distribuição gratuita . agosto.setembro.outubro . 2008 . #02 . ISSN: 2176-1108
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Revista de Arte e Cultura do Pontão Aldeia Digital ago–out.2008 volume 1, número 2 ALDEIA – Agência de Desenvolvimento Cultural, Educomunicação, Infoinclusão e Audiovisual
DEXTÁ – Revista de Arte e Cultura do Pontão Aldeia Digital ago–out. vol. 1, n. 2, 2008 ISSN: 2176-1108 Coordenação Editorial: Simone Lima Ricardo Sabóia Conselho Editorial: Alexandre Câmara Vale Carmem Luisa Chaves Glauber Filho Haroldo Mendonça Hélcio Brasileiro Leonardo de Sá Márcia Moreno Preciliana Barreto Ricardo Salmito Valdo Siqueira Publicação eletrônica com periodicidade trimestral, organizada pela Aldeia – Agência de Desenvolvimento Cultural, Educomunicação, Infoinclusão e Audiovisual. Dextá destina-se a discussão de temas em arte, cultura e a divulgação das ações desenvolvidas pelos Pontos de Cultura brasileiros. Redação: Beatriz Jucá Projeto Gráfico e Editoração: Samuel Tomé Fotografias: Anderson Gama, Beatriz Jucá, Elitiel Gudes Endereço: Rua Silva Jatahy 15 # 902 Meireles CEP 60165 – 070 www.aldeia.org.br aldeia@aldeia.org.br www.issuu.com/aldeia www.twitter.com/revistadexta Fortaleza, Ceará - Brasil
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conteúdo
................ponto a ponto..................................................06 ........................terra das éguas ruças................10 ........................... de costa a costa.....................................14 .........................................curto circuito.....................19 ..........................rio de flores..........................................20 ..............................pescador de imagens...............22 ..............................som das carnaubeiras...................24 .............................gil.......................................................28
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A segunda edição da revista DEXTÁ transpira sons e musicalidade. São as atividades do Ponto de Cultura o Som das Carnaubeiras que provocam tal inspiração. Localizado no distrito de Flores, em Russas, cidade da microrregião do Baixo Jaguaribe, Ceará, o Ponto de Cultura envolve crianças e jovens em atividades que unem música e cidadania. São duas orquestras. Uma executa músicas de concerto; a outra, música popular. A Orquestra Popular Carnaubeiras, que já percorreu o Brasil apresentando releituras da música folclórica nordestina, é um desses programas que mobiliza os moradores do distrito de Flores. Nem só de música vive o Ponto de Cultura. Atividades de audiovisual, como desenho de animação e cineclubismo, além de inclusão digital, fazem parte do dia-a-dia do Ponto e transformam seus espaços em locais de grande movimentação de agentes culturais em Flores. Como o jovem músico Ronaldo Augusto, de 14 anos, que confessa ser a música e a edição de desenhos animados o que mais lhe interessa. Talvanes Moura, coordenador do Ponto de Cultura, fala das ações, dos projetos e da origem do Som das Carnaubeiras em entrevista na página 24. A explicação para o nome Russas ainda é imprecisa. Uma das versões, contada por populares, é a de que um velho fazendeiro, entre os primeiros habitantes da localidade, possuía belas éguas de cor ruça, e todos se referiam ao local como “a terra das éguas russas”. Outras versões podem ser conferidas na página 08. Moradores de Russas falam também da importância do Rio Flores para o seu cotidiano, na sessão “na minha cidade passa um rio”. Entrevistamos Don L., rapper do grupo Costa a Costa, que faz um panorama da mixagem entre a música popular brasileira, ritmos e beats latinos com a rima e a batida de rua do hip-hop. E reproduzimos entrevista concedida pelo cantor e compositor Gilberto Gil durante a segunda edição da Campus Party, realizada em janeiro de 2009, em São Paulo. Gil fala de música livre, compartilhamento e das potencialidades que a internet traz para a produção musical e artística.
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Ponto a Ponto Som das Carnaubeiras
Aprender e ensinar abrindo janelas na web tem-se tornado uma atividade comum nos Pontos de Cultura cearenses. As potencialidades da era digital ganham novos objetivos, fortalecendo a idéia de visibilidade e reconhecimento de atividades socioculturais. Em Flores, dois estudantes universitários visualizaram na fusão entre arte e internet uma forma de se integrar jovens e crianças para a realização de um trabalho de mobilização social. Talvanes Moura e Andréia Menezes iniciaram um trabalho voluntário com seis crianças de Flores, onde pesquisavam cultura local e ofereciam formações em música. Vivenciando de perto os problemas sociais e as dificuldades de acesso a produtos culturais por esses jovens reuniram a comunidade e fundaram a Associação Som das Carnaubeiras, em 2002. Bastou um morador emprestar um local para a sede, a confecção de alguns instrumentos com material reciclável e muita boa vontade para ampliar as atividades voluntárias iniciais. Em 2004, o Som das Carnaubeiras ganhou o primeiro prêmio cultural "Música e Educação para a Cidadania" do Instituto Junia Rabello e o utilizou para comprar instrumentos. A comunidade se mobilizou, então, para a construção de uma sede permanente. Alguns fizeram bingos e promoções para arrecadar dinheiro, outros se disponibilizaram para ajudar na mão-de-obra. Donos de cerâmicas e olarias doaram terreno, telhas e tijolos. A situação de Flores começava a mudar, e os próprios comerciantes optavam por não empregar as crianças e ainda investiam no projeto de melhoria social.
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Contemplada pelo Ministério da Cultura em 2005, a Associação Som das Carnaubeiras tornou-se um Ponto de Cultura e ampliou suas ações, além da música, para o desenho de animação, a produção audiovisual, o cineclubismo e o telecentro. Hoje, as apresentações musicais da entidade são realizadas, registradas, editadas e divulgadas pelos agentes culturais na web. Talvanes Moura coordena o projeto e afirma que o diferencial é que não há professores e alunos no Som das Carnaubeiras. Há pessoas dispostas a aprender e outras a ensinar o que já sabem. O intercâmbio de conhecimento começa na própria sede, se ramificando pela internet apenas posteriormente. A associação participou da Formação em Audiovisual e Software Livre do Aldeia Digital e pretende continuar compartilhando saberes com outras Ongs. Os jovens músicos das Carnaubeiras são reconhecidos no Ceará e destacam-se pela Orquestra Popular, formada por 10 jovens com idade entre 12 e 18 anos, e pela Orquestra Sinfônica, formada por jovens entre 9 e 18 anos. O primeiro grupo enfatiza a música regional e faz uma releitura do folclore nordestino e de artistas cearenses e segundo toca música de concerto, tendo feito sua primeira apresentação pública em março de 2009. A Orquestra Popular Carnaubeira já viajou vários estados do Brasil e possui músicas autorais, tendo lançado um cd em 2007. <
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memória
Terra das Éguas RuCas
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equenas ruas alaranjadas, carnaubeiras exuberantes e o céu de um azul intenso. Esse contraste de cores evidencia a paisagem sertaneja de Flores, um dos seis distritos do município de Russas, a 165 km de Fortaleza. Localizado na região do Baixo Jaguaribe, Russas foi um ponto estratégico para o transporte de pessoas e mercadorias durante a colonização brasileira, o que lhe garantiu certo desenvolvimento comercial e econômico. Na época das charqueadas, a cidade servia como entreposto para os vaqueiros que iriam vender charque em Aracati. Mas o desenvolvimento econômico de Russas ultrapassou o ciclo do gado, e o município se destacou posteriormente nos setores de algodão, laranja e carnaúba. Ao longo de sua história, Russas assumiu, também, papéis de centro administrativo e religioso. Considerada a capital do Baixo Jaguaribe, sua grandiosidade histórica é bastante valorizada pela população, que, por exemplo, prefere chamar a Igreja da Matriz Nossa Senhora do Rosário de catedral. Ainda não se sabe ao certo a explicação para a nomeação de “Russas”. A versão popular é de que, nos primeiros anos do povoado, havia um velho fazendeiro que possuía belíssimas éguas de cor ruça, o que conferiu ao local a nomenclatura de “terra das éguas ruças”. No entanto, pesquisadores acreditam que o nome é fruto das pedras de granito pintadas de vermelho, que, vistas de longe, se assemelhavam às éguas ruças do tal fazendeiro. Hoje, Russas possui mais de sessenta mil habitantes e destaca-se também por seus atrativos históricos. Tendo sido originada de fortificações militares e palco da Guerra dos Bárbaros, no século XVIII, revela uma população corajosa que se apóia em símbolos e ações culturais para se desenvolver. Um grande exemplo disso é o distrito de Flores, onde a comunidade participa do funcionamento de uma rádio comunitária e organiza multirões para a construção de espaços culturais com o propósito de envolver jovens e crianças, reduzindo os problemas sociais.<
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entrevista
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Don L., músico do grupo de hip hop cearense Costa a Costa, fala de inspirações musicais, cadeia produtiva da música no Brasil e planos futuros. Conte um pouco a sua trajetória artística, suas referências musicais , o que você escutou na infância, adolescência e hoje? Minha mãe é cantora e compositora e minha irmã vivia ouvindo rádio FM mesmo, então eu ouvia muita MPB, era Chico Buarque, Caetano, Beto Guedes, que era o que minha mãe ouvia, e também a música pop que minha irmã ficava ouvindo na rádio e ligando pra tentar ganhar aqueles prêmios de FM tipo ingressos pra shows etc. Era de Lulu Santos a Michael Jackson. Isso eu com 6, 7 anos de idade. Já na adolescencia começei a ouvir rock, blues e pscicodelia, como Janis Joplin, The Doors, Pink Floyd. Depois começei a andar de skate e frequentar os points mais alternativos da cidade, como os picos de Reggae, as festas na Biruta, no Jokerman, no Peixe Frito Blues Clube, o Samba da Mocinha etc... Aí já começei a curtir um pouco de tudo que
rolava nesses picos, que era Bob Marley, Rage Against the Machine, Bezerra da Silva, Planet Hemp, Beastie Boys, e foi aí que o rap ganhou prioridade na minha vida, através de Racionais e Cypress Hill. Lembro que um cara que andava de skate comigo me emprestou um CD do Tupac, o All Eyes On Me, e eu gravei em fita cassete. Esse disco ficou no meu walkman durante muito tempo, no repeat. A partir daí começei a procurar no rap nacional alguma coisa que falasse da nossa realidade como Racionais, mas que tivesse a pegada da música do Tupac ou do Cypress Hill, na levada e nas batidas. Como não achei nada, decidi fazer eu mesmo, e foi aí que começou a história. Acho que até hoje o que eu faço é bem isso: um som que eu queria ouvir, mas não encontro em lugar nenhum. Só que hoje, depois de muita pesquisa, as referências se multiplicaram, mas é basicamente isso. ago.set.out 2008
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O Costa a Costa é dirigido a algum público específico? Qual? Don L. e Costa a Costa é música jovem. Pra quem tem mente jovem e aberta para grandes sonhos e acredita que ainda são possíveis grandes conquistas, pessoais e coletivas. Não importa credo, raça ou classe social.Vivemos num tempo de desengano. O Costa a Costa retratou isso muito bem com a Mixtape “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa”. Agora é hora do retorno dos grandes sonhos. Há algum projeto de gravação de um novo CD da banda? Estou gravando meu projeto solo. Estou trabalhando a nível nacional e lanço um single com Dj Hum, que é um dos maiores nomes do hip-hop brasileiro, um pioneiro que sempre trouxe grandes revelações para o grande público. A partir disso, lanço um CD solo e depois o disco do Costa a Costa. Quais momentos você destaca como os mais significativos de sua carreira? Quando fiz com o Costa a Costa um show pra 50 mil pessoas no programa da Regina Casé, e apesar de toda a inexperiência da época, soubemos dominar o monstro. E quando recebemos um prêmio da mão de Caetano Veloso, que é um ídolo. Mas a minha carreira está começando agora e eu espero muitos outros grandes momentos.
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Como surgiu o Costa a Costa? Eu e o Gallo conversando sobre como o rap estava previsível no Brasil, os mesmos assuntos, as mesmas levadas, as mesmas batidas... aí decidimos montar uma proposta nova. Como você chegou ao estilo musical que apresenta hoje? Atualmente, tanto o Costa a Costa como o meu projeto solo são uma tentativa de fazer hip-hop com influências internacionais, antenados com o que rola fora do Brasil, mas com uma linguagem de música popular brasileira. Hoje as influências e as possibilidades são enormes. É como se eu tivesse dialogando com um baterista de funk, com timbragem de hip-hop nos beats, um percussionista graduado em world music que pode fazer uma percussão árabe, africana, ou do norte do Brasil, e uma gama de instrumentistas que pode tocar bossa nova, samba ou rock dentro de um beat de hip-hop. A idéia é que todos esses elementos tenham liberdade e oportunidade de aparecer dentro de uma música que tenha apelo popular. É como uma re-tropicália a partir do hip-hop. É claro que, como Gilberto Gil já dizia no tempo da tropicália, ainda hoje “o espírito do subdesenvolvimento assombra os estúdios de gravação”, e eu diria que assombra também toda a cadeia produtiva da música brasileira. Saber lidar com isso e superar isso é o grande desafio. Acho que nós estamos vivendo outro momento de transição e ruptura como foi o final da década de 60, agora com a chegada da tecnologia digital mudando os meios de produção de toda a cadeia produtiva da música.
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Quais as principais referências de músicos que contribuíram para a formação do do Costa a Costa hoje? Muita gente acha que Costa a Costa é inspirado em Orixas, mas a grande verdade é que eu, que produzo as músicas, nunca botei pra tocar mais de uma vez uma música do Orixas. Pra falar a verdade eu não gosto muito. Eles são muito bons musicalmente, mas a parte do rap deles não é boa, e pra mim você pode fazer hip-hop misturando com qualquer coisa e ficar lindo o instrumental, o refrão ter o melhor cantor do mundo, mas se o rapper não tiver swing e originalidade na levada, ou “flow” como a gente chama, e um conteúdo bom na letra, era melhor ter ficado de fora, e a música seria muito melhor. Mas a gente fez algumas músicas que misturam hiphop com ritmos latinos, e o povo associa essa mistura ao Orixas, apesar de o Cypress Hill já ter feito isso, e principalmente, o Delinquent Habits, esse sim uma grande influência. Hoje em dia tem Don Omar que faz reggaeton muito bem, uma mistura muito boa de hiphop com ritmos latinos. Gosto de Caetano Veloso, Bezerra da Silva, Moreira da Silva, Originais do Samba, Chico Buarque, Luiz Gonzaga, Pinduca, Jorge Ben, João Gilberto, Tim Maia, Banda Black Rio, Cassiano, Max de Castro, Otto, Jay-z, Az, Nas, Kanye West, Led Zeppelin, Pink Floyd, The Doors, Beatles, Rolling Stones, Muddy Waters, Lightning Hopkins, Bob Dylan, Marvin Gaye, Billy Paul, Isaac Hayes, Bob Marley, Ray Barreto, Celia Cruz, Willie Colon, enfim... Gosto dos grandes músicos que existem em todos os estilos de música. Ouço muita música dos anos 60 e 70. Uma hora uma influência é maior, depois já é outra que fala mais alto. <
cineclube
No início da noite, o equipamento de exibição já estava montado na praça principal de Flores. Alunos e músicos do Ponto de Cultura Som das Carnaubeiras se esforçavam para transportar cadeiras até o local, enquanto alguns pais se revezavam convidando a comunidade para o cineclube CurtoCircuito e colocando chamadas na rádio comunitária. No horário previsto, lá estavam mais de oitenta pares de pessoas, ansiosas para ver os vídeos. Crianças, jovens, adultos e idosos se misturavam para assistir os curta-metragens. Dos vídeos exibidos se destacou Pandeiros e Emboladas (1984), do cearense Marcus Moura, que contava a história do repentista Beija-Flor, natural de Flores. O artista foi reconhecido pelos conterrâneos logo na primeira batida em seu pandeiro. <
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na minha cidade passa um rio: russas
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Rio de Flores Correm nas veias do Rio Flores, localizado no município de Russas-CE, as águas de vários riachos e córregos. Perene, o rio sempre serviu à comunidade inteira, independentemente de faixas etárias ou estação do ano. Para as crianças, o rio é local de diversão. Após a aula na escola, durante o dia, a maioria dos meninos do distrito Flores correm para lá. O lugar é dividido com as lavadeiras que alegram as margens com seus cantos e as enfeitam com roupas de estampas coloridas postas para secar. À noite, o rio recebe outros visitantes. Trata-se dos adolescentes, que fazem luaus em suas margens em busca de uma boa paquera. O rio sempre fez parte do cotidiano da população. Durante a semana, o rio Flores revela outras utilidades. À beira do rio, agricultores semeiam o alimento e, se o tempo for de inverno, eles trocam as enxadas pelas canoas em busca de peixes. Nesses tempos, até as senhoras pescam com uma garrafinha colocada dentro da água para fisgar algumas piabas. <
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perfil
Pescador
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Quase todos os jovens da associação se tornam músicos, embora desenvolvam outras atividades ligadas ao vídeo e à comunicação. Ronaldo Augusto, cujo maior sonho é tornarse um grande músico, revela sua paixão pelo vídeo e conta que aprendeu a editar para terminar uma animação que estava parada há mais de um ano. “Na verdade, eu aprendi editando. Algumas coisas que eu não conseguia descobrir sozinho, eu dava uma olhada no manual ou na Internet”, explica.
U
m homem acorda cedo para pescar. Ao preparar a vara, ele deixa o pote cheio de minhocas cair no chão, perdendo toda a sua isca. Para resolver o problema, o pescador escreve “minhoca” no pote e o pendura no anzol, que é lançado ao rio. A atitude causa discussão entre os peixes, e a solução encontrada por eles é dar o troco, escrevendo “peixe” num cartaz, que é pendurado no anzol. Essa é a história da animação A Pescaria, um dos 25 vídeos editados por Ronaldo Augusto (14), no Ponto de Cultura Som das Carnaubeiras. A iniciativa para o jovem integrar o projeto veio dos pais e do irmão, mas Ronaldo gostou tanto que participa ainda hoje. A Associação Som das Carnaubeiras surgiu com dificuldade, em uma casinha sem água e cadeiras. Com algum tempo, a sede foi para um galpão abandonado de uma cerâmica que ainda estava em funcionamento. “Nós precisávamos, todos os dias, lavar o chão para sentarmos”, lembra Ronaldo. Hoje, são desenvolvidas várias atividades culturais para integrar os jovens de Flores, no Ceará.
O interesse cultural de Ronaldo divide-se entre sons e imagens, fundindo-se no audiovisual. Documentários musicais e sobre compositores fazem parte das suas preferências, juntamente com os filmes nacionais. Entretanto, o maior prazer que encontra na sétima arte está na edição. Para isso, prefere os programas desenvolvidos em software livre pela segurança durante a execução do projeto. “Há dificuldade de fazer pixelation ou animação, mas há uma grande vantagem que é a confiança de não perder o projeto, pelo programa ser leve e por suas funções”, salienta. Ronaldo está cursando o 9° ano do Ensino Fundamental, mas confessa que estudar música e animação são as coisas que mais gosta de fazer. Dentre os vídeos produzidos pelo Ponto de Cultura Som das Carnaubeiras, participou de A Pescaria; Nas Horas de Deus, Amém e do clipe da música Tempo, de Talvanes Moura. Ronaldo Augusto reconhece o trabalho da associação e sonha que, no futuro, ela se torne um grande e conhecido Centro Cultural. < ago.set.out 2008
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entrevista
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SoM das
CaRnaubeiRas A primeira formação do Pontão de Cultura Aldeia Digital em 2009 foi com os agentes culturais da Associação Som das Carnaubeiras. O mais marcante foi a troca de experiências. Em entrevista, o coordenador Talvanes Moura fala das atividades da associação e ressalta a necessidade de constante intercâmbio entre os Pontos de
Como nasceu o projeto “Som das Carnaubeiras”? O Som das Carnaubeiras surgiu em 2002, quando eu e uma colega de faculdade do curso de pedagogia da Uece resolvemos fazer um trabalho piloto com seis adolescentes com produção de um trabalho musical, onde estes teriam formação em música, fariam pesquisa com mestres da cultura popular e transformariam esse conhecimento em um trabalho artístico musical. Em pouco mais de dois meses, já atendíamos 32 jovens, um número além do esperado e do planejado. Foi então que resolvemos alterar nosso projeto. A comunidade de Flores, assim como a maioria das cidades do interior, tem uma enorme carência de equipamentos culturais, e sofre uma grande influência da cultura de massa. Além disso, em Flores era registrado um grande índice de trabalho infantil, além de outras mazelas sociais. Baseado nisso e em dados sobre o perfil social, econômico e cultural do lugar, chamamos a comunidade para conversar sobre o assunto. Esta logo se convenceu de que era preciso fazer algo. Surgiram assim, em 27 de outubro de 2002,
a Associação Carnaubeira de Arte-educação e o projeto Som das Carnaubeiras. A comunidade mobilizou-se, doando espaço para o funcionamento e estrutura mínima. Em janeiro de 2006, inauguramos a sede do Som das Carnaubeiras, com estrutura para desenvolver diversas atividades em várias áreas da arte. Vocês desenvolvem projetos com outras formas de expressão além da música? Trace um panorama geral da atuação de vocês hoje. Sim, desenvolvemos além da música outras atividades. Falarei detalhadamente sobre o trabalho. Na música temos a Orquestra Popular Carnaubeira, grupo formado por 10 jovens entre 12 e 18 anos, que é o primeiro resultado daquele trabalho mencionado na outra questão. Esse grupo faz um show de música regional, com releitura do folclore nordestino, artistas cearenses e músicas do próprio grupo. Já viajou por vários estados do Brasil, lançou seu CD em 2007, todo gravado e produzido no estúdio do Som das Carnaubeiras. O outro trabalho é o da Orquestra Sinfônica, grupo formado com jovens
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entre nove e 18 anos que toca música de concerto. Todo aluno que entra na orquestra passa por uma formação musical e continua sendo formado dentro da orquestra. Esse grupo esta preparando seu primeiro concerto oficial para estréia em março, onde irá circular por várias cidades do estado, tocando em teatros, auditórios e igrejas. Na parte de audiovisual, temos o laboratório de animação, espaço que como o próprio nome já diz, serve para o estudo e a produção da arte do desenho animado. Já foram produzidos alguns trabalhos bem interessantes, dentre eles o filme “A Pescaria”, que participou do XVI Animamundi no ano passado. Uma observação que se faz a esse trabalho é que todo o processo de produção é realizado em software livre. Além disso, a metodologia de trabalho se difere da escola tradicional, onde o professor é o detentor do conhecimento e os alunos são depósitos de informação. Na Carnaubeira, todo mundo é aluno e todo mundo é mestre. O que todo mundo faz aqui é pesquisar e repassar o que
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aprendeu pros outros. Outra parte no audiovisual é a produção de vídeo. Tivemos durante algum tempo um trabalho com um programa de TV onde mostrávamos o resultado para a comunidade uma vez por mês na praça, como se fosse um cineclube. Além disso, produzimos alguns documentários e vídeos sobre a própria instituição. Temos muito interesse em ampliar e melhorar esse trabalho, por isso nos interessamos muito pela oficina que a Aldeia nos ofereceu. Como você avalia a formação e a experiência de compartilhar conhecimentos com os jovens da Aldeia? Acho a experiência muito positiva, creio que os pontos de cultura devam compartilhar seus conhecimentos e atuar de modo colaborativo, porque sempre somamos com essas experiências. Acho que a formação da teia fortalece os projetos que desenvolvemos, nos faz compartilhar a produção e o conhecimento.
Quais os projetos do Som das Carnaubeiras para 2009? Estamos passando por uma crise, mas dizem que é mundial. Estamos funcionando agora com poucos alunos e projetos. Nosso convênio com o Minc acabou e estamos correndo atrás de parceiros. Ainda em 2009, esperamos encontrar parceiros e finalizar a construção de nossa sede. Também circular com a Orquestra Sinfônica Carnaubeira, ampliar o número de alunos e o laboratório de animação, fortalecer o trabalho de audiovisual com a produção de curtas. Produzir o curta em animação “A feira da fantasia”, com 15 minutos de duração. Compartilhar conhecimento com outras ONGs, como foi o caso com a Aldeia. Finalmente, queria agradecer imensamente as oficinas que nos ofereceram, foi muito importante a participação dos meninos, e dizer que estamos sempre à disposição para receber os amigos e para oferecer também o que sabemos. <
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especial
GIL
“É preciso 'banda-largar' o Brasil”. Foi com essa frase que o músico Gilberto Gil iniciou sua participação na segunda edição Campus Party, o maior evento de inovação tecnológica e entretenimento eletrônico em rede do mundo, que aconteceu em janeiro de 2009, em São Paulo. Gil defendeu a internet como instrumento de ampliação do conhecimento livre e das produções culturais. “A primeira grande vantagem que a internet tem é que ela é aberta. Ela possibilita interações livres, associatividades muito expansivas entre várias pessoas no mundo inteiro”, disse. A maior discussão provocada por Gilberto Gil foi direcionada à música livre. Segundo ele, a capacidade de compartilhar e de usar conhecimento ou produções anteriores a um determinado indivíduo ou geração sempre foi o caminho do conhecimento e da ciência. “Eu não poderia ser o músico e o compositor que sou se eu não estivesse ouvido Dorival Caimmy, Luiz Gonzaga ou João Gilberto. (...) O que eu faço da vida é imitá-los”, declarou. Compartilhamento significa circulação ampla, plena, didativa e qualitativa da informação. Na Grécia Antiga, os rapsodos adicionavam seus versos aos de Homero, colocando a mimesis, a capacidade de imitar, como uma das bases da poesia. A intensificação dos atos de compartilhar e recriar através da internet confere a produtores musicais e grandes indústrias fonográficas receio em relação ao respeito aos direitos autorais e à comercialização das obras. Gil passou vários anos lutando na justiça para ter novamente os direitos autorais de sua música e hoje disponibiliza quatrocentas delas através de stream, na internet. Segundo o músico, não há a necessidade do artista abrir mão de um caminho de distribuição para adotar outro. Ele continua produzindo seus discos, mas disponibiliza músicas na web porque lá existe um público que pode baixar, mas também comprar música. Ele explica que “a intensificação da comunicabilidade do artista com o seu público tem na internet e nos novos meios digitais um papel importantíssimo”. Além disso, a nova tecnologia tem grande papel publicitário para a divulgação dos shows, que constitui a principal fonte de renda dos artistas.
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Gilberto Gil considera normal o temor dos músicos em relação a um possível negativismo em torno da música livre. “Isso é até muito humano. O que não pode é se transformar esse temor em gás paralisante, que os impeça de ir lá trabalhar com as novidades”, salienta. Segundo o ex-ministro, é preciso discutir e politizar a produção artística nos novos meios. “Se não houver isso, nós não avançamos. Assim deixamos que os legisladores tomem nas mãos e vão fazer leis defasadas ou que não façam jus à complexidade dos processos. Não pode. A cidade tem que discutir”, defende. A internet possibilita que os artistas consagrados ou iniciantes gerenciem a divulgação e distribuição de suas obras independentemente de empresas e de corporações, através dos modelos de negócios criativos e das licenças eletrônicas, entre elas a creative commons. De acordo com essa licença, o artista pode escolher como sua obra poderá ser utilizada, distribuída e recombinada. Gil defende que a incorporação da licença Creative Commons pelos produtores culturais na internet deve acelerar e facilitar as produções individuais e coletivas. “Recombinação é o nome do jogo. Não há arte sem recombinação. São sete notas musicais que estão sendo recombinadas por todos os artistas do mundo há séculos. O que está em pauta agora é a facilidade com que esses novos aparatos técnicos dotam o homem para que ele recombine com mais facilidade”, explicou. Vários softwares e ferramentas desenvolvidas na web proporcionam não só a produção artística de pessoas até então leigas como conferem visibilidade para as obras. As pessoas estão descobrindo os seus talentos através dos novos meios, programas e ferramentas existentes em ambientes de rede. <
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