2009, relativamente aos Estados e Municípios que aderissem ao regime especial, nos termos do § 13 do art. 97 do ADCT: “§ 13. Enquanto Estados, Distrito Federal e Municípios devedores estiverem realizando pagamentos de precatórios pelo regime especial, não poderão sofrer sequestro de valores, exceto no caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1º e o § 2º deste artigo.” Entretanto, como dito, o regime especial previsto no art. 97 do ADCT foi integralmente declarado inconstitucional pelo STF, inclusive o §13 acima transcrito, o que significa dizer que, a partir desta decisão (ou do momento que vier a ser estabelecido pela Corte em razão da possibilidade de modulação de seus efeitos), o §6º do artigo 100 passou a ter eficácia plena, já que a norma que impedia a produção dos seus efeitos foi eliminada do ordenamento jurídico. Por via de consequência, atualmente o texto permanente da Constituição possui previsão expressa de sequestro de valores para pagamento aos credores do Poder Público, não apenas nas hipóteses de descumprimento do par-


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celamento (como já havia sido fixado em suas disposições transitórias), mas em qualquer caso em que não ocorra o cumprimento da sentença por falta de previsão orçamentária. Pode-se afirmar, portanto, que a partir da decisão proferida nas ADI 4357, 4372, 4400 e 4425, o ordenamento jurídico brasileiro admite a execução forçada em face da Administração Pública, na hipótese de falta de previsão orçamentária para o pagamento dos precatórios judiciais. Entendo não haver qualquer vício na norma constitucional em comento, pois a constrição de bem público para a satisfação de título judicial pode ser prevista até mesmo pelo legislador infraconstitucional, como aliás já ocorre nas hipóteses de execução de quantias consideradas de pequeno valor no âmbito federal, nos termos do artigo 17 da Lei 10.259/01,24 cujo parágrafo 2º estabelece a hipótese de sequestro da quantia em caso de não pagamento no prazo de 60 dias. 6. Conclusão Como exposto neste artigo, em países como Alemanha, Estados Unidos e Argentina o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos é mitigado, a fim de se permitir a expropriação judicial em caso de não cumprimento voluntário da sentença pela Administração Pública. Do mesmo modo, no direito português25 e no direito espanhol26 admite-se a penhora de bens públicos dominiais para a satisfação do direito do credor fixado no título judicial. De maneira geral, no direito comparado concede-se um prazo para que a Administração Pública cumpra espontaneamente a sentença condenatória, através da inclusão do valor necessário à satisfação do crédito no orçamento público, à semelhança do que ocorre no Brasil. Contudo, em caso de inércia da Administração, abre-se a possibilidade de execução forçada sobre seus bens, em regra apenas aqueles não afetados a um serviço ou destinação públicos. 24   “§ 2o Desatendida a requisição judicial, o Juiz determinará o sequestro do numerário suficiente ao cumprimento da decisão.” 25   Art. 822, b e art. 823, 1 do Código de Processo Civil português 26   Vide Sentença nº 166/1998 do Tribunal Constitucional Espanhol


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A experiência obtida no direito comparado revela que a simples possibilidade de execução forçada reduz em muito os casos de descumprimento de sentenças pecuniárias pela Administração, o que termina por gerar uma cultura virtuosa de acatamento às decisões judiciais no âmbito da própria Administração, como bem nos revela os exemplos alemão e norte-americano, já estudados. Em nosso país, contudo, a falta de previsão de uma sanção adequada à Administração Pública pelo não pagamento de seus débitos,27 em especial no âmbito dos Estados e Municípios – maiores renitentes em alocar recursos orçamentários para a satisfação integral dos débitos judiciais – contribuiu para o descrédito do regime do precatório judicial.28 Após a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade do regime especial de pagamento de precatórios instituído pela EC-62/2009, espera-se que um novo cenário surja no ordenamento brasileiro, eis que a norma prevista no § 13 do artigo 100 ganhou plena eficácia, permitindo o sequestro da quantia na hipótese de não cumprimento voluntário da obrigação de pagar fixada em sentença condenatória transitada em julgado. Pode-se afirmar que este panorama já chega com grande atraso em nosso ordenamento, pois é assente no direito comparado que a possibilidade de execução forçada contra a Fazenda Pública é consequência indissociável do Estado de Direito e do princípio da inafastabilidade da jurisdição, que entre nós está positivado no inciso XXXV do art. 5º da Carta da República. Registre-se, ainda, que o Pacto de São José da Costa Rica, incorporado ao nosso ordenamento jurídico interno, outorga o direito à tutela efetiva em seu artigo 25, bem como o Código Modelo de Processos Administrativos – Judicial e Extrajudicial – para Ibero-América, que consagra no caput do artigo 36 o direito à tutela jurisdicional efetiva e estabelece expressamente em seu parágrafo 3º que “o

27   A única sanção admitida pelo STF para o caso de descumprimento de precatório judicial – a intervenção federal – não vem sendo admitida nas hipóteses concretas levadas à Corte, sob o fundamento de que não haveria configuração de atuação dolosa e deliberada do ente público com finalidade de não pagamento. (Veja, dentre inúmeros outros precedentes, a IF 3601, Tribunal Pleno, julgado em 08/05/2003) 28   No julgamento conjunto das ADI 4357, 4372, 4400 e 4425 o relator afirmou que não faltaria dinheiro para o adimplemento dos precatórios, mas sim compromisso dos governantes quanto ao cumprimento de decisões judiciais. Observou-se que o pagamento dos precatórios não se contraporia, de forma inconciliável, à prestação de serviços públicos.


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Estado garantirá o cumprimento das decisões judiciais contra a Administração”. Isso é assim porque de nada adiantaria assegurar-se o acesso formal do cidadão ao Poder Judiciário se não lhes fosse garantida, na mesma medida, uma tutela judicial efetiva, capaz de proporcionar, no plano material, a proteção de seus direitos fundamentais frente ao Poder Público.


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Os efeitos da dualidade de instâncias no direito antitruste brasileiro e breve anålise jurisprudencial


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Marcelle Ragazoni Carvalho Juíza federal 2ª vara Gabinete de Osasco/SP

Resumo: Considerando que a Constituição Federal, ao estabelecer no seu art. 5º, inciso XXXV, a garantia fundamental da inafastabilidade do controle do Judiciário sobre qualquer lesão ou ameaça a direito, instituiu a dualidade de instâncias no ordenamento jurídico brasileiro, diversas questões surgem acerca da revisibilidade das decisões administrativas pelo Poder Judiciário. Embora não haja muitas divergências acerca da possibilidade de revisão das decisões administrativas pelo Judiciário, no âmbito do processo judicial, dúvidas surgem a respeito dos limites de atuação desse Poder, ou seja, se o controle pode ser amplo ou restrito a alguns aspectos do ato administrativo. A questão ganha relevância, principalmente, em razão da projeção que teve o CADE recentemente e da sua atuação mais combativa no tocante à defesa da concorrência, sistema que ganhou novos contornos após a vigência da Lei nº 12.529/2012, notadamente os atos de conduta, os quais são mais comumente levados ao conhecimento do Judiciário, em comparação com os atos de concentração. Com isso, a tendência é que um maior número de casos envolvendo decisões proferidas pelo CADE chegue ao Judiciário para análise e controle, sendo importante, portanto, o estudo dos limites da atuação judicial, tendo em vista as características especiais da atuação administrativa nesses casos específicos. Palavras-chave: Direito antitruste. Direito Administrativo. Ato administrativo. Vinculação. Discricionariedade. Separação de poderes. Controle judicial das decisões do CADE. Jurisprudência brasileira. Abstract: Taking into account that the Federal Constitution, while establishing in article 5th, XXXV, the fundamental guarantee of the right to evoke jurisdiction, it also established the right to judicial review in the Brazilian legal system. Therefore, several questions arise about the act of reviewing


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administrative decisions by the judiciary. Although there aren’t many divergences about the possibility of courts reviewing administrative decisions, questions arise about the limits of that power, mainly whether the control can be extended or limited to certain aspects of the administrative act. The issue becomes relevant particularly due to the importance recently given to CADE – Administrative Council of Economic Defense - and its increasingly combative action regarding the antitrust system that gained new dimensions after Law n. 12.529/2012 was enacted, mainly the acts of conduct, which are most commonly brought to the attention of the judiciary, in comparison with the merger. Thus, there is a trend of a greater number of cases involving decisions rendered by CADE reaching the Judiciary for analysis and control. Consequently, it’s important to study the limits of judicial action and the special characteristics of the administrative action in these specific cases. Keywords: Antitrust law. Administrative Law. Administrative act. Binding. Discretion. Separation of powers. Judicial review of CADE’s decisions. Brazilian jurisprudence. Título: Os efeitos da dualidade de instâncias no direito antitruste brasileiro e a análise do direito comparado.1

1. Introdução O escopo do presente trabalho é analisar a doutrina e a jurisprudência brasileiras no tocante ao controle, pelo Judiciário, das decisões administrativas proferidas pelo CADE. É inconteste, no Brasil, a existência de duas instâncias – administrativa e judicial – autônomas e independentes, decorrência do sistema de separação

1   Projeto de pesquisa produzido para o Programa de bolsa de estudos em direito concorrencial e direito econômico oferecido pelo Cedes – Centro de Estudos de Direito Econômico e Social – em convênio com o King’s College London.


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de poderes albergado pela nossa Constituição. A dualidade de instâncias e as características próprias do Poder Judiciário fazem com que somente as decisões deste tenham o caráter de definitividade, não comportando revisão no âmbito de outro Poder. No entanto, a Administração, embora adstrita à lei, tem também certa margem de liberdade na sua atuação, havendo, portanto, limites para o controle judicial dos atos por ela praticados. A questão ganha contornos especiais quando se trata da revisão das decisões administrativas do CADE, órgão que tem características diferenciadas, especialmente por ser técnico, cuja natureza jurídica será analisada adiante. Apesar disso, suas decisões, como órgão administrativo que é, são também atos administrativos. Assim, pra definir os limites da intervenção do Judiciário, primeiramente, é preciso distinguir os tipos de atos administrativos e analisar seus requisitos de validade e eficácia, o conteúdo, a discricionariedade, o conceito de mérito, etc., questões que virão à tona sempre que se tratar da revisão de um ato administrativo pelo Judiciário. Consequentemente, se faz necessário um breve estudo da doutrina da separação de poderes e do direito administrativo, especialmente quanto ao controle dos atos da Administração, ao conceito de ato administrativo e, especificamente, de ato discricionário e vinculado. 2. O controle da Administração Pública A teoria clássica da separação de poderes, concebida por Montesquieu, apresentou a divisão das funções típicas do Estado entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, concebida como uma forma de garantia da sociedade contra os abusos do Governo e também como forma de organização e controle da Administração, através do sistema de freios e contrapesos.2 O controle da Administração pelos outros Poderes, no caso específico, pelo Judiciário, tem por objetivo assegurar a observância dos princípios estabelecidos constitucionalmente e que devem reger a sua conduta. 2   FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 77.


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Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, pode-se definir o controle da Administração Pública como o poder de fiscalização e correção que sobre ela exercem os órgãos dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, com o objetivo de garantir a conformidade de sua atuação com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico.3 Além da observância dos princípios constitucionais, que conferem legitimidade ao ato administrativo, este também deve observar fielmente o disposto em lei. É certo que se presume de plano a legalidade e a legitimidade do ato administrativo, cabendo ao administrado a prova em sentido contrário. Portanto, ao Judiciário, caso questionadas a validade e a eficácia do ato administrativo, caberá confirmar sua validade ou invalidá-lo, caso haja provas suficientes de que o ato não observou os preceitos legais e constitucionais a ele inerentes. Tendo em vista a previsão constitucional expressa de inafastabilidade do Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição), conclui-se que no Brasil a função jurisdicional foi atribuída com exclusividade ao Poder Judiciário, de modo que apenas este tem o poder de proferir decisões resguardadas pela efetividade da coisa julgada. Nosso ordenamento jurídico adotou, assim, “o sistema da jurisdição una”,4 em contraponto aos países que utilizam o sistema do contencioso administrativo, no qual órgãos administrativos exercem também a função jurisdicional em lides envolvendo a Administração Pública. Dessa forma, diante da garantia constitucional de se recorrer ao Judiciário sempre que verificadas lesão ou ameaça a direito, é possível concluir que toda decisão administrativa está sujeita ao controle judicial. É preciso, assim, traçar os limites e as características desse controle. 3   DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 637. 4   DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ibid. p. 654.


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Para tanto, há que se fazer algumas considerações sobre o ato administrativo. 2. Conceito e características do ato administrativo Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua ato administrativo como sendo Declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.5 Assim, segundo o autor, a possibilidade de controle de legitimidade por órgão jurisdicional faz parte da própria definição de ato administrativo. Maria Sylvia Zanella di Pietro também menciona expressamente a possibilidade de controle judicial, definindo o ato administrativo como “a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”.6 Diferencia-se o ato administrativo dos atos jurídicos em geral em razão das suas peculiaridades, entre elas a presunção de legitimidade e a veracidade, que dizem respeito à conformidade do ato com a lei e com os princípios que regem a Administração Pública e com a veracidade dos fatos alegados pela Administração como motivação para o ato. Além disso, em decorrência do regime público a que está submetido, goza das características da imperatividade e da autoexecutoriedade. Os atos administrativos podem ainda ser classificados segundo diferentes parâmetros, interessando ao presente estudo a classificação dos atos em discricionários e vinculados, o que terá reflexos quanto ao controle sobre eles exercidos. 5    MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito administrativo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 389. 6   Ibid. p. 189.


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Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, atos discricionários, ou atos praticados no exercício de competência discricionária, seriam “os que a Administração pratica dispondo de certa margem de liberdade para decidir-se, pois a lei regulou a matéria de modo a deixar campo para uma apreciação que comporta certo subjetivismo”. Já os atos vinculados seriam aqueles que “a Administração pratica sem margem alguma de liberdade para decidir-se, pois a lei previamente tipificou o único possível comportamento”.7 Nesses casos, não há espaço para qualquer apreciação subjetiva por parte da Administração. Para serem válidos e aptos a produzirem efeitos, os atos administrativos devem cumprir os requisitos essenciais relacionados a competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Porém, quanto aos atos administrativos discricionários, a lei não regulou inteiramente o seu conteúdo, deixando ao administrador a possibilidade de escolha, dentre as soluções possíveis, daquela que parecer mais conveniente e oportuna ao interesse da Administração. Tendo em vista a classificação dos atos administrativos em atos vinculados e discricionários, ganha relevo a definição do chamado “mérito” do ato administrativo. O mérito está relacionado com o ato administrativo discricionário e corresponde justamente ao campo de liberdade conferido pela lei, para que o administrador possa escolher, entre duas opções viáveis, aquela que melhor atende à finalidade da lei. A discricionariedade, porém, tem limites, que devem ser observados, sob pena de invalidade do ato. Assim, também o ato discricionário pode sofrer controle, pois, ainda que se confira margem de decisão ao administrador quanto ao conteúdo, os demais requisitos, como finalidade e motivo, são vinculados. 3. Revisão dos atos administrativos pelo Poder Judiciário É assente na jurisprudência brasileira que cabe aos tribunais o controle quanto à legalidade dos atos administrativos. Como exposto acima, para serem válidos e eficazes, os atos administrativos devem cumprir todos os requisitos relacionados a competência, finalidade, forma, motivo e objeto.

7   Ibid. p. 428.


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Assim, o Poder Judiciário pode verificar se subsistem os motivos invocados para a prática do ato, ou se eles são idôneos; se o fim alcançado pelo ato é realmente aquele a que se destinava (desvio de poder); se a causa do ato é compatível com o seu objeto, tendo em vista a finalidade prevista em lei. Mesmo quanto aos atos discricionários, o Judiciário pode exercer o controle quanto a certos aspectos do ato, a fim de verificar se não foram ultrapassados os limites da discricionariedade, ficando defesa sua intervenção apenas “quanto aos aspectos reservados à apreciação subjetiva da Administração Pública”,8 ou seja, o mérito do ato administrativo. Em relação ao mérito, correspondente à conveniência e oportunidade conferidas pela lei, tal análise é exclusiva do administrador, sob pena de invasão de competências indevida pelo Judiciário, extrapolando os limites da separação de poderes. Nas palavras de Hely Lopes Meirelles, o Judiciário não poderá substituir a Administração em pronunciamentos que lhe são privativos, mas dizer se ela agiu com observância da lei, dentro de sua competência (...) Quaisquer que sejam a procedência, a natureza e o objeto do ato, desde que traga em si a possibilidade de lesão a direito individual ou ao patrimônio público, ficará sujeito à apreciação judicial, exatamente para que a Justiça diga se foi ou não praticado com fidelidade à lei e se ofendeu direitos do indivíduo ou interesses da coletividade.9 E ainda o mesmo autor: no nosso sistema de jurisdição judicial única, consagrado pelo preceito constitucional de que não se pode

8    DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ibid. p. 654. 9    MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28.ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 203.


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171 excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, individual ou coletivo (art. 5º, XXXV), a Justiça Ordinária tem a faculdade de julgar todo ato de administração praticado pode agente de qualquer dos órgãos ou Poderes de Estado. Sua limitação é apenas quanto ao objeto do controle, que há de ser unicamente a legalidade, sendo-lhe vedado pronunciar-se sobre conveniência, oportunidade ou eficiência do ato em exame, ou seja, sobre o mérito administrativo.10

Assim, tem-se que em nosso sistema o controle do Judiciário em relação aos atos administrativos está adstrito à legalidade e à legitimidade do ato, sendo vedado o controle quanto ao seu mérito. De se ressaltar que sobre os atos administrativos recai a presunção de legalidade e de legitimidade, sendo a primeira a subsunção dos atos administrativos à lei, enquanto a legitimidade decorre da observância dos princípios que regem a Administração Pública. E, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, não se pode atribuir às decisões administrativas o mesmo caráter de definitividade de que gozam as decisões judiciais transitadas em julgado. 4. A atuação do CADE Nos termos da Lei 12.529/2012, o CADE é uma entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional, possuindo natureza de autarquia especial, exercendo a função de tribunal administrativo, responsável por apurar, prevenir e punir as infrações à ordem econômica. Como autarquia, órgão integrante da estrutura da Administração Pública, deve observar os princípios que regem a Administração em geral. No entanto, diferencia-se por se submeter a regime especial, uma vez que suas decisões não estão sujeitas à revisão na esfera administrativa, gozando, portanto, de autonomia.

10    Ibid. p. 677.


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Embora considerado órgão judicante pela lei, não há o exercício da função jurisdicional propriamente dita, que é conferida com exclusividade ao Poder Judiciário, apesar de o CADE exercer funções assemelhadas às de um Tribunal Judicial.11 5. Controle judicial das decisões do CADE Superada a questão da possibilidade de revisão das decisões administrativas pelo Poder Judiciário, bem como entendidos os conceitos de mérito do ato administrativo e discricionariedade da Administração, incumbe analisar os limites para atuação do Poder Judiciário em face de uma decisão proferida por órgão técnico administrativo, como é o CADE. Além da sua natureza jurídica, cabe perquirir acerca da natureza das suas decisões. É entendimento pacífico que se trata de decisões administrativas, portanto, atos administrativos, que devem ter os mesmos requisitos de validade dos atos administrativos em geral, o que já foi explicado anteriormente. Segundo parte da doutrina, por se tratar de órgão técnico, as decisões do CADE não são discricionárias, mas vinculadas a critérios científicos que devem reger as decisões tomadas. Nesse sentido, Fernanda Mercier Querido Farina, explicando que, na atividade sancionatória, o ente administrativo não pode aplicar os princípios da oportunidade e conveniência, porque a atividade sancionadora é poder exclusivo do Judiciário e exercido em caráter excepcional pela Administração Pública (...) Sendo assim, para aplicar sanções, a Administração deve observar a estrita legalidade.12 Nos termos expostos, não haveria discricionariedade em decisões téc11   ANDERS, Eduardo Caminati; PAGOTTO, Leopoldo; BAGNOLI, Vicente. Comentários à nova lei de defesa da concorrência: Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011. São Paulo: Método, 2012, p. 17-20. 12   FARINA, Fernanda Mercier Querido. Deferência ou desconfiança? O alcance judicial das revisões judiciais sobre atos das agências reguladoras em análise comparada com o direito norte-americano. Revista Jurídica Consulex, ano XVII, n. 383, jan. 2013, p. 64.


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nicas, pois o julgador fica adstrito aos aspectos técnicos, o que configura o regramento da questão. Portanto, em sendo ato verdadeiramente vinculado, e não discricionário, não suscitaria maiores questões a possibilidade de revisão da decisão do CADE pelo Judiciário, ressaltando-se mais uma vez quanto à impossibilidade de revisão administrativa das decisões do CADE, em razão da sua autonomia. Assim, a se considerar a decisão do CADE um ato vinculado, seria ampla a possibilidade de revisão pelo Judiciário, concluindo Walter Nunes da Silva Junior, pela “possibilidade de reexame judicial do mérito, ressalvada a recepção do pronunciamento do CADE, em seus aspectos técnicos, em condição análoga à dos laudos periciais”.13 Segundo ainda o autor, caberia, porém, à parte o ônus da prova quanto ao enfrentamento judicial (pedido constitutivo negativo) da decisão do CADE.14 Por outro lado, caso se entenda que as decisões do CADE estejam inseridas no âmbito da discricionariedade administrativa, mais importante torna-se a discussão acerca dos limites do controle judicial. Nesse caso, conforme entende a maioria da doutrina nacional, seria vedado ao Judiciário adentrar no mérito do ato administrativo, cabendo a ele apenas o controle de legalidade e também quanto à proporcionalidade ou à razoabilidade da penalidade aplicada ou de qualquer outra obrigação imposta. Mais difícil, porém, é a solução, quando se trata da possibilidade de revaloração das provas produzidas na esfera administrativa pelo Judiciário, implicando na reanálise de todas as provas produzidas na esfera administrativa, bem como dos debates lá travados. Resposta simplista seria pela impossibilidade de revaloração pelo Judiciário, sob o argumento de que o Judiciário não tem conhecimento técnico para decidir controvérsias de direito econômico. Esse argumento, porém, é facilmente afastado, pois a maioria das controvérsias envolve questões fáticas, e o Judiciário, nos casos comuns, também as resolve.

13   SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Revista de direito da concorrência, n. 12, out/dez 2006, p. 109. 14   Ibid. p. 114.


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Outro argumento seria o de que, sendo a questão eminentemente técnica, com regras claras e objetivas, não caberia a revisão pelo Poder Judiciário, restando apenas a possibilidade de revisão quanto à proporcionalidade ou à razoabilidade do ato ou quanto à observância dos requisitos essenciais. Uma solução proposta seria a utilização da decisão do CADE como prova emprestada nos autos judiciais, sendo objeto de valoração como qualquer outra prova produzida nos autos, dentro do âmbito do livre convencimento motivado do juiz. 6. Jurisprudência brasileira Na jurisprudência brasileira encontram-se decisões judiciais que corroboram o entendimento quanto à possibilidade da mais ampla revisão das decisões proferidas pelo CADE. Como exemplo, é possível citar a decisão proferida pela 4º vara Federal do Distrito Federal, nos autos da ação nº 2007.34.00.044314-6, em que o Judiciário afastou decisão do CADE que reconheceu a prática de cartel na produção de medicamentos genéricos. Houve no caso revaloração das provas produzidas na esfera administrativa, embora tenha reconhecido que o processo administrativo desenvolveu-se sem qualquer ofensa aos princípios constitucionais.15 Cabe ainda citar decisão proferida pelo então ministro do STJ Luiz Fux, segundo quem “a atuação paralela das entidades administrativas do setor (CADE e SDE) não inibe a intervenção do Judiciário in casu, por força do princípio da inafastabilidade, segundo o qual nenhuma ameaça ou lesão a direito deve escapar à apreciação do Poder Judiciário, posto inexistente em nosso sistema o contencioso administrativo,”16

15    Autos nº 2007.34.00.044314-6, 4ª Vara Federal/DF, disponível em http://www.conjur. com.br/2011-dez-20/justica-federal-df-anula-decisao-cade-absolve-acusados-cartel, acesso em 30/07/2013. 16   Superior Tribunal de Justiça, AGRMC 8791, Luiz Fux, 1ª T., 21.03.2005, disponível em www.stj.jus.br/juris.asp, acesso em 30/07/2013.


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concluindo-se, portanto, pela admissão, nos tribunais pátrios, da revisão judicial do mérito das decisões do CADE. No âmbito da revisão judicial das decisões do CADE, mas referente a atos de concentração, observou-se importante atuação do Judiciário no caso das multas aplicadas por aquele órgão, sob o fundamento de intempestividade na submissão, ao seu controle, da realização de atos de concentração, nos termos do §4º do art. 54 da Lei 8.884/94, c/c o art. 2º da Resolução nº 15/1998-CADE. De acordo com a lei então vigente, as empresas deveriam, previamente ou no prazo de 15 dias, submeter à apreciação do CADE os atos que pudessem limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, como ocorre, por exemplo, com os atos de aquisição de uma empresa por outra. A referida Resolução nº 15/1998-CADE definiu que a realização da operação, para os fins da lei, ocorreria na data do primeiro documento vinculativo firmado entre os requerentes, ou seja, mesmo na fase ainda das tratativas, já correria o prazo legal, antes do negócio definitivamente celebrado. Porém, prevaleceu na jurisprudência brasileira17 o entendimento de que, nas operações empresariais complexas, os acordos prévios de intenções entabulados pelas empresas interessadas não estão sujeitos à regra prevista no § 4º do art. 54 da Lei nº 8.888/94, uma vez que não consubstanciam atos que, por si só, possam limitar ou prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços.18 17   TRF1, 6ª T., Apelação Cível 200134000076384, Relator: desembargador federal Jirair Aram Meguerian, e-DJF1:03/06/2013, p. 96; TRF1, 4ª T. Suplementar, Apelação em Mandado de Segurança 200234000383735, Relator: juiz federal Rodrigo Navarro de Oliveira, e-DJF1:31/10/2012, p. 1672; TRF1, 4ª T. Suplementar, Apelação Cível 200334000212522, Relator: juiz federal Rodrigo Navarro de Oliveira, e-DJF1:28/09/2012, p. 783; TRF1, 1ª T. Suplementar, Apelação Cível 200134000276690, Relator: juiz federal Miguel Ângelo de Alvarenga Lopes, e-DJF1:21/06/2013, p. 1490, disponível em www.jf.jus.br, acesso em 30/07/2013. 18   TRF1, 5ª T., Apelação Cível 200134000211703, Relatora: desembargadora federal Selene Maria de Almeida, e-DJF1: 08/07/2013, p. 60, disponível em www.jf.jus.br, acesso em 30/07/2013.


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Em relação à atuação do Judiciário, pode-se tratar ainda das ações de indenização cíveis, cuja competência para apreciação lhe é exclusiva. 7. Conclusão Verifica-se, a partir dos casos citados, exemplos da importância do Judiciário na defesa da ordem econômica, fundamentada sua atuação na garantia da inafastabilidade da jurisdição. Porém, embora não se possa descuidar dessa garantia constitucional, instrumento fundamental de controle do Estado pelo indivíduo, torna-se também necessário definir limites dessa intervenção, uma vez que a possibilidade ampla de revisão judicial das decisões administrativas do CADE pode levar à perda de credibilidade do órgão administrativo técnico e à inefetividade de suas decisões, acarretando consequências, como o enfraquecimento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Há que se ressaltar que a Constituição elegeu alguns valores a serem protegidos, dentre eles a concorrência, elencando no seu art. 170 os princípios que regem a ordem econômica. Assim, visando à efetiva realização desses valores constitucionais, o sistema mais adequado é aquele que permite a convivência harmônica dos agentes que atuam na sua defesa e proteção – sendo os principais o CADE e o Poder Judiciário. Por fim, as dificuldades iniciais do Judiciário em lidar com questões afeitas à defesa da concorrência, dada sua relativa escassez nos tribunais, tendem a ser reduzidas com a participação mais ativa que vem tendo o CADE no exercício de sua função, aumentando o número de lides trazidas à apreciação judicial, o que levará, após algum tempo, à formação de uma jurisprudência consolidada, trazendo maior segurança jurídica. 8. Bibliografia ANDERS, Eduardo Caminati; PAGOTTO, Leopoldo; BAGNOLI, Vicente. Comentários à nova lei de defesa da concorrência: Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011, São Paulo: Método, 2012. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18.ed., São Paulo:


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Atlas, 2005. FARINA, Fernanda Mercier Querido. Deferência ou desconfiança? O alcance judicial das revisões judiciais sobre atos das agências reguladoras em análise comparada com o direito norte-americano. Revista Jurídica Consulex, ano XVII, n. 383, jan. 2013. FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito administrativo, 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. SILVA JUNIOR. Walter Nunes da. Revisão judicial das decisões do CADE. Revista de direito da concorrência, n. 12, out./dez. 2006, p. 109-121.



Uma espectrografia ideol贸gica do debate entre garantismo e ativismo


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Eduardo José da Fonseca Costa Juiz federal substituto em Ribeirão Preto (SP) Bacharel em Direito pela USP. Especialista, mestre e doutorando em Direito processual Civil pela PUC-SP. Membro do IPDP, do IBDP e da ABDPC. Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual.

Resumo: As ideologias políticas influenciam a maneira como se vê o processo, motivo pelo qual se pode traçar com tranquilidade uma divisão entre: a) processualistas liberais (simpáticos ao laissez-faire, eles veem o juiz como “vigilante noturno”, o qual deve somente cuidar do fair play processual); b) processualistas socialistas (simpáticos a um “sociosssanitarismo”, estes defendem que ao juiz cabe resolver com justiça social os conflitos subjacentes, não apenas a lide); c) processualistas fascistas (simpáticos a um dirigismo à outrance, entendem que o juiz deve desempenhar no feito uma monocracia policiesco-inquisitorial); d) processualistas social-liberais (simpáticos ao gerencialismo, divisam o processo como microempresa a ser estrategicamente administrada pelo manager judge). O objeto do presente artigo será, portanto, tratar de cada uma dessas correntes, investigar os debates encetados e criticar o simplismo da dicotomia entre o garantismo (ao qual se filiam os liberais) e o ativismo (a que se filiam os socialistas, os fascistas e os social-liberais). Palavras-chave: Ideologia – Processo civil – Garantismo – Ativismo – Liberalismo – Neoliberalismo – Socialismo – Fascismo – Social-Liberalismo Resumen: Las ideologías políticas influyen en nuestra forma de ver el proceso. Por eso se puede tranquilamente hacer una división entre: a) los procesalistas liberales (que simpatizan con el laissez-faire y sostienen que el juez debe ser un “vigilante nocturno”, que cuida el fair play procesal), b) procesalistas socialistas (que simpatizan con el “sanitarismo social” y sostienen que el juez no debe promover la composición del litigio, pero resolver los conflictos subyacentes con justicia social), c) procesalistas fascistas (que simpatizan con el dirigismo à outrance y entienden que el juez


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debe desempeñar una monocracia policiesco-inquisitorial) d) procesalistas social liberales (que simpatizan con el gerencialismo e ven el proceso como una microempresa gestionada por el manager judge). El objeto de este artículo se referirá a cada una de estas corrientes, investigará los debates y hará una crítica de la dicotomía simplista entre el garantismo (a que se unen los liberales) y el activismo (a que se unen los socialistas, fascistas y social liberales). Palabras clave: Ideología – Proceso civil – Garantismo – Activismo – Liberalismo – Neoliberalismo – Socialismo – Fascismo – Liberalismo Social 1. Introdução As ideologias políticas influenciam enormemente a forma como se enxerga: (i) a estruturação básica do Estado e a sua ordenação normativo-constitucional [polity]; (ii) a maneira de formularem-se as decisões governamentais e de ocuparem-se os postos de governo pelos competidores [politics]; (iii) as metas, as tarefas e os objetivos a serem alcançados pelo Estado e os meios técnicos a serem empregados para essa consecução [policy]. Daí por que não é preciso grande esforço para que se conclua que as ideologias políticas exercem sugestão indeclinável sobre a forma como se visualiza a organização administrativo-funcional do Estado-juiz, o modo de formularem-se as decisões judiciais, a maneira de ocupação dos cargos judiciários e de apoio, e os objetivos, as metas e as tarefas que cabem ao Estado no desempenho específico da função jurisdicional. Em vista disso, é inevitável que essa influência ideológica também acabe sendo exercida sobre o principal instrumento a serviço da justiça não criminal, o processo civil, ou sobre a forma de se interpretá-lo. Existe, assim, uma profunda relação entre o direito processual e as ideologias políticas (infelizmente, ainda pouco estudada no Brasil, não obstante objeto de detida análise na América e Europa Latinas, especialmente por Juan Montero Aroca na Espanha, Adolfo Alvarado Velloso na Argentina, Glauco Gumerato Ramos no Brasil e Girolamo Monteleone e Franco Cipriani na Itália, todos ilustres “garantistas”, os quais se opõem ao “ativismo” sustentado por autores como José Carlos Barbosa


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Moreira no Brasil e Augusto Mario Morello, Roberto Omar Berizonce e Jorge Walter Peyrano na Argentina). Ademais, as ideologias políticas sempre portam consigo uma espécie de “antropologia filosófica”, i.e., a elas subjaz uma metafísica, que reflete sobre os homens e como eles se relacionam entre si, com a Natureza e com Deus. Logo, esse pressuposto filosófico acabará esquematizando a forma como o jurista entenderá as vocações das partes e dos juízes – como homens unidimensionais que o reducionismo ideológico deles faz – no curso de um processo judicial. Não sem motivo, as partes são vistas pela concepção socialista de processo (mais cooperativa) como os “bons homens” de Jean-Jacques Rousseau, que precisam ser tutelados pelo Estado-provedor. Em contrapartida, para a vertente liberal clássica (mais adversarial), as partes são os “lobos belicosos” de Thomas Hobbes [homo hominis lupus], que têm de ser protegidos contra as impetuosidades impertinentes de Leviatã, e que precisam ser salvos de si mesmos, já que vivem sob o regime bellum omnium contra omnes. Nesse sentido, o objetivo da presente reflexão-mirim é desocultar o missing-link entre as concepções sobre o processo civil e as ideologias políticas e mostrar como elas subjazem inúmeras concepções e construções dogmático-processuais pretensamente “técnicas”. Aliás, dado que os debates dogmáticos nada mais têm sido do que ingênuas confrontações “técnicas”, é possível afirmar que o real e necessário debate – o debate ideológico – tem sido menoscabado pela própria intelligentsia processual brasileira (ao contrário do que ocorre nos países hispanohablantes latino-americanos, onde a disputa entre garantismo e ativismo parece estar no zênite). Isso revela um comportamento sui generis de autoalienação e abdicação intelectual. De pronto, já se vê que o processo, posto que seja instrumento técnico à disposição do Estado-juiz, também é instrumento político: é técnico, já que se revela como conjunto de normas analíticas, hermenêuticas e pragmáticas, tendo como objetivo a aplicação do direito material à solução dos conflitos; é político, pois o Estado, ao monopolizar a distribuição da justiça, dela se vale para promover a paz social. Daí o motivo por que a estrutura e a dinâmica do processo civil obedecem a uma “lógica substancial híbrida”, em que razões de neutralidade técnico-jurídica e motivações de índole político-axiológica se interpenetram. Com isso, se nota a grave inadequação metodológica que


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inquina a dogmática dominante, cujo insulamento sistêmico não permite aos processualistas – mesmo após a difusão das ideias-força do instrumentalismo processual de Cândido Rangel Dinamarco no Brasil – se comunicarem com o direito constitucional e a ciência política (se bem que isso esteja paulatinamente mudando no Brasil), e cujo cientificismo asséptico os faz tratar o processo civil apenas como um expediente gélido. Decerto, não se pretende aqui discorrer enfadonhamente sobre a conceituação de ideologia. Isso porque talvez seja o mais inexato termo das ciências sociais. Afinal de contas, a própria noção de ideologia é alvo de influxos ideológicos. Tampouco se deseja rascunhar a história do emprego do termo na literatura político-científica desde Destutt de Tracy, em 1801, para quem ideologia = ιδεα + λογος = “ciência fundamental das ideias” (o que produziria obra interminável). Para os propósitos limitados do presente trabalho, é suficiente dizer que a palavra ideologia assumiu, fundamentalmente, dois grandes sentidos na tradição ocidental: um negativo e outro positivo. O primeiro sentido (que Norberto Bobbio preferiu chamar de “sentido forte”) foi cunhado por Karl Marx na cartilha A ideologia alemã e está associado às ideias de mistificação, mascaramento, manutenção do status quo, manipulação, ficção, ilusão, “falsa consciência”. Segundo a tradição marxista, a ideologia seria, em outras palavras, um elemento superestrutural, que representa a consciência dos interesses da própria classe burguesa como sendo os interesses de todos os grupos sociais e que, consequentemente, encobriria a verdadeira natureza das relações de produção, em que a classe trabalhadora é explorada. Nesse sentido, as ideologias seriam reprováveis e entendidas como o oposto de conceitos edificantes como ciência, filosofia, racionalidade, objetividade, verdade e clareza. No entanto, apesar da penetração do sentido negativo no meio intelectual, prevaleceu nas análises político-científicas o sentido positivo (ao qual Norberto Bobbio deu o nome de “sentido fraco”). Ou seja, a ideologia passou a ser principalmente entendida como um conjunto de crenças, opiniões e valores que: a) de um ponto de vista conservativo: a.1) fornecem uma perspectiva, geralmente na forma de “visão de mundo” (que os alemães chamam de Weltanschauung), para a compreensão e a explicação da ordem vigente; a.2) ajudam a modelar a natureza dos sistemas políticos; a.3) funcionam como uma forma de “cimento social”, aju-


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dando a estabelecer a estabilidade social e a ordem; b) de um ponto de vista modificativo: b.1) desenvolvem um modelo de futuro desejável; b.2) explicam como a mudança política para esse futuro pode ser realizada. A fortiori, no que diz especificamente respeito ao processo civil, a ideologia: 1) fornece uma cosmovisão para a explicação e a compreensão do sistema processual civil positivo vigente (ou seja, a ideologia do jurista interfere no seu discurso doutrinário); 2) ajuda a modelar esse próprio sistema processual positivo vigente a ser compreendido e explicado (ou seja, a ideologia dominante, muitas vezes, influência o discurso normativo, embora essa influência não seja automática, na medida em que a história mostra a edição de leis democráticas em regimes autoritários de exceção); 3) proporciona, dentro de uma determinada comunidade dos operadores desse sistema, um paradigma ou uma cultura unificada de interpretação-aplicação (ou seja, a ideologia política do juiz pode interferir na forma como ele interpreta e aplica a lei processual); 4) desenvolve um modelo de futuro desejável para o sistema jurídico-processual (ou seja, a ideologia política pode inspirar propostas de reforma legislativa ou novas formas de interpretação da lei processual civil vigente); 5) identifica as circunstâncias que podem levar a comunidade jurídica a resistir a essas modificações (ou seja, a ideologia dominante pode contribuir para a conservação do sistema processual vigente). Em conclusão, a ideologia desempenha, na seara do processo civil, uma função jurídico-positiva, uma função teórico-cognitiva e uma função prático-social. Há quem sustente que, em um mundo pós-moderno e globalizado – marcado por consumo pessoal, fragmentação social, perda do senso comum e legitimação tópica de poder – não haveria mais lugar para “sistemas globais de interpretação do mundo social”. Entrementes, o dia a dia tem frustrado essa aposta. Na verdade, tem-se assistido simplesmente à superação histórica das principais tradições ideológicas e ao surgimento de “novas” formas ideológicas (feminismos, ecologismos, fundamentalismos religiosos, multiculturalismos, ambientalismos etc.). Mesmo que assim seja, não se pode negar que as ideologias clássicas ocidentais (socialismo, liberalismo, conservadorismo, fascismo, etc.), bem como suas subdivisões (marxismo, comunismo ortodoxo, social-democracia, liberalismo clássico, liberalismo social, conservadorismo autoritário, conservadorismo liberal, etc.), ainda têm influenciado profunda-


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mente as grandes formas de compreensão da política, das tarefas do Estado, do papel da jurisdição e, por conseguinte, da estrutura e da dinâmica processual civil. Enfim, ainda é possível traçar com tranquilidade uma divisão entre “processualistas à direita” (afetos a uma “concepção neoprivatista ou liberal clássica do processo”) e “processualistas à esquerda” (atrelados à chamada “concepção social do processo”). Mais: é possível identificar vários posicionamentos intermediários (p. ex., concepção social-liberal do processo). Em suma, a velha contenda entre o liberal e o social ainda influi e dá sentido a grande parte das principais disputas do pensamento processualístico hodierno (embora os paradigmas fascista e conservador também fomentem importantes linhas do pensamento dogmático-processual). 2. O grande Leitmotiv do pensamento liberal clássico é o indivíduo (valor supremo acima de qualquer grupo social), ser humano dotado de razão, pensante, capaz de definir seus próprios interesses e ir atrás deles. Para satisfazerem esses seus interesses pessoais, os indivíduos devem desfrutar de uma máxima liberdade, compatível com uma liberdade similar para todos, mediante o gozo dos mesmos direitos [= igualdade jurídico-formal], e, com isso, serem recompensados de acordo com o seu talento e a sua disposição para o trabalho [= desigualdade meritocrática]. Nesse sentido, os liberais entendem serem inevitáveis as desigualdades de riqueza, posição social e poder político (por influência do princípio darwinista-social da “sobrevivência do mais apto”). Mais: entendem que a igualdade social é injusta, já que trata os indivíduos – que são naturalmente diferentes entre si – da mesma maneira. Assim, para que sejam livres de interferências, possam agir de acordo com as suas próprias escolhas e se desenvolvam moralmente aprendendo com os erros, é preciso que eles estejam protegidos contra o governo (necessário, porém, potencialmente tirano). Note-se que a escolha moral do que é “bom” cabe ao indivíduo [= autonomia pessoal], não ao governo, que deve se limitar a uma “neutralidade moral”, circunscrita à garantia dos direitos subjetivos. Aliás, aqui reside a chave do liberalismo econômico: o exercício autonômico do egoísmo material de cada indivíduo – sem as intervenções do Estado na


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economia – faz nascer um conjunto de pressões impessoais que despontam um mecanismo autorregulado pelas forças da oferta e da procura, chamado “mercado”, o qual, pela “mão invisível” de Adam Smith, tende naturalmente a promover o bem-estar e a prosperidade econômica. A proteção contra a tirania dos governos é possível mediante uma organização político-econômica fundamentada em valores como democracia, economia de mercado, descentralização administrativa e constitucionalismo. A concretização desses valores deve direcionar-se à formação de um “Estado mínimo soberano” (o que não se confunde com a estadofobia dos anarquistas), cuja função seja limitada à preservação da ordem interna, à manutenção da segurança pessoal e à proteção da sociedade contra ataques externos (como afirmava Locke, é o Estado como um “guarda noturno”). Segundo Thomas Jefferson dizia, “o melhor governo é o que menos governa” [“That government is best which governs least”]. Sem isso, não se viabiliza uma sociedade equilibrada e tolerante, onde seja possível a maximização do domínio da autossuficiente, irrestrita e livre ação dos indivíduos e das associações voluntárias. Daí já se percebe que a autoridade política vem “de baixo”: o Estado é instituído por indivíduos e para indivíduos com o objetivo de proteger os direitos naturais e ser um árbitro neutro, que aplique as “regras do jogo” quando eles entrarem em conflito uns com os outros (o que revela a vital importância de um Judiciário que desfrute de independência formal e neutralidade política). O transplante ao microambiente jurisdicional dos importantes topoi da retórica liberal (como individualismo, liberdade negativa, razão, justiça e tolerância) faz nascer uma espécie de “laissez-faire processual civil” (tão caro até hoje à composição das lides empresariais, p. ex.). No livro A fábula das abelhas: vícios privados, benefícios públicos (editado pela primeira vez em 1714, e em 1723 numa versão mais completa), o mignon dos liberais Bernard de Mandeville defende que tudo quanto seja entendido como vício pelos homens – ganância, inveja, vaidade e orgulho – é fundamental para a prosperidade da nação, porquanto o desejo humano na busca do autointeresse tem como consequência não intencional um caráter estabilizador para a sociedade; ou seja, o “bem comum” não é produto da retidão das pessoas, de suas virtudes, mas de seus vícios individuais e de seu amour propre.


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Mutatis mutandis, o sistema adversarial prega algo similar para a dinâmica processual civil: tanto mais o juiz terá subsídios para bem julgar quanto mais deixar as partes digladiarem-se livremente, dentro de uma “saudável desordem”, até o esgotamento das discussões sobre todos os fundamentos e argumentos (ainda assim, isso não sabota a desejada presteza jurisdicional caso as partes se percam em hostilizações mútuas e discussões periféricas?). Nesse sentido, observa-se a iluminista sacralização do contraditório ad nauseam, a relativa tolerância à astúcia, sem qualquer abertura para pronunciamentos judiciais moralizantes, e um juiz que acaba se limitando a simples “árbitro passivo”, “vigilante noturno” [Nachtwächter Richter], “mandatário das partes”, “guarda de trânsito”, que cuida do fair play tão-só para que o processo não descambe para uma deslealdade daninha e insuportável (daí por que o sistema de combate à litigância de má-fé é erguido sob a responsabilidade subjetiva do improbus litigator). Com isso, já se nota que o processo é tido como “coisa das partes” [Sache der Parteien], e não como um instrumento do juiz: o magistrado, para não “sujar as suas mãos” e manter-se “bacteriologicamente puro” [José Igreja Matos], não pode ter iniciativas probatórias [iudex non potest supplere in facto] e deve guiar-se por uma atuação de tipo tabua rasa. Cabe tão-somente às partes municiá-lo com os elementos objetivos de convencimento [princípio puramente dispositivo], tendo em vista que elas são as senhoras dos próprios interesses. Nenhuma medida pode ser concedida pelo juiz ex officio, a não ser que exista o prévio requerimento das partes, que gozam de igualdade meramente formal, não podendo o juiz igualá-las mediante qualquer provimento compensatório. O perito passa a ser simples testemunha qualificada da parte que o indica. Os ônus de prova são predefinidos mecanicamente em lei a cada uma das partes, sem existir a possibilidade de invertê-los. O juiz de Montesquieu – bouche de la loi – não tem o poder de flexibilizar o procedimento legal (ordinário, indisponível e predominantemente escrito), o que, quando muito, é possível mediante a celebração prévia de um acordo entre as partes; visto que o juiz é um singelo “convidado de pedra” e as partes são as “donas do processo”, este fundamentalmente se destina a aplicar ao caso individual e concreto o direito objetivo que regula a relação de direito material controvertida, e não promover uma política pública supraindividual de


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pacificação social [privatismo particularista]. O objeto litigioso é definido apenas pelas partes, sem que o juiz tenha qualquer ingerência sobre o seu conteúdo. O “devido processo legal” é visto como um conjunto de direitos e garantias fundamentais, atribuídos às partes e oponíveis ao Estado-juiz, a fim de que o processo possa nomocraticamente desenrolar-se sob uma visão bilateral dialética simétrica, sem poderes exacerbados a qualquer dos sujeitos do processo [garantismo]; tão-só as partes podem, eventualmente, desconstituir a coisa julgada material por meio de ação rescisória ou querela nullitatis insanabilis, razão por que o juiz não pode relativizá-la de ofício. Na trilogia estrutural da ciência processual civil, o aspecto mais estudado é o processo, em especial as situações jurídicas subjetivas ativas processuais, que as partes podem assumir diante do Estado-juiz; o juiz-símbolo do liberalismo clássico é um “juiz-anão”, reativo, agnóstico, singelo organizador do duelo das partes (bem ao gosto do processo germânico antigo), que sofre do weberiano “desencantamento do mundo” [Entzauberung der Welt] e que não acredita em soluções “justas ou corretas”. Ante todas essas considerações, não é difícil concluir que, para os liberais clássicos, numa lei processual civil (como a Ley de Enjuiciamento Civil espanhola, por exemplo, rotulada de ser preponderantemente “garantista”), torna-se a previsibilidade um canto sacral: a vigência de “regras do jogo” claras e imutáveis e de um procedimento construído more geometrico, que se desenvolva always under law, por meio de raciocínios concepto-subsuntivos, é conditio sine qua non para a exclusão da arbitrariedade e prepotência judiciais, portanto, e para a atuação irrefreada das partes no “livre mercado processual”. 3. A flama social foi alimentada pelas condições cruéis e, muitas vezes, desumanas em que vivia e trabalhava a classe operária. Por isso, surgiu como crítica à sociedade de mercado liberal e numa tentativa de ofertar uma alternativa ao capitalismo industrial. Da mesma forma que o credo liberal, o socialismo compartilha a fé nos princípios da razão e do progresso. Entretanto, aqui, a chave do desenvolvimento não está no egoísmo individual competitivo (gerador de agressividades), mas na cooperação mútua (geradora de afeição e


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solidariedade), a ser estimulada pelo Estado. Os homens podem ser motivados não só por incentivos materiais (e.g., recompensas financeiras), mas morais (e.g., contribuição para o bem comum). São enxergados como criaturas eminentemente sociais, unidas por sua humanidade comum e tão-somente capazes de superar os seus problemas sociais e econômicos apoiando-se na força da comunidade. Por conseguinte, a iniciativa humana coletiva tem mais valor que o esforço individual. Mais: os homens são divisados como seres “plásticos”, de comportamento e identidade moldados não pela “natureza”, mas pela “cultura” através de experiências de interação intersubjetiva, circunstâncias da vida social e participação em entidades de caráter coletivo. Em vista disso, enquanto os pensadores liberais estabelecem clara distinção entre o “indivíduo” e a “sociedade”, os socialistas acreditam que o indivíduo é inseparável da sociedade. Nesse sentido, sustentam que os seres humanos são naturalmente iguais, mas se diferenciam por força da desigualdade de oportunidades. Em suma, a desigualdade humana reflete a estrutura desigual do sistema capitalista. Daí por que a igualdade meramente formal dos liberais lhes soa como algo inadequado. Com isso, o principal valor do socialismo, e a grande missão da autoridade governamental, é a promoção da igualdade social, que fortalece a coesão e a estabilidade sociais. Originariamente, o socialismo foi associado à ideia de “política de classes”, ora por entender que os homens pensam e agem junto daqueles que compartilham uma mesma posição socioeconômica (o que, nos evangelhos civis de Karl Marx, Friederich Engels e tutti quanti, era a chave para a compreensão da História), ora por entender que o próprio socialismo era a expressão dos interesses da classe trabalhadora, a qual lutava para emancipar-se. Essa visão classista, todavia, acabou enfraquecendo-se por força da desindustrialização, da redução da classe trabalhadora tradicional e do crescimento da classe média, o que desmentiu Marx e sua gafe teórica biclassista. Com isso, as utopias sociais hard do marxismo clássico e o comunismo ortodoxo (fundadas na crença de que o motor da história é a luta de classes e de que o capitalismo será abolido pela revolução proletária e substituído pela sociedade sem classes, sem propriedade privada, sem desigualdades sociais, e de economia assentada na coletivização estatal e na planificação centralizada) sofreram profundas revisões e geraram linhas mais softs do pensamento socialista, o qual


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passou a ser chamado de New Left: o neomarxismo (em que, dentre outras coisas, se recriminam o determinismo primacial da economia e o status privilegiado da classe proletária); a social-democracia (fundada na ideia de que o capitalismo, conquanto seja meio defeituoso de distribuir riqueza, é a única forma confiável de gerá-la, motivo pelo qual – à luz dos ditames da justiça social e dos princípios liberais democráticos – pode ser pacificamente corrigido e humanizado por regulação social e econômica de um Estado que se direcione à erradicação da pobreza); a “terceira via” (que repele o “andar com os próprios pés” dos liberais, rejeita a social-democrata “assistência do berço ao túmulo”, admite pragmaticamente a economia globalizada acima do Estado, aceita as diferenças de classe e as desigualdades econômicas, e defende uma assistência social tão-somente aos excluídos, mediante uma política meritocrática de “oportunidade, não esmola”, que, embora fraternal, contrabalanceie direitos e responsabilidades). De qualquer modo, todas essas correntes ideológicas de inspiração socialista são permeadas por idealizações como igualdade material, justiça social, preocupação com os pobres, colaboração, prevalência do social sobre o individual, solidariedade e planificação estatal. Transplantados para o âmbito jurisdicional, esses valores acabam infundindo uma espécie de “sociossanitarismo processual” (até hoje tão querido às lides sobre welfare rights, i.e., às lides trabalhistas, previdenciárias e assistenciais). Aqui, ao contrário da concepção liberal clássica de processo civil, não se está apenas preocupado em “compor ilides”. O cavalo de batalha da vanguarda socialista é resolver com justiça social o conflito subjacente. Não por outro motivo a figura processual central se torna o juiz – o “juiz-gnóstico” –, investido nos “poderes iniciáticos” de transpor a realidade “verossimilhante” in statu assertionis. Através desta big science que é a Sociologia, ele “desmascara” a realidade “verdadeira” em suas mais “profundas contradições” mediante uma “análise microscópica marginal”, que dá de ombros para os princípios clássicos do direito probatório. Em suma, fazem-se vistas grossas ao adágio “o que não está nos autos não está no mundo” [quod non est in actis non est in hoc mundo], e a fria “verdade formal” dá lugar à efervescente “verdade material”. Em síntese, o juiz do “fabianismo processual” é aquele que segue o script hegeliano da “reconciliação com a realidade” [Versohnung


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mit der Wirklichkeit]. Para tanto, o processo deixa de ser instrumento à disposição das partes para tornar-se instrumento público colocado à disposição do Estado-clínica para a implementação ex cathedra de uma política de equalização social [publicismo social]. Mais: ao juiz são conferidos amplos poderes extroversos [princípio inquisitivo], que ele tem de exercitar com a missão soteriológica de reequilibrar as forças entre as partes e prevalecer a igualdade substancial entre elas. Para a concepção socialista, juiz bom é o juiz-Hobin-Hood, executor testamentário das ideias dos grandes ícones do “romantismo social”. Em favor do “elo mais fraco” da relação processual – iniciativa conhecida como “parcialidade positiva” (?!) – o juiz, excepcionalmente, pode flexibilizar o procedimento-padrão legal (conquanto aqui, via de regra, seja praticado um procedimento sumário e preponderantemente oral), inverter o ônus da prova, relativizar pro misero as asperezas da res iudicata (o que explica a disseminação contra legem, no Brasil, da coisa julgada secundum eventum probationis, especialmente nas lides previdenciárias e assistenciais), interferir na formação do objeto litigioso, suprir as lacunas probatórias (isso não afronta a “imparcialidade”?) e conceder provimentos ex officio (como, v.g., tutelas de urgência) [ativismo autoritário “socioequilibrante”, que os críticos veem como práxis gauchiste]. Por isso, o magistrado deixa de ser o “inerte anêmico” da heresia liberal para se tornar um apaixonado “politburocrata soixante-huitard”, um “rei-filósofo” de Platão, um centralizador das iniciativas, interessado nas mazelas socioeconômicas da relação jurídica material controvertida e predisposto a erradicá-las. Com isso, já se percebe que o foco dogmático maior sai do processo e recai sobre o estudo da jurisdição, a qual é vista menos como jurisdictio [= poder de “dizer direitos”) e mais como imperium [= poder de “concretizar direitos”]. Isso faz com que a cláusula do due process of law, do “processo civil justo”, seja o processo efetivo, aquele que consegue transformar a realidade social. Além disso, o processo passa a ser um “bem de todos”, uma “propriedade do povo”, posta sob a custódia de um mandarinato judiciário, que deve desempenhar os seus misteres com visão social e sentimento altruísta. Sendo o magistrado um “grande timoneiro” a la Mao Zedong, não se é de estranhar que o contraditório tão-só seja permitido dentro de rédeas firmes, sem que as partes se percam em longos debates febris,


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muitos dos quais estéreis. Ora, se o processo é instrumento social, ele não pode se perder em artimanhas, ofensas, astúcias e outras imoralidades: a litigância de má-fé é reprimida incisivamente. Diante de todas essas considerações, pode-se concluir que, para uma visão socialista, o lema de ordem em uma lei processual civil deve ser a transformação social (especialmente em favor dos “excluídos e marginalizados”): se o juiz não tiver poderes para modificar o status quo, o processo não cumprirá a sua finalidade última. 4. Semelhante ao processualismo social é o processualismo gerado pela ideologia fascista. Não é fácil definir o fascismo. Nacionalismos frustrados e desejos de vingança mal resolvidos desde a Primeira Guerra Mundial vieram à tona no seio da classe média baixa (comerciantes, pequenos empresários, fazendeiros, artesãos, etc.), atingida pela crise econômica da década de 1930 e espremida entre os crescentes poderes das grandes empresas e do trabalho organizado. Com isso, floresceu um ódio tanto ao capitalismo (livre mercado) quanto ao socialismo (planificação centralizada), o que fez despontar o chamado “corporativismo”, em razão do qual as classes sociais não lutam entre si, mas trabalham em harmonia para o bem comum, mediadas pelo Estado. A base desse novo modo de produção seria uma comunidade nacional espiritual e organicamente unificada, sob coesão social incondicional, expressa no lema “l’union fait la force” e regida por um Estado totalitário, sob o governo pessoal de uma liderança forte e incontrastável (Il Duce; Der Führer). Para que isso tudo fosse viabilizado, indispensável era que as ideias iluministas de igualdade, liberdade, progresso e fraternidade da Revolução Francesa de 1789 fossem aniquiladas por valores marciais como poder, guerra, ordem, autoridade, obediência, lealdade e heroísmo. O individualismo deveria ceder lugar, consequentemente, a uma nova concepção de homem: um herói, absorvido pela comunidade e motivado pelos sentimentos de dever, honra, abnegação, glória e fidelidade absoluta ao chefe supremo e todo-poderoso. Daí se vê que o fascismo jamais se preocupou com a elaboração de um sistema racional e coerente: tratava-se de “uma disparatada miscelânea de ideias”


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[Hugh Trevor-Roper]. De todo modo, é possível identificar alguns princípios fundamentais: a) o antirracionalismo (que enfatiza o mítico, a história, o passado comum, o sentimento, a cultura, a vontade, o impulso, o instinto e os limites da razão e do intelecto); b) a luta (que crê no darwinismo social e na guerra como forma de seleção natural dos homens mais fortes); c) socialismo (que desenvolve um coletivismo antimaterialista e faz com que o capitalismo sirva aos interesses do Estado); d) ultranacionalismo (que acredita na superioridade de uma nação sobre as demais e fomenta o expansionismo e o imperialismo, pois); e) liderança (que entende que a sociedade civil deve ser guiada por uma autoridade carismática, liberta de qualquer amarra constitucional); f) elitismo patriarcal (que rejeita a igualdade, crê no governo de uma minoria “guerreira” masculina, disposta ao sacrifício, sobre as massas fracas, inertes e ignorantes, destinadas à obediência cega). Transplantada a Weltanschauung fascista para o âmbito jurisdicional, chega-se a um “dirigismo processual à outrance”. O processo torna-se um regnum iudicis, em que o juiz exerce uma monocracia formalista, legalista e policiesco-inquisitorial. Por outro lado, os litigantes são vistos como doentes inferiores, que destoam da harmonia sócio-orgânica e precisam ser espiritualmente curados com Justiça pelo Estado Paternal (e, se possível, reconciliados, mas nunca em âmbito alternativo privado extrajudicial: “Nada fora do Estado”, como pregava Mussolini). Aqui, também o juiz é investido em “poderes ilimitados quase místicos” – afinados com a livre recherce scientifique, dos franceses, e a Freirechtbewegung, dos alemães – de transpor a “verdade formal”, trazida aos autos in statu assertionis, e chegar à “verdade material”, ignorando o adágio quod non est in actis non est in hoc mundo. Apesar disso, o juiz não manipula esses mecanismos probatórios com a intenção “socioequilibrante” dos aventureiros marxistas, i.e., com o fito de reequilibrar partes socioeconomicamente desiguais: a sua iniciativa probatória dá-se a tout propos, simplesmente para reafirmar a autoridade incontrastável do Estado. Trata-se da redução destro-hegeliana e ad Hitlerum da “reconciliação com a realidade” [Versohnung mit der Wirklichkeit]. É como se a jurisdição, segundo a dicção de um dos maiores teólogos do Estado, fosse “fim último”, “finalidade própria, absoluta e inamovível”, “o razoável em si e por si”, que tem “o supremo direito contra o indivíduo, cuja suprema obrigação se centra em ser


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membro do Estado”. Não por outro motivo se admite que, arbitrariamente, o juiz, sem uma finalidade específica: imponha aditamentos oficiosos ao objeto litigioso; supra oficiosamente os pressupostos processuais; investigue ou fixe fatos não alegados; flexibilize o procedimento-padrão; inverta o ônus da prova; relativize a res iudicata sem provocação das partes (especialmente em favor da própria Fazenda Pública em juízo); conceda provimentos ex officio [ativismo autoritário publicístico radical]. Nesse sentido, para a concepção fascista, tem mais-valia o “juiz-general”, o “linha-dura monista”, que seja a prima donna do espetáculo processual. Logo, o processo deixa de ser instrumento à disposição das partes para tornar-se um instrumento do Estado-juiz a serviço de uma pacificação a fórceps e, portanto, um instrumento de dominação [publicismo estatólatra]. Com isso, o foco dogmático recai sobre o estudo da jurisdição, a qual efetiva os direitos subjetivos, não para transformar subversivamente a realidade social em favor dos mais necessitados, mas para alimentar a libido dominandi estatal. Afinal de contas, mais importante que a transcendência da jurisdictio e de suas palavras é a imanência do poder judicial de imperium e de sua ação realizadora. Ademais, o processo civil passa ser um “bem público”, uma “propriedade do Estado”, posta sob custódia de um patriciado cartorial, formado por agentes judiciais plenipotenciários. Sendo o juiz o Führer, não se é de estranhar que o contraditório seja reelaborado à luz de uma cooperação orgânico-espiritual entre as partes, sem que elas se percam na dialética febril e mesquinha do abjeto homo economicus liberal. Ou seja, sob os auspícios do ideal da cooperação monocêntrico-judicial, o contraditório é tido menos como debate dialético simétrico [= desentendimento entre formalmente iguais] e mais como “diálogo” exlético assimétrico [= tentativa de entendimento – não raro forçada – entre materialmente desiguais]. Ora, se o processo é um instrumento público-estatal, ele não pode se perder em artimanhas, ofensas, astúcias e outras imoralidades próprias aos lobos capitalistas: a litigância de má-fé é demonizada in extremis. Diante de todas essas considerações, pode-se concluir que, para uma visão fascista, a palavra de ordem numa lei processual deve ser a efetividade: sem que o juiz tenha poderes para implementar as suas resoluções, o processo não passa de um “antro de pronunciamentos inofensivos”. É o que foi feito, segundo os ga-


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rantistas, pelo Código de Processo Civil português de 1939, as modificações operadas no ZPO alemão pelo Decreto de 8 de novembro de 1933, o Code di Procedura Civile italiano de 1940 e o Zivilprozessordnung austríaco de 1895, de Franz Klein (que o garantismo afirma ser a opus magnum do fascismo processual, o nec plus ultra do protagonismo autoritário judicial e o “organon metodológico” de todos os ativistas judiciocratas). 5. Existe uma acirrada discussão a respeito da identidade do chamado “liberalismo moderno”. Neoliberais, veementemente apegados aos postulados básicos do liberalismo clássico, entendem que os cânones da doutrina liberal foram traídos por essa nova forma de governo e que a expressão “liberalismo social” é uma contradictio in terminis. A questão, porém, não é tão singela. Afinal, o liberalismo social é erguido sobre os quatro grandes pilares do liberalismo (constitucionalismo, democracia, descentralização administrativa e economia de mercado). Esses pressupostos sofrem, apesar disso, uma releitura oxigenadora. De um lado, está o liberalismo clássico e seu enorme déficit de empiricidade, a defender o livre mercado, vigiado por um governo mínimo e fomentado por indivíduos egoístas, autorresponsáveis e titulares de pretensões negativas contra o Estado, os quais buscam a maximização de utilidade e a recompensa por critérios de meritocracia. De outro, está o social-liberalismo. Aqui, o individualismo egoísta dá lugar a um individualismo altruísta e progressista, que vê nos homens uma interligação por laços de cuidado e simpatia, um caráter mais sociocooperativo e uma busca por crescimento pessoal; ante o fracasso do livre-cambismo e da inviabilidade do empreendimento privado irrestrito, o capitalismo desregulado – tendente a baixos investimentos, imediatismo e fragmentação social – é retirado da “anarquia econômica” e submetido pelo Estado a controles regulatórios “de cima para baixo”, que buscam promover a prosperidade, a harmonia na sociedade civil e a redução das desigualdades dos pontos de partida. Por conseguinte, o Estado mínimo dos liberais radicais (incapaz de corrigir injustiças e desigualdades) e o Estado máximo dos socialistas marxistas (pesado, ineficiente e opressor) cedem passo a um Estado ágil e


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promotor, a um “liberalismo de Estado”, o qual – embora continue sendo adversário de nivelamentos e uniformização sociais – ajuda as pessoas a se ajudarem, intervém por indução na economia e promove serviços de bem-estar social, como saúde, habitação, previdência social e educação. A liberdade negativa dos liberais clássicos dá lugar a uma liberdade positiva, à qual subjaz a ideia de que a liberdade também pode ser ameaçada por desigualdades e desvantagens sociais muito intensas. O transplante ao âmbito jurisdicional de relevantes topoi retóricos social-liberais (como individualidade, liberdade positiva, cooperação, regulação, eficiência) faz nascer o chamado “gerencialismo processual civil”. Aqui: desconfia-se do sistema adversarial paleoliberal da common law, que conduz o desfecho da causa a morosidade inaceitável às exigências atuais de celeridade [right delayed is right denied]; o ardil e a astúcia são combatidos veementemente pelo magistrado (que se baseia em um sistema de repressão à litigância de má-fé fundamentado na responsabilidade objetiva do improbus litigator); o magistrado se torna um “agente regulador”, que deixa de guardar soluções legislativas milagrosas, assume a responsabilidade [accountability] pela boa gestão dos processos e passa a intervir extra legem – não raro sob racionalidade organizacional e por meio de técnicas de gestão informática – para eliminar as travas que causam “congestionamento processual” e para um desfecho da causa em “tempo razoável”. O processo é trabalhado como uma “microempresa gerenciável pela macroempresa judiciária”, a qual atua sob planejamento estratégico, produz decisões em larga escala e é composta por magistrados dotados de inteligência organizativa, capacidade mobilizadora e liderança motivacional. Nesse caso, o protagonista da relação processual não é a pessoa física do juiz ou das partes, mas a administração judiciária e seu caudaloso staff assessorial, os quais sofrem forte pressão por performance institucional satisfatória (que é medida – à luz das recomendações do New Public Management de Mark Moore – por indicadores estatísticos e monitorização do alcance de metas objetivas). Instala-se um nexo de complementação entre o processo civil [case management] e as políticas públicas judiciárias [court management], ambos permeados pela filosofia do just in time. O juiz (visto como um fornecedor) e as partes (vistas como consumidoras) operam num regime de colaboração


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para a produção trium personarum das provas necessárias à maior proximidade possível entre realidade intraprocessual e realidade extraprocessual (o que dá, aqui, certo “tom social-democrático”) [princípio da cooperação probatória]. Medidas podem ser concedidas, tanto de ofício quanto a pedido das partes, com vistas ao gerenciamento eficiente do processo. Os ônus da prova são adaptativamente definidos pelo juiz à luz da teoria das cargas probatórias dinâmicas. Tanto o juiz (oficiosamente) quanto as partes (por meio de acordos) podem imprimir flexibilizações sumarizantes ad hoc ao procedimento-padrão da lei, inclusive mediante fixação de cronogramas [schedules] ou calendarizações [timing of procedural steps] capazes de suprimir os “tempos neutros” ou os “buracos negros” [black holes] do trâmite processual, adaptando-os criativamente às particularidades do direito material e às exigências do caso concreto. A forma mais eficiente de estancar o fluxo de processos intermináveis e, com isso, dar à atividade jurisdicional maior rendimento de produção, são as políticas de conciliação e os meios alternativos de solução de conflitos [publicismo gerencial]. O objeto litigioso é um constructum colaborativo entre o juiz e as partes; o “processo legal devido” é o processo eficiente, maleável, efetivo e ágil, tramitando em autos virtuais e calcado em uma legislação processual aberta; o juiz, sem colocar-se em posição hierárquica, recebe poderes discricionários [judicial case management powers] para a fixação de balizas de atuação para as partes [ativismo regulatório]; não se está preocupado com a trilogia estrutural do processo (jurisdição, ação e processo), mas com uma trilogia funcional (eficiência, organização e celeridade); dá-se extrema ênfase ao procedimento e, em especial, à “engenharia procedimental inventiva e particularizante” (que é um dos saberes práticos arcanos da good judicial governance); o juiz-símbolo do liberalismo social é um “juiz manager, produtivo, plástico, pragmático e informal”, que, advertido do colapso do adversarismo mandevilliano e manietado pelos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, estabelece marcos regulatórios de atuação para as partes, a fim de que não façam um uso irracional do tempo processual e este tenha um desfecho abreviado (em suma, dentro de uma espécie de “pós-keynesianismo processual civil”, o managerial judge não suprime o exercício do contraditório pelas partes, porém, imprime-lhe planejamento calculado e algumas “bitolas corretivas”).


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Ante todas essas considerações, não é difícil concluir que, para os social-liberais, em uma lei processual, o slogan de inspiração deve ser a flexibilidade (conseguida por meio de textos normativos concisos e redigidos sob termos vagos, conceitos jurídicos indeterminados e standards jurídicos, que permitam ao magistrado um raciocínio sobresuntivo). Tudo bem ao gosto do “fetiche business” e das suas reengenharias laboratoriais corporativas... 6. É importante registrar que o gerencialismo processual floresceu, pioneiramente, nos EUA e na Inglaterra (nos quais recebe o nome de case management), que, por força de uma arraigada tradição liberal clássica, sempre foram adeptos do sistema adversarial. Contudo, dentro de uma visão liberal moderna, não mais existe um laissez faire laissez passer: o Estado intervém para dinamizar a vida social. No âmbito processual civil, isso significa que “técnicas” próprias aos processualismos socialista e fascista são utilizadas não para compensar a hipossuficiência da parte socioeconomicamente desfavorecida, ou para fortalecer o Estado perante a sociedade civil, mas para assegurar “the just, speedy, and inexpensive determination of every action and proceeding” [Federal Rules of Civil Procedure dos EUA, Rule 1]. Ou seja, essas “técnicas” – tradicionalmente tidas pelos garantistas como “autoritárias”– são relidas à luz de uma mentalidade managerial. O autoritarismo dá lugar ao gerencialismo. Todavia, compulsando o Civil Procedure Rules inglês de 1999 e The elements of case management: a pocket guide for judges, redigido por William W. Schwarzer e Alan Hirsch (que é um livro de recomendações, editado pelo Federal Judicial Center no ano de 2006, com base no qual os juízes federais norte-americanos têm difundido práticas procedimentalmente ativistas), os garantistas seriam obrigados a dizer que Inglaterra e EUA têm consagrado em seus sistemas processuais as mais odiosas tendências “fascistas” ou “comunistas” (?!). Aliás, tais tendências estariam maculando os sistemas nacionais dos países da Comunidade Europeia, uma vez que esse gerencialismo processual ativista foi elevado à condição de diretriz comunitária atrávés da Recomendação R (1984) 5 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, adotada em 28 de fevereiro


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de 1984 (diretriz essa encampada pelo Dispute Act norueguês de 2005, por exemplo, especialmente pela regra contida no § 9-4). Tudo isso mostra o simplismo com que ainda vem sendo travado o debate entre “garantistas” e “ativistas”. É preciso saber contra qual ativismo os garantistas, todos eles marcadamente neoliberais, se insurgem: contra o protoativismo autoritário publicista dos fascistas, contra o ativismo autoritário engagée do processualismo social, ou contra o neoativismo gerencial do liberalismo moderno? Ou seja, é necessário que os clérigos do garantismo subestimem menos a complexidade do fenômeno ativista, retornem à antessala, refaçam o seu discurso crítico e reassumam a discussão com argumentos menos inexatos. Afinal, a differentia specifica entre os ativismos socialista, publicista e gerencial não é apenas de grau, mas – sobretudo – de natureza (conquanto os garantistas façam uma ginástica acrobática para equipará-los). Enfim, entre o juiz-justiceiro, o juiz-general e o juiz-gerente, existem enormes semelhanças (especialmente de capacidade de mando); ainda assim, as dessemelhanças (especialmente de propósito) são grandes e merecem uma análise mais particularizada. Eis o xis do problema. Além do mais, é imprescindível que os próprios ativistas também refinem o seu discurso e esclareçam se o ativismo judicial que defendem está mais “à esquerda” ou mais “à direita”. Se o establishment ativista julgar-se socialista ou fascista, então o debate entre o garantismo e o ativismo, tal como hoje desenvolvido, terá algum sentido e revelará uma autêntica dicotomia [mors tua vita mea]. No entanto, se ele julgar-se social-liberal, então terá o ônus de demonstrar que o garantismo neoliberal – em sociedades tecnológicas altamente complexas e na economia de mercado globalizada, em que a litigância é massificada, crônica e explosiva – nada mais é do que um fóssil processual do Aufklärung oitocentista e o propagador de uma crepuscular sporting theory of justice [Roscoe Pound]. Além disso, é importante frisar que, na prática, não existem sistemas processuais civis puramente garantistas, ou ativistas. Hodiernamente, a tendência dos ordenamentos jurídicos é fazer com que dentro de si coabitem em harmonia os princípios dispositivo e inquisitivo, posto que – é inegável – sempre se constate a preponderância de um sobre o outro. De qualquer maneira, o direito é um instrumento de segurança para a perqui-


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rição da justiça: os dois valores convivem sem que um consiga nulificar o outro. Por isso, em qualquer sistema processual concretamente considerado, sempre haverá o convívio simultâneo de elementos para a garantia das partes (funcionalizados à concretização do valor-mor da segurança) e de elementos propulsores da iniciativa judicial (direcionados à realização do valor-mor da justiça). Noutras palavras: todo sistema processual não passa de uma heterogeneidade dispositivo-inquisitiva (assim como o direito não passa de uma grande arquitetônica de concordância entre justiça e segurança). A questão de relevo é saber, entretanto, qual a dosagem ótima dessas duas ideias-força. Arrisco-me a dizer que não existe uma resposta universalmente válida: mesmo entre as grandes democracias do Ocidente, um quid de inquisitividade sempre haverá e variará em função de fatores internos de natureza política, econômica, moral, religiosa, jurídico-cultural, etc. De todo modo, esse quantum parece-me ineliminável. Mais: uma vez refratado, o seu espectro revelará infinitas possibilidades combinatórias entre as colorações social, publicista e gerencial. Lembre-se de que Diké, a deusa grega da Justiça, traz os olhos desvendados e a espada em uma das mãos: no processo civil, os olhos expostos representam a vigília judicial sobre a atuação das partes; a espada simboliza um ímpeto mínimo, que é a força dos institutos naturais culturalmente domesticados, sem os quais o direito fenece como uma brandura ingênua. Mesmo assim, a démarche garantista é razoável. Afinal, a prevenção contra o despotismo está longe de ser uma “dádiva-engodo” do liberalismo clássico. Trata-se de insight que continuamente se confirma no dia a dia forense: não raro os juízes ativistas descem ao summum malum da arbitrariedade. Isso acontece com requinte na cultura político-administrativa subdesenvolvida do Brasil, cuja tradição social-estatista, até hoje não superada, se herdou da velha e selvagem estrutura autoritária, paternalista, patrimonialista, mercantilista e clientelista do Estado burocrático e hierarquizado dos tempos de Pombal e da colônia: “Uma paradoxal combinação do nacional-socialismo do século XX e absolutismo modernizante de fins do século XVIII” [J. O. Meira Penna]. Não sem razão, portanto, a Exposição de Motivos do nosso Código de Processo Civil de 1939 já anunciava uma espécie de ativismo judicial, o qual ganhou alguns contornos mais específicos


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no Código Buzaid de 1973. Daí o sincero respeito que se deve devotar ao aggiornamento neoliberal europeu e à adequação das suas preocupações à realidade judicial brasileira. Aliás, no que concerne ao plano das ideias, os garantistas são dignos dos mais elevados encômios, seja porque inseriram na pauta acadêmica uma discussão importantíssima para o aperfeiçoamento dos institutos processuais (que é a relação o direito processual civil e as ideologias político-sociais), seja porque fizeram do cânone liberal um dado “quente” e “subversivo” contra as estruturas potencialmente autoritárias das tecnocracias estatais contemporâneas. Porém, ortodoxos do garantismo enragé têm simploriamente rotulado de “autoritário” – e, muitas vezes, de “comunista” ou “fascista” – tudo que lhes soa oponente, o que vem gerando alguns debates de baixo resultado líquido. Daí a necessidade de reflexões cum grano salis mais penetrantes – especialmente pelos garantistas – sobre as raízes político-ideológicas do gerencialismo processual anglo-saxão. Se essas reflexões advierem de juristas do Brasil, onde o debate entre garantismo e ativismo ainda se mostra in statu nascendi, tanto melhor: poderemos iniciar nossas discussões a partir de traços teóricos um pouco mais precisos.



Da ofensa do voto duplo aos princĂ­pios constitucionais da igualdade e do Estado DemocrĂĄtico de Direito


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Fábio Martins de Andrade Doutor em Direito Público pela UERJ, mestre pela UCAM e advogado

Sumário: Introdução – Violação ao princípio da isonomia – Ensaio jurisprudencial – Violação ao princípio democrático – Possíveis alternativas – Conclusão. Resumo: O estudo busca analisar a ilegitimidade do voto duplo proferido pelo presidente das turmas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais nos casos de empate no cômputo dos votos à luz dos princípios constitucionais da igualdade e do Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Voto duplo – Voto de qualidade. Abstract: The study assesses de illegitimacy of the double vote given by the presidente of the Chambers of the Administrative High Court of Appeals in cases of tied votes under the perspective of the constitutional principles of equality and Rule of Law. Keywords: double vote – Casting vote. 1. Introdução O voto duplo adotado pelo Regimento Interno do CARF, também denominado “voto cumulativo”, viola expressamente a norma constitucionalmente insculpida no caput do artigo 5º da Constituição da República acerca da igualdade de todos perante a lei, e também a própria essência do princípio republicano do Estado Democrático de Direito, determinado no artigo 1º da nossa Lei Maior. Quando do julgamento de Recurso Voluntário no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, face ao empate de votos (3 x 3),


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aplica o presidente da turma, o artigo 54 do Anexo II do Regimento Interno.1 Ocorre que, tal prerrogativa eiva-se de máculas indeléveis. Com efeito, é atribuída apenas aos presidentes das turmas do CARF e, por conseguinte, somente aos Conselheiros representantes da Fazenda Nacional. Além disso, confere apenas a um cidadão que compõe determinada turma do CARF (conselheiro), um tratamento flagrantemente diferenciado, uma condição especial, ou um poder maior do que cada um dos seus pares. Esse cidadão, votando, é capaz de provocar um empate quando somado aos demais votos dos membros integrantes do colegiado, e em seguida, “resolver” esse mesmo empate com o cômputo duplo de seu voto, ao arrepio do postulado da igualdade que deve ser permanentemente observado pela Administração Pública, especialmente em suas manifestações, atos e decisões. Ainda que o Regimento atribuísse ao representante dos Contribuintes o voto duplo, o resultado seria do mesmo modo incompatível com a Constituição Federal, vez que, em um ordenamento jurídico calcado nos princípios norteadores da igualdade ou da isonomia e do Estado Democrático de Direito, não há como se admitir válida uma decisão que, com o voto duplicado de um dos julgadores, modifica e define (distorce) o resultado de um julgamento sobre o qual paira dúvida pelo colegiado acerca da regra a ser aplicada, dúvida essa configurada inequivocamente pelo empate na votação ordinária. Isso porque uma das aplicações do princípio fundamental da igualdade é exatamente evitar ou impedir as situações que possam produzir tratamento diferenciado em relação a pessoas que se encontram em situações idênticas. 2. Violação ao princípio da isonomia Em realidade, inquina-se a aplicação de norma regimental que, violando o postulado da igualdade, atribui ao conselheiro presidente um poder maior do que aquele conferido aos demais julgadores do mesmo órgão e na mesma

1   Eis a dicção do dispositivo: “Art. 54. As turmas ordinárias e especiais só deliberarão quando presente a maioria de seus membros, e suas deliberações serão tomadas por maioria simples, cabendo ao presidente, além do voto ordinário, o de qualidade”.


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assentada na hipótese de empate no julgamento.2 O alcance do conceito de igualdade e, portanto, a identificação, ou não, de sua violação, pode ser evidenciada com maior facilidade se examinada à luz das situações concretas que surgem no cotidiano da sociedade, e que podem provocar sérios gravames de ordem moral e material se não forem corrigidas ou evitadas tempestivamente.3 Como se vê, a doutrina brasileira converge no sentido de que o princípio da igualdade impede que determinada norma institua fatores de discriminação entre seus destinatários, tal como faz o Regimento Interno do CARF, que atribui peso diferente ao voto de um determinado conselheiro (presidente, nomeado pelo ministro da Fazenda, não eleito por seus pares, e sempre representante da Fazenda Nacional), em detrimento dos demais conselheiros, cujos votos acabam por gozar de um valor notoriamente menor. Willis Santiago Guerra Filho corrobora a incompatibilidade entre o princípio da isonomia e a concessão de privilégios a quem quer que seja (in casu, ao presidente da turma julgadora no CARF).4 2    O eminente Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao proferir voto no Mandado de Injunção nº 58 (publicado no DJ de 19/04/1991), explicita o exato alcance desse princípio fundamental, especialmente no que diz respeito ao Poder Público, ao doutrinar que: “O princípio da isonomia, que se reveste de autoaplicabilidade, não é – enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica – suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público – deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob duplo aspecto: o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei – que opera numa fase de generalidade puramente abstrata – constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade”. 3   Cf. CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 55-58. 4   O jurista esclarece que: “Essa incompatibilidade entre a isonomia e a concessão de privilégios vem expressa, por exemplo, na própria definição dada pelo constituinte lusitano ao princípio, no inc. II, art. 13º da CRP, após enunciá-lo no inc. I . Daí que, para um dos mais autorizados exegetas do texto constitucional português – não só por ser Catedrático de Direito Constitucional em Lisboa, mas também por ter sido Deputado-Constituinte em 1976 -, o Prof. Jorge Miranda (1988, p. 240), ‘o sentido primário do princípio é negativo: consiste na vedação de privilégios e discriminações’, definindo, em seguida, privilégios, como ‘situações de


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Resta evidente que o cômputo duplicado do voto de um dos conselheiros que compõem o órgão colegiado competente para decidir caracteriza injusto privilégio e discriminação em relação aos demais. Registre-se, ademais, que este tratamento diferenciado ocorre exatamente na situação de maior acirramento da controvérsia em torno da questão jurídica posta sob julgamento, isto é, quando o entendimento do órgão julgador cinde-se em porções igualitárias através do empate dos votos. 3. Ensaio jurisprudencial Acerca da impossibilidade de prolação de voto duplo pelo presidente, cabe registrar o entendimento do E. Tribunal Regional Federal da 2ª Região5 sobre a interpretação do seu próprio Regimento Interno em causa que versou sobre tema administrativo do referido tribunal (referente aos serventuários): “Note-se que embora o inciso VIII do art. 21 do Regimento Interno diga que o presidente proferirá voto de qualidade, trata-se evidentemente de voto de desempate. Isto, aliás, ficou consignado no acórdão embargado (fls. 65/66). Penso não ser possível, em julgamento judicial, que qualquer julgador profira dois votos na mesma causa e no mesmo julgamento. No caso, o ilustre presidente, com o seu primeiro voto, empatou a votação. Logo a seguir ele mesmo proferiu voto de desempate. Tenho como irregular e descabido esse procedimento. Primeiro, porque o § 1º do art. 148 do Regimento Interno é claro em dizer que se o presidente tiver de votar, e houver possibilidade de se tornar par o número de julgadores, o de menor antiguidade vantagem não fundadas’, e discriminações, por seu turno, como ‘situações de desvantagem’” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2003. p. 134). 5   Embargos de declaração em MS nº 2005.02.01.014093-6; UF: RJ; Órgão Julgador: Plenário; Data da decisão: 14/06/2007; Documento: TRF-200169188; DJU - Data: 16/08/2007 - Página: 95; Relatora: Desembargadora Federal Vera Lucia Lima – g.n.


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Revista da Ajufe não votará. Ocorre que no julgamento deste mandado de segurança, excluindo-se o presidente, o número de votantes era ímpar, tanto que o presidente votou empatando e, depois, votou desempatando. Segundo, porque se o presidente votou, por se tratar de questão constitucional, como lhe permite o regimento, não poderia ter votado o julgador de menor antiguidade. Isto deveria ter sido verificado antes de iniciar a votação. Como o presidente, ao votar pela primeira vez, provocou o empate na votação, deveria ter sido suspenso o julgamento para aguardar-se o voto dos Desembargadores Federais que estavam ausentes naquela sessão (ou pelo menos de alguns deles) que eram nada menos do que 8 (oito), conforme consta do acórdão (fls. 65/66). O que não pode, no meu entendimento, é o presidente votar duas vezes, pois isto não tem amparo legal. Aliás, isto desequilibra, evidentemente, a votação e, consequentemente, compromete o resultado do julgamento. Eu diria até que desequilibra a ‘balança’ da Justiça, fazendo-a pender para um dos lados sem a indispensável equidade e neutralidade que lhe são inerentes. Note-se que o próprio Código de Processo Civil contém mecanismos que evidenciam a necessidade de preservar-se o resultado absolutamente isento dos julgamentos. Assim é que está impedido de votar o juiz que tenha proferido a sentença em primeira instância (art. 134 - III); o que tenha atuado anteriormente no processo como advogado ou membro do Ministério Público (art. 134 - II e IV). Nas sessões de julgamento, quando dois julgadores forem parentes, o que primeiro votar tornará impedido o outro (art. 136). Ora, com muito mais razão não pode um mesmo julgador “julgar” duas vezes o mesmo caso. A hipótese é, pois, de nulidade absoluta do julga-


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209 mento, passível, como se viu, de ser declarada em sede de embargos de declaração. (...)”.

Eis a ementa do acórdão em foco: “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA ORIGINÁRIO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. PRESIDENTE DA SESSÃO DE JULGAMENTO. VOTO DUPLO PARA DESEMPATAR. IMPOSSIBILIDADE (REGIMENTO INTERNO, ARTS. 21 – VIII e 148). 1 - São cabíveis embargos de declaração para apreciar alegação de nulidade processual. 2 - Tendo o presidente do tribunal votado no julgamento do mandado de segurança originário, por se tratar de matéria constitucional e, com o seu voto, provocado empate na votação, não poderia proferir novo voto, já agora para desempatar o julgamento. 3 - No sistema processual pátrio não há previsão de que o mesmo julgador possa proferir dois votos em um mesmo julgamento (mesmo processo), pois a prerrogativa que tem o presidente da Corte de proferir voto de desempate só é cabível quando a votação, sem que o presidente tenha votado, chega a ele empatada. 4 - Tanto isto é verdade que o Código de Processo Civil contém mecanismos que impedem até mesmo quem já tenha atuado no processo de participar de novo julgamento. Assim é que estão impedidos de participar do julgamento no tribunal o juiz que tenha proferido sentença em primeira instância (art. 134 - III); quem já tenha atuado nos autos como advogado ou membro do Ministério Público (art. 134 – II e IV). Além disso, nas sessões de julgamento, quando dois julgadores forem parentes, o que primeiro votar tornará impedido o outro (art. 136).


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Revista da Ajufe 5 - No caso, como estavam ausentes da sessão, justificadamente, alguns membros do tribunal, o correto teria sido suspender-se o julgamento, aguardando-se a próxima sessão para colher os votos deles. 6 - Embargos de declaração do Ministério Público Federal acolhidos para declarar-se nulo o julgamento. Embargos de declaração da União prejudicados”.

O mandado de segurança foi impetrado originariamente no Egrégio Tribunal Regional Federal da 2ª Região. O Ministério Público opôs Embargos de Declaração sustentando a nulidade do julgamento que concedeu a segurança em favor dos Impetrantes em razão de interpretação equivocada do art. 21, inciso VIII, do Regimento Interno do TRF/2ª Região.6 Além dessa regra, há outra, prevista no art. 148, § 1º, do mesmo Regimento Interno, que a legitima, desde que interpretada adequadamente.7 Da leitura dos trechos acima destacados do referido acórdão, verifica-se que a terminologia “voto de qualidade” nessas situações deve ser tratada como verdadeiro “voto duplo”. Nesse sentido, o voto de qualidade é prolatado quando, chegando ao presidente a questão empatada, cabe-lhe, com a prolação de um único voto, desempatar o julgamento e proclamar o resultado final. Verifica-se, por conseguinte, que realmente assim não há adoção do famigerado “voto duplo”. No caso destacado, foi afastada a aplicação do voto duplo, previsto no inciso VIII do art. 21 do RITRF/2ª Região, quando computado duas vezes no julgamento e reconhecida a sua legitimidade quando aplicado como “voto de desempate” (computado apenas uma vez no julgamento).

6   Eis o teor do dispositivo em questão: “Art. 21. São atribuições do presidente: (...). VIII – Proferir, nos julgamentos do Plenário e do Órgão Especial, voto de qualidade e votar quando a questão for de natureza constitucional”. 7   Eis a dicção do dispositivo em referência: “Art. 148. Concluído o debate oral, o presidente tomará os votos do relator e do revisor, se houver. Após, dará a palavra aos outros juízes que se lhe seguirem na ordem de antiguidade decrescente, para que profiram voto no tempo máximo de 15 (quinze) minutos ou peçam vista. § 1º Se o presidente tiver de votar, por estar vinculado ao processo, e em consequência se tornar par o número de julgadores, deixará de votar o vogal de menor antiguidade”.


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O Colendo Plenário do Egrégio Supremo Tribunal Federal, em lapidar decisão, cujo relator foi o eminente ministro Carlos Velloso, interpretou o princípio constitucional da igualdade perante a lei, invocando e confirmando lição do maior dos constitucionalistas brasileiros, Rui Barbosa, evidenciando a procedência e a atualidade da seguinte lição: “Tratando-se de isonomia e de igualdade ou desigualdade entre as pessoas, nunca é demais citar brilhante frase do inolvidável Rui Barbosa em sua ‘Oração aos Moços’ quando destaca: ‘tratar com desigualdade a iguais ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.8 Em acórdão proferido pela E. 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal decorrente do exame do Agravo Regimental no AI nº 682.486, o ministro Marco Aurélio proferiu voto no seguinte sentido: “(...) É possível que em um Colegiado, o cidadão, falível como outro qualquer, como nós também somos, profira um voto, e, neutralizando-se os votos ante o empate dos demais integrantes do colegiado, ele venha a decidir isoladamente? O voto de qualidade, para mim, ele acaba por consubstanciar a existência de um superórgão. Não consigo, diante das guaridas da Constituição dita cidadã por Ulisses Guimarães, concluir que alguém possa ter um poder tão grande de provocar empate, votando, e posteriormente reafirmando a ótica anterior, dirimir esse mesmo empate” (grifamos).

8   Acórdão do Recurso Extraordinário nº 236.604-7 PR, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 06/.08/.1999, Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, Dialética, nº 49, outubro de 1999, p. 165 a 169. O trecho transcrito encontra-se na p. 168 – g.n.


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Na mesma assentada, o ministro Ayres Britto, assim, em resumo, se manifestou: “É possível conferir ao agente estatal que faz parte de uma autarquia federal, da cúpula de uma autarquia federal, a duplicidade de voto, o voto em dobro, o voto dúplice? (...) Isso precisa ser confrontado com a natureza jurídica da autarquia federal CADE e com a natureza jurídica do cargo titularizado pelo prolator do voto em dobro. (...) Por que se falou de República? Porque a República é constituída não de súditos, mas de cidadãos, regidos todos pelo princípio da igualdade. (...) quando se passa de vista o sistema de comandos da Constituição, alvitra esse princípio da República desde o artigo 5º da Constituição cuja voz de comando inicial é essa: ‘Art. 5º todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ...’ Igualdade, aliás, que estava no preâmbulo da Constituição, onde efetivamente está, e volta a ser mencionado na cabeça do artigo 5º. O único valor jurídico que é duas vezes mencionado na cabeça do artigo 5º é o da igualdade, que é da mais entranhada essência da República. Por que ele falou de Estado democrático de Direito? Porque a Constituição consagrou o princípio: um homem, um voto. ‘Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:’ Quando cuidou até de partido político, que é pessoa jurídica de direito privado, a Constituição não deixou de dizer se a estruturação deles obedeceria ao princípio democrático: um homem, um voto. E há outro elemento conceitual da democracia que me parece nesse caso e que


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213 não pode ser ignorado. A democracia se rege pela coisa mais ínsita, mais inerente a ela, que é a majoritariedade. (...) Os órgãos públicos podem decidir ignorando o princípio da majoritariedade? Esse princípio mais que modular da democracia? Pode um dirigente de uma autarquia votar duas vezes? Vossa Excelência lembrou: ele compôs a igualdade - a votação estava em 3 a 2 para a Agravante -, então, ele conseguiu empatar, e ele mesmo desempatou. Isso é democrático, é republicano, é coerente com a Constituição?” (grifamos).

Registre-se, por oportuno, que apesar dos esforços dos ministros Marco Aurélio e Ayres Britto, a 1ª Turma do STF não logrou afetar a discussão ao Pleno, em razão da ausência de prequestionamento da matéria constitucional naqueles autos.9 4. Violação ao princípio democrático A título de reforço da lógica democrática, notadamente diante das palavras acima anotadas e proferidas pelo ministro Ayres Britto no sentido de que a igualdade entre os cidadãos prestigiada na Lei Maior é expressa no que se refere ao direito de voto, constituindo, assim, importante postulado básico do sistema constitucional, vale recordar os exatos termos do artigo 14 da Constituição Federal, que afirma: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei”. 9    Eis a sua ementa: “CONSTITUCIONAL. VOTO VENCIDO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. VOTO DE QUALIDADE. FUNDAMENTO EM NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE. QUESTÃO DE ORDEM. REMESSA AO PLENO. INDEFERIMENTO. REGIMENTAL IMPROVIDO. I - O presquestionamento requer que, na decisão impugnada, haja sido adotada explicitamente a tese sobre a matéria do recurso extraordinário. II - Se, no acórdão recorrido, apenas o voto vencido, isoladamente, tratou do tema constitucional suscitado no RE, não se tem por configurado o prequestionamento. Precedentes. III - O Tribunal de origem decidiu a questão relativa ao voto de qualidade com base em normas infraconstitucionais, o que torna inviável o recurso. IV - Indeferimento de questão de ordem no sentido de se remeter o caso ao Pleno. V - Agravo regimental improvido”.


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A disposição acima transcrita faz alusão à sistemática por intermédio da qual o povo exercerá o poder, como, aliás, está expressamente previsto no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal. No entanto, as linhas gerais do regime democrático apontam que o voto, em regra, deve ser igual para todos. Com efeito, essa igualdade consiste, no plano político, exatamente no impedimento de que o cidadão possa votar mais de uma vez em um mesmo candidato, na mesma eleição, ou ainda de se atribuir, em um regime democrático, um valor diferenciado a um ou outro cidadão em razão de qualquer critério que seja. Trata-se, como bem lembrou o ministro Ayres Britto, da aplicação do princípio democrático norte-americano “um homem, um voto” (one man, one vote). O voto igualitário reflete o vetor da isonomia (art. 5º, caput, da CF), pois cada um dos cidadãos brasileiros tem a mesma importância política. A título ilustrativo, a constitucionalidade da atribuição de pesos diferenciados a votos de eleitores foi debatida diversas vezes na Suprema Corte norte-americana, cujos julgados, como bem destacou o ministro Joaquim Barbosa quando do voto que proferiu nos autos do Recurso Extraordinário nº 631.102, referente ao Caso “Ficha Limpa” – Jader Barbalho, são fonte de inspiração das nossas instituições. Emblemático, nesse sentido, foi o julgamento no caso Reynolds versus Sims, quando restou consagrada a adoção naquele vizinho do norte do princípio “um homem, um voto”: “Em Gray v. Sanders, 372 US 368, decidimos que o sistema unitário distrital da Geórgia, aplicável nas eleições primárias do Estado, era inconstitucional, já que resultaria na diluição do peso dos votos de determinados eleitores meramente em razão do lugar onde eles moram. Depois de indicar que a Décima Quinta e a Décima Nona Emendas proíbem um Estado de sobrepesar ou diluir votos com base em raça ou sexo, afirmamos: Como, então, uma pessoa pode receber duas ou dez vezes o poder de voto de outra pessoa em uma eleição estadual simplesmente porque ela vive em uma área


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215 rural ou porque ela vive no condado rural menor? Uma vez que a unidade geográfica para a qual um representante deve ser escolhido seja designada, todos os que participam nas eleições devem ter um voto igual – independente de sua raça, independentemente do seu sexo, independentemente da sua ocupação, [377 U.S. 533, 558], independentemente da sua renda, e onde quer que sua casa se encontre nessa unidade geográfica. Isso é exigido pela Cláusula de Proteção Igualitária da Décima Quarta Emenda. O conceito de ‘nós, o povo’ sob a Constituição não visualiza preferenciais classes dos eleitores, mas a igualdade entre aqueles que atendam às qualificações básicas. A ideia de que cada eleitor é igual a cada eleitor no seu Estado, quando ele lança o seu voto em favor de um dos vários candidatos concorrentes, é base para muitas das nossas decisões. Prosseguindo, dissemos que ‘não há nenhuma indicação na Constituição no sentido de que endereço ou profissão proporcione um meio válido para a distinção entre os eleitores no interior do Estado’”. E, finalmente, concluiu: “A concepção de igualdade política a partir da Declaração de Independência, até o discurso Gettysburg de Lincoln, para as Emendas Quinze, Dezesseis e Dezenove, pode significar apenas uma coisa – uma pessoa, um voto”.10

10   Traduzimos livremente o texto e grifamos a partir dos seguintes trechos originais: In Gray v. Sanders, 372 U.S. 368, we held that the Georgia county unit system, applicable in statewide primary elections, was unconstitutional since it resulted in a dilution of the weight of the votes of certain Georgia voters merely because of where they resided. After indicating that the Fifteenth and Nineteenth Amendments prohibit a State from overweighting or diluting votes on the basis of race or sex, we stated: ‘How then can one person be given twice or ten times the voting power of another person in a statewide election merely because he lives in a rural area or because he lives in the smallest rural county? Once the geographical unit for which a representative is to be chosen is designated, all who participate in the election are to have an equal vote - whatever their race, whatever their sex, whatever their occupation, [377 U.S. 533, 558] whatever their income, and wherever their home may be in that geographical unit. This is required by the Equal Protec-


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Como se vê, o voto igualitário reflete o vetor da isonomia que alicerça o nosso ordenamento jurídico, com a previsão expressa no caput do art. 5º da Constituição da República, atribuindo a cada cidadão de um Estado Democrático de Direito a mesma importância política. Ora, com muito mais razão, como bem lembrou o ministro Ayres Britto, é adotada, em nossos órgãos julgadores colegiados, a definição de que justo e constitucional em uma escolha ou julgamento é atribuir o mesmo valor ao voto de cada um (cidadão ou julgador). Cumpre registrar que, em outra situação, o E. Tribunal Regional Federal da 1ª Região adotou entendimento no sentido de que a prolação de mais de um voto por um mesmo julgador é ilegítima. Veja-se o que manifestou a Exma. Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso, relatora da Apelação Cível nº 2000.34.00.045920-6/DF, em seu voto: “No âmbito administrativo, da decisão que julgou procedente a ação fiscal, a empresa impetrante apresentou recurso voluntário. Por maioria de votos, a 2ª Câmara do Segundo Conselho de Contribuintes, presidida pelo Conselheiro Marcos Vinicius Neder de Lima, deu parcial provimento ao recurso em 25/02/1997 (fl. 225). Interposto recurso especial de divergência pela empresa, o mesmo Conselheiro, Marcos Vinicius Neder de Lima, em novembro de 1997, por despacho, negou-lhe seguimento (fl. 267). A apelada, inconformada com o despacho 20208.957, formulou pedido de reexame, encaminhado à 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, tention Clause of the Fourteenth Amendment. The concept of `we the people’ under the Constitution visualizes no preferred class of voters but equality among those who meet the basic qualifications. The idea that every voter is equal to every other voter in his State, when he casts his ballot in favor of one of several competing candidates, underlies many of our decisions. Continuing, we stated that ‘there is no indication in the Constitution that homesite or occupation affords a permissible basis for distinguishing between qualified voters within the State.’ And, finally, we concluded: ‘The conception of political equality from the Declaration of Independence, to Lincoln’s Gettysburg Address, to the Fifteenth, Seventeenth, and Nineteenth Amendments can mean only one thing - one person, one vote” (Disponível em: ‹http:// caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=US&vol=377&invol=533#t36›. Acesso em: 09.05.2012).


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217 do como relatora a Conselheira Luiza Helena Galante de Mourão, que reformou o despacho da lavra do Conselheiro Presidente da 2ª Câmara do 2º Conselho de Contribuintes, admitindo o processamento do Recurso Especial de Divergência. No Plenário da Câmara Superior de Recursos Fiscais, colegiado que o referido conselheiro compõe, participante da sessão de julgamento, ficou assentada a não admissão do recurso especial (fls. 280-281). O art. 14 da Portaria 538/1992, que aprovou o Regimento Interno do Segundo Conselho de Contribuintes, estabelece o impedimento dos conselheiros e procuradores de participar do julgamento dos recursos em que tenham: sido atuantes nos processos; praticado ato decisório na 1ª instância; interesse econômico e financeiro, direto ou indireto; parentes, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, interessados no litígio (fl. 302). A Portaria 540/1992 aprovou o Regimento Interno da Câmara Superior de Recursos Fiscais. No art. 13, estão previstas as hipóteses de impedimento dos conselheiros e, entre elas, a prática de ato decisório na primeira instância (fl. 308). Em 1998, foi editada a Portaria Ministerial 55, que aprovou os Regimentos Internos da Câmara Superior de Recursos Fiscais e dos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda. Está disposto, em ambos, o impedimento dos conselheiros de participar do julgamento dos recursos em que tenham sido atuantes nos processos e que tenham praticado ato decisório na 1ª instância (arts. 13 e 15, fls. 316 e 335, respectivamente). O entendimento firmado na sentença quanto à afronta ao Regimento Interno da Câmara Superior está correto, pois o mesmo conselheiro atuou em três fases do processo administrativo fiscal.


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Revista da Ajufe Contrariamente ao alegado nas razões recursais da União, está flagrante o óbice regimental quanto à participação do Conselheiro, Marcos Vinicius Neder de Lima, no julgamento do pedido de reexame. Do parecer do representante do MPF, destaco que restou configurada ofensa ao princípio da imparcialidade. Da mesma forma que é vedado ao juiz exercer jurisdição no processo em que tiver funcionando como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão (art. 252, CPC), é razoável que tal interpretação seja estendida aos processos administrativos”.11

Ora, se a prolação de dois ou mais votos pelo mesmo julgador, em diferentes instâncias de julgamento, ofende o princípio da imparcialidade, é certo que também a prolação de dois votos por um julgador em uma única assentada igualmente ofende o referido princípio. Cabe ainda lembrar que, nas associações e em conselhos diversos, a igualdade de direitos conduz a que cada um seja titular de um voto. Nas sociedades, diversamente, mas mantendo viva a chama da igualdade, os votos poderão ser contados segundo o valor das quotas de capital. Aqui, particularmente, o tratamento diferenciado justifica-se, uma vez que, tendo a sociedade finalidade exclusivamente econômica, a possibilidade de influenciar em seus destinos será diretamente proporcional ao capital nela investido. Não há, pelo que se pode depreender, como indicar um critério apto a justificar a flagrante desigualdade imposta pelo artigo 54 do Anexo II do Regimento Interno do CARF, justamente entre os seus próprios integrantes, permitindo que a apenas um deles, e nesse ponto não importa se representante da Fazenda Nacional ou dos Contribuintes, seja dado provocar o empate e, na sequência imediata, seja dado o privilégio de definir (distorcer) o resultado do julgamento, fazendo prevalecer uma suposta “maioria”, quando essa, na realidade, não se verificou, na medida em que foi alcançado empate no cômputo dos votos

11   AMS 200034000459206, desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, TRF1 - Oitava Turma, e-DJF1 04/12/2009 - g.n.


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prolatados pelos membros integrantes do órgão colegiado. Falta, desse modo, correlação lógica entre o fato adotado como discrímen – a circunstância de ser presidente de uma das turmas do CARF – vaga esta que nunca é concedida a um representante dos contribuintes em um tribunal administrativo que se diz paritário – e a discriminação feita: cômputo duplicado de voto. Em respeito ao princípio da igualdade e de outros postulados constitucionais, a legislação interna dos órgãos colegiados administrativos deveria estabelecer mecanismos capazes de solucionar conflitos desse tipo. 5. Possíveis alternativas Cuidando-se especificamente do CARF, é importante registrar que não há outra previsão regimental que possa solucionar o embaraço do empate no cômputo dos votos sem a adoção da espúria sistemática do voto duplo. Não existe, por exemplo, disposição que determine, antes mesmo da injusta adoção do voto duplo, a convocação de outro conselheiro, ainda que presidente de outra turma, ou sorteado dentre os conselheiros substitutos, para proferir o voto de desempate necessário à proclamação do resultado final. Em suma, outro conselheiro julgador, cujo peso de sua manifestação pelo voto seja exatamente igual ao de seus pares. É esta “criatividade normativa” que evolui para os fins de se evitar – no exercício da prestação jurisdicional emanada dos tribunais – as violações dos postulados constitucionais da igualdade, devido processo legal, juiz natural, razoabilidade, dentre outros, amplamente percebida e presente nos Regimentos Internos dos tribunais. Nesse sentido, a título de se demonstrar que, diferentemente do que ocorre no âmbito do CARF, é possível a todos os colegiados a adoção de normas internas que busquem preservar a melhor prestação jurisdicional, sendo oportuno destacar as seguintes regras regimentais, no âmbito dos Tribunais Superiores da República. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, constam diversas regras que trazem critérios capazes de solucionar a delicada questão do empate no cômputo dos votos.


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Em caso de empate em votação de uma das turmas do STF – na qual o presidente sempre tem direito a voto – adia-se a decisão até tomar-se o voto do ministro que esteve ausente (art. 150, § 1º). Ausente por mais de um mês, convoca-se ministro da outra turma, na ordem decrescente de antiguidade (art. 150 § 2º). Há exceção no caso de empate em julgamento de habeas corpus e recursos em matéria criminal (exceto recurso extraordinário), em que prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente ou réu (art. 150 § 3º). Já nos julgamentos do Pleno do STF, a regra geral é que havendo empate na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, considerar-se-á julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta, à exceção do julgamento de habeas corpus, e seus recursos, quando proclamar-se-á, na hipótese de empate, a decisão mais favorável ao paciente (art. 146, parágrafo único). Como atribuições do presidente, cabe proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de ministro em virtude de: a) impedimento ou suspeição; b) vaga ou licença médica superior a 30 dias, quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o ministro licenciado. Na hipótese específica de julgamento de mandado de segurança contra ato do presidente do Supremo Tribunal Federal ou do Conselho Nacional de Justiça será presidido pelo vice-presidente, se lhe couber votar e seu voto produzir empate, observar-se-á o seguinte: I – não havendo votado algum ministro, por motivo de ausência ou licença que não deva durar por mais de três meses, aguardar-se-á o seu voto; II – havendo votado todos os ministros, salvo os impedidos ou os licenciados por período remanescente superior a três meses, prevalecerá o ato impugnado. Verifica-se, portanto, o caráter residual e subsidiário do voto duplo dentre o amplo elenco de possíveis alternativas para solucionar a questão quando do empate de votos. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sequer consta a previsão que atribui ao presidente a prerrogativa do voto duplo (não constando nem como regra residual e subsidiária). Em caso de empate em votação de uma das turmas do STJ – na qual o presidente sempre tem direito a voto – adia-se a decisão até tomar-se o voto do mi-


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nistro que esteve ausente (art. 181, § 2º). Ausente por mais de um mês, convoca-se ministro da outra turma, na ordem decrescente de antiguidade (art. 181 § 3º e art. 55, parágrafo único). Há exceção no caso de empate em julgamento de habeas corpus e recursos em matéria criminal (exceto recurso especial), em que prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente ou réu (art. 181, § 4º). Já nos julgamentos do Pleno, da Corte Especial ou das Seções do STJ, a regra geral é que o presidente vote somente quando o julgamento depender de quórum qualificado de 2/3 (dois terços) dos membros para apuração do resultado (art. 175, inc. I) ou em caso de empate (art. 21, inc. VI; art. 24, inc. I e art. 175, inc. III). Nos julgamentos em que haja previsão regimental de voto do presidente, se houver empate – por impedimento de algum dos demais ministros – convoca-se para completar o quórum outro ministro do STJ, por ordem de antiguidade (art. 55 caput), ou juiz convocado de Tribunal Regional Federal (art. 56). Verifica-se, por conseguinte, no tocante ao RISTF, por exemplo, variados critérios aptos a promover o desempate de determinado julgamento, chegando inclusive ao casuísmo de diferentes situações específicas. Quando do julgamento de turma, de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, de habeas corpus e seus recursos e de ato do presidente do STF ou do CNJ, há diferentes soluções previstas regimentalmente para cada uma dessas hipóteses. Por fim, quando o RISTF não previr solução diversa, o que de plano afasta cada uma das hipóteses anteriormente colocadas, quando o empate decorrer da ausência de ministro nas condições que especifica, aí sim, e somente aí, é que caberá ao presidente proferir o voto de qualidade. Não obstante, o então presidente do STF, eminente ministro Cezar Peluso, quando o plenário chegou ao empate no julgamento do RE 630.147 (Caso Ficha Limpa – Joaquim Roriz), afirmou expressamente a respeito do voto de qualidade previsto no inciso IX do art. 13 do RISTF: “Eu não tenho nenhuma vocação para déspota, nem acho que o meu valha mais do que qualquer dos outros Ministros, porque, se valesse, cinco Ministros não teriam discordado do meu voto!” (pág. 340 do acórdão - julgado em 29/09/2010, DJe-230 Divulg 02-12-2011 Public 05-12-2011 Ement Vol-02639-01).


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6. Conclusão Enquanto se percebe a constante preocupação dos tribunais judiciais pátrios para preservar os julgamentos das violações constitucionais já mencionadas, o CARF, por sua vez, anda na contramão em detrimento das garantias individuais. Diante disso, verifica-se o necessário afastamento da aplicação do art. 54 do Anexo II do Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, aprovado pela Portaria MF nº 256, de 22 de junho de 2009, que permite a aplicação do voto duplo, vez que flagrante a violação ao princípio da igualdade previsto no caput do art. 5º e ao princípio do Estado Democrático de Direito, estabelecido no art. 1º, ambos da Constituição da República. 7. Referências bibliográficas ANDRADE, Fábio Martins de. Dúvida, empate no julgamento e interpretação mais favorável ao contribuinte. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Ed. Dialética, n. 215, ago 2013, p. 88-98. CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2003. STF - Acórdão do Recurso Extraordinário nº 236.604-7 PR, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 06.08.1999, in Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, nº 49, outubro de 1999, p. 165 -169. STF – Acórdão do Recurso Extraordinário nº 630.147-DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29.09.2010, DJe 02.12.2011. TRF/1ª Região - AMS 200034000459206, Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso, TRF1 - Oitava Turma, e-DJF1 04/12/2009.


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Estados Liberal, Social e Democrático de Direito: noções, afinidades e fundamentos


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Leonardo Cacau Santos La Bradbury Juiz Federal Substituto, Mestre em Estado, Políticas Públicas e Educação pela UNIOESTE, Professor da Escola da Magistratura e da UNIVEL.

Resumo: O presente artigo busca analisar as principais características dos Estados Liberal, Social e Democrático, seus fundamentos, pontos em comum, noções e estrutura político-econômica. Busca-se, através dessa interpretação histórica, melhor entender os alicerces que regem o Estado Democrático de Direito e a nova ordem jurídica implementada pela Constituição Federal de 1988, a fim de que se possa realizar, atualmente, uma interpretação teleológica, buscando alcançar a finalidade da norma jurídica. Palavras-chave: Estado Liberal. 2. Estado Social. 3. Estado Democrático de Direito. 5. Direitos Fundamentais. Abstract: The present article aims to analyze the main characteristics of the Liberal, Social and Democratic States, its foundations, commonalities, notions and politic-economic structure. It seek, through this historical interpretation, better understand the foundations that underpinning the Democratic Law State and the new legal order implemented by the Federal Constitution of 1988, so that it can realize, actually, a theological interpretation to seek the juridical norm purpose. Keywords: Liberal State. 2. Social State. 3. Democratic Law State. 5. Fundamental Rights.

1. Surgimento do Estado Liberal O Estado de Direito Liberal institucionalizou-se após a Revolução Francesa de 1789, no fim do século XVIII, constituindo o primeiro regime jurídico-político da sociedade que materializava as novas relações econômicas e sociais, colocando de um lado os capitalistas (burgueses em ascensão) e do


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outro a realeza (monarcas) e a nobreza (senhores feudais em decadência). A Revolução de 1789 foi uma revolta social da burguesia, inserida no Terceiro Estado francês, que se elevou do patamar de classe dominada e discriminada para dominante e discriminadora, destruindo os alicerces que sustentavam o absolutismo (antigo regime), pondo fim ao Estado Monárquico autoritário. O lema dos revolucionários era “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, que resumia os reais desejos da burguesia: liberdade individual para a expansão dos seus empreendimentos e a obtenção do lucro; igualdade jurídica com a aristocracia visando à abolição das discriminações; e fraternidade dos camponeses e sans-cullotes1 com o intuito de que apoiassem a revolução e lutassem por ela. Podemos citar, consoante os ensinamentos de José de Albuquerque Rocha2 e de Carlos Ari Sundfeld,3 as seguintes características básicas do Estado Liberal: não intervenção do Estado na economia, vigência do princípio da igualdade formal, adoção da Teoria da Divisão dos Poderes de Montesquieu, supremacia da Constituição como norma limitadora do poder governamental e garantia de direitos individuais fundamentais. Nesse contexto, a classe burguesa emergente detinha o poder econômico, enquanto que o poder político estava sob o domínio da realeza e da nobreza. Logo, percebe-se que o princípio da não intervenção do Estado na economia, defendido pelo Estado Liberal, foi uma estratégia da burguesia para evitar a ingerência dos antigos monarcas e senhores feudais nas estruturas econômicas da época, garantindo a liberdade individual para a expansão dos seus empreendimentos e a obtenção do lucro. Dessa forma, os capitalistas em ascensão tinham liberdade para ditar a

1   Sans-culottes (tradução: sem-calças): população pobre de Paris, formada pela massa de artesãos, aprendizes, lojistas, biscateiros e desempregados; teve importante participação nos acontecimentos revolucionários de 1789 a 1794. 2  ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 126. 3   SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7ª tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo.


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economia a seu favor, através da prática da autorregulação do mercado, a qual está sendo bastante utilizada atualmente, por meio do surgimento do Estado Neoliberal. Pregava-se a mínima intervenção do Estado na economia, criando a figura do “Estado Mínimo”, defendendo a ordem natural da economia de mercado, com o escopo de expandir seus domínios econômicos. Outra característica do Estado Liberal é a defesa do princípio da igualdade, uma das maiores aspirações da Revolução Francesa. Porém, é preciso observar quais os fatores que influenciaram a burguesia em ascensão a pregar a aplicação de tal princípio. Ressalte-se que a igualdade aplicada é tão-somente a formal, na qual se buscava a submissão de todos perante a lei, afastando-se o risco de qualquer discriminação. Logo, sob o manto de tal fundamento, todas as classes sociais seriam tratadas uniformemente, pois as leis teriam conteúdo geral e abstrato, não sendo específicas para determinado grupo social. Trata-se de outra tática da burguesia, pois se sabe que o sistema feudal possuía uma estrutura estamental ou de ordens, isto é, era composto por várias classes sociais, a que correspondiam diferentes ordenamentos jurídicos. Essa pluralidade de textos legais vigentes representava que a lei e a jurisdição eram distintas, variando conforme o grupo social do destinatário da norma. Tal situação acabava fazendo com que a realeza e a nobreza tivessem uma série de privilégios, enquanto a burguesia era discriminada. A fim de demonstrar tal situação de discriminação existente à época, importante transcrever um trecho da Carta de Reclamações do Terceiro Estado da Paróquia de Longey, presente na obra de Kátia M. de Queiroz Mattoso: “[...] pedimos também que as talhas com as quais a nossa paróquia está sobrecarregada sejam abolidas; que este imposto que nos oprime, e que só é pago pelos infelizes, seja convertido num só e único imposto ao qual devem ser submetidos todos os eclesiásticos e nobres sem distinção, e que o produto deste imposto seja


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229 levado diretamente ao Tesouro4.”4 (grifo nosso).

Percebe-se, pois, que esse grande número de ordenamentos jurídicos gerava temor à classe burguesa, pois temia que a nobreza, ainda detentora do poder político, continuasse implementando leis que conferissem privilégios apenas à sua casta. Então, os capitalistas idealizaram a criação de um único ordenamento jurídico, defendendo a igualdade formal, no qual todos eram iguais perante a lei, que possuía conteúdo geral e abstrato, aplicando-se indiscriminadamente a todos os grupos sociais, não permitindo o estabelecimento de prerrogativas para determinada classe em detrimento das outras, surgindo o conceito de Estado de Direito e a figura da Constituição, que passava a limitar os poderes do governante, visando conter seus arbítrios, que preponderavam no Estado Monárquico, resumidos na conhecida frase de Luiz XIV, símbolo do poder pessoal: “l´État cést moi”.5 No tocante à Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu, adotada pelo Estado Liberal, José de Albuquerque Rocha observa que o objetivo de Montesquieu ao idealizar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário era preservar os privilégios da sua própria classe, a nobreza, ameaçada tanto pelo rei, que almejava recuperar sua influência nacional, quanto pela burguesia, que, dominando o poder econômico, intentava o poder político.6 Elaborou, então, sua teoria que repartia o poder entre a burguesia, a nobreza e a realeza, afastando, desse modo, a possibilidade de a burguesia em crescimento ser a sua única detentora. Assim, o Estado de Direito, na precisa lição de Carlos Ari Sunfeld, pode ser definido: “[...] como o criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o 4   MATTOSO, Kátia M. de Queiróz. Textos e documentos para o estudo da história contemporânea, 1789 – 1963, São Paulo, HUCITEC: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977. 5   CALMON, Pedro. Curso de Teoria Geral do Estado. 3ª .ed.: São Paulo, 1949, p.95. 6   ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 128.


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Revista da Ajufe exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado”.7

Dessa feita, o Estado de Direito criou a figura do direito subjetivo público, isto é, a possibilidade de o cidadão, sendo o titular do direito, ter a faculdade de exigi-lo (facultas agendi) em desfavor do Estado, regulando a atividade política, situação que não era prevista no Absolutismo, no qual apenas estabelecia direito subjetivo dos indivíduos nas suas relações recíprocas, isto é, o cidadão podia exigir o cumprindo de uma obrigação pactuada com outro cidadão, mas não em face do Estado. Dessa forma, o Estado de Direito, ao passar a impedir o exercício arbitrário do poder pelo governante e garantir o direito público subjetivo dos cidadãos, reconhece, constitucionalmente, e de uma forma mínima, direitos individuais fundamentais, como a liberdade (apregoada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual foi mantida como preâmbulo da Constituição Francesa de 1791), consoante os ensinamentos de Norberto Bobbio, assim delineados: “Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio invioláveis”.8 7  SUNDELD Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7ª tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, p.38/39. 8   BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, pág. 19.


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Assim, o Estado Liberal cria os chamados “direitos de primeira geração”, que decorrem da própria condição de indivíduo, de ser humano, situando-se, desta feita, no plano do ser, de conteúdo civil e político, que exigem do Estado uma postura negativa em face dos oprimidos, compreendendo, dentre outros, as liberdades clássicas, tais como, liberdade, propriedade, vida e segurança, denominadas, também, de direitos subjetivos materiais ou substantivos. É preciso ressaltar que tais direitos exigiam do Estado uma conduta negativa, isto é, uma omissão estatal em não invadir a esfera individual do nacional, que deixou de ser considerado mero súdito, elevando-se à condição de cidadão, detentor de direitos tutelados pelo Estado, inclusive contra os próprios agentes estatais. Ao lado dos direitos subjetivos materiais, criaram-se as garantias fundamentais, também chamadas de direitos subjetivos processuais (ou adjetivos, ou formais, ou instrumentais), visando, efetivamente, assegurar os direitos substantivos, como, p.ex., o habeas corpus, que tem o escopo de assegurar o direito à liberdade. 2. Criação do Estado Social A igualdade tão-somente formal aplicada e o absenteísmo do Estado Liberal em face das questões sociais apenas serviram para expandir o capitalismo, agravando a situação da classe trabalhadora, que passava a viver sob condições miseráveis. O descompromisso com o aspecto social, agravado pela eclosão da Revolução Industrial, que submetia o trabalhador a condições desumanas e degradantes, a ponto de algumas empresas exigirem o trabalho diário do obreiro por 12 horas ininterruptas, culminou com a Revolução Russa de 1917, conduzindo os trabalhadores a se organizarem com o objetivo de resistir à exploração. Esse movimento configurava a possibilidade de uma ruptura violenta do Estado Liberal, devido à grande adesão de operários do ocidente europeu. A burguesia, hesitando a expansão dos ideais pregados pela Revolução Russa, adotou mecanismos que afastassem os trabalhadores da opção revolucioná-


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ria, surgindo, então, o Estado Social, com as seguintes características: intervenção do Estado na economia, aplicação do princípio da igualdade material e realização da justiça social. A burguesia, agora detentora do poder político, passou a defender o intervencionismo estatal no campo econômico e social, buscando acabar com a postura absenteísta do Estado, preocupando-se com os aspectos sociais das classes desfavorecidas, conferindo-lhes uma melhor qualidade de vida, com o único intuito de conter o avanço revolucionário. Para alcançar tal intento, os capitalistas tiveram que substituir a igualdade formal, presente no Estado Liberal, que apenas contribuiu para o aumento das distorções econômicas, pela igualdade material, que almejava atingir a justiça social. O princípio da igualdade material ou substancial não somente considera todas as pessoas abstratamente iguais perante a lei, mas se preocupa com a realidade de fato, que reclama um tratamento desigual para as pessoas efetivamente desiguais, a fim de que possam desenvolver as oportunidades que lhes assegura, abstratamente, a igualdade formal. Surge, então, a necessidade de tratar desigualmente as pessoas desiguais, na medida de sua desigualdade. Assim, Carlos Ari Sundfeld sintetiza, afirmando que: “O Estado torna-se um Estado Social, positivamente atuante para ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a elevação do nível cultural e a mudança social) e a realização da justiça social (é dizer, a extinção das injustiças na divisão do produto econômico)”.9 Há, assim, uma semelhança entre o Estado Social e o Estado de Direito, na medida em que foi este, como vimos no tópico anterior, que originou o conceito de direito público subjetivo, cabendo àquele a abrangência de seu

9   SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, pág. 55.


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alcance, regulando, mais efetivamente, atividades políticas governamentais. Sobre as semelhanças e as diferenças existentes entre essas duas formas de Estado, Gordillo assim enuncia: “A diferença básica entre a concepção clássica do liberalismo e a do Estado de Bem-Estar é que, enquanto naquela se trata tão-somente de colocar barreiras ao Estado, esquecendo-se de fixar-lhe também obrigações positivas, aqui, sem deixar de manter as barreiras, se lhes agregam finalidades e tarefas às quais antes não sentia obrigado. A identidade básica entre o Estado de Direito e Estado de Bem-Estar, por sua vez, reside em que o segundo toma e mantém do primeiro o respeito aos direitos individuais e é sobre esta base que constrói seus próprios princípios.”.10 Verifica-se, assim, que o Estado Social (ou do Bem-Estar), apesar de possuir uma finalidade diversa da estabelecida no Estado de Direito, possui afinidades, uma vez que utiliza deste o respeito aos direitos individuais, notadamente o da liberdade, para construir os pilares que fundamentam a criação dos direitos sociais. Surgem, desta forma, os “direitos de segunda geração”, que se situam no plano do ser, de conteúdo econômico e social, que almejam melhorar as condições de vida e de trabalho da população, exigindo do Estado uma atuação positiva em prol dos explorados, compreendendo, dentre outros, o direito ao trabalho, à saúde, ao lazer, à educação e à moradia.11 Como visto no capítulo anterior, percebe-se que os direitos públicos subjetivos criados, minimamente, pelo liberalismo, exigiam uma postura estatal negativa, enquanto que o Estado Social reclamava por uma conduta positiva,

10   GORDILLO, Agustín. Princípios Gerais de Direito Público. Trad. Brasileira de Marco Aurelio Greco. Ed. RT: São Paulo, 1977, pág. 74. 11   Inserida no rol do art.6º da C.F./88 por meio da Emenda Constitucional nº 26/2000.


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dirigente, ativista, em que se implementassem políticas governamentais que, efetivamente, garantissem o mínimo de bem-estar à população. Assim, ampliam-se os direitos subjetivos materiais, exigindo um compromisso dos governantes em relação aos governados, com vistas a lhes proporcionar, dentre outros, direito à educação, à saúde e trabalho, que se situam no plano do ter, diferentemente dos direitos assegurados pelo liberalismo, que se estabelecem no plano do ser. Assim, o Estado de Bem-Estar busca implementar a seguinte premissa lógica: “É preciso ter para ser”. Ou seja, é necessário ter, materialmente, um mínimo de direitos assegurados e realizados para que o indivíduo possa ser, realmente, um cidadão. Por essa razão, como nos ensina Carlos Ayres de Britto,12 os direitos sociais são todos indisponíveis (não potestativos), pois são um meio para se alcançar a plenitude do ser humano, enquanto que os direitos individuais dividem-se em disponíveis (potestativos) ou indisponíveis (não potestativos). O ilustre ex-ministro do STF, de forma brilhante, nos ensina a Teoria da Essencialidade dos Direitos Sociais, pois os considera como condições materiais objetivas de concretização dos próprios direitos individuais, ao nos alertar para a seguinte constatação: serve o direito à inviolabilidade do domicílio se a pessoa não tem casa? Ou, em outras palavras, de que se serve o direito ao sigilo da correspondência se a pessoa não tem endereço? Sintetizando sua teoria, Carlos Ayres Britto cita um ensinamento de Santo Agostinho, que dizia: “Sem o mínimo de bem-estar material, não se pode nem louvar a Deus”. Cumpre registrar que a primeira Constituição a consagrar os direitos sociais foi a do México, de 1917, apesar de a Constituição Alemã de 1919 (de Weimar) ser a mais conhecida. No Brasil, a primeira Constituição a prever em seu texto os direitos sociais foi a de 1934, época do governo de Getúlio Vargas, que consagrou os direitos trabalhistas.

12   BRITTO, Carlos Ayres de. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Aula Magna exibida em 12.10.06 na TV Justiça (Canal 04 da NET).


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3. Estado Democrático de Direito O Estado Democrático de Direito surge como uma tentativa de corrigir algumas falhas presentes no Estado Social. O publicista Jose Afonso da Silva nos ensina que a igualdade pregada pelo Estado Liberal, fundada num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis, como analisado anteriormente, não tem base material que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso, na doutrina do constitucionalista, foi a construção do Estado Social, que, no entanto, não conseguiu garantir a justiça social nem a efetiva participação democrática do povo no processo político.13 O Estado Social, consoante os ensinamentos de Paulo Bonavides, não atendia efetivamente aos anseios democráticos, pois a Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, a Inglaterra de Churchill, bem como o Brasil de Vargas tiveram essa estrutura política, concluindo o ilustre constitucionalista que “o Estado Social se compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo”.14 Surge, então, o Estado Democrático de Direito, que, na doutrina de Ivo Dantas, concilia “duas das principais máximas do Estado Contemporâneo, quais sejam a origem popular do poder e a prevalência da legalidade”.15 Fundem-se, assim, as diretrizes do Estado Democrático com as do Estado de Direito, tendo em vista que formam uma forte relação de interdependência, brilhantemente observada por Bobbio, nos seguintes termos: “Estado Liberal e estado democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas

13   SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 118. 14    BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 205-206. 15   DANTAS, Ivo. Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1989, p.27.


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Revista da Ajufe liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais.”16

Assim, forma-se um vetor de mão dupla: o direito fundamental da liberdade, garantido pelo Estado de Direito, é necessário para o regular exercício da democracia, a qual é condição singular para a existência, a manutenção e a ampliação desses direitos e garantias individuais, razão pela qual surge o Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de Direito cria os “direitos de terceira geração”, que se situam no plano do respeito, de conteúdo fraternal, compreendendo os direitos essenciais ou naturalmente coletivos, isto é, os direitos difusos e os coletivos strictu sensu, passando o Estado a tutelar, além dos interesses individuais e sociais, os transindividuais (ou metaindividuais), que compreendem, dentre outros, o respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a paz, a autodeterminação dos povos e a moralidade administrativa. Ressalta-se que Paulo Bonavides,17 em precisa lição, nos alerta sobre a existência dos “direitos de quarta geração”, ao nos ensinar que a “globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social”, compreendendo, entre outros, o direito à democracia, à informação e ao pluralismo político, étnico e cultural. Ademais, convém frisar, neste contexto de mundo globalizado, o pensa-

16    BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma Defesa das Regras do Jogo. Trad. Brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, pág.20. 17   BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 524-526.


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mento oportuno de Peter Häberle,18 ao afirmar que vivemos em um Estado Constitucional Cooperativo, no qual a figura estatal não se apresenta voltada para si mesmo, mas sim como referência para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, no qual ganha importância o papel dos direitos humanos fundamentais, gerando a ideia da criação de um direito comunitário internacional. 3.1 Fundamentos O Estado Democrático de Direito, assentado nos pilares da democracia e dos direitos fundamentais, surge como uma forma de barrar a propagação de regimes totalitários, que, adotando a forma de Estado Social, feriam as garantias individuais, maculando a efetiva participação popular nas decisões políticas. No Estado Democrático de Direito, coexistem harmonicamente o Princípio da Soberania Popular, aplicado através do regime democrático, e o da Legalidade, herança do Estado Liberal. Cumpre expormos alguns conceitos de “democracia”, a fim de melhor entendermos o seu alcance e significado. Pinto Ferreira a define como: “[...] governo constitucional das maiorias que, sobre as bases de uma relativa liberdade e igualdade, pelo menos a igualdade civil (a igualdade diante da lei), proporciona ao povo o poder de representação e fiscalização dos negócios públicos”.19 Paulo Bonavides complementa, afirmando que democracia é:

18    HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. de Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. p. 75-77. 19   FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7ª.ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.88.


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Revista da Ajufe “[...] aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto – a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo de todo o poder legítimo”.20

Não podemos deixar de mencionar a célebre definição de democracia conferida por Lincoln, o libertador dos escravos, afirmando ser o “governo do povo, para o povo e pelo povo”.21 José Afonso da Silva, citando os ensinamentos de Emilio Crosa, delimita o alcance da democracia: “[...] a democracia impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento”.22 Logo, na busca por instaurar a plena incorporação do povo nos mecanismos de controle das decisões políticas, surge o Estado Democrático de Direito, por meio da fusão dos conceitos de Estados de Direito e Democrático, aplicando, sob o crivo da legalidade, os ditames democráticos, e garantindo, em sua plenitude, os direitos humanos fundamentais. 3.2 Promulgação pela Constituição Republicana de 1988 O Estado Democrático de Direito foi proclamado pela Constituição da Re-

20   BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 17. 21    Ibid., p. 18. 22    SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 117, apud Emili Crosa, Lo Stato democrático, p.25.


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pública Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo primeiro, que, consoante as lições de José Afonso da Silva, não se trata de “mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já está proclamando e fundando”. 23 A Carta de Outubro, por meio do regime democrático, busca garantir a participação popular no processo político, estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária, em que todo o poder emana do povo, diretamente ou por representantes eleitos, respeitando a pluralidade de ideias, culturas e etnias, considerando o princípio da Soberania Popular como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.24 O legislador constituinte conferiu tamanha importância aos direitos e às garantias individuais, que os enquadrou logo no título segundo da Constituição, no qual incluiu o artigo quinto, que possui 78 incisos, o mais extenso artigo da Carta Fundamental. Importante perceber que o Estado Democrático de Direito, instituído no Brasil pela Carta Republicana de 1988, não se resume na participação dos cidadãos no processo político, formando as instituições representativas. Na perspectiva da doutrina de Ivo Dantas “deve-se evitar que se confunda, por qualquer motivo, a defesa do Estado Democrático de Direito com a defesa de um ‘sistema político’ que nem sempre representa o verdadeiro conceito de democracia”.25 Logo, assentado nos pilares da democracia e dos direitos fundamentais, o regime democrático brasileiro garante não somente a participação de todos os cidadãos no sistema político nacional, mas também busca, por todos os meios assegurados constitucional e legalmente, preservar a integridade dos direitos essenciais da pessoa humana. Carlos Ari Sundfeld26 defende que “o Estado brasileiro de hoje constrói

23    SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.119. 24    BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 2005. 25   DANTAS, Ivo. Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1989, p.27. 26    SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, pág. 56.


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a noção de Estado Social e Democrático de Direito”, na medida em que a figura estatal, além de garantir a efetiva democracia e o respeito aos direitos e às garantias fundamentais, deve atingir determinados direitos sociais, atribuindo ao cidadão a possibilidade de exigi-los. Verifica-se tal situação quando a Constituição Federal de 1988 enuncia, em seu art. 6º, alguns direitos sociais oponíveis ao Estado, como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Assim, podemos concluir que a atual organização da República Federativa do Brasil em um Estado Social e Democrático de Direito reúne alguns fundamentos presentes nos três regimes de governo ora analisados: o Liberal, quando adota a supremacia da Constituição, limitando e regulando o Poder Estatal, e assegura o respeito aos direitos individuais dos cidadãos; o Social, na medida em que garante princípios e os direitos sociais oponíveis ao Estado, exigindo-lhe uma postura positiva e dirigente; e o Democrático, tendo em vista que busca garantir, efetivamente, a participação popular nas decisões políticas, repudiando qualquer forma de governo autoritário. 4. Conclusão Ao analisarmos as diversas estruturas de Estado existentes, e partindo da premissa de que nossa sociedade evoluiu, pois vivenciou uma república escravocrata, duas ditaduras (Estado Novo e Ditadura Militar) e, consequentemente, dois processos de redemocratização política (Constituições de 1946 e de 1988), podemos tirar conclusões que nos ajudarão a compreender o novo ordenamento jurídico estabelecido pela Carta de Outubro. No tocante aos direitos criados por cada estrutura política estatal, Paulo Bonavides27 assim nos ensina: “Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com 27   BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 524526.


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241 vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo. Os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, removê-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos de primeira geração. [...] Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico”.

Dessa feita, da mesma forma que houve a evolução normativa, gerada pelos diversos ordenamentos jurídicos proclamados por cada nova estrutura estatal, que criaram e graduaram as respectivas “gerações de direitos” (primeira, segunda, terceira e quarta), deve haver a progressão interpretativa por parte dos operadores do direito, os quais devem procurar analisar o texto da lei não somente em seu aspecto literal, mas, sobretudo, em seu sentido histórico, sistemático e teleológico, visando atingir os fins estabelecidos pelo legislador, a fim de que não partam de premissas que conduzirão a conclusões retrógradas e dessarazoadas. Sintetizando tal evolução, vimos que o Estado Liberal assegurou o direito


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individual (plano do ser), que ensejava uma postura omissa do governo em não intervir na sua livre manifestação, limitando a atuação política estatal na esfera do indivíduo, visando assegurar a liberdade; o Social ampliou o conceito de direito público subjetivo e criou os direitos sociais (plano do ter), exigindo políticas governamentais positivas que garantissem o mínimo de bem-estar à população, limitando o poder econômico, objetivando implementar a igualdade material. Por sua vez, o Estado Democrático de Direito Brasileiro amplia o conceito de direito social, criando o chamado “direito fraternal”, reclamando do Estado uma postura pro-ativa, que deve se antepor aos fatos, buscando controlar a sociedade, implementando formas de concretizar o modelo previsto na CF/88, pautado nos ditames da justiça, da solidariedade, do pluralismo e da ausência de preconceitos. Mas como assim “controlar a sociedade”? Os direitos fraternais, previstos no art.4º, I e IV, bem como no Preâmbulo da CF/88, buscam formas de “controlar” a sociedade que promove discriminações culturais, raciais, religiosas e sexuais, realizando, assim, injustiças sociais, como, p.ex., contra ciganos, índios, negros, homossexuais e ateus. O Estado, assim, deve agir proativamente, se antevendo aos fatos, pois necessita executar políticas públicas e formular leis que assegurem os direitos de afirmação do ser humano, privilegiando os das minorias étnicas, raciais, sexuais e religiosas. A título de exemplo desses direitos, podemos citar as cotas afirmativas de negros e de índios em universidades públicas, reservando-lhes um percentual de vagas. Os direitos fraternais, também chamados de afirmativos ou compensatórios, buscam compensar as desigualdades civis e morais sofridas pelas classes discriminadas ao longo da história. Outros exemplos de tais direitos, que, por sinal, encontram-se previstos no texto constitucional, são o fato de a mulher se aposentar 5 (cinco) anos antes que os homens (art. 40, III) e a assistência gratuita e integral ao necessitado (art.5º, LXXIV). Podemos, em síntese, afirmar que enquanto o Estado Liberal vivenciou a fase Declaratória dos Direitos (individuais) e o Social, a fase Garantista dos


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Direitos (sociais), o Estado Democrático de Direito, no qual vivemos, insere-se na fase Concretista dos Direitos (fraternais), por meio da qual se busca, efetivamente, formar uma sociedade plural, onde se respeitam as diferenças de credo, sexo, cor e religião. Nesse sentido, Lênio Streck afirma que enquanto o Estado Liberal produziu um Direito Ordenador; e o Social, um Direito Promovedor, o Estado Democrático visa concretizar um Direito Transformador.28 Assim, não basta apenas declarar direitos (liberalismo clássico) ou garanti-los (Estado Social), urge que consigamos, efetivamente, concretizá-los, razão pela qual vivemos em um Estado Democrático de Direito, que, via de regra, na precisa lição de Lênio Streck, deve nos fornecer um direito transformador, a fim de que possamos implementar o modelo de sociedade pluralista e sem preconceitos previsto na Constituição Federal de 1988. A fim de concretizar essa transformação social, ao aplicarmos e interpretarmos a norma jurídica em conformidade com a Constituição de 1988, não podemos, em nenhum momento, esquecer os postulados do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro (art. 1º, III, CF/88), que, em apertada síntese, representa a seguinte equação: concretização dos Direitos Individuais (art.5º, CF/88 – plano do ser – Liberdade) + Direitos Sociais Genéricos (art.6º, CF/88 – plano do ter – Igualdade Material) + Direitos Fraternais (art. 4º, I e IV, CF/88 – plano do respeitar – Fraternidade). Mas, para que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana seja plenamente concretizado em nosso ordenamento, não basta somente a vigência das chamadas “leis dirigentes ou programáticas”, necessita-se que tais normas tenham eficácia social, obtida mediante a participação direta de toda a sociedade e dos operadores do Direito, através da realização dos ensinamentos da moral, do respeito ao próximo, da fraternidade e da honestidade, conceitos que não se aprendem lendo artigos e livros jurídicos ou se cumprindo, friamente, as disposições legais, mas, sim, através de uma boa forma28   STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: as possibilidades transformadoras do Direito. Palestra referente à III Jornada de Estudos da Justiça Federal, exibida em 22.09.06, na TV Justiça (Canal 04 da NET).


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ção humana, ética e educacional, a qual devemos, primeiramente, propiciar ao povo brasileiro, para que possamos, por via consequêncial, lutar pela efetivação dos – ainda hoje tão idealistas – direitos fraternais garantidos pela Carta de Outubro desde 1988. 5. Referências bibliográficas BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. __________. O Futuro da Democracia – Uma das Regras do Jogo. Trad. Brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. ____________. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999. CALMON, Pedro. Curso de Teoria Geral do Estado. 3ª.ed.: São Paulo, 1949. DANTAS, Ivo. Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1989. FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7ª.ed. São Paulo: Saraiva, 1995. GORDILLO, Agustín. Princípios Gerais de Direito Público. Trad. Brasileira de Marco Aurelio Greco. Ed.RT: São Paulo, 1977. MATTOSO, Kátia M. de Queiróz. Textos e Documentos para o estudo da História Contemporânea, 1789 – 1963, São Paulo, HUCITEC: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977. HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. de Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª. ed.


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São Paulo: Malheiros, 2005. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed. 7ª tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, 2006.



Reflexões sobre o auxílio direto: fundamentos normativos e posição jurisprudencial


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Marcos Antonio Mendes de Araújo Filho Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Agente Administrativo da Defensoria Pública da União, Técnico Administrativo do Ministério Público Federal e Analista Processual também do MPF. Pós-graduando pela Escola Superior do Ministério Público da União. Juiz federal

Resumo: O presente artigo tem por objetivo propor algumas reflexões sobre o instituto do auxílio direto e suas peculiaridades no cenário do ordenamento jurídico pátrio. Tal propósito tem como escopo a maturação do estudo da cooperação jurídica internacional como forma de combate mais efetivo à macrocriminalidade transnacional, a qual cresce em ritmo geométrico. De início, traçando um panorama sobre as disposições normativas vigentes no tema da cooperação jurídica internacional e tecendo comentários mais específicos sobre o auxílio direto. Após, é de se ressaltar algumas incoerências dentro da ordem jurídica que dificultam o alcance da tão necessária celeridade no combate ao crime entre fronteiras como, por exemplo, a ausência de diploma legal que trate sobre os instrumentos de cooperação jurídica internacional e a reflexão acerca do atual modelo de repartição de competência nesse tema. Palavras-chave: Cooperação Jurídica Internacional. Auxílio Direito. Constitucionalidade. Cartas Rogatórias. Competência. Criminalidade Transnacional. Abstract: This article aims to propose some reflections on the institution of mutual legal assistance and its peculiarities in the setting of national legal system. Such purpose is scoped to the maturation of the study of international legal cooperation as a way to more effectively combat transnational crime which grows in geometric pace. Start by drawing an overview of the existing legal provisions on the issue of international legal cooperation and weaving more specific comments on mutual legal assistance. After, is to highlight some inconsistencies within the legal system that hinder the achievement of much needed speed to fight organized crime across borders,


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for example , the absence of law to treat the instruments of international legal cooperation and reflection on the current model of allocation of jurisdiction in this matter. Keywords: International Legal Cooperation. Mutual Legal Assistance. Constitutionality. Letters Rogatory. Competence. Transnational crime. 1. Introdução Há muito tempo se observa na história da civilização uma tendência de aproximação entre os habitantes das regiões mais longínquas do planeta. Desde a Idade Antiga, com os pequenos comércios realizados pelos povos Fenícios, até as grandes navegações no século XV, pode-se perceber essa tendência. Com o advento da Revolução Industrial, a necessidade de difusão dos bens de consumo se intensificou e a globalização aumentou. Digo que aumentou, pois a globalização não é um fenômeno típico da era contemporânea, mas surgiu desde os primórdios da civilização humana. O que, de fato, vem ocorrendo no último século XX é o estreitamento das distâncias cultural e informacional entre os países e as regiões. Desse modo, com o incremento da circulação de pessoas, riquezas, bens e serviços, através das fronteiras, e a revolução cibernética deflagrada no fim do século passado, a globalização passou a ser uma característica natural da contemporaneidade. Cada vez mais são firmadas relações entre países das mais diversas naturezas como: comerciais, financeiras, trabalhistas, geopolíticas, militares etc. Em decorrência lógica dessa tendência, as relações jurídicas também passaram a possuir um atributo transnacional. Logo, a visão de soberania do Estado precisa ser relativizada a fim de permitir uma efetivação das decisões judiciais através da produção de efeitos extraterritoriais. Como mecanismo de efetivação das decisões judiciais, o pensamento jurídico já há um bom tempo vem se fortalecendo na necessidade de uma atuação cooperativa e colaborativa entre os Estados, em vista desse cenário internacional. Portanto, a cooperação jurídica internacional é tema de grande relevância a ser estudado e que precisa de uma maturação cotidiana em razão do crescimento das relações jurídicas internacionais.


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No plano interno, o Brasil tem adotado instrumentos para possibilitar a efetivação dessa cooperação jurídica internacional como, por exemplo, a celebração de acordos bilaterais em temas específicos com outras nações, a criação de figuras jurídicas como a homologação de sentença estrangeira, as cartas rogatórias, a extradição e, também, o auxílio direto. Entretanto, como já ressaltado, o estudo da cooperação estrangeira necessita sempre ser aperfeiçoado. O fluxo instantâneo de informações e o surgimento de novos meios de comunicação em geral permitiram esse estreitamento entre os povos tanto para a execução de atividades lícitas quanto para as ilícitas. A macrocriminalidade passou a se organizar através de uma rede estruturada e hierarquizada e a se utilizar de técnicas mais sofisticadas do ponto de vista tecnológico e informacional. Diante desse cenário, deve o Estado se manter bem aparelhado e juridicamente maduro para se estruturar de forma apta a combater essa macrocriminalidade, a qual, por sua vez, se utiliza da transnacionalidade para, justamente, alcançar os seus objetivos escusos e dificultar o trabalho de persecução. Portanto, o objeto do presente trabalho se restringe justamente na tentativa de contribuir um pouco com a necessidade de maturação do estudo da cooperação jurídica internacional em matéria penal como um mecanismo de combate à macrocriminalidade. Por óbvio, não se pretende esgotar todos os subtemas afetos à cooperação jurídica transnacional, mas apenas propor algumas reflexões com a finalidade de aperfeiçoar a estrutura jurídica existente no Brasil na atualidade. E, na esteira desse objetivo, o autor dedicará um maior espaço para o enfrentamento de questões pontuais referentes ao instituto do auxílio direto em comparação com os demais instrumentos de cooperação estrangeira. Com o ensejo de alcançar tal objetivo, dividir-se-á este trabalho em quatro capítulos. No primeiro deles, o Direito Processual Internacional será o tema central. Far-se-á uma explicação mais didática e clara da cooperação jurídica internacional com a abordagem sobre os fundamentos de sua existência, a previsão normativa e as classificações eminentemente doutrinárias. Por fim, mostrar-se-á oportuna a realização de uma breve digressão sobre cada um dos instrumentos existentes no arcabouço jurídico brasileiro, sem prejuízo de eventuais apontamentos reflexivos e críticos.


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No segundo capítulo, adentrar-se-á mais na questão específica do auxílio direto como mecanismo eficaz no combate célere à criminalidade transnacional. Assim, diversos acordos bilaterais e convenções internacionais serão mencionados como fundamento normativo para a sua adoção. Também, mencionar-se-á, em breves linhas, sobre as autoridades centrais. Ainda, não se poderá deixar de tratar sobre um dos pontos nevrálgicos da presente proposta, qual seja, a constitucionalidade do auxílio direto, que precisa ser debatida em virtude de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal refratárias à nova dinâmica exigida atualmente. Por último, imprescindível será uma análise detalhada dos precedentes judiciais das cortes pátrias sobre a aceitação do auxílio direto. Da mesma forma como no primeiro capítulo, o autor se reserva a fazer algumas reflexões. Por fim, o derradeiro capítulo será o momento dedicado para a realização de críticas e sugestões acerca de dois subtemas, quais serão o déficit normativo na ordem jurídica sobre o auxílio direto e os demais instrumentos de cooperação internacional, bem como sobre o atual modelo constitucional de repartição de competência em matéria de cooperação estrangeira como entraves à solução célere dos processos criminais. 2. COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL 2.1 Conceito e classificações A cooperação jurídica internacional consiste na ajuda entre Estados para solucionar questões jurídicas afetas a mais de uma jurisdição. Como se sabe, em decorrência da soberania estatal, a jurisdição é um poder exclusivo exercido pelo Estado dentro de seu território. Em outras palavras, a autoridade do juiz está adstrita aos limites territoriais de sua jurisdição. Entretanto, quando houver algum elemento transnacional na relação jurídica, poderá haver a necessidade de participação de outro Estado. Nessas ocasiões, a cooperação entre os Estados precisa ser adotada com vistas a alcançar o escopo maior da jurisdição, que é a composição do litígio. Para melhor esclarecimento, Nádia de Araújo define cooperação jurídica internacional como sendo: (...) em sentido amplo, o intercâmbio internacional


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para o cumprimento extraterritorial de medidas demandadas pelo Poder Judiciário de outro Estado. Isso porque o Poder Judiciário sobre uma limitação territorial de sua jurisdição – atributo por excelência da soberania do Estado, e precisa pedir ao Poder Judiciário de outro Estado que o auxilie nos casos em que suas necessidades transbordam de suas fronteiras para as daquele.1 A doutrina divide a cooperação jurídica em passiva e ativa a critério da posição do Estado brasileiro. Chama-se de passiva aquela cooperação jurídica em que o Brasil figura como Estado requerido, ou seja, um país formula um pedido de cooperação dirigido ao Brasil e este é quem providencia a atividade requerida. Por óbvio, chama-se de ativa a cooperação jurídica em que o órgão brasileiro é quem formula o pedido de cooperação a um Estado estrangeiro. Além dessa classificação, há autores2 que, também, dividem a cooperação jurídica internacional em cooperação administrativa e jurisdicional a depender da natureza da providência requerida. Assim, se o ato reclamado detém natureza jurisdicional, necessita-se da participação do Poder Judiciário para a conclusão do procedimento de cooperação estrangeira. Por outro lado, chama-se de cooperação jurídica internacional administrativa aquela em que o ato reclamado ostenta natureza meramente administrativa ou não jurisdicional, isto é, não há risco de ofensa à soberania nacional nem à ordem pública. Observe-se que a participação do Poder Judiciário nessa modalidade de cooperação pode ser dispensada, mas não sendo vedada. 2.2 Fundamentos

1   ARAÚJO, Nádia de. “A importância da Cooperação Jurídica Internacional para a atuação do Estado Brasileiro no plano interno e internacional”, in BRASIL, Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Manual de Cooperação Jurídica Internacional e Recuperação de Ativos: Cooperação em Matéria Penal, 2ª ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 34 2   SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. “Cooperação jurídica internacional e o auxílio direto”, in Revista CEJ /Conselho da Justiça Federal, ano X, n. 32, jan-mar, 2006, p. 76 e LOULA, Maria Rosa Guimarães. “Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacional cívil”, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 114.


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A cooperação jurídica internacional ganhou, nas últimas décadas, grande atenção dos juristas em vista da necessidade crescente de solucionar os litígios com atributos transfronteiriços, sobretudo com referência à macrocriminalidade organizada. A doutrina3 aponta dois fundamentos principais para a cooperação estrangeira, a saber, a confiança mútua entre as nações e a solidariedade. A confiança é pressuposto para a cooperação. Somente se coopera com aquele que se mantém uma boa relação. Todavia, os Estados precisam se portar de maneira a adquirir a confiança da comunidade internacional para que, com isso, possam se utilizar dos instrumentos de cooperação para alcançar os seus objetivos. Não há como negar que a confiança é adquirida pela postura adotada. A proteção aos direitos humanos, a adoção de uma estrutura democrática de poder e o respeito à dignidade da pessoa humana são exemplos de características das quais um Estado deve se valer para transmitir certa credibilidade a seus parceiros, especialmente no mundo ocidental. Da mesma forma, a solidariedade4 é apontada como outro fundamento para a efetivação da cooperação jurídica internacional. Os Estados devem ter ciência de que a necessidade de se valer do auxílio internacional pode surgir a qualquer momento, até quando menos se espera. Em outras palavras, eventuais dificuldades surgidas diante de um caso concreto demandam a cooperação de um Estado “A” para um outro Estado “B”. Não há dúvida de que, no futuro, haja uma mesma questão na qual, desta vez, o Estado “B” será o necessitado da colaboração do Estado “A”. Além disso, a solidariedade entre as nações é exigida, por vezes, de uma forma expressa quando, a título de exemplo, os atos normativos internacionais mencionam a “reciprocidade” como fundamento para se realizar a

3   BECHARA, Fábio Ramazzini. “Cooperação jurídica internacional: equilíbrio entre eficiência e garantismo”, in BRASIL, Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Manual de Cooperação Jurídica Internacional e Recuperação de Ativos: Cooperação em Matéria Penal, 2ª ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 52. 4   ARAS, Vladimir. “O papel da autoridade central nos acordos de cooperação penal internacional” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 71.


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cooperação internacional. A exigência de reciprocidade para a concessão de extradição quando não prevista em tratado internacional é uma manifestação clara do fundamento da solidariedade.5 Assim, os Estados precisam atuar de forma harmoniosa, mediante a adoção de posturas confiáveis e sempre abertos a cederem em um pedido de cooperação como meio de lograrem êxito no intercâmbio jurídico. 2.3 Previsão normativa no plano interno Alguns dispositivos previstos na Constituição Federal de 1988 são fundamentos para a existência da cooperação jurídica internacional no Brasil: Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; (...) Art. 5º: LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei; LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião; (…) Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro;

5   MORO, Sérgio Fernando. “Cooperação jurídica internacional em casos criminais: considerações gerais” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 21.


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255 (...) Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar, originariamente: i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (...) Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização;

Além do texto constitucional, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), o Código de Processo Civil (CPC), o Código de Processo Penal (CPP), a Resolução nº 09, de 2005, editada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), e os tratados internacionais bilaterais e multilaterais são os principais diplomas normativos de regulamentação da cooperação jurídica internacional. Para permitir um aprofundamento melhor do tema, importante traçar, de início, um panorama didático dos instrumentos previstos na ordem jurídica. 2.4 Os instrumentos e suas diferenças 2.4.1 Extradição A extradição é tema muito rico em detalhes e, portanto, os juristas têm estudado de forma separada, tanto por especialistas em direito internacional quanto por penalistas. Nas linhas mestras do Dr. Artur Gueiros, “pode-se definir a extradição como sendo o ato pelo qual um Estado (denominado Requerido) proceda a captura e a entrega de um indivíduo procurado pela Justiça de outro Estado (denominado Requerente), para que seja julgado ou para que cumpra a pena


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que lhe foi imposta”.6 Trata-se, portanto, de um claro e importante instrumento de cooperação jurídica internacional. Com a extradição não se confunde, todavia, o instituto da entrega. O Estatuto de Roma, de 1998, que entrou em vigor em 2002, previu que o Tribunal Penal Internacional (TPI) poderá dirigir pedidos de entrega de pessoa a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e na entrega da pessoa em causa (art. 89). A grande distinção entre a extradição e a entrega consiste, justamente, em que nesta um Estado-parte do Estatuto entregará a pessoa a um Tribunal internacional que não pertence a um único Estado, pois é independente. Enquanto que, na extradição, a entrega é dirigida a um Estado estrangeiro soberano onde será processado e julgado por um tribunal vinculado a apenas esse Estado. 2.4.2 Homologação de Sentença Estrangeira No âmbito do Direito Processual Internacional, o estudo da homologação de sentença estrangeira é um dos mais recorrentes. À luz do texto constitucional, compete ao STJ realizar o juízo de delibação e homologar ou não a sentença estrangeira. Antes da Emenda à Constituição de nº 45/2004, cabia ao Supremo Tribunal Federal fazer essa análise.7 O juízo de delibação8 consiste em se fazer uma análise superficial do que está tratado na sentença alienígena, sem adentrar no mérito da demanda. Conjugando as disposições pertinentes do CPP, da LINDB e da Resolução nº 6   SOUZA, Artur de Brito Gueiros. “Curso de direito penal: parte geral”. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 113. 7   Cumpre fazer um adendo acerca da alteração constitucional. Antes da dita Reforma do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal concentrava o poder nos processos de cooperação jurídica internacional. Somente era ele quem analisava o pedido de extradição, de homologação de sentença estrangeira e de concessão do exequatur nas cartas rogatórias. Após a alteração da Constituição, houve uma repartição de competência, de forma a desafogar mais a Corte Suprema, e o Colendo Superior Tribunal de Justiça recebeu parte daquelas atribuições ao ficar incumbido de apreciar os pedidos de homologação de sentença estrangeira e a concessão de exequatur nas cartas rogatórias. 8   “Delibar, em termos literais, é ‘tocar com os lábios’; é ‘sentir apenas o gosto’” in SOUZA, Artur de Brito Gueiros. “Curso de direito penal: parte geral”. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 115.


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09/2005 do STJ, cabe à Corte verificar os seguintes requisitos: (a) a sentença haver sido proferida por autoridade competente; (b) as partes de o processo estrangeiro terem sido citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia; (c) ter transitado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida; (d) a sentença deve estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor oficial ou juramentado no Brasil e (e) não pode ofender a soberania nem a ordem pública e nem os bons costumes. Logo, percebe-se que o juízo de delibação não passa de uma análise meramente formal, mas com uma grande carga de subjetividade no que tange aos conceitos jurídicos indeterminados de “soberania”, “ordem pública” e “bons costumes”. A finalidade da homologação da sentença estrangeira é, em último grau, atribuir a mesma eficácia conferida pelo ordenamento jurídico interno a uma sentença proferida no plano interno. O processamento da homologação de sentença estrangeira foi disciplinado pela mencionada Resolução nº 09/2005 do STJ. O sistema de homologação de sentença estrangeira adotado no Brasil é o de delibação, proveniente da Itália.9 Entretanto, esse não é o único sistema existente no Direito Comparado.10

9   THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento”, 31ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 699. 10   “Sistema de revisão do mérito da sentença: julga-se novamente a causa que inspirou a “sentença” como se essa não existisse, ensejando até nova produção de provas, reanalisando as preexistentes, somente após a decisão estrangeira poderá ou não ser ratificada. Esse método é mais complexo, moroso, todavia torna o direito estrangeiro aplicado no exterior mais justo frente à jurisdição interna do país homologador; criando, inclusive, jurisprudência para resolução de novas demandas relativas a tais Estados. Sistema parcial de revisão do mérito: sistema imposto com o fim de analisar a aplicação da lei do país em que será executada a sentença. Ainda nesse sistema, o que se busca distinguir é se há a possibilidade de aplicação da lei embasadora da sentença estrangeira no Estado em cujo território a sentença estrangeira produzirá efeitos. Sistema de Reciprocidade Diplomática: utiliza-se dos tratados como barsilar. Não existindo esse entre os dois Estados, sequer será possível a homologação. Sistema de Reciprocidade de Fato: nesse sistema, a homologação só se faz possível se e somente se ambos os Estados envoltos na relação protegerem os mesmos institutos, eg; União de indivíduos de mesmo sexo é permitida na Holanda, logo para homologação em Portugal seria necessário a união ser um instituto previsto na legislação lusa.” Disponível em <http:// pt.wikipedia.org/wiki/Homologa%C3%A7%C3%A3o_de_senten%C3%A7a_estrangeira>.


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2.4.3 Cartas Rogatórias A carta rogatória é um meio de comunicação entre os Judiciários de dois países. Além da previsão constitucional, o art. 210, do CPC, dispõe que: “Art. 210. A carta rogatória obedecerá, quanto à sua admissibilidade e modo de seu cumprimento, ao disposto na convenção internacional; à falta desta, será remetida à autoridade judiciária estrangeira, por via diplomática, depois de traduzida para a língua do país em que há de praticar-se o ato”.11 Em cristalinas palavras, Maria Rosa Guimarães Loula define a carta rogatória como o “(...) instrumento do qual se vale uma Jurisdição para solicitar que se pratique, no território de outra, atos de impulso processual, produção e coleta de provas ou qualquer ato de instrução processual”.12 Para que uma carta rogatória seja cumprida no Brasil, é necessário que passe pelo crivo do STJ, nos termos supraapontados, momento em que a Corte Cidadã analisará se proferirá ou não a ordem exequatur. Esse termo é de origem latina e significa “cumpra-se”, “execute-se”, revelando, portanto, que o teor da carta estrangeira poderá ser concretizado no Brasil.13 Nessa análise, o STJ realiza um juízo de delibação assim como na homologação da sentença estrangeira, em conformidade com as disposições previstas na Resolução de nº 09/2005, daquela corte. À frente, serão abordadas questões mais reflexivas acerca das cartas rogatórias. 2.4.4 Auxílio Direto

Acesso em 04.03.2014. 11   Há, também, disposição sobre o trâmite da carta rogatória nos arts. 783 a 786, do CPP. 12   LOULA, Maria Rosa Guimarães. “Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacional cívil”, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 60. 13   Ibidem, p. 59.


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O auxílio direto é um dos instrumentos de cooperação jurídica internacional menos tratado na doutrina brasileira. Não se sabe o motivo desse esquecimento, mas, talvez, haja uma razão para tanto, qual seja a ausência de previsão normativa expressa na legislação. Conforme adiante esmiuçado, o auxílio direto encontra fundamento existencial nos atos normativos internacionais através dos quais os países reconhecem a sua importância e utilidade prática. Entretanto, não se conhece no Brasil disciplinamento normativo expresso editado única e exclusivamente pelo nosso parlamento.14 O auxílio direto consiste na cooperação realizada entre autoridades centrais de Estados-parte de convenções internacionais em cujos textos há esse mecanismo de colaboração como ocorre, por exemplo, na Convenção de Haia sobre aspectos cíveis do sequestro de menores. A questão terminológica também é um dos pontos controversos. Além de auxílio direto, há menção a pedido de assistência, pedido de auxílio jurídico e assistência legal mútua (mutual legal assistance – MLA). As diferenças podem derivar de problemas na tradução dos textos estrangeiros ou até mesmo na confusão entre os instrumentos de cooperação jurídica, conforme aponta Maria Rosa Guimarães: “Muitas vezes, ouvimos falar em pedido de assistência jurídica, o que, no nosso idioma e no nosso sistema jurídico, pode ocasionar confusão com os instrumentos de gratuidade de justiça, comumente designados de assistência judiciária. Em outras situações, observamos a utilização do termo ‘assistência judiciária mútua’’, que soa como uma tradução livre e pouco técnica

14   Há tratamento normativo sobre o auxílio direto na Resolução nº 09/2005, editada pelo Superior Tribunal de Justiça em seu art. 7º, parágrafo único, e na recente Portaria Interministerial dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores de nº 501, de 2012, que disciplina a tramitação das cartas rogatórias e dos pedidos de auxílio direto, ativos e passivos, em matéria penal e civil. Destaque-se que a referida portaria se aplica na ausência de acordo de cooperação jurídica internacional bilateral ou multilateral, ou, havendo acordo, sua aplicação será subsidiária. De fato, tais atos normativos veem confirmar a consolidação do auxílio direto e a sua importância, porém, não raro, a questão ainda é alvo de discussões.


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do termo na língua inglesa”.15 Neste momento, mostra-se oportuno fazer uma distinção entre o auxílio direto e a já vista cooperação jurídica internacional administrativa. A cooperação será administrativa quando a natureza do ato solicitado pelo Estado requerente for meramente administrativa. Por outro lado, se a cooperação demanda a prática de atos jurisdicionais, com ou sem conteúdo decisório, o auxílio direto e a carta rogatória são os mecanismos de materialização desse pedido.16 E quando será utilizado o auxílio direto ou a carta rogatória? A doutrina especializada traz uma resposta que parece ser simples. Caso o pedido se baseie na reciprocidade ou em tratado internacional e tramite por intermédio das autoridades centrais, está-se diante do auxílio direto.17 Nesse caso, a judicialização do pedido somente ocorrerá no Estado rogado por iniciativa da autoridade central. De outro modo, se estiver diante de uma decisão proferida no Estado estrangeiro na qual solicita cumprimento no Brasil, intermediada pelas representações diplomáticas, utiliza-se a carta rogatória, ou seja, um procedimento bilateral entre juízes.18 Percebe-se que a Resolução nº 09/2005, no seu art. 7º, fez uma observação quanto ao nomen juris do instrumento: Art. 7º As cartas rogatórias podem ter por objeto atos decisórios ou não decisórios. Parágrafo único. Os pedidos de cooperação jurídica internacional que tiverem por objeto atos que não ensejem juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que denominados como carta rogatória, serão encaminhados ou devolvidos ao Ministério da Justiça para as providências necessárias ao cumpri-

15   Ibidem, p. 99. 16   Ibidem, p. 115. 17   Ibidem, p. 106. 18   GRINOVER, Ada Pellegrini. “Processo Penal transnacional: linhas evolutivas e garantias processuais” in Revista Forense, v. 331, p.3-37, 1995.


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Em sintonia, a já mencionada Portaria Interministerial nº 501/2012 MJ/ MRE veio diferenciar o auxílio direto passivo da carta rogatória passiva à luz da necessidade da delibação, senão vejamos: “Art. 2º - Para fins da presente Portaria, considera-se: I. pedido de auxílio direto passivo, o pedido de cooperação jurídica internacional que não enseja juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 7º, parágrafo único da Resolução STJ nº. 9, de 04 de maio de 2005; e II. carta rogatória passiva, o pedido de cooperação jurídica internacional que enseja juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça. Parágrafo Único. A definição de pedido de auxílio direto ativo e de carta rogatória ativa observará a legislação interna do Estado requerido”. Essas e outras questões referentes ao auxílio direto serão detalhadas a seguir. 3. ASPECTOS DO AUXÍLIO DIRETO 3.1 Fundamentos normativos A cooperação jurídica internacional tem se mostrado de grande relevância para o combate ao crime organizado desde os seus primeiros momentos quando, por exemplo, em dezembro de 1987, o juiz Giovanni Falcone conseguiu, com o depoimento de Tommaso Buscetta, extraditado do Brasil, indiciar 474 (quatrocentos e setenta e quatro) mafiosos no famoso processo contra a “Cosa Nostra” em Palermo, Itália.19 O primeiro grande ato internacional que se preocupou com essa forma de cooperação jurídica internacional foi a Convenção de Viena contra o Trá-

19   VALLE, Sandra ao prefaciar a obra BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.


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fico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, aprovada no ano de 1988, no âmbito da ONU. Tal texto foi incorporado ao plano interno através do Decreto Legislativo nº 162/1991, editado pelo Congresso Nacional. Conforme preceituado (art. 7º), as partes aderentes devem prestar a mais ampla assistência jurídica recíproca nas investigações, julgamentos e processos com vistas a um intercâmbio global de informações e ações. No mesmo dispositivo, há um rol meramente enumerativo aduzindo os fins que motivarão os pedidos de cooperação.20 Interessante ressaltar que o mesmo dispositivo, alinhado a outros diplomas normativos adiante referenciados, traz a ressalva de que os Estados-parte não poderão declinar a assistência jurídica recíproca sob a alegação de sigilo bancário. De outro lado, o mesmo tipo excepciona a obrigatoriedade da cooperação em algumas situações, ou seja, o Estado requerido poderá denegar o pedido, por exemplo, quando o cumprimento da solicitação possa prejudicar a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros interesses fundamentais do Estado requerido. Outro relevante ato normativo internacional foi a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, apreciada em Palermo nos idos de 1999, mas que só entrou em vigor no ano de 2003, após a ratificação de 40 (quarenta) países. O propósito da Convenção é, dentre outros, promover a cooperação para o combate e a prevenção do crime organizado transnacional. O artigo 18 é o mais longo de toda a Convenção e trata justamente da assistência judiciária recíproca, de modo a servir de norte para a consolidação do auxílio direto tanto na aplicação prática dos propósitos da Convenção quanto na edição de outras normas sobre o tema. Apesar da relevância das disposições trazidas, mostra-se interessante ressaltar a clareza, especialmente em:

20   “2. A assistência jurídica recíproca que deverá ser prestada, de acordo com este artigo, e poderá ser solicitada para qualquer um dos seguintes fins: a) receber testemunhas ou declarações de pessoas; b) apresentar documentos jurídicos; c) efetuar buscas e apreensões; d) examinar objetos e locais; e) facilitar acesso de informações e evidência; f) entregar originais ou cópias autenticadas de documentos e expedientes relacionados ao caso, inclusive documentação bancária, financeira, social ou comercial; g) identificar ou detectar o produto, os bens, os instrumentos ou outros elementos comprobatórios.”


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263 “13. Cada Estado Parte designará uma autoridade central que terá a responsabilidade e o poder de receber pedidos de cooperação judiciária e, quer de os executar, quer de os transmitir às autoridades competentes para execução. Se um Estado Parte possuir uma região ou um território especial dotado de um sistema de cooperação judiciária diferente, poderá designar uma autoridade central distinta, que terá a mesma função para a referida região ou território. As autoridades centrais deverão assegurar a execução ou a transmissão rápida e em boa e devida forma dos pedidos recebidos. Quando a autoridade central transmitir o pedido a uma autoridade competente para execução, instará pela execução rápida e em boa e devida forma do pedido por parte da autoridade competente”.

No mesmo sentido da Convenção anterior, o Estado requerido poderá denegar a cooperação quando afetar sua soberania, segurança, ordem pública ou outros interesses essenciais. Mais uma Convenção de destaque é a das Nações Unidas contra a Corrupção celebrada em Mérida, no México, no ano de 2005. A presente convenção guarda grande semelhança com as demais já mencionadas, mas merece atenção a questão da repatriação de ativos dentro da cooperação jurídica internacional. Como regra, o trânsito em julgado da sentença é necessário para restituição de ativos confiscados no Estado requerido, mas a Convenção possibilita essa cooperação mesmo antes do trânsito em julgado como forma de garantir a eficácia da futura condenação. A cooperação jurídica internacional em matéria penal ainda é prevista em diversos outros diplomas, sejam eles multilaterais, como, por exemplo, a Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal (Decreto nº 6.340/2008), e o Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do Mercosul (Decreto nº 3.468/2000), sejam bilaterais .21 21   O Brasil tem tratado de assistência jurídica em matéria penal com diversos países, den-


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Ainda há dentro dos organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), rede de intercâmbio de informações para o Auxílio Jurídico mútuo em matéria penal e de extradição. A Rede Hemisférica reúne os países-membros da OEA e estabeleceu mecanismo bastante útil e eficaz de comunicação através de um correio eletrônico seguro por meio do software Groove Virtual Office. Embora já mencionado antes, mas a título de registro, frise-se novamente que a Resolução nº 09/2005 do STJ, no parágrafo único do art. 7º, menciona a utilização do auxílio direto, bem como há disciplinamento do referido instrumento na Portaria Interministerial de nº 501/2012. 3.2 Autoridades Centrais É certo que as relações entre nações no âmbito das questões jurídicas vão muito além da mera comunicação entre juízes através das cartas rogatórias, pois procedimentos investigativos, informações e dados sobre os crimes e demais questões pertinentes são obtidos através da cooperação entre os Estados.22 Na intermediação dessas relações, existe a autoridade central que “é um órgão técnico especializado, em regra, não jurisdicional, que se encarrega da interlocução internacional em matéria de cooperação jurídica em matéria civil e penal.”23 Geralmente, a criação das autoridades centrais fica a cargo da legislação interna e não do ato normativo internacional. A título de ilustração, para os fins da Convenção de Viena de 1988, outrora mencionada, o Decreto nº 6.061/2007 atribuiu competência ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), ligado à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, para exercer o papel de autoridade central na tramitação dos pedidos de cooperação jurídica internacional.

tre outros, França (Decreto nº 3.324/1993), Itália (Decreto n º 862/1992), Portugal (Decreto nº 1.320/1994), Paraguai (Decreto nº 139, 1995), Estados Unidos da América (Decreto nº 3.810/2001) etc. 22   ZAVASKI, Teori Albino. “Cooperação jurídica internacional e a concessão de exequatur” in Revista de Interesse Público, ano 12, nº 61, maio/jun. 2010, p. 13-28. 23   ARAS, Vladimir. “O papel da autoridade central nos acordos de cooperação penal internacional” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 73.


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Em muitos tratados internacionais, sobretudo em matéria penal, o DRCI é a autoridade central designada para se comunicar com os órgãos postulatórios como, por exemplo, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República. 3.3 Constitucionalidade A constitucionalidade do instituto do auxílio direto ainda não está completamente pacífica. A Primeira Turma do STF, por maioria, já entendeu que a prática de atos relacionados ao combate ao crime decorrentes da cooperação direta usurparia a competência constitucional do STJ para conceder o “exequatur” às cartas rogatórias.24 Entretanto, para se reconhecer sua constitucionalidade, é necessário antes analisar a autonomia do auxílio direto como instrumento de cooperação jurídica internacional. Até que limite vai essa autonomia? Em outras palavras, o auxílio direto é autônomo, pois não necessita passar pelo crivo do STJ no juízo de delibação à luz do art. 105, da Constituição Federal, ou é um mecanismo de cooperação jurídica internacional clássico e deve obediência ao procedimento da carta rogatória e da homologação de sentença estrangeira? Por entender que usurparia o mandamento constitucional, entendia o STF pela inconstitucionalidade. Tal posição causou uma grande divergência na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, já após a alteração constitucional de 2004. Todavia, o mesmo STF, posteriormente, ainda que não conhecendo do HC 102.041, teceu comentários sobre a possibilidade da utilização do auxílio direto entre os Estados no combate à criminalidade.25 24   CRIME - COOPERAÇÃO INTERNACIONAL - COMBATE - DILIGÊNCIAS - TERRITÓRIO NACIONAL - MEIO. A prática de atos decorrentes de pronunciamento de autoridade judicial estrangeira, em território nacional, objetivando o combate ao crime, pressupõe carta rogatória a ser submetida, sob o ângulo da execução, ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, não cabendo potencializar a cooperação internacional a ponto de colocar em segundo plano formalidade essencial à valia dos atos a serem realizados. (HC 85588, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 04/04/2006, DJ 15-12-2006 PP-00095 EMENT VOL-02260-04 PP-00685). 25   HC 102041, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010,


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3.4 Posição Jurisprudencial Neste tópico, o propósito apenas é o de confirmar o crescente espaço que o auxílio direto vem tomando nos acórdãos dos tribunais brasileiros.26 O STF, nos últimos anos, proferiu algumas decisões baseadas em pedidos de assistência jurídica internacional em casos de grande repercussão nacional, como, por exemplo, na Extradição nº 1103 (caso do narcotraficante Juan Carlos Ramirez Abadía), no HC 91.002-5/RJ (caso Propinoduto) e no HC 87.759-1/DF (caso Rollo). O Colendo STJ é o tribunal que vem trazendo algumas diretrizes para a utilização do auxílio direto, fazendo a distinção com a carta rogatória. Como exemplo, podemos citar: ARCR 200800570332, Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, Corte Especial, DJE 06/09/2010; HC 200901794848, Rel. Min. JORGE MUSSI, Quinta Turma, DJE DATA:19/12/2011 e RCL 200702549165, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Corte Especial, DJE 16/12/2009. Os Tribunais Regionais Federais,27 também, tem decidido sobre o auxílio direto na mesma linha do preceituado pelo colendo STJ, mas a carência de balizas legais provoca discussões jurídicas que atrasam as investigações criminais, consoante será abordado adiante. Ainda é de se destacar que a utilização do auxílio direto ganhou mais espaço em decorrência da antiga jurisprudência quase que pacífica do STF sobre as cartas rogatórias executórias. Quando o STF ainda tinha a competência para conceder o “exequatur” às cartas rogatórias, aquela corte máxima tinha a posição no sentido de que às

DJe-154 DIVULG 19-08-2010 PUBLIC 20-08-2010 EMENT VOL-02411-03 PP-00669. 26   A metodologia da pesquisa jurisprudencial consistiu na coleta de dados através das ferramentas de busca disponíveis ao público nas páginas da internet do STF, do STJ e de demais tribunais. Como parâmetros das pesquisas, foram utilizados “auxílio direto”, “assistência jurídica internacional”, “cooperação jurídica internacional” e “auxílio jurídico direto”. 27   RSE 201051018122738, Desembargador Federal ABEL GOMES, TRF2, PRIMEIRA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R – Data:09/05/2013; HC 00647686620074030000, DESEMBARGADOR FEDERAL LUIZ STEFANINI, TRF3 - PRIMEIRA TURMA, DJF3 DATA:23/06/2008; MS 00154914220114030000, DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES, TRF3 PRIMEIRA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:24/11/2011; AC 200370000359078, SILVIA MARIA GONÇALVES GORAIEB, TRF4 - TERCEIRA TURMA, DJ 07/11/2005;


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cartas rogatórias que tivessem por objeto medidas de cunho executivo, como a quebra de sigilo bancário, busca e apreensão, não poderia ser concedido o “exequatur” pelo direito interno, por vislumbrar ofensa à ordem pública.28 Naquele contexto, para se obter uma medida executiva em outro Estado, mostrava-se necessário uma decisão alienígena com trânsito em julgado para, somente então, ser homologada via sentença estrangeira. As cartas rogatórias somente serviam para a prática de atos de comunicação. Tal posicionamento representava verdadeiro entrave na cooperação do Brasil com as demais nações, motivo pelo qual o STJ, com a nova competência lhe atribuída, editou a Resolução nº 09, de 2005, e utilizou a expressão “as cartas rogatórias podem ter por objeto atos decisórios e não decisórios”, de maneira a permitir a prática de atos executórios solicitados por Estados estrangeiros. Mas essa simples inovação normativa, de longe, não resolveu todas as problemáticas atinentes ao tema. 4. REFLEXÕES PONTUAIS 4.1 Prejuízos da omissão legislativa Os pedidos de cooperação jurídica em matéria criminal podem ter vários objetos, como, por exemplo, a prática de comunicação de atos processuais (citação ou intimação), de produção de provas (oitiva de testemunha, perícia, obtenção de documentos), de efetivação de medidas de cunho assecuratório (arresto ou sequestro de bens), de efetivação de decretos de confisco condenatório, etc.29 Como visto acima, a jurisprudência do Colendo STJ não faz mais a distin-

28   CR 337, Relator(a): Min. JOSÉ LINHARES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 13/05/1953, ADJ DATA 10-10-1955 PP-03740 DJ 13-08-1953 PP-09597; CR 1408 AgR, Relator(a): Min. LUIZ GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. AMARAL SANTOS, Tribunal Pleno, julgado em 20/03/1969, DJ 03-10-1969 PP-04557 EMENT VOL-00778-01 PP-00038; SE 3421, Relator(a): Min. OSCAR CORREA, Tribunal Pleno, julgado em 05/09/1984, DJ 05-10-1984 PP16449 EMENT VOL-01352-01 PP-00001 e CR 4881 AgR, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/1991, DJ 13-03-1992 PP-02922 EMENT VOL-01653-01 PP-00145. 29   MORO, Sérgio Fernando. “Cooperação jurídica internacional em casos criminais: considerações gerais” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 18.


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ção que fazia outrora acerca da utilização de cartas rogatórias para executar medidas judiciais. Assim, atualmente, a satisfação de provimentos judiciais pode se dar por cartas rogatórias ou por auxílio direto, também conhecido como assistência jurídica mútua. A legislação vigente não tem disposição que diferencie a utilização de um ou de outro mecanismo de cooperação jurídica internacional. Apenas poucos doutrinadores, especialistas no tema, fazem uma distinção meramente formal do auxílio direto e da carta rogatória. Essa diferenciação já foi mencionada no capítulo anterior, mas, a título de recordação, destacou-se, em linhas gerais, que a carta rogatória é o instrumento utilizado quando o pedido de cooperação se dá entre juízes e cuja matéria enseja juízo de delibação. Por outro lado, o pedido de auxílio direto é aquele fundado em tratado internacional ou na reciprocidade e tramitado através das autoridades centrais e a respectiva judicialização ocorre por intermédio da autoridade central do Estado rogado. Em suma, percebe-se que a distinção entre os ditos instrumentos somente se foca no aspecto procedimental, ou seja, meramente formal. Não há qualquer previsão legislativa que traga uma diferenciação prática com parâmetros relacionados ao aspecto material, isto é, ao conteúdo dos pedidos. Apenas por atos infralegais30 é que se tem feita a distinção meramente formal entre a utilização do auxílio direto e da carta rogatória, qual seja, a análise sobre a necessidade de submeter o pedido ao juízo de delibação pelo Colendo STJ. Então, mostra-se imperiosa a edição de norma que venha a trazer um disciplinamento seguro que distinga sob o aspecto substancial a utilização do auxílio direto e da carta rogatória. Há precedente no Tribunal Federal da 2ª Região,31 no qual se acentuou a deficiência normativa na disciplina do auxílio direto. Tanto é que o juiz de primeiro grau proferiu decisão requerendo a cooperação jurídica dos EUA para realizar o interrogatório do réu por auxílio direto ou, alternativamen-

30   Os atos infralegais referidos são a Resolução nº 09/2005, do STJ, e a Portaria Interministerial nº 502/2012, do MJ/MRE. 31   HC 201302010142360, Desembargador federal ABEL GOMES, TRF2, PRIMEIRA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R – Data:13/12/2013.


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te, por carta rogatória, porém fundamentando-o no Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal. Já a Corte Regional determinou que a medida requerida deveria ser realizada pelo auxílio direto, mas reconhecendo a deficiência normativa em relação ao tema. No mesmo sentido, o Tribunal Federal da 3ª Região já se deparou com essa problemática e reconheceu a dificuldade em se delimitar quais atos ensejam juízo de delibação. No caso em consulta,32 o juiz de primeiro grau entendeu que o pedido de quebra de sigilo telemático ensejaria juízo de delibação e não poderia ser realizado pelo auxílio direto, ao passo que a Corte Regional, com fundamento apenas em precedentes do STJ, entendeu que não era o caso de delibação, permitindo o trâmite por auxílio direto. Inclusive, nesse caso, a Corte Regional também reconheceu o déficit normativo, mesmo invocando o parágrafo único do art. 7º, da Resolução nº 09/2005, ao ressaltar: “O ponto nodal que se coloca é o de se saber, no respeitante à cooperação passiva (recebimento de pedidos), quais são os atos que não prescindem de concessão de exequatur, em carta rogatória encaminhada ao Superior Tribunal de Justiça, e, no âmbito da cooperação ativa (formulação de pedidos), os atos que dependem da expedição de carta rogatória para seu cumprimento válido. (…) Entretanto, mesmo após a leitura do dispositivo em referência, não se evidenciam as hipóteses ou os atos que ensejam juízo de delibação pelo Superior Tribunal de Justiça, motivo pelo qual, na tentativa de se obter parâmetros mais concretos para se resolver a questão, se faz necessário socorrer à jurisprudência da ilustrada Corte”. O MM. Relator finaliza seu voto à luz de paradigmas extraídos dos prece-

32   MS 00356861920094030000, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO FONTES, TRF3 PRIMEIRA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:29/11/2013 ..FONTE_REPUBLICACAO.


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270 dentes das Cortes Superiores, senão vejamos:

“Observa-se, pois, que, em conformidade com a atual jurisprudência das cortes superiores, o pedido formulado pelo órgão ministerial de primeiro grau perante a autoridade impetrada não se enquadra na hipótese de carta rogatória, prescindido do exequatur do Superior Tribunal de Justiça, haja vista que: a) foi formulado por autoridade não investida de jurisdição; e b) não diz respeito a ato constritivo de bens situados no Brasil”. A dificuldade é tamanha ao ponto de o próprio STJ já ter entendido que a natureza do ato requerido é que condiciona o procedimento a ser seguido e não a qualificação da autoridade estrangeira solicitante.33 Inclusive, há de se ressaltar que a decisão em remeter o feito para o juízo de delibação no STJ tem, em último grau, recaído nos gabinetes dos juízes e tribunais, como se pode depreender do julgado acima destacado. Isso significa que a observância de a competência constitucionalmente estabelecida para o STJ conceder exequatur às cartas rogatórias está sendo decidida por órgãos jurisdicionais inferiores à Colenda Corte. Com isso, percebe-se, de logo, uma completa inversão da estrutura orgânica do Judiciário nacional. Nesse diapasão, mostra-se urgente a edição de norma que traga um disciplinamento substancial sobre o tema a fim de que não mais se permita a interpretação casuística dos pedidos de cooperação jurídica internacional. Ainda, registre-se que, somente através de ato legislativo, editado pelo Congresso Nacional, se poderia distinguir quais os pedidos de cooperação jurídica passiva demandariam o juízo de delibação pelo STJ e quais estariam dispensados desse rito, podendo ser cumprido via juízo de primeiro grau ou, até mesmo, administrativamente, como, por exemplo, entre as Polícias e Ministérios Públicos. De fato, não se desconhece que, para a cooperação internacional, mes-

33   AgRg na CR 7350/EX, Rel. ministro FELIX FISCHER, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2013, DJe 05/12/2013)


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mo em matéria criminal, não há sempre reserva absoluta de jurisdição, ou seja, nem toda medida requerida deve necessariamente passar pelo crivo da autoridade judiciária, contudo tal distinção deve ser disciplinada por ato normativo legítimo, ou seja, através de lei em sentido formal. Os prejuízos da omissão legislativa são percebidos a todo instante. Por exemplo, já foi ressaltado que a doutrina entende possível que o pedido de auxílio direto se funde na reciprocidade, mesmo que não haja acordo internacional entre os Estados envolvidos. Por outro lado, o Colendo STJ já negou a possibilidade da cooperação direta quando os fatos não estejam relacionados com o tratado de assistência celebrado entre os países.34 Tal divergência, certamente, poderia ser sanada diante de uma regulamentação ao menos satisfatória sobre o tema. A insuficiência das regras processuais tem sido notada por especialistas 35 no tema, consoante se extrai dos enfáticos trechos: “Note-se que a ausência de uma lei geral sobre cooperação penal internacional pode implicar em situações delicadas, também no âmbito da cooperação penal passiva. (…) O que me parece fundamental, entretanto, é a necessidade urgente de uma lei geral de cooperação jurídica internacional que delimite o procedimento em questão”.36 Em conclusão, a ausência de norma prejudica a celeridade tão almejada no trâmite dos pedidos de auxílio direto, o que vem, por via reflexa, a fomentar a macrocriminalidade, sobretudo aquela com característica transnacional. 34   SUSPENSÃO DE MEDIDA LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL. PEDIDO DE AUXÍLIO DIRETO ARTICULADO NO ÂMBITO DE INQUÉRITO CIVIL. Anulado o processo penal, com a remessa dos respectivos autos à Justiça Federal, o Ministério Público Estadual não pode sustentar o pedido de auxílio direto nos autos de inquérito civil, sob pena de se ampliar os termos de um acordo internacional restrito à repressão penal. Agravo regimental provido. (AASS 201001556676, ARI PARGENDLER, STJ - CORTE ESPECIAL, DJE DATA:23/09/2011). 35   ARAÚJO, Nádia (coord.). “Cooperação jurídica internacional no Superior Tribunal de Justiça: comentários à Resolução nº 9/2005”. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 100. 36   PEREIRA NETO, Pedro Barbosa. “Cooperação penal internacional nos delitos econômicos” in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 54, maio-junho 2005, p.167-8.


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4.2 Críticas ao modelo de repartição de competências Outra reflexão bastante relevante sobre o tema que merece alguns apontamentos, os quais corroboram a constatada deficiência normativa, refere-se à competência para exercer esse juízo de delibação. A competência para exercer o juízo de delibação foi atribuída ao Superior Tribunal de Justiça pela Emenda Constitucional nº 45/2004. De acordo com a redação original da Carta Magna, o STF concentrava a competência na cooperação jurídica internacional, mas, com o advento da dita “Reforma do Judiciário”, houve uma parcial desconcentração para o STJ quanto à homologação de sentença estrangeira e à concessão do exequatur às cartas rogatórias, remanescendo com a Suprema Corte a competência para apreciar os pedidos de extradição. Além dessa inovação, com a crescente utilização dos pedidos de auxílio direto formulados pelas autoridades centrais – Procuradoria-Geral da República e Advocacia-Geral da União –, os juízes federais também absorveram parte da competência na cooperação jurídica internacional. A reflexão que se propõe no caso é a desconcentração ainda maior no tema da cooperação jurídica internacional, mais especificamente quanto à competência do STJ para exercer o juízo de delibação. Por óbvio, é cediço que a alteração nessa distribuição de competência para os juízes federais de primeira instância caberia ao poder constituinte derivado reformador. A doutrina especializada, ao comentar sobre a alteração da competência do STF de exercer o juízo de delibação nas cartas rogatórias e sentenças estrangeiras (EC nº 45/2004), asseverou que: “A desconcentração da competência foi positiva. Não há motivos para concentração de tal competência em um único órgão jurisdicional. Aliás, em rigor, também pouco se justifica a concentração de tal competência nos Tribunais Superiores. Estes, no Brasil, como é notório, sofrem acentuada crise em vista da ampli-


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273 tude excessiva de sua competência e da prodigalidade recursal. Embora tal crise traga reflexos negativos para a prestação jurisdicional em geral – e, portanto, não só no âmbito da cooperação internacional – ela assume ares de acentuada gravidade nesta matéria, uma vez que a lentidão do atendimento a pedidos de cooperação pode resultar em avaliação do Brasil como, na prática, país não-cooperante ou pouco cooperante, o que teria reflexos negativos para a imagem do país perante a comunidade nacional e ainda, em vista do princípio da reciprocidade, reflexos também negativos para a cooperação internacional ativa”.37

Com base em tais premissas, defende-se uma reflexão mais aprofundada sobre a real necessidade de se manter a competência do STJ para exercer o juízo de delibação dos pedidos de cooperação jurídica internacional. Renomados especialistas na área vêm se posicionando sobre o tema, senão vejamos: “É imprescindível que o Brasil tenha uma lei geral de cooperação internacional, e que, como primeiro passo para um regime comunitário, sejam aperfeiçoadas as autoridades centrais nacionais no Mercosul, livrando-as de ingerências políticas e especializando-as ainda mais. Também é necessário que a competência do STJ para conceder exequatur a rogatórias seja suprimida e tal tarefa seja atribuída aos juízes de primeira instância, para que, com isso, harmonize-se o sistema dual de cooperação no qual coexistem as rogatórias e os pedidos de assistência jurídica internacional (MLA)”.38 37   MORO, Sérgio Fernando. “Cooperação jurídica internacional em casos criminais: considerações gerais” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 22. 38   ARAS, Vladimir. “O papel da autoridade central nos acordos de cooperação penal internacional” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica


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“Em julho de 2002, sustentei, em concurso público, a necessidade de competência difusa entre juízes de 1º grau, para o reconhecimento e execução de decisões judiciais estrangeiras, afirmando não haver razões principiológicas para mantê-la concentrada no STF.”39 Ainda, para aprofundar o debate, podemos nos deparar com o seguinte questionamento: na verdade, em que consiste esse juízo de delibação? Já se falou que o juízo de delibação, em tese, não adentra no mérito, consistindo apenas em uma análise superficial, tendo como parâmetros alguns critérios procedimentais. Entretanto, sobre o mérito, sempre os ministros emitirão juízo de valor, uma vez que há de se observar eventual violação à ordem pública, à soberania nacional e aos bons costumes. Trata-se de conceitos jurídicos bastante indeterminados, os quais, desde sempre, carregam consigo uma ampla carga de subjetivismo a revelar indesejável insegurança jurídica. Assim, em último grau, a aferição do mérito será realizada tanto pelo STJ, ao proceder com o juízo de delibação, quanto pelo juiz federal de primeira instância, quando se deparar com o pedido de auxílio direto e o analisará com base no ordenamento jurídico. Outra relevante razão a ser considerada consiste na diminuição de demandas dessa natureza na Corte Cidadã. Não é custoso dizer que o STJ estaria bem mais desafogado se a sua competência fosse revista. Inclusive, se a competência para conceder o exequatur às cartas rogatórias e homologar sentença estrangeira fosse atribuída aos juízes de primeira instância. Os números40 revelam que a Corte ficaria menos sobrecarregada para poder se internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 92. 39   DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. “Anotações sobre o anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional” in Revista de Processo, nº 129, ano 30, nov./2005, p. 137. 40   Em consulta aos Boletins Estatísticos nos anos de 2012 e 2013, elaborados pela Coordenadoria de Gestão Estratégica do Superior Tribunal de Justiça, os números de Cartas Rogatórias (CR) e Sentenças Estrangeiras (SE), recebidas nos anos de 2012 e 2013 foram, respectivamente, 2.746 e 3.133. No fim desses anos, houve um passivo de 345 e 448, respectivamente, ou seja, restando para o ano seguinte. Ainda que tal quantidade não represente significativo percentual em comparação com o total da distribuição de processos por ano naquela Corte (309.677, em 2013), é


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debruçar com mais afinco sobre embates jurídicos relevantes na interpretação da lei federal, inclusive exercendo o precípuo papel na uniformização da jurisprudência. De fato, alguns podem até argumentar que eventual defesa da desconcentração da competência para apreciar os pedidos de cooperação jurídica internacional venha causar maior morosidade nos seus atendimentos ao invés de agilidade. Com a atribuição da competência para o STJ da homologação de sentença estrangeira e do exequatur nas cartas rogatórias pela EC nº 45/04, permitiu-se a apreciação de tais questões por mais uma instância, através de recursos para o STF. E, então, caso se desconcentre ainda mais para os juízes federais como se propõe, haveria a chance de a pretensa celeridade ceder espaço a uma lentidão na resposta cooperativa? A uma primeira vista, sim. Mas, no caso em análise, as medidas de cunho assecuratório e executivo seriam objetos de pedidos na cooperação e, nesses casos, o contraditório se dá, geralmente, de maneira diferida. Logo, certamente, a resposta judicial aos órgãos de investigação seria inevitavelmente prestada de maneira célere. Questões como essas precisam ser formuladas, e o debate, amadurecido, para que a cooperação jurídica internacional se torne cada vez mais uma medida viável e eficaz, notadamente no combate ao crime transnacional. Não se pode deixar de lado certa incoerência no modelo atual de repartição de competência. Nos moldes como se apresenta atualmente, o juiz federal somente participa da cooperação jurídica internacional quando recebe os pedidos de auxílio direto, judicializados pelos órgãos postulantes, e, também, no cumprimento das cartas rogatórias após a ordem de exequatur dada pelo STJ. Nesse cenário, o juiz federal não exerce o malogrado juízo de delibação. Por outro lado, o ordenamento jurídico permite que ele faça a análise incidental do controle de constitucionalidade de atos normativos. Percebe-se, de pronto, uma clara incoerência nesse modelo. Ora, o juízo de delibação em que se adentra na análise da violação à ordem pública, soberania nacional e bons costumes se apresenta mais relevante que o controle de constitucionalidade? cediço que diversos crimes graves deixaram de ser investigados na celeridade desejada diante da sobrecarga processual. Boletins disponíveis em <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/?v PortalAreaPai=483&vPortalArea=483&vPortalAreaRaiz=334 >. Acesso em 04.04.2014.


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Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 é um texto deveras analítico e, sob o pálio do neoconstitucionalismo, os princípios lá contidos detêm forte carga normativa, de maneira a conferir certo subjetivismo no exercício do controle difuso de constitucionalidade pelo juiz de primeira instância. Portanto, não se afigura inútil registrar a incoerência sistêmica, uma vez que ora é dado ao juiz federal afastar a aplicação de um ato legislativo à luz da Constituição, ora não se permite que exerça um juízo de delibação de um pedido de cooperação estrangeira.41 Inclusive, tal questão já foi objeto da PEC de nº 152, de 1999, segundo a qual propunha a supressão da alínea h, do inciso I, do art. 102, e acrescentava o § 5º no art. 125, com o seguinte teor: “Ao juiz da execução compete processar e julgar a homologação de sentença estrangeira e a concessão do exequatur às cartas rogatórias”. Convém transcrever trecho da justificativa apresentada: “A Proposta de Emenda à Constituição Federal que ora submetemos à apreciação dos ilustres Pares visa a transferir a competência processual para homologação de sentença estrangeira e execução de carta rogatória do Supremo Tribunal Federal aos juízes de primeiro grau competentes para a execução da sentença. Hoje o rito, criado no início do século, encontra-se inteiramente anacrônico, incompatível com o dinamismo e a crescente circulação de bens e de pessoas na sociedade moderna, sobretudo no momento em que mais e mais se caminha para a globalização da economia, com a criação de organismos multinacionais e a integração dos sistemas jurídicos. (...) Em verdade, não há motivo relevante que justifique tal competência da Corte Constitucional, sendo esse o entendimento da doutrina e até mesmo dos próprios Ministros do Supremo Tribunal Federal, que já tiveram oportunidade de se mani-

41   LOULA, Maria Rosa Guimarães. “Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacional cívil”, Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 152.


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festar, por ocasião das audiências públicas da Reforma do Judiciário, como os Ministros Carlos Mário Velloso, Marco Aurélio Melo e José Celso Mello Filho. (...)”.42 Ainda é interessante observar que, na maioria dos países desenvolvidos, a competência para a homologação de sentenças estrangeiras é atribuída aos juízes de primeiras instâncias (Alemanha, França, Canadá, Suíça, Itália dentre outros).43 Portanto, mostra-se perfeitamente possível a alteração constitucional para permitir aos juízes federais homologarem sentença estrangeira, bem como executarem cartas rogatórias executórias ou não, sem a necessidade de prévia apreciação pelo STJ. 5. Conclusão É cediço que o auxílio direto é uma ferramenta que veio a facilitar e agilizar a comunicação interestatal com vistas ao atendimento das necessidades judiciais, pois os procedimentos das rogatórias as tornam instrumentos morosos e não coerentes com a dinâmica das relações humanas atualmente.44 Entretanto, mesmo havendo extrema necessidade,45 as autoridades legislativas não se dedicaram ao amadurecimento do tema. Os motivos não são conhecidos, mas, talvez, o combate à macrocriminalidade transnacional não seja uma tarefa tão atraente. Coube aos juízes a incumbência de fixar algumas balizas para a aplicação do instituto e a efetivação de suas decisões. Sobre o tema, foi editado o mencionado parágrafo único do art. 7º, da Resolução nº 09/2005, do STJ. Toda-

42   Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposi cao=14466>. Acesso em 04.04.2014. 43   TIBURCIO, Carmen. “Temas de direito internacional”. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 195. 44   ANSELMO, Márcio Adriano. “Cooperação internacional em matéria penal no âmbito do Mercosul – anatomia do Protocolo de San Luis” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 222. 45   BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. “Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal.” 2. ed., Brasília : Ministério da Justiça, 2012. p. 45.


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via, esse diploma não teve o condão de distinguir as hipóteses de utilização do rito do auxílio direto, da carta rogatória e, muito menos, da cooperação meramente administrativa.46 Também já se ressaltou que o atual entendimento prevalecente é o de que não importa o nomen iuris do pedido nem a qualidade da autoridade solicitante, mas sim a sua natureza. Portanto, à luz do direito interno, os juízes e os demais agentes públicos, de um modo geral, analisam a natureza do ato requestado para determinar qual o procedimento a ser adotado, sem qualquer fixação normativa. O procedimento de cooperação passiva se dá com o recebimento do pedido pelo DRCI, que analisará se tem natureza jurisdicional ou administrativa. Tendo natureza jurisdicional e, à luz do amplo ordenamento jurídico, verifica se demanda juízo de delibação pelo STJ. Caso contrário, e sendo o caso da competência da Justiça Federal, remete ao Ministério Público Federal para judicializar a questão penal na primeira instância.47 Quando se remete o pedido de cooperação ao STJ para o supostamente devido juízo de delibação, o presidente daquela casa faz um juízo prévio à própria delibação e o analisa para saber se há conteúdo decisório ou não. Se houver conteúdo decisório, segue-se o procedimento de delibação pela Corte (art. 9ª, da Resolução nº 09/2005); caso contrário, encaminha-se ao Ministério da Justiça para que providencie o trâmite via autoridade central, se for o caso, para prestar o atendimento. Percebe-se que, diante dessa estrutura, há uma desconstrução da própria figura do auxílio direto, pois de “direto” não há nada. O pedido de auxílio entrará no país pela via diplomática (Ministério das Relações Exteriores); na sequência, é encaminhado ao Ministério da Justiça, que, por sua vez, enviará para o STJ. Realizada essa análise prévia à delibação, devolve-se ao Ministério da Justiça, se não for o caso de a Corte delibar. A uma simples vista, percebe-se o quão burocrático ainda é o percurso.

46   LOULA, Maria Rosa Guimarães. Op.cit., p. 178. 47   BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. “Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal.”2. ed., Brasília : Ministério da Justiça, 2012, p. 82.


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Também não transmite qualquer lógica que um pedido de cooperação internacional passiva tenha seu rito determinado pela autoridade central ou pelo Ministério das Relações Exteriores sem qualquer respaldo legal. Ao mero juízo de um servidor público do ministério, ora se remete o pedido ao STJ para o juízo de delibação, ora para a autoridade central, sem balizas legislativas que determinem o trâmite de cada um dos tipos de pedido. Alguns dos problemas apresentados acima tiveram soluções apontadas pelos autores do anteprojeto de lei sobre a cooperação jurídica internacional (Ministério da Justiça). Contudo, a dificuldade ainda persiste, consoante esclarecedora lição de Ricardo Perlingeiro: “Penso que a ideia tenha sido a substituição da carta rogatória pela assistência direta, tal como previsto no art. 1º do Anteprojeto da AJUFE: ‘A República Federativa do Brasil poderá requerer ou prestar assistência judiciária em matéria penal a qualquer Estado estrangeiro, em procedimento regulamentado por esta lei, que substituirá a carta rogatória, para investigação, instrução processual e julgamento de infrações penais’ (...) No entanto, o que afinal pode ser objeto de auxílio direto? Decisões interlocutórias ou de urgência não deveriam, por estão sujeitas à carta rogatória, no art. 40, III e IV, do próprio Anteprojeto. Citação, intimação e provas também estão previstas naquele artigo, incs I e II. Seria então discricionariedade do ente estrangeiro ou Ministério da Justiça em optar entre o procedimento do auxílio direto e da carta rogatória? Nenhum problema existiria se não existisse competência privativa do STJ para carta rogatória, instituída pela CF/88, e a competência difusa para o auxílio direto ter sido instituído pelo Anteprojeto, o que torna a regra inconstitucional”.48

48   DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. “Anotações sobre o anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional” in Revista de Processo, nº 129, ano 30, nov./2005, p. 156.


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Nesse cenário jurídico, justifica-se a preocupação em se dedicar, com urgência, esforços para a reflexão madura do modelo de competência adotado atualmente. Imprescindível que o legislativo delegue ao juízo de primeira instância ferramentas e instrumentos mais eficazes para o combate célere à criminalidade transnacional. 6. Referências bibliográficas ANSELMO, Márcio Adriano. “Cooperação internacional em matéria penal no âmbito do Mercosul – anatomia do Protocolo de San Luis” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. ARAS, Vladimir. “O papel da autoridade central nos acordos de cooperação penal internacional” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. ARAÚJO, Nádia (coord.). “Cooperação jurídica internacional no Superior Tribunal de Justiça: comentários à Resolução nº 9/2005”. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional. “Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos: cooperação em matéria penal”. 2. ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2012. GRINOVER, Ada Pellegrini. “Processo Penal transnacional: linhas evolutivas e garantias processuais” in Revista Forense, v. 331, p.3-37, 1995. LOULA, Maria Rosa Guimarães. “Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacional cívil”, Belo Horizonte: Fórum, 2010. MORO, Sérgio Fernando. “Cooperação jurídica internacional em casos criminais: considerações gerais” in BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo; FLORES, Luciano (Orgs.) “Cooperação jurídica internacional em matéria penal”, Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. PEREIRA NETO, Pedro Barbosa. “Cooperação penal internacional nos delitos econômicos” in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 54, maio-


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-junho 2005. SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. “Cooperação jurídica internacional e o auxílio direto”, in Revista CEJ /Conselho da Justiça Federal, ano X, n. 32, jan-mar, 2006. __________________________________. “Anotações sobre o anteprojeto de lei de cooperação jurídica internacional” in Revista de Processo, nº 129, ano 30, nov./2005. SOUZA, Artur de Brito Gueiros. “Curso de direito penal: parte geral”. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento”, 31ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010. TIBURCIO, Carmen. “Temas de direito internacional”. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ZAVASKI, Teori Albino. “Cooperação jurídica internacional e a concessão de exequatur” in Revista de Interesse Público, ano 12, nº 61, maio/jun. 2010.



A igualdade no paĂ­s do futebol


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Márcio Rached Millani Juiz Federal, especialista em Direito Processual Público pela Universidade Federal Fluminense e Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica.

Resumo: Este artigo busca examinar a constitucionalidade dos recentes dispositivos legais inseridos no bojo da denominada Lei Geral da Copa (artigos 37, 38 e 41 da Lei nº. 12.663/2012) frente aos princípios republicano, da capacidade contributiva e da igualdade. Palavras-chave: isenção. Tributação. Igualdade. Republicano. Capacidade contributiva. Abstract: this paper intends to examine the constitutionality of some legal articles of a law issued especially for the World Soccer Cup (37, 38 and 41 of the law 12.663/2012) by confronting them with the republican principle, the equality principle and the ability to pay principle. Keywords: exemption. Taxation. Principle of equality. Republican. Ability to pay. 1 Introdução O Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948, dispõe que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. O princípio da igualdade aparece em vários artigos da nossa Constituição Federal, ora de forma explícita, ora de forma implícita. Para demonstrar a sua relevância, o constituinte, logo no preâmbulo da Constituição, já tratou de apresentá-lo, mostrando com isso a sua imprescindibilidade: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos


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285 em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

Positivado no artigo 5º, caput, de nossa Constituição, estatui serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O princípio não se destina apenas ao Judiciário e ao Executivo na aplicação da lei, mas também ao Legislativo quando de sua elaboração. Dessa forma, o legislador, ao produzir determinada lei, deve regular, com iguais disposições, situações idênticas, devendo distinguir aquelas que não puderem ser equiparadas. A aferição de uma situação de igualdade normalmente é efetivada mediante a eleição de um critério de comparação, o que demonstra ser a igualdade não um estado, mas uma relação. Nesse sentido, observou Bobbio1 que o homem como pessoa – ou para ser considerado como pessoa – deve ser, enquanto indivíduo em sua singularidade, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade. A mera afirmação de que dois indivíduos são iguais sem nenhum outro dado específico não revela muito significado, pois a igualdade é uma relação formal que pode ser preenchida pelos mais diversos conteúdos. Luciano Amaro2 nos traz o seguinte exemplo: dois indivíduos em idêntica situação têm direito a um tratamento igual. Isso não significa muito, pois se de ambos 1   BOBBIO, Norberto: Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 7. 2    AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.134.


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fosse exigido um idêntico tributo iníquo, de nada lhes adiantaria invocar a igualdade, que na hipótese concreta estaria sendo aplicada. O princípio da igualdade está relacionado a diversos outros princípios da Constituição. Roque Carrazza3 afirma ser intuitiva a inferência de que o princípio republicano leva à igualdade da tributação. Assevera o autor que os dois princípios se completam, uma vez que o princípio republicano exige que os contribuintes recebam tratamento isonômico. O princípio da igualdade também está relacionado ao da capacidade contributiva. Luciano Amaro4 aduz que os princípios se avizinham, pois, ao se fazer a adequação do tributo à capacidade dos contribuintes, deve se buscar um modelo que não ignore as diferenças evidenciadas nas situações eleitas como suporte para a imposição, o que corresponde a um dos aspectos da igualdade, que consiste no tratamento desigual para os desiguais. Tendo por fundamento as três vertentes acima expostas e relacionadas ao princípio da igualdade – princípio republicano, capacidade contributiva e igualdade propriamente dita – proceder-se-á a uma análise de recentes dispositivos legais inseridos no bojo da denominada Lei Geral da Copa (Lei nº. 12.663/2012), mais especificamente os artigos 37, 38 e 41, que têm a seguinte redação: Art. 37. É concedido aos jogadores, titulares ou reservas das seleções brasileiras campeãs das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958, 1962 e 1970: I - prêmio em dinheiro ..... Art. 38. O prêmio será pago, uma única vez, no valor fixo de R$ 100.000,00 (cem mil reais) ao jogador. ..... Art. 41. O prêmio de que trata esta Lei não é sujeito ao pagamento de Imposto de Renda ou contribuição previdenciária.

3   CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.67. 4   AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.134.


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287 A análise tem por escopo verificar se a exoneração concedida está em consonância com os já citados princípios.

2. Espécies de exoneração tributária Antes, porém, algumas considerações iniciais são imprescindíveis. A primeira se refere à espécie de exoneração tributária prevista no artigo 41. Para isso, apontaremos as principais diferenças entre as seguintes figuras: isenção, imunidade, alíquota zero, não incidência, remissão e anistia. Dizemos que ocorre a incidência do tributo quando determinado fato amolda-se à descrição abstrata da lei. Esse enquadramento dá nascimento à obrigação tributária. Quando o fato não se subsume à hipótese descrita na lei, ocorre a não incidência e, em decorrência desse não enquadramento, tal fato não tem aptidão para gerar tributos. O Código Tributário Nacional regulou a isenção no artigo 175, juntamente com a anistia, classificando-as como hipóteses que excluem o crédito tributário. A isenção, diga-se, não pode ser considerada como dispensa do pagamento do tributo devido. Essa teoria, adotada pelo CTN, parte da ideia de que o fato jurídico ocorreu, nasceu a obrigação tributária e, posteriormente, em razão da norma de isenção, o pagamento foi dispensado. Por ela dois momentos existiriam: no primeiro, ocorreria a incidência da norma e o surgimento da obrigação tributária, e, no segundo, incidiria a regra isentiva que dispensaria o sujeito passivo do pagamento do tributo. Vários autores se insurgiram contra esse entendimento. José Souto Maior Borges5 sustenta que as isenções tributárias são hipóteses de não incidência legalmente qualificadas. Adverte que não há o nascimento da obrigação tributária e, por conseguinte, não há que se falar em dispensa de algo que nunca existiu. Sacha Calmon6 refuta a tese de Borges por entender que não há duas normas, uma de tributação e uma de isenção (ou tantas normas isencio-

5   BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3a edição. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 190 e 191. 6   COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.145.


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nais quantos fossem os fatos isentos previstos pelo legislador), mas somente uma, pois as normas não derivam de textos legais isoladamente considerados. A norma jurídica de tributação é resultante de uma combinação de leis ou artigos de leis existentes no sistema jurídico, combinação essa que define os fatos tributáveis e se conjuga com as previsões imunizantes e isencionais, para compor uma única hipótese de incidência. Paulo de Barros Carvalho,7 por sua vez, leciona que a regra de isenção, que é uma regra de estrutura e não de comportamento, investe contra um ou mais dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os, parcialmente. Não há, evidentemente, supressão total do critério, pois isso equivaleria a destruir a regra-matriz, inutilizando-a como regra válida no sistema. O que o preceito da isenção faz é retirar parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou consequente. Há autores que aproximam a isenção da denominada alíquota zero, pois o efeito prático das duas figuras é o mesmo. Na alíquota zero, admitir-se-ia um fato gerador que nada gera, o nascimento de uma obrigação sem objeto.8 Para Paulo de Barros Carvalho, na alíquota zero há a aniquilação do critério quantitativo do consequente da regra-matriz, não enxergando o professor qualquer diferença entre esta supressão e a que ocorre nos casos de isenção. O Supremo Tribunal Federal, todavia, entende que isenção e alíquota zero não se confundem. Nesta há fato gerador, há contribuinte e há a incidência da norma, só não há tributo devido em razão de a alíquota ser zero. A remissão é o perdão da dívida tributária. Há o fato gerador e a obrigação tributária, todavia, a dívida é perdoada. Já a anistia é o perdão de infrações. Por fim, vejamos a última das figuras, a imunidade. A imunidade é técnica usada pelo constituinte no momento em que define o campo sobre o qual outorga competência.9 São normas constitucionais que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para expedir regras instituidoras de

7   CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 568. 8   COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 154. 9   AMARO, Luciano. Direito . 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.265.


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tributos sobre determinadas situações.10 Pelo exposto, podemos afirmar tratar-se de isenção (o prêmio de que trata esta lei não é sujeito ao pagamento de Imposto de Renda) a exoneração contida no artigo 41 da Lei nº. 12.663/2012. A regra isentiva ataca a funcionalidade da regra-matriz tributária comprometendo-lhe o consequente no que se refere ao sujeito passivo. Uma parcela do conjunto possível dos contribuintes foi extraída (jogadores de futebol campeões do mundo), e assim a regra-matriz será inoperante em relação a eles no que tange ao prêmio auferido. 3. Estrutura da regra isentiva do artigo 41 da lei nº. 12.663/2012 Visto o tipo de exoneração contido na lei, passa-se a analisar a sua estrutura. Dizemos que a lei é geral quando se reporta a uma classe de indivíduos. Generalidade, nesse sentido, contrapõe-se à individualização que ocorre quando a lei se refere a um indivíduo apenas. Além de geral ou individual, a lei também poderá ser abstrata ou concreta. Será concreta quando se referir a situação única com previsão de realização por uma só vez. Abstrata é a lei que supõe uma situação reproduzível.11 A lei em comento é concreta e individual. É concreta, pois a situação nela prevista não é renovável, mas se esgota após a produção dos efeitos previstos. É individual, pois já estão previamente determinados os indivíduos quando da edição da lei, muito embora não se reporte a uma única pessoa. A doutrina costuma equipar a lei individual e concreta ao ato administrativo. É considerado lei de efeitos concretos o ato normativo consignado como lei em sentido formal que, porém, não atende aos critérios da generalidade e da abstração, ou seja, são leis complementares, ordinárias, delegadas ou medidas que se assemelham a atos administrativos. Possuem destinatário certo (não são gerais), ou não possuem possibilidade de repetição (não possuem abstração). As leis individuais são marcadas pela falta de generalidade (aplicação a um universo indeterminado de pessoas) ou de impessoalidade (destinação impessoal). 10   CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 236. 11   MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, p .26.


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4. Princípios e regras Por fim, e antes de adentrarmos no objeto específico do estudo, vejamos as principais características dos princípios e modos de diferenciá-los das regras. Na definição de Geraldo Ataliba,12 sistema normativo é o conjunto unitário e ordenado de normas, em função de uns tantos princípios fundamentais, reciprocamente harmônicos, coordenados em torno de um fundamento comum. Os sistemas, adverte, não são formados pela mera soma de seus elementos, mas pela conjugação harmônica deles. Canotilho13 afirma que o sistema jurídico do Estado é um sistema normativo aberto de regras e princípios. É um sistema de regras e princípios, pois as normas se revelam sob ambas as modalidades. Não é fácil, contudo, a tarefa de distinguir regra de princípio. Princípio traz a ideia de origem, começo, ponto de partida. Para Celso Antônio Bandeira de Mello,14 princípio é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, que se irradia sobre as normas, compondo-lhes o espírito e servido de critério para sua compreensão. Paulo de Barros Carvalho aduz que sempre que houver consenso ou que um número considerável de indivíduos reconhecerem que determinada norma veicula um vetor axiológico forte, desempenhando importante papel para o entendimento do sistema normativo, estaremos diante de um princípio. “Quer isto significar, por outros torneios, que ‘princípio’ é uma regra portadora de núcleos significativos de grande magnitude influenciando visivelmente a orientação de cadeias normativas, às quais outorga caráter de unidade relativa, servindo de fator de agre-

12   ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1966, p. 19 13   CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1143. 14   MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 15ª ed. 2003, p. 817


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291 gação para outras regras do sistema positivo. Advirta-se, entretanto, que ao aludirmos a “valores” estamos indicando somente aqueles depositados pelo legislador (consciente ou inconscientemente) na linguagem do direito posto ”.15

Além de transmitir a ideia de valor, o termo princípio pode ser definido sob outra perspectiva, como o faz Alexy, para quem princípios são mandamentos de otimização, normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes, vale dizer, os princípios podem ser realizados em diversos graus.16 Nos princípios, os direitos são garantidos direitos prima facie, havendo uma diferença entre o que é garantido inicialmente e o que é garantido definitivamente, diferença essa que apenas será superada quando da análise do caso concreto. As regras, a seu turno, são normas que garantem direitos de modo definitivo, ou seja, o direito será totalmente realizado se a regra for aplicada ao caso concreto. As regras, ademais, são aplicadas por subsunção e os conflitos existentes entre elas serão resolvidos no plano da validade, o que significa que uma das regras será declarada inválida, no todo ou em parte, caso preveja consequências diferentes para o mesmo fato. Já a aplicação dos princípios se dá por sopesamento enquanto os seus conflitos se resolvem no campo da eficácia, é dizer, eles continuam válidos, mantêm a sua validade, todavia deixam de ser aplicados no caso concreto. Assim, o que ocorre quando dois princípios colidem é a fixação de relações condicionadas de precedência.17 Canotilho18 aponta cinco critérios para diferenciar regras de princípios. O primeiro refere-se ao grau de abstração, entendendo ele que os princípios são normas com elevado grau de abstração. O segundo refere-se ao grau

15   LUCCA, Newton de; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; BAETA NEVES, Mariana Barboza. Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 286. 16   SILVA, Afonso Virgílio. Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 46. 17   SILVA, Afonso Virgílio. Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 50. 18   CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.144.


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de determinabilidade na aplicação no caso concreto. Os princípios, por serem vagos e indeterminados, necessitam das mediações concretizadoras do juiz ou legislador. O terceiro diz respeito ao caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito. Os princípios são normas de natureza estruturante ou com papel fundamental no ordenamento jurídico em razão de sua posição hierárquica no sistema das fontes. O quarto critério – proximidade da ideia de direito – afirma que os princípios são standarts juridicamente vinculantes radicados na exigência de justiça ou ideia de direito. Por fim, o quinto trata da natureza normogenética dos princípios, que constituem fundamentos para a edição das regras. Humberto Ávila19 critica tanto a corrente que define princípio em razão do grau de abstração e generalidade como a que o define em função do modo de aplicação. Afirma que princípio não pode ser definido com fundamento no elevado grau de abstração e generalidade,pois toda norma, por ser veiculada por meio da linguagem, é em alguma medida indeterminada. Argumenta que as regras também servem para a concretização de valores, já que cada uma tem uma finalidade que lhe é subjacente. Argumenta que toda norma é aplicada mediante ponderação, inclusive as regras. Há uma ponderação interna (por exemplo, qual o significado de livro para a norma de imunidade) e uma externa quando duas normas entram em conflito sem que seja decretada a invalidade de uma delas. Ressalta que há casos em que o conflito de regras não se resolve com decretação de invalidade de uma delas. Entende que também as regras estabelecem deveres provisórios como nas hipóteses de superação por meio do princípio da razoabilidade. A grande importância dos princípios, além de seu caráter normogenético, está no fato de vincularem o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam. Destarte, as regras devem ser editadas consoante os valores nelas expressos e consagrados na Constituição, bem como na análise do caso concreto elas devem ser interpretadas de modo a conferir ao princípio a máxima efetividade possível, sendo compatíveis, portanto, as doutrinas que as definem em razão do grau de abstração e do modo de aplicação. 19   ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.


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5. Princípio republicano e a regra isentiva O princípio republicano encontra-se previsto no artigo 1º da Constituição Federal. Não deve ele ser encarado sob uma ótica estritamente formal, conforme adverte José Afonso da Silva,20 como simples oposição à forma monárquica de governo. Citando a lição de Ruy Barbosa, afirma que o que caracteriza a República não é a mera coexistência dos três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, mas sim a condição de que os membros dois primeiros poderes tenham sido eleitos pelo povo, em eleições periódicas, por tempo limitado, o que leva à não vitaliciedade dos cargos políticos. Renato Becho21 diz que é possível apresentar todo o direito tributário brasileiro, notadamente o superior direito tributário constitucional, a partir dos princípios republicano, federativo, da autonomia municipal, da anterioridade, da legalidade e da segurança jurídica, o que realçaria a posição destacada da Constituição Federal sobre todo o subsistema jurídico-tributário. Roque Antônio Carrazza22 define República como o tipo de governo fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade. Uma característica extraída do conceito e que mais de perto nos interessa para a análise do ponto controvertido diz respeito à igualdade formal. Tal igualdade não admite haver distinções entre os indivíduos, sejam eles pobres ou ricos, cultos ou ignorantes, médicos ou jogadores de futebol. Como decorrência dessa igualdade, não são aceitas, tampouco, leis que contenham diversidade de tratamento para pessoas que se encontrem em uma mesma situação fática e jurídica. Vale dizer, são proibidas discriminações que privilegiem uns em detrimento de outros. Os poderes que os representantes escolhidos pelo povo receberam devem retornar sob a forma de leis que possibilitem as mesmas oportunidades para todos e garantam o bem-estar dos cidadãos. 20   SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.106. 21   BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p.357. 22   CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 48.


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O Supremo Tribunal Federal por várias vezes já decidiu que o princípio republicano repele privilégios e não tolera discriminações, impedindo qualquer vantagem conferida apenas a um indivíduo não extensível aos demais. Entendeu a Corte Constitucional em julgamento23 que aferia a legitimidade de vantagens que detinham candidatos que já eram parlamentares, ser inaceitável, na hipótese, a quebra essencial da igualdade que deve existir entre todos aqueles que, parlamentares ou não, disputam mandatos eletivos. Também já decidiu o Supremo Tribunal Federal24 que as normas, inclusive as constitucionais, devem ser interpretadas de maneira a dar eficácia e efetividade ao princípio republicano. Voltando as nossas atenções para a seara tributária, temos que, nos termos do princípio republicano, a lei não pode estabelecer vantagens para uma determinada classe de indivíduos tão-somente baseada em sua profissão. Destarte, o princípio republicano conduz, em última análise, à generalidade da tributação, ou seja, todos os indivíduos que se encontrem na mesma situação devem suportar idêntica tributação. Os mesmos argumentos são válidos no que concerne a leis que concedem isenções. A Lei nº 12.663/2012 (artigos 37 e 38) concedeu aos jogadores, titulares ou reservas das seleções brasileiras campeãs das copas mundiais masculinas da Fifa nos anos de 1958, 1962 e 1970, um prêmio em dinheiro no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Não entraremos no mérito do artigo, conquanto sejam duvidosos os critérios para o prêmio, que privilegiou apenas os jogadores de futebol, deixando de lado outros atletas igualmente importantes ou indivíduos tão ou mais necessitados. Também não serão tecidos comentários sobre artigos contidos na lei que, de modo ostensivo, afrontam o princípio da soberania nacional. O que pretendo trazer à discussão é o artigo 41 da mencionada lei que tem a seguinte redação: o prêmio de que trata esta Lei não é sujeito ao pagamento de Imposto de Renda ou contribuição previdenciária.

23  Pet 4444 AgR / DF – Distrito Federal. AG.ReG. na Petição. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 26/11/2008. 24   RE 543117 AgR / AM – Amazonas. AG.Reg. em RE. Relator(a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 24/06/2008.


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Não tenho dúvidas de que o artigo fere de morte o princípio republicano. Não há qualquer justificativa razoável para não submeter à tributação do Imposto de Renda o prêmio instituído pela lei, haja vista que o valor se subsume com perfeição ao conceito de renda estabelecido na Constituição. Além do perfeito enquadramento à hipótese de incidência, não há qualquer tipo de exoneração prevista no texto constitucional que dispense o seu pagamento. É evidente que a lei pode estabelecer isenções, todavia, ao fazê-lo, deve observar os princípios de nossa carta magna, sob pena de inconstitucionalidade. Entre esses o princípio republicano, que não apenas estabelece uma relação de igualdade entre os contribuintes, mas proíbe peremptoriamente vantagens fiscais com fundamento na profissão. A lei poderia produzir o mesmo efeito sem afrontar o princípio republicano. Bastaria para isso aumentar o valor do prêmio para que, no fim, após a devida incidência do Imposto de Renda, restassem líquidos para os jogadores o mesmo montante, isto é, 100 mil reais. O que não pode a lei é passar a ideia de que nem todos são iguais perante ela, que há valores que, embora enquadrados no conceito de renda, não são tributados em razão de um privilégio especial concedido a poucos. 6. Princípio da capacidade contributiva e a regra isentiva Roque Antonio Carrazza entende que o princípio da capacidade contributiva encontra-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos.25 Alberto Xavier26 não reconhece a autonomia do princípio da capacidade contributiva, entendendo ser este mero aspecto em que se desdobra o princípio da igualdade, não constituindo princípio autônomo. Renato Becho,27 conquanto reconheça a correlação entre ambos, admite a existência de elementos que os diferenciam. Afirma que no princípio da 25    CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 74. 26    XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 74. 27    BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 405.


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igualdade é necessário um elemento comparativo e um outro indivíduo para se verificar se os dois estão sendo tratados consoante determina o princípio, o que não ocorre no que diz respeito ao princípio da capacidade contributiva. Se dois indivíduos em idêntica situação estão sendo tributados da mesma forma, está se atendendo ao princípio da igualdade. Todavia, se, não obstante essa igualdade, a tributação estiver retirando deles parcela necessária para a sua subsistência e vida digna, não se estará respeitando o princípio da capacidade contributiva. Não basta, pois, que se analise o contribuinte isoladamente em seu contexto econômico. Não obstante as diferenças apontadas, o autor entende que a capacidade contributiva é um limite mínimo de igualdade tributária, indicando o espaço que o legislador não deve violar ao realizar a tributação. A partir desse limite, o princípio da igualdade busca o equilíbrio entre os contribuintes. O princípio encontra-se expresso no artigo 145, § 1º, da Constituição, afirmando que, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. De maneira geral, o princípio estabelece que aqueles que possuem mais riqueza devem pagar mais imposto. Segue que o montante de tributos exigido de determinado contribuinte irá variar de acordo com a manifestação de seu poder econômico. O princípio tem inspiração na ordem natural das coisas,28 uma vez que onde não houver riqueza é inútil a instituição de um imposto. Mas não é apenas essa a sua função. Além de preservar a racionalidade da lei, o princípio visa preservar o contribuinte de uma tributação exagerada, tributação que possa comprometer o mínimo necessário para a sua subsistência e vida digna. Por intermédio do princípio da capacidade contributiva, busca-se alcançar a justiça fiscal, exigindo-se dos mais ricos maior contribuição para os gastos do Estado. A expressão “sempre que possível” não constitui simples recomendação

28   AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 133. AMARO, Luciano. Obra citada, p. 88.


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para o legislador. Ao contrário, ele deve, se for da natureza constitucional do imposto, conferir caráter pessoal e graduá-lo de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. Assim, a exceção contida na lei refere-se tão-somente aos impostos que, em virtude de sua natureza, não permitem que se atenda ao comando constitucional, como, por exemplo, o IPI. Vale dizer, quando houver a possibilidade de escolha, o legislador, deverá, obrigatoriamente, ao criar in abstracto o imposto, atender aos ditames do princípio da capacidade contributiva, isto é, deverá imprimir à exação caráter pessoal, graduando-a segundo a aptidão econômica do contribuinte.29 Isso significa que todos os impostos, à exceção do ICMS, IPI, Imposto de Importação e Imposto de Exportação, devem ser graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes. A pessoalidade dos impostos está condicionada à viabilidade jurídica de ser considerada a situação individual do sujeito passivo numa dada hipótese de incidência tributária.30 Melhor esclarecendo, e tomando como modelo o IPI, vemos que o valor do imposto é transferido para o preço da mercadoria. Quem o suporta não é o contribuinte, mas o consumidor final da mercadoria. Este, quando da aquisição do bem, o adquire com o valor do imposto nele embutido. Esta carga é igual para todos os consumidores finais. Essa a razão de não ser possível a aplicação do princípio aos impostos indiretos. Em resumo, quando a norma tributária referir-se a elementos pessoais do contribuinte, deve, por conseguinte, ser observada até o fim a pessoalidade na tributação.31 Humberto Ávila32 afirma que há, ainda, outro critério para sujeitar os impostos à capacidade contributiva. Aduz que o princípio deve ser observado quando a tributação tiver finalidade fiscal, ou seja, quando a instituição do imposto tiver por fundamento preponderante a obtenção de receitas. Esclarece o autor que a Constituição não garante apenas a realização dos 29   AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 133. AMARO, Luciano. Obra citada, p. 88. 30   COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p.104. 31   ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.437. 32   Princípio da Isonomia em Matéria Tributária. Teoria Geral da Obrigação Tributária. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São Paulo: Malheiros, 2005, p 742.


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princípios fundamentais, ou gerais de tributação, mas vários outros, como os princípios gerais da atividade econômica, implementação da política urbana, proteção do meio ambiente etc. Destarte, quando os impostos tiverem uma finalidade extrafiscal, ou seja, quando tiverem por objetivo atingir uma finalidade constitucional que não seja a mera arrecadação de tributos, já não mais será o princípio da capacidade contributiva a medida de diferenciação entre os contribuintes. Conclui o autor afirmando que quando o legislador erigir outra finalidade para o imposto, ainda assim há o dever de preservar ao máximo a capacidade contributiva, e isso será realizado por intermédio do princípio da proporcionalidade. A medida adotada deverá, por conseguinte, ser adequada à consecução do fim, necessária, no sentido de ser a menos restritiva entre as medidas igualmente adequadas, e proporcional. Justamente porque o legislador irá se afastar do princípio da capacidade contributiva o fim deve estar perfeitamente estabelecido. Retomando, não há dúvidas de que impostos como, por exemplo, o imposto sobre a renda permitem a aplicação do comando constitucional. Mas e quanto aos impostos reais e indiretos? Recordemos, impostos pessoais são aqueles cujo aspecto material da hipótese de incidência leva em consideração certas características, juridicamente qualificadas, dos sujeitos passivos. Já os impostos reais são aqueles nos quais o aspecto material da hipótese de incidência limita-se a descrever um fato, independentemente do aspecto pessoal do sujeito passivo e suas qualidades.33 No que diz respeito aos impostos reais, como o IPTU, a Constituição estabeleceu a possibilidade de progressividade em razão do valor do imóvel, da localização e do uso. Esses critérios, geralmente, demonstram a capacidade econômica do contribuinte, pois é certo que imóveis com grande valor venal e localizados em bairros nobres indicam que o seu proprietário tem maior capacidade contributiva. O mesmo vale para o IPVA, que poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e da utilização do veículo. Já no que diz respeito aos impostos indiretos, vimos acima que não há a possibilidade de imprimir-se a eles feição pessoal. Todavia, mesmo em rela33   ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 5ª ed., 1992, p. 125.


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ção a esses impostos, conquanto não seja possível estabelecer uma relação direta no que se refere à capacidade contributiva – uma vez que o imposto pago pelo contribuinte mais abastado é o mesmo que o pago pelo não tão abastado –, há mecanismos que, de maneira reflexa, tentam minimizar o problema. Nessas hipóteses, a capacidade contributiva se daria pela seletividade de alíquotas e pela não cumulatividade,34 pois o consumo de certos bens revelaria uma riqueza do contribuinte. De fato, não há como negar que, de certo modo, o princípio é realizado com a aplicação de alíquotas seletivas, conforme destacado por Regina Helena Costa,35 que argumenta que a seletividade e a não cumulatividade são expedientes que demonstram que mesmo não sendo viável considerar as condições pessoais dos contribuintes nesses tributos, ainda assim é possível prestigiar a noção de capacidade contributiva. Arremata a autora afirmando que, se a capacidade contributiva não puder ser levada em conta para a graduação desses tributos, ao menos dever servir como indicativo das hipóteses de isenção da obrigação tributária. O destinatário do princípio da capacidade contributiva é o legislador, uma vez que a ele caberá editar as leis que instituem impostos, impostos esses que deverão ser graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Mas não apenas ao legislador se destina o comando, como também ao Judiciário, uma vez que a ele é reservada a missão de fazer valer o princípio se porventura não observado pelo legislador. Nesse sentido, o entendimento de Elizabeth Nazar Carrazza,36 que entende como destinatários não somente o legislador, mas também o aplicador na norma. Diz-se que a capacidade contributiva é de natureza objetiva, quando não se preocupa com as reais condições econômicas do contribuinte, mas sim com as suas manifestações objetivas de riqueza. Já a capacidade contributiva subjetiva considera o indivíduo e sua real condição econômica. Presente 34   COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 54 35   COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 54. 36   CARRAZA, Elizabeth Nazar. IPTU e progressividade. Igualdade e Capacidade Contributiva. Curitiba: Juruá, 1992, p. 41


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a capacidade contributiva in concreto, o sujeito passivo torna-se apto para absorver o impacto tributário.37 Para Sacha Calmon Navarro Coelho,38 a capacidade contributiva é subjetiva, e, desse modo, deve considerar a real capacidade econômica do sujeito passivo, ou seja, a sua condição concreta de suportar a carga econômica do tributo. A maioria da doutrina entende ser objetiva a natureza do princípio. É o entendimento de Roque Antonio Carrazza,39 para quem o princípio será atendido quando a lei, ao criar o imposto, colocar em sua hipótese de incidência fatos que façam presumir a riqueza do contribuinte. A capacidade contributiva impõe um limite à discricionariedade do legislador na eleição dos fatos tributáveis na medida em que não autoriza como pressuposto de impostos aqueles que não sejam reveladores de alguma riqueza.40 Vistos os contornos do princípio da capacidade contributiva, voltemos à análise do artigo 41 da Lei nº. 12.663/2012, que isenta o prêmio da incidência do Imposto de Renda. Há vários métodos para graduar os impostos de acordo com a capacidade econômica do sujeito passivo. Entre esses, se sobressaem as autorizações para deduções da base de cálculo de despesas consideradas vitais e a progressividade de alíquotas. Há, entretanto, dúvidas no que se refere à compatibilidade das isenções com o princípio da capacidade contributiva. Elizabeth Nazar Carraza entende que tal princípio, assim como o da igualdade, não impede a concessão de isenções.41 Hugo de Brito Machado42 entende constitucional a isenção desde que se 37   COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 26. 38   COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: Sistema Tributário, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1990, p. 90. 39  CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 48. 40   COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 26.   41   CARRAZA, Elizabeth Nazar. IPTU e progressividade. Igualdade e Capacidade Contributiva. Curitiba: Juruá, 1992, p. 81. 42   MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 53.


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refira a imposto cujo fato gerador não constitua um indicador da capacidade contributiva do contribuinte. Adverte, todavia, que a isenção afrontará o princípio se a hipótese tratar de imposto sobre o patrimônio ou sobre a renda, cujo contribuinte é exatamente aquele que se revela possuidor de riqueza ou renda. Vale a pena transcrever as suas impressões sobre o tema: “É certo que nossa Constituição contém regras no sentido de que o desenvolvimento econômico e social deve ser estimulado (art. 170), e especificamente no sentido de que a lei poderá, em relação à empresa de pequeno porte constituída sob as leis brasileiras, e que tenham sua sede a administração no País, conceder tratamento favorecido (art. 170, IX). Não nos parece, todavia, sejam tais disposições capazes de validar regra isentiva de imposto de renda, a não ser que se trate de situações em que a isenção realiza o princípio da capacidade contributiva, como acontece com a concedida às microempresas, ou aquelas que em geral são pertinentes ao considerado o mínimo vital”. A isenção é, por assim dizer, uma tributação com sinal trocado. O princípio da capacidade contributiva determina que mais tributos sejam cobrados de quem tenha mais condições de pagá-los. Ora, a isenção pode funcionar exatamente deste modo, ou seja, retirando parcela maior da tributação daqueles com menor capacidade econômica. José Souto Maior Borges assevera que uma das hipóteses para a utilização de isenções respeitando-se a capacidade contributiva dos indivíduos é a que determina a exoneração do mínimo vital para a sobrevivência. Argumenta que: “Dentre as hipóteses de serem utilizadas isenções em consideração à capacidade contributiva dos indivíduos, inclui-se a de exoneração do mínimo vital (isenção,


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Revista da Ajufe p.ex., das pequenas rendas). A isenção leva em conta, aí, peculiares circunstâncias denunciadoras de ausência de capacidade contributiva. Sustenta-se, mesmo, que a tributação termina onde começa o mínimo vital, inexistindo nas hipóteses de rendas insignificantes, matéria a ser tributada ”.43

Deflui do entendimento de Hugo de Brito Machado que quando o imposto tiver hipótese de incidência relacionada ao patrimônio ou renda, a isenção contrariaria o princípio se o contribuinte possuísse renda suficiente para cumprir a sua obrigação sem ferir a sua capacidade econômica. A assertiva está correta quando a isenção é concedida para um contribuinte em particular (ou determinados contribuintes) sem considerar a sua renda. Também está correta quando a isenção é concedida, no mesmo montante, para todos os indivíduos, sem particularizar as situações. Em conclusão, também as isenções devem respeitar o princípio da capacidade contributiva. De fato, as isenções, por integrarem o sistema constitucional tributário brasileiro, devem submeter-se a todos os princípios que o informam.44 No mesmo sentido, Regina Helena Costa anota que as isenções técnicas – em oposição às políticas – são legitimamente reconhecidas e não afrontam o princípio da capacidade contributiva, como, por exemplo, a destinada a preservar o mínimo vital. Voltando os olhos para a lei em discussão, tenho que ela contraria o princípio da capacidade contributiva seja qual for a perspectiva adotada. Objetivamente considerado, o princípio da capacidade contributiva afirma que temos que nos ater tão-somente à manifestação objetiva de riqueza do contribuinte, como, por exemplo, possuir um imóvel, possuir um automóvel e assim por diante. O proprietário de uma Ferrari não pode alegar não ter auferido renda no período para não pagar o IPVA de seu veículo. Se as-

43   BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3a ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 49. 44  CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 226.


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sim não fosse, deveríamos reconhecer o direito de o devedor contumaz (não honra as suas dívidas embora possua uma grande fortuna) não recolher o tributo por falta de capacidade contributiva.45 Assim, o prêmio instituído é uma manifestação objetiva de riqueza e não deve escapar à tributação. Independentemente da situação particular do beneficiário, o valor referente ao prêmio deveria ser incluído na relação de rendimentos de sua declaração de Imposto de Renda e oferecido à tributação. O mero recebimento da quantia, dessa forma, revela a sua capacidade contributiva. A inconstitucionalidade da isenção ocorre mesmo se considerada a natureza subjetiva do princípio. É certo que entre os beneficiários há jogadores que não foram bem-sucedidos e não alcançaram o reconhecimento profissional e o financeiro esperados. São conhecidas as histórias daqueles que enfrentaram muitas dificuldades financeiras, sem dinheiro sequer para custear gastos com doenças na velhice. Todavia, há entre os campeões mundiais jogadores extremamente ricos, como, por exemplo, Carlos Alberto, Tostão e Pelé. Ora, se a capacidade contributiva tem por finalidade que os mais ricos paguem mais impostos, não há qualquer razão para isentar tais prêmios por eles auferidos. 7. Princípio da igualdade e a regra isentiva O princípio da igualdade está estampado no artigo 150, I da Constituição. O dispositivo veda que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituam tratamento desigual entre contribuintes que se encontram em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. O princípio é dirigido tanto para o legislador ordinário, que deverá observá-lo para a elaboração de leis, quanto para a administração e o Judiciário, que irão aplicá-las. Temos assim a igualdade na lei e perante a lei.

45    BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 410.


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Dessa feita, não nos parece correto o entendimento46 de que a concessão de isenções não deve ser submetida a controle judiciário por ser ato discricionário fundado em juízo de conveniência e oportunidade, uma vez que tais juízos não são absolutos, mas encontram seus limites na Constituição. A redação do artigo deixa patente que a lei não poderá estabelecer diferenças entre contribuintes tendo por fundamento as suas condições pessoais ou critérios arbitrários. A própria Constituição traçou os parâmetros que entendeu serem inadmissíveis para a criação de distinções: ocupação profissional, função exercida e denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. Evidentemente, a lei não impede a criação de distinções, uma vez que o princípio será concretizado, muitas das vezes, com o estabelecimento de distinções que procuram igualar as desigualdades. Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que são três os critérios que devem ser utilizados para aferição da quebra do princípio.47 O primeiro diz respeito ao elemento (indeterminado) utilizado como fator de desigualação; o segundo se refere à correlação lógica tomada em abstrato entre o fator eleito para o discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento; e o terceiro busca verificar a consonância dessa correlação com os valores presentes na Constituição. O Supremo Tribunal Federal decidiu que o princípio da igualdade não é violado desde que cumpridos os seguintes requisitos: i) a norma tratar da mesma forma contribuintes que estejam em idêntica situação; ii) não houver violação a nenhum direito fundamental; iii) nenhuma pretensão decorrer do igual tratamento e iv) o tratamento diferenciado possuir uma fundamentação constitucional.48 Em diversas ocasiões, a nossa Corte Constitucional chancelou leis que 46   A concessão do benefício da isenção fiscal é ato discricionário, fundado em juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo, cujo controle é vedado ao Judiciário. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. RE 480107 AgR / PR – PARANÁ Relator(a): Min. EROS GRAU. 47   MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, p .21. 48   ÁVILA, HUMBERTO. Estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. O Princípio da Isonomia em Matéria Tributária. Teoria Geral da Obrigação Tributária. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 742.


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instituíam tratamento privilegiado a determinadas indivíduos. Como exemplo trago à colação acórdão que considerou constitucional lei do Estado do Espírito Santo49 que isentava do pagamento da taxa de inscrição para ingresso no serviço público os trabalhadores que ganhassem até três salários mínimos por mês. O ministro Marco Aurélio ponderou que o dispositivo, ao emprestar um tratamento desigual a desiguais, acabou por viabilizar a feitura do concurso por aqueles que não teriam condições para o recolhimento da taxa sem prejuízo do próprio sustento e de sua família. Observe-se que nessa hipótese foram respeitados todas as condições trazidas pelo professor Bandeira de Mello. Elegeu-se uma categoria de pessoas não individualizadas previamente – trabalhadores que ganham até três salários mínimos – e a elas foi concedida uma vantagem, a de não pagar a taxa de inscrição de concurso público, havendo uma justificativa racional para a diversidade de tratamento, qual seja, os que ganham menos têm menos condições de arcar com os gastos referentes à inscrição. Por fim, tem-se que a diversidade de tratamento realiza valores constitucionais. A isenção relativa ao prêmio concedido pela Lei nº. 12.663/2012 aos jogadores de futebol das seleções brasileiras campeãs das copas mundiais masculinas da FifaIFA nos anos de 1958, 1962 e 1970 não satisfaz nenhum dos requisitos acima enumerados. Comecemos a análise pelo elemento utilizado como fator de desigualação. A lei não pode adotar um critério diferencial tão específico que acabe por individualizar no presente e definitivamente o indivíduo que será atingido pela norma. As leis gerais e abstratas não ofendem o princípio da igualdade. O mesmo não ocorre com as individuais e as concretas. A regra individual poderá ou não ser compatível com o princípio da

49    EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N° 6.663, DE 26 DE ABRIL DE 2001, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. O diploma normativo em causa, que estabelece isenção do pagamento de taxa de concurso público, não versa sobre matéria relativa a servidores públicos (§ 1º do art. 61 da CF/88). Dispõe, isto sim, sobre condição para se chegar à investidura em cargo público, que é um momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor público. Inconstitucionalidade formal não configurada. Noutro giro, não ofende a Carta Magna a utilização do salário mínimo como critério de aferição do nível de pobreza dos aspirantes às carreiras púbicas, para fins de concessão do benefício de que trata a Lei capixaba nº 6.663/01. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.


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igualdade no que diz respeito à singularização absoluta e atual do indivíduo. Obedecerá ao princípio a regra que se referir a sujeito futuro, atualmente indeterminado e indeterminável.50 A regra concreta, do mesmo modo, poderá ou não se adequar ao princípio da igualdade. Será conforme o princípio se, conquanto concreta, for geral. O princípio da igualdade não apenas procura evitar a existência de perseguições, mas também objetiva impedir privilégios ou favoritismos, e essa função é alcançada com a formulação de leis gerais. A lei em comento, todavia, singularizou os beneficiários, e em assim o fazendo, desrespeitou o princípio, por não se reportar a sujeito futuro, atualmente indeterminado. Além de pecar no que diz respeito à generalidade, a lei também contrariou a isonomia em razão de seu caráter concreto. Conquanto a determinabilidade dos sujeitos seja um indicativo da transgressão da isonomia, tenho que a mais patente violação está na ausência de correlação lógica entre o fator utilizado para o discrímen e a diversidade de tratamento estabelecida pela lei. Ora, não há qualquer justificativa razoável para a concessão de isenções pelo mero fato de alguém ter sido campeão mundial de futebol. De fato, há outros desportistas, igualmente importantes ou quiçá mais importantes, – cito, a guisa de exemplo, Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão olímpico do salto triplo – que, por justiça, deveriam ter sido agraciados e não o foram. Por fim, a isenção também não passa no terceiro teste, uma vez que a Constituição expressamente veda a concessão de tratamento tributário diferenciado em razão da ocupação profissional ou função exercida pelos contribuintes. O Supremo Tribunal Federal51 não admite distinções em razão da profissão ou da ocupação profissional. Com efeito, foi julgado inconstitucional dispositivo inserido na Lei Orgânica do Ministério Público do Rio Grande do Norte que previa a concessão de isenção, em favor de seus membros, no que

50   MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, p .29. 51   ADI 3260 / RN - RIO GRANDE DO NORTE. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Relator(a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 29/03/2007.


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tange ao pagamento de custas judiciais, notariais e cartorárias. A decisão considerou injustificado o privilégio aos membros do Parquet. Disse a Corte que a concessão da isenção pelo mero fato de os indivíduos integrarem a instituição viola o princípio da igualdade. 8. Ofensa à regra da especificidade Não bastasse ter contrariado os princípios da capacidade contributiva, republicano e da isonomia, o artigo 41 da Lei nº 12.663/02 ainda afrontou a regra constitucional expressa no § 6.º do artigo 150 da Constituição, que tem a seguinte redação: “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g”. A redação primitiva do parágrafo foi modificada pela Emenda Constitucional nº 3/93, cujo texto original exigia lei específica apenas nas hipóteses de anistia e de remissão. A finalidade do parágrafo é evitar a inserção de dispositivos estranhos em leis que não guardam qualquer relação com a tributação, dispositivos que poderiam ser aprovados sem a devida reflexão e debates necessários. Em fim de governo ou às vésperas de eleição, tornou-se hábito por estes brasis afora dar anistias e remissões fiscais sem motivos justos, a não ser o de captar a simpatia do eleitor. Mancomunados, o Executivo e o Legislativo utilizavam o patrimônio fiscal realizável, dispensando-o e dissipando-o com intuitos eleitoreiros.52 52   COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p 286.


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Tércio Sampaio Ferraz53 esclarece que o comando constitucional presente no § 6° deve ser contextualizado, e, assim, as suas exigências devem ser entendidas como garantias asseguradas ao contribuinte, conforme consta do caput do artigo 150 da Constituição. O dispositivo constitui uma restrição ao poder normativo para a proteção do contribuinte contra a discricionariedade, ou seja, impede, por exigência de lei, que exceções sejam abertas ao arbítrio da autoridade concedente, evitando-se ilegítimos favorecimentos. A lei deve ser específica. O preceito é específico quando se dirige a determinados destinatários ou se refere a um objeto em particular (singularização da matéria). Será específica a lei que conceder anistia geral aos proprietários de usinas de açúcar (especificidade pelo destinatário), como também será específica a lei do IPI que conceder isenção do imposto aos taxistas (especificidade pela matéria). A exigência de especificidade, em ambos os sentidos, é coerente com os objetivos do preceito constitucional de garantir o contribuinte contra o tratamento igual de situações desiguais ou de sujeitos em situações desiguais. Além de específica a lei deve ser exclusiva, que tem o sentido de uma concentração temática. A exclusividade busca prevenir que as matérias enumeradas no parágrafo (remissão, anistia, isenção, etc.) sejam tratadas dentro de um contexto no qual elas não possuam nenhum significado. À vista do exposto, é fácil perceber que a denominada Lei Geral da Copa (Lei nº. 12.663/2012) não poderia conceder a isenção do prêmio que instituiu, pois não é nem específica nem exclusiva, estando o artigo 41 totalmente dissociado do restante das matérias ali tratadas. 9. Conclusões 1. O artigo 41 da Lei nº. 12.663/2012, que dispensa do pagamento do Imposto de Renda o prêmio de R$ 100.000,00, estabelecido nos artigos 37 e 38 da mesma lei, é uma regra isentiva. Tal regra ataca a funcionalidade da regra-matriz tributária comprometendo-lhe o conseqente no que se refere ao sujeito passivo.

53   http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/36


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2. O artigo fere de morte o princípio republicano, pois não há qualquer justificativa razoável para não submeter à tributação do Imposto de Renda o prêmio instituído. O princípio republicano não apenas estabelece uma relação de igualdade entre os contribuintes, como também proíbe categoricamente vantagens fiscais com fundamento na profissão do indivíduo. 3. O prêmio é uma manifestação objetiva de riqueza e não deve escapar à tributação, pois o mero recebimento da quantia já revela a capacidade contributiva do indivíduo. Haverá ofensa à capacidade contributiva mesmo que seja considerada a natureza subjetiva do princípio, haja vista a situação econômica de vários dos beneficiados. 4. Não há correlação lógica entre o fator utilizado para o discrímen e a diversidade de tratamento estabelecida pela lei, não podendo ser considerado razoável para a diferenciação o mero fato de alguém ter sido campeão mundial de futebol. 5. A isenção concedida pela lei não é nem específica nem exclusiva, o que afronta o artigo 150, § 6º, da Constituição Federal. 10. Referências bibliográficas AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 5ª ed., 1992. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. BECHO, Renato Lopes. Lições de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011. BOBBIO, Norberto: Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro. BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª edição. São Paulo: Malheiros. CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina.


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