reportagem
#mobilidade #ventonorosto #veículo
O veículo do futuro
Criada há mais de 150 anos, a bicicleta se transforma numa alternativa real aos congestionamentos, levando diversas cidades ao redor do mundo a investir em estruturas cicloviárias. Um gesto capaz de redesenhar a forma como as pessoas se deslocarão nos grandes centros urbanos por
24 | neurônio vero | novembro | 2014
Alexandre Finelli
Um pouco de história Engarrafamentos quilométricos, espaço restrito a veículos, praças dando lugar a estacionamentos e inúmeras propriedades demolidas para alargar ruas e colocar mais carros. O cenário descrito poderia ser de qualquer metrópole ao redor do mundo que teve crescimento demasiado de veículos, porém, a cidade em questão é hoje conhecida mundialmente como a capital do ciclismo: Amsterdã, Holanda. O país, que atualmente tem o maior número de ciclistas do mundo proporcionalmente, nem sempre foi referência em mobilidade urbana. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Holanda teve um crescimento econômico acelerado, seguido de um volume de
carros maior do que poderia suportar. Segundo o holandês Warner Wonk, especialista em mobilidade urbana, eram 21 pessoas mortas no trânsito a cada 100 mil habitantes nos anos 1970, um número muito parecido com os da realidade brasileira hoje. “Após a implantação de estruturas planejadas para ciclistas e pedestres, esse número se reduziu para quatro”, conta. O índice explica por que o país hoje é considerado o mais seguro do planeta para pedalar. Wonk é fundador da Ifluxo, uma empresa carioca cujo time de consultores desenvolveu ciclovias em cidades como Nova York, Bogotá, São Paulo, Rio de Janeiro e tantas outras. Em todas elas, o processo foi parecido, sendo necessário lidar com a insatisfação inicial de boa parte da população. “Em todos os projetos em que trabalhei, muitas pessoas eram contra. Mas quando a ciclorrota é bem adotada, a infraestrutura traz benefícios para todos, e as reclamações diminuem gradativamente”, conta. Na opinião do especialista, um dos maiores obstáculos para o investimento em ciclovias é a falta de diálogo. “Por isso, acredito que um planejamento participativo ajuda na execução de um projeto de mobilidade, pois o processo é facilitado desde o início, da identificação dos problemas até a implantação das soluções”, sugere. Wonk explica que não se trata de um projeto técnico, mas de algo para a sociedade, cuja participação é fundamental para que a estrutura seja bem-sucedida. “A adesão de novos ciclistas leva de três meses a um ano, porque é necessária uma mudança de comportamento de todos”, afirma.
“Quando a ciclorrota é bem adotada, a infraestrutura traz benefícios para todos, e as reclamações diminuem gradativamente” Warner Wonk
Warner Wonk, especialista em mobilidade urbana e fundador da Ifluxo
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arquivo pessoal
Não dá para negar: a bicicleta é a “roda” da vez. A magrela – como é carinhosamente apelidada pelos ciclistas – está obrigando cidades ao redor do mundo a repensar a forma como as pessoas se locomovem. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, foram vendidas mais bikes do que carros em 25 dos 27 países da União Europeia, segundo um comparativo entre a Associação de Veículos com Rodas da Europa e a Associação Europeia de Fabricantes de Carros, em 2013. No Brasil, a situação é similar. De acordo com a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo), foram produzidas 4,6 milhões de bikes no país, além das 370 mil importadas, em 2011. No mesmo período, venderam-se 3,4 milhões de carros.
arquivo pessoal
zé gabriel
Ricardo Romero, um dos organizadores do Pedal Paulista, que chega a reunir mais de 300 ciclistas em passeios por SP
Alexandre e Guilherme, sócios da Pedal Alpha, levam grupos de ciclistas para pedalar por Alphaville
Economia e sociabilidade Considerado o terceiro maior fabricante mundial de bikes desde o início desta década, o Brasil deve atingir a marca de aproximadamente 4,5 milhões de unidades vendidas até o final deste ano, aponta a Abraciclo. Embora não haja dados oficiais, a associação estima que a frota nacional de magrelas seja superior a 70 milhões. Diante desse cenário, diversos ciclistas transformaram a paixão pela bike numa oportunidade de negócio. É o caso de Alexandre Esteves, sócio da loja Pedal Alpha, inaugurada em maio deste ano, em Alphaville. “A ideia de abrir uma bike shop surgiu pela paixão por pedalar e por se tratar de um veículo que representa o futuro do transporte mundial”, garante. Em sua opinião, a demanda pelas bicicletas está aumentando em função da preocupação da população por mais bem-estar físico. Mas, além de vender bikes, acessórios e prestar serviços aos ciclistas, as bike shops de hoje exercem um papel fundamental para sua popularização: reúnem entusiastas para passeios semanais. A Pedal Alpha criou grupos de ciclistas de níveis variados para pedalar pelo bairro, fazer passeios em outras regiões e realizar workshops – uma forma bem-sucedida de juntar quem tem uma paixão em comum para se conhecer, se divertir e trocar experiências.
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Outro grupo que se destaca pelos encontros é o Pedal Paulista, em São Paulo. Um passeio de nível moderado costuma juntar cerca de 300 ciclistas. Segundo Ricardo Romero, arquiteto, sócio da Sunny Bikes e um dos organizadores, o PP nasceu para unir as pessoas. “Nosso objetivo é agregar o máximo de pessoas que gostam das mesmas coisas e que, por conta de morar numa cidade como São Paulo, não têm oportunidades de fazer novos amigos”, explica. Em sua opinião, o maior trunfo do grupo é que os passeios não são voltados para obter lucro. “Aqui você só é obrigado a ter bom humor, aguentar o trajeto, respeitar as meninas do pedal e usar o capacete”, acrescenta. Para quem curte contato com a natureza, o Pedal Paulista organiza trilhas mensais em que mato e lama são os principais atrativos. “É diversão do começo ao fim. Não fazemos trajetos em locais sem cachoeira ou represa. Para nós, uma trilha onde você não pode dar um mergulho não vale a pena”, diverte-se. Durante todo o percurso, os ciclistas contam com hidratação, carros de apoio e mecânicos. Outro ponto que vale citar é que não são apenas as bicicletarias que estão lucrando com essa nova realidade. Ao contrário do que muitos pensam, imóveis e demais estabelecimentos comerciais
tornam-se mais valorizados nas regiões onde há estrutura para bicicletas. “Em Nova York, por exemplo, há dados que revelam um aumento na receita do comércio local em torno de 70%. A explicação é simples: quanto maior a acessibilidade nos bairros, maior sua valorização”, resume Wonk. De bike para o trabalho Uma pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo com o Instituto Ibope em 2012 apontou que 65% das pessoas entrevistadas aceitariam deixar o carro em casa se o transporte público e a bicicleta fossem viáveis. O índice subiu para 81% entre as pessoas que têm curso superior. São números que comprovam que o investimento em ciclovias e ciclofaixas é não apenas um bem necessário, mas também uma possível alternativa para lidar com uma das maiores fontes de estresse das grandes cidades: os congestionamentos urbanos (confira na página 72 a entrevista com o secretário de planejamento e urbanismo de Barueri, José Eduardo Hyppolito, sobre a proposta de um plano cicloviário para a cidade). Sidnei Ber, engenheiro civil, é um claro exemplo de quem se sentiu estimulado a deixar o carro na garagem depois que as ciclovias cruzaram bairros e avenidas importantes de São Paulo. “Comecei a
Alexandre Esteves, Pedal Alpha ir para o trabalho de bike em abril. A estrutura incentivou, pois não me sentia seguro ao transitar entre carros”, conta. O percurso que faz da sua casa para o trabalho tem sete quilômetros, e para driblar o possível desconforto gerado pela transpiração, Ber optou por uma bike elétrica. “No meu escritório, não tem vestiário. Então, vou para o trabalho com o modo elétrico e volto para a casa pedalando”, explica. Antes de fazer o investimento, Ber fez testes durante seis meses com as bicicletas compartilhadas em estações de bike. “Percebi que otimizava o tempo e dava um prazer em transitar pela cidade que o carro não me proporcionava. Sem falar na sensação do vento batendo no rosto, na liberdade...”, explica. A bicicleta virou mesmo a melhor amiga daqueles que não suportam mais ficar horas parados no trânsito. Esse ganho de tempo pode ser percebido mesmo quando a distância entre a casa e o trabalho é maior. O gerente de contas Martin Shimidt reside em Alphaville, mas trabalha em São Paulo. Apesar da distância, ele pedala até o escritório pelo menos duas vezes por semana. “Tudo começou quando trabalhava numa editora na marginal Pinheiros. Como toda sexta-feira o trânsito é mais complicado e coincidia com o meu rodízio, arrisquei ir de bicicleta. Gostei tanto que agora vou toda semana.”
De Amparo para Santiago do Chile... de bike! Você teria disposição de pedalar 3.600 km em 27 dias? O empresário Márcio Piassa teve. Ao lado do amigo José Carlos Marcatto, ele saiu da cidade de Amparo, no interior de SP, e partiu para a capital chilena. Pedalando, claro. “Tudo aconteceu muito rápido. O José vinha ao meu estabelecimento várias vezes dizendo ter vontade de ir para o Chile de bike, mas não tinha com quem ir. Certa vez, eu disse que se ele quisesse mesmo, poderia fazer companhia, mas teríamos que partir em dez dias. Ele achou uma loucura, mas concordou”, relembra. Dali em diante, Márcio do Bar, como é conhecido na região, e seu amigo foram atrás de algumas empresas, a fim de conseguirem apoio e patrocínio. “Não tínhamos treinado, mal sabíamos o que levar nem como chegaríamos lá direito, mas montamos nas bikes e fomos”, diverte-se. “Enfrentamos do sol forte ao vento gelado da Cordilheira dos Andes. Dormíamos onde dava, de albergues
a quintais nas casas dos outros”, conta. Ciclista inveterado, a bike entrou em sua vida há 20 anos, quando comprou uma bicicleta antiga, uma Humber inglesa, de 1948. “Desde então, comecei a colecionar. Hoje são cerca de 120 magrelas antigas, entre nacionais, alemãs, italianas, inglesas, francesas... Tem dos anos de 1930 até 1980”, explica. Além de reunir bikes raras em sua garagem, a bicicleta é responsável por uma história de superação em especial. “Eu pesava 123 quilos. Desde que comecei a praticar mountain bike, em 2006, me apaixonei e não parei mais. Hoje peso aproximadamente 70 quilos, sou triatleta e tenho dezenas de cicloviagens no meu currículo”, comemora. Além disso, Márcio orgulha-se de ter conseguido levar tanta gente para o esporte e ter transformado o seu bar num ponto de referência e encontro entre ciclistas tão apaixonados quanto ele. arquivo pessoal
“A ideia de abrir uma bike shop surgiu pela paixão POR pedalar e por se tratar de um veículo que representa o futuro do transporte mundial”
Márcio Piassa: 3.600 km em 27 dias
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arquivo pessoal
“TRABALHAVA NUMA EDITORA NA MARGINAL PINHEIROS. COMO TODA SEXTA-FEIRA O TRÂNSITO É MAIS COMPLICADO, ARRISQUEI IR DE BICICLETA. GOSTEI TANTO QUE AGORA VOU TODA SEMANA” MARTIN SHIMIDT, morador de alphaville
Entregas sobre duas rodas
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Martin Shimidt: mora em Alpha e trabalha em SP. De carro, leva 1h40 para fazer o trajeto de 26 km; de bike são 50 minutos
A falta de um espaço apropriado para bicicletas já rendeu a Schimidt alguns sustos. “Uma vez, na rodovia Castelo Branco, na entrada do Rodoanel, um carro veio da pista da esquerda e entrou com tudo. O susto foi tão grande que até decidi voltar para casa”, lembra. Para ele, se houvesse uma estrutura cicloviária na rodovia, muita gente utilizaria a bicicleta para trabalhar em São Paulo. Para percorrer o trajeto de 26 km de carro, ele leva 1h40. De bike, são 50 minutos. Anjos sobre rodas Quem não tem ciclovia nem um anjo da guarda tão bem disposto quanto o de Shimidt pode contatar o bike anjo, um ciclista experiente e voluntário que ajuda iniciantes a se deslocar pela cidade com mais segurança. João Paulo Amaral, coordenador da rede, conta que, pelo site bikeanjo.org, podem ser solicitados diferentes serviços. “Pela nossa plataforma, os interessados podem requisitar uma sugestão de rota, um acompanhante no trânsito, dicas de
zé gabriel
Se trafegar pequenas distâncias entre carros gera arrepios até em ciclistas mais experientes, imagine pedalar o dia inteiro com bagageiros acoplados em sua bike, com uma mochila nas costas e em alta velocidade! Essa é a rotina do ciclocourrier, profissional que faz entregas de bike. O americano Deco Goodman, de 28 anos, está há dois anos nessa profissão, em Nova York. Mesmo em uma cidade mais preparada para ciclistas, o bike messenger, como também são conhecidos, enfrenta o desrespeito dos motoristas. “Tento ser rápido a ponto que não me percebam, ocupando os espaços vazios deixados por eles. Mas eu fico louco quando vejo motoristas colocando em risco a vida de outros ciclistas menos experientes”, desabafa. O acidente mais sério que sofreu foi quando levou uma “portada” de um motorista desatento ao sair do carro. “Levei 30 pontos pelo corpo e tive a bike danificada”, relembra. O profissional explica que, infelizmente, quem põe os ciclistas em risco são os mesmos que deveriam protegêlos. Para Goodman, a melhor forma de estabelecer um convívio pacífico entre ciclistas e motoristas é simples: “Educação deve funcionar em qualquer parte do mundo”, resume.
medidas de segurança, entre outras ações feitas por meio de nossas campanhas e workshops”, conta. Criada em São Paulo em 2010, a rede de anjos está disponível em 220 cidades por todo o país, reunindo cerca de 1.300 voluntários. Para Amaral, a importância da ciclovia e ciclofaixa é que elas trazem mais segurança e confiança para quem quer fazer parte desse mundo. “Em algumas ocasiões, o fluxo do trânsito permite essas estruturas segregadas, exclusivas para bicicletas. E, fazendo bem feita, os ciclistas aparecem”, opina. Com base nessas pesquisas e relatos, fica claro que a bicicleta está sendo cada vez mais utilizada para deslocar as pessoas no dia a dia e assumindo um papel mais relevante na questão da mobilidade urbana. Longe de ser a única solução para os congestionamentos e os altos índices de fatalidade no trânsito, mas, com isso, cresce a criação de políticas de desenvolvimento sustentável, levando a acreditar que o veículo do futuro, diferentemente do que imaginávamos, chegou faz tempo.