OUTUBRO/2013
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Apresentação Dolores Aronovich Aguero, Carlos Rinaldo Costa Moreira, Sérvulo Esmeraldo, Maria Maísa Vasconcelos de Sousa e Tiago Sobreira de Santana. Eis a relação dos entrevistados desta edição da Revista Entrevista. Os nomes próprios – completos – talvez façam os leitores estranharem essas personagens da vida cultural cearense. Mas a dica descortina o universo: a primeira é professora universitária e blogueira feminista; o segundo, ator e diretor teatral; o terceiro, mais rapidamente identificado, é um escultor e artista plástico cearense de renome internacional; o quarto nome identifica uma jornalista e radialista bastante conhecida; o quinto é de um fotógrafo respeitado. Vamos mergulhar: Dolores é mais conhecida por Lola Aronovich. É professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), porém, é bastante conhecida como a blogueira que não foge à polêmica e à controvérsia, principalmente quando em defesa das causas feministas. Na entrevista, Lola traça um painel da própria trajetória de vida em meio a relatos e recordações que cobrem a infância, a adolescência e a vida adulta. Carlos Rinaldo é Carri Costa, ator e diretor com larga atuação no teatro cearense, notadamente no gênero comédia. Na bagagem, carrega um imenso amor pela arte de representar. A entrevista é um riso que se alastra pelas páginas da revista. Entanto, isso não significa não tratar de assuntos, digamos, mais sérios, inclusive sobre a dificuldade de manter aberto o Teatro da Praia, em Fortaleza. Sérvulo Esmeraldo é Sérvulo sim-
plesmente! Uma escultura humana que exala poesia nas linhas e nas curvas da vida e emociona pela simplicidade existencial, pela generosidade, pela humildade no exercício da arte. Um homem que se lança nos espaços urbanos demarcando a existência humana com obras ao mesmo tempo simples e encantadoras. Maísa é sinônimo de comunicação. Diria melhor: é uma espécie de personificação da televisão cearense, reconhecida e respeitada pelo público e pelos colegas de profissão. É sorridente – embora aqui, acolá lágrimas represadas cintilem o olhar como demonstração da condição humana – e comunicativa ao extremo. Nas páginas desta edição, Maísa faz um mergulho na trajetória de vida profissional. Tiago Santana – pode-se afirmar – é uma grife fotográfica. Ele escreve e se inscreve com imagens, fazendo-nos mergulhar na realidade quotidiana do Ceará e do Nordeste com admiração e êxtase. O que faz é documento, história, jornalismo, crônica visual, sentimento, poesia e vida em cores e em preto e branco. A entrevista é uma narrativa carregada de humanidade. Bárbara Danthéias, Bruna Luyza, Carolina Esmeraldo, Caroline Portiolli, Diego Sombra, Felipe Martins, Isabele Câmara, Mikaela Brasil, Paulo Renato e Taís de Andrade são os responsáveis pela presente edição. A eles e elas, deixo minha palavra de entusiasmo e de reconhecimento pela forma profissional com que se houveram nesta maravilhosa viagem jornalística em direção à condição humana. Ronaldo Salgado Ronaldo Salgado é jornalista, professor e da disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso. e idealizador da Revista Entrevista.
Expediente: Revista Entrevista é uma publicação da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso, com edição e texto final dos alunos do sexto semestre do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). Número: 30 Professor orientador: Ronaldo Salgado Projeto gráfico: Norton Falcão Edição de arte: Amanda Alboino Tiragem: 1.000 Impressão: Imprensa Universitária Fortaleza, outubro de 2013 Avenida da Universidade, 2762, Benfica. CEP: 60020-180 Fone: (85) 3366 - 7708 e (85) 3366 - 7718 Site: http://www.dcs.ufc.br Email: coordcoms@ufc.br; publicidade@ufc.br
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Lola Aronovich Carri Costa
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SĂŠrvulo Esmeraldo
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MaĂsa Vasconcelos
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Tiago Santana
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Lola Aronovich
Professora e feminista
// Dolores Aronovich Aguero
A construção e os paradoxos de uma mulher potencialmente humana e visceralmente feminista
Dolores Aronovich Aguero era apenas uma criança quando voou daquela vez como se fosse um pássaro. A partir daí, atravessou os preconceitos com os passos tímidos. Aos oito anos, escreveu anseios infantis. Impulsos esses que ela atribui à primeira batida do coração feminista. Àquela época, entretanto, as ondas que ela conhecia eram as ondas do mar. Da cor dos olhos dela, azuis e profundos. E fortes. Hermana, Lola – apelido que Dolores ganhou desde a infância – é brasileira. E Le gusta amar o país cheio de contradições. Paradoxos dela para ela. Aos dez, chorou daquela vez como se fosse a última, na ocasião em que princípios eclesiásticos e colegiais tentaram colocar grades no pensamento dela. Aprendeu a se construir como se fosse sólida. Mas não é. Lola é humanamente líquida, como as tais ondas do feminismo, dos olhos e do coração dela. Ainda niña, Lola ouviu Chico Buarque. E foi com essa trilha sonora, ela conta, que a consciência coletiva dela foi estruturada. Da criança, o salto foi rápido para a mulher. Já buscava entender o que queria ser. E foi. Lola queria ser Lola, não Dolores. Desde cedo, quis largar dores dogmáticas, amarras do pensamento. Por outro lado, agarrou dores que não precisariam ser suas, mas o senso de coletividade não a permitem abandonar. Cosmopolita de berço, ela encontrou nas Letras um meio de viajar pelas consciências. Os estudos a levaram a sentir o gosto do mundo. E também a levaram a provar dos dissabores. Lola percorreu espaços brasis, latinos e norte-americanos. Hoje, leciona e sonha com a formação de novos homens, mulheres e conceitos. Para desenvolver o pensamento, ela
descobriu um amparo na sétima arte. Nos filmes, Lola encontrou um pontapé para se forçar a escrever. Assim, talhou o texto sempre considerando que não quer só escrever letras, juntar sílabas e formar palavras. Lola quer mesmo é escrever ideais, juntar pessoas e formar revoluções. Rebusca o texto em contextos. Olha ao redor para se inspirar, dialoga com as leitoras para se informar. E se forma. Como Pagu indignada no palanque, Lola escreve, conversa e desconversa. Ela sabe o peso das palavras. Sabe que as palavras ferem, abrem janelas e dão de cara com portas fechadas. Lola tem uma força que não é bruta. Ela prioriza mesmo a força da argumentação, a força da concatenação de ideias voltadas para uma finalidade maior. Nem freira nem puta, Lola é humana. Importar-se tanto com aparência e corpo, para quê? Ela nem mesmo é ruiva, como Rita Lee ou a tal Lola do filme, que corre e corre. Jogando o dicionário para o alto, ela encontrou a definição de amor dela mesma. E não é nada fácil tentar cercar esse conceito. Hippies desistiriam; comunistas se perderiam; reaças nem se dariam o trabalho. Lola prega o amor nem tão livre nem tão cativo. Nem tão romântico ou pragmático. Ela ama o “maridão”, animais, chocolate. E ama também a liberdade de não querer ser mãe, a liberdade de bater de frente com trolls. Ama ser “ingrata com o patriarcado”. Lola sustenta uma bandeira. Mas sustenta mais ainda as escolhas, os defeitos e a humanidade de si mesma. Ela sustenta um ideal de amor e liberdade. Lola sustenta a dor de ser Dolores. Ela sustenta o sorriso nos olhos e o peso de palavras duras que diz e ouve. Lola sustenta a consciência abraçada ao coração.
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Ficha Técnica Equipe de Produção: Caroline Portiolli Taís de Andrade Entrevistadores: Bárbara Danthéias Bruna Luyza Forte Carolina Esmeraldo Caroline Portiolli Diego Sombra Felipe Martins Isabele Câmara Mikaela Brasil Paulo Renato Abreu Taís de Andrade Fotografia: Gabriela Custódio Texto de abertura: Paulo Renato Abreu
Entrevista com Lola Aronovich, dia 09 de maio de 2013
Taís – Lola, na verdade, o seu nome é Dolores Aronovich. Na pré-entrevista que realizamos com o seu marido, ele nos informou que “Lola” não é um nome bem visto na Argentina. Então, por que você é chamada desse modo? Lola – Isso foi um erro dos meus pais, um erro grave. Espero que, quando vocês forem pais e mães, não cometam esse erro (para a equipe da revista), que é o de chamar o filho por um nome, dar um nome oficial, mas pelo resto da vida chamar por outro nome, que não tem nada a ver. “Lola” parece que é apelido de Dolores, mas não sei muito bem o que aconteceu. Eu nasci na época da ditadura argentina (1976-1983). Segundo o que os meus pais (Nelida Maria Aguero e José Bernardo Aronovich) disseram – não sei até que ponto eles estavam falando a verdade –, não podia chamar de “Lola” porque era um nome espanhol e também porque era considerado um apelido; não podia dar um apelido como nome. Eles me chamaram de Dolores em vez de dar outro nome, como Glória – Glória seria um nome legal (risos) – e passaram a me chamar a vida toda de Lola, e é ruim, né? Nos documentos está escrito um nome que não é chamado. Hoje em dia nem atrapalha muito, mas também é um nome tão católico – Dolores é um nome tão católico, – acho que não combina muito comigo, que sou ateia. É um erro, mas acontece. Paulo Renato – Dolores, você comentou agora que é ateia, mas a sua formação inicial na escola foi bem pautada na religião. Então, como foi isso? Lola – Você me chamou de Dolores? (risos) Paulo Renato – Desculpa... Lola! (risos) Lola – Não, tudo bem... Não é um insulto, só não estou acostumada (risos). A minha criação foi muito boa, realmente foi uma criação bem liberal, meus pais eram muito liberais. Foi o terceiro casamento de cada um, embora eles não tenham filhos dos outros casamentos, meu pai já tinha mais de 40 anos e minha mãe tinha – Não sei quantos, uns 30... Sei lá! E eles eram meio hippies – não é bem hippies – mas se você vir as fotos
da minha mãe naquela época, ela tem umas roupas meio hippies, não quer dizer que ela fosse hippie, mas ela andava nessa moda. Não sei se porque a gente veio de outra cultura, mas a gente não tinha muitos tabus. Meus pais andavam nus em casa, o tempo todo, até a gente adolescente, sem problema nenhum. A gente também andava nua em casa. Quando chegou a hora de poder ter parceiros sexuais, que era a idade adequada, meus pais também nunca tiveram nenhum problema que trouxesse namorados para casa, para dormir no quarto. Eu já vi meus pais fumarem maconha na nossa frente, várias vezes. Nunca foi nenhum problema. Para mim foi muito bom, porque, fora eu crescer com a ideia mais livre de sexualidade, de tudo, nunca teve muitos tabus mesmo. Eles tinham falado: “Se vocês tiverem vontade, algum dia, de provar alguma droga, por favor, falem com a gente. Não procurem fora.” Então, como não era um tabu, não tive essa fase de ser rebelde, de desafiar meus pais, não era um desafio. Nunca provei nada, nunca tive vontade de nada. Mas meus irmãos experimentaram – não sei se funcionou não. Quer dizer, se você quer deixar os filhos longe da droga, não sei se esse é o melhor caminho. Bruna – Você estava falando que é ateia, mas nas informações que o pessoal (a equipe de produção) apurou, você estudou em uma escola católica, queria até ser freira. Como foi essa ruptura de deixar de ser católica para ser ateia? Não só deixar a religião, mas deixar de acreditar em Deus. Que ruptura foi essa? Lola – Na verdade, minha mãe sempre foi uma católica relaxada. E meu pai sempre foi ateu. Nunca vi meu pai falar nada de religião, muito pelo contrário, meu pai era bem antirreligioso. E (a família do) meu pai era judia, daí o meu nome “Aronovich”, porque meus avós eram ucranianos, judeus, vieram da Rússia antes da Revolução Russa (1917) e foram morar na Argentina. Também eram revolucionários – acho que eles eram meio stalinistas – (e isso) não bate muito bem com religião. Meu pai tinha uma raiva de ser considerado judeu só porque a mãe dele era ju-
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No dia da escolha dos entrevistados da Revista Entrevista, foi a aluna Isabele Câmara que indicou o nome da feminista e blogueira Lola Aronovich. Todos ficaram empolgados com a indicação.
Lola Aronovich nasceu no dia 6 de junho de 1967 em Buenos Aires, na Argentina. Mudou-se para o Brasil antes mesmo de completar quatro anos.
Ao descobrirem que iriam produzir a entrevista com Lola, Caroline e Taís foram imediatamente ao Centro de Humanidades 1 (CH1) falar com a professora, mas não a encontraram.
No mesmo dia, a equipe de produção enviou um e-mail para a blogueira, explicando sobre o projeto da revista, e aguardaram ansiosamente pela resposta. Não esperavam que Lola respondesse rapidamente ao convite.
dia, porque ele não tinha nenhuma afeição por nenhuma religião. Acho que isso me influenciou muito. Nem eu nem meus irmãos fomos batizados, nada disso – imagina! Aqui no Brasil quase todo mundo é batizado, né? –, acho que foi um erro, por um lado. Também não posso reclamar muito de colocarem a gente numa escola católica. A escola era a Chapel School, que era uma escola americana em São Paulo. Era excelente, caríssima! Naquela época tinha três escolas americanas em São Paulo. Tinha uma laica e uma batista, que eu imagino que era pior do que a nossa em matéria de ser muito religiosa. A nossa tinha missa, tinha padre, tinha freiras. Isso era bem chato para uma pessoa que não era religiosa. Mas a gente estava lá pela escola, pelo... Bruna – (interrompendo) Você queria ser freira. Você teve esse momento de ser religiosa, então? Lola – É, pois é... (pensativa) Hoje, eu consigo ver de outra forma. É porque eu tive uma professora que era freira, horrível, assustadora! Era a sister (irmã) Ágatha – na escola era tudo em inglês. Essa freira era polonesa, ela tinha vindo direto da Polônia para nos torturar (risos). E ela torturava mesmo. Preconceituoso falar isso, mas ela parecia uma nazista, sabe? Ela tinha “oclinhos” assim, (fala apontando para os olhos, demonstrando o formato dos óculos que a freira usava), que nem Indiana Jones (série de filmes criada por George Lucas e dirigida por Steven Spielberg, nos Estados Unidos da América) que vocês veem aqueles nazistas, bem clichês. E eu peguei essa professora – infelizmente – na sexta série. Ela tinha a péssima fama, não só de fazer todos os alunos chorarem, mas também de bater nos alunos. Assim que o meu pai ficou sabendo que ela seria minha professora, foi falar com ela que, se encostasse um dedo em mim, estava fora da escola. Ela realmente nunca tocou em mim, mas tem outras formas de fazer a pessoa chorar. Ela me humilhou – não foi nada pessoal também, ela humilhava todo mundo – e eu acho que tinha 13 anos. Não sei se para conquistar as freiras, para ser aceita... Não sei o que foi! Coloquei na minha cabeça que ser freira podia ser um bom negócio, o que é ridículo, não tinha nada a ver comigo. Mas eu tinha umas ideias meio malucas. Primeiro, porque eu já era feminista, então isso brigava com o meu feminismo, porque tinha todas as ideias da Igreja Católica e de todas as religiões – acho que todas as religiões são machistas –, mas tinha essas ideias de: “Como assim? Vocês acreditam em Adão e Eva literalmente? Mesmo? Vocês não estão falando assim em termo de metáfora? É isso
mesmo? Literal?” E o pessoal (da escola) falava assim: “Sim.” (Ela:) “Sério? A gente veio mesmo da costela de Adão? E Adão foi feito na imagem e semelhança de Deus e a gente foi feita assim como um resto?” O pessoal falava que sim, que era assim mesmo. E eu falava: “Tá. Também é muito estranho porque vocês estão tratando Deus como se fosse pai, senhor, pastor. O filho de Deus também é só homem e é loiro de olhos azuis, né? É isso mesmo?” Então, eu questionava muito e tinha umas ideias malucas. Eu ia rezar na capela e eu não comia no horário de almoço, porque a escola era semi-integral – de 8h30min até às seis da tarde – então, no horário de almoço, em vez de comer, ia rezar na capela. Eu imaginava que teria um terremoto, em São Paulo – imagina! – e uma estátua da virgem ia cair em cima de mim e eu seria imediatamente canonizada (risos). Então, ia direto para o Céu. Eu ia virar a Santa Lola, talvez eles usassem a Santa Dolores (em tom brincalhão) (risos). E as freiras ficavam falando que não, eu não podia ir para o Céu porque não era batizada e aquilo ficava: “Puxa!
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Um dia depois, Taís abriu a caixa de e-mail logo após ter acordado e se surpreendeu ao ver que a feminista já havia respondido. A equipe de produção ficou muito empolgada por Lola ter aceitado participar do projeto.
Mas eu sou uma santa!” (fala rindo) “Eu sou uma santinha, uma menina tão pura, tão meiga”. (risos) “Só por esse detalhe, por não ser batizada, eu não vou pro Céu?” E eu tornei a vida do meu pai um inferno, porque eu falava: “Papi, a gente precisa ser batizada. Porque isso aí realmente tá atrapalhando meus planos.” E ser batizada com 13 anos não é a mesma coisa que ser batizada com meses de idade. Tem de fazer curso, acho que os pais também têm de fazer curso e o meu pai não tinha nenhuma vontade para isso. Então, ele falava: “Tudo bem, filha. Manhãna (amanhã), manhãna.” Ele falava portunhol comigo, então manhãna eu ia ser batizada. E sempre manhãna. E nunca vinha. E também eu tinha uma ambição. Já que era para ser freira, queria ser Papa, queria subir ao topo da carreira. E as freiras falavam que não podia, não podia ser Papa, não podia nem ser bispo. Então, fui desistindo. Mas naquela época, que não deve ter durado muito – não sei quanto durou, alguns meses –, eu era muito católica, arrastava meu pai para missa, meus irmãos, fazia com que eles rezassem o Pai-Nosso, um
monte de coisa. Paulo Renato – Lola, você disse que essa escola era caríssima, mas nem sempre na sua infância, pelo que as meninas (da produção) apuraram, foram com boas condições financeiras. Vocês enfrentaram alguma crise na infância? Lola – É, não vou fingir que eu fui uma menina pobre, porque não. Eu sempre tive uma vida privilegiada, sem dúvida alguma. Mas teve uma fase na minha infância que foi muito marcante. A gente foi pobre, mas durou pouco tempo. Não sei quanto tempo durou, deve ter durado um ano, no máximo, nove meses, oito meses. Não sei muito bem. Meu pai sempre trabalhou com Marketing, Relações Públicas, Propaganda e tal. Ele, na época, pelo que eu me lembro, era Relações Públicas do (Banco) Chase Manhattan. Ele odiava e largou o emprego sem se precaver, sem pensar, sem fazer um pé-de-meia, nada. E sem saber também que quanto mais alto seu emprego, mas difícil é conseguir outro. E começou a demorar para ele conseguir outro emprego e a gente, nesse tempo, teve de sair
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Caroline publicou no grupo do Facebook, informando a novidade para os outros participantes da revista e todos comemoraram. A equipe de produção precisava começar as pré-entrevistas, pois faltava apenas duas semanas para entregar a pauta.
Lola aceitou fornecer uma pré-entrevista, que seria realizada uma semana após o primeiro contato. À pedido da professora, a entrevista ocorreu na própria UFC, no CH1.
Caroline e Taís chegaram ao local da entrevista 1h30min antes do horário marcado, pois estavam muito ansiosas para conhecer Lola. A blogueira preferiu que a entrevista fosse realizada na sala dela.
“Não sei se porque a gente veio de outra cultura, mas a gente não tinha muitos tabus. Meus pais andavam nus em casa, (...) sem problema nenhum” da escola, porque era uma escola particular e não tinha como pagar. Não tinha como pagar o aluguel. A gente vivia num apartamento alugado no Rio, e foi morar um tempinho com a minha tia – não sei muito bem se ela nos expulsou, o que aconteceu –, mas chegou uma hora em que ela falou que não dava mais para morar lá – sobrou para a gente ir para um prédio que estava abandonado, um prédio que estava quase sendo demolido, que era de amigos do meu pai e o prédio era muito, muito ruim. O nosso quintal dava para um depósito de lixo, tinha barata voadora, tinha besouros e era Rio 40º. Naquela época, lembro o calor do Rio. Estavam construindo um metrô também, na (Barra da) Tijuca (bairro nobre da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro), então tinha um barulho infernal, o tempo todo. Foi uma fase bem ruim. Lembro também que a gente não recebia mesada, não tinha dinheiro para nada, e tudo que eu recebia, qualquer coisinha, eu guardava. Aquilo para mim foi marcante, porque, depois daquilo, virei pão-dura (rindo). Comecei a dar algum valor para o dinheiro e fui a única afetada por essa crise, porque meus pais continuaram incorrigíveis, meus irmãos também, não estão nem aí para o dinheiro, não guardam, gastam tudo. Meu pai sempre foi assim até morrer. Mas para mim, eu sou pão-dura até hoje, acho que foi por causa disso na infância, que não durou muito tempo, mas foi marcante. Diego – Lola, você sempre foi uma mulher que esteve à frente do seu tempo. Durante a infância, você teve dificuldades de lidar com outras crianças por estar, digamos, em um patamar diferente de maturidade? Lola – Eu fui considerada uma criança precoce, porque escrevi alguns livros – que não eram livros, seriam mais diários. Mas meus pais me incentivaram muito a escrever, desde pequena, muito pequena. Naquela época estava na moda um tal de Nothing Book, que era o Livro do Nada. Frescura, né? (brincan-
do). Era só o livro em branco, mas sem linhas, sem nada. O livro em branco que você recebia e fazia o que quisesse. Recebi vários livros desses e preenchi com um monte de coisa, desenhos... Eu tenho esses livros até hoje, são bem legais. É bom porque a gente lembra algumas coisas de quando era criança. Acho que quando eu tinha oito anos, o Fantástico (programa dominical da Rede Globo) foi na minha casa. Eles foram fazer uma entrevista. Estavam fazendo uma reportagem com crianças precoces, eu recitei um poema, essas coisas assim. (brincando) (risos). Virei estrela lá na escola. Nessa época eu morava no Rio (de Janeiro). Conheci a Glória Maria (jornalista) no Leblon. Eu era criança e ela já era muito adulta (risos), mas (hoje) ela tá igual! Eu tinha sete, oito anos, impressionante! (risos). Então, não tive muitos problemas. Eu me lembro que, no Rio, a gente foi colocada para estudar em uma escola muito boa. Era a Escola Parque. Nessa escola, tinha muita natureza, muitas aulas fora, junto com mamão, com jaca, árvores. Era bem legal! Não lembro muito bem. Lembro um instante de bullying – não foi exatamente bullying –, mas fiquei bem chateada naquela vez, que era para levar alguma coisa de casa para a escola e eu levei uma estátua, que era uma estátua de madeira e era uma estátua de alguém – acho que era de uma mulher nua –, mas não tinha nada, ela só estava sem roupa, mas não tinha... Mamilos, não tinha nada. As crianças fizeram um grande escândalo em cima disso, sabe? E as crianças pegaram aquela estátua, passaram de mão em mão. Para mim, aquela estátua fazia parte da minha casa, era a coisa mais normal do mundo. Não entendi tanto escândalo, mas não tive grandes problemas não. Felipe – Lola, você diz que se considera feminista desde os oito anos de idade. De onde surgiram essas ideias na infância? Lola – É, eu falo isso e tem um monte de gente – tem uma legião – que goza da minha cara por eu falar isso. As pessoas não acreditam que alguém possa ser feminista com oito anos de idade. Na verdade, é um preconceito contra a infância muito grande. Ninguém pode ser nada na infância, nada (risos). Você é uma tábula rasa e eu acho que não é assim. Tenho uns livros, em que vejo as minhas ideias naquela época e eu não tenho muita coisa para me envergonhar. Tem coisas de: “Ele não gostou de mim” (rindo), as coisas típicas da idade. “Ele não me deu atenção”, “eu estou tão apaixonada por ele, e ele nada”... Essas coisas assim. Mas, de resto, não tem muita coisa para me envergonhar. Meus pais, por serem muito liberais,
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certamente, isso pesou. Meus pais sempre foram de esquerda – se bem que eles tinham alguns problemas. Acho que eles eram bem racistas, talvez até por virem da Argentina, que não tem tantos negros, não tem tanta miscigenação como tem aqui no Brasil. Mas não acho que era alguma coisa que tinham orgulho, era uma coisa que estavam tentando mudar. Meu pai tinha muitos problemas com várias coisas, da família dele. Minhas tias também eram assim. Problemas com travestis, por exemplo – meu pai se sentia mal quando via uma travesti na frente dele – de ver alguma pessoa com algum defeito físico, ele se sentia mal, fisicamente mal. Não sei de onde veio isso, mas, para ele, era muito forte. Então... Não sei... Agora eu me perdi aqui (risos)... Felipe – (interrompendo) Mas vocês conversavam sobre isso? Lola – Eu me lembro de chegar lá em casa, de vez em quando, a revista americana Ms., que completou 40 anos, ano passado. É a revista feminista mais antiga do mundo. Eu estava começando a aprender inglês, lia a revista e gostava – só gostava de algumas partes, não dos artigos longos, porque não tinha condição de ler aquilo, mas algumas coisas que lia, eu gostava. Acho que eu conversava bastante. Tem muitas coisas nos cadernos, assim de slogans feministas traduzidos para o português... (interrompe para beber água) Mikaela – Lola, com relação à adolescência, que normalmente é um período em que existe uma pressão muito grande sobre como a mulher deve se vestir, deve agir, deve pensar. Como foi passar pela adolescência sendo feminista? Lola – (pensativa) Pois é! Acho que eu sempre tive muito poder por ser feminista. Acho que foi um ponderador ser feminista naquela época. Acho que sofri menos do que muitas adolescentes sofrem, escapei de boas por ser feminista. Sempre fui privilegiada mesmo, inclusive na questão de não ter tantos traumas do meu passado, nem nada. Mas uma coisa que sempre me incomodava muito era o negócio de padrão duplo para sexualidade. Eu comecei a minha vida sexual com 15 anos e ficava revoltada, porque achava muito legal, estava querendo experimentar, tive vários parceiros, e ficava indignada que a minha sexualidade estava sendo julgada por eu estar fazendo exatamente o que os meninos estavam fazendo. Eu não entendia aquilo e não aceitava. Não aceitava de jeito nenhum ser tachada de qualquer coisa. Quer dizer, eu respondia, não deixava barato. Acho que foi tranquilo. Isso me deu mais escolhas também. Eu evitava sair com alguns rapazes que já sabia serem mais estúpidos.
Tive alguns traumas... Coloquei no meu blog, quando eu comecei logo, que toda mulher tem uma história de horror para contar. Não sei se toda, porque não dá para falar “toda” de nada, sempre tem suas exceções, mas realmente a gente tem um histórico de traumas sexuais, de ameaças, de estupros, de abusos, de passar a mão na rua... Tudo que é muito forte – acho que quase todas nós já passamos por isso. Eu também passei por isso. Acho que sobrevivi melhor por ser feminista, talvez. A minha história de horror maior foi quando eu estava em Búzios. A gente morava em São Paulo, mas ia para Búzios (município da Região dos Lagos, no Rio de Janeiro) nas férias. A gente era muito amiga do pessoal que morava mesmo lá. E eu saí com um carinha, de Búzios mesmo. Eu tinha uns 16, 17 anos... Saí com ele, que tinha mais ou menos a minha idade, e ele me levou para uma casa que ele tinha a chave, uma casa meio vazia. Na verdade, era a casa da Ângela Diniz (socialite brasileira, assassinada pelo marido – Raul Fernandes do Amaral Street, o Doca Street – na década de 1970, em Búzios), olha só que coisa! Era a casa da Ângela Diniz em Búzios, que até hoje acho que é ponto turístico, porque todo mundo pergunta: “Onde é a casa da Ângela Diniz?” Vocês sabem? (pergunta à equipe da revista) Vocês nem sabem, né? Vocês são muito jovens (risos). É, mas o professor sabe (fala referindo-se ao professor Ronaldo Salgado), certamente! Enfim, era lá na casa da Ângela Diniz e eu transei com ele, acabamos de transar e a porta estava entreaberta. Alguém veio para cama, encostou em mim e eu senti que a mão estava meio gelada ou algo assim. Vi alguém passando na porta. Naquele momento, me levantei e falei: “O que está acontecendo aqui?” Peguei minhas roupas, corri para o banheiro e... Era o primo dele (do rapaz que estava com ela). Quer dizer, era aquela velha noção machista: “Se a mulher deu para um, ela pode dar para todos, ela não tem escolha.” Bom, xinguei um monte e sai de lá. Falei para os meus pais, foi muito bom falar – muita gente não falaria –,
“E também eu tinha uma ambição. Já que era para ser freira, queria ser Papa, queria subir ao topo da carreira”
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Caroline entregou a Revista Entrevista que tinha para Lola conhecer o projeto. Depois, felizmente, conseguiu mais uma com o Professor Ronaldo Salgado.
Durante a pré-entrevista, um professor do curso de Letras da UFC entrou na sala e perguntou, brincando, se Caroline e Taís eram filhas da feminista. Foram diversas risadas naquela hora.
A equipe de produção ficou admirada com a personalidade e determinação da professora feminista. Lola indicou o marido, Silvio Cunha, como uma das fontes para pré-entrevista.
Caroline e Taís enviaram um e-mail para Sílvio, explicando sobre o projeto. O marido de Lola forneceu o telefone de casa para que a equipe ligasse, marcando a data da entrevista.
“As pessoas não acreditam que alguém possa ser feminista com oito anos de idade. Na verdade, é um preconceito contra a infância muito grande” eu fui direto para os meus pais, meu pai ficou indignado, foi atrás, tudo... Bom, essa foi a minha maior história de horror. Acabou não acontecendo nada, mas podia ter acontecido. E outras historinhas, muitas... De ser atacada, mas isso quando eu já estava com 22 anos, quase na porta da minha casa em São Paulo e um cara que eu nunca vi antes me agarra por trás e eu caio no chão. Mas sem pensar eu já me levantei e saí correndo atrás dele, para bater nele (risos). Nem pensei em ficar com medo, já fui correndo para cima, e o cara saiu correndo também. Então, acho que tem uma certa força por ser feminista. Isabele – Lola, e como você se sente ao ouvir a história de horror de outras mulheres? Não você como blogueira, feminista famosa, mas você como a Dolores, como pessoa? Lola – Eu me sinto mal. Eu vejo cada história que chega para mim, é horrível! É horrível mesmo! Tem umas que são de cortar o coração. Você tenta criar uma casca grossa, não se comover muito a cada história, porque são realmente muitos relatos que chegam, mas às vezes não dá, é terrível! E você vê que as histórias são muito comuns, é o mesmo padrão, é o mesmo roteiro para quase todas elas. É aquele sentimento, depois que aconteceu, de extrema culpa, de você se sentir culpada, de não denunciar, é terrível! Caroline – Lola, ainda falando sobre feminismo, quando mais nova ou até mesmo atualmente, você tem ou tinha algum ícone feminista? Lola – (pensativa) Olha, na época, eu gostava do pessoal que escrevia a Ms... Acho que eu já conhecia a Glória Steinem (escritora e jornalista norte-americana, ligada ao feminismo), que é a fundadora da Ms. A Betty Friedan (norte-americana; importante ativista do feminismo) eu também conhecia, não lia muito os livros dela, mas conhecia. Um pouco antes de começar o meu blog, co-
mecei a estudar um pouco mais sobre feminismo. Uma pessoa que adoro, que foi muito importante e recomendo para todo mundo, especialmente para as mulheres, é a Naomi Wolf (escritora feminista dos Estados Unidos), principalmente O Mito da Beleza, que acho que é revolucionário para entender, para a gente se aceitar melhor e entender que o nosso corpo não tem que estar dentro dos padrões, como os padrões são construídos e para que eles são construídos, para manter a gente como está, em uma situação de submissão. É muito mais fácil você dominar gente que não se gosta, gente que não aceita seu corpo, que tem baixa autoestima, do que outras pessoas. Eu li O Mito da Beleza. Demorei muito, né? Recomendo que adolescentes já leiam O Mito da Beleza, mas eu li quando já tinha 40 anos ou um pouquinho antes. Mas é um livro fantástico! Hoje, tem muitas feministas que gosto, muita gente. A Simone de Beauvoir (escritora, filósofa existencialista e feminista francesa, 1908-1986) não foi exatamente uma delas, porque também demorei muito para ler, mas claro que ela é importantíssima! Esses dias eu me encrenquei legal, porque falei da Germaine Greer, que é uma feminista australiana, muito importante na segunda onda. O Eunuco Feminino (The Female Eunuch) é um livro importantíssimo e eu li mais de uma vez, gostei muito! Mas hoje não pode falar dela porque ela virou transfóbica, começou a dar declarações transfóbicas e se você recomenda está sendo transfóbica também, então, é melhor não falar nada. Mas eu gosto dela, não gosto das declarações transfóbicas dela, claro. Mas o livro em si é muito legal. Felipe – Lola, quando você era criança, já tinha a noção de que era diferente das outras crianças, que era realmente feminista, ou foi um processo natural, que você só percebeu depois? Lola – Eu me dizia feminista, me assumia feminista desde os oito anos de idade, realmente tá escrito lá (no Nothing Book) (risos). Então, eu me sentia poderosa (risos), me sentia diferente, me sentia dona de mim, digna de ter opiniões, de poder falar sobre o que eu quisesse, de ter uma voz, mesmo quando criança, isso foi muito legal. Felipe – E o que os seus pais achavam disso? Lola – Ah, eles tinham orgulho! Bruna – Você falou muito sobre o seu pai, admirava muito ele. Ele, um homem dentro da família – você tem um irmão também – mas o pai é a figura masculina de referência na sua vida. Ele lidava muito bem com isso, você acha que essa liberdade dentro da sua família a influenciou a ser uma pessoa mais aberta?
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Lola – É, meu pai era realmente uma pessoa maravilhosa, deve ser a principal influência masculina que tenho, que tive durante toda a minha vida. Infelizmente, perdi meu pai muito cedo. Meu pai morreu, teve um ataque cardíaco quando eu tinha só 26 anos. Mas sabe como é, né? Ele era feminista, tinha muitas coisas feministas, mas acho que não se assumia feminista e tinha muitas contradições – acho que todos nós temos. Tinham muitas contradições nele também. Ele tratava diferente meu irmão. Uma coisa que enchia o saco, muito, era horrível: o meu irmão era irmão do meio, entre duas irmãs. Quando a gente saía, ele pedia ao meu irmão para tomar conta das irmãs, sendo que eu sou mais velha, então não tem nada a ver. Quer dizer, a diferença é pequena, são dois anos, mas isso incomodava um pouco. E, também, acho que ele chegava a bater no meu irmão, e em mim e na minha irmã ele nunca bateu. Mas acho que a gente foi mais fácil do que o meu irmão, não sei. Diego – Lola, você disse que cresceu em um âmbito de liberdade, mas, ao mesmo tempo, seus pais apresentavam indícios de preconceitos. Era um ambiente paradoxal o ambiente da sua casa por tratar desses temas? Lola – Meu pai era de esquerda, ele gostava de assistir ao Jornal Nacional e ficava brigando com o Jornal Nacional (principal telejornal da Rede Globo de Televisão), sabe? Ficava comentando com a televisão, ficava brigando (rindo). Era insuportável assistir à televisão junto com ele, que ficava falando com a televisão. Mas eles (os pais) eram preconceituosos, não sabiam muito bem como
lidar com pessoas negras, acho que era uma novidade para eles. Tinha suas contradições, como sempre. Minha mãe tratava muito mal as empregadas – a gente tinha empregada –, minha mãe tratava muito mal, para mim, sempre doeu meu coração. Bruna – Isso a incomodava? Até porque você fala que feminismo é muito mais do que defender o direito das mulheres, é defender várias coisas. Então, isso a incomodava na infância, já? Lola – Muito, muito! Eu via que a minha mãe não tratava bem nenhuma empregada. Porque, realmente, não era só feminismo, era aquele sentimento de querer lutar por todos os fracos e oprimidos, de querer defender todo mundo que estivesse passando por alguma adversidade. Isso doía muito. Minha mãe mudou completamente. Felizmente, minha mãe é uma pessoa melhor, muito melhor hoje do que ela foi durante muito tempo na vida dela. Acho que hoje ela entende os erros que fez. Hoje, que está em outra classe social, bem mais baixa, né? (risos) Ela mora comigo... Entende que não agiu bem. E era sempre assim. Minha mãe humilhava empregados, falava mal com os empregados, meu pai chegava e tinha de pedir para empregada ficar: “Não vá embora”, essas coisas. Carolina – Lola, você já sofreu algum tipo de preconceito por ser feminista? Lola – Sim, o tempo todo. (rindo) Carolina – E como você lida com esse tipo de preconceito? Lola – Não é bem preconceito. Preconceito, que eu digo, é que sofro certamente perseguição, uma trollagem (críticas ou comentários sarcásticos, irônicos, perturbadores
Quando Taís ligou, foi a própria Lola quem atendeu ao telefone. Ela avisou que Sílvio não estava, pois dava aulas naquele horário; seria melhor marcar com ele por e-mail mesmo.
Caroline e Taís realizaram a entrevista com o marido de Lola também na UFC. Para conseguir ser identificado pela equipe de produção, Sílvio combinou que usaria uma camisa com o nome “xadrez”.
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No dia da pré-entrevista com o Sílvio, choveu bastante de manhã. Caroline ficou preocupada, pois tinham combinado de se encontrar com o marido de Lola no Bosque Moreira Campos, no CH1 da UFC. Para a alegria da produção, o sol apareceu.
A pré-entrevista com Sílvio rendeu ótimas histórias, sendo a maioria utilizada no material da pauta. Ele contou sobre as diversas viagens que fizeram e confessou que Lola era uma excelente jogadora de xadrez.
pela Internet) muito grande, na Internet. Talvez as pessoas tenham uma outra percepção de mim, por eu me assumir feminista. Tem vezes que vou para algum congresso, para alguma palestra que vou dar e as pessoas já falam: “Puxa! Eu não pensei que sua voz ia ser tão...” – não sei nem como é a minha voz, mas não é uma voz forte, dura, é uma voz mais macia, não sei. Mas eu não chamo isso de preconceito. É só que as pessoas têm uma visão diferente. Isabele – Mas alguma coisa já te fez recuar? Já te deixou com muito medo, muito... Carolina – (interrompendo) E até com vontade de desistir, talvez, de ser feminista? Lola – Não. Outro dia – outro dia não, foi ano passado, começo do ano passado – uma professora, colega minha, ao ficar sabendo de algumas das ameaças e tudo... Em janeiro eu fiz um B.O. (Boletim de Ocorrência); – tive de ir para delegacia porque as ameaças es-
não fazem isso só com feministas, certamente fazem com pessoas de movimentos negros, de movimentos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis) e tudo. A intenção deles é calar, é aterrorizar, por isso tanta gente na Internet tem medo de pôr as caras, de pôr a foto, de usar o nome real. Tanto que, se você usa um nome de mulher, você já sabe que vai ser alvo de muito mais abuso verbal na Internet do que se você tiver um avatar masculino. Mas não vou mudar! Eu não poderia mentir, não poderia fingir ser uma outra personagem. Eu sou muito eu! E eu sou muito previsível, sou muito clichê mesmo, sabe? Bruna – Você se sente protegida? Lola – Protegida não, porque realmente se tiver um louco – que a gente sabe que tem alguns, né? – eles seriam capazes de, muito fácil, fazer alguma coisa comigo, na rua... Em casa eu me sinto bastante protegida, sim, mas estou em uma faculdade pública,
tavam meio fortes demais. Então, ela falou: “Mas porque você continua?”. E eu falo: “Por que eu vou parar? Vou me calar por causa de um grupo? Eu estou certa, não estou fazendo nada de errado! Estou lutando por direitos humanos, direitos básicos, de cidadania, não tenho nada que recuar.” Às vezes, a gente fica querendo fechar o blog, mas por preguiça, porque é cansativo mesmo escrever todo dia. É muita coisa, você gasta muito tempo, muita energia. Mas não por causa dos... Eles tão mandando ameaça direto, falando que – eu não sei como, mas eles têm meu telefone de casa, eles têm meu endereço de casa. Eu pensava que eles só tinham meu endereço da faculdade. Ficam mandando para mim, como ameaça, assim: “A gente sabe onde você mora. A gente vai te visitar logo, talvez amanhã. Vai te estuprar, vai te cortar em dez pedaços, vai estuprar toda a sua família”... Bruna – (interrompendo) Esse B.O. que você fez foi dirigido a um grupo específico? Foram a essas pessoas que estavam ligando para você? Lola – É porque é tudo anônimo, é complicado. Eu sei de que grupo eles são. Mas é tudo anônimo. Tem grupos muito preconceituosos, de extrema direita, na Internet, que
qualquer um pode entrar em uma sala, com revólver, sei lá. Mas tento não pensar nisso, tento pensar que não vai chegar a esse ponto – se bem que durante muito tempo eu pensava que eram só ameaças vazias, que no fundo ninguém fazia nada, mas a Polícia Federal pegou dois líderes masculinistas santos, que são dois dos meus maiores inimigos. Pegaram eles, a Polícia Federal investigou, pegou os dois em Curitiba, eles estão presos desde março do ano passado (2012) e foram condenados a seis anos e meio de prisão. E eles tinham ameaçado várias pessoas, não só eu, mas o deputado federal Jean Willis (do PSOL do Rio de Janeiro), por ser homossexual, várias celebridades também. E eles tinham um site horroroso, em que eles falavam as piores coisas, de legalização do estupro, defendiam o estupro corretivo para lésbicas, superracista, homofóbicos, “mate um negro hoje”, as piores coisas possíveis. Colocavam foto de pedofilia também, defendiam que só é pedofilia quando é com homossexual, menina de oito anos com homem hétero não é pedofilia, “Você tá instruindo a menina”. Colocavam fotos, horrível! Colocavam todo tipo de foto que era para angariar o máximo de ódio possível. Começaram a colocar fotos até de
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animais mortos, de cachorro sendo estuprado, até para cutucar mesmo o pessoal de direitos dos animais. Aquilo viralizou mesmo, teve 75 mil denúncias na safernet (associação não-governamental, sem fins lucrativos, que visa promover os Direitos Humanos na Internet) e, finalmente, eles foram presos. Carolina – O que o seu marido, o Sílvio, acha dessas ameaças que você recebe na Internet? Ela participa dessa vida também? Já que foi ele quem a ajudou a criar o blog. Lola – É, ele não gosta (risos). Eu nem falo para minha mãe também – “tadinha” (risos). Não, ele não gosta, pede para eu me afastar mais, porque ficar falando desses caras, né? São todos loucos mesmo. Mas não tem jeito! Mesmo que eu não falasse deles, eles falariam de mim. Eu tenho um blog feminista muito... Quer dizer, é o maior do Brasil, então, eles não conhecem nada no feminismo, conhecem uma feminista ou duas. Eles conhecem eu e a Solanas, a Valerie Solanas,
engraçado, eu pergunto assim: “Como que foi? Como que a gente se conheceu?” Ele fala: “Bom, eu ganhei o peão e aí...” (risos) Então ele se lembra do jogo, ele se lembra da partida mais do que outras coisas. Foi um fim de semana e, durante cada intervalo durante as partidas, a gente conversava. Eu me lembro que ele, no sábado, estava de barba. E eu nunca gostei de homem com barba, é óbvio que eu não vou falar nada para uma pessoa que eu acabei de conhecer! Mas, no dia seguinte, ele apareceu sem barba, obviamente sem eu ter falado nada. E a gente foi conversando também no domingo... Eu o vi conversando também com outras mulheres, outras jogadoras. E eu acho que eu tive que tomar um pouquinho da iniciativa também, eu dei umas indiretas, eu tinha ouvido ele falar com umas pessoas que ele ia ao cinema com elas depois do jogo. Eu falei: “Então, eu também gostaria de ir ao cinema, mas eu não fui convidada”. Essas coisas (nesse momen-
Sílvio também contou que leu a Revista Entrevista que a produção entregou para Lola. Ele disse que adorou o projeto e que sentia falta de ver, na mídia, entrevistas em profundidade.
“Acho que eu sempre tive muito poder por ser feminista. (...) Acho que sofri menos do que muitas adolescentes sofrem, escapei de boas por ser feminista” que, segundo eles, é um grande ícone do feminismo, e ela era uma maluca. Só ouvi falar nela, não por ser feminista, mas porque ela atirou no Andy Warhol (empresário, pintor e cineasta norte-americano, maior expressão da Pop Art – 1928-1987), só por isso – tem um filme sobre isso. Mas eles juram, o pessoal que é antifeminista jura que ela foi uma grande influência no feminismo e continua sendo uma grande influência hoje, o que é ridículo! Ninguém, nunca, apoiou alguma coisa que a Solanas fez, tadinha! Diego – Lola, e como você conheceu o Sílvio? Como foi esse encontro na sua vida? Lola – Bom, eu jogava xadrez, tinha começado a jogar xadrez fazia pouco tempo e eu já estava participando um pouquinho do Clube de Xadrez de São Paulo, onde eu morava e (era) o primeiro torneio forte de xadrez que eu fui jogar e eu conheci o Sílvio. Eu não lembro muito bem, nem ele se lembra se a gente começou a conversar um com o outro antes da primeira rodada – porque a gente foi emparceirado na primeira rodada, para um jogar contra o outro – ou se a gente começou a conversar só depois do jogo. A gente não lembra mesmo. Mas ele era profissional, a vida dele é o xadrez. Então, ele ganhou de mim bastante fácil. É até
to, todos riem). Ele: “Não por isso, não por isso, você quer ir ao cinema? Eu não vou ao cinema com ninguém, você quer?” E a gente foi. Eu até lembro do filme que a gente foi ver, que era o Susie e os Baker Boys (filme de 1989 do diretor Steve Kloves). É um com a Michelle Pfeiffer (atriz). E a gente não (se) encontrou no cinema, não sei o que aconteceu. Aí a gente foi num barzinho, perto da Universidade de São Paulo (USP), até hoje ele lembra porque a gente pediu bolinhas de provolone à milanesa e ele falou que foi o maior vexame, a gente deixou todas as bolinhas lá. A gente nunca faria isso hoje, sabe, de desperdício! Mas a gente conversou, se deu bem. Não sei como que ele adivinhou algumas coisas da minha vida. A gente estava falando de esportes – (pensando) imagina, eu era magra, foi vinte e poucos anos antes –, ele falou assim: “Eu acho que você jogava handball e era goleira”. Eu: “Como assim?” (explicando). Não é um esporte tão fácil para chutar e, ainda por cima, que eu era goleira. Mas eu era mesmo! E a gente começou a se dar bem, mas, na época, eu estava namorando um outro cara, que também era do clube de xadrez, quer dizer, era um advogado que eu conheci lá no clube de xadrez. Não estava bem namorando, mas eu já estava com esse
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Lola também indicou dois alunos do curso de Letras da UFC para a produção fazer a pré-entrevista. Por contratempos, não foi possível a realização das duas.
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“Mas não vou mudar! Eu não poderia mentir, não poderia fingir ser uma outra personagem. Eu sou muito eu!”
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Além das pré-entrevistas, Taís e Caroline pesquisaram na internet para produzir o material de produção. Um dos materiais encontrados foi o programa UFC Entrevista produzido, em janeiro de 2013, pela turma de Laboratório de Telejornalismo da UFC.
O nome do blog da feminista Lola Aronovich, “Escreva, Lola, escreva”, foi inspirado no título do filme Corra, Lola, Corra do diretor Tom Tykwer de 1998.
cara faz um ano. (pausa) Desculpa. (corrige-se) Um mês, um ano não. Um ano não! (risos de todos). Eu nunca tinha ficado muito tempo com ninguém. O máximo, eu acho que eu tinha ficado dois meses, um mês, alguma coisa assim. Diego – (interrompendo) Por algum motivo específico? Lola – Eu acho que eu não tinha nenhuma vontade de ficar com um cara (por) mais tempo... Paulo Renato – E o que o Sílvio tem de especial para ter se tornado o “maridão”? Lola – Não foi uma coisa pensada, para ele também foi estranho, porque ele também não tinha ficado com ninguém por muito tempo, nunca tinha tido um relacionamento sério, realmente foi o primeiro relacionamento sério de nós dois. Mas eu me senti muito mal, porque, quando eu o conheci, eu estava saindo com esse cara e, mesmo assim, eu saí com o Sílvio. Eu me senti mal de estar saindo com os dois ao mesmo tempo, quer dizer, isso só aconteceu uma noite! (risos) Tanto
que eu fiquei doente, eu fiquei fisicamente doente, faltei ao trabalho (por) dois dias, porque você se sente mal de ter traído. Eu não sei nem quem é que eu estava traindo! Mas, no fim de semana seguinte, eu decidi confessar pro Sílvio e já pensando que ele ia falar assim: “Pô, que coisa, né? A gente mal se conheceu e você já está mentindo para mim... Então adeus.” Eu realmente esperava que ele falasse algo assim, que ele terminasse. Eu expliquei que, na verdade, eu estava saindo com esse cara fazia um mês, mas eu não sei se eu ia ficar com ele e também não sei se eu vou ficar com você (Sílvio), mas eu me sinto mal de ter saído com os dois ao mesmo tempo. E, ao invés dele ter falado aquele negócio: “Então, acabou.” Ele falou assim: “Bom, espero que você me escolha.” Aí eu escolhi, né!? (risos) Tem como não escolher? (gargalhadas) Caroline – Lola, na pré-entrevista com o Sílvio, eu percebi que vocês dois são muito unidos, muito companheiros, e ele apoia muito na questão do feminismo. Qual a im-
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“Você tenta criar uma casca grossa, não se comover muito a cada história, porque são realmente muitos relatos que chegam, mas às vezes não dá, é terrível!”
portância do Sílvio na sua vida? Lola – Ah, ele é superimportante! Eu nem consigo me imaginar sem ele. Eu sei que a gente não deveria ser tão dependente de ninguém. Mas foi uma coisa meio sem querer, não foi nada pensado, nem queríamos casar mesmo legalmente, só casamos mesmo faz seis anos, eu acho. A gente não comemora a data do nosso aniversário de casamento, porque não foi o dia que nos conhecemos, que foi 13 de agosto de 90, um número redondo, é fácil de lembrar. (pensando) Mas, não, 13 não! Onze de agosto! (corrige-se) Ele não pode ver isso! (Nesse momento, todos riem) Sempre erro a data. Mas foi 11 de agosto. A gente não comemora o dia que casamos. A gente casou porque eu estava saindo para o Doutorado Sanduíche, eu fiz um ano de doutorado sanduíche em Detroit (cidade localizada nos Estados Unidos), e o Sílvio, obviamente, estava querendo muito ir para lá. E também não tínhamos como ficar um ano (longe). Um ano é muito tempo longe! A gente decidiu... Foi uma coisa meio
estranha, porque eu falei: “Bom, como que eu faço para levar a pessoa que mora comigo?” Até recebi um e-mail do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) ou da CAPPES(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) revoltante, dizendo: “Ah, você já recebe bolsa faz tanto tempo e agora você veio falar.” Eu falei: “Ué, não sabia que eu tinha que falar da minha vida pessoal antes.” Era a maior burocracia, não é tão fácil provar que mora com alguém. Precisa de testemunha, ia demorar mais do que casar. Então decidimos casar porque tínhamos pouquíssimo tempo, a gente já ia viajar um mês depois. Isabele – Lola, vocês não pretendem ter filhos. Você acha que isso tem a ver com o pensamento feminista? Lola – (pensativa) Não sei. Na verdade, eu acho que faltou alguma coisa na nossa educação, porque, não só eu, tanto meu irmão, minha irmã – agora eu tenho uma sobrinha, minha mãe finalmente (teve uma neta)... (pensando) Tadinha, ela fazia umas campanhas lá em Joinville (município em Santa Catarina onde ela morou um tempo) que ela queria muito ter um neto e não vinha. Imagina, chegou uma hora (em) que todos os filhos dela, os três filhos, tinham mais de 40 anos, todos já tinham tido ou estavam em um relacionamento estável e nada de filhos. Tadinha da minha mãe, acho que ela já tinha até desistido. Mas, felizmente, meu irmão e minha cunhada deram um neto para ela. Ela está muito feliz. Eu e o Sílvio, a gente nunca (quis), foi um das coisas que a gente teve sorte também, nunca fez parte do nosso projeto ter filho. Então, foi melhor. Felipe – Lola, como o Sílvio se comportou quando descobriu você como uma mulher feminista? Lola – Eu sempre fui feminista (risos). Nunca teve grandes conflitos. O Sílvio é uma pessoa... Parece uma pessoa calma, mas ele não é muito calmo (nesse momento, olha
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Quando estavam produzindo a pauta, Caroline e Taís não conseguiram pensar na última pergunta. Por isso, ela foi decidida por todos os alunos do Laboratório de Jornalismo Impresso.
Na reunião de pauta, todos estavam muito ansiosos. Diego até brincou dizendo que o Professor Ronaldo parecia o mestre dos magos (Personagem da animação A Caverna do Dragão – 1983 – 1985), pois ele indicava a direção, mas não mostrava o caminho.
Como Lola preferiu realizar a entrevista na UFC, o professor Ronaldo Salgado reservou a sala de redação, do CH2, pois tinha uma melhor acústica para a gravação.
Um dia antes da entrevista, Caroline enviou um e-mail para Lola para lembrá-la do compromisso às 15h. Ela disse que achava que seria às 18h e que poderia ter uma reunião na UFC no dia 9. Mas não tinha certeza e responderia assim que soubesse.
para Caroline, que faz parte da produção e fez pré-entrevista com o Sílvio). Ele estoura às vezes. Mas ele é uma ótima pessoa, realmente. Uma das coisas que me atraiu nele, fora o senso de humor, é de como ele é uma pessoa extremamente ética. Sempre foi uma das pessoas com menos preconceitos que eu conheci na vida. Não via preconceito nenhum nele, (e) não vejo até hoje! Contra nada, nada (ênfase). É uma coisa admirável. A família dele é muito conservadora, mas ele nunca manifestou absolutamente nenhum preconceito. Então fica mais fácil lidar. Ele é uma pessoa que evita conflitos. Por exemplo, ele é ateu, sem dúvida alguma ele é ateu, mas você acha que ele vai falar para alguém: “Eu sou ateu”? Sabendo que vai chocar, ele não fala nada, prefere não falar. Ele também não vai falar que é feminista... Bruna – (interrompendo) Então ele não assume esse rótulo de feminista? Você acha que é porque ele não quer mesmo? Lola – Eu acho que ele não gosta de assumir muitos rótulos. Carolina – (completando) Faz parte da personalidade dele. Lola – É, de evitar conflito. Ele vai ser sempre aquele tipo de pessoa que vai falar “deixa para lá”. Então é difícil você acabar com uma pessoa como eu, que não sou “deixa para lá” (risos). Mas fazer o quê? Acontece! Ele lida “numa boa”. Paulo Renato – Você começou a dar aula
antes mesmo de se formar, você sabia inglês e passou a dar aula. Como foi a construção da persona Lola professora? Lola – Quando eu fui para Joinville, eu fiquei bastante tempo sem fazer quase nada. Estava tentando lidar com a perda do meu pai, que foi difícil. E acho que eu nunca tive depressão mesmo, mas foi difícil. E depois de um tempo eu decidi: “Bom, eu quero voltar a dar aula como bico, não como atividade principal.” Eu já estava com 30 anos e a única coisa que eu sabia (fazer) era falar inglês, mais nada. Toda vez que eu perdia um emprego – também nunca tinha ficado num emprego muito tempo –, cada vez que eu mudava de emprego, eu pensava em dar aula de inglês. Eu ia para uma escola, fazia o treinamento, não gostava do treinamento, abandonava no meio e voltava a um outro emprego. Mas aconteceu de ter uma escola que eu gostei lá em Joinville, era uma escola que não era uma franquia, gostei da metodologia e comecei a dar aula lá. Gostei muito! Gostava dos alunos, gostava do método, foi legal. Era complicado porque a única coisa que eu achava que eu tinha era o inglês, não tinha mais nada. Não sabia nada sobre dar aula. E também vi que não dá para ser professor em meio período, (é) meio complicado, não é um bico. É (dedicação) integral. Então eu decidi ir atrás de fazer curso, participar de vários congressos de professores de inglês, fiz uma pós, uma especialização em inglês.
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Caroline ficou ansiosa pela resposta e perguntou para a turma se a entrevista poderia mudar de horário. Felizmente, Lola avisou que a reunião não iria acontecer.
Só que eu não tinha graduação, porque eu nunca tinha terminado o curso de Propaganda em São Paulo. Decidi voltar a estudar e fiz Pedagogia. Na verdade, eu só fiz pedagogia porque eu queria fazer o mestrado e ia ser a primeira vez que eu ia estudar por prazer, estudar só o que eu queria mesmo, que era Literatura, Cinema, Inglês. Assim que eu terminei a graduação, eu fui fazer o Mestrado na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Eu fiz o Mestrado e (depois) o Doutorado. Caroline – Falando de Cinema, antes de você começar a escrever sobre feminismo, você fazia críticas de cinema. Nessas críticas, havia uma relação feminismo/cinema? Lola – Totalmente! (explicando) Minhas críticas de cinema que eu prefiro ainda chamar de crônicas de cinema, porque eu misturo muitas coisas que algumas críticas sérias não fariam. Diálogos com o maridão, reação do público na sala de cinema. Mas é tudo feminista, sem dúvida. Tanto que os meus maiores desafetos – eu fui crítica de cinema para o jornal A Notícia de Santa Catarina durante 14 anos... As maiores críticas que eu recebia eram justamente por eu ser feminista. E de esquerda, que está muito ligado! Você sente que a pessoa que tem uma ideologia bem diferente da sua, automaticamente te odeia (risos) porque você representa tudo o que ela combate, digamos. Mas sempre foi tranquilo! Mikaela – Lola, você começou a escre-
“É muito mais fácil você dominar gente que não se gosta, gente que não aceita seu corpo, que tem baixa autoestima, do que outras pessoas” ver na Internet críticas de cinema, não foi? Eu queria saber como em vez de críticas de cinema você começou a escrever sobre o feminismo... Lola – Na verdade, eu escrevia primeiro no jornal. Foi uma coisa totalmente sem querer. Em 1998, eu mandei uma crítica que eu tinha escrito sobre Amistad (1997), aquele filme do Spielberg – (ênfase) que eu odiei. Então mandei a crítica de cinema para o jornal A Notícia, que é o segundo maior jornal de Santa Catarina. E, naquela época, era bem jornal de Joinville. Eles publicaram a crítica – (pensativa) pessoal esquisito, não responde e-mail, mas publica a crítica – junto com uma crítica do Estadão falando bem do fil-
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No dia da entrevista, Caroline e Taís ficaram esperando Lola na calçada da Universidade, mas voltaram várias vezes à sala de redação para avisar que nem Lola nem a fotógrafa, Gabriela Custódio, haviam chegado.
Sempre que a equipe de produção entrava no local da entrevista, todos os demais alunos imediatamente ficavam em silêncio, pois imaginavam que a equipe já estava trazendo Lola.
No dia da entrevista, alguns alunos também estavam bastante nervosos, pois, à noite, teria o show do cantor Paul McCartney (ex-integrante da banda de rock britânica The Beatles). Era a primeira vez que o músico se apresentava em Fortaleza.
me. Não queriam uma crítica só falando mal. Continuei escrevendo, mandava para eles, algumas eles publicavam, algumas não. Não ligavam para mim de jeito nenhum! Mudava de editor. (pausa) Finalmente, como tinham várias críticas que eu tinha mandado, e eles não tinham publicado, eu parei de mandar. Eu recebi um telefonema do editor do anexo, o segundo caderno cultural do A Notícia falando: “Por que você parou de mandar as críticas?” Eu falei: “Porque vocês pararam de publicar, ué!” Ele: “Não, a gente quer publicar, vem aqui falar com a gente.” Eu fui falar com eles, fui bem paparicada. O pessoal (ficava) falando assim: “Todo mundo queria saber quem você é, porque é raro alguém que não é jornalista escrever bem.” (risos) A gente conversou, e eles começaram a me pagar alguma coisa, não muita coisa. Passou por um monte de editores, eu demorei muito para ter uma coluna. De repente, me chamavam para escrever também em outros cadernos. Foi muito legal! Eu escrevi um tempo para AN Cidade, AN Verão, (lá) você tinha um público bem diferente das críticas de cinema. Foi legal. Mas eu comecei a contribuir com um blog – um site, porque não era um blog – com as mesmas críticas que eu publicava desde 1998. Eu comecei a contribuir com esse site desde 2000, e fiquei republicando essas críticas no site durante sete anos praticamente. Por comodismo mesmo, porque eu sempre quis começar um blog, mas eu ficava adiando. Chegou um dia que não dava mais, porque eu também comecei a colaborar com outro blog de um amigo meu. E esse outro site falou assim: “Não pode colaborar com os dois, você que decide com qual você vai ficar.” E, ao mesmo tempo, não estava gostando do outro blog, porque era um blog de cinema de ação, de quadrinhos... Não tinha nada a ver comigo. Não tinha nem o retorno dos leitores – eu recebia, de vez em quando, e-mails dos leitores do jornal, mas dos blogs em si, quase nada. Eu falei: “Bom, eu não vou ficar com nenhum, vou começar o meu próprio blog.” Mas eu não sabia como fazer isso e também não tinha tempo, porque eu estava em Detroit fazendo o doutorado sanduíche. Eu pedi para o Sílvio aprender as coisas básicas de começar um blog, ele aprendeu e me passou. E, rapidamente, os leitores começaram a me ensinar também. (pausa) A transição para o feminismo não teve transição nenhuma, porque eu acho que as minhas críticas já eram bastante feministas. E eu também comecei o blog para poder falar sobre o que eu quisesse, para ter um blog pessoal, para não ter nenhuma amarra editorial de: “Isso aqui não pode”. Na época, eu
estava lendo O Mito da Beleza (livro da escritora Naomi Wolf) também, então comecei a falar algumas coisas do livro, comecei a falar várias coisas relacionadas ao feminismo. E, cada vez mais, isso atraía pessoas, vinha mais gente querendo falar sobre esses assuntos. No começo, eu era totalmente sem noção, fazia três posts por dia! Três posts! (abismada). (pausa) Foi muito legal, porque em um mês de blog já tinha mais comentários do que em sete anos naquele site. Para quem escreve, o feedback dos leitores é fundamental. A gente quer saber o que os leitores estão pensando. Diego – Lola, você disse que o Sílvio ajudou a construir o blog. Ele afirmou, na pré-entrevista, que você só virou feminista, de fato, na concepção dele, depois do blog. Ele já falou isso para você? Lola – Não, mas, certamente, foi uma forma de estruturar o meu feminismo. Eu, realmente, acho que eu sou feminista desde os oito anos de idade. É diferente, eu realmente nunca tinha escrito sobre feminismo, então quando você vai colocar todas aquelas ideias no papel, você começa a estruturar melhor as suas ideias, a ir atrás. Concordo. Eu mesma falo isso também que não que eu virei feminista depois do blog, mas certamente o meu feminismo ficou muito diferente depois dele, ficou uma coisa um pouco mais articulada, responsável, minimamente profissional, eu acho. Bruna – Você recebe muitos pedidos de ajuda, pessoas que mandam histórias para você. Teve alguma dessas histórias que a marcou muito? Lola – (pensativa) É, não sei... É que são tantas. Eu estou tentando publicar três por semana... Bruna – (interrompendo) Como você faz essa escolha do que vai ser publicado ou não? Tudo o que vier? Lola – Não, não é tudo. Porque tem coisas que são meio bobas, eu agradeço. Eu tento publicar coisas contraditórias... Por exemplo,
“Você sente que a pessoa que tem uma ideologia bem diferente da sua, automaticamente te odeia porque você representa tudo o que ela combate”
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obviamente eu sou feminista, então eu sou a favor da legalização do aborto. Mas uma mulher mandou um post imenso sobre por que ela era contra o aborto. Tá, não concordo com uma palavra que ela disse, mas eu falei: “Olha, eu posso publicar, a única coisa é que está enorme isso daqui, tem cinco folhas aqui no word. Não dá! Se você conseguir reduzir isso aqui para uma página e meia, eu publico. Sem problemas. Claro que vai ser superpolêmico, ninguém vai concordar com você em um blog feminista, mas eu publico.” Ela falou: “Ah, não dá para reduzir para uma página e meia.” (ênfase) “Então não dá! Sinto muito, mas não vou publicar um manifesto contra o aborto.” Mas são realmente muitas histórias. Eu tento variar um pouco para não publicar sempre a mesma coisa. Eu acho que o que eu mais recebo são histórias de horror mesmo. Relatos de estupro, de abuso sexual... Eu tento não publicar tudo de uma vez, porque eu não quero que o meu blog seja monotemático e a gente só fale de estupro, por exemplo. Eu gostaria também que o meu blog fosse uma coisa mais leve, então eu tento publicar algumas coisas relacionadas com o humor sempre que pode... Tento variar um pouco! Felipe – Lola, o seu blog é considerado o maior blog feminista do Brasil. A grande maioria dos leitores são adolescentes. Como você se sente sendo influência tão grande para esses jovens? Lola – É, não sei se são adolescentes... Setenta por cento, pela última pesquisa que eu fiz tinham menos de 30 anos. E tem muita gente que tem 12 anos (impressionada), menos de 12, eu fico muito impressionada
com isso. Eu tento (pensativa) ter um pouquinho de cuidado, às vezes eu me lembro (de) que eu estou escrevendo para adolescentes. Mas, o que eu posso fazer? Eu sei que eu tenho uma influência e eu só falo o que eu acredito. Eu tento tomar muito cuidado com um monte de coisa, mas, não sei (pensativa). Às vezes eu não tenho a dimensão da influência que eu causo. Muitas vezes eu recebo e-mail... Teve agora uma leitora, muito fofinha, que mandou um e-mail falando que ela decidiu parar de beber por minha causa (risos). Quer dizer, eu nunca fiz propaganda de parar de beber. (pensativa) Eu só não bebo e eu defendo que ninguém deve ficar bêbado também, mas nunca fiz propaganda disso. Mas ela decidiu parar de beber por minha causa. Fico feliz, mas não estou... Bruna – (interrompendo) Você se sente conselheira das pessoas? Lola – Eu me sinto muito mal porque eu recebo muitos e-mails, e tem muitos e-mails que eu não consigo responder. Eu não dou conta. É triste isso, porque as pessoas se sentem próximas de você e elas sentem que se você não responder o e-mail é porque você teve alguma coisa pessoal contra o e-mail. Sabe, é muito triste isso. Gostaria de responder todos os e-mails, mas não dá! (ênfase) Não dá! Diego – Lola, por ter tido contato com a escrita até hoje, você algum dia pensou em ser Jornalista? Lola – Ah, pensei. Eu gostaria de ser Jornalista! Quer dizer, eu me considerei. Durante muito tempo, eu escrevi em jornal durante 14 anos. Chegou uma hora (em) que eu tinha duas colunas no Jornal. Eu gostaria (de
A foto da turma com a entrevistada era algo que estava preocupando toda a equipe, pois como Carolina precisaria sair mais cedo para ir ao show, a imagem tinha de ser realizada antes da entrevista.
A fotógrafa chegou pouco antes do início da entrevista, para alívio da produção. Lola chegou pontualmente às 15h e foi logo levada à sala em que estava a equipe.
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Caroline e Taís queriam começar imediatamente a entrevista, mas o professor Ronaldo Salgado pediu que fosse dado um tempo para Lola beber água e descansar mais para o início das perguntas.
“Para quem escreve, o feedback dos leitores é fundamental. A gente quer saber o que os leitores estão pensando”
Taís apresentou cada participante da revista à professora, explicando também como seria organizada a entrevista. Logo em seguida, pediu a todos que saíssem da sala para tirar a foto da turma.
fazer Jornalismo), mas, na hora de escolher uma graduação, eu não tive muita escolha, porque eu trabalhava das duas às dez todo dia. À noite, porque é o horário que tem mais aluno de inglês. E, na época, pelo menos em Joinville – eu acho que ainda hoje – só tinha curso de Jornalismo à noite. Letras também só tinha à noite. Então, eu escolhi Pedagogia porque não tive muito escolha mesmo. Mas eu gostaria! Bárbara – Mas assim que você terminou o ensino médio, optou pelo curso de Publicidade. O fato do seu pai ter a mesma formação influenciou de alguma forma? Lola – Acho que sim, porque eu admirava demais o meu pai. Se bem que eram áreas totalmente diferentes, porque ele estava em Marketing, pesquisa, e eu fui para criação, fui ser redatora publicitária. É Publicidade, mas é totalmente diferente. Não foi também uma escolha muito acertada. Isabele – Eu sei que você é feminista desde os oito anos, que a sua trajetória toda mostrava que você já seria uma pessoa diferente, uma pessoa importante. Mas você imaginou algum dia na vida tudo isso? Lola – Não! Nunca, de jeito nenhum! Nunca imaginei que o blog faria (ênfase) tanto
sucesso... Era um blog pessoal. Como eu falei na pré-entrevista, eu fiquei muito tempo com o blog mais ou menos nas 30 mil, 40 mil visitas por mês. E achando bom! Ficou quase dois anos sem passar desse patamar. Eu pensava: “Bom, não é tão ruim para um blog feminista, isso deve ser o limite. Acho que acima disso não vai porque é um nicho de mercado, é pouca gente.” Mas (pensativa) foi crescendo, foi crescendo mesmo. Com o Twitter já cresceu muito... Foi crescendo, e hoje tem 300 mil visitas por mês. Isabele – O que você acha que fez a diferença, fez crescer. Você acha que tem a ver com alguma polêmica? Com a questão de notoriedade por alguma polêmica? Lola – (pensativa) Bom, fez uma diferença eu entrar no Twitter. Isso fez muito, não sei por quê. Talvez se eu tivesse coragem de entrar no Facebook... Coragem eu digo porque eu não tenho tempo mesmo. Mas talvez aumentasse o número de visitas, não sei. Certamente a polêmica que eu tive com o (jornalista) Marcelo Tas jogou o meu blog para um outro patamar. Quer dizer, eu estava com 95 mil visitas em maio e, naquele mês com (a briga com) o Marcelo Tas, tive 320 mil visitas. Mas depois voltou e ficou um tempão
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“Uma das bandeiras da nossa luta é a liberdade pelo nosso corpo, a liberdade que o corpo é nosso e a gente pode fazer o que quiser com ele” em umas 150 (mil). Certamente foi um pulo de quase cem mil para 150 mil. Só que o que fez pular de 150 para 300 mil nos últimos seis meses, oito meses eu não sei. Acho que é um pouco de boca a boca... (pensativa) Eu realmente não sei. Paulo Renato – Lola, como foi essa polêmica com o Marcelo Tas? Lola – Eles tinham feito um programa no CQC (Programa Custe o que Custar veiculado pela emissora BAND), que nem era um programa na televisão, era aquele depois do CQC na Internet... Paulo Renato – (completando) 3.0. Lola – É, isso mesmo. É que eu não assisto! Eles fizeram um programa horroroso, que falava contra a amamentação em público... Era o Rafinha (Rafinha Bastos, jornalista e humorista) na verdade. O Rafinha ainda trabalhava lá, então ele estava respondendo cartas de leitores e alguém perguntou: “O que você acha dos mamaços?” E os mamaços estavam um pouquinho na “onda” naquela época, porque (pensativa) uma mulher que estava amamentando foi convidada a sair ou foi convidada a ir ao banheiro em um Instituto em São Paulo. E as mães logo organizaram um mamaço, que era um protesto... É tipo beijaço, uma coisa muito legal! Você leva os bebês e amamenta em público. É muito legal. (pensativa) Então, o Rafinha, que é um reaça, falou que ele acha tudo isso ridículo. Ele acha qualquer manifestação pública ridícula (ênfase). Óbvio. Acha que é coisa de vagabundo... E começou a falar contra a amamentação em público. Eu fiquei indignada com aquele programa e escrevi um post no dia seguinte chamado CQC, vai pra PQP falando que era revoltante. Uma das bandeiras da nossa luta é a liberdade pelo nosso corpo, a liberdade que o corpo é nosso e a gente pode fazer o que quiser com ele. Então, a gente quer ter a liberdade de amamentar em público, (quer) que os seios não sejam vistos só como uma coisa
sexual. Os seios têm outras funções também e uma delas é amamentar. No mesmo dia eu recebi um e-mail do Marcelo Tas dizendo que ele não tinha falado de jeito nenhum que ele era contra a amamentação. Aí eu falei: “Realmente você não falou que era contra a amamentação, mas falou que era contra a amamentação em público, quer dizer, com todas essas brincadeiras... E eu acho que você ser contra a amamentação em público, direta ou indiretamente, você é contra a amamentação porque você está dizendo que a mulher não pode sair de casa, não poderia trabalhar, ela teria que ficar em um lugar reservado para amamentar.” Ele mandou um outro e-mail... Ele queria que eu retirasse (o post). O texto (ênfase) está igualzinho como foi publicado, até hoje. Não tem nada (diferente)! Sabe, não tem nada! Aliás, eu só cito o Marcelo Tas duas vezes, mas eu falo contra o CQC em geral. Eu falei: “Olha, não vou mudar nada, não vou retirar nada porque como você fala que não faz parte do CQC? Eu acho que você é o principal nome do CQC. E você está querendo falar que não tem nada a ver com o programa? Não estou entendendo!” Ele mandou um outro e-mail falando: “Você vai aprender através de um processo a ser mais responsável com as suas palavras.” O que a maior parte das pessoas faz em uma situação dessas quando é ameaçada de processo? A pessoa tira o post rapidamente, nunca mais vai falar do CQC na vida. Já vi gente deletar o blog depois de uma ameaça dessas. Eu não fiz isso! Eu mandei uma mensagem no Twitter para os meus seguidores falando: “Gente, olha só que interessante! O Marcelo Tas está ameaçando me processar.” O pessoal: “Como? Como que é isso?” No dia seguinte, eu publiquei o post Liberdade Relativa – Marcelo Tas quer me processar dizendo que se ele tinha direito de falar um monte de coisas no CQC, eu tinha total direito de criticar as besteiras que ele fala, que se ele quiser processar, pode vir. (pensativa) Ele nunca mais tocou no assunto, pegou muito mal para ele, foi muito ruim. Felipe – Lola, você foi proprietária de uma Agência de Casamentos. Alguma vez o seu posicionamento feminista interferiu nesse trabalho? Lola – Pois é, tive uma Agência de Casamento durante três anos, dois anos... Foi legal, eu tinha pesquisado um pouquinho em São Paulo antes de me mudar para Joinville sobre como que seria isso. E era uma chance de trabalhar em casa também! Lembrem-se que isso era um pouquinho antes da Internet, então as chances de trabalhar em casa eram pequenas naquela época. Foi legal, foi bacana enquanto durou, mas não dava muito
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Após alguns minutos do início das perguntas, a equipe de produção ficou bastante preocupada, pois achou que a entrevista duraria menos do que as duas horas inicialmente previstas.
Toda a equipe conseguiu seguir a pauta e a entrevista foi organizada exatamente da forma como havia sido estabelecida pela turma, durante a reunião na sala de aula.
Carolina precisou sair na metade da entrevista, pois iria fazer a cobertura do show de Paul McCartney. Gabriela também precisou sair mais cedo para ir à apresentação do cantor.
Pouco antes de finalizar as duas horas de entrevista, Caroline olhou para Taís para saber quanto tempo ainda tinham. Faltavam somente dez minutos. Caroline ficou ansiosa para fazer a última pergunta.
certo. Quer dizer, eu acho que eu juntei alguns casais, mas é aquele negócio, o pessoal morre de vergonha. Ninguém vai falar que se conheceu através de uma agência de casamento. Nunca. Se você encontra uma pessoa dessas no shopping, ela não fala com você. É estranho, (pensativa) mas foi legal. O chato era assim, é difícil mesmo para mulheres acima de uma certa idade, acima de 40, 45 anos. A procura por mulheres dessa idade é bem baixa. Você tem homens de 45 anos que não querem uma mulher de 40 anos, querem uma mulher de 20, 25... Tinha esse problema, eu acho que a maior parte das pessoas que procuram uma Agência de Casamento, uma grande parte, são mulheres nessa faixa etária, acima dos 45 anos. E o quem você tem para apresentar para elas é bem limitado. Infelizmente. São mulheres que acreditam no amor, que querem encontrar um novo companheiro, (pensativa) são pessoas boa gente. Então você quer apresentar alguém para elas! Mas é complicado. O chato também é que mulheres de certa faixa etária não querem também qualquer um. É aquele negócio, já ouvi várias vezes: “Se não tiver carro, nem me apresenta.” (ênfase) Eu acho horrível isso! Se não tiver carro, não me apresenta. Para os homens tinha a questão inversa, que era assim: “Ai, eu quero uma loira, alta, magra...” Eu só faltava responder: “Só um minuto que eu vou ver se eu tenho na estante!” (risos) Porque era tão específico assim, mas não eram todos, só que você acaba caindo nesses clichês. Era interessante, porque mulher mais jovem não estava nem aí com a classe social, quer dizer, todo mundo era mais ou menos de classe média, mas a mulher mais jovem... Nenhuma mulher mais jovem falava: “Se não tiver carro, não me apresenta.” Mas mulher mais velha fala sempre. Isabele – Você tem alguma história interessante dessa época? Lola – Então, eu acho que eu casei algumas pessoas, acho que tem uns quatro ca-
“Nunca tive nenhuma intenção de ser Miss Brasil, eu acho que são poucas as mulheres que podem ser Miss Brasil”
sais que eu formei, fiquei feliz... (pensativa) Mas eu não me lembro muito bem, foi bom enquanto durou. O que eu me lembro, uma coisa interessante que eu me lembro, foi uma lição que eu aprendi para eu não me pautar pelos meus gostos pessoais. Teve um dia que uma mulher foi lá (na Agência de Casamento), era lá em casa. Ela foi lá com uma amiga, conversou comigo, mas não escolheu na Agência. E eu pensei, quando ela estava saindo, eu pensei: “Ainda bem, porque essa mulher é muito feia! Ela é muito feia, tadinha! Eu não vou conseguir arranjar ninguém para ela.” Eu fiquei mal impressionada com aquela mulher. Enfim, assim que ela estava saindo, entrou um senhor mais ou menos da mesma faixa etária dela, mais de 50 anos. A primeira coisa que ele me falou, quando a mulher saiu (foi): “Aquela galega lá está na Agência?” (surpresa) Quer dizer, ele já ficou interessadíssimo! (risos) É aquele negócio, não se deixar só se guiar pelos seus gostos pessoais. Saber que o universo é muito mais amplo do que o seu umbigo e que só porque você não acha aquela pessoa bonita ou interessante, não quer dizer que outras pessoas não vão achar. Isso foi uma boa lição... Paulo Renato – (interrompendo) Lola, você fala sobre gostos pessoais. Eu pensei em perguntar isso quanto ao seu gosto pessoal em relação a si mesma. Você se considera bem em relação à sua aparência, ao seu corpo? Lola – (pensativa) Então, a Naomi Wolf me ajudou muito (risos). É complicado, eu sempre fui gorda, quer dizer, desde a minha puberdade. Eu fui uma criança magra, mas assim que começou a minha menstruação, eu rapidamente (engordei)... Claro que você vai engordando aos poucos, mas eu lutei contra a gordura durante muito tempo. Fiz um monte de coisa, um monte de tratamento... E só consegui emagrecer mesmo, o único jeito, tomando remédio para emagrecer. Aqueles remédios que agem no cérebro para controlar o apetite. E tomei um remédio desses durante sete anos, para mim foi bom, quer dizer, eu não tive nenhum efeito colateral, eu consegui emagrecer, mais pro final eu estava tomando bem pouquinho, eu tomava uma vez por semana só. Estava conseguindo manter o peso. Mas, quando eu fui para Joinville não tinha como um remédio desses durar dois anos, porque Joinville é a terceira cidade mais úmida do País, então você não tem um remédio que vai durar mais do que dois meses, de jeito nenhum! Desses de cápsulas, porque as cápsulas mudam... Então acabou. Acho que foi ao mesmo tempo (que) o Serra (José Serra, ex-ministro da Saúde no Governo de Fernando Henrique Cardo-
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so – 1995 – 2002) lançou uma nova medida, como Ministro de Saúde, que não permitia, quer dizer, cada remédio para emagrecer, eu acho, tinha de ter um componente em cápsulas separadas. E eu sempre tive um problema psicológico para engolir cápsulas... Então acabou! Claro que eu não engordei tudo de uma vez, fui engordando mais e mais. (pensativa) Eu gostaria de ser magra para sempre, mas eu aprendi um monte de coisa. Eu realmente preciso emagrecer, eu preciso deixar de ser sedentária... Mas eu acho que realmente tem a ver com saúde mais do que com aparência. Nunca tive nenhuma intenção de ser Miss Brasil, eu acho que são poucas as mulheres que podem ser Miss Brasil. Mesmo que eu fosse magra, eu tenho um metro e sessenta, eu não tenho altura para ser Miss Brasil (risos). Sem falar que eu tenho 45 anos também... Enfim, eu acho que nenhuma mulher precisa ser bonita, é legal ser bonita, é legal estar dentro do padrão de beleza, mas eu me sinto bem como eu estou. Hoje em dia, eu me sinto bastante bem. Paulo Renato – Lola, nas suas postagens, eu percebo que você trabalha sempre esse tema de que você não deve defender só aquilo que é. Fala que você defende negro, mesmo sem ser negra. Defende a lésbica, mesmo sem ser lésbica. Como foi a construção dessa sua consciência? Lola – Isso foi muito cedo mesmo. Eu me lembro de quando eu tinha, sei lá, dez anos, 11 anos, que minha mãe falou assim: “Senta aqui!” E ela colocou Construção do Chico Buarque para tocar. E eu nunca tinha (ouvido) uma música com aquele tipo de consciência social como Construção. Então eu chorei. Chorei, fiquei comovida com aquilo e claro que eu já me identificava, senão eu não teria chorado... Eu sempre me identifiquei muito com a esquerda, de modo geral, para mim foi simples. Se eu for só falar de mim, eu não vou falar de nada porque a minha vida é muito boa. A minha vida é ótima! Eu, certamente, sou privilegiada em tantos aspectos... Seria mais fácil não ter blog ou seria mais fácil ter um blog sobre algum assunto mais bobo, sobre animais, mas não sobre direitos de animais, mas (sim) sobre pet shop. Seria mais fácil ter um blog assim, mas não dá! Eu sou como eu sou, e eu gosto! Eu gosto de falar dessas coisas. Caroline – Lola, a gente já está chegando ao final da entrevista. Durante quase duas horas, a gente descobriu os motivos que a levaram a ser feminista e levantar a bandeira do feminismo. Agora, a gente gostaria de saber o que a motiva a continuar levantando a bandeira do feminismo ao longo da sua vida.
Lola – (pensativa) Eu não sei. Acho que eu viciei no blog (risos). Eu não consigo, por mais que muitas vezes eu pense em parar, penso: “Ah, eu preciso dar um tempo, preciso me dedicar mais inclusive à vida acadêmica, eu preciso publicar artigos acadêmicos.” Não sobra tempo para nada mesmo. Eu acho difícil, eu já me associei muito a tudo isso, então fica complicado para eu sair disso... Eu vou continuando, vou continuando mais por comodismo (risos). Mas mudando, aprendendo muitas coisas. Eu aprendo muita coisa, isso é ótimo. Eu recebo muito carinho, o carinho também vicia! Eu sou muito convidada para dar palestras em muitas universidades, e eu sou sempre muito bem recebida nesses lugares. Ainda é um choque para mim porque é só um blog! (risos) Mas eu acho que o blog, por ser uma coisa diária, não depende de mídia, você acaba criando um entrosamento entre o escritor e o leitor que é muito grande. Eu acho que não existe (esse entrosamento) em outros meios, é uma coisa estranha mesmo, mas as pessoas acabam se sentindo mais próximas de você, como se você fosse um amigo... Não como o jornalista que está escrevendo no jornal. É um outro tipo de relacionamento, principalmente se você responde, interage com os leitores. Isso é ótimo! Eu quero publicar alguns livros, já publiquei um, quero publicar outros relacionados com o feminismo. Quero continuar falando com as pessoas diretamente sempre que me convidarem ou quase sempre, apesar do trabalhão que dá porque é muito trabalho... Trabalho de formiguinha mesmo, você começa a ter algum tipo de influência sobre as pessoas com quem você convive... A gente começa a mudar o mundo sim, eu acho. Eu vejo muito a diferença nos últimos cinco anos, não estou falando por causa do meu blog, de jeito nenhum, mas eu vejo essa diferença nos últimos cinco anos de como o feminismo vem crescendo! Estudos de gênero agora é uma constante, qualquer universidade tem estudos de gênero. Cinco anos atrás tinha, claro, mas não com essa intensidade que tem hoje. Acho que é uma tendência irreversível, a gente já está levando agora o feminismo para dentro das escolas. A gente gostaria que tivesse uma disciplina de estudos de gênero, de diversidade dentro das escolas, seria ótimo! Mas enquanto a gente não consegue isso, a gente está indo nas escolas, está fazendo palestras e está, pouco a pouco, reagindo! Acho que está bom!
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Após a entrevista, Caroline contou para Lola que se esqueceu de fazer a pergunta do Bis, uma história que Sílvio contou na pré-entrevista. Ela deu risada e disse que ele era muito fofinho.
A história do Bis ocorreu em um dia que os dois brigaram. Para reconquistá-la, Sílvio colocou vários chocolates Bis pela casa e deixou um bilhete escrito: “De onde veio isso, tem mais”. Lola descobriu, depois, que o “onde” era o supermercado.
Depois da entrevista, Bruna falou que a decisão de fazer a tatuagem do símbolo do feminismo foi influenciada pelo livro O Mito da Beleza da escritora Naomi Wolf e também pelo blog “Escreva, Lola, Escreva”.
No dia das mães, 12 de maio de 2013, Lola fez uma postagem no blog que falava sobre a entrevista realizada três dias antes. Ela escreveu sobre o projeto e contou a história do Bis.
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Carri Costa
Ator, diretor e produtor teatral
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// Carlos Rinaldo Costa Moreira
Entre o sertão e o palco, a expressão se faz presente no menino-homem que é a própria arte
Sob a luz regozijante dos refletores do Teatro da Praia, em Fortaleza, encontra-se Carlos Rinaldo Costa Moreira — o Carri Costa do respeitável público. O cenário de portas é o pano de fundo de um universo de possibilidades que se abrem com a presença do artista no palco. Carri Costa é figura de puro sentimento e de expressão. Entre cruzadas e descruzadas de pernas, uma ansiedade que é muito mais uma vontade. Ânsia de se doar. Difícil até imaginar se ele não vai fugir por uma dessas portas. Afinal, Carri tem o mundo no lar; o palco é a sala de estar. Constante travessia, ele faz questão de nos arrastar por um caminho de lutas e paixões. Agora somos todos espectadores do bom anfitrião que se desnuda, acolhe, encanta, envolve, educa e modifica. O menino-homem é uma explosão. É o sangue do cabra forte sertanejo fluindo com demasiado vigor pelas veias artísticas de um moleque criativo, intenso e apaixonado. É possível sentir o cheiro de carvão e de cocada em meio à terra batida do sertão de Pacajus (município cearense) adentrando às nítidas memórias de Carri. Sempre enveredando e encontrando a arte. A voz sonora e potente de repente se acalma. Parece anestesiar-se em meio a lembranças de pinturas e de traquinagens de um menino da rua. No moleque, uma única, mas pretensiosa aspiração: ser feliz. Entre cerceantes barreiras de dogmas e de ideologias, Carri encontrou a liberdade e o amor. Talvez tenha sido o teatro que o encontrou primeiro nesse universo mais simples que rebuscado onde a arte tem vida própria. Agarrou Carri pelas mãos e nem
precisou sacudi-lo; apenas sussurou: “Sejamos!”. Juntos, muitos sacrifícios. Dores e dificuldades recompensantes; até revigorantes para o artista que às vezes até esquece que existe fora da arte. Em essência, fascinado, enlouquecido e irrefreável. Um eterno aventureiro dos quintais do mundo. O ator e diretor é pura cearensidade. Excêntrico, empolgado e comunicativo. A arte dele é a comédia. Tudo simples, sutil e inteligente. Nada de escracho. Em primeiro lugar, o respeito pela plateia. A ela, Carri trata com a mesma intensidade e carinho, sendo em milhares ou apenas alguns “gatos pingados” nas cadeiras. O artista que precisou montar o próprio teatro para ter espaço na capital cearense não se faz vítima de um governo que vira os olhos para a cultura local. Carri vive um desafio. Não se deixa abater. Não espera; faz acontecer. Vive, escreve, busca e realiza em perfeccionismo. Propostas de mudança para o centro da produção cultural do País ele recusa. O telúrico Carri Costa tem raízes inarrancáveis nas sofridas e amadas terras do Ceará. Entre dramas e comédias, Carri vive o dom de ser artista. Não lhe é preciso referências. Basta abrir os olhos da alma para receber dentro de si um novo ser. E, então, o coração que pulsa é de outrem. Novas cores, novos sabores fazem a sinestesia de uma nova vida em cima dos palcos. Sempre um novo sentimento. Sempre uma nova surpresa. Assim é Carri Costa. Um experimento em permanente metamorfose; um constante experimentar da existência que se agarra e se alimenta do rastro de alegrias e sorrisos que deixa o prazer da comédia.
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Ficha Técnica Equipe de Produção: Bárbara Danthéias Mikaela Brasil Entrevistadores: Bárbara Danthéias Bruna Luyza Forte Carolina Esmeraldo Caroline Portiolli Diego Sombra Felipe Martins Isabele Câmara Mikaela Brasil Paulo Renato de Abreu Taís de Andrade Fotografia: Tamara Lopes Texto de abertura: Felipe Martins
Entrevista com Carri Costa, dia 23 de maio de 2013.
Bárbara – Carri, esse despertar da veia artística aconteceu muito cedo na sua vida. De que forma a arte se fez presente na sua infância? Carri – A arte como um todo, né? O teatro foi aos 15 anos. Mas a arte como um todo esteve sempre próxima a mim. Não sei como funciona isso, se é cármico, se é genético, também não me interessa saber se é, eu só sei que, desde sempre, desde que eu me entendo por gente, uma determinada afinidade com uma estética artística, essa sensibilidade cultural, sempre esteve presente. Eu me lembro desde molequezinho, menino, (que) a minha extroversão sempre foi muito grande, sempre me comuniquei muito fácil. O trabalho manual foi sempre uma presença muito grande desde a minha infância, com os próprios cadernos infantis, com a pintura, com o desenho... Acredito que essa veia artística é desde esse tempo. Muito novo, muito criança mesmo. Eu pensava que eu ia ser um artista plástico porque eu comecei a trabalhar pintando. Desenhando e pintando. Mas eu descobri o teatro nesse entremeio e eu acredito que foi por aí a história. Diego – Você nasceu em Pacajus (município da Região Metropolitana de Fortaleza) e veio morar em Fortaleza. Qual o motivo da mudança? Carri – Eu nunca perguntei aos meus pais qual o motivo que eles se mudaram pra cá, não. Ou se eles me falaram, eu não me recordo muito bem, não. Mas eu suponho que deva ter sido porque meus avós também vieram pra cá. Minha mãe dependia um pouco dos meus avós... Avós paternos. Não os pais dela. Mas a nossa família sempre foi muito pobre, muito carente, e meus avós tinham condições melhores, então eles vieram pra cá, morar em Fortaleza, e eu acredito que a minha família tenha vindo junto pra cá também (por esse motivo). Uma vez que minha mãe ganhou um dinheiro, uma herançazinha de um terreno que a mãe dela tinha lá em Pacajus, comprou uma casa aqui no bairro da Piedade, uma casa própria já que a gente morava de aluguel lá em Pacajus. E a gente se mudou pra cá e a minha lembrança é dessa época. Eu tenho uma lembrança, uma memória muito boa pra isso, eu
tenho lembranças de três anos de idade, de quatro anos de idade, nítidas e perfeitas. Carolina – Você falou que já tinha essa veia artística, sempre esteve em contato com essas coisas da arte. Como foi que os seus pais lidaram com isso? Como é que foi a aceitação deles? Carri – Olha, eu acredito que eles sempre tenham visto como uma coisa interessante, tanto que me motivaram de alguma forma. Minha mãe trabalhava fazendo tricô, ela era professora de tricô, (fazia) trabalhos manuais e tal. Minha mãe sempre se virou pra trabalhar, desde muito cedo... Meu pai era caminhoneiro, viajava dirigindo o caminhão para a empresa, e ela não podia passar muito tempo sem recurso pra poder manter a família. Meu pai mandava (o dinheiro) mensalmente, mas ela precisava diariamente. Eu me lembro, em Pacajus, (que) minha mãe vendia carvão, vendia cocada, e eu me lembro do cheiro da cocada perfeitamente bem, sabe? Da cocada que ela fazia, dos tabuleiros que tinha na cozinha e do forno à lenha. E acredito que ela tenha sempre visto com bons olhos (a inclinação para a arte), uma vez que ela comprava os cadernos de desenho pra eu fazer, pra eu desenhar, os lápis... Quando eles viram que eu tinha uma veia artística... Eu me lembro que, acho que dos oito pra nove anos, aproximadamente, minha madrinha, que tinha uma condição financeira melhor, disse que ia patrocinar um curso de desenho pra mim e assim ela o fez. Ela patrocinou um curso, desde que minha mãe comprasse o material do curso. Minha mãe se virava (enfático) pra comprar. É interessante, a minha família, meus pais não tinham uma cultura, digamos assim... Não eram pessoas formadas, eram pessoas que tinham suas limitações culturais, lógico, eram pessoas do sertão, do interior. Naquela época, devido a uma série de fatores, (no sertão) não havia escolas, enfim... Minha mãe terminou o primeiro do primário, meu pai também, não fez faculdade, e eles trabalharam muito cedo, desde muito cedo. E eu acredito que, de uma certa forma, essa visão deles, tão desprovida de qualquer malícia também – que eu acredi-
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Carlos Rinaldo Costa Moreira nasceu em 17 de fevereiro de 1966, no município de Pacajus, interior do Ceará. O pai do ator, porém, registrou o nascimento de Carri apenas no dia 17 de março. Não se sabe o motivo do engano.
Quem fez a sugestão para que Carri entrasse na revista foi o Paulo Renato. Ele já admirava há algum tempo o trabalho do ator e diretor no Teatro da Praia.
Com o nome de Carri definido para a produção de Bárbara e Mikaela, Paulo Renato chegou a falar com o ator depois de uma das peças do Carri. Na hora, ele tentou ligar para Bárbara para pedir permissão de marcar entrevista, mas ela não viu a ligação.
A equipe de produção conseguiu marcar a entrevista com Carri na primeira vez que falou com ele ao telefone. Depois foi a correria para preparar tudo...
to que o sertão tenha muito disso –, eles viam como uma coisa legal aquilo, uma arte, mesmo sem saber que era uma arte expressiva, tão forte... Então, eu acho que deve ter sido encarado de forma bacana. E assim foi com o teatro mais tarde também. Uma forma de educar um pouco diferente da sertaneja, uma vez também que eu era um pouco diferente dos meus irmãos, diferente do resto da família, sempre me destacava mais, era mais comunicativo, mais criativo. Caroline – Você disse que era diferente dos seus irmãos... Algum deles seguiu carreira artística? Carri – Não, nenhum. Nenhum mesmo. Nem é louco de seguir. (risos) Isabele – Como é a sua relação com seus irmãos? Carri – É ótima! Meus irmãos... Eles são meus fãs (todos riem). Paulo Renato – Hoje você se considera o que você queria ser? Carri – Sim, sim. Na realidade, vou ser mais específico, mais sincero: não imaginei, entendeu? Eu não organizei isso, eu não projetei isso, eu apenas vivi esses momentos. Mas eu vivi tão intensamente, com tanto desejo e com tanta... Não digo nem consciência, cara, porque quando você entra nas Artes, principalmente na arte teatral, se você não é uma pessoa deslumbrada, você entra com paixões, entendeu? Sem deslumbre, com paixões. Quando a gente entra com paixão, a gente entra que nem o cego, a paixão meio que cega a gente. Eu não projetei isso. “Ah, vou ser um ator quando crescer”, “Vou ser um artista plástico quando crescer”... Eu tinha uma coisa que talvez fosse um pouco utópica: eu queria ser feliz quando crescesse. Eu queria fazer aquilo que eu quisesse. E aí você me pergunta isso, e eu digo: “Bem, eu sou feliz... Porque eu faço aquilo que eu quero e eu sigo, eu tiro de mim tudo aquilo que eu vejo possibilidade de tirar. E isso me torna um homem feliz”. Paulo Renato – Carri, você chegou a ser se-
“Eu acho que essa é a função do ser humano: costurar a vida das pessoas e, através dessas costuras, deixar marcas e bordados fantásticos”
minarista, né? Como foi o caminho até chegar a ser seminarista? Carri – A minha relação com a Igreja sempre foi muito próxima. Algumas pessoas (dizem): “Eu quero mudar o mundo através da religião, eu quero mudar o mundo através da política, eu quero mudar o mundo através da arte”. E eu acho que, quando a gente é meio adolescente, a gente tem vontade mudar aquilo que a gente não acha interessante. Na minha adolescência, eu fui ligado à Igreja e talvez essa minha percepção de arte tenha meio que me tornado muito lúcido com relação a alguns dogmas da Igreja, que eu não conseguia sentir aquilo que muita gente sentia ao se relacionar com os dogmas da Igreja, por mais que eu forçasse, por mais que eu quisesse. Não tinha, não conseguia sentir. Mas tinha um determinado segmento da Igreja que me colocava em sintonia com aquilo que eu achava que era interessante. Aí eu entro na Teologia da Libertação, que é uma corrente da Igreja na qual a gente passou a se envolver desde muito cedo. Porque até na época da minha adolescência era a abertura (período de reabertura política após a ditadura militar. A abertura se iniciou em 1974 e foi até 1984), né? Era finalzinho da repressão e começo da abertura, e eu tive alguns referenciais mágicos na minha vida... Algumas pessoas entraram na minha vida, né? Eu acho que essa é a função do ser humano, costurar a vida das pessoas e, através dessas costuras, deixar marcas e bordados fantásticos. Assim, meus tios, meus padrinhos, foram uns que foram comunistas, são comunistas e lutaram muito na época da ditadura (período de 1964 a 1985) e eram pessoas muito lúcidas e hoje são muito lúcidos, os filhos deles são também... E eles conseguiam me mostrar algumas coisas (para as quais) minha família sempre foi um pouco apática e eu queria algo mais e acabei tendo essa compreensão. Isso me levou até, por exemplo, ao Casarão Democrático, que ficava na Avenida da Universidade em frente ao Teatro Universitário, onde eu desenhava cartazes pro método do Paulo Freire (método inovador de alfabetização de adultos criado pelo educador Paulo Freire, utilizando palavras e temáticas que tivessem significado para o aluno), isso depois da meia-noite, porque era tudo muito escondido. Quando eu comecei a trabalhar na Piedade (o bairro), a me envolver com os Salesianos, a Ordem dos Salesianos (congregação religiosa católica, fundada em 1859 por São João Bosco, voltada para a evangelização de jovens, especialmente pobres), eles tinham um trabalho de educação muito bacana com os jovens, chamado Oratório Salesiano, porque Dom Bosco, que viveu na Itália no final do século XIX, criou essa congregação para trabalhar a educação de um
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Falar com Carri foi fácil, difícil foi conseguir com ele os nomes de amigos ou parentes para a pré-entrevista! O futuro entrevistado só respondeu o e-mail da equipe de produção solicitando os contatos uma semana depois do envio.
jovem que vivia na miséria naquela época, na Itália. Os conceitos eram fantásticos, porque transformavam a vida de pessoas jovens que estavam sem nenhuma perspectiva. E assim funcionava o Oratório, que dava formação cristã, entretenimento, enfim. E eu comecei a me envolver com eles e, como eu sempre fui de iniciativa, muito falador (ele ri), (os padres diziam) “Ah, mas esse menino dá um padre perfeito!”. Eu disse “Eu dou!”. “Vamos pro seminário?”. “Eu vou!” (bate as mãos). E eu, sempre muito comunicativo, acabei indo parar no interior de Pernambuco, no seminário, na cidade de Carpina (município que fica na Zona da Mata, a 50 km da capital de Pernambuco, Recife). E foi lá que eu descobri o teatro, ou seja, não tinha outra, eu tinha de ir para lá, eu tinha de descobrir o teatro lá. Meu primeiro espetáculo foi lá, aos 15 anos de idade, foi Paixão de Cristo, eu fiz “O Povo 3”. Não me lembro das falas, não. Mas eu tinha essas duas falazinhas e eu vi a primeira vez que eu deparei com um templo teatral. Teatro... Enorme, gigante... Pernas, bambolinas, urdimentos, porão, figurinos, enfim. Isso foi no começo do ano (que ele estava no seminário) e eu fiquei apaixonado por isso, trabalhei mais... Cobrei mais espetáculos teatrais e acabei participando de mais durante o ano lá no seminário, terminei o ano, voltei pra Fortaleza e não quis mais voltar (ao seminário), porque ser padre não era a minha. Bruna – Você falou sobre teatro, da primeira vez que você entrou (nele), como um templo. O que você sente hoje quando entra no palco? Carri – Ai, cara! É isso, é tudo. (procura por
palavras) Não tem. Eu acho que eu sou um cabra tão apaixonado por isso aqui, tão fascinado, tão enlouquecido por isso aqui que eu esqueço da minha vida pessoal, da vida afetiva, de tudo. “Ah, Carri, mas, então, é uma coisa desequilibrada?” Que seja. Não me incomoda ser um cabra desequilibrado nesse sentido, não me incomoda. Eu gosto disso, eu sou apaixonado por isso, entendeu? Tenho outras paixões também, mas essa aqui é a minha maior. Bárbara – Carri, essa questão da valorização da origem, do lugar onde nasceu, é muito forte no seu trabalho. Eu queria saber a relação de você com o lugar onde você morava na sua juventude, na sua infância, e como isso interferiu no seu trabalho. Carri – Totalmente, sabe? Eu acho que eu sou cearense ao extremo. É sério, eu tenho excesso de cearensidade, de molecagem dentro de mim. Porque eu vivi tudo isso, eu fui menino de rua mesmo, entendeu? Não... (percebendo a confusão nos olhares da turma) menino de rua... Eu fui menino na rua! (todos riem). De rua não, eu fui menino na rua! Eu brinquei de tudo que vocês possam imaginar... na rua... Bila, triângulo, fiz cerol, fiz arraia (falando de pipa), vendia arraia... O que você imaginar de brincadeira popular eu vivi, aprendi, era muito bom numas coisas, era muito ruim noutras coisas. Sabe, de João-Ajuda, de Pega-Pega, Trinta-e-Um, Esconde-Esconde...Tudo, tudo o que você imaginar! De correr, arrodear quarteirão com a chinela nos punhos, no meio da lama, porque naquela época Piedade não tinha saneamento... (recorda) Meu Deus, como eu roubei caju, cara! Tinha um terreno perto lá
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O ator pediu desculpas e justificou a demora: reta final de produção, viagens e problemas na internet. Afinal, não era só a equipe de produção que estava na maior correria!
Durante a pré-produção, a equipe entrevistou o ator Denis Lacerda, a atriz Solange Teixeira e a artista plástica Nildenir Campos, nomes indicados pelo próprio Carri para as pré-entrevistas.
de casa que tinha uns cajueiros gigantescos, em tempo de levar tiro de sal, vez por outra, a gente escutava uns tiros de sal... Fui moleque mesmo, de brigar no meio de rua, de chegar em casa e levar uma peia também porque “brigou no meio da rua”.Tudo isso me tornou um cabra moleque, um cara sem frescura. Não sou uma pessoa fresca. Carolina – Você sente que sacrificou muita coisa pra se dedicar 100% ao teatro? Carri – Muita coisa, não, algumas coisas. Até porque, o que é o sacrifício? O sacrifício é você deixar de fazer uma coisa por algo que não vale tanto a pena. Não me doeu nada, por exemplo, deixa eu ver, abrir mão... Pronto, (vou) contar uma coisa, um episódio: eu estava uma temporada no Rio de Janeiro, com o espetáculo As Vizinhas... Chegou um pessoal do Zorra (Zorra Total, programa humorístico da Rede Globo que passa sempre aos sábados, criado em 1999) e foi nos assistir. E me chamou pra trabalhar no espetáculo: “Olha, a fulana de tal, atriz tal, do Zorra, veio assistir!”. Isso em 2007... 2007? Foi, 2007. “Cara, ela gostou muito de você e quer que você entre no espetáculo dela. Só que você tem que morar aqui no Rio”. Eu disse: “Ah, (bate as mãos) não tem como, não faz parte dos meus planos”. Ou seja, eu abri mão de uma coisa porque eu não deixaria o Teatro da Praia, eu não deixaria os meus projetos aqui pra ir no Rio de Janeiro. Não. Não mesmo (bate as mãos, assertivo). Eu me sacrifiquei...? Não, não me sacrifiquei. Carolina – Você já chegou a abrir mão de alguma pessoa, de alguém, por causa do teatro? Carri – Já. Já porque as pessoas precisaram cobrar: “Ou eu ou o teatro”. Ah, há! (ele ri e todos riem). “Não faça isso, não! Não pergunte... não faça isso, não” (ainda em tom de riso).
Mikaela –Você falou que recusou esse trabalho lá no Rio de Janeiro e comentou com a gente na pré-entrevista o seu gosto da terra, quando você morava em Pacajus, essa coisa sertaneja, essa coisa de gostar da terra. Você acha que isso influencia até hoje a não aceitar trabalhos fora... Gostar da terra, de querer ficar na terra? Carri – Eu até aceito trabalho fora, não me interessa morar fora daqui. Isso não me interessa, morar fora daqui. “Ah, nem pra um contrato e tal?” Não, desde que tenha um avião pra me trazer todo final de semana ou toda semana”. “Ai que frescura”. Não, não é, cara! Sabe, eu acho que eu me alimento disso aqui, assim como tem gente que pouco se importa em andar pelo mundo inteiro, (mas isso) não me interessa, não faz parte de mim. Eu gosto dessa terra. Agora, eu já me perguntei muito o porquê também, obviamente. Eu acho que o que me fez compreender que eu sou um ser humano foi sempre me perguntar o porquê das coisas, né? Eu sou um cabra que sempre se pergunta por quê. Apesar de eu ter nunca ter feito terapia, o porquê sempre foi muito forte pra mim. E eu pergunto: “Ah, por que você quer isso? Por que você quer assim? Por que você age dessa forma?”. Então, por que eu não quero sair daqui? Primeiro, porque eu sou apaixonado por isso aqui. Eu acho que eu me alimento dessa terra. O sertão é uma referência muito forte pra mim mesmo. Eu não vivi a vida inteira no sertão, mas eu sei que a minha raiz é sertaneja. Não tem como negar a beleza que o sertão tem. Nega quem é burro... Vixe, eu exagerei agora, né? Peguei pesado... Mas é porque tem gente... Eu vejo uma meninada nova, cheia de empáfia, cheia disso tudo... Mal sabe que o menor, o pequenininho... A beleza tá nisso tudo. Né, a essência tá
As pré-entrevistas foram realizadas pelo equipamento da Rádio Universitária FM, com o apoio do professor e diretor Nonato Lima.
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em você ter piso, em você ter chão, em você ter terra, sabe? E eu vim disso e eu sinto isso. Eu tenho como referência de força a própria natureza. Diego – Carri, como é receber o público no Teatro da Praia, que é a sua casa? Carri – É como se estivessem entrando na minha casa (risos), não tem como. Assim, eu moro aqui, eu moro ali atrás (do palco). É a minha casa. Interessante, já entrei na porrada de teatro neste Brasil todo, nem faço conta de quantos teatros eu já entrei. Em teatros gigantescos, até teatrinhos capengas mesmo. E eu sempre me senti na minha casa. Aí vai a minha visão Socialista... mas o que é meu mesmo? O que é meu? Isso aqui é alugado. Eu não tenho isso aqui como uma posse. Minha visão socialista não me deixa ter posse das coisas, me apossar das coisas. E isso é bom, sabia? Porque facilita a criação dos personagens. “Como assim, o que é que tem a ver?” Quando eu termino um trabalho, o personagem volta pro lugar dele. E ele não me interfere, não me modifica, não. Bruna – Nenhum personagem te modificou? Carri – Não, não, assim... Fica, sabe? Não existe aquela: “Ah, me mudou, o personagem me mudou”; não, ele me educou. Se modificar, é uma coisa tão compassada, não existe nenhuma ruptura, (do tipo) o personagem provocou uma ruptura: eu era assim e fiquei assim, entendeu? Não. Eu acho que os personagens me educam. Paulo Renato – Um personagem de drama talvez te provocasse isso? Carri – Eu já fiz alguns personagens de drama, por exemplo, eu terminei o meu curso (Curso de Artes Dramáticas da Universidade Federal do Ceará) com o personagem que era o Valmont... Quem assistiu “Ligações Perigosas”? (Filme norte-americano de 1988, dirigido por Stephen Frears, com Glenn Close e John Malkovich, baseado no clássico homônimo de Choderlos de Laclos, de 1782) Lindo, o filme, né? Com Glenn Close... Cena final, ela tirando maquiagem e tudo... Pois é aquela história no teatro, certo? Então, a gente terminou o Curso de Artes Dramáticas com esse aí (Valmont). E eu fiz um personagem... (reflete) Eu ainda acho que não são as personalidades que modificam o ator, eu acho que é a dramaturgia que modifica. A dramaturgia.... Você ter acesso àquela dramaturgia... Como eu acho que é a leitura que faz tudo no mundo, é a leitura que modifica, que transforma, que educa, que faz tudo. Assim como no teatro, eu acho a mesma coisa. Porque, por exemplo, vamos supor que eu pegue um personagem dramático, como... Hamlet (personagem-título de uma das maiores tragédias da obra de William Shakespeare, escrita entre 1599 e 1601). Por mais que eu
incorpore, por mais que eu viva aquele personagem, sem dúvida nenhuma, aquilo que me modificou não é a alma dele, é a minha alma que tá ali no personagem. Não tem como. Mas é a literatura dele. É ler aquilo que ele faz. Caroline – O teatro é um ambiente muito lúdico. E esse lado lúdico é bem visível desde a sua infância, quando você construía os brinquedos (na pré-entrevista, Carri disse à equipe de produção que construía os próprios brinquedos), até hoje você constrói os figurinos... Você acha que é importante, pro ator, saber lidar com esse lado lúdico? Carri – Ai, eu acho que sim. As mídias estão socando na cabeça dessa meninada que dá dinheiro ser famoso. Que você tem de fazer qualquer sacrifício pra ser famoso. E esquecer essa ludicidade. Esquecer essa coisa que é importante pro artista, é importante pro ser humano, cara! Pras sensibilidades humanas... O lúdico é ter essa sensibilidade, possuir essa sensibilidade. Até o final da história de vocês, vocês vão assistir vários espetáculos de teatro e vão ter momentos que vocês vão dizer: “Ai, que peça ruim, não entendi nada, não me passou nada, não me disse nada” Interessante também perguntar os porquês daquela peça, daquele ator, (que) não te disse nada, não se aproximou de você, não te bolinou nesse sentido, no sentido pessoal mesmo, tá entendendo? Então, eu acho que o ator tem de ter isso. Carolina – Como é que foi a descoberta do Teatro da Praia? Carri – Ele aconteceu, não foi descoberto, não, ele foi acontecendo. O Teatro da Praia foi acontecendo. O que aconteceu? Passando aqui pelo Dragão do Mar... (percebendo a troca de nomes) Praia de Iracema! Não tinha nem Dragão do Mar ainda. Praia de Iracema, indo pra um trabalho que (fazia) para o Sesc (Servi-
“Teatro bom é aquele que comunica, (...) que modifica, sim. E a comédia pode muito bem fazer isso. Através do quê? Através de uma boa dramaturgia e de uma ótima interpretação”
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Uma curiosidade sobre Carri Costa: ele tem um filho. Porém, segundo o ator, o rapaz não se interessa pela vida de teatro.
Na década de 90, Carri Costa fez sucesso na TV Cidade, no programa De Olho na Cidade, interpretando o personagem Armando Rede, uma paródia do jornalista Hermano Henning.
Depois de algumas pesquisas no Google, a equipe ficou surpresa ao saber que Carri já havia sido seminarista. É que a entrevistada anterior, Lola Aronovich, queria ser freira. A turma, aos risos, perguntou se agora era um padrão.
ço Social do Comércio) que eu fiz num galpão aqui, um trabalho de cenografia. Eu passei em frente ao galpão, à noite, eu fui pro Coração Materno, que era um espaço maravilhoso que tinha aqui, em frente onde é o Dragão, agora não tem mais, (era) do Nonato Freire (Coração Materno era um espaço cultural dos anos 90). Eu morava num quitinete na (rua) João Cordeiro, ao lado do Colégio Salesiano, uma quitinetezinha, que lá eu fazia todos os cenários e adereços, que eu já estava ganhando grana com isso. E eu passei por esse galpão, me aproximei e vi que tinha uma placa com um telefone apagado, liguei pra dona e ela veio abrir pra eu ver. Ela abriu um (galpão) e eu disse “Ah, legal. Abre esse outro aí, vizinho”. E ela disse “Esse outro aqui também é meu”. “Ah, abre aí, pra eu ver”. Eu fiquei com o segundo. Ela abriu um e depois eu fiquei com o segundo. (bate as mãos) “Não, é esse aqui que eu quero e tal” e já vislumbrei a possibilidade de um espaço cultural. Não um teatro. Espaço
que o Curso de Artes Dramáticas funcionava lá. Nós não tínhamos lugar nessa cidade pra fazer teatro na época. Não tinha. E nem tinha o local do escoamento da criatividade. Das ideias, daquilo que a gente pensava... O Teatro da Praia foi de suma importância pra um determinado período do teatro da nossa cidade. E eu fiz sacrifício pra fazer isso, porque, veja bem, com o Teatro da Praia, no ano seguinte... Mil novecentos e noventa e seis eu inaugurei oficialmente, (em) 1997 eu fiz o Festival de Esquetes, que é o Festival que modificou muito do fazer teatral da nossa cidade e tá há 17 anos acontecendo... Que é isso? O Festival de Esquetes é o local que você pode experimentar o que você quiser na ideia teatral... E assim foi, assim o Bagaceira (Grupo Bagaceira de Teatro, criado em 2000, reconhecido nacionalmente) apresentou os primeiros espetáculos dele. Vários grupos de teatro apresentaram os seus experimentos. Todo ano! E não tinha um local para esse escoamento na cidade de
“Eu acho que eu sou um cabra tão apaixonado, tão fascinado, tão enlouquecido por isso aqui (o teatro), que eu esqueço da minha vida pessoal, da vida afetiva, de tudo”
Carri tem um histórico considerável de engajamento cultural: o ator já fez parte do Conselho Municipal de Cultura e foi um dos criadores do Fórum Estadual de Teatro.
Cultural. Que foi na (rua) Senador Almino, número 227, que ainda é alugado pela gente. E aí... (o) forro (estava) todo desabado, não tinha nada, eu pedi uma carência de alguns meses, ela me deu três, depois me deu mais seis meses, porque tava tudo muito destruído. E todo dinheiro que eu pegava, eu colocava nesse galpão. Todo dinheiro, toda grana, eu colocava nesse galpão, até porque, quando eu me mudei pra lá, eu tive de sair do quitinete, fui morar lá. Tinha um metro de cobertura, uma rede na porta (que) escorava com madeira e dormia ali. Sabe, assim meio ao relento. Mas foram alguns meses ali até reformar telhado e coisa e tal. Eu fazia intervenções, trazia as pessoas pra cá... Só tinha cabaré e estiva nessa época, não tinha Dragão do Mar nem nada. Era (19)92, (19)93... Por aí. E foi um passo pra (em) (19)96 a gente inaugurar oficialmente o Teatro da Praia. Paulo Renato – Você era um jovem ator e já foi pensar logo em um galpão para o seu espaço de arte. Por que você não se contentou com o Theatro José de Alencar ou com outros espaços que já tinham? Carri – Cara, não tinha esse espaço. Pra você entrar no Theatro José de Alencar, era só na fachada e olhe lá. Tinha o Teatro Universitário que a gente... Mas não podia ocupar por-
Fortaleza. O Teatro da Praia é um teatro com todas as suas condições precárias. E esse Festival acontece anualmente. E foi maravilhoso porque era a função dele, entendeu? Ele nunca foi um teatro pro Carri se apresentar. Nunca. Nunca foi o teatro que o pessoal (dizia) “Ah, o teatro do Carri”. Não é. Não tenho essa posse com relação a isso. Não é o teatro do Carri. E muitas vezes eu trabalhei arduamente, montando minhas comédias, porque eu sabia que dava dinheiro e dinheiro pra manter um festival de teatro nessa cidade, onde os grupos se apresentassem. Bárbara – Você também criou a Companhia Cearense de Molecagem. Eu queria saber como surgiu a ideia, a vontade de ter a própria companhia de teatro. Carri – Ninguém me chamava pra Globo. (risos). Até porque os grupos eram muito fechadinhos, todo mundo tinha seus grupos e tal. “Ah, eu vou formar um grupo!” E eu queria trabalhar com comédia, eu gostava de trabalhar com comédia e queria essa compreensão da comédia, queria entender que tipo de comédia eu queria apresentar... Eu também não queria montar os clássicos mundiais da comédia, porque eu queria essa identidade. Eu queria fazer uma leitura do meu tempo, da minha época, do meu jeito, dos meus mugan-
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gos... Eu queria isso. E nada melhor do que eu escrever, também. E assim o fiz. Eu peguei e comecei a escrever aquilo que a gente falava no dia a dia, pensava, brincava... E sempre com uma visão muito crítica. E aí veio a minha postura política, sempre cutucando, sempre criticando, sempre satirizando aquilo que eu achava que deveria ser satirizado. No cultural, no econômico, no político, no social... As minhas comédias são recheadas disso e vão ser sempre recheadas disso. Por mais que ela fale do comportamento, por mais que ela fale de um filme, por mais que ela fale de qualquer coisa. Mikaela – Carri, como era a produção das peças no início do Teatro da Praia? Houve algum incentivo, algum patrocínio? Carri – Não, cara, isso a gente nunca teve de ninguém, de seu ninguém. O que é estranho. Mikaela – Mas como é que então era feita
alguns subterfúgios pra ter recurso. A gente monta espetáculos, apresenta espetáculos, eles acontecem, às vezes, dá muita grana, às vezes, não dá grana nenhuma, e a gente vai se mantendo. Taís – Carri, nas suas apresentações você não costuma chamar o público para o palco, algo comum nos shows de comédia. Por que você decidiu não exigir essa participação do público? Carri – Não... (rindo) nem vou nunca fazer isso. Porque eu não acredito nisso. Eu não acredito nesse tipo de coisa, até porque eu acho que isso é muito mais show de humor do que comédia. A comédia, cara, é diferente... Eu não tenho nada contra os shows de humor, nada contra. Eu sou amigo de quase todos os humoristas da cidade, os vi crescer, os vi enricar, os vi evoluir de uma maneira muito bacana, e eles fizeram por merecer... (enfático) Eles! Minha história é outra. O tipo de comédia
a produção? Como é que vocês começaram? Carri – Cara... Eu sempre trabalhei muito. A minha oficina de arte sempre trabalhou pro Teatro da Praia. Eu trabalho fazendo os bonecos, cenários, adereços, negócio todo, e muito dessa grana vem pras minhas produções. Nem sempre acontece o inverso, nem sempre a grana das produções vem pra minha vida. Eu não quero dar uma de vítima, não, cara, mas não me pergunte o porquê, porque esse porquê nem eu consegui resposta (pensando). Não acontece na nossa cidade, no nosso Estado, o tipo de valorização que seria necessário pra uma coisa tão importante como a Companhia Cearense de Molecagem do Teatro da Praia. A importância dessa companhia, a importância do Teatro da Praia pra cultura do nosso Estado, o não-reconhecimento é de um estranhamento absurdo. Quando eu digo não-reconhecimento eu falo no incentivo mesmo. Eu vou ser superfranco com vocês. Porque, às vezes, o pessoal chega pra mim: “Ah, Carri, monta, faz uma coisa...” – os conselhos, né, do pessoal – “... que insira a criança de rua, tal, tal, tal”. Cara, eu quero fazer teatro sem ter esse compromisso. Eu acredito na arte do fazer teatral, isso é uma coisa que eu acredito. Sem que, de repente, eu tenha de arranjar
que eu faço é uma comédia na qual o público, se ele tiver de interferir, se ele tiver de entrar, ele tem de ser de acordo com a dramaturgia que eu tenho proposta. Um exemplo: Cacos de Família é uma comédia na qual o público, igual ao Casos de Família (programa de televisão exibido no SBT, que traz temas referentes à vida dos convidados, com participação da plateia) da televisão, é perguntado. (imitando a voz do personagem) “Que é que cês têm dizer pra essa cena que tá acontecendo aí?” O que acontece é isso. E nunca eu vou deixar o ator que tá fazendo essa intervenção usar o público pro mal da nossa comédia. Caroline – Carri, assistindo a outras peças e outros shows de humor, alguma vez já aconteceu isso com você, de você ser chamado ao palco e se sentir constrangido? Carri – Não, não, não, não... Porque eu acho que eles me conhecem desde... Antes desse pessoal tá no palco, eles já me conhecem. Eu comecei a trabalhar com o Paulo Diógenes (humorista cearense que é conhecido por viver a personagem Raimundinha. Também atua como vereador pelo partido PSD) quando ele trouxe esses shows de pizzaria pra cá. O que, historicamente, pelas minhas pesquisas, eu não posso identificar como a repre-
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Além disso, Carri candidatou-se a vereador em 2008 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), obtendo 901 votos sem investir dinheiro algum na campanha.
Carri Costa também ganhou o troféu Carlos Câmara, a maior honra do teatro cearense, na XXVI solenidade de entrega dos Destaques do Ano de 2011.
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“Eu tinha uma coisa que talvez fosse um pouco utópica: eu queria ser feliz quando crescesse. Eu queria fazer aquilo que eu quisesse”
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Grandes nomes do teatro cearense iniciaram a carreira no Teatro da Praia, como os atores Ceronha Pontes, Gero Camilo e Silvero Pereira. Silvero, inclusive, já foi entrevistado pela Revista Entrevista.
A equipe de produção teve uma surpresa ao saber que Ari Areia, da mesma turma de jornalismo 2010.2, já conhecia bem o Carri e participou do Festival de Esquetes de Fortaleza com a apresentação da peça Elucubrações e Dois Mil e Desencontros.
sentação da comicidade cearense como um todo. (enfático) Eu não tô falando do Paulo Diógenes, eu tô falando do show. Por exemplo: aquele show de pizzaria no qual se compara o nariz com piroca, ou a roupa com a garrafa de Fanta, esse tipo de coisa é muito mais de boate carioca, do que com comicidade, com bom humor moleque cearense. Diego – Você acha que alguns humoristas deturparam a forma de fazer humor no Ceará? Carri – Não, não sei se chega a deturpar, eles se apropriaram de uma coisa que tem um distanciamento desse humor moleque cearense. A molecagem cearense é de uma perspicácia, é de uma malícia, não é de um escracho. Ela é sutil, cara! Ela é inteligente pra cacete! Mas vocês mesmos já são testemunhas disso. De algumas piadas que alguém diz no ônibus, de algumas piadas que alguém fala na fila de ônibus, tá entendendo... Por exemplo: eu já vi numa fila de banco, uma fila imensa, e dois caixas conversando, uma pessoa na fila: (imitando a voz de uma mulher) “Não, não precisa conversar, não, que eu cheguei aqui faz duas horas, mas não tem (gesticula demonstrando pouca importância e caricaturando a voz), eu tô bem, tô de pé, mas eu tô bem!” Entendeu? Quer dizer, você vê? Ela reclamou sem reclamar. Ela disse: (imitando a voz de uma mulher novamente) “Não, pode conversar, deixa eles conversar(em) que eu tô bem, há três horas esperando aqui na fila, mas eu tô (enfático) ótima!” (risos) Até a entonação que eles colocam é de uma jocosidade fantástica.
Acho que eu falei pra vocês daquela história d’As Vizinhas, né? (dirigindo-se à equipe de produção) Eu coloquei num texto meu que duas mulheres estavam dentro dum ônibus – vou falar pra vocês também (dirigindo-se ao restante da turma) – dentro dum ônibus, aí uma começa a falar mal de uma terceira: (imitando a voz da primeira mulher) “Ah, fulana de tal é muito nojenta, por causa disso, disso, daquilo outro” Eu tava num ônibus, em pé e tal, tal. Todo ônibus, bicho, tu começa a ouvir, prestar atenção na conversa das duas, né? (imitando a voz da segunda mulher) “Não, não fala da outra, cristã, a menina é tão legal...” “Não é legal, não, ela não presta! Não falo com ela, não quero amizade com ela que ela não presta!” “Que é isso, a mulher é uma mulher idosa, ela já é uma senhora, é madura...” Aí a outra: “Madura é um passo pra pôdi!” Cara, “madura é um passo pra pôdi”... (Carri e turma riem juntos) O que é que tem de imoral, de pejorativo nisso? Nada! E é engraçado pra cacete, é cearense. (enfático) Isso é a molecagem, essa (estalando os dedos), essa tirada, essa comparação absurda, a comparação que surpreende. A arte da comédia é a arte da surpresa. Eu falo isso pra eles (os humoristas), falo isso pra vocês, falo pra quem me perguntar: o palavrão é o método mais fácil de se fazer um show de humor. É muito fácil! Existem respostas psicológicas pra isso que eu não quero entrar na questão. Difícil é você pensar e fazer o público pensar. Bruna – Você faria stand-up? Carri – Cara, eu faria, ó! Agora eu faria um stand-up muito louco! Eu até tenho a ideia de fazer um stand-up. Eu tenha a ideia de fazer um stand-up com a Kika, que é uma personagem d’As Vizinhas que eu faço. (imitando a voz de outra pessoa) “Ah, mas não é stand-up!” É stand-up porque eu vou botar: stand-up! E acabou. (risos) A pessoa dizer: “Ah, não, não pode, porque é uma personagem fazendo, tem que ser de cara limpa...” Bicho, eu faço o que eu quiser, e é! Eu tenho vontade de contar a história da Kika, a Kika contando a história dela, falando das coisas bem... Acho que a Kika é o meu alter-ego, e eu acho que funciona muito por aí. Mas, assim, de cara limpa, não sei. (enfático) Eu não sei contar piada. Ponto final. Não sei contar piada. Não sei. Bruna – Carri... não sabe! Carri – Não sei. Bruna – Mas seus personagens são outra coisa. Carri – Aí eles vivem as piadas de uma maneira (enfático) muito legal. Eu sei encenar uma piada, agora contar piada eu sou um desastre, cara! Eu já tentei contar, não tem um pingo de graça. (rindo) Não sei, não sei mesmo. Carolina – No seu site do Teatro da Praia, você disse que quer um teatro que modifique
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os pensamentos das pessoas, “que abrace, que seja lúdico, gentil e especial”. Como é que a comédia está ligada nesses ideais? Carri – A comédia faz tudo isso. O conceito antecipado de quem não acredita nisso é que é terrível. Assim como o drama faz pensar, a comédia também faz pensar. Eu, nesse tempo todo que eu comecei a fazer comédia, fui pro Teatro Universitário e comecei a trabalhar com comédias a partir daí, de (década de) 1980 pra cá, de 1990 pra cá, aproximadamente. Então nesse tempo todo eu vi que a comédia poderia ter um estudo, poderia ter uma pesquisa, até porque nós somos muito conhecidos como uma terra de comediantes, uma terra do bom humor, da molecagem e tal... Era necessário compreender isso, entender isso, estudar isso e foi isso o que eu fiz, pra poder chegar nisso que você falou: um teatro que modifique o comportamento. O que é que modifica, o que é que faz um drama modificar uma linha de pensamento, mexer você, arrebatar você? É a verdade. É a verdade que é empregada naquele determinado momento. Eu como público... (se) não me arrebata... É até aquela coisa que todo mundo diz: “Ah, aquele ator não me convenceu”. Como, por que que um ator não convence? Porque ele não foi verdadeiro. Porque ele não conseguiu passar nenhuma verdade. Por isso ele não convence. Teatro bom é aquele comunica, que diz, que interfere, que modifica, sim. E a comédia pode muito bem fazer isso. Através do quê? Através de uma boa dramaturgia e de uma ótima interpretação. Qual a forma diferente de arrebatar da comédia pro drama? Acho a comédia mais leve. O drama mexe com a tua emoção, com as tuas lágrimas... Se bem que, quando você ri demais, você chora, né? Não sei se vocês já passaram por essa situação... O riso é uma emoção tão grande quanto o choro, né? E eu já escutei muito isso, durante esses anos todos: “Cara, você não sabe como você me fez bem, como é bom rir disso”. Eu vi muito isso. Aí eu fico pensando: bem, no que aquilo interferiu naquela pessoa pra aquela pessoa falar isso? No que ela modificou... No que o riso modificou aquela pessoa naquele instante? Olha só que interessante, estava em São Paulo em 2011, levamos três espetáculos pra lá, aí eu recebi um e-mail de uma pessoa que assistiu: “Olha, eu primeiro quero agradecer, antes de mais nada, porque vocês foram fantásticos, nunca ri tanto. Meu irmão teve câncer, que passou do estômago pro pulmão, ele teve de fazer várias cirurgias e, desde que começou o tratamento dele, ele não ria. Ele não ria. Simplesmente não ria. E eu trouxe ele pra cá, ele e toda a família” Olha, fico todo arrepiado (e mostra os braços). Ela levou toda a
“Por que eu não quero sair daqui? (...) porque eu sou apaixonado por isso aqui. Eu não vivi a vida inteira no sertão, mas eu sei que a minha raiz é sertaneja “ família. Cara, ela disse que ele ria... Bicho, eu li esse negócio, eu chorei feito um... (não completa) Aí eu: “Essa é a função, é o que teatro pode fazer, é o que teatro pode transformar”. É muito burro você dizer que comédia não faz bem, que comédia é uma arte chula, que comédia é uma arte rasa. Há de se ter muitos cuidados, porque até também tem coisas que não são comédias e não têm nenhuma preocupação com isso. Eu só posso falar daquilo que eu vivo, eu só posso falar daquilo que eu fiz, eu só posso falar daquilo que eu estudei e daquilo que penso. É tanto que, por exemplo, o que eu falar aqui são conceitos meus, aquilo que eu aprendi nesses 30 anos de teatro. Não existe nenhuma verdade absoluta. É a minha verdade, é nisso que eu acredito. Eu não dou oficina de teatro, não sei dar oficina de teatro, eu não quero que as pessoas acreditem piamente naquilo que eu faço, porque aquilo eu vivi, e é o que eu sinto, e eu formalizei, eu formatei como conceito pra mim, pela minha vivência, pela minha experiência, entendeu? Se alguém, em algum determinado momento, achar que existe compatibilidade consigo próprio, (penso) que legal, que maravilha, tome como alguma referência. Mas eu ficar impondo? Não, não... Mikaela – E com relação ao sucesso Tita & Nic, porque você falou sobre o seu exemplo do ônibus, e o Tita & Nic você falou pra gente, na pré-entrevista, que assistiu ao filme no cinema e teve a ideia. Então, explica pra gente, exatamente, como foi toda a construção do espetáculo. Carri – Cara... maktub (significa “estava escrito” em árabe), tava escrito isso aí. (risos) Não tem como. É aquela coisa: eu fui ver o filme, eu sempre fui apaixonado pela história do transatlântico e tal, desde que eu ganhei uma revistinha... (lembrando) E eu fui assistir, pra me emocionar mesmo. Ah! Me emocionei e tal... No final, eu disse: “Valha, isso... é a
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Eduarda Talicy, também da turma de 2010.2, deu ótimas referências do Carri. Ela já havia entrevistado o ator para uma matéria da disciplina de Radiojornalismo I.
Carri Costa recebeu a equipe de produção para a pré-entrevista no Teatro da Praia, em meio ao processo de produção dos espetáculos. A equipe pôde conferir de perto a confecção de figurinos e a realização de ensaios.
A pré-entrevista foi realizada na entrada do Teatro. Atrás de Carri, um belo quadro de uma máscara teatral... O pintor? Carri Costa!
Na pré-entrevista, Carri revelou que, por ser muito hiperativo na infância, aproveitava os dias de chuva para construir cidades inteiras dentro de casa!
“Quando eu termino um trabalho, o personagem volta pro lugar dele. E ele não me interfere, não me modifica” mesma coisa da novela”. (risos) “Não, eu vou assistir de novo, eu vou fazer uma comédia disso aí”. Eu assisti de novo. Quando eu assisti a segunda vez, eu já comecei a ver as cenas que eu colocaria no teatro, aí eu já comecei a escrever também. Já comecei a bolar como é que eu cearensizaria isso tudo. Porque meus espetáculos são (enfático) absurdamente cearenses. Muito. Loucuras de amor, meu Deus do céu! É uma comédia romântica genuinamente cearense. Não tem outra, eles falam da afetividade de uma maneira muito cearense. E o Titanic foi isso. É tanto que eu ria, olhando o povo que olhava pra mim: “Valha, esse homem tá rindo e todo mundo chorando”. (risos) Agora a gente também foi despretensioso, né? Eu escrevi, chamei alguns atores, outros atores que não quiseram vir, chamei a Poliana (Poliana Moraes, atriz que protagonizava os anúncios de televisão da extinta loja de eletrodomésticos Paraíso, em Fortaleza) e outros atores. “Vamo, bora, bora”. A gente já vinha de umas comédias, a gente já tinha feito algumas sátiras: A cachaceira, Sai de Cima em o Baixo de Natal, que era uma sátira ao Sai de Baixo (programa humorístico exibido na Rede Globo de 1996 a 2002)... A cachaceira era uma sátira da novela A Justiceira (série de televisão exibida pela Rede Globo em 1997). A ópera A Ida (ópera de quatro atos que estreou no Cairo em 1871) veio aqui pro Castelão, a gente fez a sátira d´A Vinda... E o que me arrastou pra sátira foi a sátira do Dom Joaquim, que veio reinaugurar o Theatro José de Alencar, o Don Giovanni (ópera de dois atos composta por Wolfgang Mozart, que estreou em 1787) veio pro José de Alencar, e a gente montou Dom Joaquim, uma sátira a ele. Obviamente, eu não dirigi, foram outras pessoas, eu participei como ator e fiquei fascinado pela sátira, esse gênero. E vem o Tita & Nic. O Tita & Nic começou, acho que o primeiro público foram umas 60 pessoas e tal, o segundo já foi... Não cabia mais, teve um dia que a gente fez três sessões, uma atrás da outra, as roupas tudo molhadas, a gente já começava com a roupa molhada. (rindo) E... alguém aqui já assistiu Tita & Nic? Paulo Renato – Já, foi uma das primeiras peças que eu assisti na minha vida. Inclusive,
era até a pergunta que eu ia começar agora: foi uma das primeiras peças que eu assisti na minha vida e ela é encenada até hoje, né? Carri (interrompendo) – É, bicho, eu conheço duas gerações que já assistiram. O pai já assistiu e agora trouxe o filho pra assistir, bem novinho, adolescente. Paulo Renato – Pois é, eu sei que deve ser bom ter uma peça em cartaz há tanto tempo, mas você não sente uma necessidade de renovação, não? Carri – A renovação existe. Praticamente de dois em dois anos eu monto o espetáculo. Ao contrário de muitas pessoas: “Ai, você tem de montar”. Eu vou ser superfranco com vocês: o público pede espetáculo. “Tem espetáculo do Carri?” Pede, entendeu? “Mas você não vai montar um espetáculo novo?” Eu disse: “Calma... tudo tem o seu tempo.” Eu não tenho essa ânsia de ter de montar todo ano
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No final da pré-entrevista, Carri Costa presenteou a equipe de produção com dois DVDs do filme O Auto da Camisinha, que não é um longa nem uma curta-metragem: é um média-metragem.
um espetáculo novo porque o público pede ou então porque eu quero ganhar dinheiro. Eu acho que eu sou uma das poucas companhias aqui que estão sempre apresentando os espetáculos. Porque eu acredito que uma obra de arte é efêmera, lógico, o teatro é uma obra de arte efêmera, mas ele não tem de se acabar. Se está funcionando, deixa acontecer. Por exemplo, em cartaz, eu tenho: Tita & Nic, Loucuras de Amor, As Vizinhas, Cacos de Família, Albergue Brother... Comédia, eu acho que só. São cinco espetáculos que eu estou sempre apresentando, sempre apresentando, sempre apresentando. Tita & Nic está há 17 anos em cartaz, o que é um fenômeno, cara! Um fenômeno! E, infelizmente, o poder público não tem noção do que seja isso. Uma comédia cearense com mais de um milhão de pessoas que assistiram ao espetáculo, com mais de um milhão de apresentações também. Então,
“A molecagem cearense é de uma perspicácia, de uma malícia, ela não é de um escracho. Ela é sutil, cara. Ela é inteligente pra cacete” assim, é uma coisa inédita! Se fosse no Sul e no Sudeste do País, talvez tivesse uma outra conotação, mas pra nossa cultura, nosso meio cultural, por se tratar de ser uma comédia também, que tem alguns preconceitos, então tem essas desconsiderações.
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No material de produção da entrevista acabaram entrando duas matérias do Paulo Renato: uma sobre a exibição do filme O Auto da Camisinha no Festival de Cannes e outra, mais breve, sobre o espetáculo As Vizinhas.
O Auto da Camisinha conta com a presença do humorista já falecido Chico Anysio e também de outro entrevistado da Revista Entrevista: Sérvulo Esmeraldo.
Carolina – O Teatro da Praia já chegou a quase fechar, e você fez uma campanha no Facebook. Como é que foi isso? Carri – Foi legal, cara... Ele quase fechou mesmo, a gente estava atolado em dívida aqui por conta do Ponto de Cultura (projeto sem fins lucrativos que explora linguagens artísticas de forma a garantir o acesso aos meios de formação cultural). A gente virou Ponto de Cultura. O Ponto de Cultura me torou no meio. Porque o Ponto de Cultura, a gente recebe dinheiro do governo do Estado e do governo federal, e (ele) funcionou como escola durante dois anos. Só que todo esse recurso é um recurso fiscalizado. Eu recebo e tenho de prestar conta desse recurso. E nesse recurso eu não posso aplicar nada no local, ou seja, é pra pagar os professores, comprar material didático, pagar a produção, o organograma de aulas, não sei o que e tal, tal, tal, e acabou. Eu não posso tirar nem pra luz, nem pra água, pra nada. E o que acontecia? A gente tinha de manhã, de tarde e à noite. Água, luz, telefone e refletor. A luz, que era 250 (reais), passou pra 2.500 contos. E eu não podia tirar nada do Ponto de Cultura. Então, eu pagava pro Ponto de Cultura funcionar. Aí ele me quebrou. A gente estava numa situação zerada. O Teatro da Praia ficou realmente muito ruim. Eu botei no Face (rede social Facebook). “Ah, porra, vou ver o que é que vai rolar”. Coloquei no Face. Na realidade, uma amiga minha (disse): “Ah, eu vou colocar no jornal”. (Carri) “Coloca, que eu coloco no Face”. Eu coloquei no Face, e foi bom, repercutiu, sabe, repercutiu legal, as pessoas viram que o Teatro da Praia é um teatro que tem uma história, que não pode ser renegado. A gente recebeu um apoio de um empresário daqui, que pediu pra não citar o nome. Um empresário bambamzão daqui. Felipe – Carri, em 2008, você se candidatou a vereador. Como seria o Carri vereador? Carri – Acho que não seria muito diferente
do que é hoje, não, sabe? Só que ele teria um poder a mais, que eu não tenho, que é um poder político. A minha visão política é uma visão de não atrelamento, eu não sou um cabra atrelado, eu não vou ser um cabra atrelado nunca. Não é porque você me deu um apoio que, de repente, você apronta, e eu vou dizer: “Ah, ele me deu um apoio...” Eu lamento, cara. Você nunca mais na vida vai me dar apoio, mas eu vou chiar, porque não tem como. O Carri (vereador) seria isso. Eu acredito em políticas públicas pra cultura que, infelizmente, os nossos parlamentares na Câmara Municipal não pensam. Eles não pensam em políticas públicas pra cultura, enquanto o governo federal sistematizou a cultura de uma maneira muito bacana. O nosso poder público municipal é um fracasso, e o estadual também é terrível. Porque não adianta: eu posso preparar mil projetos, se eu não tiver leis direcionadas... E, às vezes, tem lei, e não é implementada. Porque, por exemplo, tem uma lei que chama – uma lei até que foi proposta pela gente –, que é do Sistema Estadual de Teatro, o SET, ela foi aprovada em 2009 e nunca foi implementada. Acho que eu seria por aí, seria um cabra que ia brigar (enfático) muito... Mas agora eu não quero mais, não. Bruna – Eu queria saber se você está brigando hoje, se está participando de algum movimento de defesa da cultura. Carri – Olha, agora, agora, eu resolvi me distanciar mais. Bruna – Você chegou a se aproximar do MAR (Movimento Arte e Resistência)? Carri – Não. Meu apoio foi indireto mesmo. Não cheguei a me aproximar. É interessante, às vezes, eu tenho de falar para algumas pessoas que a história do teatro não começa quando você começa a fazer teatro. Porque, muitas vezes, as pessoas pensam que é. “Ah, o Teatro Cearense começou a partir...” Não, não começou, cara, deixa de ser burro. (enfático) Isso é
Ainda falando sobre o filme, em dezembro de 2012, O Auto da Camisinha foi exibido para representantes de 140 países pela Organização Mundial de Saúde, na Suíça.
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burrice. Vai estudar! A luta pelas políticas teatrais é muito antiga. Por exemplo, se existem hoje todos os editais, (isso) é fruto de uma luta da minha geração. Não tinha nada, véi, tinha nada, nada, nada, nada! Era política do pires. Os mais conhecidos, os mais famosos chegavam lá, nas secretarias, e conseguiam os recursos. Não existia democratização dos recursos. Isso foi luta da gente. Eu participei nos anos 1990, nos anos 2000, de toda essa luta. Chega um momento que você diz: “Não, pô, deixa a negada...” Porque até chega um momento – interessantíssimo –, chega um momento que as pessoas olham pra você: “Pô, esse cara já quer mandar, já quer fazer tudo”, sabe? Então, quando eu estava oferecendo o Teatro da Praia pra acontecer o Fórum, eu ouvi algumas pessoas: “Não, não vamos fazer, não, porque ele sempre...”. Eu sempre fui um cabra que toma a iniciativa, eu sempre fui um cara muito objetivo, também. Então, veja: quando eu ia pro Fórum, que a gente ia discutir tal coisa, que a negada começava a divagar, eu sempre reclamava: “Pô, vamo voltar pro objetivo disso aqui, senão a gente não sai”. Experiência, macaco velho nessa história. E o pessoal: “Não, o Carri tá sempre...” Deixa quieto. Então, eu preferi dar um deixa, fui nas manifestações da Secretaria da Cultura, mas sempre mantendo meu distanciamento devido. Quando a negada quer, quando o pessoal quer me perguntar alguma coisa eu até comento, mas... Eu confesso a vocês: eu não sou benquisto por algumas pessoas do teatro. Tem pessoas que não me gostam mesmo. Diego – Por quê? Carri – Porque eu sou assim, cara. Eu não mando recado, eu falo, eu brigo, eu tomo iniciativas, eu não fico esperando a coisa acontecer horas e horas, sabe? O edital não me dá dinheiro, eu vendo meus objetos e faço a minha peça, porra! Eu não fico esperando a coisa acontecer. Minha geração não esperou a coi-
sa acontecer. A gente foi, meteu as caras. Eu vou esperar sair...? Boto, boto no edital. Eu já coloquei no edital de manutenção o Teatro da Praia. Muitas vezes. Nunca foi aprovado. Nunca! E aí? Aí eu vou pro Face(book) e boto que o Teatro da Praia tá fechando, aparece um empresário e me dá uma coisa e vai, entendeu? Assim, eu sou um cabra que eu tenho uma personalidade também muito forte. Se é pra brigar, eu brigo. Por exemplo, se é pra chegar pra uma presidente de um Dragão do Mar e dizer: “Olha, você vai sair daqui, e eu vou ser artista a minha vida toda”, eu digo, sem o menor problema, porque assim o fiz, sabe? Mediante uma arrogância...? Isso é arrogância da minha parte? Não! É arrogância de alguém que chega pra mim e fica querendo pormenorizar, pormenorizar não, desprezar o nosso trabalho como artista. Gestor de espaço público passa! Artista não. As pessoas não olham os artistas de uma maneira muito bacana na nossa cidade, o poder público não olha. Não olha! Diego – À equipe de pré-produção, você afirmou ter ficado bem satisfeito com o interesse de pessoas de outros Estados pelo teatro, pelo espetáculo teatral. A que se deve certo desinteresse do público cearense pelo teatro? Carri – O público não. O público cearense adora. Na boa! Eu ainda sou daqueles que dizem assim: o público não vai pr’aquilo que não sabe que está acontecendo. Então, vocês que trabalham com Comunicação (referindo-se à turma): se a mídia cultural da nossa cidade, (se) ela tivesse essa sensibilidade pras artes locais, o público saberia que acontece teatro tal, tal, tal, e iria. Pra tirar sua conclusão: “Ah, não vou nunca mais na minha vida”, “Ah, gostei”, “Ah, vou aqui e acolá”. Mas pra você conseguir uma mídia num jornal é um dilema, cara... Na televisão nem se fala! Não se consegue, cara! Como eu falei essa semana... Até um cabra olhou assim meio atravessado
“Isso é a molecagem, essa tirada, essa comparação absurda, a comparação que surpreende. A arte da comédia é a arte da surpresa” CARRI COSTA | 49
A entrevista oficial também aconteceu no Teatro da Praia, a pedido de Carri. Nesse dia, a turma se distribuiu em dois carros para ir ao local: seis pessoas foram no carro do Diego e as outras quatro dividiram um táxi.
Mikaela, Taís, Isabele e Carolina haviam pedido um táxi e nada de o carro aparecer. Eis que um finalmente parou e as meninas foram logo entrando...
… Mas já havia uma pessoa lá! A sorte é que o passageiro já havia chegado ao seu destino e estava saindo do veículo, e elas, envergonhadas, puderam pegar o táxi.
Bárbara, Felipe, Bruna, Caroline e a fotógrafa Tamara foram no carro do Diego. Depois que o carro saiu, Diego percebeu a preocupação na expressão das meninas que iriam de táxi, indicando que havia algo de errado com o veículo.
“Porque eu sou assim, cara! (...) eu não fico esperando a coisa acontecer horas e horas, sabe? O edital não me dá dinheiro, eu vendo meus objetos e faço a minha peça, porra!” pra mim, mas é um fato, amigo: se você não encarar hoje – diferente da década de 1990, da década de 2000, da década de 1970 – hoje, se você não pegar um produto cultural pra uma cidade e apresentar a esse produto todos os poderes midiáticos e assim utilizá-los, você vai fazer e apresentar aquela obra de arte pra quatro gatos pingados, ou seja, a classe teatral, e algumas pessoas aqui e acolá. Se eu não uso outdoor, se eu não uso anúncio de jornal, se eu não uso rádio, se eu não uso televisão, se eu não uso todos esses meios possíveis e imagináveis – e caros – pra fazer, pra divulgar o meu produto, como o público vai pro meu teatro? Não vai. Já não vai porque tem forró, tem baile, tem não sei o quê. Já não vai por isso. Algo que motive, que tire ele da cadeira, e tire ele pra pagar gasolina, o ônibus pra chegar num teatro e assistir... É difícil! Felipe – Carri, você fez uma participação no filme O Auto da Camisinha. Você tem mais planos para o cinema? Carri – Eu tenho, eu acho que eles é que não têm comigo! (rindo) Eu adoraria fazer muito filme, Ave Maria! Mas todo mundo já colocou: “Carri é um ator cômico”, então, comédia. Eu queria até fazer uma comédia das Loucuras de Amor, porque eu acho que Loucuras de Amor é uma comédia romântica que daria um filme (enfático) fantástico! Caroline – Mas como você se sentiu sendo dirigido, só atuando? Carri – Valha... boa pergunta! A última vez que eu fui dirigido faz muito tempo. Mas eu sou bem dirigível. E acho que é por isso que eu fiz muito comercial de televisão – acho que vocês não assistiram, não – mas eu fiz muito comercial de televisão, sabe? Pão de Açúcar, loja de carro, eletrodoméstico, muito, é que agora eu não me lembro o nome. Porque eu sou muito dirigível, eu não me incomodo de repetir. No cinema, eu sou dirigidíssimo, dirigidississímo! Repito cinquenta vezes sem o menor problema. E melhorando, e melhorando, e melhorando, e melhorando. Eu gosto disso. Eu sou dirigível. Bárbara – Então, Carri, esse filme, O Auto da Camisinha, que você foi protagonista. Ele foi exibido agora no Festival de Cannes, né? Carri – (interrompendo e respondendo de forma convencida) – Aham! (risos)
Bárbara – E você disse que não acredita muito nesse negócio da fama, nisso de ser famoso. Como foi que você encarou essa repercussão internacional? Carri – Bicho, brinquei pra caramba! Não sei se vocês viram no Face, postei umas coisas lá. Rapaz... (rindo) Eu não tenho isso, cara, na boa. Juro a vocês. É uma coisa minha mesmo. Porque eu acho tão natural tudo isso, eu acho tão comum... Tão natural, bicho! É tanto que o pessoal tava lá, a gente foi numa estreia, várias estreias que a gente foi lá no Rio de Janeiro, (imitando a voz do pessoal) “Vamos bater foto”, eu acho tão... Eu não gosto de guardar a foto com o famoso, bater foto com o famoso... Por quê? Não consigo assimilar isso direito. Primeiro de tudo, não se guarda nada! Interessante: guardando muito foi que eu aprendi que tudo vai passar. Todos os documentos que eu guardei, eu tenho todos os meus releases, todos os meus recortes de jornal, desde o começo da minha carreira até hoje. A primeira vez que eu apareci no jornal, eu tenho pilhas e pilhas assim. E parando, e olhando pr´aquilo tudo, eu vi que tudo, um dia, pfff, vai passar. Paulo Renato – Você se sente um pouco no limbo entre aqueles humoristas do stand-up, da pizzaria e aqueles que estão hoje no (Theatro) José de Alencar, que estão hoje fazendo aquele teatro mais formal? Carri – Não, não. No limbo, não. Não, acho que não... (rindo) Não! Eu me sinto... Construindo a minha história. E construindo muito bem construída, sabe? Porque é uma história que não vem de uma porra-louquice, de uma fantasia. Muito pelo contrário, eu venho de uma terra, de um piso, de um chão. Eu sei de onde vim, sou apaixonado por onde vim, sei onde estou e seja o que Deus quiser pra onde eu vá. Felipe – Você tem algum arrependimento? Carri – Não! De jeito nenhum. Com relação à cultura, à arte, ao teatro, alguma coisa assim? Felipe – À vida. Carri – Não, deixa eu ver... É muita coisa, bicho! (risos) Quarenta e sete anos, eu voltar e tititi... Se eu me arrependi já de alguma coisa? Não, acredita? Eu acho que não, nunca me arrependi, não. Não que eu tenha feito tudo bacana, não que eu tenha feito tudo certo.
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Exemplo: eu sempre fui um cara muito ousado. Eu acho que eu sou o cara mais ousado que eu já conheci. Eu não conheci ninguém tão maluco, tão ousado quanto eu. Do tipo o quê? Tita & Nic 2002. (imitando outra pessoa) “Vamos pra São Paulo?” (Carri) “Vamos.” “Vamos fazer interior de São Paulo?” “Bora.” Faz contato com o pessoal e tal, tal, tal... Consegui um exclusivo... Desembestei, eu, dois produtores e sete atores. Interior de São Paulo, um produtor lá de São Paulo fechou umas apresentações, uns teatros, e a gente foi por bilheteria. O público pirava com o espetáculo! Muito bom, sabe? E o produtor disse que tinha conseguido um monte de coisa, e não conseguiu, e a gente teve de pagar uma ruma de coisa. Eu voltei como fui: sem grana. Rodamos, tentamos conseguir apoio daqui, não conseguimos apoio de ninguém pra viajar. “Nunca mais na minha vida eu vou pra esse negócio, viajar, mó loucura”. (Em) 2007, surgiu Brasília. “Vamos pra Brasília?”. “Vamos”. Teatro Nacional (em) 2007 (Teatro Nacional Cláudio Santoro, conjunto arquitetônico realizado por Oscar Niemeyer, destinado exclusivamente às artes). Teatro Nacional. Teatro Nacional, pô, Teatro Nacional, cara! Teatrão! Sala Martins Pena. Sala, carpete, peguei tudo quanto é canto, fizemos Tita & Nic lá, bicho! Mó loucura, casa cheia, bicho! Divulgação do cacete. O espetáculo foi um sucesso. Pagamos todo mundo, todo mundo... Voltei sem a grana, um pouquinho de grana, sabe? “Tem problema não, nunca mais na minha vida vou fazer isso”. (risos) (Em) 2007 fui pro Rio de Janeiro com As Vizinhas. Fizemos dois teatros. Teatros caros, caros que só a porra! Eu chego lá sempre achando que o produtor que me chamou conseguiu tudo, chega lá ele não conseguiu quase nada... (risos) E a gente tendo de pagar uma ruma de coisa. O teatro lota, dá dinheiro, mas eu deixo o dinheiro praticamente todo no local. Eu trago pouca coisa. Tipo assim: se lá deu 50 mil (reais), eu trago três mil... Pra você ter uma ideia. (Em) 2011 fomos (a) São Paulo. Um dos melhores (teatros) lá de São Paulo. Quatro espetáculos: Tita & Nic, As Vizinhas, Cacos de Família e eu ainda estreei um espetáculo, uma comédia de um ator de lá. Mas ficamos (com) quatro (espetáculos), e ficamos sexta, sábado e domingo. Sexta era um espetáculo, sábado
eram dois espetáculos, domingo... A gente, por final de semana, a gente deixava sete mil reais na bilheteria do teatro. Pagando a pauta (aluguel) do teatro, sete mil (reais), né. Você tira por aí. Agora, tudo isso, a gente sempre ficou em hotel legal... Pessoal (dizia): “Não tá entrando dinheiro? Vamos pra um hotel bom!” Ficava no hotel bom, tinha mídia mesmo pesada, pagava mídia... E aquela coisa: é loucura. Eu esperar passar num edital pra poder viajar? Eu esperar ser aprovado num negócio desses pra experimentar outras...? Não. Meto as caras. Paulo Renato – Você acha que tem alguma coisa que o faria desistir? Carri – Não, não tem nada! A morte. (Com) a morte eu desisto de fazer teatro... (risos) Isabele – Mas Carri, você falou agora que estava num processo de construção da sua história. Como você se autoavalia nesse processo de construção? Carri – Olha, eu sou um cabra feliz pra cacete por fazer aquilo que gosta e aquilo que... Eu acho que Deus me deu um talento da porra, uma vocação pra isso, sabe? Eu sou um bom ator, eu sou um ator disciplinado pra cacete, me considero um bom ator e as pessoas gostam de me ver encenar... Então, modéstias à parte, eu sou realista. Não que eu tenha sempre feito sucessos maravilhosos, teve coisa que eu já fiz ruim pra cacete, e aquilo me ensinou pra caramba. Eu sou um cabra realizado, absolutamente realizado, mas que ainda tô construindo as coisas. Diego – Você busca alguma espécie de feedback do público no que diz respeito às apresentações? Você se interessa por saber o que as pessoas acharam? Carri – Se eu me interesso... Cara, eu gosto de saber. (rindo) Eu tenho medo de ir atrás. Eu fico nervoso antes do espetáculo, eu fico nervoso... Agora uma coisa bacana em mim que eu acho é que, pra mim, pode ter uma pessoa na plateia ou duas mil, como eu já fiz: a mesma intensidade acontece. Eu sou intenso do mesmo jeito, cara! Eu não consigo, sabe? Eu já ouvi absurdos de atores: “Ah, só tem 15 pessoas!”. Meu Deus, o menino réi tá começando! “Ai, eu acho um desperdício de talento!” (Carri faz uma expressão de incredulidade e todos riem) Não, não, não, não, não, não, não, de jeito nenhum. Nunca! Nunca! Pra mim, eu acho uma honra tão grande, eu fico
“Gestor de espaço público passa! Artista não. As pessoas não olham os artistas de uma maneira muito bacana na nossa cidade, o poder público não olha. Não olha!” CARRI COSTA | 51
Carol Portiolli resolveu, então, telefonar para a Mikaela a fim de saber qual era o problema. A resposta: o pneu traseiro do carro estava meio seco.
Diego, preocupado com o pneu e com a lotação do carro, ficou desesperado ao ouvir uma sirene: “Gente, acho que é a AMC!” Ao que Caroline retrucou: “ É o SAMU, Diego!”.
Diego até tentou encher o pneu, mas na hora um outro carro passou na sua frente. Indignado, ele quis tirar satisfação, mas, preocupado com o horário da entrevista, resolveu seguir em frente.
Eu gosto das impossibilidades. Por exemplo: o Show do Mickey que a gente fez agora, que foi que eu fiz? Eu assisti várias coisas na internet e tal, e eu disse: “Ah, eu quero fazer alguma coisa assim, assim, assim, assado”. (imitando outra pessoa) “Ah, é muito difícil fazer isso...” (Carri responde e bate as mãos): “Faço.” “Ah, mas isso aí, os atores dançando e interpretando...” “Eu faço”. “Ah, esses bonecos têm de fazer...” (bate as mãos) É desafio. Eu gosto de desafio. Eu gosto quando a coisa me desafia, sabe? E, às vezes, eu boto atores em situação de risco com relação a isso. E eu peço desculpa: “Gente, me desculpe, mas vocês topam?” E, na maioria das vezes, a negada topa. Por exemplo: eu tenho um espetáculo pra montar em duas semanas. “Vocês topam virar a noite aqui, ensaiando, ensaiando, ensaiando, então preocupado com o público, eu fico... Eu saiando, ensaiando... até ficar legal?” “Topo”. sou um cara preocupado com a plateia. Muito A gente monta. preocupado com o estar bem da plateia, com Bruna – Você falou sobre o público que eles gostarem... Sou um cara preocupado gosta de saber... Você faz teatro pra você ou com a plateia. pro público? Isabele – Carri, para responder a minha Carri – Eu faço teatro pra mim e pro públipergunta sobre como você se autoavalia, você co. Pra mim, porque eu só faço aquilo que eu terminou falando: “Eu busco algumas coisas”. gosto, e pro público, porque eu acho que ele O que seria isso? gosta daquilo que eu gosto de fazer. (risos) Carri – Cara... eu sou uma pessoa muito Bárbara – Carri, nos seus espetáculos você criativa. Se você disser assim: o que é que o não só atua, mas também você escreve o roCarri é? O Carri é um cabra criativo. teiro e dirige os atores. Você sente essa necesIsabele – E o que o Carri busca? sidade de ter o controle sobre todo o processo Carri – O Carri busca coisas novas o tem- de criação das suas peças? po inteiro, desafios o tempo inteiro. Eu gosto Carri – Pronto, uma coisa terrível em mim é de desafios. Aquilo que as pessoas dizem: “É isso. Eu assumo. Minha culpa. Minha máxima impossível de fazer”. (enfático) Eu gosto disso. culpa. (pensando) Eu acho que eu, se alguém
“Porque (a minha história) é uma história que não vem de uma porralouquice, de uma fantasia. Muito pelo contrário, eu venho de uma terra, de um piso, de um chão”
Antes do início da entrevista, Paulo Renato e Bruna confessaram que o Teatro da Praia foi o último lugar onde os dois ficaram quando eram namorados.
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chegar pra mim: “Carri, tu deixaria outra pessoa dirigir teu espetáculo?” Deixo... Como até um amigo meu agora pediu... Deixo... Deixo sem problema. Mas, por exemplo, eu gosto de dirigir e gosto de atuar. Eu sou um (enfático) ótimo diretor de ator, eu sou um ótimo diretor de cena, eu sou um cabra preocupado, um ator preocupado com a cena. E eu gosto disso. Eu gosto de dirigir. E assim: “Ah, por que você não monta algo que você...?” Eu já até tentei, gente, mas a negada cobra muito caro... Eu pedi um espetáculo do sul do País e tal, mas o cabra pediu 15 mil reais. Eu não tenho 15 mil reais pra pagar por um texto, cara! Eu prefiro escrever e vou experimentando as minhas coisas. Com 15 mil eu monto um espetáculo. Diego – Carri, você falou muito a respeito de algumas questões financeiras. Você consegue, por exemplo, reservar: esse dinheiro aqui é pro Carri, esse dinheiro aqui é pra investir em teatro. Ou não, é tudo misturado? Carri – (ri da pergunta) Eu tento, cara, mas não dá, véi... Não dá, assim, não dá, não dá. Tem uma coisa estranha nessa história. Porque... Há uma misturada da porra. Eu acho que eu não sou um bom administrador com relação a isso, não, porque, vez por outra, uma coisa engole a outra, sabe? Eu gosto de dinheiro, mas o dinheiro... Ele não me faz, eu faço ele. (bate as mãos) Assim, não é aquela coisa (imitando a voz de um desesperado): “Ahn, eu tenho que ter um relógio, eu tenho que...”. Sabe? Eu não sou um cara muito apegado. Pronto, eu sou um cara muito desapegado, eu não tenho essa coisa... Parece mentira,
“Uma coisa bacana em mim que eu acho é que, pra mim, pode ter uma pessoa na plateia ou duas mil, como eu já fiz: a mesma intensidade acontece”
A entrevista começou mais cedo do que o previsto e aconteceu no palco do Teatro da Praia, sob os refletores e em meio ao cenário montado para a peça As Vizinhas.
negada, (rindo) mas é verdade, assim... Eu me viro nos 30... E isso eu não tô dizendo que é certo, não, isso é errado, sabia? Por exemplo: “Você tem alguma coisa guardada, pra poder no futuro...?” Não, não tenho. Vai ser tudo tão rápido, e é tudo tão rápido que, sei lá, daqui a pouco, pfff, acabou. Eu acho que deve ter algo... Eu tô torcendo pra alguém fazer um Retiro dos Artistas (instituição carioca que acolhe artistas idosos com dificuldades financeiras) aí. (risos) Diego – E o que você espera do futuro, já falando...? Carri – Eu quero morrer no palco, meu! (a gargalhada é geral porque a entrevista estava acontecendo no palco) Não, velho, brincando... Eu quero montar ainda muito espetáculo:
Quem utilizou muito o cenário foi a fotógrafa Tamara Lopes, que aproveitava as portas montadas para circular no palco e obter os melhores ângulos.
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Na metade da entrevista, Ronaldo resolveu fazer uma interrupção e pediu à turma que voltasse a seguir a pauta, que estava sendo desprezada. Ao notar o clima tenso, Carri brincou: “Ande, Tonha!”
Para fazer a transcrição, a equipe de produção penou! É que Carri Costa fala muito rápido, e Bárbara e Mikaela tiveram de ficar voltando a gravação várias vezes para captar a frase.
montar, montar, montar... Meu sonho é montar o meu monólogo. Mas uma coisa que eu ainda tenho medo é um monólogo, eu sozinho no palco. Tenho meu medo, eu não sei se eu vou funcionar direito... Porque eu também, como qualquer um tem suas inseguranças, eu tenho a minha insegurança, minha insegurança é monólogo. Eu tenho um monólogo, chama Boca de Siri... Esse monólogo é um monólogo que eu acho lindo, porque ele vai falar exatamente disso, dos porquês do cearense ser considerado engraçado. Por que o Ceará é berço disso. Então, o Siri, que é esse personagem, ele vai atravessar feito Macunaíma (personagem do escritor Mário de Andrade, representativo do povo brasileiro) – não sei se vocês conhecem o Macunaíma –, vai atravessar a história do Ceará inteiro, como se ele tivesse vivido, pra descobrir o porquê que a gente tem essa veia moleque. Mas eu ainda não consegui montar. Felipe – Você não fez faculdade. Você considera importante a formação acadêmica em teatro? Carri – Qualquer formação acadêmica eu acho importantíssima, cara! Até pra você aprimorar aquilo que você sente. O pessoal (diz): “Ah, eu quero fazer, o que você acha de eu fazer universidade de teatro?” Faça, acho legal, muito legal. Mas eu, pessoalmente, não sinto necessidade, não sentia necessidade, porque nem tinha na minha época... E eu nunca quis ser professor de teatro. Eu não sei ser professor de teatro. Paulo Renato – Você acha que você precisa mais do teatro cearense ou o teatro cearense precisa mais de você? Carri – Ixe! (ênfase arrastada) (risos) Acho que os dois se precisam, né? Eu vou deixar a história responder isso aí, porque o distanciamento é que vai conseguir responder isso, o que foi um pro outro, o que foi o outro pro um. Não consigo agora pensar, definir isso. Eu acho que a gente fez muita coisa e continua fazendo muita coisa pelo teatro cearense. (pensando) Algumas pessoas de teatro, nem todas, ainda se acham muito especiais... Não existe ser especial em contar histórias, encenar histórias. (pensando) Eu acho que o artista tem de ser de uma naturalidade, o artista tem de ser de uma simplicidade, de uma humanidade muito grande, no acolhimento da sua arte, no passar da sua arte pro seu tempo. Por exemplo: não me interessa fazer teatro pros meus pais, me interessa fazer teatro pra minha cidade, pro meu tempo, pra minha época. (Para o) número maior de pessoas assistir. Eu não quero mostrar pras pessoas que eu estudei tal coisa, e se aquela pessoa não entender, é porque ela não tem capacidade de (entender). Não, não me interessa isso. Não
me interessa as arrogâncias, eu não gosto das arrogâncias de alguns intelectuais. Infelizmente, o meio acadêmico meio que (enfático) promove isso. Arrogância, como se o saber, o conhecimento fosse também sinônimo de poder. Pra mim, são penas replicantes aí. Conhecimento, pra mim, não é sinônimo de poder, muito pelo contrário. Eu tenho medo porque, como o ator trabalha muito com a emoção, o artista trabalha muito com as suas sensibilidades, aquele artista que acha que deter o conhecimento... Ah... (rindo) É, aquele artista... Interessante que passa umas coisas aqui na minha cabeça, se tivesse uns balõezinhos aqui eu tava fodido. (risos) (Aquele artista) que detém esse conhecimento, cara, (esses artistas) são de uma arrogância... Enquanto a coisa é muito mais simples, enquanto o simples é muito mais interessante, pra mim. Eu acredito mais no simples do que no rebuscar de algumas pessoas que não sabem nem comunicar a sua sabedoria, o seu aprendizado. Eu gosto de comunicar, pronto. Eu gosto que as pessoas saiam dos meus espetáculos entendendo aquilo, sentindo aquilo que eu falei, sentindo aquela emoção que eu tentei passar. Então, o que acontece é isso, nas minhas comédias acontece isso. (imitando a voz de outra pessoa) “Ah, Carri, você tem certeza?” Sim, tenho, porque as pessoas chegam até a mim. O público que nunca viu teatro chega até a mim e fala, não são pessoas do teatro. Mikaela – O que seria o Carri sem o Teatro da Praia? Carri – (pensando) O Carri sem o Teatro da Praia... Seria um ator sem teatro. (rindo) Não, eu não sei o que seria o Carri sem o Teatro da Praia... Sabe por que eu não sei? É porque seriam bem mais difíceis as coisas, pra mim. Por exemplo, me apresentar seria mais difícil... Mas se eu não tivesse o Teatro da Praia, eu ia correr atrás de uma outra coisa... Eu acho que o Teatro da Praia não deixaria de acontecer. Ele aconteceria, de uma maneira ou de outra. Não sei. Bruna – Mas e você? Carri – Eu? Bruna – O Teatro da Praia aconteceria. Mas e o Carri? Carri – Ah, aconteceria também... Eu acredito nisso, de repente, as coisas se convergem pra... Aquilo que todo mundo chama de destino, né? Eu acho até que vocês estão aqui, nesse determinado momento, fazendo esse tipo de entrevista, vocês não vão sair como vocês entraram. Eu não saio de uma coisa como eu entro. Eu tenho de me permitir isso, eu tenho de me permitir essa sensibilidade. Então, o Carri... É isso!
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Outra dificuldade na transcrição foi o hábito de Carri interpretar os diálogos que cita. Como reproduzir o tom de voz que ele usava? Como descrever? O resultado está na entrevista.
A transcrição das duas horas de entrevista resultou em 46 páginas! No processo de edição, a equipe de produção conseguiu reduzir o número para 30 páginas.
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SĂŠrvulo Esmeraldo Artista plĂĄstico, escultor, ilustrador e pintor
// Sérvulo Esmeraldo
Um narrador menino, contando danações, encontra no meio da vida um ourives de jóias colossais
Sim, ele é o senhor das formas, das cores e das matemáticas. As obras ficam ao redor do criador, reverenciando o homem que é meio ourives e meio Midas, que transforma tudo o que toca em arte. Já não existe separação nenhuma entre criador e criatura. Ele é um pedaço delas. Esse é o mundo de Sérvulo Esmeraldo, o filho do Crato. “Vamos começar a dança”, convida. Claro, o quanto antes! “Hoje o vento não quis aparecer”, observa. Não, ele não vai aparecer. Hoje a única canção será a voz segura de quem já viveu muitas histórias e o único ator em cena será o olhar atento de quem procura interlocutores empenhados em escutar uma boa narrativa. No corpo onde habita o experiente narrador, mora também o menino danado lá do Crato, no interior do Ceará. “Espero que esse menino não saia de mim”, clama Sérvulo. O garoto abandonar o artista? Impossível! Ele revive em cada riso solto e se personifica em cada gesto leve, desses risos e gestos que tocam a poesia em um abraço forte! O menino Sérvulo foi crescendo e as danações foram aumentando. Hoje elas se espalham por todo o mundo e são carinhosamente chamadas de “obras de arte”. No fundo, elas são os brinquedos do menino arteiro e apaixonado, que usa a Chapada do Araripe como musa das inspirações dele. Ela, serena e envolvente, podia ser cenário, mas é humanizada pelo enfeitiçado Sérvulo e vira atriz principal. O menino do Crato vivia acompanhado de livros, foi a herança que o bisavô deixou. Mergulhava no mundo povoado por libertinos e por comunistas. Mas, calma, “os livros não eram indecentes, só não eram inocentes”. Isso bastou para chamar a atenção dos obtusos professores da tradicional escola do interior, sem mencionar o fato de o menino ter virado tema do sermão da missa dominical. Tinha um padre no meio do caminho, no meio do caminho tinha um padre. E ele que-
ria proibir o garoto de pensar, logo Sérvulo, o dono das retinas tão acesas e dos pensamentos tão adiante. O Sérvulo, já homem feito, dá lugar a um artista que se despe das vaidades e se cobre com a virtude que mais transborda no viver dele, a humildade. Quando se lembra dos primeiros passos no bailante mundo das artes plásticas, logo esclarece “Chamar o que eu fazia de artístico é exagero”. Assim como são as criaturas, é o criador. Elas são simples. Ele é objetivo. E o que esperar do tão simples Sérvulo? Não espere que ele fale de inspiração e invoque Atenas, deusa das artes. O que ele faz de fato é uma leitura do que está ao redor, disso Sérvulo tira uma lição, que é lembrada na hora de trazer mais arte para esse mundo. O toque de Midas acontece e, então, vemos uma obra de arte colossal, um brinquedo novo do menino do Crato. São muitos artistas dentro de um só. Sérvulo sabe conviver muito bem com todos eles. Oferece espaço para o escultor, o ilustrador, o pintor e até para o jornalista. Até um Sérvulo coreógrafo aparece para banhar este mundo com poesia. Ele ensaia as peças que vão bailar ao simples toque, deixando-se excitar. Ainda tem o Sérvulo meio artista e meio habitante do mundo fantasioso. Ele começa laborando nos sonhos e depois traz o ofício para o mundo real. No final, é tudo poesia onírica mesmo! Com os olhos iluminados e a voz que não disfarça a gratidão de quem está feliz por ter sido ouvido, o menino do Crato fala, acompanhado de um sorriso frouxo, diz: “Nunca fui interrogado tão bem”. O grande narrador, o talentoso comunicador, que conversa com o mundo o tempo todo por meio de retas, de ângulos e dos pretos nos brancos. O artista que nunca é finitude, é perenidade, que sempre será o homem realizando, não o ser realizado!
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Ficha Técnica Equipe de Produção: Bruna Luyza Forte Paulo Renato Abreu Entrevistadores: Bárbara Danthéias Bruna Luyza Forte Carolina Esmeraldo Caroline Portiolli Diego Sombra Felipe Martins Isabele Câmara Mikaela Brasil Paulo Renato Abreu Taís de Andrade Fotografia: Thamires Oliveira Texto de abertura: Isabele Câmara
Entrevista com Sérvulo Esmeraldo, dia 18 de junho de 2013.
Paulo Renato — Sérvulo, em outras entrevistas suas que eu já tive a oportunidade de ler, me chamou atenção o fato de o senhor sempre se reportar a si mesmo como se ainda fosse o mesmo “menino do Crato” (município localizado no extremo-sul cearense, integrante da Região Metropolitana do Cariri). Por que o senhor ainda é o mesmo “menino do Crato”? Sérvulo — Não obstante a minha vontade, eu sou o mesmo. Deve ser coisa da cabeça, né? Que ficou. Crato pra mim é uma coisa muito importante. Embora eu vá pouco, lá eu tenho uma casa e tenho até uma intenção de, agora, fazer lá um instituto. A sede vai ser na casa que foi do meu bisavô, que é uma herança que ele nos deixou. É uma casa muito interessante, de fazenda, tem um estilo bem especial. Paulo Renato — Sérvulo, da sua personalidade, do seu jeito de ser, o que o senhor ainda traz daquele menino do Crato? Sérvulo — Eu acho que não perdi nada (risadas da turma). Bruna — Em uma entrevista (concedida ao jornal “O Povo” em 8 de abril de 2013), li o senhor atribuindo à natureza o começo da sua arte. Quero saber como a paisagem do Crato influenciou e continua influenciando a sua obra. Sérvulo — Eu tava, há poucas horas, vendo uns desenhos daquela época e eu fiz alguns desenhos da região (Crato e outros municípios vizinhos). Tenho aquilo na cabeça, porque era muito simples e porque a Chapada do Araripe (planalto localizado nas divisas do Ceará, Pernambuco e Piauí) é uma coisa longa, tranquila, serena, é uma linha simples que corta, que envolve a nossa vista. E isso não deixa ninguém indiferente, chamava muito minha atenção. Felipe — O senhor disse em entrevista (concedida à TV Assembleia em julho de 2011) que não é o artista que encontra a arte, mas é a arte que encontra o artista. Eu queria saber: quando foi que a arte encontrou o senhor? Sérvulo — Foi cedo. Ela foi esperta, a arte. Ela me encontrou bem cedinho. Eu comecei
brincando, fazendo objetos. Até o ponto que eu me lembro (essa memória) é uma das mais antigas lembranças mais profundas do meu passado. Acho que eu nem andava ainda, mas eu me lembro de estar sentado no chão brincando com as coisas que dão às crianças nessa época e tinha uma mesa onde estavam minha mãe, parentes e amigas conversando e trabalhando com croché. Eu não devia ter nem um ano, mas já conversei antes isso (a lembrança) com minha mãe e ela estava de acordo, mas não compreendia como eu podia ter me lembrado daquilo tudo, das coisas que elas falavam — porque normalmente devia estar ocupado com meus brinquedinhos, mas eu estava atento às conversas delas, que me interessava muito mesmo sem compreender. Diego — À equipe de produção, o senhor afirmou que era um menino bastante danado. Como esse menino foi crescendo? Sérvulo — (Rindo) A danação foi aumentando até eu chegar a fazer coisas de 40 metros de comprimento aqui em Fortaleza... Bruna — A arte é uma forma de expressar, então, esse menino que ainda existe no senhor? Sérvulo — Espero que não saia nunca, que ele (o menino) morra só. Bruna — Falando em danação, vamos falar um pouco sobre a sua expulsão do colégio. Aos 13 anos, o senhor foi expulso do colégio no Crato, ficando um tempo sem estudar. Segundo a entrevista que o senhor concedeu ao jornal O Povo (matéria publicada no caderno Vida & Arte em 2009), isso aconteceu por causa de algumas ideias comunistas... Sérvulo — (...Interrompendo) Comunista é porque, pra eles, (padres que coordenavam o ginásio no Crato), se você não fosse católico praticante, você era comunista. Se você lesse Monteiro Lobato (escritor clássico de literatura infantil, José Bento Monteiro Lobato, 18821948), para eles, você era comunista, mas era um problema da cabeça deles. Hoje deve ter melhorado, mas na época eles eram tão obtusos, mas tão obtusos, que você não acredita. Bruna — O senhor fez críticas ao Integralismo (doutrina política de inspiração tradi-
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O nome de Sérvulo Esmeraldo foi sugerido por Taís de Andrade. Ela leu sobre o artista em reportagem e se encantou com o fato de o trabalho dele estar presente em muitos pontos de Fortaleza, inclusive no Campus do Pici da Universidade Federal do Ceará, onde expõe a peça Quadrados.
A primeira fonte de pesquisa para a equipe de produção foi a entrevista concedida por Sérvulo ao repórter Danilo Castro, na seção Páginas Azuis do jornal O Povo. O título da entrevista é O Menino do Crato.
Sérvulo recebeu os 10 entrevistadores, a fotógrafa e o professor Ronaldo Salgado em casa, que é também o ateliê. O artista plástico se mostrou muito empolgado com a presença de todos.
Sérvulo fez questão de cumprimentar um por um antes da entrevista. Atencioso, o artista perguntava o nome e dava um beijo ou abraço. Ele, inclusive, cumprimentou mais de uma vez alguns dos entrevistadores, muito animado com a quantidade de gente.
“A Chapada do Araripe é uma coisa longa, tranquila, serena, é uma linha simples que corta, que envolve a nossa vista. E isso não deixa ninguém indiferente” cionalista e conservadora), não foi isso? Produziu um programa de rádio para o regime comunista. Como foi que essas ideias comunistas chegaram até o senhor? Sérvulo — Não era comunista não. A democracia me parecia a saída mais importante para o grupo humano, como uma nação deve ser. Paulo Renato — Quem trouxe, afinal, essas ideias para o senhor? Sérvulo — Ah, eu lia. Eu lia muito. (nesse momento, Sérvulo cita novamente o imóvel da família localizado no Crato). Eu herdei nossa casa lá onde eu vivia. Nós vamos fazer um instituto. É uma casa grande, está em muito bom estado, embora tenha três séculos. Agora eu tô vendo com a minha família se a gente consegue fazer dela a sede de um instituto onde vamos criar escola e cursos de cultura ampla, isso é o que eu estou tentando fazer agora. Bárbara — E o que o senhor lia quando era criança? Sérvulo — O que era permitido foi até Monteiro Lobato e eu li toda a obra de Monteiro Lobato. Depois tinha outros escritores que escreviam para as crianças, eu também li até um certo momento, depois aquilo não me interessava mais. Muito rapidamente eu passei para o proibido, para o altamente proibido pela Igreja, até mesmo para adultos. Eu comecei a ler — e é por isso que (os padres) me chamavam de comunista —, comecei a ler os comunistas e também os libertinos (refere-se aos pensadores e literatos europeus que se abstraíam dos princípios morais daquele período, principalmente aqueles relacionados à moral sexual), vamos dizer, como o Fran Martins (escritor cearense e uma das figuras de maior destaque do grupo Clã, agremiação literária da chamada geração de 1945 do Modernismo), que era um escritor nosso pouco conhecido, mas escreveu livros muito inte-
ressantes para época dele. Ele não era bem quisto pela Igreja nem pelos políticos porque era muito aberto, indo além do que permitia a cultura burguesa daquela época. Bárbara — Por que o senhor foi atrás dessas leituras proibidas? Sérvulo — Eu herdei uma coleção da minha família, pelos meus tios-avós. Eles estudaram fora do Brasil e trouxeram muitos livros, então a literatura e a cultura escolar (da família Esmeraldo) era muito o francês. Minha tia era professora de francês — eu comecei a aprender um pouco de francês com ela e depois apareceram uns franceses no Crato (entre eles, o pintor suíço Jean-Pierre Chabloz, um dos grandes tutores do Sérvulo). Eles (os franceses) me ensinaram muito mais do que sabia já antes de eles chegarem. Eles me deram livros de estudo. Paulo Renato — Como foi a mudança para Fortaleza? O senhor foi expulso do colégio... Sérvulo — Primeiro, a minha expulsão do Ginásio do Crato foi pelo fato de eu ter emprestado um livro para um dos alunos meu amigo. E um padre que era professor de História — e deveria ser um homem culto e não era... Quer dizer, ele era culto à maneira dele, só tinha lido os Breviários (nome dado ao livro no qual se encontram textos de oração) ao que me parece — nunca tinha lido o livro de ninguém, pois todo livro pra ele era pecado, claro, pela cabeça dele e dos que o dirigiam. Quando eu emprestei esse livro... (Sérvulo não recorda o título da obra). Eu quero lhe dizer que não era nem um livro indecente. Pri-
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“Eu lia muito. A democracia me parecia a saída mais importante para o grupo humano, como uma nação deve ser”
meiro, porque os livros a que eu tinha acesso eram da minha casa e tinham sido dos meus tios e não havia livros indecentes; havia livros que não eram inocentes, não eram. Falava-se do amor, falava-se dos problemas do amor, como todo livro de romance. Taís — Para o senhor, como foi essa mudança de uma cidade do interior para vir morar na Capital? O senhor sentiu diferença no ritmo da cidade? Como foi se adaptar? Sérvulo — Minha avó morava em Fortaleza e eu já tinha vivido, sobretudo quando era criança, até alguns meses em Fortaleza. Ela morava no Benfica (tradicional bairro universitário da capital cearense), (nº) 2133. Esse foi o endereço que me deram para que, se eu me perdesse, dissesse onde eu morava. Eu nunca esqueci... Frequentei Fortaleza quando criança e adolescente muitas vezes, passei férias aqui, de forma que eu era mais ou menos engajado na situação (da cidade). Bruna — Foi mais fácil encontrar pessoas aqui em Fortaleza que compreendessem mais o seu pensamento do que no Crato? Sérvulo — Com certeza! Quando saí do Crato, eu ia passar quatro anos sem poder ir para colégio nenhum, isso era uma coisa arrasante. A minha avó, que se chamava Julieta Brígido Cordeiro, era uma mulher muito culta, sabia muito das coisas e sabia a quem se dirigir. Ela se dirigiu ao Presidente da república, doutor Getúlio Vargas (14º presidente do Brasil. Governou o País em dois períodos, 1930-1945). Mandou um telegrama para ele e o doutor Getúlio Vargas mandou uma respos-
ta me dirigindo ao Secretário de Cultura de Fortaleza, que me recebeu e abriu a porta do único colégio que ele podia abrir — o Liceu Estadual do Ceará (escola pública localizada no bairro Jacarecanga e terceiro colégio mais antigo do Brasil), que era Liceu Federal do Ceará na época. E eu entrei no Liceu, felizmente, porque era não somente um bom colégio, (como também) com um professorado de primeira qualidade. Hoje eu não sei se nós temos, em Fortaleza, gente de tão boa qualidade cultural. Eles eram muito abertos, nunca se discutiu religião... Era uma coisa muito curiosa, pois nos outros colégios falavam sobretudo em religião. Mais do que qualquer ensino, era o ensino religioso (que predominava em outros colégios). Carolina — No Liceu o senhor conseguiu dar continuidade aos seus dotes artísticos, dar vazão à sua criatividade artística? Sérvulo — Olhe... (pausa) Chamar o que eu fazia de artístico é talvez exagerado. Eu desenhava muito, sempre desenhei muito, copiava das revistas e dos livros. Eu copiava figuras, eu me interessava pelo desenho e pela pintura. E mesmo antes (de ingressar no Liceu), eu pedi para fazerem um cavalete e lá na fazenda tinha um marceneiro. Eu dei para ele a figura do que eu queria e ele fez um cavalete de pintor à maneira francesa, que era também (o que se) usava no Brasil e no mundo todo. Então, eu tive um cavalete com a madeira boa e foi meu primeiro cavalete. E eu pintei, fiz muitos quadros. Meus parentes lá, meus pais, ajudaram-me muito a comprar material, essas coisas todas. Estraguei muita coisa e, provavelmente, aprendi alguma coisa. Felipe — Como foi a aceitação dos seus pais quando o senhor começou com a arte? Sérvulo — Foi simples. (Reflete) Meu pai estava me educando para eu seguir a Diplomacia. Quando eu falei que eu não queria estudar Diplomacia, ele não recebeu muito bem. Ele me dizia: “Você faz seus quadros aí chama seus colegas, ‘olha minhas obras’, (você) é pintor”. “Papai, pintor é só pintor, (ele
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Duas semanas antes da entrevista, Bruna Luyza e Paulo Renato passaram uma tarde na casa de Sérvulo e Dodora. Durante pré-entrevista com Dodora, ela contou muitos detalhes do início do relacionamento dos dois e afirmou ter se apaixonado por Sérvulo, por meio das obras, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente.
Carolina Esmeraldo se empolgou ao saber que Sérvulo tinha o mesmo sobrenome que ela, além de também ter origem familiar no Crato. Ele não soube dizer ao certo, mas acredita ter conhecido Marieta Esmeraldo e Saraiva Barreto, avós de Carol.
No início da carreira, Sérvulo se dedicou principalmente à xilogravura, técnica na qual se utiliza a madeira como matriz para a reprodução de imagens. Ele conta ter se inspirado inicialmente na literatura em cordel.
Sérvulo ingressou na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP) em 1947. Na instituição, teve contato com Inimá de Paula, Antonio Bandeira e Aldemir Martins, nomes que fizeram parte do Movimento Modernista da Capital cearense.
não é) outra coisa não.” Ele começou a ver isso, a possibilidade: ou eu seria um péssimo pintor, ou um péssimo diplomata. E ele acabou admitindo, não me falou mais do assunto de Diplomacia. Paulo Renato — E arquiteto? O senhor quis ser? (Em 1951, Sérvulo se mudou para São Paulo para cursar o último ano do colegial. Em seguida, foi aprovado no curso de Arquitetura na Universidade de São Paulo) Sérvulo — Fui pra São Paulo porque eu não queria fazer nem Direito nem Medicina, que era o que tinha em Fortaleza na época; (corrige-se) não era nem Medicina, era Odontologia. Eu não queria fazer nenhuma dessas coisas, eu tinha de ir pra São Paulo, onde tinha uma faculdade de Arquitetura ligada à faculdade de Engenharia. Quando eu cheguei em São Paulo, concluí o terceiro científico (atual ensino médio). Preparei-me pra fazer o vestibular pra faculdade de Arquitetura que estava sendo aberto naquele momento. Eu não iria entrar na primeira turma, pois ela já estava completa, mas iria entrar na segunda turma. Estudei pra fazer concurso na Arquitetura, entrei e não me inscrevi. Deixei aberto o meu lugar, que era um dos últimos, e outra pessoa ocupou. Minha família ficou muito descontente e queria que eu voltasse, fui pra lá e não tinha mais vaga, já estava tudo ocupado. Felipe — Por que o senhor não quis cursar Arquitetura? Sérvulo — Não era o meu canto. O arquiteto começa estudando Engenharia, depois estuda Matemática — que é uma coisa muito interessante. Eu tive de estudar para depois entrar, estudei e isso me serviu muito, me serve até hoje. O pouco que eu aprendi em Matemática, por incrível que pareça, muita coisa eu me esqueci, mas me é útil até hoje. Caroline — Ainda em São Paulo, o senhor trabalhou como ilustrador no Jornal Correio Paulistano. O que isso lhe acrescentou como ser humano? Sérvulo — Bom, eu não tinha outra profissão. Eu já tinha sido jornalista aqui... (Para) bem dizer, nós tínhamos criado um jornal. Era jornalista não profissional, mas amador. A gente frequentava os jornais, frequentava justamente para aprender todas essas coisas. E tinha uma certa vivência com eles. Os jornalistas são, em geral, pessoas muito informadas, multinformadas. Isso, que é muito comum, muito bom, é generoso da parte deles. Cobre todas as áreas, ele sabe tudo. Era muito bom pra uma pessoa como eu que era chato, perguntava muito tudo, eles tinham até medo de mim e eu ia perguntando logo tudo. O que eles respondiam, respondiam. E eu fui aprendendo. Diego — Sérvulo, quando foi que o senhor
teve a consciência de que queria trabalhar com arte? Pensou: “Eu quero ser um artista...” Sérvulo — Eu estava vindo da gravura. Eu tinha feito, já, algumas coisas de gravura. Era coisa de estudante, né? Mas eu aprendi praticamente só, e, com livros que me conseguiram, estudei a xilogravura. Estudei e pratiquei... Eu nunca deixei de ser artista. Aí é o que me salvou. Eu sempre fui artista, sempre. Nunca parei de desenhar, de pintar. Mesmo com condições pouco ricas... Condições tecnicamente pobres. Eu, aqui, entrei no grupo da SCAP (Sociedade Cearense de Artes Plásticas) e lá eles me ensinaram a pintura. Tem até uma figura aqui que é dessa época. Paulo Renato — Pintura figurativa? Sérvulo — É, uma. Está ali. Uma marinha. (aponta para um quadro à direita dele) Bruna — O senhor entrou na SCAP em 1947. Como foi essa experiência? Sérvulo — Bom, eu entrei pra SCAP muito antes. Quer dizer, muito antes não em anos, mas em tempo, porque eu já frequentava. Uns artistas cearenses que gostavam, que eram os que existiam, eu já encontrava com eles e tudo. Bruna — O senhor tinha quantos anos? Sérvulo — Dezesseis anos, mais ou menos. Isabele — Na SCAP, qual foi o seu maior aprendizado? Lidando com todos esses artistas, o senhor sendo mais novo e eles sendo seus professores... Sérvulo — Eu posso dizer que tudo. Eu
“Eu, quando entrava com uma coisa, estudava a base e subtraia o que interessava. Daquilo que eu subtraia, envolvia algo meu. A resultante era um trabalho mais pessoal, ficava mais ligado à minha pessoa, ao meu pensamento”
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aprendi a fazer o quadradinho da pintura, aquele que é o esqueleto, aprendi a fazer. Aprendi a botar a tela, aprendi a tratar a tela e aprendi as primeiras coisas. Tudo tecnicamente perfeito, porque eles eram de formação da forma antiga, muito importante. Eles sabiam e eles me transmitiram isso aí. Depois houve o fato de eu poder ler em francês e tinha alguns livros da minha família e eu trouxe. A gente lia, estudava, batia foto. Tudo isso me fez ser admitido bem largamente na SCAP, porque eu tinha trazido alguma coisa, que eram os livros dos outros, dos meus tios. Mikaela — Como é que foi o caminho até que o senhor tivesse uma exposição individual da sua arte em São Paulo? (Em 1957, o artista realizou exposição individual no Museu de Arte Moderna de São Paulo — MAM/SP, na qual expôs uma coleção de gravuras de natureza geométrica construtiva) Sérvulo — Em São Paulo, eu fui pra fazer vestibular pra Arquitetura, porque era a profissão mais próxima da arte que existia no momento. Existia uma escola de pintura em
São Paulo, mas os artistas que eu conheci me desaconselharam a entrar na escola, porque o começo atrasava e fazia você perder muito tempo: “Você vai aprender muito melhor seguindo a gente no nosso trabalho, a gente vai lhe ensinando, não é escola mas é como se fosse e a gente passa pra você tudo o que nó sabemos. Não sabemos muito, sabemos pouco, mas sabemos o suficiente”. E foi assim que aconteceu, de uma maneira, vamos dizer assim, muito generosa, foi muito generoso da parte deles. Lá (Sérvulo volta a falar da SCAP, nesse momento) se estudava desenhos, desenhos partindo do corpo humano, havia pessoas que vinham posar e a gente desenhava, eu desenhei muito. Estudei muito na prática e, aos poucos, quando era no fim de semana — que era quando eles podiam, nos sábados ou nos domingos — nos íamos pintar. Eu me equipei, comprei o necessário e os acompanhava. Era em grupo, em geral. Eles escolhiam o local e cada um escolhia o seu ângulo e fazia o seu quadro. E, depois, tudo aquilo era mostrado e era submetido, to-
Um dos principais mentores de Sérvulo foi o pintor francês Jean-Pierre Chabloz (1910 - 1984). O fato curioso é que eles não se conheceram na França e, sim, em passagem que Jean-Pierre fez pelo Crato.
Sérvulo viveu em Paris durante 22 anos (os últimos cinco marcados por idas e voltas). Em Paris, estudou litografia na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (Escola Nacional Superior de Belas Artes), inicialmente, por meio de bolsa de estudo.
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A obra de Sérvulo não se divide em fases. O artista plástico produz alternadamente gravuras, obras figurativas, obra geométricas e obras produzidas com energia cinética. Ele mantém também, durante os anos, interesse em instalar obras em lugares públicos.
Ao partir para o rigor geométrico, Sérvulo diz ter encontrado uma forma simples e bela de comunicar. Linha reta, ângulo, preto e branco são elementos recorrentes.
dos eles, a uma análise corretiva. E assim durante uns três anos, pelo menos, eu fiz e vivi essa escola, foi uma escola muito boa, uma das melhores do mundo. Paulo Renato — Em seguida, o senhor foi para França... Sérvulo — (...Interrompendo) Deixa eu falar de São Paulo, porque foi muito importante. Em São Paulo, eu tive contato... Convivendo muito diariamente no bar do Museu de Arte Moderna (MAM)... A gente encontrava toda noite todo o grupo de artistas da arte contemporânea brasileira e paulista, encontrava lá. Quando houve a Bienal de São Paulo, o Brasil todo apareceu. Brasil de artistas plásticos, todo mundo apareceu. Tudo que era profissional ou amador de elevada categoria compareceu. E nós vivemos em conjunto, raramente nós perdíamos uma semana, um sábado ou um domingo sem esse pessoal. Tinha almoço, tinha jantar, tinha tudo. Era um momento tão valioso, tão importante que poderia parecer bagunça, mas não era. Momentos que tinham os jantares, que tinham os bares. Embora fosse jovem, eu me contive na minha posição de adolescente e não me meti na bebida, ia devagar. Felizmente, porque lá era muita bebida. Bebia-se muito, infelizmente.
Paulo Renato — A gente já contou muitas histórias aqui do seu tempo em São Paulo, do seu tempo em Fortaleza, então chegamos na história da vida do senhor no momento no qual o senhor está na França. Vamos reviver um pouquinho aquele momento. Eu li que o senhor ganhou uma bolsa do governo francês. Quando o senhor chegou lá, o que fez o senhor ficar tanto tempo? Foi o casamento? Sérvulo — Não, foi não. (risos da turma) Foi o trabalho, sobretudo. Eu cheguei em Paris, deviam ser quatro horas da tarde, mais ou menos... Eu tinha um amigo cearense estudante que morava lá, num lugar perto do (pausa) Sena (famoso rio que banha Paris e deságua no Oceano Atlântico), de uma das pontes, e eu fui procurá-lo. Nesse tempo, o ônibus de Orly (segundo aeroporto mais importante da capital francesa) levava a gente e nos deixava na frente de um local que era na frente da Assembleia. Não sei por que, mas era lá. Então, cada um de nós desceu com sua bagagem e eu fui procurar o meu amigo que, por acaso, não morava tão longe e ele me recebeu. Era um estudante que estava muito ocupado, trabalhando para uns exames e não podia sair, nem fazer nada comigo, mas me recebeu. Os bares eu já conhecia, aqueles que os intelectuais tinham usado na época,
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As obras cinéticas de Sérvulo compõem a coleção Os Excitáveis, em que objetos movidos por eletricidade eletrostática interagem com as mãos do espectador.
“Muita coisa é escondida e muita coisa não chega facilmente ao mundo. Foi o que nós (artistas) fazíamos, desvendar o que estava acontecendo e que o mundo não sabia” no pós-guerra, que ficaram famosos... Eu já sabia. No domingo a maioria deles estava fechado, porém um deles, o Deux Magots, estava aberto. Andei um pouco na cidade e já no fim da noite fui pro Deux Magots, que estava quase fechando, mas fiquei lá e conheci umas pessoas que estavam lá. Quando fui saindo, vi um grupo falando e tinha um brasileiro falando, veja que coisa curiosa. Uma voz que me foi familiar. Aí eu olhei, deixei eles passarem e segui o grupo. De repente eu reconheci o brasileiro. Paulo Renato — Quem era? Lembra? Sérvulo — Eu deveria me lembrar e lembro, mas tô querendo lembrar do nome dele... (pausa) Antônio Bandeira. (pintor fortalezense renomado internacionalmente por sua influência na arte abstrata. Fez parte do Movimento Modernista em Fortaleza em 1940) Felipe — Como foi que essa sua vivência na França contribuiu para sua produção artís-
tica? Sérvulo — Vou dizer uma coisa: em nada (risos da turma). Em nada. Por mais incrível que pareça, eu já conhecia a França melhor do que eu conheço hoje, de tanto estudar a França. A minha estadia na França foi muito curiosa. Eu cheguei e logo fui para a Escola de Belas Artes (École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, localizada em Paris próxima ao Museu do Louvre) que era muito boa, mas tinha um processo de ensino antiquado, que não me agradava muito, de forma que eu fiquei lá o mínimo possível. Eu não era obrigado — quer dizer, eu deveria, porque era pago pelo governo francês, eu deveria fazer um curso. Então, entrei na Escola de Belas Artes para fazer um curso de gravura. Ora, o curso de gravura da Escola de Belas Artes era muito, digamos, aula. Não se ensinava pequenos detalhes (para) você procurar meter seu bedelho na técnica e, para minha pessoa,
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O poema que inspirou a produção do primeiro Excitável de Sérvulo é “A Anunciação”, de Vinícius de Moraes: “Virgem! filha minha/ De onde vens assim/ Tão suja de terra/ Cheirando a jasmim/ A saia com mancha/ De flor carmesim/ E os brincos da orelha/ Fazendo tlintlin?/ Minha mãe querida/ Venho do jardim/ Onde a olhar o céu/ Fui, adormeci/ Quando despertei/ Cheirava a jasmim/ Que um anjo esfolhava/ Por cima de mim...”
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“Eu nunca deixei de ser artista. Aí é o que me salvou. Eu sempre fui artista, sempre”
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Uma das grandes paixões de Sérvulo são as obras públicas aliadas à arquitetura urbana. Só na capital cearense existem aproximadamente 40, entre elas, a escultura Jangadas, na avenida Beira Mar.
O artista plástico possui obras públicas no Crato em Quixadá, cidades do Interior cearense, expondo também na capital paulista, em Rio Branco (Acre), em Curitiba (Paraná) e em Paris (FR).
isso era impensável. Eu, quando entrava com uma coisa, estudava a base e subtraia o que interessava. Daquilo que eu subtraia, envolvia algo meu. A resultante era um trabalho mais pessoal, ficava mais ligado à minha pessoa, ao meu pensamento. E assim foi feito. Bruna — O senhor conheceu muita gente na França e, aos poucos, o seu estilo de trabalho foi mudando também. Foi na França que o senhor começou a se interessar pela arte cinética (corrente das artes plásticas que elabora formas e efeitos visuais para gerar movimento ou ilusão ótica), não foi isso? Como surgiu o interesse de partir da gravura para a arte cinética? Sérvulo — (pausa) Não é simples de dizer. Eu trabalhei a gravura na minha vida toda, quase. Naquele momento era um momento em que eu estava muito ligado à gravura, praticamente só fazia gravura. Eu decidi que eu ia parar de fazer gravura e ia pintar e desenhar. Eu me instalei com o necessário para ser pintor e gravador e comecei a fazer isso — e também jóias, que eu já tinha feito no Brasil, fiz algumas jóias. Bruna — E qual foi o momento no qual a arte cinética surgiu? Além do seu interesse por Matemática, Física, até começar a trabalhar com energia eletrostática... Sérvulo — É mais complicado. Eu já tinha tido feito experiências com a arte cinética. Eu tinha já feito algumas experiências interessantes que não pareciam com o que estava sendo feito. A maioria das pessoas usava elementos mecânicos, como motores ou outros tipos de utilização, como pesos que se deslocam. Tinha um lugar lá pra se trabalhar —
“Eu não tive a ocasião de ser um revolucionário. Sou um intelectual — e pouco. Nunca peguei em um martelo pra bater em ninguém, nem (em) nenhum objeto, nem em uma casa. Não tive essa ocasião. Nem gostaria de ter tido”
era a eletricidade estática, que era muito importante e a gente usava na nossa juventude pra fazer brincadeiras: cortar papel, passava a mão no papel, botava aqui assim, o papel era absorvido pela mão... E eu me interessei pelo assunto, mas não de brincadeira — pra tirar proveito. E, como o momento não chegava, como eu não era solicitado, aquilo ficou meio de lado. Só que, um dia, eu recebi uma encomenda de fazer ilustração para o livro de quatro artistas, de obras de quatro poetas. Apareceu essa história de ilustrar um livro — eram três ou quatro (poetas), não tenho muita certeza. Esse livro foi publicado na França há muitos anos atrás e eu fiz essas ilustrações. Foi muito curioso esse livro porque as ilustrações, no lugar de ser um desenho, eram um objeto. Você abria e a página daqui (mostra com as mãos o lado esquerdo) puxava uns aramezinhos que estavam na outra página e ela dava um som de música, que eu já tinha organizado. Fazia pãpãpãpã (imita o som musical), aí você abria aquilo e do outro lado tinha um poema. E assim foi feito esse. No outro tinha outra coisa, no outro tinha outra coisa e o outro era um poema do Vinícius de Moraes (poeta e compositor brasileiro, 1913-1980) — que eu não tinha encontrado o que fazer com ele, porque é a história de uma mocinha que a mãe pergunta: “Virgem, filha minha, de onde vens assim/ Com a saia molhada de cor carmesim/ E os... (Sérvulo esquece o trecho do poema)/ Fazendo tlintlin”. Era a menina que tinha namorado e estava voltando do jardim, estava voltando pra casa e dando a desculpa dela pra mãe dela. Eu fiquei com isso na mão e dizia: “Raios, o que que eu faço com uma coisa dessas?”. Aí me surgiu uma ideia: quando a gente utilizava o pente pra passar no cabelo, o pente de material acrílico ficava como um imã — vocês não brincaram com isso? (a turma concorda). Todo mundo brincou, não é? Então eu me lembrei disso... (Recita o poema novamente). Aí ela disse: “Veio um anjo e jogou em cima de mim/ Pétalas douradas de cor carmesim”. Encontrei minha saída. Era cortar uns papeizinhos vermelhos, imprimir o poema, botar aqueles papeizinhos vermelhos em cima do poema, botar uma tampa de acrílico — aí você passava a mão, as pétalas subiam e caiam em cima do poema, como a menina dizia que o anjo jogava sobre ela pétalas de rosa de cor carmesim. Então, eu fabriquei aquelas pétalas de cor carmesim e elas caiam em cima do poema. Eu fiquei muito feliz e fiz o objeto, o objeto foi adorado. Todo mundo gostou muito e esse livro-objeto foi para uma exposição em Cannes (cidade situada no sul da França) e, imediatamente, foi comprado por um americano colecionador de obras de arte, o qual depois sempre comprou coisas minhas. E eu
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Em Paris, Sérvulo casou-se a primeira vez. Ele teve duas filhas, Sabrina e Camila, com a primeira mulher. De volta a Fortaleza, foi pai de Luana, filha do relacionamento dele com Dodora Guimarães.
“Eu acho que a gente não se inspira na natureza. A gente olha e tira uma lição. Você envolve, engole, para usar” fiquei com aquela história da arte cinética na minha cabeça. Um dia, eu disse: “Olha, vou me lançar nessa história”. Então, construí uma caixa de madeira, botei um fundo com fios de algodão e uma tampa de acrílico, aí você passava a mão — sobretudo no clima europeu, que é seco — e elas começavam a dançar. Fiz meu primeiro Excitável (objetos movidos por eletricidade eletrostática que interagem com a mão do espectador como se ganhassem vida). Melhorei, fiz um formato grande e fui mostrar para uma galeria de um marchand (profissional agenciador de obras de arte), que era um milionário suíço jovem, muito inteligente, que ficou olhando e tal e pediu pra eu voltar no dia seguinte. Eu ia levando o meu negócio e ele disse: “Deixe aí” e eu deixei. Quando foi no dia seguinte, ele telefonou marcando pra gente jantar. Tinha uma pessoa com ele que eu já conhecia de nome, sobretudo, que era um crítico de arte e ele tinha consultado esse crítico. Tava todo mundo muito interessado naquele meu invento de utilizar a eletricidade estática que todo mundo possui para fazer objetos e ele já me propôs fazer dois para uma exposição que ele ia fazer na Suíça. Essa exposição foi pra outros países e, assim, esses dois Excitáveis em poucos meses já tinham percorrido uma boa distância. As pessoas — não tantas, mas algumas — já conheciam e eu já fui procurado por interessados em comprar e vendi meus primeiros Excitáveis. Eles não funcionam aqui
porque nosso clima é muito úmido e não permite, mas na Europa você passa a mão e eles se mexem. Bruna — O senhor teve um envolvimento político quando estava na França, não estava ausente do contexto político brasileiro. O senhor se relacionou com o América Latina Não-Oficial (grupo criado por artistas na França em oposição aos regimes militares em países como Brasil, Chile e Argentina) não é isso? Como foi esse nível de relação com o movimento? Sérvulo — Bom, eu fazia parte de um grupo de artistas latino-americanos. Tinha um grupo argentino que se encontrava, um grupo brasileiro que se encontrava; eles não tinham uma linha de conduta organizada... Então, quando os latino-americanos se encontraram, foi num momento muito oportuno. Qualquer momento seria oportuno, não tinha nada de extraordinário, mas aquele era o momento oportuno porque o Brasil estava saindo de uma ditadura e outros países estavam entrando em uma ditadura. Nós pensávamos em poder ser útil, sobretudo a esses países que estavam sendo obrigados a viver sob uma ditadura. Pensamos e fizemos alguns trabalhos que, provavelmente, não foram inúteis. Provavelmente. Nós éramos muitos, de todas as nações. Bruna — Como era esse trabalho que vocês estavam fazendo? Eram exposições? Como era esse apoio direto? Sérvulo — Ah, nós fizemos exposições de
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Sérvulo Esmeraldo e Dorora Guimarães casaram-se em 2012, após mais de 30 anos de união. Com direito a festa, cerimônias religiosa e civil, os dois renovaram votos. A ideia do casamento partiu de Sérvulo, que pediu a mão de Dodora na noite de 31 de dezembro de 2011.
“Ele é muito certeiro, tem um traço muito marcante. Você vê a obra do Sérvulo e reconhece. No convívio ele é assim: simples e objetivo como o trabalho dele. Acho que por isso me apaixonei pela arte dele – ela é como ele”, conta Dodora.
Dodora iria participar da entrevista ao lado do marido. Ela, entretanto, se confundiu com a data e acabou se atrasando e chegando nos últimos cinco minutos de entrevista.
obras de artistas latino-americanos, de todos os países, e tinha uma espécie de relatório — não é relatório, mas, vamos dizer, algumas palavras, um texto que levantava os problemas que eram latino-americanos. Nós não podíamos nos permitir falar dos problemas dos franceses, dos outros europeus, não ficaria bem. Mas nós podíamos levantar e analisar os problemas dos países latino-americanos. E isso nós fizemos com regularidade em reuniões em que se reuniam intelectuais de todos os países, onde os problemas de cada um eram mostrados, analisados e desvendados — porque muita coisa é escondida e muita coisa não chega facilmente ao mundo. Foi o que nós fizemos, era desvendar o que estava acontecendo e o mundo não sabia. Então isso nós fizemos. Paulo Renato — O senhor se considera um homem revolucionário? Sérvulo — Não. Paulo Renato — Mas o senhor foi, durante
esses 84 anos de vida, um homem revolucionário? Sérvulo — (pausa) Eu acho que não tive a ocasião de ser um revolucionário. Sou um intelectual — e pouco. Nunca peguei em um martelo pra bater em ninguém, nem (em) nenhum objeto, nem em uma casa. Não tive essa ocasião. Nem gostaria de ter tido. Diego — Sérvulo, a natureza sempre influenciou o seu fazer artístico. Ao estar distante dessa natureza, principalmente no interior do Ceará, como o senhor se inspirava? Sérvulo — Eu acho que a gente não se inspira, não. A gente olha e tira uma, digamos, tira uma lição. Você envolve, engole, para usar. Um dia, você solicita e ela vem. Quando digo solicita, basta você pensar um pouco atrás, você recebe as informações que você precisa. Até gesto, eu posso lhe dizer que até gestos você não esquece. Diego — Como o quê? Sérvulo — De um pintor pintando. De um
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“Eu falei com as (minhas) três filhas do que elas achavam de a gente (ele e Dodora) casar. Todo mundo aplaudiu. Todo mundo gosta de festa. Nós casamos, pronto”
profissional pintando. Carolina — Sérvulo, quando o senhor voltou para Fortaleza, conheceu a Dodora Guimarães (curadora e consultora de artes e esposa do artista plástico). O relacionamento de vocês aconteceu de forma muito rápida e já decidiram morar juntos rapidamente. Como foi que se deu isso? Sérvulo — Bom, um dia uma pessoa telefona pra minha casa e fala com a minha mãe, disse que era Dodora, que queria falar comigo e deixou o telefone. A minha mãe anotou que a “doutora queria falar com você” (risos da turma). Vi aquela história... “Ela não disse o nome, mamãe?”. “Não, ela só disse doutora”. E fiquei: “Não vou ligar, não sei quem é” — e ficou por isso. Passou talvez um mês e essa doutora ligou pra minha casa e mamãe já vê direitinho que o nome não é “doutora”, é Dodora, e queria falar comigo. Aí eu: “Bom, agora que eu tenho o nome, vou ligar”. Não tinha nada o que fazer e fui ao encontro dela.
Eram mais ou menos umas oito (20 horas) horas, fui lá no lugar onde ela trabalhava. Ela estava saindo e estava com um amigo dela, que hoje é meu amigo também (o fotógrafo Gentil Barreira), e nós conversamos — eu no meu carro e eles na calçada. O amigo dela se despediu e ela entrou no carro, se apresentou e nós (dissemos): “O que vamos fazer? Vamos para um bar”. Aí fomos aqui para o... Bruna — (Interrompendo...) Estoril. (tradicional ponto turístico da Praia de Iracema) Sérvulo — Estoril (surpreso). Você sabia? (risos da turma) Estava lá? (mais risos). Aí fomos para o Estoril, ficamos lá, tomamos um drink, depois fomos para outro lugar, jantamos... A noite já estava um pouco... A minha filha Camila, que morava comigo aqui no (bairro) Aldeota mesmo, perto do Náutico (Clube Náutico Atlético Cearense), ela dormiu e nem se deu conta que o papai não estava dormindo em casa. Foi aí que ela (Dodora) me enrolou. (rindo) Carolina — Mas esse foi o primeiro encontro de vocês? Sérvulo — Foi o primeiro encontro. Paulo Renato — Depois daí vocês não se largaram mais? Sérvulo — Ela não me largou mais. Foi ela. (risos da turma) Bárbara — Vocês casaram no ano passado (2012), não é? Sérvulo — Foi uma ideia minha. Diego — Por que o senhor resolveu se casar, Sérvulo? Sérvulo — Porque a minha avó tinha me pedido pra casar (rindo). Eu disse que casaria, mas pensei que ela ia esquecer e tudo e ela morreu. Um dia, sem nem mais nem porquê... Eu tenho três filhas, né? Uma que é filha dela. Eu falei com as três filhas. Uma mora na França, a outra que é francesa mas mora aqui, e com a filha da Dodora, o que elas achavam de a gente casar. Todo mundo aplaudiu (risos da turma). Todo mundo gosta de festa. Nós
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O professor Ronaldo Salgado acompanhou a entrevista movimentando-se ao redor dos alunos e de Sérvulo. Parte da entrevista, Ronaldo acompanhou sentado ao chão por trás da cadeira de Sérvulo. A equipe de produção considerou esse momento emblemático.
Com uma hora de entrevista, Bruna sugeriu uma pausa na entrevista para que Sérvulo bebesse água. O senhor de 84 anos disse que não precisava, mas sem antes perguntar: “Por quê? você quer?”
Durante a pausa, os 10 alunos se reuniram e tiveram de eliminar alguns conteúdos e algumas perguntas que entrariam durante a última hora de entrevista. Ao final das duas horas, todos os conteúdos que permaneceram na pauta foram abordados.
casamos, pronto. A gente já morava aqui (na casa na qual vivem atualmente). Paulo Renato — Sérvulo, o senhor acha que a essa sua união com a Dodora foi importante pra arte cearense, fortalezense? Sérvulo — Quem sou eu pra ter essa audácia? Pra mim foi (risos da turma). Cearense eu não sei, ainda não sei. Mas vamos saber, o tempo vai dizer. Diego — Sérvulo, pegando esse gancho da arte: como é transitar por tantos lugares, por tantos países, e reconhecer as suas obras? Em Fortaleza, por exemplo, o senhor já tem muitas obras. Em outras cidades brasileiras também. Sérvulo — Quando eu saí do Brasil, eu já tinha obras aqui no Ceará, no Rio, em São Paulo. Já tinha feito duas exposições em São Paulo, uma delas no Museu de Arte Moderna (MAM). Então, eu não saí do Brasil desconhecido, não. Eu já tinha o nome mais ou menos conhecido, já tinha ganho prêmios em São Paulo e, como disse, já estava expondo no MAM. Não era um desconhecido, era um artista que estava fazendo o seu trabalho. Paulo Renato — A gente já falou dos Excitáveis e das suas obras públicas, mas sua
sua obra para o público nas ruas? Sérvulo — Bem, não fui eu. Pela primeira vez na minha vida, eu já tinha feito esculturas mais ou menos grandes — não muito grandes — na Europa. Fizeram uma encomenda para fazer uma escultura urbana que representasse ou lembrasse as obras que estavam sendo feitas, extremamente importantes, de água potável na rua da cidade toda e outras cidades do Estado. Era um obra muito importante e eu deveria fazer uma coisa que marcasse por muito tempo esse acontecimento. Eu, sem nenhuma resposta imediata, fui pra casa pensando que eu nunca... Era uma obra grande — não me disseram o tamanho, mas era uma obra grande. Eu pensei que seria como uma escultura e tal, mas aí nada mais do que o sonho. Interessante, né? Eu sonhei que estava fazendo uma escultura e é essa que tá lá (Monumento ao Saneamento Básico, localizado na Praia do Náutico). Eu sonhei e fiz no meu sonho. Curioso, né? Foi a primeira e única vez que eu resolvi o problema em sonho. Não era tão preciso, mas juntei a ideia do sonho com a realidade da engenharia e fiz um projeto — esse projeto não foi feito imediatamente.
“Quando eu cheguei em Fortaleza, não tinha escultura na rua. (...) Eu trouxe as primeiras esculturas de arte para Fortaleza e não eram da arte tradicional”
Enquanto os alunos conversavam, Sérvulo aproveitou os cinco minutos para trabalhar. Ele sentou-se à mesa na sala de estar da casa e, com um lápis, desenhava fórmulas geométricas em papel. “Vim trabalhar”, explicou.
obra é mais vasta, não é? Entram também as obras geométricas, entre outras tantas. Como foi, nesse tempo todo, percorrer tantos caminhos dentro da arte plástica? Sérvulo — Eu continuo percorrendo-os até hoje. Não tive dificuldade nem estou tendo. Paulo Renato — Nunca foi por fases? O senhor sempre mesclou todos esses modos de fazer arte plástica? Sérvulo — Não. Quer dizer, como trabalho mesmo foi quando comecei a fazer os Excitáveis, foi quando apliquei completamente. Cheguei a utilizar força centrífuga (força de inércia que se manifesta nos corpos em rotação), força natural (força normal; reação que a superfície faz em um corpo que esteja em contato com ela). Eu fiz um objeto que funcionava com água da chuva; o fiz no Crato e fiz depois em São Paulo. Era uma coisa muito interessante. Bárbara — Sérvulo, a sua obra está muito presente na cidade, no espaço urbano. Por que o senhor sente essa vontade de expor a
Eu passei com um engenheiro no local e vi uns tubos bem grandes, tubos de diâmetro de mais de um metro, compridos, metálicos... Passamos lá nesse lugar que era de uma firma baiana que estava construindo em Fortaleza e eu saí do carro. Ele foi fazer as coisas dele, e eu me aproximei daqueles tubos. Olhei pra aquilo lá e achei o material interessante para fazer uma grande escultura. Quando vi aquilo, já encontrei e material e já estava encontrando o que eu queria fazer com aquilo. O engenheiro voltou e eu perguntei: “E esse material?”. Ele: “Ah, isso são umas amostras que vieram da Bahia e nós vamos utilizar pra fazer o nosso trabalho subterrâneo”. Aí eu: “E isso aqui, vai pra onde?”. “São as amostras que eles mandaram”. Tudo bem. Seguimos viagem, me deixaram no meu escritório e, antes de eu descer, perguntei: “Aquele material, a gente poderia usar pra fazer um projeto pra escultura que vocês querem?”. Ele disse: “Pode, mas o que você quer fazer?”. Eu disse: “Bom, eu não posso contar porque ninguém conta
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uma escultura. Eu vou fazer uma maquete e apresentar a vocês.” Ele foi embora, eu voltei naquele lugar, tomei as medidas do material, vi os comprimentos deles e eles tinham lá o material necessário para o meu projeto. Então eu estudei o meu projeto, estudei tecnicamente com o engenheiro as possibilidades de fabricação e apresentei meu projeto, com todos os dados e tudo pronto, não tinha nada pra ser acrescentado... Base, tudo estava direitinho, desenhado. Entreguei tudo a eles. Eles disseram: “O nosso pessoal da engenharia vai vir aqui nesta semana e nós vamos mostrar o seu projeto a eles e vão analisar”. “Bom, tudo bem, é ótimo que eles façam isso porque nós podemos discutir perfeitamente tudo o que estiver errado aí”. E assim aconteceu: os engenheiros vieram, deram o palpite, coisas que eles achavam que deviam fazer eu acrescentei com eles, tudo em comum acordo, meu projeto ficou pronto e foi realizado. Eu fui pra França e voltei pra ver a coisa — a base que eu tinha previsto já estava pronta, a parte que ia receber o peso já estava pronta. Ali (na Praia do Náutico) tem uma obra de engenharia que vocês nem imaginam. O peso daquilo, o peso que ele re-
que eu utilizo como meios já é outra... A linguagem técnica, não é? Isso é até muito bonito. Eu acho muito bonito, mas as pessoas não estão interessadas em saber disso. Paulo Renato — O senhor sente o seu trabalho sendo reconhecido perante as políticas culturais, os incentivos do governo? Sérvulo — Não, eu acho que não. Paulo Renato — O senhor acha que não é reconhecido? Sérvulo — Devo ser porque já me pediram, né? Mas eu acho que é pouco (rindo). Deveriam me pedir mais. Felipe — O senhor se incomoda com isso? Sérvulo — Não... Eu tenho outros clientes de outros lugares. Dá pra viver. Mas aconteceu comigo uma coisa muito curiosa: quando eu cheguei em Fortaleza, não tinha escultura na rua. Tinham aquelas de fulano de tal, mas não eram esculturas de arte, eram outra coisa. Então eu trouxe as primeiras esculturas de arte para Fortaleza e não eram da arte tradicional, que se via normalmente... Bruna — E ainda assim o senhor acha que o seu papel em Fortaleza é modesto? Sérvulo — Acho, um pouco. Poderiam ser mais (obras dele) e não só minhas, de outros
cebe, os impulsos do vento que ele recebe... Vocês não acreditam, é incalculável. Até hoje ela tá lá, nunca aconteceu nada, nunca arranhou. Está lá. Felipe — O senhor passou quase 30 anos na França e depois voltou pra Fortaleza. Qual acredita ser o seu papel como artista perante Fortaleza? Sérvulo — Modesto, modesto. Eu era pouco conhecido... Mikaela — O senhor acha possível comunicar às pessoas usando apenas retas, ângulos, o preto e o branco? Sérvulo — (Rindo). Eu acho que seria impossível não comunicar, precisava ser cego para não compreender que ali tem ângulos e círculos e... Mikaela — (...Interrompendo) Mas comunicar a sua mensagem, o que o senhor quer dizer com aquele trabalho. O senhor acha que é fácil? Sérvulo — Minha mensagem é outra. O
artistas (também). Fortaleza deveria aplicar mais. Diego — O senhor, certamente, deve ter um apego muito grande às suas obras, tendo em vista que é um trabalho muito grande para pensar, para idealizar. Como é deparar com essas obras, em Fortaleza, muitas vezes desgastadas ou pelo descaso, ou pelo passar do tempo? Sérvulo — É a mesma coisa que sinto na França quando chego lá e vejo obras minhas que não estão em um bom estado. Isso acontece em todo lugar do mundo. Agora eu trabalho muito para pedir que elas sejam conservadas. De um certo modo, elas têm sido. Recentemente, elas receberam um tratamento de recuperação, quase todas, que são 40 e tantas que tenho aqui em Fortaleza. Deveria ter mais (obras dele na cidade). Felipe — O senhor tem alguma obra que é a sua preferida? Sérvulo — Acho que ninguém tem uma
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Dodora presenteou a todos com católogos de obras de Sérvulo, reunidas na exposição Luz, em cartaz no Palácio da Abolição. A curadora também condivou todos os presentes para uma visita à mostra individual do artista no Palácio da Abolição, prédio do Governo Estadual.
Certa vez, em carta ao amigo Zaza Sampaio, Sérvulo comentou a importância dos triângulos para obra dele. “Na aparente simplicidade, o triângulo é o ‘dono’ das matemáticas. A mais simples das figuras dinamiza um espaço plástico definido como nenhuma outra forma.”
Além das obras de arte, Sérvulo também produz outras peças: joias. Ele presenteia as filhas com aneis e tiaras e, inclusive, produziu as peças usadas por Dodora no casamento dos dois em 2012.
Ele também foi um grande divulgador da arte brasileira no exterior. Publicou, inclusive, o estudo L’imagirie Populaire au Brésil estabelecendo ponte entre a arte contemporânea e cidades do interior cearense, como Crato.
preferida. Eu pessoalmente não tenho. Os outros eu não sei, não. Felipe — Mas alguma marcou o senhor no processo de produção? Alguma especial? Sérvulo - Talvez, do ponto de vista de trabalho, têm umas que deram muito trabalho, um trabalhão. Outras, menos. Quando passa para um grande formato, elas dão um trabalhão. Diego — Então não há nenhum envolvimento emocional com alguma obra, ou por ela apresentar alguma temática, ou pelo senhor ter tentado colocar ali algum sentimento? Não há um envolvimento maior? Sérvulo — Uma vez que ela está feita é curioso. Quando você olha, é um olhar analítico, e você descobre onde você não foi muito feliz. Tem sempre uma coisa. Mesmo pequena, você descobre. Até anos depois. Você diz: “Olha, aqui só faltava...” Felipe — O senhor já se arrependeu de ter feito alguma delas? Sérvulo — Não, ainda não. Bárbara — Qual é a importância das suas obras para o senhor, o que representam na sua vida? Sérvulo — Olhe, é uma coisa que não é fácil. Primeiro é uma espécie de medo de errar. Sobretudo quando é uma coisa grande, que você sabe que não pode desmanchar. Você tem muito medo. Medo que caia, medo que se estrague, medo que a pintura não seja adequada, que se estrague com o tempo... Pequenos detalhes que são piores do que esse, a ferrugem... Tudo isso são coisas que você passa a vida toda ligado a esses pequenos problemas que existem realmente, que não são invenções suas. É o que tá acontecendo. O que tá acontecendo que é a maresia, ela não para o trabalho dela... Você também não pode esquecer que você tem uma responsabilidade de, no mínimo, entender o que fazer para que essa obra seja resistente o mais possível. Isso é um dos pontos da história que as pessoas desconhecem, mas vai nos seguir a vida toda. Paulo Renato — Qual é a sua relação com a cena atual das artes plásticas cearenses? Sérvulo — Muito boa. Tem bons artistas que estão trabalhando. Eu tenho um bom contato com eles. Isabele — Sérvulo, o senhor não se considera um artista, o senhor se considera um trabalhador (conforme afirmou na pré-entrevista). Por quê? Sérvulo — (Rindo) Os dois... Trabalhador, artista. Acho que o médico, quando ele vai trabalhar, ele pega um bisturi e não diz assim: “Eu sou médico”. Ele já sabe, né? (risos). Comigo acontece a mesma coisa. Eu já sei, aí pronto. Não penso mais nada. Penso mais na engenharia que envolve o trabalho.
Bruna — O senhor se sente um artista realizado? Sérvulo — Não, realizando. Diego — Se não fosse artista, que outra profissão o senhor teria? Sérvulo — (Rindo) Talvez colecionador. Paulo Renato — Por quê? Sérvulo — Não sei. Pra poder ter arte. Pra ver, pra poder pegar. Carolina — Então estaria relacionado com a arte também... Sérvulo — É. Colecionador de arte. Bruna — Sérvulo, a gente percebeu, ao longo dessas duas horas de entrevista, que seu trabalho foi árduo e contínuo e o senhor continua trabalhando muito, produzindo muito. Eu quero saber o que o senhor quer, como artista, contribuir ainda para a cidade de Fortaleza. Sérvulo — Ah, eu queria continuar até não poder mais. Continuar trabalhando em Fortaleza e em outros lugares. Que os outros lugares me ouçam. Bruna — E Fortaleza também. Diego — Ainda mais. Sérvulo — Fortaleza também, ainda mais.
“Você tem muito medo. Medo que caia, medo que se estrague, medo que a pintura não seja adequada, que se estrague com o tempo. (…) Você também não pode esquecer que você tem uma responsabilidade de, no mínimo, entender o que fazer para que essa obra seja resistente o mais possível”
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Ainda quando jovem, Sérvulo também trabalhou temporariamente na Empresa Brasileira de Engenharia (EBE). Lá, nutriu seu interesse pela matemática, o que repercutiu nas obras de arte dele.
Companheirismo foi palavra de ordem nessa publicação. Paulo Renato, membro da equipe de produção, viajou para um intercâmbio na Argentina com Diego Sombra e Isabele Câmara no dia 12 de julho. Para ajudar Bruna Luyza na finalização, Felipe Martins revisou toda a entrevista de Sérvulo Esmeraldo e sugeriu modificações na edição. Quando ela agradeceu o gesto, ele respondeu: “Não precisa agradecer, a revista é nossa”. A equipe de produção apreciou a generosidade.
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MaĂsa Vasconcelos Jornalista e apresentadora de TV
// Maria Maísa Vasconcelos de Sousa
A força da mulher que é senhora da própria vida aliada à doçura da menina menestrel
Ela rouba sorrisos tímidos e gargalhadas abertas, enquanto ilumina o ambiente com uma doçura camuflada em uma fortaleza quase bélica. Ela sabe capturar também lágrimas sinceras de quem a escuta, enquanto narra peripécias do carrasco de todos nós, a vida. O bailar dos lábios trêmulos de nervosismo entregam o desconforto inicial que é, para uma mulher discreta, falar de si mesma. Mas a inquietação dá lugar à confiança, quando a vida de Maria Maísa Vasconcelos de Sousa se descortina na frente dos novos amigos, paradoxalmente, já íntimos. A filha de Itapipoca, município do interior cearense, foi adotada ainda muito cedo por Fortaleza. Mas o viés bucólico do sertão nunca abandonou a menina, que se mostra uma mulher simples, sem muito apreço por rococós nem babados, mas aformoseada com “a chita e acabou-se”. A menina, às vezes, perdida na memória falha da Maísa mulher, aparece para comprovar como já tinha a grandeza dentro de si e a liderança no peito. Sempre. A menina era suserana de terras lúdicas. Um mundo inteiro em um quintal. Os vassalos? Os seis irmãos. “Um laboratório de relacionamento com pessoas tão diferentes”. Quando a menina cresce, a astrologia, ainda que desacreditada por Maísa, não perdoa. A mulher taurina se firma e toma as rédeas da vida, ficando no pelotão da frente na batalha, com uma armadura pesada, que camufla tudo. Até sentimentos. O que vemos hoje é o reflexo repousado em espelho d’água da menina que já era senhora da própria vida desde a infância. Era a criança comunicativa, pequena menestrel, que já mostrava traços da futura jornalista. Uma trovadora de quem a vida rogava autoridade.
Um treino para a menina virar mulher forte. A mulher de pensamentos livres e de pés alados se aventurou pela maternidade ainda jovem. Quando fala dos filhos hoje, a voz é carregada de saudade. No ambiente, a atmosfera de um coração sufocado pelas milhas que separam os abraços entre a mãe e as crias. Ela também foi precoce na hora de vestir o preto do luto. Quando fala sobre isso, é possível ver as imperfeições na armadura de mulher que luta contra as lágrimas que não têm permissão para banhar as faces. A filha de mestre de obras com dona de casa queria mudar o mundo por meio da Arquitetura. Influência da imensa admiração que tem pelo trabalho do pai. Tá vendo aquele edifício, moça? Talvez seja melhor não seguir o rumo deles, o rumo das construções! E a menina seguiu meio o coração e meio o acaso. O destino? A Comunicação. A mulher de “voz microfonável” e fala tão agradável não poderia andar em outro caminho. Ela deu as mãos ao talento, abraçou a experiência e afagou o dom. “Mas já estava determinado, traçado, que era isso que ia acontecer”. Sim, impossível não acreditar nisso. Com a voz firme de quem tem a vida na palma das mãos e com os gestos seguros de quem sabe que já cativou todos, Maísa sugere, com a menina dos olhos brilhando, olhos com cor de infância bem vivida: “A entrevista deveria ter acabado na hora que a chuva começou, para a gente tomar banho de chuva”. Você está certa! Vejo em Maísa a menina que tinha um mundo no quintal e sabia que era a rainha dele. Monarca, ela, naquele dia de conversa ao som de chuva, ganhou outros tantos súditos, encantados com sua postura soberana diante da vida.
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Ficha Técnica Equipe de Produção: Felipe Martins Isabele Câmara Entrevistadores: Bárbara Danthéias Bruna Luyza Forte Carolina Esmeraldo Caroline Portiolli Diego Sombra Felipe Martins Isabele Câmara Mikaela Brasil Paulo Renato Abreu Taís de Andrade Fotografia: Rayanne Lô Texto de abertura: Isabele Câmara
Entrevista com Maísa Vasconcelos, dia 29 de junho de 2013.
Isabele – Maísa, você saiu de Itapipoca (município cearense a 130 quilômetros de Fortaleza) ainda muito cedo, com um ano de idade, mas a simplicidade do interior não saiu da sua vida. Como? Maísa – Eu acho que é porque não dá (pra sair), é quase impossível. Esses dias, inclusive, eu até estava em um café e a frase que veio foi essa: “A gente sai do sertão, mas o sertão não sai da gente”. Por quê? Porque a minha família é do sertão, porque a minha infância foi voltando para o sertão. De fato, eu aprendi as coisas simples, eu vivi as coisas simples e é delas que eu me alimento todo dia. Então, eu vou sempre buscar um pouquinho disso daí, né? Ontem, eu dei uma mexida no armário, porque encontrei uma formiga bem grande (rindo). Quando eu fui olhar, tinha um saco plástico grande cheio de rapadura de todos os tipos. Então, isso está presente na minha vida sempre. Felipe – Como essa proximidade com o interior esteve presente na sua infância? Maísa – Na minha casa. Os meus pais são do interior, da serra. Na verdade, a gente é de Itapipoca e Itapipoca tem tudo. Serra, sertão e mar. Mas eles sempre viveram mais o clima do sertanejo mesmo, isso era presente na casa da gente o tempo inteiro. Dormir de rede, voltar para o interior para tomar banho de bica, pegar água no olho d’água, caçar passarinho de baladeira... Essas coisas todas. Isso foi a minha infância. Isso está presente hoje, nas coisas que eu faço, porque eu gosto da vida simples. Eu não gosto de muita frescura, de muito rebuscado, muito rococó, muito laço, muito babado, não. É coisa simples, direta. A chita e acabou-se. Bruna – Você voltaria a morar em Itapipoca? Maísa – Não. Felipe – Por quê? Maísa – Porque (lá) já se perdeu a coisa de ser um canto para continuar construindo coisas. Meus pais me tiraram de lá tão cedo, então eles mesmos não queriam voltar. Eu acho até que teve um tempo que eles quiseram voltar para lá – não sei nem se eles (ain-
da) voltam. Meu pai vai fazer... Peraí, ele é de 1943 (Maísa para e começa a calcular quantos anos o pai tem)... Bruna – (Interrompe brincando) Somos todos jornalistas; não sabemos fazer conta (risos). Felipe – Setenta anos, eu acho (Maísa bate na mão do Felipe como uma espécie de cumprimento). Maísa – Olha aí, meu pai vai fazer 70 anos agora. É um homem novo. Ele tem a coisa de querer criar bicho, plantar; tem o feijão verde do roçado. Ele tem um sitiozinho. Talvez eles (os pais) queiram voltar. Eu mesma nunca quis (morar lá), não. Nunca morei lá de fato. Eu gosto da vida tranquila, mas quero está perto da cidade. Paulo Renato – E a criança Maísa, como é que era? Maísa – Eu acho que eu sempre fui extrovertida. (Como) Eu disse para a Isabele e para o Felipe, na pré-entrevista, eu não lembro muito das coisas, tenho uma certa dificuldade com a memória. Coisa que me angustia. Eu tenho a impressão que sempre fui assim. Dizem que o estresse acaba levando a gente, queima neurônios, e você vai esquecendo as coisas. Eu sempre fui esquecida (rindo). Em todas as fases da minha vida, fizeram associação comigo com personagens que são esquecidos, que são meio abilolados. A mais recente foi a Dory, do Nemo (Dory é um peixe da raça Blue tang, também conhecida como Cirurgião-Patela. Ela é personagem do Filme da Disney Procurando Nemo. Dory apresenta problemas de memória, esquecendo coisas que acabaram de acontecer – Nesse momento, todos riem). Uma criança pequeninha (disse): “Maísa, eu fui para o cinema e tinha uma personagem tão parecida contigo, é a Dory”. Quando eu fui assistir e vi a Dory, (pensei): “Essa aí é a imagem que fazem de mim?”. Mas algumas coisas (da infância) ficaram marcadas. (O fato de) Desde sempre (eu) ter sido uma pessoa que está mais ou menos trazendo para junto a decisão de levar a diante. “Vamos brincar disso, vamos fazer assim”. E aí já concentra e tenta nortear. Na infância,
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Maísa Vasconcelos nasceu em 25 de abril de 1964 no distrito de Matinhas, em Itapipoca (CE). Com um ano de idade, veio morar em Fortaleza.
Quando surgiu o nome de Maísa Vasconcelos, Felipe e Isabele logo se interessaram para produzir a entrevista. Os dois cresceram vendo a apresentadora na televisão.
Quando o nome de Maísa foi escolhido, a equipe de produção entrou em contato com Rômulo Costa, aluno de Jornalismo da UFC e amigo dela, que repassou o número do celular da apresentadora.
O primeiro contato foi feito por Felipe. Maísa estava se preparando para entrar ao vivo no estúdio quando recebeu a ligação e ficou muito feliz. “Onde eu assino?” – brincou.
era assim. Caroline – Maísa, quando você era criança, a equipe de produção nos informou, que você sempre era líder nas brincadeiras. Como era isso? Maísa – Então, (foi) naturalmente. Eu vou dizer uma coisa de novo: “Eu não lembro que era assim”. Pode ter sido que eu tenha criado uma personagem de mim mesma. Pode ser, eu não sei. Desde que eu me entendo por gente, como se diz, (eu) tinha minimamente essa coisa de atitude mesmo. Eu até brinco, dizendo que é essa coisa do taurino. Eu não sei. Nem acredito nisso. Não sei nem qual é meu ascendente. Dizem que uma das características (dos taurinos) é isso, de ser meio mandão. Eu ouvi de vez em quando: “Mandona”, “Cabeça dura”. Mas essa sou eu e o que eu fui guardando. Caroline – E até hoje você é mandona, líder? Maísa – Sou (risos), mas acho que é bom, isso, né? Digam que “sim”. (todos riem ainda mais). Estão vendo? Tem gente que diz que eu sou meio maluca, porque eu pergunto as coisas e já respondo... Diego – (Interrompendo) Mas apesar de não ter tantas lembranças da infância, o que você sente mais falta desse período? Maísa – Tu acreditas que eu não fico nessa de sentir muita falta, não? De verdade. Não é nada inventado do meu juízo, não. Porque eu acho que não adianta muito você ficar sentindo falta. Por exemplo, as meninas que eu vejo – reparem: já estou chamando de meninas as mulheres que estão chegando nos 30 anos – (dizem:) “Ai, Meu Deus, eu daria tudo para ter 15 anos de novo”. Eu nunca fiquei fazendo esse exercício de querer voltar, sabe? Na verdade, eu sinto falta de a gente ter talvez uma vida mais tranquila, né? O que eu pude ter de brincar na rua de areia, de ter quintal, de tirar fruta do pé, eu já não pude dar para os meus filhos e não posso dar para o meu neto. Talvez eu sinta falta disso, mas não exatamente uma coisa saudosista. Ou é saudosismo? Talvez seja (saudosismo), mas não é uma coisa melancólica, não, sabe? Não sinto falta (pensando:) “Ai, eu queria voltar a minha infância, nos meus 15 anos, 20 anos, na cidadezinha onde eu nasci”. Isabele – Maísa, na conversa que tivemos com o Fábio Vasconcelos (irmão de Maísa), ele nos contou que você teve uma época meio revoltada, na qual você usava roupas com influências punk e hippie. Na mesma época, você chegou até a cortar seus longos cabelos como forma de enfrentar seus pais. De onde você acha que surgiu essa rebeldia? Maísa – Era pelo tempo mesmo. A gente começou a ver as coisas acontecendo. Eu
“Eu ouvi de vez em quando: ‘Mandona’, ‘Cabeça dura’. Mas essa sou eu e o que eu fui guardando” lembro desde cedo que batia o pé e queria fazer valer a minha vontade, o que eu pensava, (era) naturalmente mesmo. Eu não pensava: “Ai, eu vou ser rebelde! Acho tão legal ser rebelde!”. (risos) Eu lembro que a gente apanhava. O papai e a mamãe fazem parte de uma geração que usava da força física para direcionar os filhos para o bem; era no que eles acreditavam. Nós éramos cinco. Imagina controlar (todos)? E eu lembro que era rebelde porque eu respondia, era respondona e, se você faz isso, você já fica visada (brincando). E eu lembro que eu fazia isso mesmo. E não era porque eu achava bacaninha ser rebelde. Depois foi que eu descobri que chamavam isso de (ser) rebelde. Aí veio essa coisa do movimento hippie, que já tinha passado, mas que eu peguei minimamente ainda nas minhas roupas. Eu fazia as minhas roupas, ia para o Centro da Cidade no sábado de manhã. (Uma) Hora dessas eu já tava na rua comprando tecido e querendo fazer as minhas saias e as minhas blusas (brincando). E o cabelo grande... Eu sempre adorei cabelo grande. Olha aqui, estão vendo isso? (Maísa mostra o comprimento dos cabelos). Um calor danado e eu tentando deixar o meu cabelo crescer. Teve uma época que foi a mamãe que cortou meu cabelo. Eu acho que eu tinha perto de dez anos, porque tem uma fotinha 3x4 que eu estou com dez anos de idade e com um cabelo do tamanho do teu (aponta para Caroline). E eu tinha os cabelos bem grandes na cintura, bem cacheados, desses cachos que enrolam assim (mostra com os dedos o formato). Uma vez eu perguntei a ela (mãe) se ela cortou por maldade mesmo (todos riem), por castigo. “Sua cunhãzinha ruim, vou cortar o seu cabelo para você ver quem manda aqui” (brincando). Mas eu acho que era porque tinha piolho na época. Imagina cinco meninos com piolho? Diga aí! Tinha que cortar, minha gente! Eu só não me lembro da resposta dela (mãe). Se bem que ela era capaz de cortar meu cabelo para me dar uma lição. Eu e ela sempre tivemos alguns atritos. (Somos) Duas mulheres fortes. Taís – Maísa, você tem uma família gran-
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O primeiro filho de Maísa, João Gabriel, é formado em Comunicação Social / Jornalismo pela UFC e, inclusive, já participou de uma das edições da Revista Entrevista.
“Eu sempre fui mais afastada, reservada, até em relação a minha família. Uns dizem que isso é esquisitice. Não sei o que é, não” de, de muitos irmãos. Como a convivência com seis irmãos influenciou no que você é hoje? Maísa – Eu acho que foi um bom exercício, um bom laboratório (gargalhando). Um laboratório de relacionamento com pessoas tão diferentes, porque nós somos pessoas bem diferentes. Cada um foi para um lado. Hoje a gente tem um relacionamento até distante, mas é porque cada um tem a sua vida. A gente vive reclamando: “Nossa, a gente podia estar mais perto. A gente podia dividir mais as coisas”. A gente podia estar mais juntos fisicamente até. Nós moramos todos na mesma cidade. Todos. Meu pai, minha mãe e os seis irmãos. E a gente se vê pouco. Acho que tem mais de um mês que eu fui à casa da minha irmã. Quando eu vou na casa da minha mãe e do meu pai, a gente se encontra. Vejo todo mundo no almoço de domingo. Então, meus irmãos, provavelmente, amanhã vão estar lá (a entrevista aconteceu em um sábado pela manhã), já eu não tenho tanta certeza... (Lembrando) Ah, eu vou estar
lá porque o meu filho chegou de férias nessa madrugada. Mas a gente (irmãos e ela) tem um relacionamento muito importante de carinho, amor e respeito. Não (somos) tão próximos, mas temos (esse relacionamento). Sabe aquelas coisas das irmãs que se juntam para discutir e contar as histórias? Eu não tenho muito isso. Eu sempre fui mais afastada, reservada, até em relação a minha família. Uns dizem que isso é esquisitice. Não sei o que é, não. Às vezes, eu acho que é preguiça. Eu gosto de ficar parada, inerte, feito um musgo, que fica preso lá na rocha. Bárbara – Você foi criada em uma família católica. Isso influenciou na pessoa que você é hoje? Maísa – Eu acredito que sim. É uma pergunta meio fácil de responder, porque se eu tivesse sido criada em uma família evangélica, e você tivesse me perguntando, talvez eu tivesse respondido a mesma coisa. Então (não influenciou) porque era católica, mas pelos valores que (meus pais) passavam. Meu pai e minha mãe são católicos, ainda
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Quando a equipe de produção pediu indicações de pessoas para a pré-entrevista, Maísa sugeriu Zé Rosa, fotógrafo e grande amigo, e o irmão Fábio Vasconcelos.
Zé Rosa só estaria disponível em uma terça-feira, dia em que estava marcada a entrevista com Sérvulo Esmeraldo. Dessa forma, a equipe só pôde conversar com Fábio.
A equipe de produção marcou a pré-entrevista com Maísa em um café próximo ao estúdio da Nordestv. Roberto, namorado de Isabele, levou a dupla, que chegou a se perder no caminho.
hoje são praticantes. Eles nunca foram muito rígidos no ritual, mas eram rígidos na mensagem e acho que isso influenciou de verdade. A mensagem cristã do respeito ao outro e de respeitar a família, a coisa da hierarquia. Eu acho que isso influenciou, sim. Felipe – Como é sua relação hoje com a religião? Maísa – O que eu vou responder? Eu não sou praticante de nenhuma religião. Eu sinto que eu absorvi a mensagem de respeito ao outro, de necessidade de entender minimamente o que é compaixão, de levar a diante uma mensagem de paz. Eu acho que isso é a base do cristianismo. Eu não falo nem do catolicismo, mas do cristianismo mesmo. Eu acho que eu absorvi isso, mas não pratico nenhuma religião, não vou a nenhum tipo de ritual religioso, mas me considero uma pessoa de fé. Carolina – Maísa, você ficou grávida muito jovem, aos 19 anos. Como ficou a relação com os seus pais depois desse fato? Maísa – Eu fiquei grávida jovem, mas não era muito jovem. Porque hoje tem meninas com 12 anos engravidando e isso é muito jovem. A minha mãe ficou grávida da minha
irmã mais velha (quando ela era) muito mais jovem que eu, mas, para mim, era muito jovem (quando fiquei grávida) porque eu estava começando a construir coisas que, de fato, eu queria. Foi um período conturbado, mas de muito aprendizado. Conturbado porque os meus pais não esperavam que eu engravidasse adolescente, sem casar. E porque eu fui a primeira em uma parcela enorme da família. Nenhuma das mulheres filhas das minhas tias tinha engravidado adolescente e solteira. Isso foi muito difícil, (porque) eu esperava uma reação muito rígida deles (dos pais). Eu achei que eles não iam aceitar de jeito nenhum. Eu tive medo. Eu era corajosa, mas nessa época eu tive medo. Tanto que eu escondi (a gravidez durante dois meses). Eu tive uma gravidez de vomitar todos os dias. E eu tive de esconder tudo isso durante dois meses. Minha mãe ficou muito arrasada, óbvio. Ela jogou na (minha) cara tudo o que ela podia, descontou tudo. “Como é que pode? Você? Podia ser qualquer uma das suas irmãs, mas você? Você sempre soube de tudo, sempre foi a dona da razão? Você não sabia como engravidava? Você não podia ter sido mais inteligente?” – ela (mãe) me jogou tudo. Eu chorei (por) dias, ela também. Eu achei que eles iam me botar para fora de casa. Não fizeram isso e eu ainda trouxe o namorado para casa (rindo)... Caroline – (Interrompendo) E como foi a reação do seu namorado? Maísa – Nós tomamos um porre juntos. Crianças, não façam isso em casa! (risos). Mas não tinha outra coisa, então “vamos beber”, mas foi exatamente isso que aconteceu. Ele era muito novo. Ele sim era muito jovem, tinha 16 ou 17 anos, era secundarista. Eu estava na universidade. Eu até brinquei com os meninos (na pré-entrevista), dizendo que era como Eduardo e Mônica (Música da banda Legião Urbana, que conta a história de uma casal muito diferente entre si). Um pouco diferente porque eu não falava alemão (risos), mas eu curtia Bauhaus (Uma das principais e importantes expressões do chamado Modernismo no Design e na Arquitetura, surgida na Alemanha, funcionando entre os anos 1919 - 1933) e ele era adolescente, ele era secundarista, mas foi bacana porque a gente viveu um momento muito intenso. A gente estava no movimento estudantil, nas passeatas. Nos pelotões de frente, a gente estava junto. Então, foi lindo isso. Porrada, gás lacrimogêneo, invasão à universidade. Essas coisas a gente viveu juntos. (A gravidez) Foi um susto muito grande, mas ele disse: “Vamos encarar de frente”. Felipe – Maísa, de certa forma essa his-
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tória se repetiu com o seu filho, que foi pai muito jovem. Como você reagiu a isso? Maísa – Foi um susto! Eu não sei se o mesmo (susto) que a minha mãe teve, talvez tenha sido menor, porque eu já tinha tido menino, não era possível que não tivesse aprendido nada. No primeiro momento, eu fiquei chateada. Jogo da velha “chateada” (Maísa faz referência as hashtag, símbolo usado nas redes sociais, #chateada – risos). Eu fiquei pensando: “O que eu fiz de errado?”. (Meu filho) Era só um adolescente... Descobri que ele transava sem camisinha. E eu fiquei muito chateada. “Porra, eu estou fazendo tudo errado. Ele podia estar fazendo outras coisas, mas, se ele quisesse ter filho, que ele tivesse planejado”. Mas não, ele teve filho no susto, que nem eu. Acho que, no primeiro momento, eu fiquei frustrada por não ter conseguido prepará-lo suficientemente, mas depois que eu chorei três dias, e (disse) que ia apoiá-lo em tudo. E comecei a ver: “Não, por que eu vou jogar para mim a responsabilidade de ele ter engravidado uma menina adolescente? Vai ver (foi) porque ele não quis absorver o que eu considerava que era certo para ele. Ele tem de passar por isso. Cada um tem de viver a sua vida”. Estamos ótimos hoje em dia. Paulo Renato – E você gosta de ser avó? Maísa – Adoro! Foi uma das experiências mais incríveis que eu podia ter. Hoje eu estou longe dele, porque os meus filhos moram fora, meu neto mora fora. Hoje eu estou levando minha vida sozinha (rindo)... Diego – (Interrompendo) Você acha que, por ter pulado algumas fases da sua vida, você conseguiu ser uma boa mãe? Maísa – Eu acho que eu sou uma boa mãe. “Conseguiu” não, que eu não parei de ser mãe (risos). Eu digo para eles (os filhos), quando eu tiver velhinha, com 90 anos – olha a pretensão! (brincando) –, e ele com 70, ele vai falar: “Sim, senhora mamãe” (risos). Não, mas não tem esse rigor entre a gente. Mas eu tento ser uma mãe legal. Quando eu engravidei, eu pensei: “Vou fazer tudo diferente”. Que nada! “Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais” e como as nossas mães (Maísa faz referência à música de Belchior, Como os Nossos Pais). Pelo menos, a gente (hoje) pode expressar mais, pode dizer mais, assumir que está errada. Acho que o meu pai e a minha mãe não era permitido a eles assumirem que estavam errados. Hoje eu assumo: “Errei, fiz tudo errado”. Carolina – Maísa, você, quando jovem, queria explorar o mundo, participar de uma aventura. Você acha que ser mãe jovem foi a sua aventura? Maísa – Provavelmente! Talvez isso ti-
vesse até reservado para mim. Uma grande aventura (foi) amar, porque eu me apaixonei pelo pai do meu filho. Foi um amor de adolescência muito forte e eu escolhi isso. Então eu acho que foi, sim. Se entregar a um amor adolescente e viver essa coisa. Fazer algo que eu jamais queria fazer, que era ficar dentro de casa, cuidando de filho. Mas que coisa, né? Eu queria ir para o mundo, ser uma profissional bem sucedida e tal, chamar atenção, talvez com projetos incríveis de urbanismo. Eu entrei na universidade já indo para o Congresso Internacional de Arquitetura e eu queria conhecer os grandes nomes da Arquitetura. Eu queria ter algum status, não por pretensão e vaidade, mas por querer estar fazendo alguma coisa que eu amava. E eu fiz exatamente o oposto, por conta da dualidade mesmo, talvez tenha sido sim (uma aventura). Isabele – Maísa, você perdeu o seu segundo marido de forma muito repentina. Como foi esse momento? Maísa – Foi um absurdo – eu acho “marido” uma palavra muito pesada. Eu não consigo dizer de verdade. Eu convivo com meninas muito jovens, casadas a maioria, e elas dizem: “O meu marido” (rindo). Eu acho uma coisa sublime. Tem a coisa da posse, mas é uma posse compartilhada. Eu acho “marido” uma coisa muito pesada, mas é marido, né? Eu nunca casei oficialmente nem no padre nem no papel. Eu vivi uma união com o pai do meu primeiro filho. Algo que durou em torno de quatro anos. E com o Almiro, com quem eu vivi dez anos, foi uma relação mais intensa, mais duradoura, mais madura. Ele me acolheu quando eu me separei do João José, pai do Gabriel. Pouco tempo depois, acho que seis meses talvez, eu já comecei a namorar com ele (Almiro) e fui para a casa dele, passamos a viver juntos. E ele me acolheu com as minhas incertezas, com a minha separação. Eu não tinha profissão. Estava
“Eu tive uma gravidez de vomitar todos os dias. E eu tive que esconder tudo isso durante dois meses. Minha mãe ficou muito arrasada”
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Chegando ao estúdio, Maísa sugeriu conversar com a equipe de produção lá mesmo. A apresentadora escolheu um local bem agradável, ao lado dos containers da emissora.
Ao ver Maísa Vasconcelos, Felipe e Isabele compartilharam a primeira impressão: a apresentadora foi muito simpática e extremamente acolhedora.
Maísa se mostrou muito gentil e levou a equipe de produção para conhecer toda a Nordestv e os colegas de trabalho dela. “Esses são alunos da ‘Federal’” – dizia.
Durante a pré-entrevista, Maísa contou que tem problemas de memória e dificuldade para lembrar de alguns fatos da infância, o que preocupou a equipe de produção.
querendo me redescobrir. Não queria mais ser arquiteta e não sabia mais o que eu queria ser. Na verdade, foi uma coisa de amadurecimento junto. E ele, simplesmente, se foi em um momento inesperado. Muito jovem, com 36 anos, a gente estava só começando. A gente estava junto há sete anos quando eu engravidei. Foi um susto de novo, mas a gente já tinha atravessado muitas coisas. Quando o nosso filho estava começando a crescer, ele foi. Não teve tempo de dizer tchau. Não sabia o que estava acontecendo. (Almiro teve um ataque cardíaco em 1998). A morte dele... Eu ainda não consigo dizer “morte” com naturalidade, porque a morte é uma coisa absurda de rompimento. O que é a morte? Nunca ninguém tinha me dito exatamente. Eu nunca tinha tido uma experiência de ver alguém tão próximo partindo. E foi traumático, porque, além da morte ser uma coisa traumática – ninguém venha dizer que não é porque não tem argumento que me
com uma pena. Gente! Maluco isso! E o que eu fiz? Vesti uma armadura. Eu sempre me considerei uma pessoa forte, mais forte do que eu deveria ser. Eu vesti isso e fui à luta. Acho que eu não me permiti viver o luto. Talvez eu tenha feito muito mal a mim mesma e aos meus filhos. Era como se eu quisesse dizer: “Não, não foi nada”. Como a queda, que a criança cai e todo mundo fala: “Não, isso não foi nada. Passou”. “Eu sou forte, eu posso superar isso”. Ele morreu em um sábado e, obviamente, eu não fui trabalhar na segunda-feira – só faltava eu ter ido –, mas meus dois filhos foram para a aula. Ninguém faz isso. Eu acho que ninguém devia fazer, mas eu fiz. Quando foi na segunda-feira seguinte, eu comecei a trabalhar. Eu engoli o choro e engoli o luto. Aí de vez em quando ele volta, como volta agora. Eu comecei a perceber o seguinte: a morte, essa absurda e definitiva, deveria ser conversada. O meu filho mais novo começou a expressar a dor dele, o luto dele, nos de-
convença –, foi inesperada. Ele era um homem muito jovem e cheio de planos. Como alguém cheio de planos e com vontade de viver tanto não tem tempo de dizer: “Tchau, eu tô indo” (Maísa se emociona). Não deu tempo, foi uma coisa absurda. Eu fiquei revoltada! Depois da tristeza, que eu queria morrer. Depois, pensei: “Opa, espera aí, eu tenho dois filhos”. Agora fez 15 anos que eu ele morreu, mas só depois de muito tempo que eu fui dizer a palavra “morte”. Eu não dizia. Eu esqueci tudo o que tinha acontecido, eu bloqueie o trauma que foi. Ele morreu (enquanto) eu estava tentando reavivá-lo sozinha em uma praia, com ele e o nosso filho. Paulo Renato – E como foi encarar mais uma revolução na sua vida? A primeira grande revolução foi ser mãe e a segunda foi ser viúva tão cedo. Maísa – “Viúva” é uma palavra ter-rí-vel (enfatizando), eu acho. É um dos piores carimbos. Primeiro, porque a viúva, em muitas culturas, é vista como a coitadinha, a “póbi véia miseráve” (brinca). No fundo, aqui (cultura brasileira) também é, porque depois eu comecei a ver que as pessoas me olhavam
senhos que ele fazia. Ele não colocava uma cor nos desenhos. Era só preto, preto, preto (Maísa se emociona). E pensava: “Como eu vou falar sobre isso com esse menino?”. Eu comecei a comprar livrinhos que tratavam da questão da morte, a escola onde ele estudava tinha um tanatologista e eu pedi que ele (o tanatologista) me ajudasse. Eu acho que ninguém fala da morte como algo de verdade. Falam da morte como uma vertigem, uma coisa distante, que ninguém vai passar por ela. Paulo Renato – Você acha que hoje vive uma ideia maior de finitude? Maísa – Não, eu tenho um medo desgraçado de morrer (gargalha). Estou brincando. Talvez, sim, porque, se dissessem assim: “Você vai morrer hoje. Você está pronta?”, (você responderia) “ Não, né?”. Nem eu. Mas se eu tiver de morrer hoje, eu não vou morrer com mágoa. Durante muito tempo eu pensei assim, e ainda estou vivendo a consequência disso. “Mas como uma pessoa cheia de planos, tão cheia de vida e de sonhos? Como vai embora dessa forma?” Então por que eu vou fazer planos? Eu não vou planejar mais, não. Vou viver hoje e acabou-se. Eu vou sair
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da vida feliz. Achando, que até hoje, eu vivi o que me é permitido viver. E é isso que eu vou levar. Taís – Você nunca quis casar oficialmente. Após a morte do seu marido, você se arrependeu de nunca ter casado com ele? Maísa – Arrependi-me e continuo me arrependendo, você acredita? Durante muito tempo, ele (segundo marido) ficou fazendo armadilhas para mim, para me amarrar, para eu casar com ele (gargalha). “Vamos casar nem que seja para a gente fazer um chá de cozinha e ganhar um monte de presentes” (risos), ele brincava demais. Eu me arrependi porque um dia desses tive de entrar na justiça, pagar caro um advogado, para ter uma certidão de união estável pós-morte. Então, eu me arrependi de não ter casado. Felipe – De onde você acha que surgiu isso de não querer casar? Maísa – Antes eu não queria me curvar a uma exigência da sociedade e do capitalismo (gargalhando). Eu estou brincando, mas
pre achei que o meu pai era um grande construtor. Na década de 80, meu pai construía aquelas casas nas dunas. “Tá vendo aquela construção (edifício), moço? Tá vendo aquela casa, moço? Fui eu que ajudei a construir” (Maísa faz referência à música “Cidadão”, do álbum “Frevoador”, de Zé Ramalho). Então ele estava lá fazendo aquilo. Talvez eu quisesse levar um sonho adiante. Uma realização que ele não tinha podido fazer. Acho que ele me influenciou, sim. Agora por que Arquitetura exatamente e não Engenharia? Não sei, acho que é porque eu queria mudar o mundo. Talvez eu achasse que arquitetos pudessem estar mais próximos do aspecto social e humano do que a Engenharia. Diego – Como foi ser mãe e ao mesmo tempo universitária? Maísa – Eu, bem dizer, não consegui, porque eu tive de largar a faculdade. Acho que porque tinha o conflito em casa. Minha mãe dizia que eu era quem ia tomar conta (do filho) e o meu namorado teve de ir trabalhar
Logo após a conversa com Maísa, a equipe de produção encontrou Fábio Vasconcelos no mesmo lugar. Fábio é um dos irmãos mais próximos da apresentadora.
“Acho que o meu pai e a minha mãe não era permitido a eles assumirem que estavam errados. Hoje eu assumo: ‘Errei, fiz tudo errado’” talvez fosse isso. “Mas como assim a família como instituição?”. Queriam me obrigar a casar. “Não, não só obrigada a casar”. Então era mais ou menos uma coisa de marcar posição. Depois, no meu segundo casamento, (não casei oficialmente) porque achava que era uma bobagem. A gente já era tão feliz. Para que isso? Então são coisas diferentes e momentos diferentes (e) eu mantendo uma posição. Hoje em dia, por que eu não quero casar? Porque eu passei muito tempo sozinha e eu acho que a gente vai ficando meio ranzinza com algumas coisas. (A gente) Vai batendo muito o pé e, para equilibrar as diferenças, é muito complicado. Talvez eu mude de ideia. Felipe – Agora, a gente vai abordar mais a sua vida profissional, começando pelo período em que você cursou Arquitetura na UFC. Seu pai, o mestre Sousa, é mestre de obras. Você acha que a profissão dele influenciou na escolha pelo curso de Arquitetura? Maísa – Claro! Eu não sei, se no fundo, eu queria ser mais do que ele... Ser mais do que ele não numa competição, mas para fazer valer o que ele sabia, o que eu via nele. Eu sem-
também muito jovem. Acabou que eu tranquei, inicialmente, depois eu larguei. Eu não consegui naquele momento ser mãe e levar o sonho de ser arquiteta adiante. Depois eu tentei quando ele (Gabriel) estava um pouquinho maior, tinha um ano, eu acho, já era um bebezão. Eu consegui voltar para a faculdade. Tinha dia que (eu) levava ele para a faculdade e eu até disse para os meninos (da produção) que ele chegava a ficar com “babás”. Alguém da turma ficava de babá. Eu sempre me lembro do Falcão (Cantor e compositor cearense, conhecido por músicas com tom de humor e pelo estilo caricato – Maísa ri, enquanto comenta sobre o amigo), ele entrou na Arquitetura uma ou duas turmas depois de mim, eu acho, (e) chegou a funcionar como babá do Gabriel. Uma vez ele (Gabriel) levou um choque com as tomadas da sala e eu achei aquilo um absurdo. Não estava dando certo mesmo. Aí eu tranquei a faculdade de vez. Abandonei. Deixei lá. Mikaela – Como você entrou para a Comunicação? Maísa – Foi assim: em 1988, mais ou menos, eu estava trabalhando com produção.
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Durante a conversa, Fábio emocionou-se ao falar da morte do segundo relacionamento de Maísa, grande amigo dele e com quem trabalhou em produções culturais pelo Estado.
A entrevista aconteceria no dia 27 de junho. No entanto, teve de ser cancelada devido à decisão da Prefeitura de Fortaleza em decretar feriado no dia do jogo entre Espanha e Itália na Arena Castelão pela Copa das Confederações.
A equipe de produção teve dificuldade para escolher o local da entrevista. Ronaldo Salgado ofereceu a casa onde mora. Os alunos ficaram curiosos para conhecer o recanto do professor.
Eu me separei, eu não tinha uma profissão e nunca tinha trabalhado. Trabalhava de forma informal, porque eu fazia artesanato e vendia. Eu não tinha profissão e comecei a trabalhar com produção. Acho que foi meu irmão que me chamou. Ele já trabalhava com produção e eu fui trabalhar com (produção) cultural. Em uma época, eu estava tão cansada e eu fiquei ouvindo gente que dizia que eu tinha uma voz boa. Eu trabalhava com produção, fazendo divulgação. Eu fazia (também) o release, fazia o cartaz. Depois descobri que (isso) era o press kit (material que pode incluir brindes promocionais, uma amostra do produto ou o próprio produto, fotos de divulgação, credenciais de imprensa e outros itens que facilitem a cobertura jornalística sobre o que está sendo divulgado). Eu fazia bem, fazia legal. Acabei ouvindo do (jornalista) Nonato Albuquerque que a minha voz era microfonável. Eu estava na rádio uma vez, fazendo a divulgação de um show e ele disse: “Por que você não passa para o lado de cá? Sua voz é microfonável”. Eu fiquei com aquilo (na cabeça) e fui em busca de saber o que era. Meu marido me ajudou nisso. Ele disse: “Você está tão infeliz, tão insatisfeita, tão cansada. Não tem tempo para você, para cuidar do seu filho, para a gente. Por que você não pensa em levar isso adiante?”. Ele (Almiro) se informou que tinha um curso de formação para radialistas, um curso de nível médio. E ele me ajudou a buscar uma pessoa que pudesse me dar um estágio porque você tinha de ter uma empresa onde fizesse o estágio (para poder cursar) e eu fui fazer o curso. Paulo Renato – Antes disso, você nunca tinha parado para pensar sobre esse seu viés de comunicadora? Maísa – Acho que, na verdade, não. Eu já era (comunicadora) porque, inclusive, nessa empresa de produção onde eu trabalhava, quando o evento acontecia eu fazia a produção e, na hora do show, eu apresentava (gargalhando). Era superlegal, porque eu ia para o palco... Eu estava nas redações, gente. Eu ia para a redação do (jornal) O Povo, especialmente, na época. Eu entrava na redação e parecia que eu estava em casa, sabe? Eu gostava disso. Havia uma identificação mínima. Foi uma coisa fácil de se identificar. Eu apresentava o
show e gostava, lidava bem com o público e tal. A coisa já estava se encaminhando. Taís – Como foram suas experiências com rádio? Maísa – Eu comecei justamente no rádio, porque eu fiz curso para radialista. Eu acho que foi em novembro de 1989... Fiz o curso em Sobral (município a 240 quilômetros de Fortaleza), inclusive. Foi uma coisa complicada porque eu não tinha grana para viajar, eu não tinha grana para a estadia. Eu lembro que saí fazendo contato com pessoas e passei uma semana no comitê do PT, em Sobral. Quem me arranjou esse contato, eu não me lembro. Era só um quartinho bem pequeninho, metade desse compartimento (Maísa explica o tamanho do local usando o espaço da entrevista como referência). Eu fiz o curso de radialista, quando voltei, eu entrei no estágio na rádio, que se chamava Pajeú FM. Eu fiquei na Pajeú (por) um ano e pouco. Tinha uma programação muito bacana. O programa que eu apresentava era de oito horas ao meio dia, chamava-se Via Brasil. Só tocava música brasileira e a gente que fazia a programação. Não tinha o jabá (Pagamento que se faz por gravadoras aos profissionais para tocarem as músicas dos artistas delas), que chegava e você tinha de rodar isso. Eu sai da Pajeú (FM) e trabalhei na Casa Blanca FM. Eu acho que ainda trabalhei em outra rádio... Mas, nesse começo, sempre em FM. Mikaela – Você não tem vontade de voltar para o rádio? Maísa – Tenho. Todos os dias, quando eu acordo, tenho vontade de voltar, estar no rádio. Mikaela – Já fez planos para voltar para o rádio? Maísa – Já. Eu fiz um projeto para uma rádio local – acho que era AM. E na hora H, que ia dar certo – eu já tinha conversado com a direção –, os planos da rádio viraram completamente. Ela entrou em uma rede. E não teve mais espaço para mim. Agora, até achei que eu também voltaria, não rolou ainda. Mas acho que vai rolar. É muito provável que uma coisa, até natural, seja a minha passagem para o rádio. Eu espero que seja. Bárbara – O que mais te fascinava na profissão de radialista?
“Eu ainda não consigo dizer ‘morte’ com naturalidade, porque a morte é uma coisa absurda de rompimento. O que é a morte? Nunca ninguém tinha me dito exatamente” REVISTA ENTREVISTA | 86
O professor Ronaldo foi muito acolhedor e recebeu todos com salgadinhos e refrigerantes. Todos ficaram encantados com a beleza do local.
Maísa – Hum, deixa eu ver... Acho que eu queria conversar com as pessoas. Eu estava em FM, mas eu queria estar mesmo na AM. Aquela rádio do domingo de manhã, que o meu pai ouvia. A minha mãe ouvia muito rádio na minha infância. A comunicação que a gente tinha com o interior era pelo rádio. Os recados mandados... Eu achava aquilo incrível. Olha que coisa tola: a gente ia para o interior e não tinha como avisar ao meu avô. Não tinha telefone, obviamente. Como era o recado? “Sebastião Lameu, sua filha Idinha avisa que dia tal está chegando aí”. Gente, era desse jeito! (risos). Eu sempre quis fazer esse rádio que comunicava as pessoas. Eu comecei em FM porque era “o que temos para hoje”, mas acho que conversar sempre foi a minha vontade. Diego – Como foi essa transição do rádio para a TV? Maísa – Acho que é porque eu era bonitinha (brincando – risos). Talvez alguém tenha percebido essa empatia. Não sei exatamente quando foi isso. Acho que em 1989 mesmo. Eu sei que fiz publicidade, fiz comercial... Não lembro se fiz comercial primeiro ou se fiz primeiro os trabalhos na TVE (TV Educativa) – que hoje é TVC (TV Ceará). Eu fui fazer um teste para a TVE, um teste de estúdio. Estou me lembrando vagamente disso... Era um teste de câmera. E fiz bem... E acharam que eu tinha “naturalidade” para falar na frente da câmera. Não ficava aquela coisa robótica, ensaiada. Não precisava de texto. E foi... Paulo Renato – Você se sentia, nesse começo, já totalmente à vontade... Maísa – (Interrompendo) Eu me sentia. Paulo Renato – Você acha que nasceu para a TV mesmo? Maísa – Se eu nasci para a TV, eu não sei.
De verdade, eu não sei. Mas eu já me sentia à vontade. Nunca precisei que alguém me desse “altos toques”. “Faz assim!”. Não! Não sei. Fui lá, falei e achei bacana. Era como, se ali na lente, estivessem todas as pessoas com quem eu queria falar. Felipe – Como foi começar a ser reconhecida na rua? Maísa – Foi estranho. Porque eu sempre fui reservada. Tem algumas palavras, né? Eu chamo “reservada”. Algumas pessoas chamam de “antipática”, “cu-doce”, “só-quer-ser-as-pregas” (gargalhadas)... Né? No bom “cearencês”. Mas eu acho que sempre fui reservada. Eu me dou o direito de me dar essa palavra (reservada) mais amena, esse eufemismo (rindo). Mas aquilo foi estranho para mim! Como eu sempre fui muito mais antipática por ser reservada, quando as pessoas começaram a me reconhecer na rua, eu percebi que isso ia me dar problema. Problema no sentido de que eu sempre fui tão transparente com o que eu penso, sinto e sou; sem muita frescura, sem máscaras, sem nada disso... E (eu sabia que) elas (as pessoas) iam me ver e iam me interpretar mal. Então, isso me assustou um pouco no começo. Tinha um produtor na (TV) Jangadeiro... Eu comecei na Jangadeiro em abril (de 1993). Talvez em maio, por aí, ele ficava me perguntando: “E o ônibus?”. Eu não sabia o que era essa história (rindo). Quando eu comecei a ouvir “Maísa Vasconcelos” (fala esticando o “s” de forma sibilante). Porque tinha um humorista, que fazia o programa Na Boca do Povo – que foi o programa que eu fui apresentar lá (na Jangadeiro) desde o começo – e dizia: “Maísa Vasconcelos” (sibilando o “s”). Esticava esse “s”, né? Rapaz, o pessoal dizia isso dentro do ônibus! (risos) Eu queria mor-
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Para fotografar a entrevista, a equipe de produção convidou Rayanne Lô, fotógrafa e aluna do curso de Publicidade da UFC. Felipe e Isabele conheciam o trabalho dela e tiveram a mesma ideia de convidá-la.
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“Eu não faço uma personagem. Eu digo o que acredito, o que eu penso, o que eu sinto... Eu não vou fazer escárnio. Não vou gritar se eu não estou sentindo”
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Antes de começar a entrevista, enquanto todos os alunos estavam em silêncio, esperando o início, Maísa quebrou o gelo e brincou, falando “bu!”. Todos caíram na gargalhada.
Muito bem humorada, Maísa provocou muitas risadas durante a entrevista. Todos os entrevistadores adoraram a participação da apresentadora na revista.
“Acho que eu não me permiti viver o luto. Talvez eu tenha feito muito mal a mim mesma e aos meus filhos. Era como se eu quisesse dizer: ‘Não, não foi nada’” rer porque eu ficava com vergonha (gargalhando). Porque, quando ele dizia isso, todo mundo olhava para onde ele estava olhando e era pra mim, né? E eu ficava envergonhada. Não queria chamar atenção. Nunca quis chamar atenção de ninguém. Sempre fui mais discreta. Paulo Renato – Você gostava de se ver na televisão? Maísa – (Enfática) Nunca gostei! Não me peçam pra explicar isso porque nunca gostei. Eu não tenho arquivo de nada do que eu fiz até hoje. Talvez porque eu tenha levado muito a sério a coisa do “ao vivo”. Sempre fiz o “ao vivo”. Na rádio... A rádio é a instantaneidade. O que você disse, foi (ao ar). Inclusive, o palavrão terrível que eu disse uma vez. No ar. Bem alto nas caixas de som! (rindo) Quando eu ouvi o retorno, eu disse: “Caralho, fodeu!” (gargalhadas). Imediatamente, a porta do estúdio abriu (rindo). Era a secretária do meu chefe, que por sinal era coronel. O coronel Uirandé Borges (Militar e político cearense) me chamando. Eu sentei na frente dele e ele me disse: “Minha filha, você é tão bonita, por que você diz palavrão?”. Eu disse: “Coronel, saiu!”. (gargalhadas). Tava aberto o microfone! Ai, gente! Felipe – Qual foi o palavrão? Maísa – Foi só “puta que pariu”, gente! (gargalhadas) Mas foi bem alto o retorno. Eu pensei que o microfone estava desligado. Aí falei: “Puta que pariu!”. Diego – Você brincou sobre ter entrado na TV por ser “bonitinha”. A televisão tem esse estereótipo mesmo da beleza? Maísa – O que você acha? Você está no telejornalismo porque você tem seus olhos verdinhos também (Brincando – Risos). Tem! Paulo Renato – Tô lascado! (brincando) Maísa – Melhor você ficar no impresso! (referindo-se a Paulo Renato – Gargalhadas) Ei, eu tô brincando! Mas tem (o estereótipo
da beleza no telejornalismo), óbvio. A sedução pelo visual obviamente. Então, eu não tenho o padrão de beleza. Vejam, eu não sou loira, não tenho peitões. Eu fazia luzes, né? Hoje, eu não faço. Rá! (rindo). Eu deixei de tinturar meu cabelo porque eu realmente não gosto. Detesto! Então, não estou nesse padrão. Esse padrão sempre existiu. É a beleza que dita, sim. Eu não concordo. Eu acho que a televisão precisa ser mais que isso. Eu fui parar lá (na TV) talvez por uma carência de pessoas. (Nesse momento, Maísa começa a contar como chegou à televisão) Primeiro trabalhei na TVE; fazia programas culturais. Toda semana tinha (a exibição de) um filme e eu fazia a abertura desse filme. Passava o resuminho e voltava no final do bloco pra fazer um comentário. E, depois, fui fazer o telejornal. Foi uma experiência muito curta, mas eu adorava. Era o que eu queria de verdade fazer; estar na bancada, apresentar o telejornal. Depois, fui para a (TV) Jangadeiro para fazer um programa diário porque eles precisavam de uma mulher. O Tancredo Carvalho (Jornalista já falecido. Foi editor do jornal O Povo e o primeiro superintendente da TV Jangadeiro) estava procurando essa mulher (com perfil para o programa) e o (meu) vizinho da frente era o João Neto (ator e humorista cearense co-
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“Eu estava na rádio uma vez, fazendo a divulgação de um show e ele (Nonato Albuquerque) disse: ‘Por que você não passa para o lado de cá? Sua voz é microfonável’”
nhecido pelo personagem Zé Modesto). Ele estava fazendo um quadro de humor nos intervalos. Ele disse: “Maísa, a Jangadeiro está precisando de uma mulher. Por que você não vai lá? Eu falei que conhecia uma pessoa e ele (Tancredo Carvalho) queria saber se tu pode ir lá”. Eu fui. Cheguei na sala do Tancredo, ele olhou pra mim e disse: “Ela é bonitinha, né? Mas é muito baixinha!”. O Tancredo era assim: ele olhava pra você e dizia o que ele pensava. “Ela é muito baixinha. Compra um sapato pra ela!” (risos). Marcaram o teste. Era no período de carnaval. Tinha baile de carnaval ainda no Iguatemi; um desfile de fantasias. Eu fui pra fazer esse teste. Gente, eu fiz uma produção assim de última hora. Arrumei meu cabelo. Eu usava o cabelo tipo o teu (apontando para Bruna), bem natural – Aqui (no momento da entrevista), ele está mais ou menos escovado. O meu cabelo (naturalmente) é bem onduladinho –, curtinho aqui (posicionado a mão no pescoço). Botei uma blusinha de paetê, uma camiseta de paetê, com uma pantalona mais discreta, preta. E fui para esse teste. Fiz o teste no desfile de fantasias do Iguatemi. Eu estava ao vivo. Eu não sabia, obviamente. Mas ele não disse e me botou no ar em um teste ao vivo. Tancredo era louco porque poderia ter dado tudo errado. Passei no teste e comecei a trabalhar, eu acho, uma semana depois
no Na Boca do Povo. Caroline – Você trabalhou na TV Jangadeiro por 16 anos e depois foi desligada... Maísa – (Interrompendo) Defenestrada! (brincando) Caroline – Como você se sentiu quando isso aconteceu? Maísa – Eu fiquei muito triste! Foi uma experiência muito difícil. Primeiro, porque foi a primeira vez que fui demitida na vida. Imagina! Olha que coisa mimada! Nunca tinha sido demitida. Mas, também, eu trabalhei mais de 16 anos na mesma emissora. Acho que fiquei mais triste porque queria entrar no Guinness (Guinnes World Records, livro que contabiliza recordes e superlativos reconhecidos internacionalmente). Eu estava fazendo pesquisa, gente. Porque o Na Boca do Povo era um programa que estava há quase 18 anos no ar, ininterruptamente, diariamente, ao vivo. E, aí, comecei a pesquisar (e) não tinha nenhum programa na televisão brasileira com aquela marca. Nenhum! Isso é sério! Eu estava começando a fazer pesquisa, vendo o que você tinha de fazer para colocar alguma coisa no Guinness – É complicadíssimo! É para quem não tem o que fazer (risos). Mas eu estava tentando já, indo atrás. “Mas que droga! Não vou entrar no Guiness, né?”. Mas (o desligamento) basicamente foi porque eu percebi que não fazia parte do que eles queriam. Eu me entristeci mais por isso inicialmente. Primeiro, porque eu queria continuar lá. É como um casamento (em) que você continua apaixonado, amando muito, acreditando na relação; e o outro não, não quer mais. Como é que você aceita isso em um primeiro momento? Você fica em uma tristeza absurda. E foi como eu fiquei. Bruna – Você se sentiu desrespeitada como profissional por ter sido desligada tão abruptamente? Maísa – Não. Desrespeitada não porque
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Antes de começar a entrevista, Maísa pediu à fotógrafa Rayanne para registrar o momento no celular dela. Maísa publicou a foto com a equipe na conta dela no Instagram.
Apesar de não se considerar vaidosa, durante a entrevista Maísa não parou de mexer nos cabelos. Em outro momento, chegou a compará-los aos de Caroline.
Na época em que cursava Arquitetura, Maísa foi incentivada por Kleber, amigo de faculdade, a abandonar o curso para fazer Comunicação. “Eu saio e vou fazer Sociologia. Por que tu não vai fazer Comunicação?” – dizia ele.
Em 1990, Maísa mudou-se com o marido para Barbalha, no interior do Ceará, para, com Almiro, trabalhar com produção cultural. Lá, Maísa chegou a trabalhar durante seis meses como recenseadora do IBGE.
“Todos os dias, quando eu acordo, tenho vontade de voltar, estar no Rádio” eu tinha certeza que aquilo podia acontecer. Eu vi, durante aqueles anos todos, isso acontecer com tanta gente. Por que eu ia achar que isso não ia acontecer comigo? Mas eu não pensava (que seria desligada) porque sempre defendi o programa com muita força, com muita certeza. Em vários momentos, eu entrei em atrito com vários diretores. Em 16 anos, você imagina que um veículo de comunicação muda de direção algumas vezes... Mas não me senti desrespeitada, não. Era o que eles queriam. Eu vou fazer o quê? Diego – E o que eles queriam em relação ao programa? Maísa – Eles queriam um programa que desse mais resposta junto à audiência. Algo mais... Eu sempre uso essa palavra (agressiva) com medo da interpretação que se vai dar a ela. Mas acho que é isso mesmo. Eles queriam alguém que desse resposta à audiência de maneira mais agressiva. Que trouxesse as respostas mais rápido que eles queriam. E o meu perfil não era o que eles queriam na época. Pronto. Só isso. Caroline – Você se sentiu frustrada? Maísa – Acho que sim, né? É quase que inevitável. “O que que eu estou errando?”. No fundo, eu sabia, né? Ainda hoje eu não tenho esse perfil. Eu sempre fui uma profissional mais discreta no que eu digo porque eu não faço uma personagem. Eu digo o que acredito, o que eu penso, o que eu sinto... Eu não vou fazer escárnio. Não vou gritar se eu não estou sentindo. Primeiro, que gritar, eu não grito na minha vida real. Então, eu não vou desempenhar um papel, uma personagem. Não vou ser alguém que eu não sou ali. Então, talvez eu ainda não estou nesse perfil de quem vai trazer aqueles índices de audiência. Paulo Renato – Nesse tempo de Jangadeiro, o que o Na Boca do Povo agregou a sua vida? Maísa – Eu gosto de estar na televisão. Não é por vaidade. Não é por status. Não é por nada disso. É pela possibilidade de troca; de conversar, de dialogar, de dizer alguma coisa e ter uma resposta. Por mais que às vezes você acha que está sozinho, ilhado... Quando eu trabalhava no rádio, tinha essa sensação. “Eu estou dentro de um estúdio
hermeticamente fechado. Estou só no mundo, gente. Numa cápsula que eu não tenho resposta”. Às vezes, a FM dá essa impressão. Mas é uma falsa impressão porque você tem a possibilidade de conversar mesmo ali no radiolão. Porque, quando uma pessoa pede uma música, ela está dizendo alguma coisa com aquilo. Quando ela não gosta daquela sequência musical, ela está dizendo alguma coisa com aquilo. As maneiras de dizer são várias. Você tem de interpretar e dar uma resposta na medida em que você entende aquilo que ela está dizendo. Então, estar na televisão pra mim é isso: a possibilidade de estabelecer um diálogo com uma plateia. Eu sempre quis isso em tudo que eu fiz. Todos os dias, com as entrevistas, eu aprendia coisas novas. A história do especialista em generalidades. Isso é importante pra gente (jornalista). Você tem o entrevistado tal e você tem de saber minimanente sobre aquele assunto. Estar vivo todo dia, ter de se atualizar todo dia. Eu acho que ganho todo dia quando faço isso. E o “ao vivo” para mim sempre teve essa importância. Porque tudo pode mudar, né? Estava lembrando um dia desses de um padre que eu fui entrevistar. A gente ia falar dos batizados que ele não fazia se o casal não fosse casado na igreja. A gente levou o padre polêmico (rindo), do tipo que bota pra fora. (Se) a menina está com decote, sai da missa. Sainha curta, nem pensar! Mastigou chiclete dentro da igreja... Vai botar o chiclete lá fora e depois volta pra missa. Cha-
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Maísa emocionou-se ao falar do relacionamento com o segundo marido e sobre a morte repentina dele. Todos ficaram bastante sensibilizados nesse momento da entrevista.
mamos esse padre. O padre ficou na salinha, na antessala, e eu no estúdo fazendo o programa. No bloco, eu saí para buscá-lo. Acho que a produção demorou um pouco. E quem estava lá fora disse: “O padre foi embora!”. “Como foi embora?”. “Foi. Ele disse que estava demorando demais. ‘Não vou mais esperar nessa porra, não’”. E foi embora. (risos) Então, todo dia você tem essa possibilidade... É esse aprendizado todo dia. É o que me atrai. Taís – Depois de sair da TV Jangadeiro, você foi para a TV Diário. Como foi essa transição? Maísa – Foi bacana porque eu percebi que se eles (Jangadeiro) não me queriam, tinha quem me quisesse (risos). “Tem quem queira!” (rindo). “Nem vou ficar chorando”... Foi uma coisa tão rápida porque nesse intervalo de tempo longo que eu estive na Jangadeiro, eu fui assediada por emissoras. E a TV Diário foi uma das emissoras que me assediaram mais seriamente. Eles me procuraram, pensavam em me ver na programação. Então era aquele olhar; a piscadinha que você dá assim (piscando o olho), esperando a chance. Então, eles tinham ali a chance. Olha, eu me achando! Mas é sinceramente falando... Eu saí da Jangadeiro, não demorou uma semana e eles me procuraram. O Garcia Júnior (coordenador do núcleo de entretenimento da TV Diário), que é um cara que eu adoro – já o conhecia da época da TVE. A gente trabalhou junto lá pelos anos 1990; amigo, figura querida –, me ligou e disse que queria conver-
“Nunca quis chamar atenção de ninguém. Sempre fui mais discreta” sar comigo. Marcamos um almoço e fomos vistos, obviamente (rindo). “Maísa Vasconcelos estaria sendo contratada pela TV Diário” (Maísa finge ler uma manchete de jornal – Brincando). E eu fui levada para conversar com eles e fechamos muito rapidamente. Foi muito rápido. Aí eu já estava no programa do Ênio Carlos (Programa dominical de entretenimento apresentado por Ênio Carlos na TV Diário) domingo de tarde dando uma entrevista emocionada (brinca, enfatizando a última palavra). Foi muito bacana, gente. Eu nunca tinha ido no Ênio. Foi a primeira vez e foi para contar sobre a minha vida. Olha que absurdo! (rindo) E aí fui levada para lá. Eles foram muito bacanas comigo. Esse programa do Ênio foi muito respeitoso comigo, com minha carreira profissional. Eles não me levaram lá para fazer fofoca, para falar mal da Jangadeiro. Até porque isso jamais (enfatizando) aconteceria. Jamais! Inclusive, eu soube que meus ex-chefes estavam assistindo (rindo) e, digamos assim, sentiram-se muito bem com a entrevista que eu dei. E a TV Diário me acolheu de manei-
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Quando perguntada sobre os estereótipos do telejornalismo, Maísa brincou com Diego: “Você está no jornalismo porque você tem seus olhos verdinhos também ”.
Em determinado momento da entrevista, Maísa começou a coçar o rosto. Ela mostrou manchas vermelhas na pele e explicou ter alergia à barba. Culpa do Felipe e do Paulo Renato, os barbados da turma.
Começou a chover forte durante a entrevista e ficou muito difícil de se ouvir as perguntas e respostas. Isabele precisou ficar segurando os gravadores bem próximos à Maísa.
ra muito carinhosa, respeitosa. Porque já me queria, digamos assim, né? E eu comecei a fazer um trabalho lá despretensioso, leve, trabalhando com uma equipe muito nova; os meninos e as meninas que começam nos estágios. Então, eu me senti muito viva em estar trabalhando, principalmente, com essa moçada muito nova. Foi bacana demais lá. Quando eu saí, eles tomaram um susto. Diego – Qual a diferença entre o Na Boca do Povo, que você fez na Jangadeiro, e o Sua Manhã, na TV Diário? Maísa – Não tinha muita diferença. Porque, inclusive, quando eles me chamaram... O Garcia Júnior veio conversar comigo, falou: “Nós queremos você. E, se nós queremos você, você não vai fazer nada de diferente. Você vai continuar sendo você”. Eu fui fazer
um programa com as mesmas características que eu fazia, entendeu? Na verdade, foi exatamente isso. “Nós queremos você. Com seu ritmo, com a sua voz...”. Pronto. Felipe – Você passou quase três anos na TV Diário, um período curto em relação ao tempo que você passou na TV Jangadeiro. Por que você se desligou de lá? Maísa – Eles tomaram um susto quando eu saí. Porque foi uma decisão minha. Eu acho até que eu demorei muito pouco tempo fora da TV. Quando eu saí da Jangadeiro, eu poderia ter parado para pensar um pouco mais. Talvez até ter buscado um projeto novo... Não sei. Fazer uma coisa diferente. Mas o que é exatamente uma coisa diferente que você pode fazer na televisão? Porque eu continuava com a mesma vontade de con-
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“Estar na televisão pra mim é isso: a possibilidade de estabelecer um diálogo com uma plateia. Eu sempre quis isso em tudo que eu fiz” versar, de reportar o que estava acontecendo e era mais ou menos isso que a gente fazia. Mas eu me senti um pouco... Confusa. Eu disse: “Não. Talvez esteja na hora de eu dar uma parada”. De fato, era o que eu queria: parar. Acho que eu estava precisando tirar férias. Dar um tempo para mim mesma. Quando eu procurei a direção da TV... Fui conversar sobre isso. Procurei o Garcia (Júnior) e disse: “Garcia, eu vou dar um tempo. Eu vou sair. Estou pedindo para me desligar, para encerrar nosso contrato. Vou dar um tempo”. E ele: “Mas por quê? Você está insatisfeita?”. Eu disse: “Não. Só estou precisando parar”. Pedi um tempo da relação. Se na outra vez, foi o outro que disse: “Não. Está na hora de a gente parar”, dessa vez fui eu que pedi um tempo da relação... Não queria acabar! Queria só dar um tempo. Ficar refletindo: “Que televisão é essa que a gente está fazendo? A gente está conseguindo dar as respostas que as pessoas querem?”. A internet mudou muito talvez até o tempo da resposta. “A gente está acompanhando? A gente está fazendo a mesma coisa sem a possibilidade de se renovar? É isso que o público quer? A resposta da audiência que querem é o que eu estou disposta a seguir? Eu quero ou não quero isso?”. Então, eu realmente decidi que estava na hora de eu dar uma paradinha. E eu queria isso de verdade. Parar de verdade. Queria tirar férias, viajar, sabe? Ficar perto dos meus filhos porque meu filho tinha ido embora... E foi por isso. Eu pedi pra sair. Aí diziam assim: “Ah, ela já deve ter outros planos...”. Não! Eu só queria parar. Eu tinha vontade de passar, pelo menos, seis meses parada, sem fazer nada. Eu não tinha grana para isso, nem nada. Mas eu queria fazer, entendeu? Bruna – Quando você saiu, até anunciou que queria se afastar da televisão. Depois, você entrou na Nordestv. Como foi essa decisão de voltar para a TV tão rapidamente? Maísa – Menina do céu! É um ex-amor
que você encontra na esquina e que você nunca tem condições de achar (risos). Não é? Então, lembram da relação que acabou mais ainda tinha amor? Foi isso... Foi isso. Você encontrou o ex-amor na balada (risos)... Agarra! Porque pode ser que amanhã ele não volte. Acho que foi mais ou menos assim... O que eu sentia de respeito pela emissora (TV Jangadeiro e Nordestv fazem parte do mesmo sistema de comunicação, o Sistema Jangadeiro)... Aquilo ficou tão forte que eles me telefonaram e eu estava de férias – E tinha viajado. Fui aqui, fui acolá; como eu queria mesmo. Fiquei solta mesmo. Estava em Jericoacoara (Praia localizada no município de Jijoca de Jericoacoara, no Ceará)... Sem dia para voltar. Aí disseram: “A gente vai estrear a programação da Nordestv e a gente quer você”. Eu disse: “É mesmo?”. Fiquei pensando (na proposta)... Não consegui mais curtir minha praia! (rindo). A menina que me ligou disse: “Pense! Pense. Quando você voltar, liga para mim”. Só disse isso. Ou seja, foi bacana, né? E aí, menino, (a vontade) falou mais forte e eu disse: “Eu vou topar”. Felipe – Até 2001, você não tinha formação em Jornalismo. Você já chegou a sofrer algum tipo de preconceito por parte dos seus colegas de trabalho? Maísa – (Interrompendo) Bullying! (risos). Frescaram com a minha cara muito! Um blog, um site apócrifo desses... Adoro essa palavra (apócrifo)!.. Não. Eu não adoro, não. Acho ela meio forte, né? Mas (em) um site (desses) que não é assinado, nem nada, tinha uma criatura que ficava lá dizendo: “Os falsos profissionais...”. É assim: eu sempre senti necessidade de formação. Sempre! Eu queria ser arquiteta, né? Eu podia ter feito um segundo grau normal, né? Podia. Mas eu quis fazer o (curso) técnico em Edificações porque eu achava que, minimamente, ia me apropriar de conteúdos que iriam me levar mais facilmente para o objetivo de ser arquiteta. Então, eu sempre fui a favor da formação. E, quando eu passei a trabalhar em Comunicação, não estava trabalhando sem formação. Eu fiz o curso de radialista, que era o que, para o momento, era viável para mim. Depois, eu fui trabalhar e não tinha como fazer o curso da UFC porque eu tinha de ganhar a vida, tinha de sustentar menino. Não tinha um curso à noite que eu pudesse fazer. Simples assim. Pronto, acabou. Eu fiquei ouvindo durante anos: “Falsos profissionais... Maísa Vasconcelos, a falsa profissional”. Ai... Né? Quando surgiu o curso, na FIC (Faculdade Integrada do Ceará), eu fui. Na verdade, eu queria. Eu me achava falsa profissional? Gente, eu nunca fui para a rua para ser repórter porque no fundo, no fundo, eu não queria estar ocupando uma posição
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Ao final da entrevista, Maísa brincou: “A entrevista deveria ter acabado na hora que a chuva começou, para a gente tomar banho de chuva”.
A entrevista com Maísa Vasconcelos foi um grande alívio para a equipe de produção, que havia ficado temerosa com os lapsos de memória da apresentadora. O diálogo ocorreu de forma fluida e natural.
Atualmente, Maísa está fazendo Pós-graduação em Mídias Digitais na FIC para aprofundar o interesse que tem pela comunicação na internet. Maísa escreve em blog desde os anos 2000.
Ao final da entrevista, o professor Ronaldo levou todos os alunos para conhecer o famoso jardim dele e um barzinho, repleto de suvinires nos aposentos da casa.
para qual eu não estava formada. Veja, eu poderia ir. Algumas vezes eu fui fazer matéria de entretenimento... Essa coisinha de “Viva Você”, seja a personagem. Cheguei a fazer isso. Mas, de fato, eu não queria ser repórter. Porque, talvez, eu achasse que a repórter fosse (só) a jornalista. Talvez fosse uma coisa travada minha. E quando surgiu o curso, eu fui fazer. Felipe – Você fez o curso por sofrer pressão? Maísa – Não. Porque eu queria de verdade. Eu queria passar pela universidade. Eu podia não ter feito, não podia? Bruna – O que a universidade acrescentou a você, levando em conta que você já era uma profissional da Comunicação? Maísa – O que me acrescentou... (pensando). Ela (universidade) me trouxe a possibilidade de discutir temas que, no mercado, a gente não discute. Definitivamente. Estar praticando é uma coisa e você ter a possibilidade de discutir; de falar das coisas de uma maneira mais subjetiva; de buscar opiniões diferentes, divergentes; trabalhar com pesquisa, né? Do que foi o objeto de estudo. Isso o mercado não oferece. Você vai para a luta todo dia e todo dia você tem de fazer aquilo. Então, a universidade me trouxe essa possibilidade. (Ela) Me deu a possibilidade também de me manter viva dentro do que eu estava fazendo já há alguns anos. (Me deu possibilidade) pela convivência com gente muito jovem; por eu ter mais idade, a gente pôde trocar. Então, todo dia era uma troca. O pessoal me olhava e dizia: “Ah, mas tu estás ensinando aqui na FIC?”. Eu dizia: “Não. Estou estudando”. Então, essa possibilidade eu acho importantíssima. Eu defendo a formação. Defendo, de verdade. Felipe – Como você avalia o telejornalismo cearense? Maísa – Vish! (gargalhando). E é grande assim a pergunta! Como eu avalio o telejornalismo... (pensando). Rapaz... Eu acho que a gente tem bons telejornais (pausa para pensar). Telejornais que tentam de alguma maneira estar mais próximos de um foco local. Como, de fato, deve ser. Acho que oferecem até uma possibilidade de temas mais variados porque você não tem só a mesma agenda. Eu consigo assistir a um telejornal, por exemplo, na TV Jangadeiro e encontrar pauta diferente do que eu vou ver na TV Diário. Eu consigo até ver isso. Acho que a gente tem minimamente um jornalismo preocupado em pulverizar mais o local aonde o repórter vai. Tem telejornais até mais longos, né? E isso abre mais possibilidades de mais temas virem para a pauta. Eu assisto também telejornais locais melhor do que eu assisto telejor-
“Eu tinha vontade de passar, pelo menos, seis meses parada, sem fazer nada. Eu não tinha grana para isso, nem nada. Mas eu queria fazer, entendeu?” nais nacionais. Porque acho que o telejornal nacional tem a mesma agenda. As notícias são as mesmas. Então, o jornal local tem a possibilidade de ver uma pauta ali que não é aquela que você está esperando até. Paulo Renato – Falando dessa relação com telejornal nacional, você nunca pensou em deixar a televisão cearense e se lançar nacionalmente? Maísa – Não. Nunca. De verdade. Nunca tive essa vontade. Paulo Renato – O que é que a prende? Maísa – Acho que, talvez, inicialmente, minha família, meus filhos... Eu nunca quis tirá-los (os filhos) daqui porque acho que estar junto da família, dos avós, dos primos... Eu considero isso importante. Porque também eu perdi meu marido e eu não queria que eles (os filhos) tivessem mais alguma perda. Então, o aspecto da família me influenciou. E porque eu nunca tive nenhum sonho de ser celebridade, estrela. Dá impressão de que você sair é porque você “quer ser”... Eu nunca tive essa ambição. Sempre quis trabalhar onde eu estou, onde eu estava e tentar fazer, minimamente, o que eu considerava certo, melhor localmente mesmo. Paulo Renato – E hoje em dia, para estar mais perto dos filhos, você se mudaria de cidade? Maísa – Não, eu já vou fazer 50 anos. Não tem mais lugar para mim no Sudeste, não... Eu iria pra lá para trabalhar em uma pizzaria... Pra ser garçonete em uma pizzaria em Búzios (município turístico da Microrregião dos Lagos, no Estado do Rio de Janeiro, conhecido pelas belas praias). Isabele – Você falou de uma possível ida para o Rádio e que não acha que vai se encaixar por muito tempo no estereótipo da TV. Como você imagina sua despedida? Maísa – (Suspiro de susto) Deus me livre! Eu não imagino, não! (risos). Hoje, eu não consigo (nem) comprar passagem para
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Como Isabele iria fazer intercâmbio no início do mês de julho, Felipe e ela precisaram adiantar o trabalho. Logo ao fim da entrevista, eles se reuniram para fazer estas janelas que você está lendo.
o Réveillon (rindo). Não, deixa rolar. Eu não fico pensando nisso, não. Deixa rolar. Vou deixar rolar! Tomara que seja bacana, né? Tipo: “Oh, negrada. Agora eu realmente estou dando um tempo mesmo. Não é frescura, não... (rindo)”. Eu tenho impressão que não demora muito mais por isso, sabe? A TV cobra muito a coisa da imagem. O HD (Imagem em alta definição) está aí e ninguém perdoa rugas. Incomoda-me as pessoas dizerem: “A fulana ainda está bem”. Ainda? Como assim? Ainda? Você tem a vida inteira que ter a pele dos 20 anos? Nunca! É impossível isso! Então, talvez eu não queira ouvir tantas cobranças. Felipe – Isso frustra você? Maísa – Não! De jeito nenhum! Diego – Como é envelhecer na televisão? Maísa – Na vida, eu diria. Não é só na TV, não. Eu comecei a perceber que os anos estavam passando para mim... O fato, por exemplo, de ter voltado a estudar no ano 2000. Eu fui fazer Marketing na FIC. Eu queria voltar a estudar. Queria me sentir viva. Até porque eu estava saindo da coisa da morte muito presente do meu marido. Então, foi uma amiga que me chamou; para me resgatar, para me trazer de volta para a vida. Ela disse: “Vamos fazer vestibular?”. Eu disse: “Vestibular? Não, vou não. Eu estou cansada, estou triste...”. Ela me levou. A gente fez inscrição de Ma-
rketing na FIC. Por que Mar- keting? Sei lá! Ela escolheu; eu fiz com ela. Voltar a estudar, estar com os jovens, isso me trouxe de volta para a vida. Os anos foram passando e um dia eu ouvi alguém dizendo: “‘A senhora’ não sei o quê...”. “Ahn? Senhora? Olha, é comigo?”. Bem doida, né? (risos). Depois passei a ouvir mais “senhora”. “Olha, alguma coisa está acontecendo. Não são eles que estão ficando mais jovens. Sou eu quem estou ficando mais velha”. Uma vez eu entrevistei um cirurgião plástico que teve o desplante de dizer ao vivo no Na Boca do Povo que eu deveria preencher essa ruga (apontando na testa) e que eu deveria botar botox nessas rugas. Eu olhei pra ele e disse: “O senhor está vendo essa ruga aqui (apontando na testa)? É meu filho mais velho, João Gabriel. (risos) Essas daqui (apontando as marcas próximas aos olhos) são o Antônio Pedro, meu filho mais novo”. Como é que eu vou apagar isso? Não adianta! Não há botox ou preenchimento que apague porque eu não quero apagar isso. Então, se a televisão não me quer como eu sou, com as minhas rugas, com as minhas experiências, com o tudo o que a vida me dá todo dia é porque não quer. Talvez, essa crise, que eu tive essa confusão na época de ter pedido para sair da TV Diário tenha sido um pouco isso. Que relação é essa que você não pode ser você mesmo? Quem
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A transcrição da entrevista aconteceu no dia da final da Copa das Confederações, quando o Brasil jogava contra a Espanha. Felipe e Isabele tiveram de se concentrar em meio a gritos de “gol” e fogos de artifício.
Foram dias e dias de edição para padronizar as transcrições da equipe de produção. Mesmo na Argentina, Isabele continuou ajudando Felipe na produção da entrevista.
Enquanto a equipe de produção estava editando a entrevista, a dupla recebeu um e-mail de Fábio. Dentre outras coisas, o irmão da entrevistada dizia: “Esqueci de falar que Maísa é: O meu abre alas, um anjo que apareceu em minha vida”.
permanece nela? Então, eu convivo com isso mais fortemente nos últimos anos. Talvez, por isso eu ache que, se eu quero continar comunicando, dialogando, fazendo essa troca, talvez o veículo tenha de ser outro. Muita gente já me perguntou: “Por que você não escreve?”. Eu comecei a escrever blog em uma época em que pouca gente escrevia. Eu escrevia muita bobagem, né? Mas eu escrevia, dá licença. Eu estava usando uma ferramenta de comunicação a mais. Diziam: “Poxa, tu escreve bacana. Tem uma forma muito própria, tem um estilo para escrever. Por que tu não vai para o impresso? Teve uma época em que eu até pensei. Vocês acreditam que foi difícil para mim? Porque eu comecei trabalhando e quando eu queria um estágio em um veículo, eles diziam: “Não, você está brincando! Você não precisa disso!”. Você tá entendendo? Então, talvez tenha ficado tarde para isso. Bárbara – Você falou na pré-entrevista que sempre quis o telejornalismo de bancada. Por que você não foi atrás disso? Maísa – Teve uma época em que eu fui mais seriamente (atrás) e eu disse: “Oh, deixa eu fazer um estágio aqui? Pedido de amiga!” (risos). O pessoal não levava a sério porque eles achavam – e talvez ainda achem – que o que eu tenho de fazer mesmo é apresentar programas populares na televisão. Essa coisa do entretenimento. É a coisa do carimbo (fala batendo uma mão fechada na outra, simulando uma carimbada), você recebe e vai ficando difícil para você mudar isso. Então, eu ouvi do diretor de jornalismo da época que eu tinha muito sorriso para apresentar notícia. Eu falava com uma naturalidade que não cabia na bancada. Pouco tempo depois, o que foi que se viu? Isso! As pessoas querem as conversinhas na bancada, o sorriso, o falar com o telespectador. Eu não estou dizendo que eu sou visionária. Olha! Bem doida, né? O que estou dizendo é que isso poderia ter sido usado e não houve percepção suficiente para me levar justamente para uma coisa que não estava fazendo, entendeu? Então, eu não tive espaço para ir para a bancada, para o telejornal. Porque eu não era sisuda o suficiente para a bancada. Mikaela – Na adolescência, você não imaginava que ia trabalhar em televisão. A TV é tudo aquilo que você imaginava quando era somente telespectadora? Maísa – Pegadinha, né? (rindo). Casquinha de banana! (risos). Eu sempre fui uma telespectadora muito crítica. E sou. É até chato porque eu assisto televisão feito o Jack, o Estripador (Pseudônimo dado a um assassino em série que agiu no distrito de Whitechapel, em Londres, em 1888), sabe? Vou segmen-
tando tudo e vou vendo com esse olhar (crítico). É irritante, às vezes, para quem está perto. Porque eu vou separando as coisas. Mas a televisão para quem está dentro é completamente diferente para quem está fora. Completamente diferente. Não vou te dizer se é melhor estar fora nunca porque eu prefiro estar dentro. Mas o meu olhar como telespectadora é irritante para quem está fora. Felipe – Prestes a fazer 50 anos de idade e com 24 anos de carreira, você é uma profissional carismática e de grande identificação com o público; uma das maiores apresentadoras da televisão cearense. Com toda essa bagagem, qual o conselho que você dá para quem está começando? Maísa – (Suspira) Vejamos... Acho que não é um conselho exatamente. Mais uma vez, voltando para minha vida pessoal, o que a gente vive me parece que é mais ou menos o que a gente tem de viver. A gente pode ir mudando na medida em que a gente acredita que pode aprender, aperfeiçoar-se e buscar o melhor, né? Então, a dica talvez seja essa exatamente. Por exemplo, quando alguém entra em um curso de Jornalismo e eu ouço um professor ou um palestrante desestimulando... O que é isso? É você botar a pedra em cima de um desejo, de um sonho... Jamais! Então, se você quer de verdade, acho que o primeiro é você tentar descobrir o que (o Jornalismo) é de verdade. Porque tem muita gente que entra na profissão iludida, achando que é uma coisa e é outra. Eu acho que a pessoa tem de se informar de maneira serena do que é de verdade o mercado de trabalho, do que você espera encontrar e do que você está preparado para dar de volta. E, acima de tudo, acho que você tem de estar preparado para aprender todo dia e mudar se for o caso. Porque nosso mercado é restrito. A gente acaba passando pelas mesmas emissoras. Você todo dia tem de desenvolver uma relação muito cordial com as pessoas porque você vai encontrar com elas mais na frente. Você tem de estar disposto a todo dia respirar fundo e pensar se é isso que você quer de verdade e o que é que você está disposto a dar em troca. Com verdade, acreditando. Acho que a gente precisa de profissionais que queiram pensar mais sobre a profissão de maneira crítica. “Eu estou fazendo o que aqui? Pra quem eu estou falando?”. A coisa é que você tem sempre de ouvir o outro lado. Não são só dois. Se você não estiver disposto a isso... E se você, inclusive, não estiver preparado para se frustrar com o fato de às vezes não dá tempo ou não ser possível fazer isso, você vai ter alguns sustos na profissão. Tem de estar preparado. Inclusive para não poder fazer o que pensa que pode fazer. Né?
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Felipe e Isabele agradecem o apoio e a dedicação do grande professor Ronaldo Salgado durante toda a produção desta entrevista, e a oportunidade de viver essa experiência maravilhosa.
A equipe de produção também agradece à fotógrafa Rayanne Lô pelas lindas fotos desta entrevista e à diagramadora Amanda Alboino pelo trabalho minucioso e paciente.
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Tiago Santana Fot贸grafo
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// Tiago Sobreira de Santana
O mergulho de um ser humano profundo e sensível que vive em regozijo a incompletude da arte
Encontramos Tiago Sobreira de Santana no alto do edifício Freeway, no bairro Aldeota, em Fortaleza. O homem é um passarinho com olhos de águia. No ninho do escritório, ele nos recebe com a solicitude e o cuidado discretos do homem tímido e acolhedor que se criou nas terras do Cariri. Mais uma vez, o fotógrafo se dispõe ao prazer de viver um momento de troca. Mas, dessa vez, sem câmera nas mãos. O mergulho no outro agora é um mergulho dentro de si. E assim o faz. Compartilha experiências, aprendizados e olhares. Tiago Santana comparte o deleite de passear com sensibilidade pelos caminhos da vida, essa arte sempre incompleta. Com uma voz calma e tranquila, o fotógrafo torna-se o preto e branco das fotos. Simples, mas intenso. Não há necessidade de cores para captar o espírito leve de Tiago. Mas elas estão lá, bem vivas. Desde os recônditos das memórias do menino que nasceu no município cearense do Crato e logo foi viver em Juazeiro do Norte, ali vizinho. Os olhos divagam e as unhas são vítimas do despertar das lembranças que o envolvem. Um universo mágico, múltiplo e complexo de inquestionável beleza é esse Juazeiro de Padre Cícero, onde Tiago foi criado com os pés no chão e a vontade de voar. Dores, dissabores, clamores e amores. O menino já tinha a arte no olhar. Tímido e reservado, o jovem Tiago encontrou na fotografia a forma de se expressar e de se comunicar. E, então, se apaixonou. Pelo fotografar e pelos fotografados. Chegar perto das pessoas, conversar com elas, conhecê-las, conquistá-las, adentrá-las. Essa é a arte que vive Tiago Santana. A fotografia com lentes grande angular — ele garante — é o pretexto para estar próximo do outro;
para viver o outro. E, de repente, ele eterniza a vivência com olhar sensível. Sempre com o cuidado e a preocupação de conhecer os limites de cada um, mas com a ânsia pela troca, pelo contato com as sabedorias e riquezas do próximo. Tiago Santana é um ser humano apaixonado pelo outro. O jovem que gostava de desmontar peças de máquinas descobriu que montar as peças do olhar sobre a vida poderia ser muito mais interessante. Longe da academia, mas com educação superior, o fotógrafo aventurou-se pelos caminhos que ele mesmo traçou. Cresceu, amadureceu e tornou-se homem profundo. Com o amor sempre ao lado, voltou do mundo às terras do sertão para encontrar o mistério e o êxtase da apreciação do que já era tão dele. Abraçou, então, a necessidade de se entregar, de narrar a vida com um simples olhar. O infame, a loucura, as graças e os regozijos do sertanejo no universo fantástico da fé e da religião. Sob a forte luz do Ceará, apenas o claro e o escuro. Uma tensão e um estranhamento sem sensacionalismos. O homem do interior em suas riquezas e mazelas. A força da simplicidade universaliza e faz pulsar a arte de Tiago Santana. Anos de dedicação e de vivências fizeram do fotógrafo um romeiro em busca incessante pela expressão. Um artista peregrino que não se cansa da incompletude da arte. Esse é Tiago Santana. Uma obra incompleta. Uma vida que se constrói e se reconstrói diariamente. Em meio à loucura digital, ele vive o próprio tempo. Saboreia todo o processo de envolvimento do fotografar. Não há pressa. O trabalho nunca tem fim. O segredo é o amor. Benditos são aqueles que fazem a vida com amor!
SÉRVULO ESMERALDO | 101 TIAGO SANTANA | 101
Ficha Técnica Equipe de Produção: Carolina Esmeraldo Diego Sombra Entrevistadores: Bruna Luyza Forte Carolina Esmeraldo Caroline Portiolli Diego Sombra Felipe Martins Isabele Câmara Mikaela Brasil Paulo Renato de Abreu Taís de Andrade Fotografia: Gustavo Sampaio Texto de abertura: Felipe Martins
Entrevista com Tiago Santana, dia 4 de julho de 2013.
Carolina – Tiago, o seu pai é de Quixeramobim e sua mãe é de Fortaleza. Você nasceu no município do Crato, mas morou muito tempo em Juazeiro do Norte, no Ceará. Como é que foi crescer lá? Tiago – Eu nasci no Crato, mas morei muito mais em Juazeiro do que no Crato. Porque a escola onde eu estudei foi em Juazeiro, logo depois a gente foi morar mesmo – a casa – em Juazeiro. E ter nascido lá, como eu falei anteriormente pra vocês naquele dia (referindo à pré-entrevista realizada pela produção), foi uma coisa assim... Um privilégio, de ter convivido com aquele universo de Juazeiro, que é um universo muito fantástico, um universo muito mágico, um universo muito... Muito rico culturalmente. Juazeiro é um lugar que foi fundado pelo Padre Cícero há 100 anos atrás. Padre Cícero nasceu no Crato também. E fundou Juazeiro. E para Juazeiro ele atraiu milhares de pessoas que fundaram a cidade. As primeiras famílias que, digamos, fundaram a cidade eram famílias de vários estados. Vieram de Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Bahia... Juazeiro foi sendo construído em cima dessa coisa da religião, do Padre Cícero, enfim, do “Padinho”, do santo e tal. Ele acabou atraindo gente e muitos artesãos, muita gente. Quando juntou um grupo de pessoas interessantes... Você sabe que, sempre quando você junta pessoas de culturas diferentes, lugares diferentes, sempre há um caldeirão rico, né? E lá virou um lugar muito por isso. Não é à toa que Juazeiro hoje – hoje, não! Há décadas que é assim – tem os artesanatos mais ricos do Nordeste... Um dos, né? Tem uma infinidade de grupos folclóricos. Tem uma cultura muito forte. E é muito por conta disso, do que o Padre Cícero atraiu para aquele lugar. Aquele lugar sagrado, aonde as pessoas iam porque era como se fosse uma terra prometida. E é interessante que Juazeiro também tem uma coisa estratégica, que está no meio do sertão, mas não é sertão. Não é necessariamente sertão porque tem água, tem a Chapada do Araripe em volta. É meio que um oásis ali, naquela região. Tem água, bastante, tem fonte de água. É um lugar meio simbólico nesse sentido. E a distância é quase igual de Juazeiro para Recife, de Juazeiro para Fortaleza. Fica meio que no centro do
Nordeste. É um lugar muito interessante! Você imagina uma criança que nasceu nesse lugar, que visualmente é muito rico... Eu estou falando tudo isso sem falar nas romarias, que atraem para lá milhares de pessoas. A população multiplica por cinco, sei lá, ou mais... Dez, às vezes, porque é a população que vem atraída todos os anos, várias épocas do ano para as romarias. É um lugar que é realmente muito particular nesse sentido. Ter nascido lá me possibilitou entender um pouco esse universo múltiplo e complexo. (pausa) E me mexeu visualmente. Eu acho que a riqueza visual do lugar foi uma coisa que teve uma importância muito grande. É tanto que eu considero que eu me tornei fotógrafo muito por conta disso, por conta de Juazeiro. Foi Juazeiro que me despertou e, posteriormente – obviamente, eu me envolvi realmente nesse universo da imagem –, até para desenvolver um projeto sobre Juazeiro. Eu antes de fazer fotografia em Juazeiro, meu pai – que também é uma referência importante para mim, além da questão política e da engenharia, que ele é engenheiro – também gostava de fotografia. Fotografava a família, obviamente. Ele tinha esses laboratórios improvisados, sabe? Que você faz no banheiro. E também trabalhava com Super 8 (Formato cinematográfico desenvolvido nos anos 1960, lançado pela Kodak em 1965). Hoje celular filma, né? Mas, na época, não tem os VHS, os filmezinhos, essas câmeras? Naquela época era o Super 8. E eu, antes de mergulhar na fotografia, eu fiz o Super 8 bastante, porque meu pai tinha uma ilhazinha de edição. Porque o Super 8 é uma película de oito milímetros. É como cinema. Era uma coisa assim: você comprava o filme, era um cartucho e colocava, três minutos... Eu fiz muito isso. Editava. Agora eram coisas de família. E cheguei a fazer um filme mais editado, que foi quando o Miguel Arraes, que foi uma figura importante do Nordeste, um político, um cara combatido na época da ditadura (1964-1985) e tal, que é do Crato. Foi exilado; morou muitos anos fora do Brasil (Foi governador de Pernambuco por três vezes). E quando houve a Anistia (1979), que teve que voltar pra cá, ele voltou pro Crato. Então, desde a hora em que ele aterrissou o avião até a
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Depois de entrevistar Lola Aronovich, Carri Costa, Sérvulo Esmeraldo e Maísa Vasconcelos, o grupo escolheu um fotógrafo para fechar a 30ª edição da Revista Entrevista.
O nome de Tiago Santana foi uma sugestão de Caroline, que havia conhecido o trabalho do fotógrafo em um seminário da disciplina de Semiótica. Taís fazia parte da equipe que apresentou o trabalho.
Tiago Santana trabalha como fotógrafo profissional desde 1989. Apesar de ser um dos expoentes da fotografia autoral brasileira, também desenvolveu projetos em outros segmentos fotográficos.
Antes de saber que iria produzir a entrevista de Tiago Santana em parceria com Carolina Esmeraldo, Diego encontrou, por acaso, em um bar de Fortaleza, o livro “Benditos”. Desde então, ficou com a obra de Tiago na cabeça.
“Foi Juazeiro que me despertou e, posteriormente, obviamente, eu me envolvi realmente nesse universo da imagem até para desenvolver um projeto sobre Juazeiro” hora em que ele entrou na casa da mãe dele, eu filmei no Super 8 e montei o filme. Eu já tinha uma experiência. Eu tinha 12, 13 – sei lá – anos de idade. Era menino, né? Então, esse meu envolvimento em imagem passou pelo Super 8. Diego – Tiago, em relação ao Tiago quando criança mesmo, em relação às vivências, às brincadeiras... Como foi crescer mesmo num ambiente de interior, em relação à liberdade que você tinha quando criança? Tiago – Quem teve a experiência de nascer ou de passar um tempo no interior sabe como é diferente da cidade. Quer dizer, eu morava, por exemplo, numa casa um pouco afastada do centro de Juazeiro, que, na época, era quase um sítio mesmo. Hoje já é um bairro. Mas a minha infância foi toda na rua, com os vizinhos. Porque não eram sítios, eram casas, quase sítios, pequenos sítios. E a gente se encontrava, ia jogar futebol, tomar banho de chuva. É aquela experiência que eu acho que é meio comum de quem nasce no interior, que tem essa experiência mais... Esse contato com a coisa rural, também um pouco. Claro que tinha a cidade. Claro que eu tinha uma ligação com a minha avó, que morava aqui e eu vinha todas as férias para Fortaleza. Eu tinha essa ligação com Fortaleza. Não era totalmente isolado. A gente vinha sempre, passava as férias aqui. Mas o dia a dia foi construído nesse ambiente, que era bem livre, bem solto... Eu acho que, também, porque meus pais tinham um pouco essa forma de educar bastante interessante, solta, em que a gente aprendesse construindo as coisas. É engraçado que eu me lembrei de uma coisa muito engraçada de família. Até hoje eu digo que foi um mico, mas tinha um seriado na época que era Shazan (Shazan, Xerife e Cia foi um seriado infanto-juvenil brasileiro da Rede Globo exibido no início da década de 70)... Era um cara que tinha uma bicicleta voadora. Era um seriado brasileiro. Eu esqueci o nome do perso-
nagem... Era um negócio superlegal esse seriado. E eu inventei que a minha bicicleta tinha de voar. E meu pai não disse... Não me desencaminhou. Ele não impediu que eu tentasse. E eu tentei! Fui fazer, montei a bicicleta... Teve um dia que eu preparei: todo mundo me esperando na rua. Não ia voar nunca, né? (risos) Mas isso foi mesmo! Todo mundo esperando na rua! Ele, como era engenheiro, na empresa em que ele trabalhava tinham oficinas, ele ajudou a construir as hélices e tudo. E a bicicleta não voou, mas é interessante porque são as coisas que você tem de aprender na vida. Você tem de tentar. Claro que não ia voar. Mas, do ponto de vista de uma criança que ia tentar, pensar sobre isso era uma coisa... Teria sido muito mais frustrante se ele tivesse dito: “Não, não vai voar e não vamos fazer porque não vai voar”. Foi uma coisa que eu me lembrei. Faz parte um pouco dessa experiência que eu tive no interior. Aliás, é uma coisa que faz tempo que eu não me lembrava, viu? Renato – Ainda quando criança, você estudou o Ensino Fundamental na Escolinha Juju,
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O contato com o fotógrafo foi direto: Paulo Renato conseguiu, em seu local de trabalho, o telefone pessoal de Tiago. Logo nas primeiras tentativas, Tiago atendeu e aceitou o convite.
que era um colégio meio alternativo. O que isso contribuiu para a sua formação? Tiago – Pois é! Na realidade, quando você vai começar a pensar como uma coisa que se constrói, são vários elementos. Não era só estar ali naquele lugar. Além disso, ainda tinha uma experiência, o que é muito interessante. Eram duas irmãs que tinham estudado Arte e Educação no Rio de Janeiro, na época. Elas voltaram para Juazeiro e resolveram montar uma escola. Escola chamada Escolinha Juju. Na realidade, essa escola, eu não sei se ela tinha outro nome... Mas Juju era em homenagem a uma aluna que elas tiveram que morreu. Tinha uma homenagem a uma figura que teve um acidente. Mas o importante era que a escola era uma escola alternativa e muito ligada à arte. Muito calcada em cima das artes. É impressionante como a gente realmente metia a mão na massa, com tintas... Eu me lembro muito bem disso. Tinha muito isso. Coisa que hoje tem ainda nas escolas, mas muito menos. Naquela época, eu me lembro que era uma coisa muito intensa. E a forma de educar, a linha, era muito interes-
“E eu inventei que a minha bicicleta tinha que voar. E meu pai não disse... Não me desencaminhou, assim. Ele não impediu que eu tentasse” sante. Era até uma escola meio... Não digo que era malvista, porque não era bem o caso. Mas era uma escola diferente. Não era uma escola convencional. E também foi uma outra experiência que, para mim, também foi fundamental. Porque essa minha professora, tia Ângela – que eu chamo até hoje de tia Ângela –, é artista plástica e trabalha com educação. Elas foram
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Antes de subir para o escritório, a equipe estava reunida no térreo do prédio. Gustavo Sampaio estava visivelmente nervoso com a responsabilidade de fotografar “um dos maiores fotógrafos do Ceará”.
Bárbara Danthéias não pôde participar da entrevista por questões pessoais. A turma inteira sentiu a falta dela, mas compreendeu o motivo da ausência.
No dia da entrevista, após as apresentações, Tiago cordialmente ofereceu café para o grupo. Todos ficaram se entreolhando. Tiago, então, para quebrar o clima, trouxe café para todo mundo: “Eu vou querer café, vocês não querem?”, disse.
fundamentais nesse processo porque abriram a cabeça pra esse universo mais ligado à arte, arte como uma coisa lúdica, como uma brincadeira. E foi muito interessante. Eu fiquei nessa escola, na realidade, até o primário. Foi a minha primeira escola, Maternal, Alfabetização, essas coisas, depois é o primário, que eu não sei como é que é hoje. Ensino Fundamental, né? Depois o Médio. O Fundamental eu fiz lá na Escola Salesiano, que era uma escola mais formal. Fiz nessa Escola Salesiano, que era uma escola de padre, né? Os Salesianos são muito fortes em Juazeiro. Mas foi uma experiência interessante também. E fiquei lá até o final do Ensino Fundamental. Vim fazer o ensino médio aqui. Bruna – Falando em educação, durante o Ensino Médio, você passou um ano nos Estados Unidos estudando. Como foi que essa experiência fora do país acrescentou na sua formação cultural? Tiago – Olha, eu vim pra Fortaleza fazer exatamente o Ensino Médio. Fiz o primeiro ano do Ensino Médio aqui. E, no segundo ano, eu passei todo fora, nos Estados Unidos. Eu fui numa espécie de intercâmbio, mas na realidade, foi um intercâmbio, óbvio, mas foi uma coisa que... Onde eu morava, em Juazeiro, vizinho à minha casa tinha uma família americana, que era ligada aos Batistas, da Igreja Batista. Eu não tinha nenhum envolvimento com a Igreja Batista, mas eles, claro, eram nossos amigos porque eram vizinhos. A gente não tinha identificação por ser religiosos, mas tinha identificação por ser vizinhos. E eles propuseram na época – porque meu pai sempre teve uma posição de que, quando se completasse 15 anos, quando menina quer fazer festa, mais até naquela época do
que hoje, naquela época era mais emblemático. Meu pai nunca achou importante esse negócio de festa. Achou importante ter uma experiência fora. Minha irmã mais velha foi morar na França. E é engraçado porque o dinheiro que você ia gastar numa festa era praticamente o dinheiro que você gastava pra mandar... Se você for ver, é isso mesmo, o que se gasta em festas... Mas, mesmo assim, ele achava muito mais importante pela experiência. Na realidade, eu tinha 14 anos e completei 15 nos Estados Unidos. Eu fui pra casa de umas pessoas que esse casal indicou. Nem pagava, não era uma empresa. Eu ajudava na casa, no dia a dia da manutenção da casa. Ia ficar seis meses, acabei ficando um ano. E, obviamente, toda experiência de viajar é rica, em todos os sentidos. Nesse caso, eu não sabia muito inglês porque eu tinha estudado no Ibeu (Instituto Brasil – Estados Unidos) aqui. Praticamente não sabia nada. (risos) Eu fui jogado nessa família lá sem falar uma palavra. Não tinha ninguém na época (para ensinar), porque era uma cidade pequena, e era uma época que não tinha essa... Hoje o mundo é menor, nesse sentido. Acho que por conta dos meios, das redes sociais, dos meios de comunicação, da internet... Eu sou de uma geração que não tinha internet, vocês precisam lembrar disso hoje. Vocês praticamente nasceram na internet. O mundo era muito maior. Você chegava num lugar desse e pra encontrar uma pessoa que falasse português... Não existia. Então, o aprendizado foi genial. Eu aprendi rápido. Eu tive de aprender rápido. Além da experiência de estar em outro país... Não que a cultura americana me interessasse muito, mas, de qualquer forma, qualquer cultura é interes-
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“Eu cheguei até a fazer com uns amigos meus lá onde eu morava uma espécie de clube de Super 8, cada um tinha uma carteirinha e tal para projetar os filmes” sante. Tem a coisa do aprendizado da língua inglesa. Eu até falei pra vocês (referindo-se à Carolina e Diego, da equipe de produção): o inglês que eu sei hoje, 40 anos depois – 40 não, né? Quinze, sei lá... Trinta anos depois – é o inglês daquela época. Eu não estudei inglês depois. Isso me ajudou muito. Isso foi fundamental. É tanto que eu quero que os meus filhos façam a experiência. Além da experiência de cultura – eu que, inclusive, estava saindo do interior, vim pra cá, fiquei um ano e fui para os Estados Unidos – quer dizer, isso mexe com a cabeça, abre os horizontes. Em todos os sentidos é importante. Então foi, realmente, importante. E para a fotografia também, porque foi lá que eu acabei comprando a minha primeira câmera, porque lá é muito mais fácil comprar. Na própria highschool (escola de ensino médio nos Estados Unidos) onde eu estudava tinha um clube de fotografia. Eu tive uma ligação com essa coisa da fotografia também. Carolina – Você falou que seu pai costumava fotografar como um hobby. Como é que isso influenciou o seu apreço pela fotografia? Tiago – Sempre foi uma coisa como hobby, realmente. Pra mim, também era. Era uma coisa como uma brincadeira, digamos assim. Assim como eu tinha a experiência artística na escola onde eu estudava, a fotografia também era uma forma de brincar, de exercitar a linguagem. Não é que meu pai me influenciou do ponto de vista da linguagem que ele usava, no que ele fazia na fotografia. Porque o que ele fazia na fotografia era fotografar a família, fazer álbuns, aquela coisa mais caseira mesmo. Ou as viagens que ele fazia... Eu acho que ele me influenciou do ponto de vista de eu ter a possibilidade de ter me voltado pra fotografia, ter olhado para a fotografia, ter experimentado. Ter passado por essa experiência de trabalhar com a fotografia e com o Super 8, que era o cinema, né? Então isso foi fundamental. Tem uma coisa engraçada que meu pai, em
Juazeiro – com essa coisa de experiência, de infância –, meu pai continuou militante lá, naquela época (Quando estudava, o pai de Tiago era ligado ao Movimento Estudantil, DCE e UNE). Tinha os encontros de cooperativas e sindicatos que ele ia. Naquela época – hoje em dia, quando você vai passar uma coisa, você leva um data-show, você passa um DVD – naquela época, eram ou os audiovisuais, que eram feitos com slides, carrosséis de slides. Tinham indústrias de audiovisuais, inclusive. O que hoje é um vídeo, que você faz um vídeo institucional, naquela época era um carrossel de slides... Todo mundo sabe o que é um slide? (risos) E os filmes, Super 8, 16 milímetros. E ele ia para as comunidades passar os filmes. Ele tinha uma máquina de 16 milímetros. Ele ia passar uns filmes para a comunidade lá, em Juazeiro, pra discutir depois. Então passava o filme e discutia. E, quando ele ia fazer isso, sempre tinha muita criança, juntava muita gente, atrapalhava até a reunião. Eu ia, com uma máquina de Super 8, projetar filmes. Eu tinha uma série de filmes, de desenho animado... A mesma coisa que tinham nos DVDs eram os filmes. A criançada ficava toda comigo e eu passando, projetando esses filmes de Super 8 para poder a reunião acontecer. Eu cheguei até a fazer com uns amigos meus lá onde eu morava uma espécie de clube de Super 8, cada um tinha uma carteirinha para projetar os filmes. Isso é uma outra coisa, nada a ver com essa da reunião dele. Era um pequeno clube, um cineclube. Diego – Com quantos anos, mais ou menos? Tiago – Essa faixa, de dez anos. Entre dez e 14, porque 14 eu já estava aqui. Entre dez, 11, 13... Nessa faixa, 14 anos. Eu tinha já essa experiência. Tem outra pessoa ligada à família que era o José Albano. O José Albano, que é um fotógrafo cearense, conhecido, é um fotógrafo também meio alternativo: mora numa casa de taipa na Sabiabagua (bairro praiano em Fortaleza), construiu o estúdio todo de taipa... É uma figura muito interessante! E a minha mãe só tem um irmão, o tio Everardo, e ele é casado com a irmã do José Albano. A irmã do José Albano é minha tia. Eu tinha esse lado, essa perna na família dele, do José Albano, por conta da minha tia. E eu, quando frequentava a casa dela, lá no (bairro) São Gerardo, eu vi o José Albano com o laboratório. Maurício Albano e José Albano são dois irmãos, com laboratório no sótão. Aquele universo de laboratório de fotógrafo isso encanta também quando você é criança. Aquela coisa mágica, da magia do quarto escuro. A própria magia da fotografia mesmo, surgindo, aquelas coisas. Então eu tinha esse lado do José Albano que também – o José e o Maurício – foram motivos que me ajudaram nesse interesse pela fotografia. Taís – Tiago, e na universidade, você teve acesso à ideia de fotografia como algo mais
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Carolina e Diego, membros da equipe de produção, tiveram problemas com as cadeiras: a de Carolina não parava de fazer barulhos e a de Diego, subitamente, quebrou o encosto.
Tiago Santana coordenou a 1ª e a 2ª Semana de Fotografia do Ceará, realizadas em 1989 e 1990, em Fortaleza. Grande parte do aprendizado do fotógrafo deve-se às semanas de fotografia das quais ele participou na juventude.
Em 1993, Tiago Santana desenvolveu o grupo Dependentes da Luz, que reuniu fotógrafos de Fortaleza para promover atividades para a difusão da fotografia no Ceará.
Em 1994, Tiago é contemplado com a Bolsa Vitae de Artes, fato muito importante para a conclusão do livro Benditos. De acordo com o fotógrafo, foi nessa época em ele passou a ter um “salário” regular.
sério, como algo que também estava sendo pensado por outras pessoas. Como foi esse período? Tiago – Vim fazer Engenharia Mecânica, também um pouco por influência do meu pai, que era engenheiro. Mas eu sempre gostei de mecânica, de mexer nas coisas, desmontar, sabe? De pegar o liquidificador e desmontar ele todinho, montar de novo, ventilador... Aquelas coisas de criança. Eu fazia muito isso. E, como meu pai era engenheiro, tinha a história da oficina da empresa... Esse universo também era um universo que eu presenciava. E eu fui fazer Engenharia Mecânica aqui. Quando eu estava fazendo na Federal, lá na UFC, aqui existia, no Brasil, a Funarte (Fundação Nacional de Arte é um órgão do Governo Federal responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas de fomento às artes visuais, à música, ao teatro, à dança e ao circo), ligada ao Ministério da Cultura, o Infoto, o Instituto Nacional de Fotografia. Era um instituto muito interessante que organizou uma série chamada Semanas Nacionais de Fotografia. Era muito interessante porque era uma semana nacional, uma grande semana, um grande encontro, um congresso... E essa semana não acontecia sempre no Rio de Janeiro – a sede era no Rio de Janeiro, desse instituto. Mas ela não acontecia sempre no mesmo lugar. Isso é o que era interessante. Ela aconteceu em várias regiões do Brasil. Cada ano era numa região. E, aliás, esse movimento aconteceu desde Curitiba, desde o Paraná, até Belém (Pará). E foi impressionante a importância desse movimento, dessas Semanas Nacionais. Foi possível, através das semanas nacionais, fazer um mapeamento da produção da fotografia no Brasil todinho. Se esse evento só acontecesse no Rio, pra mim, jamais teria tido esse caráter, porque você não consegue atrair pessoas do Brasil todo pra ir pra um... Muita gente não pode, por questões de tempo ou financeiras, enfim. Mas a Semana vinha para o estado, fazer aquele mapeamento. E foi, realmente, um momento muito rico. Esse Infoto foi extinto pelo Collor (Fernando Collor de Melo, presidente do Brasil entre 15/03/1990 e 29/12/1992), assim como ele extinguiu outros órgãos. Foi uma das coisas que o Collor fez (irônico). Coincidentemente, quando eu estava na universidade, uma dessas semanas aconteceu em Fortaleza. E a sede desse encontro era na UFC. Eles usavam aquele auditório Castello Branco, da Reitoria, o Mauc (Museu de Arte da UFC). Eu tinha uma ligação muito grande com a Arquitetura também porque a minha irmã fazia Arquitetura. E eu estava sempre envolvido com o pessoal da Arquitetura também. Acho até que eu era mais ligado à Arquitetura do que à Engenharia. Talvez, se eu tivesse ido pela Arquitetura, eu até teria continuado. E eu, um dia lá andando pela Arquitetura, deparei com o
que estava acontecendo. Fui no auditório e vi lá uma série de projeções, de debates sobre a fotografia, tinham oficinas, exposições, uma série de coisas. Isso me abriu a cabeça. Eu percebi que a fotografia era algo muito maior, não era aquela coisa lá do meu pai, do fotógrafo que eu conhecia, que era interessante ou de um hobby. Era uma coisa que era um universo muito amplo, um universo onde pessoas pensavam, discutiam, refletiam, brigavam... Tinha uma coisa intensa. E a variedade de produção, que a gente via projeções. Eles faziam umas noites visuais de projeções do Brasil inteiro, de gente do trabalho. Isso mexeu comigo. Aí, a partir desse momento, que eu acho que foi chave nesse sentido, eu comecei a ir abandonando a Engenharia e mergulhando realmente na fotografia. Eu já estava fazendo mais fotografia. Eu me lembro que eu fotografava muito pros estudantes de Arquitetura, maquetes, essas coisas. E isso acontece muito na área da Arquitetura. Tinha até um laboratório na Arquitetura. Não sei se ainda tem. Mas tinha um laboratório. Eu cheguei a fotografar com os alunos os projetos. Uma coisa da Arquitetura que até depois eu acabei fazendo um pouco da Arquitetura, de fo-
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Em parceria com os fotógrafos Tibico Brasil e Celso Oliveira, Tiago Santana funda em 1994 a editora Tempo d’Imagem, que desenvolve projetos editoriais ligados à fotografia.
“E eu não fiz faculdade, mas eu digo que minha graduação e meu mestrado – eu digo mestrado porque demorou mais de quatro anos – foi fazendo o livro Benditos” tografia de Arquitetura, que era uma coisa que eu gostava. Foi nesse momento que a fotografia começou a tomar conta da minha vida. E foi esse caminho sem volta. Abandonei realmente a Engenharia. Felipe – Mas você se arrepende de não ter concluído? Tiago – Não, não me arrependo, não. Porque, aliás, na época, eu quis até trocar pra fazer Comunicação. O Silas de Paula (fotógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará), que eu conhecia na época, disse: “Não venha fazer comunicação! Por que você vem fazer Comunicação? Não tem nada aqui! Só tem uma cadeira de fotografia!”. Na época não tinha, inclusive, cursos de graduação na área da fotografia. Hoje tem até pós-graduação. Enfim, hoje tem
vários cursos de graduação e de pós na área da fotografia. Na época não tinha. Na realidade, a fotografia era restrita a uma cadeira, uma ou duas cadeiras na Comunicação. Eu cheguei a pensar. Eu cheguei até a fazer vestibular pra Letras... Naquela época que você está meio assim (risos)... Fui fazer porque eu gostava de língua, achei que era interessante. Depois eu pensei em fazer Sociologia porque achei que ia me ajudar. Mas a história era fotografia. Meus pais, num primeiro momento, claro que ponderaram: “Por que você não termina? Não tenho nada contra você ter ido pela fotografia, mas vai e termina o curso... Aí você faz o que você quiser”. Eu acho até que eu poderia ter feito isso, eu estava quase na metade do curso. Eu fui deixando o curso, fui abandonando. Mas tal-
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Em 2007, Tiago é agraciado como prêmio Conrado Wessel de de Ensaio Fotográfico (São Paulo) pelo ensaio O Chão de Graciliano, editado em formato de livro em 2006. De acordo com o fotógrafo, somente trabalhos publicitários eram premiados.
Tiago Santana ganhou o prêmio Melhor da Fotografia no Brasil, como o melhor fotógrafo documentarista do país consecutivamente durante três anos: 2007, 2008 e 2009.
Tiago se tornou, em 2007, o segundo fotógrafo brasileiro a ter um trabalho publicado na coleção de fotografia francesa Photo Poche, a mais importante coleção de livros de fotografia do mundo. O fotógrafo Sebastião Salgado foi o primeiro.
“Então eu decidi, logo no início, que eu queria fazer um trabalho sobre aquele lugar onde eu nasci, sobre aquele lugar que é importante pra mim”
vez se eu tivesse voltado, em pelo menos dois anos eu já tinha concluído. Engenharia são cinco, né? Talvez se eu tivesse dedicado três anos talvez eu tivesse terminado. Mas eu não consegui! É aquela coisa que você não consegue. A coisa vai o tomando para um outro rumo... Mas eles foram muito flexíveis, entenderam e aconteceu. Não teve grandes... Não vou dizer que não teve uma pressão me cobrando para que eu fizesse, terminasse, o que é normal. Até se fosse meu filho eu também faria isso. Pelo menos alertar. Se eu tivesse terminado hoje, por exemplo... Se bem que é muito flexível essa coisa de você dar cursos na área acadêmica. Você pode dar cursos de uma outra forma. Mas eu poderia me dedicar mesmo, pelo menos quando eu me aposentasse – aposentasse, que eu digo, é da fotografia – eu poderia dar aula na universidade. Mas eu nunca tive isso como o meu caminho, então isso não me fez falta. Meu aprendizado como fotógrafo foi todo – assim como foi o da maioria dos fotógrafos da minha geração – nesses encontros de fotografia, nessas trocas, nesses momentos, nessas oficinas. Essas semanas eram fundamentais, eram vários cursos, vários encontros, trocas, aprendendo com o outro. Esse foi o grande momento. E eu não fiz faculdade, mas eu digo que minha graduação e meu mestrado – eu digo mestrado porque demorou mais de quatro anos – foi fazendo o livro Benditos. Carolina – Qual foi o momento em que a fotografia entrou na sua vida como forma de trabalho profissional? Tiago – Olha, quando eu estava na Engenharia, quando eu fotografava para os alunos, já era um pouco o meu trabalho. Tinham uns que me pagavam... Mas logo depois que eu tive esse contato com esse mundo da fotografia, eu comecei a me dedicar mesmo. Comecei a fotografar muito pra Arquitetura, para arquitetos mesmo. Comecei a fazer frila (palavra aportuguesada do inglês Freelancer – trabalhos avulsos sem vínculos empregatícios), fui fazer um pouco de tudo. As pessoas ligadas à publicidade, o próprio José Albano, eu fui fazer coisas com eles. O (fotógrafo) Celso Oliveira foi um cara que... Foi uma experiência muito interessante com o Celso porque ele era de uma outra geração e ele era um cara que tinha experiência em todas as áreas: publicidade, jornalismo, tinha sido fotógrafo da (revista) Veja em Brasília. Ele tinha uma experiência meio vasta nesse sentido. E também um trabalho autoral, que ele gostava de fazer fotografia pra ele, não por encomenda. Nesse período, eu comecei a trabalhar de forma realmente profissional com isso. Obviamente que comecei aos poucos, porque eu ainda estava na universidade, até o momento de largar mesmo. Eu já estava atuando. Nunca fui fixo de um jornal, nunca fui fixo de nenhuma agência, de nenhum lugar. Acho que
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isso foi uma coisa até boa, pra mim. Eu fiz fotografia para jornais daqui, jornais de fora, até pra Veja. E todas as experiências foram muito importantes na construção do meu trabalho. Mas eu sempre tinha na cabeça, pela razão que eu tinha me tornado fotógrafo, de fazer um trabalho mais que não fosse encomenda de alguém, que fosse um trabalho que estivesse o meu desejo de me comunicar ou de falar ou de contar histórias. A fotografia nada mais é do que contar também uma história. Em vez de usar as palavras, a gente usa a fotografia. Caroline – Tiago, como os seus pais encararam o fato de você querer trabalhar como fotógrafo? Tiago – Tudo é muito relativo, né? Porque, na época, era um pouco diferente. Hoje, talvez, o fotógrafo tenha mais um glamour. (pausa) Talvez, né? Eu não sei. (risos). Não sei se tem glamour.(olha para Gustavo Sampaio, fotógrafo da entrevista) Não, né? (risos) Não, mas fotografia hoje é muito mais... O mundo é fotográfico, de certa forma. A imagem está muito presente. Todos somos fotógrafos, né? Todo mundo fotografa e já é uma questão que depois a gente pode entrar: como a tecnologia possibilitou o fato de todos serem fotógrafos. Mas eu acho que, na época, era um pouco mais difícil entender que uma pessoa ia ser fotógrafa. Meu pai tinha as referências do próprio José Albano, que era próximo, do Seu Chico (Francisco Albuquerque, mais conhecido como Chico Albuquerque, cearense – 1917-2000 –, o primeiro fotopublicitário do Brasil), que era a figura conhecida aqui da época da Abafilm (empresa de artigos e equipamentos para fotografia). Existia uma fotografia, que era um certo ritual fazer uma fotografia de estúdio, que as famílias iam fazer fotos lá. Mas, por outro lado, era uma coisa muito incerta. Então, não foi fácil. Por isso que teve essa cobrança no sentido de fazer uma faculdade, de terminar mesmo... Era aquela coisa da bicicleta: ele não disse “não faça”. Ele me deixou fazer. Eu acho que o deixar fazer faz parte. Eu podia ter quebrado a cara, não ter me dado bem e ter voltado. Felizmente, não foi assim, o caminho. Acho que eu acabei acertando no meu caminho. E hoje eles reconhecem muito isso. Hoje eles são superfãs das minhas conquistas. Isso é muito legal. Mas minha mãe diz até hoje, ela ainda acha que eu devia fazer. (risos) Ela acha por esse sentido, ela até vive dizendo: “Vamos retomar a sua matrícula”. Minha matrícula que eu tenho na UFC ainda – que deve estar jubilada, não sei mais (risos) –, parece que você pode entrar com mandato, recurso. Eu nunca fui atrás, mas ela me cobra isso ainda. Porque ela acha que é importante eu terminar para eu ter essa possibilidade, se eu quisesse ensinar no mestrado ou dar aula ou fazer uma história, talvez. Mas nunca me fez falta. Não que não seja importante.
“A fotografia é fruto de uma relação de encontro com o outro e esse encontro é muito mais importante e muito mais potente que o resultado que se possa vir”
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Audálio Dantas (1929) é um jornalista brasileiro que atuou na grande imprensa e se destacou por desenvolver um importante trabalho na revista Realidade.
Em 2009, Santana lançou o livro Patativa de Assaré – O Sertão dentro de mim, uma biografia em fotografias de um dos grandes poetas e músicos sertanejos.
nversa com Pedroa própria sede do o bairro Itaperi. Ao Ed foi bem recelos colaboradores G e sentiu o clima contração que há .
Mônica Gondim, assessora de planto da Secretaria balho e do Desennto Social (STDS), na pré-entrevista ndrea sofreu basreconceito ao ensecretaria, da qual denadoria Estadual e.
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“O caminho eu tenho, que é um pouco do que eu decidi fazer, que é mergulhar na fotografia, mergulhar nos projetos... Eu vou morrer fazendo isso”
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Para realizar o livro Benditos, Tiago Santana fotografou o cotidiano das romarias de Juazeiro do Norte durante oito anos (1992-2000). A pesar de ter concluído o projeto, Tiago continua fotografando a região do Cariri.
“Quando você faz uma coisa com desejo, com intensidade, com amor, dedicação, acho que a coisa mexe com você, né? ”
A mesma exposição que Tiago fez de Benditos em Fortaleza, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, foi recriada em Juazeiro do Norte. Lá, romeiros e fotógrafos amigos puderam visitar a exposição no momento em que romarias aconteciam.
Vale a pena ressaltar uma coisa que eu acho que é diferente da minha geração. A geração de fotógrafos hoje é uma geração que sai da universidade. Se você for ver os fotógrafos que estão no Jornal O Povo, muitos são formados em Comunicação, saíram da universidade, da Publicidade. Existe uma formação pra isso. Eu tenho fotógrafos amigos mais novos do que eu que têm mestrado em fotografia, alguns já fizeram até doutorado. Muito ligado a esse universo da pesquisa. Até porque, com essa coisa da fotografia e o envolvimento dela com o mundo da arte, a fotografia se tornou muito ligada a um conceito, a um pensamento, a um estudo. Hoje um profissional de um jornal é muito diferente: estão saindo dos cursos de Comunicação ou estão terminando. Isabele – Tiago, você falou agora da questão dos fotógrafos que saem da academia. Você se imagina, se não tivesse seguido o conselho do Silas, um comunicólogo? Tiago – Eu acho que eu não ia mudar muito não. Eu acho que seria bom. Se fosse hoje, talvez, eu acho que faria. Não necessariamente Comunicação. Talvez, pro meu trabalho, eu estudasse Sociologia, talvez me ajudasse mais ainda. Acho que me daria subsídio pro tipo de trabalho que eu gosto de fazer, de pensar um pouco sobre. Eu me imagino. Eu não sei se mudaria muito eu tentar naquela época, mas hoje, por exemplo, se meu filho quisesse ser fotógrafo, eu aconselharia a fazer um curso, até para fotografia, porque têm cursos de fotografia. Eu até posso ainda voltar a fazer. Se a minha
mãe ainda conseguir, insistir muito, eu posso... (risos) Tudo na vida te complementa. Eu acho que eu fazer um curso, se eu estiver num momento em que eu ache possível fazer... Porque tem uma outra característica pra mim, que meu trabalho fica aqui em Fortaleza, mas tem época do ano que eu fico menos em Fortaleza. Para mim é meio complicado. Eu me envolvo com um projeto, eu estou... Como é que eu vou manter o dia a dia de um curso, né? Por mais que eu faça um curso superrápido, três anos... É difícil. Ou então fosse levando aos poucos. É complicado. Mas eu acho, talvez, que eu possa até fazer. Diego – Tiago, e em relação a esse começo, você passou por alguma dificuldade em relação à valorização do fotógrafo, ao campo de trabalho mesmo? Tiago – Olha, eu confesso que não, sabe? Eu acho que, na época, existiam muito menos fotógrafos. O mercado era muito menor. Não só o mercado era menor, quanto a quantidade de fotógrafos era bem menor. E é engraçado que a valorização do fotógrafo talvez fosse mais do que é hoje. Porque hoje é aquela velha história: somos todos fotógrafos. Então o contato da agência fotografa para a gente, vai lá e: “Não, não precisa não. A gente vai lá e joga no Photoshop...”. Naquela época, todas as fotografias de publicidade não tinham esse pós-tratamento, praticamente. Você, quando fosse construir uma imagem, você a construía por inteiro ali. Tinha de sair num cromo, num slide pronta, praticamente. Claro que sempre
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existiu um pouco de interferência, mas era uma coisa... Fazer fotopublicidade naquela época, por exemplo, era um negócio de louco! Comparando com hoje. E eu me lembro – e acho que os profissionais daquela época falam muito isso – de como era muito mais valorizado do ponto de vista até econômico. Os valores que eram pagos eram bem maiores do que os que são hoje. Eu estou generalizando, claro que têm profissionais e profissionais. Mas existe hoje, talvez, uma pulverização disso, todos se acham fotógrafos. E todos são fotógrafos! Mas existe um pouco uma certa dificuldade. Na época, eu acho que era valorizado. Acho que tinha um mercado mais atento a isso. Eu acho que tinha uma certa importância ter um bom fotógrafo fazendo, pensando e ajudando a fazer um trabalho. Eu não tive muito problema com relação a isso. Eu tive sorte porque eu tive pessoas à minha volta e posso citar o Celso Oliveira, o José Albano, o próprio Silas, que me ajudaram um pouco nesse sentido. Bruna – Tiago, falando sobre o Benditos: quando você decidiu realmente começar a fotografia, resolveu fazer um trabalho sobre Juazeiro do Norte. Por que você voltou às origens para fazer o seu primeiro grande trabalho? Tiago – Pois é. Eu, quando fiz aquele mergulho, naquela época, só tinha uma coisa na minha cabeça: primeiro que eu queria ser fotógrafo – já estava meio que decidido –, mas eu queria ser fotógrafo porque eu queria também fazer um trabalho sobre aquele lugar. Sobre aquele lugar, por todas as razões que eu já contei a vocês, foi importante pra mim. Sem falar que Juazeiro é um lugar superfotografado. Lá vira encontro de fotógrafos. Juazeiro é sempre um lugar muito documentado, em reportagens... Sempre foi e ainda continua sendo. E eu achei que era interessante e importante eu fazer – eu, que nasci lá, que tinha uma relação com aquele lugar – um trabalho mais profundo, que não fosse uma mera ou simples reportagem, que fosse algo mais. Que tivesse mais uma dedicação, um mergulho, e alguém que fosse mais... Eu decidi, logo no início, que eu queria fazer um trabalho sobre aquele lugar onde eu nasci, sobre aquele lugar que é importante pra mim. E não era uma reportagem (enfatizando). Era uma interpretação muito pessoal minha, das minhas lembranças, da minha coisa de infância. E foi isso que eu estava falando para ela (refere-se à Carolina) que eu não fiz graduação
nenhuma, mas o Benditos foi a minha graduação e o meu mestrado. Foram oito anos. Mestrado e doutorado, quase, né? Oito anos... Mestrado são dois anos, né? Então foi mestrado e doutorado! (risos) Porque eu passei oito anos dedicado. Obviamente que não foi dedicado totalmente só a isso, eu ficava fazendo esses trabalhos comerciais, como eu já falei. Tanto ligado à Arquitetura, ligado ao Jornalismo, ligado à Publicidade. Era uma época que, enfim, eu não tinha grandes responsabilidades, eu ainda morava na casa dos meus pais. Tudo o que eu ganhava, usava para o meu projeto pessoal, que era fotografar, que era viajar, que era fazer isso. O Celso Oliveira, voltando mais uma vez, me ajudou muito porque ele era um cara que já estava no mercado e tudo que ele ganhava investia nesse trabalho autoral, que a gente chama. Um trabalho onde o fotógrafo se dedica, que é a razão de eu ser fotógrafo. Eu não fui fotógrafo para fazer trabalho só comercial. Se eu fosse só fazer trabalho comercial, talvez eu não tivesse sido, me tornado um profissional, digamos, da fotografia. Felipe – Tiago, o Benditos tem essa atmosfera bem religiosa. Como é a sua relação com a religião? Tiago – Obviamente que eu sou de uma família católica, como a maioria de todos nós. Não sei vocês... Mas a maioria. Hoje mudou um pouco isso. Hoje tem umas religiões mais... Mas eu sou católico por essa questão. Nunca fui um católico praticante de religião. Interesso-me, acho interessante todos os tipos de religião e tudo que tem essa relação com o sagrado. Acho interessante, seja ela qual for. E Juazeiro, pra mim, o que me interessava mais, o que me interessa mais até hoje, não é necessariamente a questão da religião católica, do Padre Cícero. É a relação, é o que o fenômeno do Padre Cícero no Juazeiro representa. O que isso simbolicamente é a relação dos romeiros, dos peregrinos, das pessoas que vão lá com esse santo, que é um santo Padinho. Padinho é o segundo pai, né? Seu padrinho não é aquele que representa seu pai? O Padinho Ciço é um segundo pai para essas pessoas. Tem Deus e ele é o segundo. Tem Deus também, que é o Pai maior. Dizem eles: “Tem meu pai, mas tem meu Padim Ciço, que é o meu segundo pai”. E é uma relação que é muito louca porque é a relação de um santo que é próximo das pessoas. Não é aquele Santo Antônio, santo... Que
“A fotografia nunca foi pra mim uma coisa de denúncia necessariamente. Ela é também. Eu nunca tornei isso como uma coisa panfletária” TIAGO SANTANA | 115
Além de premiadas e reconhecidas, as fotografias que compõe o livro Benditos já serviram de mote para a produção de artigos científicos e seminários acadêmicos, contribuindo para a inclusão de Tiago na Academia.
Um dia depois da entrevista, Carolina, Caroline e Mikaela encontraram - por acaso - um trabalho de conclusão de curso sobre o Benditos na coordenação do curso de Comunicação Social da UFC.
Já no final da entrevista, Tiago faz uma pausa e vai à copa do escritório. Volta com uma garrafa de refrigerante, biscoitos doces e uma caixa de chocolate Bis gelado - do jeito que ele os prefere.
Sabendo que Diego fotografa, o professor Ronaldo o presenteou com uma edição do livro Benditos. Diego levou no dia da entrevista para receber uma dedicatória do autor.
é tudo importado da Espanha, de Portugal. É um santo daqui! Santo recente. Padre Cícero faz parte da história recente nossa. Essa relação que as pessoas têm com essa figura, essa relação consagrada, com alguém que vai transcender... Obviamente que quem procura Juazeiro, a maioria que procura, são pessoas humildes, simples: agricultoras e sertanejas. E vão lá à procura de melhorias, melhoras... Seja para conquistar terras, seja para ter trabalho, seja para chover, seja para um problema mais pessoal físico, uma doença. Essa relação que as pessoas têm com esse divino, esse sagrado é uma coisa enriquecedora, é muito rico, é muito bonito. Isso obviamente estou falando de Juazeiro, mas em todas as regiões têm uma coisa bonita disso, simbólico. E Juazeiro, como eu vivi vendo essas coisas... Por isso o meu interesse em contar um pouco essa minha história através de imagem. Foi aí que eu mergulhei nesse projeto. Eu passei oito anos fazendo, obviamente em épocas indo mais e outras indo menos, porque, em Juazeiro, acontecem umas quatro romarias durante o ano. Grandes romarias. E eu ficava, na medida do possível, indo a essas romarias. Em Juazeiro o ano inteiro tem peregrino, tem
foi fundamental para eu pensar. Por isso que eu digo que foi meu grande aprendizado. Porque eu passei oito anos pensando no trabalho, discutindo ele com os outros, compartilhando, mandando para exposições coletivas. Meu trabalho começou a circular. Mandei para bolsas. Eu ganhei, por exemplo, bolsa da Funarte, do Marc Ferrez. Eu até pedi para fazer as viagens de pau-de-arara, que eu fiz umas viagens de caminhão para Juazeiro. Ganhei uma bolsa que era importante, da Vitae, que era a melhor bolsa de artes que tinha na época no Brasil. Foi a primeira vez que eu tive – talvez a única – um salário. Era uma bolsa de um ano para desenvolver um projeto. Talvez foi o que mais me possibilitou a fazer o Benditos. Eu tinha um salário mensal só para fazer isso. Era uma bolsa de São Paulo, a Fundação Vitae, que era importantíssima. Que é um projeto que você manda, participa, tipo um edital. Eu comecei a mostrar o trabalho, em exposições coletivas e tal, mas a ideia era fazer o livro. Quer dizer, eu tinha essa ideia de... Fui amadurecendo, porque eu queria que meu trabalho fosse uma exposição e um livro. Primeiro uma exposição, pela importância que é uma exposição, que era a minha primeira e tal. E o livro porque é o que o trabalho conti-
gente que vai. Mas existem esses momentos mais, digamos, especiais. Paralelamente a isso, eu fui mandando meu trabalho pra tentar bolsas. Outra coisa que eu falei para vocês (referindo-se à Carolina e Diego) é a questão do tempo. Eu nunca tive essa pressa, essa ansiedade, essa coisa de: “Ah, vamos fazer uma exposição”. Hoje eu conheço gente que fez uma viagem, ou saiu fora do País, passou dez dias ou 15 dias fora e acha que quer fazer trabalho – acha, não, até pode! – mas eu nunca tive essa coisa. Eu acho que o tempo hoje é um pouco diferente. A gente vive nesse tempo, que é o tempo das redes sociais, da internet, de uma coisa muito rápida. Eu acho que o meu tempo foi um pouco diferente. E eu tive um processo, que eu acho que foi de grande aprendizado, que eu nunca tive essa ânsia, essa coisa de... (interrompe-se) Oito anos é um tempo bastante... Se falar hoje, é (emposta a voz, abrindo os braços) oito anos! Até hoje, quando alguém me convida para fazer um projeto, eu digo: “Não, eu acho que um ano dá para fazer”. O cara diz (alterando a voz, espantado): “Um ano!?” (risos). Isso
nua. Ele não morre na exposição. Ele tem vida própria e longa. E aí é um outro envolvimento com o livro, que depois eu posso até falar, que é por que o meu livro. Por que eu me envolvi também com o livro. Então eu passei esses oito anos fazendo o Benditos, que foi o meu aprendizado, realmente. A minha universidade. Mikaela – Como você falou: passou oito anos nesse trabalho do Benditos e você já era familiarizado com as romarias. Mas como é que foi a experiência de estar inserido em uma atmosfera tão religiosa, reproduzir essa atmosfera de modo muito sensível sem necessariamente ter essa religiosidade dentro de si? Tiago – Olha, religiosidade eu tenho. A gente tem, como eu falei. A religião está presente em mim como... (interrompe-se) É uma coisa tão louca, o Juazeiro, porque extrapola essa coisa da religião, sabe? Fica uma coisa meio êxtase, meio de... Até de loucura, sabe? Para mim, era uma coisa muito (para e pensa)... Eu estava acostumado já com aquilo. Mas, por mais acostumado que eu estivesse com aquilo ali, é sempre diferente todo dia. Sempre você tem ex-
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periências diferentes, experiências novas. E é interessante porque você convive com pessoas que você talvez não encontre mais nunca. Porque a romaria é uma coisa onde circula muita gente que não é da cidade, né? Eu acho que é uma influência riquíssima. Foi uma experiência riquíssima de conviver com essas pessoas, entendeu? De estar próximo a elas, de estar quase como um peregrino também, como um romeiro: viajando com eles, no êxtase com eles ali. É uma coisa que você nem pensa muito. Eu acho que, quando você fotografa, quando você está envolvido com esse universo, com isso tudo, você pensa muito pouco. As coisas vão acontecendo meio que intuitivamente. Até a própria construção de uma linguagem, a construção de um trabalho. Eu fui aprendendo depois a ter de refletir sobre ele, a ter de falar, aprendendo por que é que o meu trabalho foi surgindo daquele jeito. Por que o meu trabalho é fragmentado, por que no meu trabalho as fotos são meio cortadas, são fotos meio... Às vezes é um pedaço de alguma coisa e não está totalmente completo. São coisas que, se você me perguntar: “Tiago, você pensou nisso?” Eu não pensei nisso. “Ah, vou fazer um... Cortar aqui...” (gesticulando) Eu não penso nisso. Esse enquadramento que é dado nas imagens é o enquadramento
pedaços. Intuitivamente, ao documentar, eu fui incorporando essa coisa... Confesso para você, não foi uma coisa que eu decidi fazer, não. Não tenho como mentir e falar: “Ah, não, claro, foi muito pensado”, porque não foi. Foi uma coisa que foi surgindo e eu fui descobrindo. Isso é que é o interessante da coisa. Claro que, quando você fotografa – não só quando você fotografa –, você vai com toda a sua história, vem toda a tua... Tudo o que você aprende, tudo o que pensa, todas as informações que você tem, elas são jogadas para fora, são interpretadas, são colocadas no trabalho. Seja ele qual for. Bruna – Como foi o processo de construção desse livro, o Benditos? Tiago – Eram 70 imagens, só. Um outro processo superdifícil de editar. De oito anos, selecionar 70 fotos... Eu tenho milhares de fotos. E as 70 fotos que eram para o livro. E o livro é outro processo superinteressante. Pensar o livro, discutir o formato do livro, pesquisar formatos, como eu queria. Eu não queria que uma imagem em nenhum momento tivesse dialogando com outra. No livro não tem nenhuma imagem com outra na mesma página. Sempre tem uma imagem só. Quando vem uma imagem na vertical, ela vem sozinha. Eu queria que cada imagem tivesse o seu tempo. O Benditos tem 13
Quando Diego pediu a dedicatória no livro, Tiago decidiu dar mais três livros para a equipe sortear entre si: Chão de Graciliano, Patativa do Assaré – O Sertão dentro de mim e Benditos. Os vencedores foram Caroline, Paulo Renato e Carolina.
“Você tá imbuído da tua vontade de contar aquela história. Se você pensar muito naquele momento do ato de fotografar, ele (o pensamento) te atrapalha” exatamente no que estava no negativo que eu fiz. Porque você sabe que, quando você amplia, você pode reenquadrar. Mas eu tinha um... (interrompe-se) Não é nem princípio ou por purismo. É porque faz parte do meu processo de trabalho. O momento de fotografar, para mim, é importante. Aquele recorte que eu fiz, aquela interpretação é mantida integralmente no resultado. Tem hora que ela é muito entrecortada. E depois, muito tempo depois que eu fiz o Benditos, um jornalista veio me entrevistar – eu acho que foi um jornalista – veio me perguntar por que as minhas fotos eram tão cortadas, recortadas, tinha essa coisa meio misteriosa – porque tem a ver com mistério também, da coisa meio incompleta, que deixa você meio... Estranhamento, né? Um mistério. Eu gosto muito dessa palavra – se tinha a ver com os ex-votos. Os ex-votos são aqueles pedaços de madeira de pé, de mão... Vocês já viram? Tem em igrejas ou santuários: cabeça, pé, mão... Aquilo é uma coisa que eu convivi a minha infância inteira. Na casa dos meus pais tinha um painel de um artesão, de um artista que era todo feito com esses
anos. Hoje eu faria com certeza diferente porque hoje eu sou outra pessoa. A gente muda o tempo todo, né? Pensar, sabe? Escolher as pessoas que iriam fazer o texto, colocar a coisa da xilogravura como uma referência importante no meu trabalho. Assim como eu uso a fotografia, eles usam essa xilogravura para contar a história de Juazeiro. Fui pesquisar a questão gráfica, de conseguir o mínimo de qualidade numa ampliação em preto e branco. É muito mais difícil imprimir preto e branco do que colorido. As coisas não são simples, né? Passar três noites numa gráfica... Paulo Renato – Tiago, o Benditos é um trabalho que é, digamos, universal. Ao ver as fotos, a gente entende que tem o lance da religiosidade de Juazeiro do Norte. Mas, se uma pessoa que não seja daqui pegar o Benditos, ela também consegue sentir emoção nas fotos. Como autor, a que você atribui esse caráter universal da obra? Tiago – Ela (a obra) não é uma reportagem, sabe? Ela não tinha o compromisso, a não ser comigo mesmo, de mostrar “aqui é a estátua,
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Renato estava com o pressentimento de que aquele dia seria o seu dia de sorte. Dito e feito: assim que terminou de falar, Tiago retira um papel com o nome dele do copinho em que estavam os nomes a serem sorteados.
Carolina pediu para não haver sorteio para o livro Benditos, entrou em acordo com a turma e ficou com a obra para ela, uma vez que Diego já tinha conseguido um exemplar. A turma foi compreensiva e aceitou o pedido dela.
aqui é o lugar onde o Padre Cícero nasceu”. Eu tinha o compromisso com a linguagem, com a fotografia e com a minha identificação com aquele lugar, obviamente, com o respeito ao outro. A minha relação também é muito ligada ao outro. Eu até brinco, às vezes. A fotografia é o que menos importa, no final das contas. Pra mim, (ela) é quase um pretexto pra tá nesses lugares, pra viajar, sabe? A fotografia é fruto de uma relação de encontro com o outro e esse encontro é muito mais importante e muito mais potente que o resultado que se possa vir. A experiência desse encontro, dessa troca, que é uma troca, sabe? Eu aprendo muito com essas pessoas, com esse universo rico. Às vezes, a gente pensa assim: “Pobre coitadinhos”, mas são pessoas de uma riqueza, de uma sabedoria, de um conhecimento de como lidar com situações, com questões adversas, sejam do clima, sejam econômicas. São pessoas de grande aprendizado pra gente. O meu envolvimento com o lugar onde eu nasci me abriu também um pouco para ver isso com outros olhos. Eu tenho amigos que nasceram nessa região que não têm essa visão. Acha que aquilo ali é um bando de louco, que é loucura. Acha que aquilo é uma probreza... Eu acho uma riqueza cultural muito grande! Eu acho que essa é uma postura, inclusive, que eu tenho como fotógrafo. Eu nunca chego como “o fotógrafo”, aquele cara cheio de máquina e tal... Eu nunca chego. Eu sempre fui uma pessoa que tentei chegar o mais discreto possível no tipo de equipamento que eu uso, na forma de chegar... Eu estou ali pra aprender com a troca. Eu estou falando de Benditos, mas isso se refere a todos os trabalhos que eu já fiz. Todo trabalho que eu faço eu tenho isso como premissa. Eu prefiro perder uma imagem, perder uma foto, porque tem fotógrafo que não consegue. Eu acho que é muito mais importante você perder a foto e
conquistar um encontro de relação interessante e rico do que a imagem em si. Claro que é importante a imagem. Se você consegue unir as duas coisas, maravilhoso. Benditos, pra mim, foi meu grande aprendizado. Carolina – Eu queria saber uma coisa bem particular, mesmo. Você falou, na pré-entrevista, que uma babá conhecida da família teve uma experiência meio catártica ao estar presente naquela sintonia que você criou na exposição do Benditos. Você já teve alguma experiência assim em alguma exposição que você já foi? Tiago – Olha, na realidade eu tive, tenho essa experiência quando estou fotografando isso. Eu me envolvo muito com o que eu estou fazendo. Eu entro numa espécie de envolvimento que você chora, você reage de formas diferentes. Eu acho que é um pouco isso, sabe? Em Benditos eu tive muito isso. Tem esses momentos de encontro, tem situações que te levam a isso. Esse universo, principalmente ligado ao Benditos, a Juazeiro, é um lugar que eu volto sempre, ainda. Continuo indo lá, continuo fotografando... Eu tenho feito coisas lá, ainda. Pra mim, é muito importante, é um laboratório que me alimenta. Gosto de ir nas romarias e levar os fotógrafos, um monte de amigo... Vira um encontro de fotografia. Eu continuo me emocionando. É engraçado isso porque eu já fiz a exposição Benditos em outros lugares mas recentemente e eu tenho o mesmo nível de emoção ainda ao fazer, sabe? Eu acho que é tão intenso que ainda tem. Acho que é uma questão de envolvimento. Quando você faz uma coisa com desejo, com intensidade, com amor, dedicação, acho que a coisa mexe com você, né? Quando as minhas fotos estão na parede, é um pedaço da minha história, da minha vida, das minhas relações que está lá e que reflete em tudo o que você viveu, que você vive. Não é só da fotografia, é de tudo, né? Tudo isso
Na dedicatória, Tiago afirma compartilhar o “ENCONTRO” com a fotografia com Carolina. O fotógrafo selecionou 70 fotos de milhares para compor o Benditos.
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está refletido no trabalho. Quando você pega um contato (sequência de negativos), aquilo ali é um pouco de uma história que está sendo contada. Se você pegar esse arquivo de um fotógrafo, é meio que a vida dele. Se ele se separou, mudou de mulher, vai tá ali (no negativo) (risos). Quando ele tem filho, vai ter um monte de fotos dos filhos... Se você pegar a sequência de um arquivo, seja ele analógico, seja ele no digital, ele conta uma história de vida. O Benditos é um fragmento disso. Taís – Tiago, mas você também tem um livro que retrata o universo presente na obra de Graciliano Ramos (Escritor alagoano – 18921953). Como surgiu a iniciativa de elaborar esse projeto? Tiago – Eu fui pra França morar um ano lá. Minha mulher foi fazer (doutorado) lá e eu fui com ela passar um ano. Fui também trabalhar, fazer contatos. Voltei pro Brasil pra fazer a exposição Benditos no Sesc Pompéia (Centro de Cultura e Lazer em São Paulo). A mesma que eu fiz aqui eu fiz lá, em São Paulo. E essa exposição aconteceu junto com uma grande exposição sobre cordel, Cem anos de cordel. Foi uma coincidência. Era a minha exposição no meio e no entorno todo do espaço expositivo do Sesc Pompéia estava tendo a exposição sobre cordel e o curador dessa exposição era o Audálio Dantas, que é um jornalista, um cara superimportante no universo do jornalismo brasileiro, eu conheci e a gente ficou amigo. Eu voltei pra França, terminei meu ano lá e voltei pro Brasil. Isso foi em 2001. Quando foi em 2002, que eu estava de volta, ele (Audálio) me liga porque ele ia fazer uma grande exposição, no Sesc Pompéia também, sobre o Graciliano Ramos. Foi aí que ele me convidou. É engraçado porque o projeto Benditos surgiu de um desejo meu, de uma investigação minha. O Chão de Graciliano surgiu a partir de um convite que ele fez pra mergulhar no universo de Graciliano, pra compor uma exposição grande que ele ia fazer sobre a obra, a vida de Graciliano, onde tinham objetos pessoais, onde tinham todos os filmes que foram feitos, as várias edições de livro. E ele queria que eu fizesse uma interpretação desse universo do Graciliano e alguém
“O que eles não têm, eles dividem a metade contigo. Às vezes, eu nem fotografo. Às vezes eu fico conversando horas...”
que fosse hoje. Que universo, que chão é esse? (enfatiza) Onde ele nasceu, onde ele passou a infância, onde ele, de certa forma, descobriu o mundo, assim como eu tinha descoberto o mundo lá em Juazeiro. E ele achou que eu tinha uma identificação com esse universo. E, eu até falei pra vocês (se referindo à equipe de produção) eu quase desistia de aceitar o convite porque, pra mim, fazer uma exposição em três meses... Ele queria que em três meses eu fizesse o trabalho e (o trabalho) virasse uma exposição. Eu tinha levado oito anos pra fazer a minha primeira e ia fazer a minha segunda com três meses. (risos) Eu aceitei porque era dentro de uma exposição maior. Não era só a minha exposição. E aí foi meu envolvimento com Graciliano. Graças a Deus que eu aceitei! Foram três meses intensos. Eu viajei com ele (Audálio). Ele é um especialista em Graciliano, uma figura interessantíssima. Aprendi muito com o Audálio. Eu viajei com ele e depois viajei sozinho porque eu gosto muito de estar só também, sabe? A fotografar... E não ter a princípio um roteiro muito definido. Às vezes eu vou meio que intuitivamente. Fizemos a exposição. Deu tudo certo, foi maravilhoso e eu, logo depois, disse pra ele: “Olha, o meu envolvimento foi tão interessante que eu quero dar continuidade”. Então eu fiquei de 2003 até 2006. Eu resolvi tornar isso um outro projeto. Eu pautei minha vida, desde essa época, a trabalhar com projetos. Projetos em que eu acredite, que eu ache interessante. De certa forma, (Chão de Graciliano) era uma continuação do que eu estava fazendo. É um universo parecido, sabe? Os alagoanos são os mais devotos do Padre Cícero, têm uma relação com Juazeiro. A maioria dos romeiros são alagoanos. O universo de Graciliano era muito próximo pra mim. Eu passei esse tempo todo e descobri coisas muito interessantes sobre o universo de Graciliano que eu queria pontuar. Uma é a importância do Graciliano. O desafio que foi fazer com imagens o que o Graciliano fazia com as palavras, uma responsabilidade gigantesca! Não era uma tradução, mas era uma interpretação daquele universo dele. Eu me identifiquei muito com a obra dele. Primeiro que a obra dele é muito identificada com o homem. A paisagem é um mero pano de fundo para as relações humanas, e o meu trabalho é assim também. O meu trabalho não é um trabalho de paisagem, simplesmente, mas sim de paisagem humana, de gente. O que me interessa é isso. Eu não sou um fotógrafo de paisagem, né? A linguagem que Graciliano trabalha é a linguagem de texto, mas é um texto muito sintético, muito preciso, muito cirúrgico. O Graciliano dizia: “Em vez de contar com cinco laudas, eu conto com uma; em vez de contar com uma lauda eu conto com um parágrafo”. Eu não sou especialista, gente! (risos) A obra
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Tiago decidiu também contemplar o professor Ronaldo Salgado com o livro Olhavê Entrevistas. Ronaldo relutou para aceitar o presente, mas, no final, recebeu.
Na aula de avaliação da entrevista, Ronaldo resolveu sortear o livro que ganhara de Tiago. Desta vez, a sortuda foi Taís de Andrade.
Tiago é casado há mais de vinte anos com Luciana Lobo Miranda, psicóloga e professora da Universidade Federal do Ceará. Luciana já foi coordenadora do curso.
A equipe de produção precisou finalizar a edição da entrevista via Skype, pois Diego havia viajado para Buenos Aires para fazer intercâmbio de experiência profissional. Após algumas caídas da internet dele, finalmente conseguiram terminar.
dele é uma coisa muito sintética, muito precisa nas palavras e muito forte e isso pra mim é uma característica da linguagem fotográfica, inclusive. A linguagem fotográfica é a síntese de uma história. Benditos tem 70 fotos e as pessoas dizem: “Pô, mas você passou oito anos e só tem 70 fotos! É muito pouco”. Mas não é isso. Eu acho até 70 muito, hoje eu tiraria umas dez daqui e deixaria, sei lá, 60 porque eu acho que são muito mais importantes imagens intensas, assim como é o texto intenso, forte, que dê margem para as pessoas pensarem e refletirem. É muito mais importante você ter uma imagem forte do que ter dez imagens que, de certa forma, não têm a mesma portência. A fotografia é você ter uma história na sua frente e “pá”. Com poucas imagens você conta aquela história, que na realidade poderia ser contada com milhares de imagens. Isso foi um aprendizado com o Graciliano Ramos. Tinha gente que dizia que a minha fotografia era uma fotografia graciliana (risos). Um livro que me acompanhou muito foi um livro chamado Infância. Um livro lindo do Graciliano Ramos, em que ele conta a experiência de infância dele. E foi um livro de cabeceira que me acompanhou muito nesse projeto. Caroline – Tiago, falando dessa questão de mostrar as dificuldades, todos os desafios pelos quais as pessoas passam no sertão... Você quis dar espaço nas suas fotografias para uma
crítica social? Tiago – Olha, eu nunca tive isso como foco, né? Mas eu acho que isso é inevitável no contexto. Uma coisa que eu acho interessante é que você não precisa necessariamente mostrar ‘ó, coitados, pobres...’ Você não precisa necessariamente mostrar pra ter essa crítica. Às vezes, com uma imagem muito mais forte do ponto de vista da força que tem essa pessoa, você ressalta muito mais o que eles têm de positivo. É inevitável que Benditos mostra essa questão. As pessoas vão a Juazeiro por essas questões, né? A fotografia nunca foi pra mim uma coisa de denúncia necessariamente. Ela é também. Eu nunca tornei isso como uma coisa panfletária. Eu acho até que tem imagens que sutilmente são mais importantes e cumprem um papel muito mais importante nesse contexto social do que uma imagem meramente documental ou jornalística de uma situação. Felipe – Tiago, falando da sua estética fotografia, você tem uma evidente preferência pelo preto e branco. Por quê? Tiago –Pois é. Tem gente que diz: “Ah, fotografia de arte é preto e branco”. Não é. Isso não é verdade. Não importa se é preto e branco, se é cor. É como um escritor que escolhe um tipo de linguagem para trabalhar o texto. O fotógrafo escolhe um caminho. Eu fotografo em cor, também. Eu poderia ter feito esse livro (Benditos) em cor. Mas exige certa iden-
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Após terminada a edição, a equipe de produção precisou escrever mais janelas, uma vez que a entrevista do Tiago conta com mais páginas.
“Eu ainda tenho essa coisa com o filme como uma forma de linguagem, um processo. Eu gosto do filme, eu gosto de revelar, gosto de pegar um negativo...” tificação, intenção, desejo. Por que eu escolhi preto e branco? Vamos falar de Benditos, que se estende um pouco pra minha obra. Tem a relação que eu mostrei aqui da xilogravura. Essa coisa da linguagem da xilogravura, que é um preto e branco bem duro, sem muito contraste, sem muito meio tom. A identificação com a coisa do claro-escuro, da luz forte que a gente tem no Nordeste. Eu acho que essas questões do sagrado e do profano, do bom, do ruim. O preto e branco é um pouco isso, né? Outra coisa, eu acho que a cor no meu trabalho não agregaria. Ela dispersaria um pouco, sabe? Quando eu mostro esse trabalho em preto e branco, eu acho que ele tem uma densidade, uma tensão, um mistério, que a cor talvez dispersasse um pouco, sabe? Não que a cor não seja importante. Tem trabalhos importantíssimos em cor, mas eu acho que eu encontrei no preto e branco uma forma de intensificar essa minha intenção talvez de mistério, de tensão, sabe? Eu acho que o preto e branco dá um pou-
co disso. A cor te leva para um outro caminho, talvez. Diego – Tiago, ainda nesse âmbito da sua estética fotografia, suas fotos apresentam uma composição diferenciada, como você disse anteriormente. Você chegou a receber críticas dos fotógrafos da ala mais conservadora da fotografia, por exemplo? Tiago – Eu cheguei a receber uns comentários muito engraçados. Eu me lembro que eu participei do Salão de Abril na época e ganhei um prêmio com uma fotografia. A fotografia era o seguinte. Eu acho que eram duas fotos. Uma delas era assim: um pessoal, que eu acho que era de Barbalha, numa quadrilha. Daí eram só os pés e os vestidos. As cabeças eram todas cortadas. “Como é que um cara ganha um prêmio?” (risos) “Cortou até as cabeças”. Tinha umas coisas engraçadas. Eu acho que no fundo, no fundo, eu fui construindo uma linguagem, um caminho próprio com personalidade. Eu não cheguei a receber críticas. Ob-
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A equipe de produção agradece pela paciência, sensibilidade e disposição da diagramadora Amanda Alboino.
Quando Gustavo Sampaio enviou as fotos da entrevista para equipe de produção, todos ficaram bastante satisfeitos. A maioria mudou a foto de perfil do Facebook com imagens do dia.
viamente que eu compartilhava esses trabalhos com todos que eu podia. Quando eu ia nesses festivais, nesses eventos, sempre tinha essas leituras de portfólio e isso sempre me enriqueceu muito. Eu fui construindo uma linguagem intuitivamente, subjetivamente. Não é uma coisa que eu fui construindo com esse nível de elaboração que a gente acha que tem. É igual a dirigir um carro, né? Você vai aprender a dirigir um carro e tem de apertar a embreagem e passar a primeira, apertar a embreagem e passar a segunda... Não tem essa coisa mecânica, né? Mas, quando você aprende a dirigir, você esquece e acabou. Isso tem a ver com a técnica da fotografia. Você aprende para esquecer depois. Você mergulha no trabalho, mergulha no universo e toda a sua técnica está embutida, mas você não pensa nisso. Você está imbuído da sua vontade de contar aquela história. Se você pensar muito naquele momento do ato de fotografar, ele (o pensamento) atrapalha. Isso no meu processo, né? Eu acho que hoje, na fotografia mais contemporânea, é mais importante a reflexão anterior, o pensar e o definir o que vai fazer do que o trabalho em si. O trabalho em si é só uma conseqüência do que você já projetou e que é interessante também. Eu acho que
Com as fotos de Gustavo, Tiago Santana provou que, além de ser um ótimo fotógrafo, também sai muito bem na frente das câmeras.
no mundo da arte contemporânea tem muito isso hoje. Um conceito pré-determinado, pré-definido e que foi 90% do trabalho. Os dez por cento são reproduzir aquilo em imagem. Carolina – Tiago, eu sei que é uma pergunta muito difícil de se fazer, mas me diga qual é a sua fotografia preferida. Tiago – Ai, é difícil. É difícil porque eu tenho uma paixão por esse trabalho Benditos por conta do que ele representou na minha história. Mas assim, é muito difícil eu te dizer que tem uma imagem que eu goste. Acho que tem imagens que são simbólicas. Aquela imagem que tá ali no escritório, que você viu (fala à Carolina), aquela imagem pra mim é simbólica. É aquela imagem que tem um papagaio, uma mulher na janela e tal. Por que ela é simbólica? Quando eu comecei a fotografar Juazeiro, eu estava achando minha imagem muito gráfica. Diego – Gráfica em que sentido? Tiago – Nessa coisa de trabalhar com linhas. E faltava um pouco de emoção, da relação dos personagens. Eu acho que estava um pouco fria e isso foi comentado. O que eu tentei, a partir de então, foi procurar aliar um pouco de uma estética que eu estava construindo com a coisa da emoção, que é esse lugar (Juazei-
“Eu nunca fiz um trabalho pensando: ‘Ah, esse trabalho vai me dar um prêmio’. Eu tenho uma coisa na minha vida que é o seguinte: eu me dedico muito” REVISTA ENTREVISTA | 122
“Às vezes, eu nem fotografo. Às vezes, eu fico conversando horas. E a fotografia surge disso, quase que naturalmente dessa troca, desse momento, desse grande encontro” ro). Então, foi esse encontro entre uma estética própria, uma estética particular, intensa, forte, com a força que tem as personagens. Aquela foto foi importante por isso, porque ela tem um desenho bem simétrico. Você vê que ela tem um negócio muito construído. Parece que foi até bem armada, né? E essa foto são dois cliques. Eu fiz uma foto e essa. Pequenas diferenças transformam uma imagem. E essa imagem foi um segundo. Essa cara é cego e fez assim pra enxugar o suor (Tiago repete o gesto). Ele (homem da foto) é um sanfoneiro cego. Foi só esse clique do momento. Parece que eu coloquei um tripé e fui posicionando porque tudo tá muito simétrico, tá tudo construído. Não falta nada, até o Padre Cícero tá aqui. (risos) Bruna – Você falou sobre essa vontade de trazer algo mais emocional e comentou que prefere não usar lentes teleobjetivas porque elas o distanciam das pessoas. Como é essa sua relação de proximidade com o fotografado? Tiago – É isso que eu te falei. O pretexto para eu tá lá é essa relação. Acho que é o momento em que eu aprendo. O trabalho surge disso. Ele é menos importante do que isso (o encontro). Ele nasce desse encontro. Eu gosto muito da palavra encontro, esse encontro com o outro. O encontro é troca. Para mim, é fundamental esse encontro, essa troca, esse momento de conversa. Eu chego num lugar... Eu chego, sento pra tomar café... Sabe como é interior, né? As pessoas recebem de um jeito que você não acredita. O que eles não têm, eles dividem a metade contigo. Às vezes, eu nem fotografo. À vezes eu fico conversando horas... E a fotografia surge disso, quase que naturalmente dessa troca, desse momento, desse grande encontro. Pode surgir fotografia como pode não surgir. Isso pra mim não me deixa ansioso. Obviamente que às vezes você chega num lugar, quem é fotógrafo sabe disso, que o próprio lugar, o próprio cenário, a própria situação já te deixam assim... Mas você tem de saber os limites entre você e o outro. Aí tem a coisa do respeito. Eu acho que não existe uma lógica, um regra, uma receita. Acho que cada um tem que encontrar o seu caminho. Eu tenho um olhar voltado para as coisas e eu me dedico ao tempo de olhar. Isso também é legal porque, hoje em dia, as pessoas não olham. Hoje em dia é mais importante postar no Facebook do que olhar para aquela imagem que você postou e que você nem viu direito. Isso é uma coisa do tempo que a gente
vive. Não é um problema, mas é preciso pensar sobre isso, também. Eu acho genial a produção de imagens sem fim que hoje se tem, mas tem de se refletir sobre isso. Diego – Como você analisa as questões éticas que permeiam a fotografia? Tiago – Como eu falei, eu tenho uma postura de muito cuidado com o outro, de saber chegar, saber limites... Eu vejo muito fotógrafo quando eu tô fotografando por aí que chega de uma forma meio “de cima pra baixo”, às vezes inconveniente, sem esse cuidado que tá na essência da ética da fotografia, né? Eu sei que no fotojornalismo, muitas vezes para se conseguir aquela imagem, o cara passa por cima de determinadas coisas. Às vezes, eu acho que é inevitável, mas o quanto você puder ter esse cuidado ético com o outro quando você fotografa... Eu acho que é fundamental. A forma como você usa essas imagens também. Eu sei que na área do fotojornalismo é difícil. O fotógrafo às vezes perde o controle e o controle fica nas mãos da imprensa, do veículo. Eu to falando da fotografia, mas na vida a gente tem que ser ético, né? Felipe – Tiago, você já passou por algum dilema ético fotografando? Tiago – Não que eu lembre. Eu não avanço sinais ou pelo menos tento não avançar. Posso até avançar em algum momento porque a gente também erra. Acho que eu nunca tive nem um problema. Sempre me perguntam: “Ah, você tem o direito autoral de imagem dessas pessoas?”. Eu nunca pedi autorização de nada disso. Hoje em dia você vai numa editora publicar um livro e a primeira coisa que eles pedem é: “Eu quero toda as autorizações das pessoas fotografadas assinadas”. Num tipo de trabalho que eu faço, se eu for chegar numa casa dessa aí, com esse nível de intimidade que eu tenho, e no final, pedir os documentos, pedir pra assinar um papel... Isso pra mim quebra completamente toda uma troca que faz parte do processo de trabalho. A partir do momento que você envolve um documento... Porque é assim, você tem de pedir carteira de identidade, endereço, CPF... Você não sabe como isso é difícil porque você chega e as pessoas ficam com medo. Tem gente, inclusive, de má-fé que vai, pede o documento e vai na Caixa e fica recebendo bolsa, faz empréstimo... No meu caso, quebraria um pouco esse cuidado, essa troca. Não sou só que tô ali. Eu tô aprendendo com eles e eles tam-
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Quando o professor Ronaldo enviou o texto de abertura da revista para a turma ler, o sentimento de saudades foi geral, mesmo ainda faltando trabalhos a serem realizados para a publicação.
O processo de evolução em práticas de entrevista da turma foi claro nesta última entrevista. Todos estavam em sintonia.
Um dos grandes aprendizados que o projeto proporcionou à turma foi a capacidade de ceder quando necessário. Essa característica do grupo foi notória nesta última entrevista.
O exercício de sair de si e perceber o outro em suas qualidades e defeitos foi muito bem transmitido pelo professor Ronaldo.
bém estão. O fato de eu tá olhando para aquilo ali também é uma coisa que pra eles significa muito. Eu não tenho nenhuma autorização. Minha autorização é esse processo que eu estou falando. Eu não pego as imagens e vou usar em publicidade, vou vender... Eu não vou fazer isso. Ela (a imagem) tem um fim específico de publicação. Isabele – Você já trabalhou com muitas formas de fotografia. Como foi trabalhar com a fotografia comercial? Tiago – Olha, eu sempre soube que não era o que eu queria fazer. É tanto que eu não tenho estúdio. O meu escritório é um escritório. O máximo que eu tenho é um laboratório. Eu nunca me dediquei à fotografia comercial, ao produto. Já fiz. Nunca me interessou muito. Eu me interesso por gente. Gente, ser humano, interação, trocas, informações... Não necessariamente só no Nordeste. Já fiz projetos em outros lugares. Não é que eu seja um fotógrafo só do sertão. Às vezes, eu fico com medo de ser identificado, mas é inevitável porque eu também sou. Tudo foi importante. Isso foi me ajudando em todos os aspectos, inclusive no financeiro também. Viver de fotografia, de projeto, que hoje eu consigo, hoje eu sou focado nisso, mas não é uma coisa fácil, por mais que eu já tenha feito muita coisa. Trabalhar com esse universo cultural no mundo inteiro já é difícil e no Brasil mais difícil ainda. Não é uma coisa simples, é sempre uma dificuldade. Eu sempre digo que eu perco no mínimo 50% do meu tempo útil, que eu podia estar fotografando, eu perco, entre aspas, nessa burocracia, nessa coisa de tentar viabilizar um projeto, procurar parceiros, procurar patrocinador... Por mais que eu tenha um grupo de pessoas que trabalhou comigo, eu não tenho uma equipe fixa. É sempre difícil, é sempre uma batalha. Não é fácil, não! Mikaela – Tiago, no começo da entrevista você falou da magia da fotografia. Eu queria saber se você acha que ainda existe a magia da fotografia mesmo hoje, na fotografia digital. Tiago – Ah, existe! Não se perde essa magia. Eu acho que ainda é uma coisa muito mágica essa possibilidade que você tem de (fazer) um registro de um fragmento da vida, da sua experiência, da sua história que fica registrado como imagem. A magia pra mim da fotografia está muito ligada à memória, à permanência que eu acho uma coisa legal e que me preocupa, sabe? Eu acho talvez que, com o digital, tenha se perdido um pouco isso. Eu acho o digital genial, apesar de não fazer meus projetos pessoais com o digital. Eu ainda tenho essa coisa com o filme como uma forma de linguagem, um processo. Eu gosto do filme, eu gosto de revelar, gosto de pegar um negativo... Essa coisa do tempo do filme, né? Eu uso uma câmera agora que ela só faz quatro fotos com um filme. Eu tenho de tirar o filme e colocar o outro para
“ ‘Ah, todo mundo é fotógrafo e eu vou perder mercado’. Pelo contrário, é uma coisa boa que a fotografia esteja em alta” fazer mais quatro. Uma coisa totalmente oposta ao digital. Hoje você aperta um botão e faz quatro mil (fotos). É mágico, inclusive, o cara tá num estádio fotografando ali na Copa das Confederações e, em segundos, a foto tá na Alemanha para entrar no jornal. Isso é genial, é mágico, também. O digital não tirou a magia, até trouxe um outro tipo de magia. A magia que tá em torno da imagem eu acho que ela permanece. Mikaela – E nesse mundo onde todos podem ser fotógrafos, qual a importância do fotógrafo profissional? Tiago – Eu acho que ele tem um papel importante de provocar essa coisa da reflexão sobre o que está sendo produzido. Está se produzindo muito, é genial, é fantástico, mas é preciso pensar sobre o que está se produzindo e aí tem a academia que é importante pra isso. As pessoas estão se dedicando a escrever sobre fotografia, sobre imagem, pensar o que é a imagem nas rede sociais... Eu acho que o profissional, talvez, tem um compromisso maior nesse sentido. Não ficar desesperado. “Ah, todo mundo é fotógrafo e eu vou perder mercado”. Pelo contrário, é uma coisa boa que a fotografia esteja em alta. Existia um desejo dos fotógrafos de que a fotografia fosse arte, tivesse no mundo da arte e a fotografia sempre foi relegada a segundo plano. Hoje em dia, isso se inverte. A arte que se torna fotográfica. Grandes artistas não são nem fotógrafos e usam fotografias, registram performances e o resultado é uma imagem fotográfica. A fotografia nunca teve uma importância tão grande no universo da comunicação e da arte. Eu estou aprendendo com essas novas gerações que estão trabalhando com a imagem às vezes de forma difícil de decifrar, mas a gente tem de estar aberto para esse processo. Diego – Já falando sobre essa valorização da fotografia, como foi pra você está ao lado do Sebastião em uma coleção que foi referência para você durante o seu aprendizado em relação à fotografia, que é a coleção Photo Poche? Tiago – A gente vai construindo um trabalho, né? O livro sempre foi importante na minha formação e essa coleção, especificamente,
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Os dez componentes da turma agradecem ao professor Ronaldo, que sempre soube falar o que precisávamos ouvir, mas nem sempre queríamos. O olhar atento do mestre sempre incentivou a equipe.
teve uma importância muito grande porque é uma coleção de livro de bolso, são livros pequenos. É uma coleção que existe há 30. Há trinta anos, eu estava começando na fotografia e essa coleção existia. Eu tenho várias volumes dessa coleção. Chama-se Photo Poche e foi criada por um editor de fotografia chamado Robert Delpire. Ele criou essa coleção quando ele estava no Ministério de Cultura da França e a ideia era viabilizar um panorama da fotografia, tornar acessível um panorama da fotografia no mundo em livro de bolso. Photo Poche é foto de bolso. É um livro de bolso em pequeno formato com bastante qualidade e que é acessível, barato. Foi uma coleção que fez parte do meu aprendizado. Eu comprava quando eu podia, pedia pra alguém trazer... Eram, inclusive, livros mais baratos de comprar. Digamos que um livro custasse cem dólares, o Photo Poche custa dez dólares. É uma coleção que fez parte da minha vida. Eu tenho uma relação com a França porque eu morei lá e também fiz uns contatos. Eu tenho uma irmã que mora lá há muitos anos. Ela é arquiteta, mas trabalha um pouco com cinema, o marido dela trabalha com cinema. Por isso a importância do livro. Tanto o Benditos como o Brasil Sem Fronteiras chegaram às mãos de um amigo deles que é fotógrafo e se interessou muito pelo trabalho e disse: “Olha, eu sei de uma pessoa que vai gostar do trabalho do teu irmão. Vou levar os livros pra ele”. Era esse Robert Delpire, o cara que fez essa coleção. Hoje ele tem 80 e tantos anos, um senhor, já. Uma figura inacreditável! Ele viu os livros. Por isso que o livro é importante, tá vendo? É impressionante que, mesmo
tendo a internet, os sites, você ainda é muito respeitado, principalmente lá fora, quando você tem um livro. Site todo mundo tem, né? Diego – Inclusive, você não tem, né? Tiago – Inclusive, eu não tenho. Todo mundo, menos eu. (risos de todos) Aliás, isso é um problema na minha vida. Eu preciso resolver! Chegaram nas mãos dele esses livros e eu fui visitá-lo (na França). E foi ótimo. O cara é genial, editou os grandes fotógrafos. Os grandes livros mais importantes da fotografia foi ele quem editou. Conversa vai, conversa vem ele disse: “Olhe, eu queria fazer um Photo Poche com você”. Eu quase caía da cadeira ali, na mesma hora. Eu disse pra ele: “Olha, pra mim é uma honra. O Photo Poche fez parte da minha história”. Eu tive um processo de um ano, mais ou menos. Eu aqui, ele lá, a gente se comunicando... O livro saiu em 2011, eu acho. Pra mim, é um livro simbólico nesse sentido porque é uma coleção onde eu aprendi e agora eu estou na coleção. Quer dizer, é um ciclo importante na minha vida que se fechou ou que se abriu... Ciclo não se fecha, né? Acho que ele sempre tá em mudança. Apesar de a fotografia ter alcançado um “status”, digamos assim, no mundo da arte contemporânea, ela ainda não é tão conhecida. Nessa coleção, só tinha o Sebastião Salgado. Não por: “ah, eu sou o segundo”. Não é isso. Acho que é uma questão de situação que gerou. Acho que a gente tem grandes fotógrafos que poderiam estar na coleção. Pra você ver como as coisas acontecem por esses encontros. Seja o encontro de eu fotografando a pessoa do livro, seja o meu encontro com ele, o editor. As coisas se dão a partir do encontro.
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Durante a diagramação da revista, a turma estava correndo contra o tempo, tendo em vista que, para sair na data prevista, a publicação teria de ser entregue à imprensa da UFC com 60 dias de antecedência.
Carolina e Diego tiverem dificuldade para escolher as fotografias que seriam usadas na entrevista. O fotógrafo Gustavo entregou muitas fotos boas, o que gerou dúvidas.
Ao ser questionado sobre a fotografia preferida dele, Tiago não foi preciso, mas disse que havia uma foto do livro Benditos que era bastante significativa para ele. O fotógrafo pegou o livro e procurou a foto para mostrar.
Paulo Renato – Tiago, você é um fotógrafo bem premiado em nível local, nacional, internacional. Pra você, como é ver seu trabalho reconhecido por outras publicações e prêmios? Você acha que isso do encontro reflete no reconhecimento que o seu trabalho tem? Tiago – Claro que reflete! Eu nunca fiz um trabalho pensando: “Ah, esse trabalho vai me dar um prêmio”. Eu tenho uma coisa na minha vida que é o seguinte: eu me dedico muito. O tempo que me dedico ao trabalho é muito grande. Eu acho que isso é importante. Eu acho que todo trabalho, quando você se dedica bastante, se coloca e mergulha, eu acho que ele (o trabalho) nasce com personalidade, com potência. Eu nunca fiz pra ganhar prêmio, mas isso foi acontecendo e óbvio que isso dá um reconhecimento, um prazer. Estar nessa coleção pra mim era um sonho. Eu poderia até dizer assim: “Ah, pronto, eu não preciso mais fotografar, tá bom. Vou agora fazer a faculdade de engenharia” (risos). Eu trato isso de um forma muito tranquila. Não tenho essa ambição ou desejo: “Ah, vou querer mais prêmio”. Não. Quero fotografar mais. Tenho um monte de projeto pra fazer... Vocês têm de entender que um fotógrafo ao longo da vida fotografa muito. A produção é grande. O que a gente edita, imprime, ver e publica é muito pouco. Você imagina o arquivo que eu tenho e a possibilidade que tem de voltar pra esse arquivo, de pensar sobre isso. Isso faz parte até de um dos projetos que eu tenho que se chama Incompletudes. É um projeto de voltar pro meu arquivo, de pegar todas as imagens que eu fiz ao longo de 20 e tantos anos como fotógrafo... Eu sempre fui um fotógrafo que trabalhei muito com projetos. Benditos, Chão de Graciliano, Brasil Sem Fronteiras... Mas, ao longo da minha vida, eu tenho mil outras coisas que eu fotografei. Seja de viagens, seja de lugares que eu fui, seja fora do Brasil... Já fui na Rússia, já fui na China e eu fotografei esses lugares. Está tudo guardado nessas gavetas. Seja O Sertão, seja Os Filhos de Nazaré em Belém, seja o México... Coisas que eu tenho que são fragmentos. O projeto é mergulhar nesse meu acervo, pegar tudo isso que é fragmentado e dar unidade a partir desses fragmentos. É um projeto que eu queria que tivesse fotos do sertão, assim como de Nova Iorque, de São Paulo, Salvador... Não importa! A unidade seria essa minha forma de ver o mundo. Essa coisa da fotografia incompleta, fragmentada, que eu acho que ela dá margem pro outro completar. A fotografia pra mim é uma coisa bem incompleta. Uma obra incompleta, porque uma obra está sempre incompleta, uma vida incompleta... A gente está sempre incompleto. A gente só vai estar completo quando morrer. Nem completo vai estar ainda, né? (risos) Mas um trabalho e uma vida estão sempre em processo de construção, em processo de reelaboração.
Outra coisa, a gente está sempre aprendendo, se modificando. Uma coisa sou eu quando fiz esse livro, outra coisa sou eu agora. Rever um material desse agora é ver com outros olhos, é ver de outra forma. Por isso, é um recado pra quem faz o digital e fica deletando na hora que está fazendo o negócio. Isso (a foto) pode não significar nada pra você hoje, mas daqui a um ano, um mês ou dez anos pode significar. Não interessa hoje, daqui a alguns anos pode se transformar. Felipe – Na sua opinião, o que um bom fotógrafo deve ter? Tiago – Rapaz... O que um bom fotógrafo deve ter? (pensativo). Acho que primeiro estar aberto. Você não precisa vir com coisas pré-definidas. Por mais que a técnica tenha uma coisa meio quadrada, mas eu acho que você tem de estar aberto a tudo que você vê, escuta... Estar aberto ao mundo e disposto a esse encontro entre você e esse mundo. É a partir daí que nasce um trabalho. Outra coisa importante, eu acho, pra quem começa a fotografar, é o exercício de fotografar, é você mergulhar na coisa. A coisa nasce de um exercício. Eu tive essa possibilidade, eu acho que foi um caminho acertado, de mergulhar num tema, sabe? De apostar numa coisa e ir até o fim, mesmo que não desse certo. Voltando ao negócio da bicicleta, mesmo que não desse certo voar, eu quis. Aquilo, de alguma forma, teve uma importância na minha vida. Podia ter dado nada certo isso aqui. Poderia, mas teria sido importante. Que bom que deu certo, mas poderia não ter dado certo. Poderia ter sido um exercício. E, seja um exercício sobre um lugar, sobre uma viagem, mas pode ser um exercício sobre uma coisa interna, uma coisa sobre seu quarto... Pode ser, não importa. Não tem de ter uma viagem pra Índia pra você fazer um trabalho. Você pode fazer no seu quintal. Mas o exercício de fazer, o exercício de mergulhar, de produzir, de rever de pensar sobre isso eu acho que é importante. A gente fala isso na fotografia, mas é na vida, né? É sempre reduntante. Diego – Tiago, pra finalizar, já que suas fotografias são, de certa forma, ramificação da sua história, como você pretende escrever sua história daqui pra frente? Tiago – Como eu vou escrever? Eu não sei (risos). Eu estou construindo um caminho. Não tá pronto. Eu tenho certeza disso. A gente vai se revendo e as coisas vão se refazendo. Eu não tenho uma fórmula. O caminho eu tenho, que é um pouco do que eu decidi fazer, que é mergulhar na fotografia, mergulhar nos projetos... Eu vou morrer fazendo isso.
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Diego e Carolina ficaram surpresos ao saber que Tiago não possuía site ou outra página virtual que reunisse alguns trabalhos do fotógrafo.
Por gostar de fotografia, Diego ficou muito empolgado ao saber que iria produzir a entrevista com Carolina Esmeraldo, que também ficou entusiasmada ao conhecer o trabalho do fotógrafo
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Números publicados da revista Nº 01 Ciro Ferreira Gomes Blanchard Girão Francisco José Lima Matos Marcos Passerine e Elizeu de Sousa Rosemberg Cariry Nº 02 Francisco Gilmar de Carvalho José Maria Moreira Campos José Dias de Macedo Raquel de Queiroz Dedé de Castro Nº 03 Ângela da Silveira Borges Maria Luiza Fontenelle Adriano Espínola Antônio Marques dos Santos Neto (Lino Villaventura) Antônio Gonçalves da Silva (Patativa do Assaré) Nº 04 Juraci Magalhães Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) Luiza de Teodoro Vieira Francisco Magalhães de Barbosa (Zé Pinto) José Tarcísio Ramos Nº 05 Fausto Nilo Manfredo Araújo de Oliveira José Albano Heloísa Juaçaba Nº 06 Agostinho Gósson Kátia Freitas Zé de Lima Eduardo Campos Nº 07 Antonieta Noronha Narcélio Limaverde Xyco Theóphilo Luizianne Lins Nº 08 Tom Barros Beatriz Furtado Firmino Holanda Maurício Silva Nº 09 Joaquim dos Santos Rodrigues (Seu Lunga) Irapuan Lima Harbans Lal Arora Lira Neto Nº 10 Inácio Arruda Patrícia Gomes Raimundo Fagner Neno Cavalcante José Amaro Sobrinho (Bodinho)
Nº 11 Sebastião Belmino Alemberg Quindins Irmãos Anicete Simião Martiniano Mainha Orlando Sena Nº 12 Manassés Tasso Jereissati General Torres de Melo Muriçoca
Daniel Peixoto Ângela Guiterrez Decartes Gadelha Nº 22 Adelaide Gonçalves Hugo Bianchi Pedro Eymar Ermano Allegri Nildes Alencar Cid Carvalho
Nº 13 Raimundo Rosélio Marcílio Maciel Frei Betto Niède Guidon
Nº 23 Regina Passos Rafael Limaverde Samantha Marques Rodger Rogério Fernando Hugo Wellington Jr
Nº 14 Luis-Sérgio Santos Edilmar Norões Guilherme Neto Águeda Passos
Nº 24 Ziraldo Alves Pinto Silas de Paula Mário Albuquerque Fernando Catatau
Nº 15 Oswald Barroso Padre Haroldo Coelho João Inácio Júnior René Shaerer
Nº 25 Eliomar de Lima Haroldo e Hiramisa Serra Simone Ferreira Tarcísio Sardinha
Nº 16 Wolney Oliveira Chico do Caranguejo Demitri Túlio Glória Diógenes
Nº 26 Espedito Veloso de Carvalho (Espedito Seleiro) Francisco Newton Quezado Cavalcante (Lúcio Brasileiro) Heitor Férrer Nilson Lage Silvero Pereira
N° 17 Paulo Diógenes Jawdat-Abu-El-Haj Flávio Sampaio João Alfredo Nº 18 Peregrina Capelo Christiano Câmara Francisco Simão Hermínio Macêdo Castelo Branco (Mino) David Duarte Nº 19 Themístocles de Castro e Silva Joaquim de Sousa José Hamilton Ribeiro Alexandre Fleming Cid Ferreira Gomes Karim Aïnouz Nº 20 Terezinha Mapurunga Waldonys Caco Barcellos Sânzio de Azevedo Nº 21 Ney Matogrosso Valdemar Caracas Dona Dina
Nº 27 Dilmas Figueiras Filho Antônio Isaías Paiva Duarte (Isaías CDs) Rosier Alexandre Saraiva Filho Olga Lúcia Espíndola Freire Maia Lúcio Gonçalo de Alcântara Nº 28 Luma Nogueira de Andrade Adriana Negreiro Dantas Italo Almeida de Oliveira e Renno Saraiva de Macêdo e Silva (Italo e Renno) Giovanni Costa Cavalcante (Dom Giovanni) Victor Hannover Gouveia Barros Nº 29 José Airton Paula Barreto Aurísio Cajazeiras Gomes Gerardo Dimas Mateus Francisco Everardo Oliveira Silva (Tiririca) Andrea Rossati Nº 30 Lola Aronovich Carri Costa Servulo Esmeraldo Maísa Vasconcelos Tiago Santana
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