Corpo de festim [antropoemas]

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Editora Penalux Guaratinguetรก, 2016


EDITORA PENALUX

Rua Marechal Floriano, 39 – Centro Guaratinguetá, SP | CEP: 12500-260 penalux@editorapenalux.com.br www.editorapenalux.com.br

EDIÇÃO França & Gorj PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Furio Lonza IMAGEM DA CAPA “Houdini” de Joniel Santos / Boneco em papel e intervenções 3D de Vivian Albuquerque FOTO DE CAPA Mauricio Wanderley PROJETO GRÁFICO E CAPA Alexandre Guarnieri FINALIZAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO Ricardo A. O. Paixão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vagner Rodolfo CRB-8/9410 G916c

Guarnieri, Alexandre. 1974 Corpo de festim / Alexandre Guarnieri. - Guaratinguetá, SP: Penalux, 2016. 132 p. : 23 cm. ISBN 978-85-5833-053-4 1. Literatura brasileira. 2. Poesia. 3. Poema. I. Título. CDD B869.1 CDU 82-1

2016-93 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura Brasileira

Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida mediante autorização expressa do autor e da Editora Penalux.




Sumário Capítulo hum: Darwin não joga dados, Mallarmé sim o átomo de carbono (i) sangue | suor / e celulose (i) o átomo de carbono (ii) sangue | suor / e celulose (ii) o átomo de carbono (iii) \\ livro aberto // o átomo de carbono (iv) (( ( útero ~ incubadora ) )) bem-vindo à terra firme

16 18 20 22 24 26 28 32 34

Capítulo dois: Corpo-só-órgãos |( os órgãos internos )| (/no filtro: (o baço), (os rins), (o fígado)/) << no coração >> >( os pulmões )< mecânica dos fluidos / o sangue / o suor / a lágrima / a saliva / do sêmen ao leite materno / a urina / a bile / o pus / a fleugma /[ todo corpo ]\

38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 62 64


[| a pele |] | ||| são oito ||| | | cabeça / ombro / joelho / e pés | ( | o crânio humano | ) ) ) os dois ouvidos ( ( labirintite ( ) os dois olhos ( ) o glaucoma :| resta um rosto |:

66 68 70 72 74 76 78 80 82

Capítulo três: Vigiar e punir ânus humano ( . ) ônus santo o sono / a preguiça [ ] corpo de prova [ ] biótopo pílula cotidianometria / limitrofagia / < < < retrogressão outra coisa | dismorfofobia + necrópsia + mandala de houdini Não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita: dois estudos para o Corpo de festim a mão direita: No corpo do texto: A poesia atual (e real) de Alexandre Guarnieri a mão esquerda: Nosso Corpo de Festim

86 88 90 92 96 98 100 102 106 108 110

115 123


À minha mãe Afonsina Guarnieri guerreira e amiga Aos parceiros de escrita e vida Úrsula Hartalian Lautert Mariel Reis Roberto Dutra Jr. Furio Lonza Alberto Bresciani Izacyl Guimarães Ferreira Adriano Wintter André Luiz Pinto Jorge Elias Neto Luciana V. P. de Mendonça Gabriel Resende Santos Alexandre Dacosta e Mauro Gama Aos magos de mallarmargens.com Mar Becker Wesley Peres Nuno Rau e Andréia Carvalho Gavita Aos queridos amigos da oficina de poesia Adele Weber Astrid Cabral Helena Ortiz Jacinto Fabio Corrêa Lila Maia Márcia Cavendish Wanderley



Faisons d'abord le poème avec sang Nous mangerons le temps du sang Et en avant le po-ème en chant et sans sang Ce qui était fait avec du sang, nous nous en avons fait un poème... Antonin Artaud (art poétique, 1959) I am just a copy of a copy of a copy Everything I say has come before Assembled into something into something into something I am never certain anymore I am just a shadow of a shadow of a shadow Always trying to catch up with myself I am just an echo of an echo of an echo Listening to someone's cry for help Nine Inch Nails (Hesitation marks, 2013) [...] chamemos de Universo esse úmido esteio da multiplicação dos homens, chamemos de Sangue esse tenebroso rio por onde flui com desenvoltura petulante nossa memória [...] coloquemos as coisas da seguinte forma: se são figuras tradicionais de retórica, fracassaremos antes mesmo de ter nascido, pois nos apunhalam ainda no ovo. Furio Lonza (História impossível, 2007)




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o รกtomo de carbono (i)

( 16 (


toda a vida contida numa exígua partícula, – desdobrável de si própria –, equilibrada sobre a mesma progressão desenfreada; deuses ferveram-na numa caldeira aquecida ante o clarão do big bang / cozendo-a por milênios, lenta, nas tripas da mais velha estrela / e lá, aprisionada, como o maior espetáculo da via láctea, além do limbo centígrado dos organismos bioquímicos, replicou-se a enzima de sua fina (e elástica) matematicidade // até que [...]

( 17 (


sangue | suor / e celulose (i)

( 18 (


a carne, que cada corte desonra, cintila nesse mal que tarda a sarar a pressão de toda ofensiva tardia, qualquer soco, avaria / aí cada agulha se calcula ou se anula / balbúrdia, barulho, algazarra que cada palavra declara, tingindo toda ou alguma área da página mais alva / à nudez do papel, a rápida mancha a vio lentá-la / da pálida celulose, violada, o que sangra é tinta tipográfica.

( 19 (


o รกtomo de carbono (ii)

( 20 (


sob o delicado aquário de oceanos amnióticos ( ou a redoma de gaia como a mais esbelta esfera atmosférica ), é apenas este ventre de inumeráveis entes ( a arca noética vaga entre tantos outros astros gravitacionais ) // até que [...]

( 21 (


sangue | suor / e celulose (ii)

( 22 (


no livro corporal (sob o martírio de ser escrito) o sal que cada talho encontra, arde, demora a curar a chaga criada por cada frase exata / todo golpe, pancada, cada agressão que se aplique, fulgor, alarido de sílabas, busca sobrepujar no parágrafo o que tinja ou apenas preencha a claridade da página, que seu terreno, até então anêmico, esteja repleto / são números e letras de chumbo o suor de sua pele impressa.

( 23 (


o รกtomo de carbono (iii)

( 24 (


no interior do planeta, uma bilha líquida de bilhões de graus centígrados brilha / na cela férrea, a energia centrífuga esteve apresada aos polos magnéticos da terra / um íntimo dínamo, o único núcleo do seio incandescente de todos os vesúvios / placas de treva rodopiam entre si, inter cambiando os óculos e portas desse gás próspero, que vez por outra escapa para a crosta, pelos poros, em erupções vulcânicas // até que [...]

( 25 (


\\ livro aberto //

de pele é revestido o corpo, tecido vivo \ no livro, chama-se capa (o couro sob o título) \ abri-lo: gráfico grito \ mas como ouvi-lo se é branco o ruído da celulose, – tão silenciosa? todo livro fechado se cala \\ cada nova leitura o amplia.

( 26 (


de órgãos o corpo é preenchido, de vírus, microrganismos, avisos / no livro, diz-se texto / há páginas em que apenas a aparência é pueril / decifrá-las nem sempre é fácil, há vários níveis de sentido ou, ainda, na entrelinha, o seu estilo // neste exercício: o mais difícil.

( 27 (


o รกtomo de carbono (iv)

( 28 (


resfriados na água pelo gládio glacial, ácidos, esporos e átomos rearrumaram a forma, nadaram para fora e já longe das margens (de charles darwin a richard dawkins), fabricaram nova roupagem, asas, caudas, quatro patas, penas, pelos, couros secos, ou em pé sobre as duas pernas / agruparam manadas, alcateias, revoadas, tribos de hominídeos (de neander a denisova), grupos distribuídos, técnicas agrícolas e revoluções científicas, indústrias, silício e cristal líquido, do carbono à carne e de volta ao carvão, da morfogênese à individuação, do mercado ao contingenciamento humano, da barbárie do canibalismo ao individualismo citadino e daí ao tráfico de órgãos / é fantástica e bizarra a via crucis de todos os vivos // até que [...]

( 29 (


[ ... ] [ . ] [~] [ : ] ( . ) (~) ( : ) ( ; ) ( 30 (


( / ) ( | ) ( \ ) ( - ) ( \. ) ( |. ) ( , ) (( ( 31 (

,


(( ( útero ~ incubadora ) ))

( hábitos aquáticos no estágio embrionário – ( ~ mar ~ matre ~ mater ~ ) a placenta atravessada a nado por alguma criatura inicial – ( ~ girino ~ feto ~ enguia ~ ) cujo único exercício preparatório é o respiro amniótico nesta antessala líquida do mundo ( a câmara salina na bolha viva da barriga ) | o que da ova retida leva o solitário ovócito confortado, do óvulo revelado eva adentro, é toda fértil a terra materna | o filho, no início, bicho tão mínimo, indis tinguível de qualquer outro seixo mode lado sob o rio sanguíneo ( do íntimo nilo ao assomo do amazonas ) , grão humano aguardando subir tantos degraus quanto necessários para tornar-se um corpo, na man jedoura dos ovários, do zigoto ao todo, gomo por gomo ( diagrama, fractal ), mandala gráfica o amálgama dos gametas | ( da nutrição pelo umbílico o bebê é depen dente, umbrívago ), ossos desenvolvem-se, órgãos, cérebro, segue-se o desenvolvimento de todos os membros ) desde o sêmen [ do pai, macho da espécie, apenas o mero reme tente de seus genes ] e dentro por nove meses [ da mãe,

((

( 32 (


tenro invólucro amoroso, tendo sob sua guarda algo novo ] a cápsula carnal que alargará o canal vaginal, túnel extre mo do músculo, porque se haverá de abandonar (a qual quer momento) essa hospedagem ( quando nascer começa a doer ) será outro o destinatário neste parto – o pai não pare –, a porta (exaurida na expulsão) serão duas pernas abertas ) ao espetáculo dá-se o nome: “nascimento” (no clímax, destaca-se o ticket ) ansioso o silêncio ) o primeiro choro inter rompe o suspense ) “não há defeito con gênito!”, celebram os obstetras, aos berros ] ESTE É O LADO DE FORA! [o ar arranha] é áspero o primeiro oxigênio [ a partir de agora, sob uma sequência de cho ques, somente interrompida pela morte, serão mui tas auroras de fuligem e pólvora! ] a menos que este neo nato, acometido por estranhíssima epifania pré-natal, (o caso mais raro!) escolhesse enforcar-se no cordão umbilical | mas ao recém-nascido saudável restará, desde já, [ a verdade ainda indisponível ], revoltar-se / (( , )) < < < < < < < < < < < < < < < < < ou voltar!

,

( 33 (


bem-vindo Ă terra firme

( 34 (


a carne humana, terrânea, é também marinha, e encerra, na híbrida simetria dos membros, seu mistério anfíbio: no corpo seco, oco e trêmulo, há água salgada por dentro; este feto, em terra, recém-saído do útero materno, sangra, urina e vaza, ou quando submetido a extremos ( caso o alimentem de mais ou de menos ) / imagens, palavras, ideias, nadarão no cérebro, compartimento menos matérico; haverá vermes e vírus hostis entre outras coisas vivas, habitando seus muitíssimos interstícios; oscila entre o quente/ o frio, o rígido/ o maleável/ e líquido ( a carne se abisma nesse enigma ) no que é vivo, há algo entre se molhar e permanecer ressecado, já quando o corpo tem início, como progredisse – no íntimo –, um conjunto mecanismo.

( 35 (


is:

Cap

do Ă­tulo


po

Cor

รฃos

รณrg -sรณ-


|( os ĂłrgĂŁos internos )|

( 38 (


\ ( persegue as vértebras a massa dos sangues coligidos / ( dentre os quais há indício, de que alguns ( mais ou menos líquidos ) \ cada qual a seu tempo, distintos, consolidem sacos do caldo biológico, coagulados \ ( carnes que existem da diferença entre si de seus tecidos / ( se especializaram as células, em aparelhos e sistemas ) / delas monta-se um puzzle cujas lacunas se completam ) \ o corpo expande, tanto quanto se destrói ( por escasso o cálcio ) no rígido osso que esfacela / ( conforme a vida lhe habita, o conjunto luta sob o mesmo pulso \ ( o mesmo insumo bruto lhe insufla a labuta / ( plantada já na samambaia dos nervos \ ( enclausura-lhe a elástica amarra dos músculos / ( a obstrução sob medida de uma única fornalha viva ) \ trocam fluidos entre si tantas partes aparentemente separadas \ ( interno o mar hemorrágico, apenas visitável numa viagem fantástica / ( mas quando lhe autopsiam a frio \ ( sangria & bisturis / ( se mostra, um monstro sob as próprias ataduras \ ( o frankenstein exposto, que, apenas por medo do escuro, só morto poderiam demonstrá-lo ) \ ( 39 (


(/no filtro: (o baço), (os rins), (o fígado)/)

1. o filtro imbrica baço, rins (integrados) no fígado definitivo (todos, na íntegra, definidos) / discrimina impurezas ao limbo, metaboliza líquido e película, nega, entrega e delega a certas partículas e células os abismos da urina que instiga e destila / mesmo ágeis (destarte, o que decantam é descarte), os rins retroagem, ainda que, nesse ínterim (período restritivo), limpem / este filtro (intrínseco), retraído e tímido, (no fígado) quanto menos decidido (seria o vírus? icterícia?), quando vítima da hepatite: (grita) adoece sua usina, absorve o ódio, a raiva, toda a intriga; 2. há falhas na malha do filtro, ou no plasma, destituído do próprio destino, do propósito biológico / e onde o baço insta, briga, trinca, incha ou, se a cirrose o corrói, destrói-se noutro órgão, ou quase / se exibe, azulando, alguma exótica necrose (não obstante, só tratável mediante um único transplante), ante a falência que aniquila e dribla toda a extensão de sua fibra ( 40 (


3. que pouco a pouco, abre / se entreabre, esgarça sob outros arcos que o desgastam mas reage, regenera, desde que sempre obedeça à genética : se chega lá, quase ao fim, refaz-se, sua pele persevera, resiste quando prestes a entregar-se, triplica (sintetiza na glicose) as proteínas que afina, refina e suprematiza / quando tange o próprio apêndice, renega o não, sem denegrir-se (entre secreções, decreta que seca, cria as pedras que excreta em plena crise renal);

4. se organiza entre glândulas este filtro, definitivo, dentre as quais a hepática (elimina hemácias), que deflagra (maior) sobre o diafragma, ou as suprarrenais, fabricando adrenalina (adrenais no córtex e medula) / nega, denigre, delega, entrega / abre, reage, excreta, regenera, tal é o filtro definitivo, integrados baço, rins e fígado. ( 41 (


<< no coração >> << átrio e ventrículo direitos apenas sugerida, em abstrato diagrama pseudo mecanicístico, toda a compleição cardíaca mostrada em perspectiva explodida ( a hidrografia da fúria contida pela escala humana, aprisionada a um contorno reconhecível, contínua ilha viva, o império regulatório cuja sede é este autônomo castelo, palácio da polaridade ( ora expulsa o sangue das câmaras, ora reclama-o, em súbitos ou consolidados fluxos, ora inundadas as alas internas ( átrios tangendo o mediastino ( ora dragadas as cavernas, é tenso o sistema de cisternas, contínua a troca ( dentro ( fora ( preenche ( entorna ), vasculha curvaturas, a cada nova onda morna – em varredura a órbita – sua vascularizada borda, em tantas roldanas se enrola, a tropa de cordas sob o miocárdio, novelo de veias, n’algumas afirma o fio ( estica ( embala ), noutras, se trôpego, duvida da linha ( embola em trombose ( há um mal hidráulico contra o qual qualquer vásculo não-irrigado corrobora ) < no tórax houvesse portinhola ( o peito aberto ) um compósito do homem de lata de oz, devotado a dorothy, e andrew, o andróide de asimov ), a ferragem rangesse contra algumas dobradiças e, logo abaixo das axilas, saltasse uma aldraba contráctil entre balizas >

( 42 (


átrio e ventrículo esquerdos >> são pistões massacrando o plasma a certo compasso, a pressão sanguínea grita, há um ritmo escondido sob a exata frequência enaltecida, muito embora se admita, vez por outra, desligado o velocímetro, ou ainda, porque deslocado o grau, verificar nova condição marcada acima ( retumba ( bate ( pula ( pulsa ); qual ferrugem o suja quando o sangue coagula na gordura antes que uma artéria o obstrua, na gruta muscular onde se oculta, no intervalo entre o plexo e a coluna? onde estará guardado o coração das coisas físicas? Qual o limite do ajuste fino combinando o ímpeto ao destino no abismo do mesmo ventrículo? habitando a cavidade de almofada, subjaz cansado o órgão sitiado ( esfera cárnea em estado crítico ), oferecido ao transplante de suas molas tolas e catracas atrasadas; do paciente jacente a tal placa defeituosa, largada na bancada, ( que alguém esperaria descartá-la, como sobre a fria maca da sala de cirurgia, induzi-lo ao coma por potentíssima anestesia ); quem carrega em si essa peça emotiva ( pedra ou pluma ( completa ou nula ) acima da cintura ou do diafragma, em colunata, transversos, costela e omoplata, provavelmente à esquerda ( se o externo ao centro, desviado do eixo )? qual a relação entre o juízo, a moral ( o bem ( o mal ) e o pulso, o osso, esse túnel ensanguentado atravessando o corpo? ( 43 (


>( os pulmões )< > ( o pulmão direito ) dois cilindros de tecido complacente, que esvaziam / e enchem enquanto requisitam quando inspiram ( vitais troca e simetria ), quando expiram, vão desistindo do vento morno, carbônico ( frações ainda do primeiro sopro ); tropo que entra / e sai do corpo: se abrem, brônquios dilatam / e fecham se há retração / são páginas análogas da capa à contracapa, como a traqueia equidistante fosse a costura central de um livro carnívoro, único ( como o de barrio, carnal, perecível ), repartido ao meio, insufla inscrições que recriam seu sentido, sua delimitação de signos: a troca – hematose – entre o dentro / o fora, à mercê do pneumotórax; e cada expiração é uma pequena morte contra a qual reage uma ressurreição igual, cheio / e vazio ( sem ar : morre-se de embolia, asfixia, entretanto se hiperventila, quando o volume de ar, interminável, ultrapassa determinado nível ); quanto mais se move ( por vontade própria, ou a certa contínua voltagem

( 44 (


( o pulmão esquerdo ) < movimentam-se, involuntários, todos os seus sistemas ), tanto mais livre o organismo exige ( se vivo e irrepreensível ) o seu respiro; dois módulos lobulados capazes de dar forma ao gás incorpóreo ( bolhas ), conformá-lo a duas fôrmas orgânicas, domesticá-lo como a um escravo, no consecutivo jogo da captura depois de alforriado ( no ar que vem e vai ) e vice-versa; sanfonados, dois balões fibrosos inflam ( novelos gasosos evolam nos alvéolos ) quando revolvem, removendo do ar ( processado desde o resfrio da terra, quiçá da atmosfera inteira ) o oxigênio infinito que engendra, misterioso, o indecifrável número de ciclos respiratórios ( cada qual, uma página do livro ), cuja origem teria sido o primeiro choro desde recém-nascido, daí a progressão irrefreada até o último suspiro ( quando fosse lida a última página do seu livro da vida ), interrompido para sempre o ritmo, d’algum paciente anônimo ( crônico ) domiciliado em leito terminal.

( 45 (


mecânica dos fluidos

/ o sangue

( 46 (


no corpo há tão pouco espaço entre um osso e outro só o óleo dos glóbulos passa ( o plasma ) quando não é pálido ( na ampulheta viva / sangue é tempo ) como a graxa ( da máquina ) escorre entre as engrenagens do relógio bio lógico

( 47 (


mecânica dos fluidos

/ o suor

( 48 (


cada poro um escoadouro pelo qual cada glândula sudo rípara res pira

se seu se seu

é

re re

pele líquido move vis go

o que per mite que a epi derme se lim pe e trans pire

( 49 (


mecânica dos fluidos

/ a lágrima

( 50 (


a glândula a carrega cega ( como na ostra a pérola ) ( como no arco a seta ) o sal na medida certa ( no escuro algo coagula ) pedra até que a concha da pálpebra abra é quando a gota vem à tona ) ( fria e quente ( simultaneamente

( 51 (


mecânica dos fluidos

/ a saliva

( 52 (


da língua aos intestinos há um caminho ligando o alto

como o rio nilo ao baixo egito

da saliva ao suco gástrico

há microrganismos

que quebram as moléculas do bolo

ingerido

entre reentrâncias de mucosas róseas pelas margens

e papiros

o alimento percorrendo

digerindo-o há crocodilos escondidos uma barcaça arcaica

lento

( 53 (

a superfície plácida


mecânica dos fluidos

/ do sĂŞmen ao leite materno

( 54 (


afunda / fende / fode / funde espermatozoides do falo à trompa e ungidos ovário e testículo mãe e pai

macho e fêmea

lançados ao alvo do pênis ao óvulo de fa lópio de lúbrico eflúvio unidos o urdiram no útero o fizeram

o filho / o feto / alfabeto que apenas de leite se alimente ( e nada da proveta se aproveite ) o ventre / o centro / o seio materno

( 55 (


mecânica dos fluidos

/ a urina

( 56 (


é d’ ouro a urina, m e l í f l u a, oriunda da bexiga, que antes de aliviá-la, incha

( 57 (


mecânica dos fluidos

/ a bile

( 58 (


uma usina ( o fígado ) produzindo a própria toxina muito embora ( a bile ) só se fabrique quando suficientemente poluído o rio ( em desequilíbrio químico ) o velho amarelo o resíduo intruso ( porque é nociva a icterícia ) retido pelo entupimento dalgum duto de escoamento e sobre cujo derrama mento há que se solucionar a tempo fazendo o possível para prover à vesícula o viço o devido brilho do r e s p e c t i v o e definitivo a l í v i o

( 59 (


mecânica dos fluidos

/ o pus

( 60 (


( do bul bo à bo lha, pús tu la, an tes que ex plo da ) e enoje quem quer que o ex plo re

( 61 (


mecânica dos fluidos

/ a fleugma

( 62 (


( lesma de gel ) atra vessando nesgas / / gretas mas sinta a s a Ă­ d a,

atĂŠ que

brinca no labirinto

como o Ăşnico muco multi colorido

( 63 (


/[ todo corpo ]\

( 64 (


das treze articulações primárias, sete expandem da linha dos ombros ( braços abaixo / a cabeça acima do pescoço ), há outras seis partindo dos quadris ( pernas / sexo sob o degrau da cintura ), nas vértebras, onde, invariavel mente haverá hérnia, pilhas de anéis lhe atravessam na transversal ( do crânio ao cóccix, pelo meio ), encapsulam a geleia eletrificada na medula, feita desde o feto no eixo estrutural deste esqueleto; ( no hinduísmo, cada chakra receberia na coluna a chave-mestra de sua própria fechadura ); esse homem-móbile suspende, em trânsito, carnal o óbice de sua própria transitoriedade; se livre, seu complicado equilíbrio é dinâmico, há dispositivos antipânico, simetrias ( são contrapesos os ossos por dentro, as câmaras hiperbáricas onde o sangue se tranca, em caixas outro fluido chacoalha, o que os músculos ocultam sob o couro exterior, e como javacheff christo faria noutra escala, seus embrulhos com cordas e tecido, de botero a giacometti, há um aspecto familiar e reconhecidamente humano recobrindo tudo ); no cerne de cada complexa célula coube o germe de sua inalienável moradia; com endereço fixo, todo homem tem o corpo como o próprio logradouro.

( 65 (


[| a pele |]

( 66 (


homem-bomba vestindo roupa de escafandrista, seu neoprene pressurizado capta estímulos, e por entre pelos mínimos, válvulas regulatórias fazem-na suar ou ressecar, contra as condições do habitat ( algo se interpõe aos poros, ou impermeabiliza as fibras ); seus sensores de calor, vigiados de uma sala de controle, enquanto é mantida viva, ( hidratado adequadamente cada intrincado recanto ) como a máxima peça, de uma alfaiataria das mais complexas: seria tão errado reduzi-la ao tato, costurando ao tecido apenas um dos cinco sentidos?

( 67 (


| ||| sĂŁo oito ||| |

( 68 (


1. que haja, em potência, o erro ( é mais fácil zelar pela cabeça ) ou algum tropeço preso a cada membro; dois joelhos / 2. há que se usar os braços para protegê-la da queda, no caso de qualquer fraqueza; + dois cotovelos / são quatro 3. ainda que, oculto e súbito, um obstáculo se interponha às pernas, ( é mais frágil na cabeça o cocuruto ); + dois tornozelos / são seis 4. convém usar mãos como escudos, quando do inequívoco óbice, cobrir ( no rosto ) sempre que se possa, dos olhos, os óculos; + dois pulsos/ na soma, são oito

( 69 (


| cabeça / ombro / joelho / e pés |

( 70 (


cabeça, pernas, braços / quatro membros o carregam, veículo e organismo; ( de antemão, haja algo sujo, alojado ao lajeado, resíduo ou óleo onde os pés escorreguem, ( nada é mais vulnerável que a cabeça ), há que se usar os joelhos para corrigir a fraqueza, no caso de qualquer mazela ); são vinte e oito: cotovelos, joelhos / punhos, dedos, tornozelos, tudo justo e conexo; que haja em potência, o tropeço de cada perna, quando da inequívoca queda, ou algo desnorteie; são mais frágeis, no rosto, cada olho, convém usar duas mãos como escudos, sempre para protegê-los, olhos, joelhos e cabeça, do que quebre, emperre ou enfraqueça; polegar, indicador, médio, anular e mínimo, ( no corpo, os extremos ) hálux e pododáctilos: dos pés / das mãos / e todos os seus dedos.

( 71 (


( | o crânio humano | )

( 72 (


compósito ósseo por sobre cujos orifícios inteiramente desobstruídos encaixam-se os módulos dos olhos, narinas, da boca, e ouvidos; a tampa de louça calcinada pelo couro, ( marfim fissurado sob cabelo ) um trono ocupa o topo desta cúpula / uma armadura de juntas, parcialmente recoberta por ranhuras em cruz, pelas quais, de sua furna interna ( o antro intracraniano ), escapam-lhe tantos juízos – como se fugissem pássaros deste receptáculo craquelado; lacrado sob a caixa manchada do crânio humano, jaz, moldado aos miolos, à forma de uma noz que alucina e racionaliza, o gerador unigênito – razão pela qual congelam o cérebro de um gênio –, de cada inédita eureka, e de todas as ideias velhas, de séculos, de décadas, guardadas em antiquíssimas bibliotecas; sob o palato, escondida, esteve a língua, quase retilínea ( um único músculo, infatigável, modulou todos os dialetos ), a dentição se encaixava, cobrindo-a, esta fila de lanças fincadas, abaixo das maxilas, e na base da mandíbula.

( 73 (


) ) os dois ouvidos ( ( ) o ouvido direito da estereofonia aos tímpanos, são mecanismos de filtro ( para vesti-los, pela lateral da carenagem, pendem adornos de cada lóbulo perfurado ), são pórticos acústicos na entrada, o mundo entendido como um labirinto audível; em dois radares, orelhas são conchas de cartilagem captando comprimentos de onda; em variada oferta: ouve-se música clássica, rádio de pilha, esporro em família, punk rock, voz de aeroporto, gemido íntimo, confissão de assassino, chiado, ruído, os gritos no vizinho, conselho de amigo ( por que a voz da consciência é a de um grilo enquanto anjo e diabo, cada qual sobre um ombro, se digladiam num combate apocalíptico? );

( 74 (


o ouvido esquerdo ( cada ouvido localizado num dos lados de um semicírculo imaginário, arco cujo raio tem seu centro no hipotálamo; contrários, são cântaros que absorvem, tanto sons de córrego, quanto o maremoto em decibéis enérgicos, grave tambor estrondoso; pelos receptáculos dos ouvidos, conquanto não seja, na audiometria, diagnosticada a surdez em grau algum, se a palavra é prata pode ser adaga, diria confúcio, a perfurar o tímpano, e ainda que trancada pela aldrava ( da boca fechada ) na aljava inteira do corpo, se desembainhada, não há aquele que deseje, na mesma hora, ao invés da mútua guerra ( onde aos berros, errem, em julgamentos sem trégua ), o ouro sincero do silêncio benemérito?

( 75 (


labirintite

ao contato incauto com quaisquer destas pegadas presumidamente compassadas, os degraus de uma escada sem direção ameaçam o estilhaço e mesmo no vácuo, é necessário ocupá-los, sem chão, sob sério risco de se despencar o paço; a rachadura aberta sob os pés, o passo em falso, o corpo tragado por algum lugar onde nada é certo ou faz sentido; se falham as pernas, abolido o equilíbrio, resta no caos uma dança antigravitacional banhando com choques elétricos o ouvido interno: seria até possível aceitá-la, mesmo que não se oferecesse nada, ainda que extinta a terra firme, por perto sequer parcela de qualquer apoio ou nenhuma das partes mútuas ao voo,

( 76 (


simétricas, hélices ou asas-delta, o corpo entregue à gravidade zero, planando sob a “garagem hermética” da atmosfera, até que sobrevenha da queda, num átimo, decerto a consciência da doença, de que jamais se poderá confiar nas próprias pernas; segue-se a consulta médica, a escolha da droga, a hora do remédio, estima-se o efeito, o tempo de administração do medicamento; mais tarde, recobra-se o centro de gravidade, todos são bem-vindos ao refúgio do produto químico, injusto, sempre sujeito ao abuso: ridículo à primeira vista, dicloridrato de flunarizina ( vertix ou vertizine, nomes fantasia, ajustam o labirinto ) o que está aqui, admita-se : é equilíbrio convertido em pílula.

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( ) os dois olhos ( )

( ) o olho direito são bilhas feéricas estas bolas, ou bolhas esféricas à visão periférica, inseridas na cabeça, entre as maçãs e as sobrancelhas, simétricas ao meridiano do nariz / são orbes sobre os nervos ópticos, para enxergar ao redor, se deverá alternar o ângulo do pescoço, são globos que abrem nas pálpebras, na íris, colorida, se obtura um disco contra a invasão de raios nocivos, muita luz ofusca, e queima, sobretudo no cômodo escuro onde jaz o segredo;

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o olho esquerdo ( ) nem tudo é preciso ser visto ou reconhecido / fechar os olhos é sempre possível / enquadrar o mundo / olhar para os lados, ou para o “passado”, são escolhas imprevistas, ainda que se desista controlar a paisagem consumada, não há dia em que se acorde, e os olhos não se abram, ou que não se reconheça nada, a não ser na morte, ou na cegueira, para as quais estas duas pelotas anatômicas serão apenas gelatina fria, outrora oculta nos óculos escuros, ou carcomida por formigas, às órbitas vazias.

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o glaucoma

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em cada globo ocular ( no crânio ) sobre o reboco da órbita, este involuntário abismo ameaçasse a b r i r - s e, a princípio em progresso lento, o glaucoma erodindo os olhos que, porosos, devorassem da anatomia, carcomidas nas próprias fímbrias, da íris ao nervo óptico, ( na flor ) da pétala ao pólen, e uma cegueira, meramente hipotética, coroasse algum egoísmo, àquela sala negra muitíssimo estreita ( onde há esse jardim de um único transeunte que, imobilizado pelo medo, faz da sensação do mundo esse único plano escuro do tamanho de tudo, mas cujos limites apenas se definem se habitáveis por seus obstáculos ).

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:| resta um rosto |: , | a face direita a pessoa e sua suposta autonomia / o anonimato é seu antônimo; a persona e seu dito automatismo / na autenticidade sua antítese / a testa, as maçãs, o perfil, a simetria da mandíbula, o couro vestido pelo occipital, como se ilhoses aos pares apertassem um cadarço, justo, da nuca ao cocuruto, permitindo o ajuste / só osso sob o rosto ( sóbrio ou jocoso / austero ou cômico ) / a cada emoção desfaz-se o traço, antes que se refaça ( dessa face a cada farsa ), na armadilha do carisma o álibi justificando o disfarce de carrascos e mártires / nada se revela ou reforça senão a máscara fácil, mímese cujo fascínio por teatros ( sombra ou batom, barba, rímel, cavalheiro ou senhorita? ) marcou não só fascínoras, mas tantos santos, dos bailes em veneza à tragédia grega, da commedia dell’arte ao kabuki, do nô aos sioux ( quem os estudou senão levi strauss? ) e a todos aceita ( diária ) sua generalizada festa de maquiagens ( da sombra das sobrancelhas ao brilho dos olhos sobre as glândulas lacrimais, das olheiras colecionáveis na cidade à cosmética avançada, ou à cirurgia plástica )

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a face esquerda |* são 23 músculos modulando toda a conversação humana numa arena de bufões / são destroços as expressões faciais, capazes das mais estranhas façanhas, sorriso ou medo, o mesmo / alegria ou fracasso, iguais / pois toda dor jaz interna ( centelha muda à bocarra obscura de munch ), um supercílio franzido carrega o peso do mundo, contra o qual careta alguma faria jus, qualquer cara incapacitada de expressá-lo, medusa ou budha ( ternura, luxúria ) / jeckyll & hyde ( desgraça ou paz ) / cada olhar, o reconhecido traço familiar, cada boca ( ou voz rouca ), cada rosto mostra nada mais que um rastro no conjunto de rasgos, o dos lábios, as rugas quase reguláveis, narinas e pálpebras seguem a mediatriz nem sempre equidistante, cicatrizes, poros, óculos, piercings, as tatuagens restantes, completariam o quadro com o qual, alinhando um número limitado de elementos intercambiáveis ( ilustrados nas páginas de um livro espesso, encadernado em espiral ) se constituiria o retrato-falado necessário à polícia para identificar o único suspeito de um crime hediondo : a toda fala errada, basta um rosto anônimo, para declará-la válida.

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ânus humano ( . ) ônus santo

acompanha o corpo este túnel obscuro, dúbio/ lúbrico, sujo/ úmido, ao longo da coluna – quando ereto, sua verticalidade se sujeita à força da gravidade e quando não, há tão somente – silenciosa – a peristalse; na boca é seu início, e por aí se precipitam alimento (líquido/ sólido) e sexo (um pórtico, em colunata, comporta os dentes, todos pelo lado de dentro), tem no ânus o mais íntimo destino (e é sabido que também mastiga o intestino); do uso chulo se evocam as mais transgressoras e ráficas imagens da bíblia sagrada retraduzida, d’algum idioma babilônico, ou na língua solta de sodoma & gomorra: o sopro divino fosse tão somente gás metano proveniente de um orifício no cio, o meteorismo pelo anel do delírio, ânus sanctus tal cloaca larga sob ancas fartas, o buraco sacro abaixo do qual descansaria o peso do saco escrotal do diabo, comendo-lhe o rabo, e contra o qual mergulhasse ainda o incisivo tridente luciferino ou qualquer outro objeto

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longo e pontiagudo/ e o laborioso barro primordial (o chão onde pisaram eva, adão, o éden, a terra) fossem tão somente a poeira das estrelas, compacta à fôrma dos planetas, e de todas as outras esferas outrora nascidas da mesma labareda – se misturam yin e yang no big bang – como um eterno jacto de merda, tendo jorrado o mundo fosse, enfim, o fiat lux no fim do túnel, lá, onde nenhum sol (na bunda, afinal) devesse (ao menos tradicionalmente) iluminar, mas duma luz estranha e curva que só einstein pudesse flagrar em cálculos, no decúbito ventral de infinitesimais centímetros cúbicos, não interna, mas avessa, de fora pra dentro, ou inversa, à fórceps & ósculos lambuzando a vaselina/ fezes & almíscar fossem a tinta do livro mais antigo; o maior poro essa lacuna obrigatória (zona erógena), pelos puritanos se suporia inóspita, muito embora em ambos os sexos a fisiologia admita a massagem no períneo, mas só nos homens, se extraia da próstata, pelo nervo pudendo, e com algum ímpeto, um outro estímulo que começado pelo esfíncter, reclame da lama anal esse binômio ambíguo, um doloroso alívio, entre a punição e o prêmio.

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o sono / a preguiรงa

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essa sonolência desalenta o epitélio ( inexato, ausente ou quase cego ); parte do tato adormece, inapto, da triste anestesia que mescla um abandono à resistência; ainda que recordações insistam, não fixem, ao contrário, como peixes de aquário, raros, apenas fluem sem que o olho escolha um só brilho entre outros signos, vácuo sem foco, entre o sono e o ato de flagrar-se assíduo em qualquer que seja o raciocínio; largar-se ao ócio de um limbo sem equilíbrio, mero exercício de algum desígnio entregue à lentidão da trajetória entre o agora e o daqui a muito muito muito pouco.

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[ ] corpo de prova [ ]

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toda sua farinha química luta contra a obviedade, algo nele se transforma, varia a certa dosagem, prisma numa medida expressa em milímetros ou cilindro resolutamente preenchido pela própria matéria-prima, o que se quer extrair da mistura é o que dela impere contra qualquer intempérie, a comprovação de certas características específicas, seu uso provável e o quanto do material resistirá e, se ajustado, como programá-lo a esta ou aquela finalidade? porque há nele algo posto longe do mundo, apartado de tudo, testando-o desde o núcleo e sobre cujo interesse futuro será preferível adaptá-lo, se aqui ou lá (terra firme ou alto mar, determiná-lo ao lugar) onde o império da indústria necessite depositá-lo, quiçá sob águas agressivas, mergulhá-lo em sulfatos, em sais de magnésio e amoníaco, ou contra o vasto aluminato (nunca volatilizado) que, apesar de leve e maleável, é duro e reativo ao perigo; composto, que o enxofre sofra fora do óleo, no cálcio só reste o arbítrio do silicato bicálcico; há sílica aditivada ao cimento contra a retrogressão, porque algo nele se transtorna a certa dosagem (a rocha inda incha) [corpo de prova] mediado pelas condições da mais forte obviedade, ou contra as da máxima adversidade, assim este sólido, cilíndrico ou prismático, copo/ bloco, deve referendar a resistência, a duração dos materiais recolhidos à anatomia, rumorosa ou silente, da sua própria provação.

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biรณtopo

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1.

da silhueta ao recheio por fora / por dentro crescem muitos adendos nervos / cabelos / dedos e até estar concluído o crescimento, também se esticam os membros à certa extensão usual

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2.

mas as condições do ambiente também interferem no substrato cada molécula o clima o ímpeto do inimigo podem dificultar o acesso ao suprimento necessário à perpetuação do acordo entre meio ambiente e o corpo entre os homens / mulheres / crianças e algum complexo ecossistema a limitada autonomia condiciona a rede infinita de relações de dependência há doenças em que o câncer exaure a anatomia míngua à poliomielite noutras o corpo avulta fora de controle acromegalia síndrome de proteus elefantíase tumor na hipófise

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3.

muito embora haja dos mais variados gêneros os aleijamentos congênitos entre outras condições que exijam limitantes (ou “desafios de superação” alguns diriam) uma ou múltiplas amputações desde a nutrição células se multiplicam e dependendo do que digira o corpo aumenta do estômago aos ombros à velocidade estimada pela ciência biomédica da qual dependem os números da altura do peso e do perímetro cefálico do aumento da massa corpórea à curva da metabolização do alimento

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pĂ­lula

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mergulha goela adentro a miniatura duma ogiva, atravessada pela arcada dentária, o mínimo submarino ingerível pela gelosia das gengivas, luta o ácido dessa remessa medicinal contra o refluxo do esôfago, porque administrado via oral, o único remédio necessário é essa mínima bomba química cuja engenharia da reação em cadeia buscaria atingir certos tecidos, alvos de registros específicos ( um nódulo, pústula ou o cancro n’algum recanto ) entretanto, enquanto ( exponencialmente ) progride esta ou aquela epidemia, hordas de mamíferos humanos aportam às farmácias como insanos, mas homo sapiens, são espécimes adultos, cuja mais completa farmacopéia não acorre, não há em todos os estoques ( que logo se esgotam nas prateleiras da indústria farmacêutica ) algo que resolva o medo a náusea o mal-estar da civilização à época da reprodutibilidade técnica de doenças genéticas, vendidas conforme qualquer outro mercado se regula ( malogra o lucro se não há juro, já não há jura quando a demanda se dana ) até que se descubra que o veneno e o antídoto ( a fartura / a carestia ), a doença e a cura, indissociáveis siamesas, são partes da mesma mistura.

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cotidianometria

“fitter, healthier and more productive/ a pig in a cage on antibiotics� Radiohead (OK Computer, 1997)

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suje as digitais de tinta / não sorria na fotografia / cabelo cortado apare quaisquer outros pelos / dentifrício, desodorante / é necessário o asseio remova óculos ou lentes / renove o ânimo mantenha a cabeça a um determinado ângulo sopre o bafômetro / prenda o fôlego língua para fora, barriga para dentro inspire, expire / (sexo oral a la marilyn manson) nunca deixe para amanhã, faça hoje mesmo submeta-se ao exame / não perca mais tempo preencha corretamente os dados / sempre recadastre-se no prazo silicone nos seios / correção de septo as quatro cópias no cartório / melhor prevenir do que remediar / tome mais água, evite o álcool livre-se da gordura hidrogenada ( opte pela salada crua ) / não esqueça a data se confesse com marcelo rossi, ao som do fábio de melo guarde-se para o cara certo / sexo só depois do casamento / não gaste água, mas escove os dentes sempre mocinhas vestem-se com decência respeite a fila / pague em dia seja condescendente diante da ignorância alheia tome o remédio / tudo no horário vá ao cinema ( assista a um filme inédito ) em caso de vida ou morte: aperte o botão vermelho. ( 99 (


/ limitrofagia /

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ainda que ande muito / não percorrerá o mundo se atravessa a ponte / abdica de um dos lados se cala / não declara a vontade mesmo que fale / não esgota o assunto que infrinja a lei / será posto entre muros se espalma o punho / não há muito explana os braços / não voará no vazio vive, mas entre limites / se livre, não é para sempre quando alcança a outra margem | retroage \ se realiza o máximo fica | e se reafirma se não fixa ( desloca / reage ) abandona a cidade ficar / fugir falar / calar ( ação ou ócio ) sobre poucas coisas se têm escolha morrer / viver ( sempre ou nunca ) ontem / hoje algumas outras | só dobram os homens

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< < < retrogressão

3. ( para aplacar a vontade ( inútil? ) de habitar um corpo / ( desde o útero ) todo esforço é doloroso / experimentá-lo aos poucos ( lançá-lo ao mar e ao mundo / primeiro na praia / no raso ) como qualquer operário aprenderia um novo trabalho / em treinos práticos ( quanto mais tarde ( à maré alta ) mais para o fundo ) alcançar gradualmente o diâmetro de todos os gânglios ( reordenar do hormônio o átomo de carbono ou destilar a linfa ) requer uns apetrechos necessários / um espelho / agulhas / frutas ( algumas pelo cheiro / o apelo do perfume / outras ( desde a língua ) pelo estímulo à papila gustativa ) entretanto há inúmeras outras ferramentas ( todas guardadas num labirinto de gavetas ) é estranho esse gabinete mecânico dos cinco sentidos ( uma oficina onde se suporia o laborar pacífico / mesmo entre ruídos ( desbravando em si mesmo o sensorialismo ) um taxidermista / ou talentoso artista da sua própria fenomenologia íntima )

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2. ( primeiro livrar dos órgãos internos a caixa externa / que essa só pesa ) drenar-lhe um tanto de sangue ( como na árvore / em camadas ásperas / descarnar-lhe das tantas membranas ) pelas lentes dos olhos gelatinosos ( encarar finalmente o núcleo oculto / e acendê-lo / esse coração na sombra ) de todas as lições / primeiro as da epiderme / depois as mais internas ( terceiro as da ossatura / dos membros à medula ( obtidos os cálculos frios / do cálcio / na densitometria ) por último as do cérebro ( esbranquiçado / sua esponja cinza ) mas antes arrancar-lhe ( porque tidas como reprimidas ) todas as supostas lembranças ( traumas da infância )

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1. ( agora / diante do espelho / inicia-se o ritual / a análise ) seguir ( entre outros pormenores ) a trilha lenta das rugas sulcadas sob o nervo do sereno ( que onde a faca do frio feriu / o calor curou exsudando o sal dos poros ) mas deixou espalhado o vestígio / às vistas / e sem disfarce / num corpo de espantalho ( o cabelo desgrenhado que o tempo recolheu / colheita / aberta a clareira no topo da cabeça ( coroa ou redemoinho ) diz-se dessa calvície da qual é impossível desistir ) porque o vazio esculpiu o caminho ( ou um abismo ) pensamento adentro ( ao despir-se diante de si mesmo ao espelho / descobrir ali / na própria ruína desvestida ( um arremedo ) / no entanto o monumento ao período vivido / esconde ainda ( sob o escombro dos ombros ) a batalha travada e perdida no talo da coluna ( as décadas da hérnia / tendo invertido as vér tebras ) o eixo dorsal destituído dos pontos cardeais / ou do centro de gravidade ) onde fracassa o espetáculo da locomoção humana / ainda que ressoem os sonhos desde a idade placentária ( agora à base de insônia / uísque / remédio / do sexo mediocremente recíproco da parceira / quando não mediante o pagamento ) nem toda falência há de vencer uma carência maior ( às vezes sobra a sanha mais que o sonho ) ( 104 (


0. ( assim vem se abrindo ( precário ) o sustentáculo de um velho ( gasto / uma antiga cópia em sépia ) cujo elástico já lasso escapa da sua própria ação / em gradual e irreversível descompasso ( os músculos acumulando só o cansaço / e infla como um balão / crescendo desde dentro ) até tomar de assalto e por completo um corpo outrora jovem ( anteviu o fóssil do próprio obituário na rocha ) do trajeto obrigatório que submete o tempo ao envelhecimento ( isento / sem que importe cada vítima ter vivido sob excesso ou privação ( nunca escolhe a quem oferecer seu grilhão ) o esforço da forca apenas reforça a corda contra o pescoço de todos ( sejam bem-vindos / senhoras / senhores / precoces / tardios / que agora está próximo o alívio / sejam bem vindos sempre / ladrões / pilantras / cidadãos de bem / amigos / esta é a hora da vossa própria estrangulação )

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outra coisa | dismorfofobia

aquilo ali era outra coisa/ uma coisa qualquer/ uma coisa pouco clara, quase inadaptada aos arredores de onde deveria instalar se, intacta mas ameaçada/ uma coisa desabitada de si enquanto afirmada, mas coisa quase vazia / uma coisa firmada no nada, no vácuo, fora de qualquer foco, no vestígio de um vulto e no entanto lá, entre moléculas, entre partículas elétricas, entre ondas de rádio, entre vórtices de ar circundando a presença de alguma força, invi sível mas sensível dessa coisa incrustada entretanto aberta, mas completa, indivisível – seria possível dividi-la? a uma distância segura dir-se-ia que o espaço se embrulhava nela, nessa aura desencontrada, rara, que só percebê-la num distúrbio ocular abrupto, entre a fronteira do campo de visão e uma esfera de conceito, metaperceptiva, era julgar tê-la apre endido tão velozmente que só uma configuração parcial pudesse ser extraída desse contato elástico, variável, ora confirmado, ora desconfiando dela/ essa coisa não envelhece, impura, parasitária, sugando os interstícios alinhados entre as partículas de duração com as quais se perpetua, simbiotizando a persistência falsamente temporária e a suspensão de sua existência inseminada / essa coisa alimenta-se daquilo entre o tempo e o silêncio, entre a hora e o atraso, entre o vivo e o morto/ ( 106 (


essa coisa fagocita a substância do trâmite / uma coisa translúcida, ânsia atravessada por estímulos mas camuflada aos sentidos – seu acesso é restrito, entretanto receptivo, tanto pela frente quanto pelo avesso (se tivesse isso)/ uma coisa tão estranha cuja alteridade indefinida pudesse dividi-la em duas, uma sempre presente, mas outra metade remota, e como não se encontram – as duas partes dessa coisa incrivelmente fora de sincronia – descarnam a própria aparência/ impossível imaginar o que seriam se avistadas por que, se vistas, retornariam, seriam de novo unitária/ onde estaria essa coisa se parece tão contígua mas não se consegue enxergá-la? onde poderia estar se jamais vista? ela estaria entre eles? talvez exista essa coisa pelo espaço vazio entre os corpos; por mais que um abraço pretenda fundi-los sem junção visível, quanto mais microscópico, mais aparece (entre) o vazio insolúvel / aquilo que existe pela deficiência da pele talvez faça nascer essa coisa irresolvida (a causa da saudade?)/ seria essa coisa a consequência daquilo nascido ao alcance e no entanto logo bloqueado, inócuo? algo inglório, outra coisa, aquilo ali era o que poderia impedir de evadir-se a si própria, coisa que por isso se mantinha, por isso se queria assisti-la, mesmo não sendo possível (seria sensato destruí-la?)/ desde o princípio o enigma grita, mas no eco a resposta é a repetição de uma dúvida inequívoca.

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+ necrรณpsia +

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se estoura a clepsidra do tórax, se explode o delicado vidro, outrora incólume, da mina íntima escorre o líquido dos glóbulos pelo túnel dos ossos; a falência múltipla destilou dos órgãos a fina hemorragia, antes que coagulasse ( à protombina ), por dentro cintilasse essa brasa acesa sobre a base onde agiu a febre, algo ( sob a pele ) regendo desde o ápice, o ardiloso auge destes graus centígrados; que horário declararia com justiça, a ruína desta balança cardíaca? quais das horas vividas permitiria, limpa, cristalina, uma só plataforma na memória? declararia o último suspiro toda a obviedade da vida? mas o frio cronômetro do não exige tão só o dia / a hora / a causa mortis / caronte já o leva para longe, o legista conclui o exame, descobre o nome, sutura o abdômen, do esterno à pélvis a linha dessa costura contínua desenha a letra ípsilon, ainda enluvado, preenche o dado no obituário, tramita o atestado de óbito; deitado na maca, ou deslizando na gaveta, o cadáver já navega ( a balsa compulsória sobre a lâmina d’água ), entregue ao necrotério, refrigerado, rijo como aço, ] frio como alabastro, outro homem se extingue, vai-se mais um morto para o rio estige.

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mandala de houdini uma redoma, cujo âmago equidistante a qualquer ponto escolhido na linha do perímetro, contivesse prisioneira (imobilizada por correntes pesadas) a mais egoísta das partículas, ali, isolada num labirinto de espelhos, hiperexposta apenas a si própria, e entretanto o oroboro contorcido no centro de um picadeiro de marketing (ou o projeto meramente calculado por qualquer das grandes agências de publicidade), oferecida às massas como o único produto de consumo, que a si mesmo se consuma para o deleite sadista de todos os olhares do mundo; duvidasse ainda esta partícula (numa tormenta, um pesadelo), vítima de uma espécie autoconsentida de escravismo, se inteira ou bipartida, se estéril ou fecunda, íntegra ou pulverizada, não obstante na medida em que EU fundo o poema no qual me refugio sozinho (dr. jekyll ou mr. hyde), EU me revelo subitamente egresso de algum túnel até então ocultado e surjo não menos demiúrgico, neste exato momento do espetáculo, talvez o mais obscuro, por sobre cujas palavras arbitrárias, se erguem unicamente as escolhas do MEU monstruoso critério estético e, como frankenstein, EU sou este poeta, sou o autor deste poema (onde o excêntrico cientista e a brutal criatura se misturam), sou EU o prisioneiro solitário desta cela simétrica a 35 graus centígrados (são braços e pernas, são duas janelas) cujas paredes de células me encerram na vigília das sensações que se elevam à quase exaustão do estar em mim, enquanto criador deste específico livro de poemas cujo título corpo de festim revisita a minha própria sina de estar vivo e produtivo, mas não faria mal descobrir o mecanismo, o gatilho, de cometer o único crime previsível, quiçá um icônico suicídio pela honra, ritualizado à moda nipônica, para destituir-me enquanto símbolo terrível, do self à tal persona poética, de toda a libido, do meu “EU lírico” (esse serial killer, ou o meu místico inner being), lançar-me aos ares num assento ejetável, pôr o ego em gravidade zero, ( 110 (


pois desisto de permanecer no cio desse rossio, nesse recinto sonoro de letras ciciosas, e me esquivo, insidioso, e me livro de encontrá-lo do outro lado, no virar da página, na linha de chegada, me ausento, austero e frígido, da cópula contigo, meu leitor (o rei que deponho do trono da alteridade), eu me livro de você a quem dirijo estas palavras que escrevo sem segredo e nenhum delírio, enquanto eu mesmo me incluo (ou excluo) destas inscrições por alguma convicção oriunda das teses, da mais seleta baderna, da efeméride dos mais sérios intelectos, das disputas da academia sobre esta ou aquela forma da poesia, sobre se estar decerto derivado ou negando aquela certa métrica palimpsesta, aquela lírica policialesca de protagonista perseguido, oriunda dos tantos diários da dor de cotovelo dos mais célebres poetas jovens de todos os tempos, e como num número de mágica tão misteriosamente brotado do papel impresso, como a justificativa mais esdrúxula para a suposta geração espontânea dalguma coisa viva em qualquer ambiente mal fechado por descuido, este aceite que tomado por verdade pela infância da ciência exigiria agora, passado o susto, o mais habilidoso passe do escapista (“ah se harry houdini voltasse às vistas!”), o artista desaparecido sem deixar vestígio, pois quantas vezes, tanto faz se no poema ou no cotidiano, o “EU”, essa celeuma trêmula, essa centelha presa ao medo da morte, fincada bem no centro de uma mandala tramada no nada contra a angústia do esquecimento, se quereria extinguir-se, retirar-se da estrutura outrora concebida para receber a suntuosa presença da realeza no palácio da autoria, este “EM SI” físico do próprio criador, senão aquele quem assina sua própria obra fazendo de si sua única chave explicativa (mas sendo assim, quase um assassino, não a mataria por asfixia?), “ah se harry houdini voltasse à vida!” e se pudesse aprender com ele (sem a interferência do medo), nestes dias de cansaço e desastre, na sentença dessas tardes dominicais de tamanha descrença, num ato máximo de coragem, livrar-se dos cadeados e das grades, (como se recebesse dele este presente célere, entregue de uma só vez), num flash, num splash, no zás-trás ou abracadabra, num golpe de mestre, ah se fosse possível simplesmente, e para sempre, D E S A P A R E C E R D E V E Z

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NĂŁo saiba a tua mĂŁo esquerda o que faz a direita: dois estudos para o Corpo de festim



a mão direita

No corpo do texto: A poesia atual (e real) de Alexandre Guarnieri

Mauro Gama

Um dos melhores indicadores do talento poético de Alexandre Guarnieri se revela, até a data, no espectro temático de seu trabalho. Inicialmente, em Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011), suas maiores preocupações se detêm nas “extensões do homem”, ou seja, em seu universo tecnológico e nas implicações culturais, morais, sociais, da interação que desse modo se processa. É como se nos dissesse, e nos provasse literariamente, o fato aqui e ali racional e frio, aqui e ali talvez patético, de que o homem ocidental dos nossos dias valoriza bem mais a máquina do que seus semelhantes e, à relação com estes, vem preferindo a relação com aquela (ou com quem se conduza como tal...). Em seguida, para onde se desloca a ótica do poeta? Para a máquina humana propriamente dita, para seu corpo físico e, nada gratuitamente, situado numa perspectiva de fraude, balela ou ilusão: um corpo... de festim (como um cartucho de tiro falso, pólvora seca, inofensivo). Guarnieri, tanto num livro como no outro, se debruça sobre o que nos resta, nessa aventura planetária da existência humana. Num recorte histórico em que as religiões ou se pervertem nos deleites do sexo, ou se voltam para a traição chamada “teologia da prosperidade”, ou ainda para a rapina e guerra de conquista, em que a reflexão filosófica ou se omite ante os desafios teóricos


cada vez maiores, ou se deixa cooptar pelos gigantescos interesses econômicos em causa, ficam em destaque, na crista do cotidiano, os fetiches tecnológicos e fisiológicos, dando origem a uma espécie de novo hedonismo de rés-do-chão e superficialidade. As modernas sociedades de massa, e de consumo, afastam-se das artes, cultivam mais os resultados e técnicas da ciência do que seu desenvolvimento, e vão-se tornando o falso paraíso do bicho-homem quase exultantemente destituído de senso crítico, devotado à mesa, à cama, às distrações do turismo e do desfrute imediato. É nesse contexto que se movimenta a sensibilidade de Alexandre Guarnieri, disposto a dissecar – como artesão da palavra – o embasbacante mundo que nos cerca. O Corpo de festim nos faz lembrar, em alguns momentos, um grande pioneiro da crítica às agruras da modernidade, ou da pós-modernidade, o arrojado Wilde de “The Remarkable Rocket”, um dos contos de The happy prince and other tales, cujo final, depois das portentosas pretensões, proclamações e esfuziantes prognósticos, é apenas “Fizz! Fizz! Fizz!”, para subir, e uns tímidos “Bang! Bang! Bang!” que ninguém ouviu. Sobra dele, e de tudo, apenas a vareta, que vai cair perto de uma gansa. Há, tanto neste caso quanto na perquirição poética de Guarnieri, um retrato alegórico da condição de todos nós no séc. XXI, quando as pessoas conseguem reinventar e reificar o corpo ao mesmo tempo, como se divididas entre um mergulho no futuro desconhecido e nos mais primitivos ritos de um passado imemorial. Um fotógrafo americano, acho que Spencer Tunick, se especializou em grandes nus coletivos. Em muitos centros urbanos importantes, suas imagens, cada vez mais perturbadoras, causaram debates significativos. Ao ser entrevistada, uma moça que se despira totalmente para um desses eventos, falou do alívio que tivera por se ter finalmente “livrado de sua intimidade”. Foi quando nos perguntamos quando poderemos separar, com segurança, a nossa intimidade da nossa identidade. Afinal, o que é o corpo de cada um? É tudo e é nada. É, até o momento, o nosso único vetor mais ou menos seguro da existência e a substância do... festim, explosão malograda e inerme em


que, além de tudo, nos identificamos com todos os outros seres vivos, dos anelídeos ao meio-irmão chimpanzé. Não por outro motivo o genial alemão Gottfried Benn, a certa altura, vai dar em sua poesia prioridade ao cadáver, ao corpo tout court despojado de toda a consciência que nos suplicia, e tão parecido com o das formigas que se amontoam após o desastre de sua grande casa destroçada. E também não por outro motivo Alexandre Guarnieri se desloca da máquina para o corpo humano, separa suas partes e o disseca. Por outro lado, é apenas um passo adiante. Se reúne sua poesia atual num livro chamado Corpo de festim, em vez de tratar de um mundo oposto à Casa das máquinas ou coisa parecida, mergulha na sua essência, na “máquina humana” subjetiva e objetivamente refletida, recriada em sua dinâmica interior, em seu mundo fisiológico e psíquico em pleno desempenho, assim como em suas interações com o contexto sociocultural em que se insere, e atua. A nosso ver, a perspectiva do poeta se aprofunda nessa fase, avança mais fundo na mesma problemática, confirmando desse modo a posição de seu trabalho na linha de maior criatividade da criação poética brasileira pós-cabralina. Numa época de enorme dispersividade das tendências e concepções, de diluição formal e paupérrimo lirismo nas receitas neoimpressionistas de “oficina literária”, Guarnieri progride num formalismo de temas essencialmente contemporâneos, desenvolvendo-se com segurança e extraordinária independência. Esta última se mostra tão viva e verdadeira que o poeta se nos afigura como se administrasse uma versão própria (sem dúvida algo mórbida, e incômoda, para a maioria dos leitores) ao mesmo tempo do caos gestativo e da ruína desagregadora da condição humana. Como, porém, Alexandre Guarnieri chega a essa etapa de sua escrita? Como consegue explicitá-la desse modo? Vejamos. Num dos últimos segmentos, o “Biótopo”, em que as “amputações desde a nutrição” adquirem caráter estritamente fisiológico e prosseguem com a assertiva de que “todo esforço é doloroso”, reafirma-se que o investimento no êxito do corpo, qualquer que seja, exige um ferramental a um tempo de reconhecimento e destruição


– espelho, agulhas, frutas – (em seguida, em “Retrogressão”); é a caracterização, digamos assim, da incerteza e ambiguidade inerentes a toda vida física. A viagem se iniciara manifestamente no útero, e a linguagem de Guarnieri se tensiona, quase sem mediações referenciais no esmiuçamento que chega ao cérebro (ou “sua esponja suja”, na estupenda imagem do autor). Aqui, à medida que ingressamos também no território de surda destruição que cerca o velho e todas as categorias de seres humanos (“sejam bem-vindos sempre / ladrões / pilantras / cidadãos de bem /amigos / esta é a hora da vossa própria estrangulação”), a gente recorda o desamparo e a sanguinolenta crueza do corpo no pioneirismo hiper-realista de Frida Kahlo (que rejeitava com veemência a atribuição de surrealismo a suas opções mais poderosas: era a “sua realidade” que ela expunha). Na verdade, há igualmente amplos sinais de hiper-realismo no trabalho de Guarnieri, e isso se pode observar claramente neste Corpo de festim, por sua anatomia plástica e intransigentemente figurativa: afinal, sua matéria-prima são órgãos do corpo humano, compõe-se deste, como, nas artes plásticas, a obra de outro inquietante artista do nosso tempo, o australiano Ron Mueck (*1958): vai além dele, porém, o poeta brasileiro, já que invade o organismo fisiológico e lhe retrata cada um dos componentes, desde o testemunho de sua fecundidade primeira em do óvulo revelado eva adentro, é toda fértil a terra materna, com essas duas últimas palavras de viva síntese cosmológica. Sabe, porém, que surpreende no sangue a dinâmica maior dessa temática vital: e sabe-o, mais ainda, sujeito à circunstância do tempo, em que tudo se faz e se desfaz: só o óleo dos glóbulos/passa ( o plasma )/quando não é pálido/( na ampulheta viva “[...] Apesar disso, de verbalizar a vida material em sua aflitiva fluidez, notemos um achado de aspecto curiosamente paradoxal, à beira da transcendência que insiste em marcar a fragilidade do humano: no texto do “crânio”, “trono [que] ocupa o topo desta cúpula / uma armadura de juntas, parcialmente recoberta por ranhuras em cruz, pelas quais, de sua furna interna ( o antro intracraniano )”, os vocábulos ‘trono’, ‘topo’,


‘cruz’, ‘furna’ e ‘antro’ detêm o sentido da solidão individual, e de seu drama. Não se trata, porém, dos sinais de uma transcendência institucional, ou “religiosa”, mas da própria humanidade consciente e indagadora. Isso fica mais claro que nunca no poema do “ânus”, que comparece como equívoca fonte de prazer e resistência, mais afeita à “língua solta de sodoma & gomorra”, e onde a continuação é intencional e sarcasticamente blasfema: “o sopro divino [...] tão somente gás metano” (daí depois o “ânus sanctus”...). Nota-se nitidamente, em tudo, uma espécie de luminoso testemunho do conflito em todas as suas dimensões. Quer nos textos do “Corpo-só-órgãos” quer na “Mecânica dos fluidos”, tivemos de nos lembrar de Augusto dos Anjos (em meio a uma supermoderna encarnação que palpitasse imersa nas enormes transformações dos nossos dias) e, naturalmente, de Benn, de sua poética às vezes traumatizante, mas serena e radicalmente renovadora, obsessivamente debruçada sobre a miséria físico-química de todos os ardis do nosso arcabouço vital. E, no Corpo de festim de Guarnieri, a partir da ambivalência terrível da expressão, pois um tiro de festim, como o assinalamos, é um tiro falso, que suja e estraga (lembram-se daquele que deixa preto de pólvora o rosto do estupendo ator Gunnar Björnstrand nos Sorrisos de uma noite de verão, de Ingmar Bergman?), mas não mata, sua criação poética se ocupa diretamente da realidade fisiológica, submete a esse crivo sua invenção imagística, invade o corpo como quem invade o mar, seus líquidos, sua “ilusionística” organicidade. Não utilizamos aqui a referência ao ‘ilusionismo’ sem uma intenção peculiar. Guarnieri pouco depois vai sintetizar essa visão num retrato de sublimação suicida, a “Mandala de Houdini”, em que seus motivos se concentram (num EGO, numa supliciada e supliciante galáxia existencial) para em seguida implodir, fragmentar-se e “desaparecer de vez”. Ora, Houdini (1874-1926) foi um prodigioso mágico, acrobata e ilusionista húngaro-americano que assombrou milhares de admiradores no mundo inteiro com proezas excepcionais.


Teria sido, para muitos dos que se dedicam à história dessas artes estranhas e milenares, o mais impressionante de todos os tempos no que se refere à habilidade de se desvencilhar de qualquer tipo de aprisionamento, fosse feito com cordas, cabos, correntes, fosse com caixas, celas, recintos que lhe obstruíssem os movimentos e a própria respiração (tudo isso, por certo, pode ser “lido” como metáfora do corpo: estaria devotado a se “livrar do” corpo). Como o leitor pode verificar em informações do Google, na Inglaterra o velho criador de Sherlock Holmes, Conan Doyle, conheceu Houdini e, interessado em explicações espiritualistas, imputou grande parte de suas façanhas a aptidões paranormais. Mas uma importante corrente de opinião, especialmente nos EUA, insistiu no uso (de intensidade quase implausível) do “ilusionismo”: Houdini teria, principalmente, uma capacidade incomparável de dominar suas plateias, e convencê-las. É de especial interesse que, muito depois, na terceira década do século XX, um dos maiores gênios da poesia de nossa época, e de nossa língua, Fernando Pessoa, também admirava de tal modo o trabalho dos magos e prestidigitadores, que se correspondeu com um dos mais conhecidos em seu tempo, o inglês Aleister Crowley. Deu-se, então, um dos mais misteriosos acontecimentos da vida do poeta, documentado por seu biógrafo maior, João Gaspar Simões: a 2 de setembro de 1930, Crowley chegou a Lisboa, para visitar Pessoa; algumas semanas depois, a 25 do mesmo mês, o mago desapareceu totalmente, e para sempre: quer em Portugal, quer na Inglaterra, nunca mais se teve notícia sua. E a “Mandala de Houdini”, de Alexandre Guarnieri, se encerra com o tópico do “desaparecer de vez”. Em nossa percepção, a “mandala”, que coroa uma série de textos focados na carne e no sangue do finito, na matéria corruptível sempre à mercê de um sacrifício intrínseco e definitivo, é uma ritualização da morte voluntária, ou de sua “ilusão” gerenciada no rito da palavra poética. Repare o leitor em quantas vezes o eu é mencionado, em caso direto e oblíquo (ego e id ?), nessa paciente e enigmática estilização do fim de todos nós. Recordemos, em “(Os órgãos internos”) do “Corpo-só-ór-


gãos”, como “O conjunto luta sob o mesmo pulso” e “o mesmo insumo bruto lhe insufla a labuta”, momentos exemplares dessa, por assim dizer, “desconstrução construtiva”, em que vida e morte trocam escuridão e claridade, ora reacendendo a luta inútil no u vocálico sombrio, ora se abrindo no “mar hemorrágico” (mais adiante, no mesmo texto), de significado ainda mais sinistro em sua aparente e suposta libertação. É assim que chegamos à “mandala”, redoma “hiperexposta apenas a si própria”, foco, matéria primordial da personalidade construída e destruída, tormentoso símbolo cosmogônico da obsessiva poética existencial de Alexandre Guarnieri.

Mauro Gama

nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. É poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário. Foi redator em várias revistas, jornais, enciclopédias e dicionários. Publicou Corpo verbal (1964), Anticorpo (1969), Expresso na noite (1982) e Zoozona seguido de Marcas na noite (2008). Traduziu sonetos de Michelangelo (2007) e poemas de Gérard de Nerval (2013). Colabora com a revista eletrônica mallarmargens.com.



a mão esquerda

Nosso Corpo de Festim Jorge Elias Neto

Ler “Corpo de festim” de Alexandre Guarnieri foi uma volta no tempo. Não só pela temática, mas também pelo processo catártico na realização dos poemas. Há cerca de trinta anos, ainda jovem, tive minhas primeiras aulas de anatomia. Sobre as mesas azulejadas do anatômico, corpos inteiros, corpos abertos, expostos – corpos sem nome –, com alfinetes multicoloridos sinalizando pequenos detalhes que persegui com o Atlas de Anatomia em minhas mãos. Tudo muito vazio, oco – sem humanidade (ou quem sabe, com toda a humanidade possível). Depois de tanto tempo, a sensação de desconforto novamente se faz presente. O corpo agora é outro, mas também é outro o leitor, e esse, já familiarizado com o sangue, se depara com o avesso de um corpo – travestido em poemas rascantes. Na capa, o grande mágico e ilusionista Houdini nos mostra sua arte de sobreviver, driblando falsamente a morte com suas algemas e cadeados que ele preparava com maestria. É o novo paradoxo do homem “pós-moderno”, com sua casca, seus subterfúgios, indo ao extremo – no seu processo histórico de negação


da morte. Mas no branco da capa as gotas de sangue nos alertam: embora de festim, esse corpo-poema nada tem de festa ou de amenidades inócuas; ele possui um tipo de visgo que pode persistir no leitor, com sua multiplicidade de tons vermelhos irrigando a engrenagem do nada. Mas antes que nos adentremos nesse corpo guarnieriano, cabem algumas considerações sobre a pontuação-ilustração utilizada pelo autor. “O ofício de um escritor”, diz-nos o linguista José Augusto Carvalho, “não é o de seguir as normas, mas o de subvertê-las”. É o que também afirma Ortega y Gasset quando diz que “não se atreva a escrever aquele que não se atreve a inovar”. E este “Corpo de festim” é um excelente exemplo de um uso inovador dos sinais de pontuação. Guarnieri não utiliza dos sinais, preferencialmente aqueles cuja função essencial é marcar a MELODIA, a ENTOAÇÃO (dois pontos, aspas, parênteses, colchetes e travessão) com esse objetivo (na verdade existe um nítido esvaziamento melódico, quase uma ausência de lirismo nos poemas), e é na crueza que o poeta demonstra a força de seus versos, enriquecendo o sentido dado ao corpo humano. Os sinais se apresentam ao leitor no título dos poemas como que ilustrando órgãos ou partes do corpo. Assim, nos deparamos com: parênteses-orelhas, útero-parêntese dentro de parêntese, articulações-barras... Fazendo isso, Alexandre Guarnieri aproxima seu poema da pintura, aproxima seu poema do corpo fragmentado. No primeiro capítulo, denominado Darwin não joga dados, Mallarmé sim, Guarnieri nos diz de suas influências, já presentes em seu livro anterior, Casa das máquinas. É de Einstein a célebre frase que “Deus não joga dados”, e o poeta se utiliza do deus dos evolucionistas para reiterar essa afirmativa. Ao completar essa ideia com a célebre máxima de Mallarmé, o poeta define qual bisturi utilizará para destrinchar o homem de lata, o homem-móbile – a razão crítica.


O poeta se aproxima da página em branco, símbolo do absoluto para Mallarmé, e elabora, com riqueza de detalhes estilísticos herdados de seus cânones, a criação do Universo e o surgimento do homem. Eis o herói possível, o artista, usando do lenitivo de tornar o vermelho a tinta tipográfica lançada sobre a nudez do papel. Mas nesse processo o poeta não renega, não ignora a página da pele. Ele nos mostra a última pele – a palavra –, e nos contradiz quando afirmamos que a arte permite um legado sem tragédia, pois são números e letras de chumbo o suor de sua pele impressa. O corpo de festim também sangra. O homem que aguarda na antessala líquida do mundo não escolhe estar presente; ele recebe um nome, decidido entre uma trepada e uma palmada do obstetra, e, a partir de seu nascimento, sofre uma sequência de choques, somente interrompida pela morte, pois o que aguarda o ser consciente são muitas auroras de fuligem e pólvora. Esse ser, com sua consciência plantada na samambaia dos nervos, se adentra no absurdo, e sua carne se abisma nesse enigma. No capítulo seguinte, Guarnieri nos apresenta um corpo-só-órgãos. E não nos propõe uma viagem fantástica, mas uma autópsia a frio, um corpo ao avesso, um corpo oco, uma imersão nas entranhas de um frankenstein. Passamos então a contemplar um mundo sem deus, sob um teto espelhado e um piso de excrescências. Alexandre Guarnieri leva ao extremo a visão de muitos poetas contemporâneos. Cansado de tantas almas dissecadas, e não pouco idealizadas, destrincha o corpo, de dentro para fora. Rompe as falsas amarras e os cadeados viciados correndo o risco da impermanência, da extinção do ideal humano. E segue o poeta com sua anatomia do sem sentido, descrevendo a mecânica dos fluidos, porque na ampulheta viva/sangue é tempo, metáfora perfeita para descrever o paradoxo do homem atual. Um ser que, apesar do arcabouço, da ossatura estruturada,


articulada, apesar da célebre postura bípede – com seus pés imortalizados no esqueleto lunar – se impõe um salto na liquidez moderna, aproximando-se da máquina por ele criada. Daí a ênfase do poeta, o que causa estranheza aos habituados, aos tratados de anatomia e aos leitores comuns, em preterir os órgãos ditos nobres (cérebro e coração) e optar pelo grande tubo que ingere prazer (com extrema urgência) e excreta a impureza sobre o trono divino. Não faz isso por tratar-se de um corpo formado basicamente de água, e que se alimenta dela para sobreviver, mas por ter-se transformado em um “corpo fluido”, moldável pelo instante. E são inúmeras e infinitamente renováveis as “ofertas de instantes” do deus-mercado... Mas o que acontece quando o instante se fluidifica, se torna cada vez mais instantâneo, insatisfatório; quando o instante passa veloz; quando um piscar de olhos nos impõe uma limitação fisiológica para vivenciá-lo? “Pode”, como disse Valery, “a mente humana” – essa noz que alucina e racionaliza – “dominar o que a mente humana criou?”. Quanto cabe de assombro na engrenagem do homem-móbile? No capítulo final, “vigiar e punir”, Alexandre Guarnieri se remete a um dos títulos do filósofo “pós-moderno” Foucault. E nada mais oportuno. Não é questão de paranóia, de uma teoria da conspiração, mas o poeta percebe exatamente o que o filósofo francês deixa claro em seu livro: “Cada época criou suas próprias leis penais, instituindo e usando os mais variados processos punitivos, que vão da terrivelmente macabra violência física – o suplício do corpo, tendo como motivação legal a salvação da alma do condenado.” E que prisão mais eficiente que o corpo? Estabelecer um link entre o prazer e a autopunição inconsciente? O domínio das massas em tempos de nanotecnologia é exercido mediante a pílula do instante, que faz naufragar a consciência enquanto viaja no submundo intestinal e mental dos filisteus. Eis outro questionamento que os poemas de Guarnieri nos


propõem: seria então a liberdade um rombo no rebo6co da consciência, uma boca aberta e um ânus carente – um funil empurrando o fluido-promessa-de-gozo, goela abaixo, do homem incoerente? Tudo isso nos leva a pensar que talvez os escritores de science fiction não tenham apenas tido êxito em sinalizar os grandes avanços tecnológicos da humanidade que permitiram ultrapassar fronteiras inimagináveis aos seus contemporâneos. Eles foram também capazes de antever uma nova possibilidade para o “salto” camusiano – o salto para a perversão, como recurso ao desespero perante o sem sentido. Vivenciamos uma mudança de paradigmas, não que a aproximação de Deus tenha tornado o homem melhor; a perversão sempre existiu como traço da humanidade. Entretanto o reconhecimento de um deus menor ou de sua inexistência não foi acompanhado de um processo de desconstrução do homem. O homem optou pelo hedonismo extremo em detrimento da busca de sua irrelevância relativa. Considerando que isso ocorre pari passu com o avanço tecnológico que possibilita uma densidade demográfica nunca vista sobre o planeta, projeta-se, em níveis insustentáveis, a possibilidade de posturas pervertidas por parte da humanidade. O homem se apega a um deus mais próximo, seu parceiro ou ele próprio. Se acerca desse deus e não tem como ignorar sua fragilidade e incongruência – não tem como mitificá-lo. Mas é o único deus possível, e a única existência possível – e urge vivê-la. A consciência mais uma vez se molda à necessidade do novo deus. E o poeta lúcido, diante disso, vê-se atormentado, entorpecido – pois persiste atrelado à sua consciência e às circunstâncias, ao seu entorno. Fica claro o absurdo do homem “pós-moderno”, abraçado a esse novo tempo liquido e fractal. É um novo espelho, esse no qual se mira o poeta. Ele tem mais reentrâncias e, em decorrência disso, reflete mais o que se vê e o que se rejeita com a razão.


Qual transcendência possível a esse homem corporificado em festim?

Jorge Elias Neto

nasceu em 1964, em Vitória, ES. Poeta, médico e pesquisador. Membro do Conselho de revisores dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia e do Conselho Editorial da Revista Latino-Americana de Marcapasso e Arritmia. É membro da Academia Espirito-Santense de Letras. Publicou “Verdes Versos” (2007), “Rascunhos do absurdo” (2010) e “Os ossos da baleia” (prêmio SECULT-ES 2012). Colabora em blogues, revistas e no Portal Literário Cronópios.


www.editorapenalux.com.br

penaluxeditora@gmail.com /penaluxeditora


Composto em Garamond e impresso em Pólen Bold 90g/m² em São Paulo para Editora Penalux, em Maio de 2016.



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