Gravidade zero

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Editora Penalux Guaratinguetรก, 2016


EDITORA PENALUX Rua Marechal Floriano, 39 – Centro Guaratinguetá, SP | CEP: 12500-260 penalux@editorapenalux.com.br www.editorapenalux.com.br

EDIÇÃO França & Gorj REVISÃO Furio Lonza, Roberto Dutra Jr e Adriano Wintter PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Furio Lonza ARTE DA CAPA “Major Tom”, desenho de Joniel Santos (Piauí) CAPA E DIAGRAMAÇÃO Ricardo A. O. Paixão Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G916g

GUARNIERI, Alexandre. 1974Gravidade Zero / Alexandre Guarnieri. Guaratinguetá, SP: Penalux, 2017. 162 p. : 23 cm. ISBN 978-85-5833-313-57 1. Poesia I. Título CDD.: B869.1 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura Brasileira

Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida mediante autorização expressa do autor e da Editora Penalux.




Sumário

Estágio Hum - Parte 1 – hallo spaceboy 3 acidentes / 1. o acidente aéreo hallo spaceboy (I) hallo spaceboy (II) estrela temporã 3 acidentes / 2. o grand prix hallo spaceboy (III) 3 acidentes / 3. o viaduto ferroviário

19 21 23 25 26 31 33

laika ( 1954 - 1957 ) missão apollo hum ( 27 . 01 . 1967 ) pisando a lua (20.07.1969) / (/ LADO A LADO B /) / o lado negro (do showbiz) viking ( 1975 – anos 90 & 2000 ~ ) challenger, in memoriam (1983-1986) ônibus espacial atlantis (1985–2011) réquiem para estação MIR (1986–2001)

39 41 43 46 50 51 53 55

o traje o lançamento space oddity gravidade zero falha humana falha mecânica

60 64 66 67 69 71

Parte 2 – memorabilia

Estágio Dois - Parte 3 – ground control to major tom


Parte 4 – astropoemas S.O.S 75 * solar * 77 ) lunar ( 79 o planeta de trinta atmosferas 81 gravitação universal 83 haicaisAdaquem grandeza escalar cabe escrutinar o universo? 85 a mecânica celeste 86 próxima centauri observatorium 88 nosso futuro entre nebulosas 90 divagação 94 Aos cientistas, que com seu método suprimem do entenuma noite no motel ciclotron 96 dimento da natureza as considerações sobre o significado huEstágio - Parte – cannos youdizhear me,não major tom?de mano; aos Três filósofos, que,5como Cícero, há nada tão absurdo que não saia da boca de algum deles; ou aos poetas, mrs. major tom 105 cujos olhares são capazes de transcender as vicissitudes dessa HAL 9000 106 existência? Certamente uma resposta não elimina a outra. Cabe os dez graus dos contatos imediatos 108 ao nós, no nossodeíntimo, procurar as dimensões do conhecimento suprimento oxigênio 118 major tom 119 que mais nos aprazem - aquelas que são capazes de nos fornecer o anjoidentificação cromado única e nos permitem tirar do âmago o nosso 123 uma astronauta de mármore 125 melhor. Certamente o/a “Gravidade Zero” de Guarnieri nos transporta a um universo Parte paralelo bem estar e nos fornece passe 6 –deAdendum livre viajar com no uma brasilidade única junto ao seu astroautorpara e leitor entram tesseract 127 entresstrellas 134 nauta/cosmonauta/espaçonauta Tom, uma recriação do Major Cosmoroboro 140 Tom de Bowie. Seus poemas nos materializam em outro corpo, numa cronologia própria, e nos revelam expectativas e ansieda[ p.s.: ] 142 des são nossas, sem ser. queMapa para aproximação da Nebulosa NGZ2016, ou Pop, A SÓS EM MIM MESMO” (e sim, nascemos “SE NASCI poesia e pensamento em ‘Gravidade zero’ 145 A gravidade da autoanulação 153 universos ilha), “ASSIM, JÁ NÃO ESTAREI SEMPRE SOZINHO

NO COSMOS” (de fato nunca estivemos, apesar do frio do


vazio cósmico e da perspectiva da expansão sem fim...), “SE TODA SOLITUDE SE ESVAI DE MIM?” (numa conexão real, em que universos ilha rodopiam em interações, chocam-se entre si e se fundem). Este não é um livro de poemas, é quase uma biografia - a sua, que em algum momento da vida certamente achou que um dia decolaria da Terra, vagaria na gravidade zero do espaço sideral, encontraria Barbarella e colonizaria outros planetas. Mas isso não ficou pra trás... é parte desse universo paralelo ao qual nos sentimos transportados e acalentados. Todos os sistemas estão prontos para a partida. Agora só falta a contagem final. 4, 3, 2, 1.

Carlos Roberto Rabaça Astrofísico, mestre em Ciências Espaciais pelo INPE e Ph.D. pela The University of Alabama, Tuscaloosa, E.U.A. Trabalha como professor do curso de Astronomia no Observatório do Valongo, UFRJ.



Este livro ĂŠ dedicado a David Bowie (1947-2016), e a todos aqueles que se permitiram ir mais longe...



há um ruído contínuo de coração ou mosca [...] o mundo gira no escuro: olhos fechados, pisas um solo branco [...] passos no corredor provam que este planeta é habitado Paulo Nunes, “O corpo no escuro”, 2014 perto das Estrelas tímido Astronauta agrega o Vazio entre elas Roberto Dutra Jr.

Todo universo tem seu texto inscrito na pele dos astros pelo direito e pelo avesso na placidez ou no desastre. Tem sua origem, sua frase primordial e sem pré-texto no tempo escasso que se afasta a contrair os seus excessos. É só saber viver os séculos para aprender o que se esconde e atravessar o antiuniverso no cone de luz, não de sombras. Gilberto Mendonça Teles





Estágio Hum Parte 1 – hallo spaceboy


3 acidentes 1. o acidente aéreo

em cada aparato de voar, nascido à luz da física e da aeronáutica, jaz, em potência, a pane da pilotagem ( quiçá retirada da caixa preta sua incorruptibilidade, toda blindagem abolida desta bolha comprobatória; guardará no tanque arsênico ou querosene ), [ o rádio em ruído / a ruína / o pânico / o erro humano no enredo ou mesmo o fantasma da máquina ] [ “máscaras de oxigênio cairão automaticamente” ] soube-se que sucumbira sem combustível sob a asa descarregada exigindo precoce aterrissagem forçada; as hélices, como se despetaladas, frágeis – ou a fada dos desastres fizesse delas fitas de poliéster e elastano ( fossem pétalas de lírio ou estivesse já louco – ou morto no cockpit – o piloto );


eram brinquedos quebrando, desesperançados pelo impacto irremediado: no rotor do primeiro o mofo, fatal, como no miolo de uma flor desenraizada; no segundo, recusaram-se as asas mastigadas pela falha, no vácuo para a qual não houve escusa; a farsa da mecânica deflorando a ambas, duas borboletas em cada qual uma asa arrancada, fracassando no voo – insetos zonzos – um avião de encontro a outro; a explosão, o estrondo, a ampla mancha abstrata tornando aquela noite tão clara;

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hallo spaceboy (I)

Tom, a árvore neuronal acesa, atracada a seus delírios de guri, debruçado na sacada para contar constelações, consultá-las pelo monóculo da velha luneta herdada de cecília helena * ou de uma henrietta * sirius & rhino * objetos & bichos envoltos em prisco misticismo * crater & noctua * órion & horologium *

pléiades & nereidas vagueiam no oceano noturno do céu entre cerúleos e tons muito mais escuros do azul profundo * súbitos gnus sobre as nuvens de magalhães em brutas manadas retesando os glúteos * saltando em bando no limite de todos os músculos;

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testemunha de lá a maravilhosa catástrofe que depois ouviu nos racontos do avô, o qual flagrou de perto a fatalidade correndo dos destroços cadentes em desolada estrada que vencia numa madrugada, hora tão alta; ***

meses depois, dentre as tantas travessuras e prediletas artes lúdicas, ele brincava excitado nas crateras rescaldadas, revivendo o evento com brinquedos de lata, aviões que quebrava sem remorso, despedaçando artefatos de asas

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hallo spaceboy (II)

desde a infância ( manipulando dioramas de urânio, imaginados ), acolheu tal fabuloso cenário: no futuro haveria um trágico parque temático de aeronaves despencadas que, de longe, de algum horizonte de isótopos, pareceria incendiado, a fogos de artifício esverdeados, o mês de março, na festa de são patrício, protetor dos físicos e da fusão a frio ou ainda em setembro, são josé de cupertino, protetor de aviadores, cosmonautas e dos estudantes em véspera do exame mais difícil;

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irromperia este personagem reativo, um novo herói da físico-química, mecanizado e a jato – mistura de ícaro e hércules, o aço em paralaxe – capaz de vencer o céu, vergar a gravidade, avizinhando estrelas aos passos tão próximos, por territórios de corpos celestes, inóspitos,


desde jovem teve essa dúvida atroz ( ou a certeza premonitória ) se não seria ele próprio esse mártir metálico lançado ao espaço numa cápsula de plástico

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estrela temporã

certa manhã, conduzido pelo avô, para assistir ao circo voraz do grand prix, quase pôde supor, púbere ainda, em meio ao ronco dos motores, o cheiro do combustível, a gritaria, do que um dia — a Terra, a fé, a família — abdicaria seria possível, assim tão precoce ? antevia o exílio, o martírio, como nos santos do catolicismo; seria possível assim tão terrível o destino entrevisto, ( a epifania mirim ) dentro do sonho de menino ? e assim foi Tom, “o santinho” ( “o guri era um capeta!”, diziam ) visitar seu primeiro templo: delírio, óleo diesel velocidade & medo

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3 acidentes 2. o grand prix [...] o certo é que tendo cada coisa uma velocidade [...] cada coisa se afastava desigualmente de sua possível eternidade [...] Ferreira Gullar

< < a violentíssima briga de velocímetros numa disputa automobilística: uma espécie de evolução da corrida de bigas [. .]

< < na F-1, onde mercenários combatem tendo carros ágeis como armas e espadas, quase astronautas, vestem kevlar; e nas costas, exibem logomarcas, patrocínios [. .]

< < como não erradicar de qualquer menino imaginativo a crença de existirem heróis de metal líquido pilotando esses veículos ( como não? ) > > bólidos tão insólitos catapultados à base da mais absurda combustão 26


[. .] < < ( a horizontalidade ampliada deste coliseu orbital e centrípeto encapado de asfalto alisado ) onde velocíssimos veículos gravitam; nos capacetes há cápsulas blindadas, crânios sob balaclavas ) > > [. .]

< < ( há o cenário borrado além das viseiras de plexiglass ) que trancafiam as mesmas cabeças cujas decisões duram milésimos ante o fragilizado ato que vai salvá-los, ilesos, ( extirpar o erro, mesmo sob o risco alto ) da perigosa ultrapassagem ( o volante contra o plexo/ respiração suspensa /

costelas comprimidas / peito teso ) > > 27


[. .]

< < caldeirão plano misturando teflon ao poliuretano destes pneus que, mesmo leves, desgastam à fricção da fúria, ainda que os proteja o mais extremo revestimento > > [. .] < < chassis são polias, do aço aerodinâmico // lutam contra o atrito // tão escorregadias, que mal são vistas na reta final, superando os próprios recordes ( os motores entorpecidos por anestésico e aditivo ) > >

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[. .]

< < ( curvas que subitamente se contraem/ a chicane recua ( se esconde/ ou escande ) sob o esforço hipotético de todo acidente fatal ( máquinas abastecidas, à mercê da batida, são estômagos cheios de graxa e combustível, e afora o cálculo difícil de qualquer escapatória possível, simplesmente explodiriam ) > > < < mas ganhará, exaurido, alguns quilos a menos, músculos lassos, tendo conquistado a pole position durante boa parte do espetáculo, um gladiador recostado n’armadura de madrepérola sobre rodas tala larga, ( tilintam prata e fama ) o agrada a tão aguardada grana ao cruzar a linha de chegada > >

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[. .] < < chegará em primeiro lugar, tendo alcançado o retardatário ou aquele que, competindo ainda, inclina sua volta final como o último da fila > > [. .]

< < e são dois cuja proximidade física elimina toda a ameaça de ultrapassagem, pois mesmo colados, ou lado a lado, ocupam extremos semânticos, um deles o vencedor subindo ao pódio, rei coroado, ( de louros, de ouro ), o outro, adversário mais fraco no circuito, mesmo tendo cobiçado o trono, agora está fora da próxima rodada ( sem se saber portanto, quando estará apto, a voltar ao campeonato )

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[. . .]


hallo spaceboy (III)

agora, transferido ao seu novo logradouro metropolitano, Tom, com mais pungentes recordações do acidente, transvê em panorama diferente o código ocultado sob o transe eufórico de psicotrópicos faróis semafóricos, injetados na pupila com o gáudio ávido de guri agrícola de súbito lançado sobre o ininterrupto rush do labirinto viário: nervosas avenidas, o frenesi febril de encruzilhadas, a vertiginosa malha transitória,

e enquanto alucina deseja se converter na única testemunha de algum extremo descarrilamento, quiçá uma trágica pancada a rebentar ante sua sala, apta a drama e desastres, qual não seria a sua sorte se vagões se entrechocassem, as gentes moídas como recheio das ferragens retorcidas; 31


nessa época o avô, ávaro mas sábio, amante dos mais raros ferroramas (ferromodelista desde a aurora da história ferroviária urbana, lhe trouxe a réplica de uma velha locomotiva russa, elétrica; às vezes, alguém da família o flagrava pela porta entreaberta, espremendo o olho pela fresta: numa mão o trem, libertado dos trilhos alçava vôo pelo quarto, virava nave interplanetária, noutra um carrinho de lata, enferrujado ( todo o inconcebível espaço infinito ao alcance dos seus magros braços )

e ambos se digladiavam, numa ferrenha e lenta batalha aérea, em gravidade zero

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3 acidentes 3. o viaduto ferroviário

senão estéril porque atracado a tamanha claridade, todo o aço fosfatizado – tanto –, (eletrostaticamente pintado, de branco) tomada apenas por equívoco estético sua presença intrusa ladeando a praça errada (outrora pântano, alagadiço, histórico charco) guarnecendo a linha férrea mais antiga, recebia trens alternativos cujo esquálido trajeto rumo aos subúrbios agora passara a incluir o generoso trecho sobre o asfalto decrépito, emergindo como a única e truculenta corcova subitamente erguida para fora da radial;

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além da noturna maquiagem, quase vulgar o neon azul, à proximidade da rua H, estava partida ao meio, troncha, uma roda-gigante pela metade, apenas intrometida a tal meia-lua de tantas toneladas, pesadamente largadas sobre o suporte lateral dos trilhos deste novíssimo e aparentemente frágil viaduto de palafitas;

na alta noite, entretanto, certo porte imponente se emprestava àquela boca sem dentes, que, solitária, talvez fizesse a cidade regurgitar seus insones para assimilar-lhe a visão de alguma máquina acesa, a grande íris congelada dentro da pálpebra ou o dial de um tremendo rádio, tendo o trem por seu único ponteiro porque se lento, o maquinista redobraria o controle da velocidade quando passasse por lá, haveria qualquer desconfortável receio, de que caísse ( e junto toda a laia, explorada, manada desenganada de passageiros ),

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de que abrisse, para cada lado um raio, daquele meio aro da gigantesca roda de bicicleta sem eixo ou sem fêmur, houvesse algum medo, algo frágil e trêmulo, desde o início do projeto mesmo, senão repleta de pequeníssimas frinchas quase indetectáveis, uma noite talvez esfacelasse como um acidente de raio laser, talvez esfarelassem as trincas como a ampulheta sem uma das partes, e nos presenteasse com alguma tragédia observada por curiosos e insones dos topos de suas janelas abertas, ou se ouvisse ao longe algum estrondo à queda de um enorme domo, o tombo contra o canal embaixo, onde passavam águas quase sempre pútridas, tendo por vizinho apenas um outro viaduto, decadente, obscuro;

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Parte 2 – memorabilia


laika ( 1954 - 1957 )

tendo idealizado o espaço, ( odor de fezes na astronave/ uma vira-lata molhada e sua murrinha ) o cosmonauta se choca ante a realidade suja: desagradável crise sanitária instala-se, grave, a anos-luz do seu planeta natal;

sentindo cheiro de pólvora na urina, o insuportável aroma da amônia e tudo isso aprisionado às narinas foi possível senti-lo, inibido, animal cinerado: estaria mesmo ali o cadáver da mais fiel das almas entregue ao vácuo ou apenas o retraído simulacro de um canídeo?


pondera sobre como laika teria ganido, no limiar entre a vida e a desaparição, o desespero de não emitir som, sem osso ou carinho ( o rabo que não abanou ) não houve presença humana apenas o frio monitoramento telemétrico de suas tímidas funções vitais; sem uivo que ecoasse no espaço, não houve a quem seduzir com o olhar pedinte da cadela vadia querendo acolhida e abrigo: à mercê da eutanásia calculada, ( o sacrifício físico do bicho ainda sanguíneo) afinal nada disso é possível quando se está prestes a explodir à bordo do segundo sputnik

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missão apollo hum (27.01.1967)

no cockpit de um velho estofado sem forro, o mofo do encosto insalubre aciona o suor que escorre das costas | na testa uma constelação de gotículas cadentes condensa a primeira mescla a inundar-lhe a sobrancelha | enquanto ele cruza de ponta a ponta a galáxia sem levantar do sofá o quitinete é a própria bolha onde a ilusão do suporte à vida o reabilita | os monitores – onde grudou seu par de olhos – mostram, entre outras atrações e jogos, o anúncio do noticiário das oito | uma comporta parcamente climatizada guarda pipoca de micro-ondas, carne descongelada, bebida isotônica e pílulas de astronauta | quem sabe esse homem-bala não seja apenas um menino vestindo um macacão inadequado, prestes a ser lançado ao espaço de seu assento ejetável, ou um convidado fantasiado aguardando há dias, na área de lazer do loft do vizinho, a promessa de uma festa que nunca terá início| arrastada e entre ruídos, ouve-se uma voz feminina que se suporia oriunda de um rádio de ondas curtas: “contagem regressiva para o lançamento: 40


dez nove oito sete seis cinco quatro três dois hum: lançar!” a vida ao redor estremece | os parafusos pirotécnicos liberam da base, a nave > ato contínuo > o zelador arromba a porta seguido por bombeiros que espargem água e gases contra o corpo do homem-bomba cujo traje, embebido em fluido de isqueiro, o fez acender como um foguete minutos antes | relembrada a cena, tudo pareceu fluir como no cinema, sem que os espectadores sequer se perguntassem quem teria avisado a brigada ou por que o protagonista ansiou pelo incêndio que o arrancasse da própria carne lázaro para fora do planeta Terra

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pisando a lua (20.07.1969) A Terra é azul, e eu não vi Deus Yuri Gagarin

(/ LADO A

não fosse o peso imposto o músculo contra a força do joelho o pé sobre a bota especialmente desenhada

ou o desejo de afundar o solado n’alguma clareira aberta, apta àquele clássico passeio em solo alienígena

não fosse o financiamento da América para que sua nova águia propulsiva pousasse a favor de um vento impossível

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ou o esforço de neil armstrong para decorar a fala encomendada a um ghostwriter, poeta, e dizê-la “tha-t’s-one-s-mall-s-tep [...]” sem ga-gue-i-ra ( gagarin, pragmático, ajudado por edwin aldrin a teria combatido com uma frase certa, curta, porém incrédula )

não fosse o aparato técnico da primeira ( e única ) transmissão televisiva ( da ( / lua ) não teria sido impressa a inédita pegada americana fora do planeta Terra

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e é provável que resista milhões de anos se os russos, num arroubo de súbito abuso ( ou vença na loteria um meteorito ), não lhe pisarem em cima

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(\|||)


LADO B /) o lado negro (do showbiz)

os pés pisando a areia sentiriam “estamos na Terra”, muito embora o ator dentro do traje tenha fingido que aquela pequena pedra cênica posta no meio do caminho era de fato o satélite cuja estreia na tela o elevou à categoria de astro, mesmo no anonimato; ao diretor, quem sabe, depois do lucro dos anunciantes, a coca-cola, a esso, o exército, fincar de vez uma bandeira no cinema, o almejado topo da carreira; ao rockstar bowie coube a canção-tema, exemplarmente composta sob encomenda;

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no estúdio, cada grão de cascalho vulcânico sabia seu lugar exato (disseram ter sido trazidos de uma praia do havaí, pa-ra-di-sí-a-ca); tudo adiantado, só o operador da luz andava estranho e sonolento, mas o Homem só pisaria mesmo na Lua das nove às onze, em horário nobre, logo a NASA mostraria a flâmula americana tremulando e, em baixorelevo, uma bela sola de borracha;

sim foi preciso frieza, cinismo, ritmo para entregar a tempo o programa – show mascarando a trama: filme, embuste, drama – o grânulo a luz a mecânica a cena meticulosamente técnica pois tudo haveria de caber no novo eletrodoméstico da américa;

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afinal, foi ou não a “ida do Homem à Lua”, sim, aquela que flutua (televisionada, apresentada ao respeitável público) uma bem acabada peça publicitária criada por stanley kubrick? lembremos de heisenberg e seu princípio da incerteza, toda verdade sobre a “chegada do Homem à Lua” jaz oculta ou relativa, bem como conhecer com exatidão a posição

de uma

partícula

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“e pensar que já usávamos mísseis, ogivas, átomos e alta engenharia, para brincar de roleta-russa com os vizinhos mais tímidos, e ainda dizíamos, nos divertindo e rindo, que essa guerra era fria; anos depois abríamos alas para ronnie reagan e sua era da guerra nas estrelas!”

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viking (1975 – anos 90 & 2000~)

o solipsismo gnosiológico ao mapear o vasto território marciano

da sonda

os passeios solitários para recolher delicadíssimos centímetros cúbicos ( amostras de solo insosso ) os testes, rotinas/ sub-rotinas como a consciência do mecanismo enviado ao planeta vizinho revelam enfim as análises, inequivocamente:

“Life on mars” não há em marte, só mesmo a morte, sólida, gelada, em total isolamento, parece se bastar

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challenger, in memoriam (1983-1986)

desafiamos o bom senso, o sexto sentido o último aviso, iríamos audaciosamente onde nenhum professor primário jamais esteve mandaríamos sua tia christa, da terceira série, para passear na órbita terrestre, bem rente ao limite entre a atmosfera e o nada, – macaquinhos já foram, cachorros, um pato rouco, até um porco e muitos outros bichinhos das fábulas de esopo

todos de olho na nave, vai começar a contagem: é hum! é dois! é três! é já! ahhhhhhhhhhhh... por que raios esse erro logo agora? falhou a vedação, é gás quente sob pressão – o que é aquilo lá em cima, mamãe, aquela tocha? – não é nada, filhinha, está no céu a professorinha, christa mcauliffe, com os anjinhos astronautas, já podemos ir pra casa, tem disney, mingau, fralda e todas as carinhas atônitas, televisionadas

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na reunião de pais e mestres discutiu-se a quebra de contrato desta pequena fração do sonho americano, com aproximadamente 500 kg de carne humana, incinerados pela NASA... no final, em letras tão miúdas, quase oculta, leram, resolutos, a última cláusula:

em caso de falha ou explosão não aceitamos devolução

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ônibus espacial atlantis(1985–2011)

rápida aparição atravessando o rasante que arrasta alvoroçado, à sonoridade do súbito empuxo | a fuselagem atada à distância | cada lançamento renova sua válvula de voar ( se equilibra no vértice do invisível ) enquanto flutua, vazia, fora da gravidade | quanto mais alto o voo mais ares ( ou hipotéticos desastres ) a devoram sobre um arco de horizontes | porque é dado a muitas alturas este pássaro quase inverossímil que habita o arco-íris | em suas hélices reutilizáveis e cilindros ávidos por velocidade, onde houvesse, pareado a tal pura aparelhagem – nas asas – um novíssimo alumínio flexível

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| não fosse a explosão em ação, de um dos irmãos, sua aposentadoria coroaria com êxito um século inteiro de vocação exploratória | guardado no hangar do agora, o pátio da NASA ( ou no kennedy space center ) apenas como a sua última gaiola, ecoa, trancado, o canto da ave afogada: fênix mergulhada n’água

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réquiem para estação MIR (1986–2001)

a morte, pressentida ou reconhecida, sempre artificializa seu cortejo fúnebre; a decisão que suplanta e descarta uma aventura de tamanho esforço retroage ao primeiro voo de acoplagem; toda tecnologia nova já nasce programada; chegará a hora do desligamento, do defeito, toda pane é decidida desde a indústria; cada fabricante torna clara, na engenharia do erro, a estratégia descartável para tudo que materializa; \ ___ //// ____ \

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as toneladas de aço da estação espacial russa, tida como obsoleta, são essa chuva rubra de destroços que nunca tocará o solo; o exato momento do óbito não é a combustão da sucata pulverizada pelo atrito da reentrada na atmosfera da Terra, mas a parada do tradicional clock ( o tempo lógico? ) que regulou por década e meia sua órbita estacionária




Estágio Dois Parte 3 – ground control to major tom

Ground Control to Major Tom Ground Control to Major Tom Take your protein pills and put your helmet on David Bowie, “Space Oddity”, 1969



a queda livre a água tendo simulado a gra vidade zero | o nervo de aço o tempo exato do salto no espaço os aparelhos aptos todos os protocolos salvos AGORA :

devassado o armário da agência espacial à mais nova tendência da moda algo entre retrô e avant-garde convém escolher a roupagem mais adequada vestir-se para seguir jornada

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o traje And all this science I don’t understand It’s just my job Five days a week A rocket man Elton John, “Rocket man”, 1972

parecerá a panóplia de chanfros outrora descoberta por erich von daniken ( pássaro, mas humanóide ) no registro em pedra de uma antiga placa asteca/ toda função bioquímica monitorada pelo escafandro será transmitida à Terra, da indumentária, e vice-versa, com análises e diagramas, recomendáveis trâmites/ seu rosto estará guardado, acessível apenas pelo monóculo indestrutível de uma mínima janela recortada no elmo/ o observador de estrelas (viajante, nômade) portará sempre presa ao seu nome uma amoldada cápsula de fios rígidos, fibra ótica e tecidos/ o icônico traje branco terá como matéria-prima a poliamida e, maleável, o kevlar para conectores acoplando o tronco e os braços ao pescoço –

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povoará os sonhos de garotos que se imaginarão destinados a viajar por séculos numa sidérea odisseia ( derrotará o mal, em HAL ? ) usarão no éter abissal o novo vestuário espacial, e ainda que sacrifiquem a própria agilidade em apenas alguns graus, logo onde agem, pressurizadas, mais camadas – soprará oxigênio e cocaína nas narinas do astronauta : haverá oco, e água, cujo maior esforço protegerá seu corpo autônomo às condições inóspitas do voo: glorioso homem do futuro, lançado ao paradouro mais longo.

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tudo o que se exige dele – astronauta/ ou kamikaze – é que entre na nave e aceite a viagem “ou quase” “tudo ficará para trás”, prometem os projetistas da nova cápsula com mil propulsores dos mais eficazes tudo o que se espera dele – algo entre astrônomo/ e colono: copérnico/ ptolomeu/ colombo – é que embarque e “vaze” ( parta. viaje. )

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colonize marte sem olhar para trás finque a iluminação pública no lado escuro da Lua / é como atravessar a rua, logo ali o lugarejo separado por milhões de quilômetros sem oxigênio ou prêmio somente o altruísmo ou óbvio martírio do astronauta solitário por quem o mais engenhoso robô do ovni luminoso possa se afeiçoar / ah meu filho, apenas vá, daqui serás o mais famoso ponto remoto visto de telescópios cósmicos, serás a melhor notícia em horário nobre, roteiro de filme sci-fi / livro mais vendido / herói de gibi / símbolo sexual / objeto único de estudo / dos rocks de bowie / motivo de orgulho e júbilo / cuidaremos da tua família com pensão alimentícia apenas suma, seu grande filho de uma puta,

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o lançamento Standing there alone, the ship is waiting All systems are go “Are you sure?” Control is not convinced, but the computer/ has the evidence No need to abort The countdown starts Peter Schiling, “Major Tom (Coming Home)”, 1983

uma vez vencida a última contagem regressiva e enquanto trina ainda o silvo da partida, mais de seiscentas chamas descem entrelaçadas às labaredas devolvidas do chão ao céu, se entrechocando no calor intenso e recolocadas pelo elemento indispensável a essa máquina incendiária | esse incêndio pensa – sua pele, seu esôfago, seu vespeiro que crepita – enquanto queimam auréolas secretas, elásticas, quase elétricas, piscando, com propósito, incontroláveis faíscas

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| o primeiro foco é róseo, os outros ardem, ágeis, num jogo de intensidade | tem pressa essa presença acesa colocada no bocal que bolou carl gustaf patrik de laval ( louco engenheiro sueco ) e sem o qual – a tubeira direcionando a sísmica propulsão do apocalipse, o ronco ensurdecedor desse vômito do ômega –, o motor de um foguete não geraria suficiente energia para erguer as noventa toneladas, se incluído o sólido propelente do início, de quaisquer dos cinco ônibus espaciais já catapultados pelo notável avanço científico ( tiveram por combustíveis reativos as novas pólvoras hipergólicas ); como vulcões em erupção, lembram crateras ativas, as bases de lançamento desses veículos são gargantas abertas de dragões em guerra!

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space oddity

a terra está para o satélite como a água para a atmosfera tudo gravita – a vida – equi libra-se ainda que se esquive o cometa do meteoro | as rotas de colisão explicitam certa par cela de perigo e medo a que todos os corpos celestes se submetem entre o caos e a calma, dicotômicos | o som não propaga o ruído está extinto quando se orbita no frio deste vastíssimo tapete dito infi nito | que ímpeto teria pro longado tão largo o nada tão es cassa a massa quando comparada ao absoluto tubo nulo onde tu do está indubitavelmente contido ?

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gravidade zero

o peso outrora ancorado ao rígido piso segundo o conteúdo programático ou o índice onomástico da gravidade de newton, tudo que esteve plantado ( sobre a fiação de raízes invisíveis ) nalgum planisfério supostamente inescapável ( ou quase ) agora dança ( flu tu a em câ me ra len ta ) pelo espaço das câmaras artificialmente oxigenadas no grandioso galeão suspenso cujo nome nos falha ( fosse pequod, hispaniola ou nostromo )

como se tudo que agora voa ( à solta ) reclamasse um enxerto ( adesivo ou aderível ) de velcro ou ímã magnético para fixar-se às paredes côncavas de túneis salas passagens e todas essas “aparições” não fossem, nelas mesmas, as próprias coisas, mas meras cópias fantasmagóricas,

( seria o efeito-tarkovski apenas observável na órbita de solaris, suas enseadas transformadas: águas ~ as ondas do contínuo tsunami ~ mais nada ? ) 67


como se o tempo estancasse dentro dos músculos atrofiados e a falta da gravidade fosse, em si, uma deficiência rara, o mal do espaço, e precisasse ser irremediavelmente extirpada, combatida ali, diante do surreal cenário: o cristo orbital de salvador dalí, ou seus relógios derretendo e a única imagem acionada na memória para aplacar essa estranheza ( porque há o esforço para naturalizar ao olho humano uma realidade suspensa em que tudo parece livrar-se ou estar à deriva ) fosse esse balé subaquático assistido num documentário de águas-vivas ( e outros monstros marinhos, entre sereias e víboras ) encomendado para alunos de oceanografia

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falha humana Back at ground control, There is a problem “Go to rockets full” Not responding “Hello Major Tom Are you receiving? Turn the thrusters on We’re standing by” There’s no reply Peter Schiling, “Major Tom (Coming Home)”, 1983

tudo pisca no cockpit

trinam bits inaudíveis dentro dos circuitos que ligados entre si criam da nave a inteli gência artificial que decide contra tudo con tra todos não há mais vontade ou falha humana apenas a intenção de 69


uma máquina levando co mo animais de estimação seus mísseis sensíveis pa ra passear em noite de lua – e ouça... como uivam!

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falha mecânica

cada aparato eletricamente ali mentado emite separadamente seu mínimo bocado de ruído zu nindo um estribilho inaudível entre placas do circuito imerso em hidrogênio líquido | o lento escorrer de elétrons n’algum vazamento sequer perceptível | a salamandra albina grita numa língua falada entre má quinas e microrganismos metalo nívaros | como um vírus ou parasita o álibi do desastre a mínima falha se alastraria ainda | indetectada por mil dias de percorridas milhas

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Parte 4 – astropoemas ( fragmentos do irrecuperável diário do major tom ) [...] essas incontáveis galáxias, esses espaços sem fim, essa treva e explosões de lava. Como isso tudo cabe em mim? [...] Ferreira Gullar Here am I sitting in my tin can Far above the Moon Planet Earth is blue And there’s nothing I can do David Bowie, “Space Oddity”, 1969


S.O.S

abandonar palavras ávidas pelo resgate, na página, como antes, nas mensagens dos náufragos, em garrafas...

quem sabe haveria sílabas certas para salvá-los, sangradas no improviso das canetas secas pelo calor drenadas pelo sal “save our souls” as letras dependessem apenas da estética para serem avistadas pela nau exata, flutuando, camufladas, sobre turbulentas águas


terá sido o último recurso – grito no vácuo, escrito – de cada herói moribundo, de cada pioneiro galáctico, afogado no derradeiro átomo?

que destino um astronauta perdido, sem ar, carinho ou abrigo, ( entre hordas de supernovas ) escolheria, senão o da poesia?

nota do próprio major:

“se escrevo em terceira pessoa é porque aqui fora, indefeso, enquanto orbito Solaris a sós ou longe de qualquer nave que me abduza ou salve, tão distante da lua ou do sol, por vezes o espelho que fiz de minha escotilha, me dizia: o eu que vês já é um outro, bobo, e teu fantasma és tu: booooo! e o susto sobrevinha”

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* solar *

aviltam-se as vísceras na álgebra das digestões o fogo no esôfago o fogo no estômago golfo de fogo – o sol – em sua elipse literal quando erguido reina diurno sobre as cúpulas do clima astro arcaico e claro coroado n’ouro espúrio em sua única sílaba: demiurgo de incêndio perene a guia na ignição do signo estrela entre letras onde a via-láctea é sintaxe a briga embriagada dos vocábulos rebolando com as fartas ancas da galáxia

príncipe cíclico pelo plexo do céu coroado d’espinhos absoluto colosso cuspindo istmos masculinos hórus pássaro carnívoro dos dias como o tórax de um orixá sua loura cabeleira diária se perpetua no exercício incandescente dessa interminável pira para ícaro

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feérica esfera sobre patamares cardeais às egrégoras da cromosfera as engrenagens da imensa grelha de helius sócio na constelação símbolo do renascido as hélices do leste o expelem sexy dédalo de pétalas apolíneo insígnia de cristas agressivas touro d’ouro seus chifres são pífaros de bronze aceso odisseu a sós em seu extremo sacerdócio o de queimar-se a si assiduamente quantos séculos haverão por dissolvê-lo?

é no crepúsculo poente seu último sepulcro sempre o primeiro repetido * repetindo

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) lunar ( [...] Bombardeada pelo sol,/ o que fascina é sua face oculta:/ capuz de velha bruxa, perita no disfarce/ de suas fases [...] Lua que desce à terra/ e se mistura com o sonho dos homens Rodrigo Garcia Lopes

ágata clara nas ilhargas da galáxia serena esfera em órbita do planeta satélite-ela ( ninfa entre fêmeas ) sua pele crivada de crateras

plena

imensa

seu corpo-um-único-glúteo a regular marés – que é quando menstrua o mar da Terra há o sexo do céu o sol convulso em sua cópula com ela

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o branco de seu ventre prenho inventa alvores para abalar o lĂĄbaro da noite

gigantesca gota de mercĂşrio flutua sobre a cĂşpula da populosa urbe lua

vulva

ova de prata gomo

contemplada

gema

pendente

entre estranhas antenas

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o planeta de trinta atmosferas (uma crônica de 30 linhas) Cair no vácuo como eu caía, nenhum de vocês sabe o que isso quer dizer [...] Italo Calvino

eterna paragem para xenomórficos pássaros em exílio alienígena | zona nua nas solidões do azul | sonhos tingindo desertos horizontais | azuis-claros alhures acumulam-se no azul-escuro ( cerúleo ou lazúli ) | ousam, usam-no as asas da minha nave de aço inoxidável | eis que reconheço esse céu renascido de todas as manhãs terrenas, que vi erguidas por cantos de galo, de um canto a outro, e que agora se reconstrói, aberto, diante dos olhos saudosos ante a memória de todos os dias em que vivi no meu planeta | esparramado novo astro como um músculo de cores distendendo em lastros de acúmulo suas trinta cúpulas agressivas de gratuitas e diáfanas crinas | veste de planeta, trinta véus cobrem a única corola de diurnas pérolas | atravesso léguas ao sobrevoá-la

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num rasgo, quase nenhuma máquina aérea aguentaria suas lâminas de ar na fuselagem como golpes de navalhas cegas | cenáculo no azul a cerimônia | a que é consenso ser excelsa | o êxito inexorável do próspero oxigênio respirável | ápice de si, lado alto tanto ar | o ciano aerodinâmico | oceanos nublando de branco o azul que a tudo recobre | o respiro inúmero deste outro e inexplorado mundo | bios/fera encoberta pelos ares de todo gás em exatos trinta céus concêntricos | arrefecem na muita altitude | presas à crosta por nervosa força gravitacional, as atmosferas dessa esfera | ventos impossíveis a povoam | turbilhão de guilhotinas erguidas num carrossel de súbita violência longitudinal | desobstruo o voo de minha aeronave esquartejando linhas de um ozônio nebuloso | os vórtices dos sinos tubulares | são sílfides infinitesimais

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gravitação universal

o universo visto como um infinito estojo cósmico de joias e esferas que, acesas ou frias, se alternam no sidéreo manto deslizando sob ou sobre invisíveis e indivisíveis energias,

entre forças ora centrífugas/ ora centrípetas conforme suas massas ora ofereçam/ ora absorvam distância ou atração; talvez pequeníssimos ímãs as recriassem nos movimentos de repulsa e aproximação o mais complexo aparato de ocultas amarras e pulsões sem as quais nada mais no mundo se manteria justo – ou junto – um organismo de muitos, ainda que abraçados à espiral perene,

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há essa mão suportando a galáxia ou qualquer outra parte que melhor sirva de metáfora para algo tão grandioso quanto um imenso tecido grosso onde gigantescas bilhas de planetas e sóis ondulam, e se equilibram, e brilham,

são estes corpos celestes, que em suas órbitas permanecem ainda que alguma atração física exerçam aos satélites vizinhos, e gases e águas se aquietem ou se agitem pois tudo é movente e conforme ainda haja sólidas bases imóveis onde caibam construções com que humanas hordas obstruam os rios, os vales com ruas e cidades futuras, mares, oceanos, a atmosfera com óleos, gases tóxicos, sujidade e precisassem fugir às pressas do quarto, amantes carnais flagrados no ato

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haicais da grandeza escalar

#1

\ micro ou macro \\\\ / astro ou átomo //// \ nexos no espaço \\\\

#2

/// milênio ou milésimo de segundo / \\\ quilômetro ou milímetro cúbico \ /// quão intransigente o (i)número! /

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a mecânica celeste

ocultados pelo antigo obscurantismo deste véu blindado, espiam, protegidos, todos os máximos mistérios

do universo, dos mais insuspeitados e profundos aos quase dedutíveis na simplicidade; dentro desta caixa-preta crivada de estrelas,

a engrenagem cósmica se move desde muito antes de qualquer humana eureka;

ainda assim, o oceano do espaço singrado na astronave, o solitário marujo, cujo treinamento jamais haveria

de prepará-lo para tamanho maravilhamento e medo, diante da vastidão inapreensível do vácuo que,

testemunhada pelo olho do único homem, no ineditismo de tantos fenômenos, se esforça em vão para catalogá-los com dados viciados;

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mal poderia presumir que, por trás da malha dramatúrgica das luzes estelares, entre as zonas escuras, os vácuos abissais e abismos do enigma maior, jaz a incapacidade de apreender de qualquer cenário capturado pela aparelhagem regulada especificamente para o olhar terráqueo, a imensa zona neutra, crepuscular, oferecida apenas à cegueira

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próxima centauri observatorium Uma noite observava [...] o céu com meu telescópio. Notei que de uma galáxia a cem milhões de anos-luz [...] destacava-se um cartaz. Nele estava escrito: EU TE VI. Fiz rapidamente o cálculo [...] antes mesmo de consultar a minha agenda para saber [...] fui tomado por um pressentimento angustiante: exatamente duzentos milhões de anos antes, nem um dia a mais nem um dia a menos, havia me acontecido alguma coisa que sempre procurara esconder [...] Italo Calvino

pêndulos emulam solipsísticas elipses duplas através das quais mútuos orbes se renovam, em fulgor e penumbra, enovelados, e subitamente evolam no conjunto complicadíssimo do cosmos como êmbolos dentro de relógios & giroscópios pendem entre si – móbile de calder – de invisíveis fios, uma infinidade de geóides, ilhas de gelo e fogo, terra e lodo, óleo, água e lava, rápidos asteróides, cometas correndo entre quasares, blazares, árticos magnetares

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se entram nêutrons, saem rebeldes ânions que rebolam em centros neutros e periferias elétricas repelem cátions menos austeros no exercício infinito do difícil serviço da máquina silente entre o caos e o equilíbrio


estrelas jovens e velhas, anãs, extremas, grandes entregues à eterna tela etérea vigilada por kepler, dinastias de luz e negrura se revezam por eras

nas frações observáveis da irrevogável e abstrusa treva, sondada através da história humana por mil telescópicos olhos de astronautas heróicos,

astrônomos do último nomadismo, soldados mirando obuses, são coletores de fótons ( o micro oculto ao macro ) desnudando o suntuoso vácuo, como quem colhesse um longínquo orvalho de úmidas e luminosas flores ( o mínimo visto ao máximo, e vice-versa, refletissem do feminino ao másculo ),

o que é magnânimo minimamente submetido à imagética exegese desse tautócrono aglomerado de visores adjacentes orbitanto próxima centauri, paralelos, simultaneamente.

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nosso futuro entre nebulosas

cometas cortarão os céus sob o vácuo a anos-luz de onde me encontro agora, oblongos bólides de gases & fogo & poeira cósmica alcançarão, porventura, qualquer coordenada/ a ciência elegerá coisas cada vez mais difíceis de serem definidas ou previstas/ sobretudo as mais distantes, em galáxias estranhas, longe de qualquer possibilidade humana/ aí quasares intransponíveis, perversas cassiopeias, cordas, singularidades quânticas & buracos brancos dançam a sós no baile excêntrico do pensamento/ mesmo assim, algumas lentes telescópicas ao custo de bilhões de euros e dólares, eventualmente serão postas em órbita nas costas dos mais indóceis veículos nucleares para olhar além, para explorar as fronteiras do fora/ noutro continente crianças morrerão de fome/ mulheres serão espancadas à morte e haverá tanto sacrifício cruel nesse incompreensível desequilíbrio/

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por que capturar essa brutal grandeza?/ qual será o papel do jeito humano ainda que em meio à própria desgraça nesse velho teatro fora de escala?/ não obstante, coisas aparentemente tão pequenas como, por exemplo, um simples desejo, serão os desafios mais difíceis/ nos corações, se infiltrarão certos sentimentos, de ínfimos a gigantescos cortando tudo, tal qual abrem caminho os muitos rios da geografia, sobretudo aqueles que tornarão os desejadores, vulneráveis e frágeis, porque doarão tanto poder aos seus objetos de desejo, experimentarão sensações quase insuportáveis/ haverá carência, e haverá contudo o que desejar/ algo emperrará no Homem/ fará da dúvida a mesma convidada indesejada, intrusa à infra-estrutura ( bem-vinda? ah, isso nunca! )/

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se houvesse o budha ou outro avatar ressuscitado, a fé, o desapego talvez convergissem sob a compreensão do curso de que algo muito maior que nós, bem adiante do nosso mísero comando, fizesse circular galáxias com a engenhosidade da mecânica celeste ( ou estes sentimentos que fazem faíscas elétricas acenderem por dentro, como uma chuva de vaga-lumes fizesse de cada pele a única superfície no tecido de uma só luminária acesa ) mas talvez escolhamos o destino oposto/ o fim do mundo muito próximo/

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sem bater a porta, se pedirá ao último habitante que, de uma vez por todas, apague a única luz acesa no fim do túnel, já muito tênue, e pule no vácuo para fora do barco que, irrevogavelmente danificado, um dia foi nossa casa e, confortáveis, flutuávamos no nada/ da varanda, víamos sóis, miríades, o infinito, mas enjoamos desta belíssima vista ( cansamos da vida ), como aqueles que sempre moraram diante do litoral e numa tarde qualquer se debruçam, graves, e caem sem descobrir que eram capazes, eles próprios, de

v o l t a r v o ) ( a r

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divagação

quando se ocupou da gênese da velocidade, o filósofo da linguagem cogitou tratar-se a roda tão somente de um apêndice correlato, jamais a causa, senão apenas algo colateral na escala da escalada; pensou na aceleração como a única escolha compulsoriamente resolvida na história técnica da conquista aérea, “talvez a arte mais tardia na invenção da fala”; “num futuro cuja rotina diária inclua algumas ‘idas & voltas’ à lua, de alguns segundos, em foguetes reabastecidos nos empórios e postos de cada esquina, como será a poesia, a escrita?” “existirá ainda, anacrônico, o dactiloscrito? em quais outras superfícies, ásperas ou lisas, as palavras serão lidas: em pinturas de luz fria, holografias? investirão na invenção de uma nova e velocíssima taquigrafia?

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grunhiremos apenas ruídos rítmicos e assovios? falaremos tudo e nada em diferentes faixas superpostas de registros audíveis, sons incrivelmente límpidos? como será a falha, grassa, na hipervelocidade da fala? ( de completas soundtracks a blips (‘‘.) imperceptíveis? )” “uma outra voz se originará em nós, fará da revolução, só as nossas cordas vocais?” mcluhan, alhures, larga da alma uma gargalhada, ( “difícil me enganarem, mesmo esse meu cadáver!” ) pierre lévy ri, idem a marshall, enquanto se reviram, ó magos extintos, ambos offline, ( há quantos séculos!? ) no ermo sepulcral das próprias urnas.

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uma noite no motel ciclotron I’m the space invader, I’ll be a rock ‘n’ rollin’ bitch for you Keep your mouth shut, you’re squawking like a pink monkey bird [...] Keep your ‘lectric eye on me, babe Put your ray gun to my head Press your space face close to mine, love Freak out in a moonage daydream, oh yeah! [...] Freak out, far out, in out David Bowie, “Moonage Daydream” , 1971

[ amor da minha vida, ] tranque no cofre seus suvenires de íons, que, por esses longos tubos, logo acelerarão partículas inatacáveis cujas forças de atração e repulsa afetarão intimamente seu ímã obscuro, visitarão seu clitóris com a libidinosa promessa de orgasmos induzidos por estímulos elétricos

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[ minha linda amiga, ] desvista estes finíssimos tecidos, entrelaçados o náilon ao alumínio, vestimenta fictícia ( penhoar de nagazaki ) o sutiã de fibra tripla, a cinta-liga, a lingerie de zinco, tire-os, mas não recrimine o frio, que uma surpresa virá já já do limbo, zunindo os tímpanos, nos arremessar

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[ abaixe a cabeça, querida, ] e agache lentamente que primeiro é preciso entrar; aqui, deite-se comigo, também já estou despido, você e eu tão unidos e dentro de instantes, por esses múltiplos túneis de energizados dançarão dervixes invisíveis agitados a velocidades indescritíveis, microscópicos insetos sairão livres das jaulas de um subatômico zoológico

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[ ah! minha amada! ] ...suas picadas de lança-chamas trarão o milagre da multiplicação dos graus centígrados que, à sensação térmica da superfície de um sol de súlfur, rasgarão sua pele para sempre liquefeita; nossos corpos, agora um único suco remotamente humano, se misturam sob as bobinas colimadoras,

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[ meu amor, nossa união, ] um mingau de átomos de carbono incendeia/ pulveriza nosso amor na aurora da máxima sincronização possível e da qual já se terá a magnífica notícia em todo o universo conhecido, lambem-nos já as labaredas de quartzo, o incompreensível incêndio em nós é suavemente gelado

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[ amamo-nos no colisor de hádrons, ] caminhamos de mãos dadas, numa só mão atada (a minha? a sua?), nossos dedos embaralhados estamos nus entre partículas, fachos rápidos, em meio à floresta de táquions, nossos campos magnéticos um único halo quântico retrocedendo ao big-bang e uma vez, búdicos no futuro, reunidos a tudo num gang-bang de tantos angstroms, um único anima & animus, conquistamos o nirvana do yin&yang, o supremo 69 no frenesi do sexo etéreo,

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[ amor, sou teu, és minha, ] ó sentimento cuja extinção exigiria uma eliminação às pressas de todas as realidades paralelas, eterno em seus bilhões de elétron-volts, louco, revolto, apesar de indevassável, inquantificável... será finalmente o nosso amor, transposto, transformado no mesmo instante em que finado pela última partição do átomo, cientificamente comprovado!?

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Estágio Três Parte 5 – can you hear me, major tom? I miss the earth so much I miss my wife It’s lonely out in space On such a timeless flight Elton John, “Rocket man”, 1972 Across the stratosphere, a final message: “Give my wife my love” Then nothing more

Peter Schiling, “Major Tom (Coming Home)”, 1983


mrs. major tom

seu último adeus entrevisto da escotilha antes da contagem regressiva, houvesse para ela um local definitivo, o destaque adequado além da janela de um belíssimo quarto decorado, ou desta câmara branca; no centro do drama, cada piloto com sua própria dama, repudiada ou merecida, megera ou santa, o melhor momento, congelado fotograma, repousa no anacrônico porta-retrato, entretanto um fato permanece insuspeitado: enquanto sonha do leito criogênico, divagando no idílio de uma visita fictícia a um extravagante motel construído num acelerador de partículas, há pelo menos vinte séculos terrenos, sua mulher, e os filhos ( se os tivesse tido, ou os que de fato teve num universo alternativo ), seus bichos, da família os entes mais queridos, toda a carne reconduzida ao pó, todos já morreram na Terra há, pelo menos, algumas centenas de décadas!


HAL 9000

do zênite excelso da mente o elemento mais lento repele todo o peso; um eixo helicoidal no espírito cindido eliminaria todo o medo? o astronauta mesmo ao não sentir-se a salvo, se entusiasma cada movimento íntimo o faz lembrar uma calandra atômica orbitando Andrômeda [ até que ] um dos módulos eletrônicos ávido por um coração humano ou uma alma como pinocchio frankenstein em Oz, o homem de lata venha reclamar seu quinhão de óleo grosso e viscoso de combustível gozo sonho

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[ todo curso observado no monitor ] lágrimas gases e sangue algo entre mel e lodo

está tudo tão calmo fora da espaçonave que ao ego seria concedido o finalismo do escapista não há perigo de colisão o ego em gravidade zero ( já tão diluído o eu lírico ) espera a derradeira dissolução

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os dez graus dos contatos imediatos [...] enquanto a espécie humana surge e cresce e se entretém no amor, na busca de si mesma, no saber sempre mais e destruir-se, e se desgasta, e em milênios de agonia já se extingue, o universo continua e os raios cósmicos suscita/ e em mutações sucessivas já outra espécie humana substitui e nada sobra do que fomos, do que fui [...] Fernando Py

1.

o astronauta arrasta pelo cosmo as toneladas de uma aparelhagem incapaz de captar a diferença entre a vida baseada em carbono e quaisquer outras matrizes alternativas para vidas alienígenas ( a batalha da mera forma humana agrilhoada ao planeta Terra contra a infinita xenomorfose criativa, ainda a ser descoberta – ou sendo, ou tendo sido, entre símbolos hieroglíficos ) /

109


2.

toda esperança dissipada naquele que seria – ou foi, ou terá sido – o momento da apresentação do extraterrestre por ele mesmo, artística ou científica, nômade ou proprietário da própria base fixada n’algum ponto da galáxia, contados os graus para a sinfonia estupefata ( como no cinema ) de ambos os lados, maravilhados, de quaisquer destes graus nos contatos imediatos /

110


3.

todo temor desperdiçado na possibilidade da abdução, no tenebroso experimento genético forçado a bordo da nave de um suposto inimigo, da sedução perniciosa ao abuso sexual, o estupro inter-espécies com terráqueos ( crianças homens mulheres ) e os mais perigosos seres do espaço profundo, assassinos, cruéis caçadores babando ácidas gelatinas por membranas, ventosas, mandíbulas /

111


4.

até que esse velho espécime de homo sapiens, astrônomo e cosmonauta, apartado há tanto tempo do familiar habitat terreno, convertase ele mesmo noutro objeto de si próprio, emulado à zona autônoma de todo estranhamento, ao descobrir diante do espelho um outro ser ( nele ) que, de esguelha, lhe devolve o olhar, entre temerário e aterrorizado, por não mais reconhecer-se com exclusividade... humano /

112


5.

há algo o alterando, submetido a alguma espécie inédita de autoconsciência, ele é esse algo irradiado ao se dar conta de que toda aquela parcela da diferença, da alteridade outrora incapaz de se deixar perceber pelo lado sombroso da esfera, agora emerge nele mesmo, diversa, e dele desperta o lado iluminado pela luz d’alguma estrela ( dentro ) de algum canal interno ou ecrã até então indescobrível /

113


6.

e se revela a parcela outrora alienada, um alienígena reintegrado ao corpo inexplorado, mas por outro lado o mesmo velho amigo conhecido, reencontrado pelo canto do olho, num relance apto a apreender toda estranheza até então buscada tão longe, fora da própria órbita, ou apenas pressentida como a caminho, que finalmente abandona a crisálida ( como o alien parasita arrebenta o ventre do hospedeiro ) e espalha o novo par de asas,

114


7.

ou alinha sua cauda de serpente, pois se manteve latente, inerte ou à deriva, a mutação manifestada pela primeira vez, às claras, de um novo ente, invadido por todos os chakras e como habitante do caos, do mesmo caldo no caldeirão incendiado de todas as galáxias, entende o nirvana ao alcance, o prana trespassando a malha do tempo e do espaço onde não há mais o que alcançar, nem onde chegar, ( é lá ), além do vácuo obscuro que se supôs o único guardador gerativo de todos os segredos

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8.

passa a ser apenas o espelho do próprio cosmonauta, pela primeira vez tão estranho a si mesmo que, convertido em avatar, humildemente se declara no panteão de inumeráveis filhos do universo ( supostamente únicos e abandonados à vaidade por trás dessa verdade ) agora enxerga os irmãos, na diferença radical, a mais extrema igualdade entre gêmeos idênticos, ainda assim tão diferentes viajantes do tempo e de tantos mundos, como oriundos das muitas parcelas de uma mesma alma completada

116


9.

nela: o todo; no absoluto o jogo de tantos vidros refletidos no centro do círculo ( da estrela, a interseção de seus raios ultravioleta ) e enquanto navega a anos-luz da Terra, o astronauta remotamente humano reconhece na própria essência unigênita tantas partes alienígenas, que se voltasse pra casa como no passe de mágica de um deus ex-machina, os humanos, tendo mudado tanto, já não o reconheceriam e todos os contatos imediatos, há quanto aguardados

117


10.

fossem com o mesmo viajor outrora humano voltando e voltando e voltando de tão longe e cada vez de um outro ponto ou por novos portais supra-dimensionais, dignos dos clássicos sci-fi, que alterassem fundamentalmente uma mesma natureza, a cada vez lhe emprestando uma nova maneira ou aparência, como o que difere macacos de homens, ou morlocks de elois: eis, por fim, o paradoxo e a resposta para esta mesma antiga pergunta : “SE NASCI A SÓS EM MIM MESMO, ASSIM, JÁ NÃO ESTAREI SEMPRE SOZINHO NO COSMOS SE TODA SOLITUDE SE ESVAI DE MIM?”

118


o suprimento de oxigênio

a crescente tensão da consulta periódica à reserva de gases respiráveis; a rotina convertida em sentença de morte ante a fantasia vencida da chegada à mais implausível destinação outrora prometida; do lado de fora da astronave, supostamente rumo a marte, todo dorso do lustroso negror só antecipa a asfixia que virá; é sem atrito o novo altar do sacrifício untado em química anticorrosiva, ícaro submetido às invisíveis guilhotinas, oscila entre os sintomas ainda controláveis da discreta cianose, da sufocação inadiável;

todo possível idílio científico se esvai enquanto drasticamente decai a absorção de O2 pelos dois únicos pulmões esquecidos da suja bolha irrespirada da velha atmosfera original; enquanto cogita extrair a própria vida, se aferra à interrogação vazia: haverá notícia? 119


major tom

I.

tudo é queda tudo se desconecta tudo busca a reconexão

[ o chão retirado das pernas ( um alien de mil abraços o espera de garras armadas, bocarra aberta ) a perda repentina do equilíbrio que sustenta a coluna ereta é certa ] todos os instrumentos estão loucos pifam radares sensores o cálculo das coordenadas falha [ a unidade se desfaz, espalha, se esvai no fracasso: cai a esmo no limbo do erro no ermo] tudo é blefe tudo se desconcerta tudo persegue seu próprio reset 120


II.

[ os braços como tentáculos descompassados arranham o ar à procura de apoio, de outro centro de gravidade para o corpo; o peso dos ossos é sólido, mas ilusório; tudo despenca ao contrário, o desespero cresce à narcose de uma estranha queda sem direção, aberta sob nenhum declive; o mundo, memória íngreme, se liquefaz ( lá no fundo... haverá paz, haverá amor no futuro, haverá justiça? ) ] perdido no espaço o astronauta não está | nunca esteve onde o fizeram crer [ o Céu há muito descolou da Terra; adrenalina liberada o caos da pressão arterial a tensão | o medo| o risco no vácuo ou no abismo o absoluto precipício ]

121


e se tenta enxergar o breu do túnel, que pouco a pouco, ataca e engole cada última parte que resta, algo rosna, olhos acesos espreitam, há tanto horror, o que será de você, a alma desnudada do próprio corpo? agora você sabe que não restou lugar para ir ou estar onde tudo é queda tudo desagrega tudo almeja regenerar

[ a carcaça ]

e fracassa fra ca ssa

[ tanto quanto a carapaça ] fra ca s s a [ não sustém a própria asa ] fracass

122

zzz

zz

z

[.]


III.

até que um buraco negro o engula pela borda incontornável, muito além ( do ponto ) do possível retorno a esta altura lúgubre a gula à explosão de luz alguma

enquanto um halo traga todo o aço dos aparatos algo mastiga a carne do espaçonauta

e urra o enorme córtice de matéria escura que o absorve

see you soon, major tom hope to hear from you… screams, echoes and gloom 123


o anjo cromado

parece sorrir enquanto se oculta, no lado escuro de mim e disso apenas um fraco e indistinguível vestígio recebo de esguelha, (ora temendo perceber-lhe o cenho, ora querendo ver, ouvir, sabê-lo) mas é fugidio e esquivo seu reflexo híbrido, imerso, em segredo, num labirinto de espelhos quase ouço sua voz metálica, revelando a fala de efeito, comunicando finalmente a verdade, dizendo todo o mistério... usará como eu um traje, um elmo, aparelhagem? depois me convenço que ele aguarda, calado, acompanhando a trajetória que, secreta, nem eu mesmo tive por certa

124


terão carregado de fato uma alma meus parcos átomos de carbono ? quando finalmente alcançar a outra ponta da galáxia terá ficado aqui comigo ou terei deixado lá, de onde vim, lento, quase relapso, embora sedento, minha tamanha lembrança ? será deus, o demônio ou o vazio, esse anjo de cromo, com o qual, a minha própria imagem, projetada, dança ?

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astronauta de mármore Look out your window I can see his light If we can sparkle he may land tonight Don’t tell your poppa or hell get us locked up in fright [...] There’s a starman waiting in the sky Hed like to come and meet us But he thinks he’d blow our minds David Bowie , “Starman”, 1972

e então n’algum vórtex do espaço, n’algum vértice do vácuo pairará ainda o traje, em perfeito estado ( ou quase ) algum tecido puído ( ou íntegro ) indo, como uma nau à deriva, são mastros os braços em cruz e conforme a imagem se condensa n’algum lugar da SUA imaginação que a investiga lançando um flutuante olhar de telescópio para próximo da escotilha ( os múltiplos estágios no quadro a quadro – como no zoom in mútuo e lento de um monóculo de encontro a outro ) 126


à procura de algo familiar e humano ( um rosto? ), buscaria descobrir se há lá dentro o cadáver inconsútil de um pioneiro desgarrado ou tão somente constatar-lhe o pesaroso óbito e agora bem de perto, mas tão perto que a SUA respiração quase nubla o vidro da abertura, por onde, do outro lado do pano ( essa fronteira final – a da leitura ), VOCÊ possa captar-lhe algum tremor no mármore das pálpebras, e ao fitar do morto a pétrea face – cara a cara – a perscrutar o segredo de sua última metáfora, então, de súbito, no susto, o olho deste herói ( apenas o astronauta morto ) R E A B R A

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Parte 6 – Adendum: autor e leitor entram no tesseract Do you remember a guy that’s been In such an early song I’ve heard a rumor from Ground Control Oh no, don’t say it’s true [...] Ashes to ashes, funk to funky We know Major Tom’s a junkie Strung out in heaven’s high Hitting an all-time low David Bowie , “Ashes to ashes”, 1980

Look up here, I’m in heaven I’ve got scars that can’t be seen I’ve got drama, can’t be stolen Everybody knows me now Look up here, man, I’m in danger I’ve got nothing left to lose [...] This way or no way You know I’ll be free David Bowie, “Lazarus”, 2016



o livro está escrito, e o espaço sideral talvez não seja a fronteira final;

( estou olhando você neste instante enquanto me lê e meu par de olhos ávidos vem destas parcas palavras de encontro à tua leitura, capaz de recodificar a escritura)

viajamos ambos no hiperespaço destas páginas, – folheado \\\ /// dobrado – para nos alcançarmos a partir desse ponto ( de onde não haverá como voltar )

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prossiga por sua própria conta e risco é possível que perca o equilíbrio embaralhe a vista: por favor...

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desista


apenas verborragia está por vir, quiçá alguma sentimentalidade personalista

por favor...

não insista

farei tristíssimas confissões repreensíveis oriundas de traumas fincados sob dados autobiográficos talvez você não queira ler o que virá

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e muito embora a tal teoria das cordas nos reĂşna

>>> autor

>>> do livro

</>

>\<

[ estaremos inquietantemente unidos ]

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leitor <<<

Ă obra <<<


é bem possível que você não vá querer ler isso

já Heisenberg afirmou, ao lê-lo, que este livro pode ser, ao mesmo tempo, dependendo do coração do leitor, o trajeto | o fim | o começo prossiga

por sua própria

( qual era mesmo a lição do Major Tom ? )

conta e risco

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entresstrellas Para meus avós, Permínia Moreira Silva e Francisco Silva, in memoriam [...] Não vás tão docilmente nessa noite linda; Que a velhice arda e brade ao término do dia; Clama, clama contra o apagar da luz que finda [...] Dylan Thomas (1914-1953)

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foi num relance, de esguelha, a imagem capturada por acidente como quando certa cadeia de eventos, inteira, é sequestrada de repente por algum outro acontecimento de maior grandeza na escala da realidade como quando julgamos nossa direção tão segura n’alguma rota inarredável até que algo julgado impossível possa subitamente tomar de assalto qualquer um dos cinco sentidos acima dos outros quatro, mas apenas uma questão de tempo até que todos estejam engajados, sequestrados, reféns daquela imagem capturada por acidente, de esguelha, pelo canto do olho esquerdo | como quando uma única centelha, mínima e insignificante, e porque gerada em hora tão imprópria – ou no único tempo certo, por algum desígnio inapreensível – no momento mesmo em que se esperaria o oposto plácido instalado num oásis de tranquilidade: então BOOM! ...e tudo explode como


quando algo tão sólido fosse capaz de desaparecer bem diante dos olhos como quando um sátiro se deixasse deprimir a ponto de fazer chorar a alma mais insensível | e se fosse possível uma imagem exercer tamanho horror e fascínio seria essa, que capturei num relance, de esguelha, pelo canto do olho despreparado mas perigosamente atraído a esta outra galáxia desconhecida, posto em rota de colisão com esse áspero quasar arrancando com violência uma das últimas camadas da inocência como a tomada deste atalho, a ponte-einstein-rosen entre duas estrelas tão longínquas, do lar calmo da infância ao caos de um inferno velho em alguns míseros instantes, da certeza à dúvida, da vida à morte e sua total e irremediável verdade sob o aprendizado quase instantâneo da decrepitude num único e solitário segundo durando a eternidade | esta imagem a preencher com terror e receio – sem preparo ou aviso prévio – um espaço inexplorado mas habitado pela espécie de esperança que agora está posta à prova, em choque, pelo ângulo exato de um raio de sol que, (num entardecer perdido há 200 anos) tendo atravessado o filtro da vidraça canelada do quarto interno do apartamento onde fui criado atingiu em cheio a perna descoberta de minha avó deitada há um ano sobre o colchão “caixa de ovo” em meio à rotina de remédios e fisioterapia em casa e à espera da morte que viria ceifar seus últimos vestígios de força física e memória-de-quando-foi-jovem porque a esta altura a mente lhe pregava peças, misturava as épocas, e ao me chamar de “papai” via no meu rosto as feições do genitor amalgamadas às minhas, o neto que ela costumava chamar de “meu netinho, tão bonitinho” com a voz já fina e debilitada, que pigarreava e lá estava ele, como uma estrela negra exercendo sua estranha força gravitacional sobre o meu olhar teimoso de menino destemido, que tentava desvendar de onde vinha o

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brilho escuro no entanto o mais reluzente, o mais luzidio brilho jamais visto pelo meu olhar de guri bravio, metido a sabedor de tudo, o presumido dono do mundo lá estava ele, aquele rasgo mergulhado em treva mas trazendo um clarão de raio oriundo do sol, que apenas naquele exato ângulo, naquele momento em que o dia já se despia da luz e o astro maior emitia seu último grito luminoso, justo esse, que tendo atravessado o filtro do vidro canelado da janela do quarto interno onde minha avó jazia há um ano quase sem se mexer, atingiu em cheio o tão improvável alvo na perna descoberta da pobre e resoluta velha que mobilizava a família por intermédio do seu sofrimento, e sua dor se convertia pouco a pouco (como foi também a doença do avô) no pilar ao redor do qual se organizavam os familiares que seguiam levando a cabo o inevitável, o provimento do conforto para prolongar a estadia no planeta Terra da alma daquela senhora tão generosa, a mão sábia e amiga, cozinheira, esposa, heroína, mãe adotiva da minha própria mãe, que agora sofria com a dor da própria partida, sendo preparada aos poucos | lá estava ela, sob a moldura de uma escara que se arreganhava, a mais escancarada entre outras mais recolhidas – uma constelação de feridas – a prótese de platina implantada no osso do fêmur quebrado anos antes, aparecendo, lustrosa pela carne dentro como joia, como ouro atingido em cheio por aquele raio de sol improvável, quiçá o último daquela tarde, no exato momento em que ao atravessar o vidro canelado da janela morrendo, explodiu no meu canto do olho pego de surpresa, meu corpo rumo ao banheiro, enquanto virava à direita eu me detive, a cabeça virando em câmera lenta, é como me lembro daquele momento, minhas pernas tremeram, e eu entendi de onde vinha o brilho, era um máquina clássica, uma perfeita reação em cadeia, um mecanismo de espelhos – o sol, o


vidro, o raio, a platina, a carne frágil como um andrajo, como tecido puído – cujas camadas deslizavam umas sobre as outras me horrorizando ao mesmo tempo em que eu me forçava a testemunhar o brilho mais intenso e ele vinha das entranhas, vinha na distância, de outra galáxia onde uma velha estrela colapsava, ao mesmo tempo vinha de dentro da perna descoberta de minha avó, o metal reluzindo dentro da perna fina, que definhava há um ano naquela mesma cama em que dormiu com o marido, o meu avô já falecido mas tudo isso foi há mais de 200 anos | tudo isso esteve esquecido na distância de uma memória mal irrigada, em mim, lembro que era lindo e horrível, o ferimento aberto, as bordas secas da escara guarnecendo o pedaço metálico, que brilhava | tudo isso esteve longe, noutra galáxia, numa inesgotável supernova, distante de mim por milênios no esquecimento, bem separadas as ordens, da necrológica à cronológica por uma estrela de nêutrons mas agora, por algum desígnio não completamente compreendido na engenharia da emoção – um filme, uma só cena, um som, o nome de um poema – me sinto visitado por essa astronomia povoada por metáforas do indecifrável, algo entre ciência e arte, pela presença da morte, buracos negros onde tênebras se dobram entre o espaço-tempo, deslocando-o uma janela lançada ao infinito na qual revivo aquele momento da vida onde o choque emocional provocou uma ordem estética envolvendo a comprovação cabal da finitude, cruel é certo, mas maravilhosa | e se agora ela é trazida de volta, vindo à tona com a mesma força daquela imagem que capturei de esguelha, por acidente, talvez seja para que eu estique um pedaço de mim e o lance ao outro lado do tempo, atravessando essa ponte, essa janela que agora reabre e eu sei que mesmo impossível uma viagem no tempo, na emoção tudo é realizável e me proponho curar

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em mim mesmo, nessa viagem, aquela imagem, curar da minha avó, dentro de mim, todas as feridas febris, limpá-las, fechá-las, devolver o ouro daquele metal exposto, ao osso porque alguns brilhos que se oferecem aos olhos são perigos | por mais luzidios, são nada além de armadilhas e nem tudo que brilha é bonito e existe essa sombra, protegida, a servir de abrigo àquilo que seria melhor não ter sido visto tanto faz se por homens ou por meninos por isso libero agora daquela imagem a carga mais pesada, como quem conjura o anjo, como quem dança pela chuva, devolvo à escuridão o que me perturba, ao mesmo tempo em que a ilumino como o símbolo da finitude inevitável... porque aquela fratura da perna frágil da velha avó depois da queda, um dia foi curada pelo metal dourado...

(a da vida, a do livro) quando prestes a virar a última página, recém-saído da nave, de repente me descubro eu mesmo, sou autor – poeta – e astronauta e ainda acoplado aos aparatos, corro para encontrar minha avó onde nossa dupla cura auscultaria, a dela, a da perna, também a do óbito que viria para suceder o do avô; a minha, a desta memória perdida nalguma extrema fronteira, da dor revivida & exorcizada, com tinta & palavras, da saudade tanta nesta extrema viagem como a última aventura nos limites do humano... 140


sombra & relâmpago abismo & cintilação quasares & nebulosas escuras galáxias jovens & supernovas vida & morte em alternância são membranas por trás de toda & qualquer manifestação disponível o alfa & o ômega da via láctea enfim, deste único & mesmíssimo perpétuo & cósmico... nosso eternamente revivido & repetido... oroboro do possível

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“Acho que as missões futuras devem incluir um poeta, [...] um filósofo. Assim poderíamos ter uma idéia melhor do que vimos aqui.” Michael Collins, integrante da missão Apolo 11

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[ p.s.: ]

Boa parte dos poemas que compõem este livro foi escrita e reescrita ao som desta playlist que, além de mobilizar musicalmente o meu afeto pela ficção científica, fortaleceu o sentimento com o qual convivi para produzir esta espécie de réquiem para o Major Tom, eterno astronauta de Bowie (e eu gostaria que ele estivesse vivo, muito embora todo fã, por mais fervoroso, saiba que, quando se vai o artista a obra fica, e pelo menos no íntimo sente que ele permanecerá infinito), Então fiquem com a lista:

“Hallo Spaceboy”, David Bowie/ Brian Eno, 1996 “Space Oddity”, David Bowie, 1969 [também nas versões de Peter Murphy, Natalie Merchant, Tangerine Dream e Seu Jorge] “Rocket man”, Elton John, 1972 [também na versão de My Morning Jacket]

“Bouncin’ Off The Walls”, Matthew Wilder, 1984

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“Major Tom (Coming Home)”, Peter Schiling, 1983 [também nas versões (a francesa) de Plastic Bertrand e Apoptygma Berzerk] “Moonage Daydream”, David Bowie, 1971 “Mrs. Major Tom”, K.I.A., 2003 “Starman”, David Bowie, 1972

“Ashes to ashes”, David Bowie, 1980

As faixas “Blackstar” e “Lazarus”, do último álbum do Bowie, “Blackstar”, de 2016

A trilha sonora de Hans Zimmer para o filme “Interstellar”, de Chris Nolan, de 2014 boa (re)leitura / boa audição 145



Mapa para aproximação da nebulosa NGZ2016, ou Pop, Poesia e pensamento em ‘Gravidade zero’ Ó grande noite alucinada e pura, Brilhante e escura, Bordada de astros. Sophia de Mello Breyner Andresen

Por onde começar, diante do espaço infinito que é proposto ou descortinado por Gravidade Zero? Por onde, diante da trama de fios que se trançam, oblíquos e ariscos, complexa estrutura subjacente ao éter primevo do aparente vácuo interposto entre os portos afastados por distâncias inomináveis? Poesia de incontáveis recursos, nômade pelo caminho pontuado por antenas de todo tipo, regurgitando ou capturando sinais – garrafas de náufrago – que vagam pelo espaço-tempo, assoma pela escotilha a nebulosa a ser abordada, organismo que instiga e urge decifrar aplicando a ele possíveis ordenadas e abscissas, eixos x, y e z para tentar formar uma malha que possa abraçar o que nos escapa, eis que os recursos da tecnologia – interpretação, hermenêutica – convulsionam-se diante do que não compreendemos inteiramente. Mas há sempre algo de perene, permanência ou possível mímesis, uma fração reconhecível ou estrutura emerge e o olho busca a ponte entre o

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que vê e seu museu particular, sua mnemosine portátil, a chave para decifrar os códigos observados. Poemas são equações complexas, dotadas de singularidade e que possuem pelo menos dois eixos: aquilo para o quê eles olham e o modo como olham, ou como dizem o que olham; figuram este processo pelas relações horizontais e verticais no espaço da página, entre palavras consideradas isoladamente e no conjunto das relações entre todas as palavras do poema. À equação temos que acrescentar o eixo que a espacializa, o eixo do observador em seu telescópio, o leitor, que pode abordá-las de diversos modos, em geral simultaneamente – o antigo modo romântico de ler (e sentir) os poemas, o que estabelece juízos racionais, o que é atravessado por ideologias políticas, o que se ampara em teorias estéticas, o que tem em mira a tradição poética etc.; poemas são artefatos a um só tempo estéticos e políticos, afirmação que é, em última instância, uma redundância, visto que estética e política são uma unidade indissociável, como demonstra Terry Eagleton. Alexandre Guarnieri apresenta em Gravidade Zero a sua consciência radical deste campo ampliado da poesia, pela racionalidade construtiva que aplica à materialidade – sempre contraditória – dos fenômenos sociais e existenciais convertidos em procedimentos retóricos, a retórica particular da poesia, aberta e descontínua em suas cesuras. Os procedimentos que os poemas destas páginas utilizam nos lembram o mito de Perseu, do modo como o observou Ítalo Calvino, “uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo”: ao olhar o mundo/a medusa pelo espelho/pelo poema, o poeta pode apropriar-se do/reelaborar o mundo. Não à toa o mito de Perseu (o Major Tom de Guarnieri) está ligado à


origem da poesia, porque do sangue da Medusa nasce o Pégaso, cavalo alado que com uma patada faz nascer no Monte Hélicon a fonte em que as Musas vão beber e em torno da qual se reúnem para cantar e dançar. Mirando Bowie, em sua antropofagia personalíssima, o poeta olha o mundo pelo espelho dos poemas que ergue como atos políticos, nos quais “quasares intrasponíveis, perversas cassiopeias,/ cordas, singularidades quânticas & buracos brancos/ dançam a sós no baile excêntrico do pensamento”. Neste caminho, vamos perseguir algumas das possíveis chaves que dão acesso ao universo que temos em mãos. Uma possível chave interpretativa dos códigos inscritos nos poemas de Gravidade Zero (doravante GZ) é a diluição do eu lírico, chave, aliás, cara a Alexandre Guarnieri em seus dois primeiros livros – Casa das Máquinas (2011) e Corpo de Festim (2014) -, explicitada no poema ‘HAL 9000’: “o ego/ em gravidade zero/ (já tão diluído o eu lírico)/ espera a derradeira diluição.” HAL é um Heuristically programmed ALgorithmic computer, ou computador algorítmico heuristicamente programado, artefato com avançada inteligência artificial que é personagem da Odisséia Espacial de Arthur C. Clarke, adaptada para o cinema por Stanley Kubrick em 1968 – mas Guarnieri nos alerta que HAL está “ávido por um coração humano/ ou uma alma/ como pinocchio/ frankenstein”, porque há algo de falho não só no criador, mas na criatura, a tecnologia, talvez pelo espelhamento. Por esta via podemos ver o desastre como uma segunda chave de acesso aos códigos de GZ. David Bowie pode ter composto a canção ‘Space Oddity’ em 1968, já que apareceu em álbum um ano depois - este ano emblemático também nos leva a um dos últimos livros de Maurice Blanchot, que define o desastre como a saída de um espaço histórico, uma ruptura, separação

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da estrela (a ‘Black Star’ de Bowie?), num corte do campo gravitacional que nos mantinha presos a noções centrais – ser, Deus, sujeito; não gravitamos mais em torno desse astro (des-astro, “não estar no mundo sob os astros”), estamos no território da queda, do vazio, plena exterioridade, mas é de lá, deste fora, que se pensa: “Pensar, isso seria nomear (chamar) o desastre como as costas do pensamento” ou “Nós pressentimos que o desastre é o pensamento” ou “Querer escrever, que absurdo: escrever é a decadência do querer, como a perda do poder, a queda da cadência, o desastre ainda”. Como nos astropoemas, os “fragmentos do irrecuperável diário do major tom”, o desastre estaria então às costas do pensamento (e do seu campo de visão, o desastre seria o abandono – metafórico, sempre - do lar), mas também no seu litoral, sua fronteira, limiar entre dois campos heterogêneos, atmosfera e vácuo. Munidos desta noção podemos empreender uma aproximação a GZ pela ideia de limite: “e são dois cuja proximidade física/ elimina toda ameaça de ultrapassagem/ pois mesmo colados, ou lado a lado/ ocupam extremos semânticos”. Os nossos limites do mundo são os limites da linguagem, e o conceito intuitivo de limite, em matemática, que é uma linguagem, tem uma instigante confluência com a escrita e a fala, encenando a problemática questão dos objetos e das palavras que devem significá-los – pelo lado da matemática, uma série ordinal que se aproxima de um número, tornando-se cada vez mais infinitesimal, mas que nunca encosta no número; no campo da escrita, as palavras que nos dão notícias vagas das coisas, mas que sempre preservarão o fundo indizível do que se está tentando significar (“tudo é blefe/ tudo se desconcerta/ tudo persegue/ seu próprio rewind”) - de algum modo, estamos imersos em uma retórica


pregressa, que não dá conta de seguir de perto e representar os eventos da contemporaneidade: o poema é um artefato que precisa erguer-se com seus poderes de articulação e sustentação de certas configurações da realidade. GZ não empreende apenas o caminho em direção ao futuro (tecnológico, interestelar): Major Tom leva para o espaço o seu museu particular, sua mnemosine, seu diálogo com a tradição que é, talvez, a chave mais singular desta viagem, o botão vermelho que catapulta sua cadeira em caso de acidente, ou o interlocutor imprescindível no isolamento dos espaços infinitos e silenciosos – e esta interlocução determina ao ‘argonauta perdido’ o único caminho possível, o último recurso dado ao destino humano: a poesia. Aby Warburg propôs em 1929: “Da influência do antigo. Esta história é fabulosa para contar. História de fantasmas para gente grande”; e assim vemos, em GZ, um espetáculo de imagens do antigo e seus significados cruzando a tela de nossas retinas (tão fatigadas), como contínuo delírio de ‘solar’ (“as hélices do leste o expelem/ sexy dédalo de pétalas/ apolíneo/ insígnia de cristas agressivas/ touro d’ouro....”), ou a ode às imagens clássicas e ancestrais que é ‘lunar’ (“ninfa entre fêmeas/ .... / gigantesca gota de mercúrio flutua/ sobre a cúpula da populosa urbe/...”). Neste grande panteão há espaço para experiências outras, de diversos tempos, como, por exemplo, Augusto dos Anjos. A miríade de visões surpreendentes e cientificizantes, quando aproxima vocábulos eruditos com outros coloquiais, suas rimas surpreendentes e ritmos que nos conduzem à vertigem (“Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda./ Negra paixão congênita, bastarda,/ Do seu zooplasma ofídico resulta...”, em Monólogo de uma sombra). O “sincretismo linguístico” que nele observa Anatol Rosenfeld também podemos encontrar, atualizado, em Guarnieri: enquanto o poeta paraibano se

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utiliza de paroxismos, os poemas de GZ utilizam a descrição obsessiva que nos apresenta a constelação de cultura em que estamos mergulhados, indo dos mitos ao discurso que mapeia e interroga a tecnologia: “o solipsismo gnosiológico da sonda”, “o icônico traje branco/ terá como matéria-prima a poliamida e, maleável, o kevlar”, “tiveram por combustíveis reativos/ as novas pólvoras hipergólicas” e diversos outros exemplos. Como não reconhecer, também, na Laika guarnieriana (essa cadela que ocupou o imaginário de muitas infâncias com sua solidão e seu destino entre maravilhoso e cruel – completamente cruel e nada maravilhoso, compreendemos hoje, como adultos) os ecos de Baleia, uma das personagens mais fascinantes da literatura brasileira? O poema nos diz: “pondera sobre como laika teria ganido,/ no limiar entre a vida e a desaparição,/ o desespero de não emitir som,/ sem osso, ou carinho (o rabo que não abanou)”. Sem falar nas ressonâncias do convite à reflexão feito ao leitor por Eliot em Morte pela água acerca do mesmo absurdo da existência – “Considera a Flebas, que foi um dia alto e belo como tu.” O vivo museu constelado em GZ também nos remete a Bilac e seu olhar para as estrelas, Gullar perscrutando o silêncio da Via Láctea – “coisa de homem/ esse bicho/ estelar/ que sonha/ (e luta)” -, Gilberto Gil e sua Lunik 9. E, claro, David Bowie, Peter Schilling, Kraftwerk, Joy Division. Mas não para por aí. Para entrarmos em GZ, um dos pontos do mapa é a leveza: só submetidos a ela (a negação do peso) podemos entender o quanto o sentido da gravidade nos marca. Neste sentido, mesmo a inversão provisória e mutante que Kundera faz do pressuposto de Parmênides de que a leveza é negativa e o peso (a gravidade da existência), positivo, por meio do conceito do eterno retorno


nietzschiano, pela sua contraface ética. A questão não se resolve de modo simples: os opostos simétricos se alternavam e se alternam, e os significados, “...ambos se digladiavam/ numa ferrenha e lenta/ batalha aérea/ em gravidade zero”, como se vê na Alegoria da Fortuna, pintada por Giorgio Vasari em 1542. A última chave que apresentamos para os códigos de GZ, entre as inúmeras possíveis, é a sintaxe complexa: observar o poema é como observar um circuito (não à toa chamado de) impresso, objeto pedindo por decifração para que sua energia circule por meio dele e produza efeitos, para que a energia – as palavras – atinja o leitor e mova sinapses, teses, antíteses, sínteses. O livro às vezes exibe seus mecanismos, como no jogo “rádio/ruído/ruína/ erro/enredo” e “humano/mesmo/fantasma” (ambos em ‘acidente aéreo), encadeando espectros sonoros que reverberam significados (no espaço?) no tão antigo e ainda presente consórcio entre som e sentido cuja excelência caracteriza – não de forma exclusiva, claro, porque há vias opostas – um bom poema. A vertigem (das palavras) já prevista na epifania do menino (em ‘estrela temporã’), a visão do que abdicaria pelo mergulho no espaço (das palavras) – a Terra, a fé, a família -, recebendo em troca apenas delírio, óleo diesel (combustível de seu motor de palavras), velocidade (a arte de atingir largas distâncias em menos tempo e a impossibilidade de ver/ler os detalhes insignificantes do percurso), o medo. Ainda haveria a mencionar pelo menos os conceitos de dobra e paralaxe, mas deixamos esta viagem a quem desfruta o universo destas páginas. Por estes mecanismos (que não esgotam os acessos ao livro), GZ constela as imagens e as coloca em movimento; no entanto, a ida para o espaço exterior à atmosfera não é uma fuga: o espaço é um organismo infinito, tanto quanto a linguagem, em

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que se movem diversas temporalidades num sutil equilíbrio, viajando pelas dobras espaciais que encurvam o espaço-tempo, os buracos de minhoca ou wormholes. Deste salto (ou mergulho) viajamos entre copérnicos, ptolomeus, colombos, pequods, hispaniolas, ninfas, sílfides, morlocks e aliens, até chegarmos a major tom e seus astropoemas guarnierianos: “que destino um astronauta perdido/sem ar, carinho ou abrigo/ (entre hordas de supernovas/ escolheria, senão o da poesia?” Can you hear, me, leitor tripulante de GZ, - meu igual, meu irmão? /Pedra do Maroca, Copacabana, Rio de Janeiro, dezembro de 2016 22º 58’ 21,85” / 43º 11’ 35,75” / altitude indeterminada/

Nuno Rau É carioca, arquiteto e professor de história da arte, mestre em história da arquitetura, e tem poemas publicados em revistas, sites e antologias. Co-organizou a Antologia Escriptonita: pop/oesia, mitologia-remix & super-heróis de gibi (Editora Patuá, 2016). É um dos editores da revista eletrônica mallarmargens.com

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A gravidade da autoanulação The progress of an artist is a continual self-sacrifice, a continual extinction of personality. (T.S.Eliot, ‘The Tradition and the Individual Talent’, 1919.

Com Gravidade Zero, Alexandre Guarnieri volta aos olhos dos interessados, mostrando que a poesia se mantém e que o Brasil não é só a repulsiva lixeira do dia-a-dia político-social. Talvez por isso mesmo, desta vez o poeta se esquiva à convivência direta com os seus semelhantes (e dessemelhantes), uma vez que o planeta está muito perigoso, e infinitamente chato: em seu terceiro livro, o artista reafirma o ofício e estiliza poeticamente a aventura da corrida espacial. É agora, portanto, uma experiência inequivocamente de ruptura, de dilaceração e gramática mortal. O autor está com o iluminado Roland Barthes de “The Death of the Author” (ensaio originalmente publicado em inglês, em 1967, no jornal americano Aspen): mais do que nunca, ou seja, bem além de sua Casa das Máquinas e seu Corpo de Festim - onde o processo, até mesmo nesse título, já se delineava claramente -, Guarnieri trabalha sobre uma espécie de tapeçaria cultural, que se sobrepõe a qualquer pretensão de países “soberanos”, e em que ele vai engastando a pouco e pouco, pacientemente, a substância de sua poesia. Barthes nos mostra, no estudo mencionado, como o “text is a tissue (or fabric) of quotations”, drawn from

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“innumerable centers of culture”, rather than from one, individual experience.” Dessa forma se reapresenta Guarnieri, sob a aura de seu ídolo maior, David Bowie, e arrolando fragmentos, fagulhas, estilhaços de um showbiz que se tornou sua própria atmosfera, sua bolha gigantesca de condicionamentos e atitudes. Assim caminha e escreve por conseguinte, crivando de sua criação imagística o painel da cultura de massa em que se situa: se esta se mostra capaz de glorificar a nova expedição pelo espaço, a aventura do império que já se não contenta com seu planeta mas se propõe fundar colônias siderais, até aqui antevistas como de pó e pedra mais uns resquícios de gelo, o poeta denuncia, incrustado, “o mofo, fatal,/como no miolo de uma flor desenraizada.” Deduz, ante uma calamidade sempre iminente, “que a explosão, uma mancha abstrata, tornara a noite mais clara” e, impessoal, pode-se dar ao luxo de mostrar-se autobiográfico “da sacada da casa/onde gostava de encontrar constelações.” Sabe prenunciar o compulsivo autossacrifício quando “antevia o exílio, o martírio,/como nos santos do catolicismo;” e pode cunhar a metonímia já desumanizante em “nos capacetes há cápsulas blindadas,/ crânios sob balaclavas)>>”. Mas Alexandre Guarnieri, que equipara a chamada Fórmula 1 às delirantes viagens espaciais (metaforizando, em diversos segmentos, a obsessão humana pela velocidade), e lhe acrescenta outros veículos terrestres como o trem – bem como sua versão do ferromodelismo - , insere nesse quadro uma comovedora homenagem à cachorra Laika, que acaba por encarnar todo o desastre do hominídeo escritor. Não o afirma em proposições regulares: sugere-o, admiravelmente, com uma sucessão de fanopeias olfativas, assumindo desse modo o ponto de vista da martirizada. É um momento de leitura difícil, dada a terrível constrição dramática.


Guarnieri, aliás, acentua as percussões dramáticas. Marca mesmo uma nota perversa em “Challenger, in Memoriam”, na metáfora “desta pequena fração do sonho americano, com aproximadamente 500kg de carne”. É uma antecipação, digamos assim, com a ironia “comercial” de que “em caso de falha ou explosão / não aceitamos devolução,” do catastrófico sacrifício dos arrojados participantes dessa “última gaiola” dos pobres homens-pássaros, no registro figurativo do escritor. Apesar disso, o artista injeta sua pesquisa de velocidade na aliteração dos vês, p. ex., que se perseguem no “renova sua/ válvula de voar”, e prossegue na escolha vocabular de vértice, invisível, vazia, devoram, inverossímil, ávidos etc. De qualquer modo, a paisagem que acha em Marte há de animá-lo menos que o panorama moral lá do espaço brasileiro: a inércia toma conta de tudo, pois “em Marte, só mesmo a morte,/ sólida, gelada,/em total isolamento”. Mas quem trabalha com a palavra poética tem de ser senhor do léxico de sua língua e da tecnologia de seu tempo. Hoje fica bem claro que um cara como Camões, além de tudo, era um sábio na Renascença, nada da humana existência de então lhe era estranho. De igual modo o poeta de hoje tem de lidar com a poliaramida, com o kevlar, com o disfarce, afinal, da esplendorosa indumentária com que se tenta equilibrar a viagem tout court do cosmonauta, seu dilacerante paradoxo autodestrutivo, cuja obrigatoriedade, a certa altura, atinge as raias de um humor ferino, que o poeta expressa recorrendo a “tudo o que se exige dele - astronauta/ou kamikaze - /é que entre na nave/e aceite a viagem”, “embarque”, “vaze”, “apenas vá”, e... “apenas suma, seu grande filho de uma puta.” Mas, um pouco adiante, no poema que deu título ao livro, “Gravidade Zero”, o que pode parecer cosmicamente hiperbólico nessa “tubeira/ direcionando a sísmica propulsão do apocalipse/, o

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ronco ensurdecedor desse vômito do ômega – “, converte-se numa das melhores imagens da nova coletânea, ao associar o autor os assustadores veículos espaciais de hoje aos navios dos grandes navegadores, “pelo espaço das câmaras artificialmente/oxigenadas no grandioso galeão suspenso/cujo nome nos falha (fosse pequod [homenagem ao Melville de Moby Dick] , hispaniola ou nostromo [id. A Joseph Conrad]. Propõe-se, nessa passagem, que nos surpreende pela tocante beleza poética, a perspectiva de uma demiúrgica unicidade do fenômeno histórico e visual na consciência humana. Mas saliente-se ainda, na busca de recriação de um efeito em slow motion, a notação textual ‘concreta’ entre parênteses: “( flu tu a em câ me ra len ta )”. Há que se recriar, porém, o ‘bicho’ traiçoeiro da “Falha Mecânica”, concretizá-lo na tessitura verbal que se desenrola vorazmente, e não por outro motivo impõe-se a alegoria pela qual “a salamandra albina grita/ numa língua falada entre má-/ quinas e microrganismos metalo-/nívoros”, compondo, entre outras figuras, aquela ringing metaphor estranhamente prenunciada por George Whalley (Can., 1915-83). Reparemos na repartição das linhas poéticas ou versos, de sintaxe, na página, totalmente espacial, recurso relativamente novo no discurso de Alexandre Guarnieri. “SOS”, que abre a “Parte 4 – astropoemas”, é momento de singular importância, por seu desvelo com o esforço da comunicação, em que são citadas as diversas formas e tentames empregados, “palavras ávidas/pelo resgate”, nas garrafas dos náufragos, nas canetas “secas pelo calor,/ drenadas pelo sal”. O calor é tratado em sua fonte maior, e “Solar” nos seduz logo com as sinédoques flamejantes em ô tônico de [“aviltam-se as vísceras na álgebra das digestões”]/ “o fogo no esôfago o fogo no estômago/golfo de fogo – o sol – em sua elipse literal”.


Carioca, adorador do sol, o poeta, aqui, se esmera em figurar e recompor seu “incêndio perene”, que diviniza: ”príncipe cíclico pelo céu coroado d’espinhos/absoluto colosso cuspindo istmos masculinos hórus/pássaro carnívoro dos dias como o tórax de um orixá/ sua loura cabeleira diária se perpetua no exercício/ incandescente dessa interminável pira para ícaro”. Decisivo é perceber como o artista antropomorfiza seguidamente o luminoso deus que elege e que, em “Lunar”, como seria de se esperar, lança em transa com a Lua, que conota com a mulher, e com a vulva, hipérboles intempestivas da divisão dos gêneros e papéis, pois a mulher também é mais e mais solar, como lunar, e o homem vice-versa. Mais decisivo ainda, todavia, é vermos como Alexandre Guarnieri ousa em sua nova produção, com diversos títulos que comungam na ciência, na astronomia ou na astrofísica, como “gravitação universal” ou “mecânica celeste”., ou no poema “de amor” que é “Uma noite no motel ciclotron”, início da fissão a um tempo atômica e psíquica do criador literário: numa nudez que envolverá a queda, entre outras, de um “penhoar de nagasaki” (é inevitável, assim, o recorte histórico no tecido cultural), mesclando povos e civilizações, quando “dançarão dervixes invisíveis/ agitados a velocidades indescritíveis, [e] “microscópicos insetos sairão livres/ das jaulas de um subatômico zoológico”, ainda que os amantes só estejam “nus entre partículas,/ fechos rápidos, em meio à floresta/ de táquions”[...]. O poeta investe na mutação das espécies humanóides, antevisão de um processo inapelavelmente aniquilador: “há algo o alterando, submetido a alguma/ espécie inédita de autoconsciência” (a problemática do “duplo”, do “outro”, esmiuçada cosmicamente...). A partir daí, “tudo é queda,/ tudo se desconecta” [...], “todos os instrumentos estão loucos” [...], as equações se desvairam,

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há fórmulas inteiramente fantásticas, o clima é de dissolução e pulverização, Bowie se acrescenta (“Ashes to ashes”), e o extraordinário Dylan Thomas. Passamos então a considerar a obra concluída e, ao mesmo tempo, aperta, junto àquele coup de dés do genial Stéphane Mallarmé, para quem «La Poésie est l’expression, par le langage humain ramené à son rythme essentiel, du sens mystérieux des aspects de l’existence: elle doue ainsi d’authenticité notre séjour et constitue la seule tâche spirituelle.» Mauro Gama

Nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. Poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário. Foi redator em várias revistas, jornais, enciclopédias e dicionários. Publicou Corpo verbal (1964), Anticorpo (1969), Expresso na noite (1982) e Zoozona seguido de Marcas na noite (2008). Traduziu sonetos de Michelangelo (2007) e poemas de Gérard de Nerval (2013). Colabora com a revista eletrônica mallarmargens.com.

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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte.

Foi premiado em 2015 pelo 57o Prêmio Jabuti por seu segundo livro de poemas “Corpo de Festim” (2014). Estreou em livro com “Casa das Máquinas” (2011). Foi um dos organizadores da antologia Escriptoni-

ta (2016). Desde 2012, integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Mantém uma parceria criativa com o multiartista Ale-

xandre Dacosta, juntos são os [versos alexandrinos]. Fã de David Bowie, leu muito gibi de super-herói, viu muito filme sci-fi, ouviu rock e jazz. Continua fazendo todas essas coisas, além de escrever poemas sobre.



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Composto em Cambria e impresso em Pólen Bold 90g/m² em São Paulo para Editora Penalux, em dezembro de 2016.


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