OS PONTOS DE CULTURA COMO BASE MODELO DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE EMERGENCIA CULTURAL ALDIR BLANC

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OS PONTOS DE CULTURA COMO BASE MODELO DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE EMERGENCIA CULTURAL ALDIR BLANC Um relato sobre a rede de Pontos de Cultura de Minas Gerais no âmbito da Lei Aldir Blanc

Fernando Chagas


O1 Pequeno contexto da Pandemia e seus impactos

O2 Impactos da Covid no Setor Cultural

O3 O4 Pontos de Cultura: uma política pública ética

ÍNDICE

A Lei Aldir Blanc


Ficha Técnica

Autoria: Fernando Chagas Ilustração Capa: Anna Cunha Este artigo foi produzido com o apoio do Ponto de Cultura AbraPalavra, por meio da Lei Aldir Blanc MG - Edital Cultura Viva


OS PONTOS DE CULTURA COMO BASE MODELO DE IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE EMERGENCIA CULTURAL ALDIR BLANC Um relato sobre a rede de Pontos de Cultura de Minas Gerais no âmbito da Lei Aldir Blanc


Pequeno contexto da Pandemia e seus impactos É perturbador quando pensamos na maneira como a vida das pessoas foi literalmente interrompida pelo lapso de quase dois anos em praticamente todos os países do mundo frente ao risco envolvido no contágio dessa nova doença, a covid-19, ainda não completamente compreendida e com uma multidão de infectados que não para de crescer. Este trabalho é fruto de uma urgente necessidade de apresentar como os Pontos de Cultura tiveram condições de se articular para superarem parte das dificuldades impostas pela Pandemia e que foram atenuadas por meio da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. De todo modo se faz ainda necessária a criação de mecanismos que possam analisar de forma contundente as consequências da Pandemia para os setores artísticos, criativos e culturais do Brasil afim de contribuírem para a criação de políticas culturais de estado consistentes, universais e efetivas para o setor cultural. Torna-se imprescindível cobrar e observar as intervenções do poder público, como bem destacam Holanda e Lima (2020). Os autores citam a nível federal o Projeto de Lei nº 873/2020 de 2 de abril de 2020, que deu origem a Lei Aldir Blanc, estendendo o auxílio emergencial de seiscentos reais aos profissionais da cultura como uma ação importante. Ações assim deveriam se espalhar pelo Brasil também a nível municipal e estadual. De alguma forma este trabalho quer promover com sua abordagem argumentos para políticas públicas de enfrentamento à crise provocada pela Pandemia no setor cultural que afetou grupos, organizações e pessoas. Pretendemos especificamente mostrar como a rede mineira de Pontos de Cultura foi beneficiada pela Lei Aldir Blanc no enfrentamento a Pandemia.


O ano de 2020 ficará marcado para sempre na história, nesse período a exatos 11 dias do mês de março a OMS1 (Organização Mundial da Saúde) declarava que a Covid-19 doença causada pelo novo Coronavírus Sars-coV-2, se tornava uma Pandemia, ou seja, a disseminação mundial dessa nova doença. Essa situação trouxe inúmeros enfrentamentos para o planeta e para a humanidade não apenas no contexto de saúde sanitária, mas repercutindo impactos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais em escala mundial. A área mais afetada imediatamente pela Pandemia foi o sistema de saúde devido ao grande número de mortos, adoecidos e infectados, sobretudo pela população mais vulnerável como os idosos e pessoas com comorbidades. Somou-se a essa situação de isolamento social, lockdowns, quarentenas e restrições na circulação uma angústia pelo confinamento e uma grande crise econômica e social, com duros reflexos no acesso à alimentação, moradia, trabalho, renda, medicamentos e transporte. A Pandemia abalou a saúde mental das pessoas e a vida social pela ameaça de adoecimento e morte. No Brasil, o enfrentamento à Pandemia se deu de maneira muito atabalhoada e de acordo com o estudo realizado pelo Lowy Instituto2 com cerca de 98 países e divulgado no dia 28 de janeiro de 2021, o Brasil aparecia como o pior país em termos de desempenho no enfrentamento à covid-19. Em outubro de 2021 a Pandemia já havia ceifado a vida de mais de 600.000 brasileiros, consequências do negacionismo científico e da demora em iniciar a vacinação da população. Não podemos deixar de salientar que o chefe de Estado do Brasil foi um dos principais desarticuladores das medidas de

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Disponível em https://www.who.int/. Instituto é um laboratório de pesquisas políticas internacionais localizado em Sidney na Austrália. Disponível em <https://www.lowyinstitute.org/about>. 2Lowy


prevenção e controle à covid-19 desestimulando toda a sociedade à prática de medidas de segurança e higiene, subestimando a seriedade da doença. A Pandemia mudou as relações sociais por força do isolamento social. As pessoas passaram a se encontrar virtualmente, mediadas pela tecnologia das plataformas de videoconferências como zoom e google meet e se transformaram em parte do cotidiano não só de trabalho, mas também dos acontecimentos íntimos e sociais (PUGA, 2020). A arte foi justamente uma das primeiras atividades sociais a sofrer com as medidas de segurança impostas pela Covid19. No Brasil, o decreto no 10.282 de 20 de março de 2020 definiu os serviços públicos e as atividades essenciais no qual foram excluídas as atividades culturais. O setor sofreu um dos maiores impactos, e particularmente os espetáculos teatrais, de música e dança que quase consensualmente se tornaram atividades não essenciais devido ao alto grau de contágio que eles apresentam por serem atividades de alto potencial aglomerativo.

IMPACTOS DA COVID NO SETOR CULTURAL Não podemos afirmar que a crise no setor cultural brasileiro se inicia com a Pandemia, isso seria de uma ingenuidade tamanha. E não é necessário irmos muito longe para perceber que a instabilidade e a desarticulação da cultura em termos de gestão pública acontecem bem antes da Pandemia. Em 2016 com o impeachment da presidenta Dilma Roussef, o seu sucessor Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura, contudo uma mobilização social fez com que o governo à época recuasse e reestabelecesse o ministério, no entanto, esse alívio durou pouco, pois na sequência, já no Governo Bolsonaro/2019, o Ministério da Cultura foi extinto em caráter definitivo, consequentemente desprestigiando e


afetando o setor do ponto de vista orçamentário, da gestão e da efetivação de políticas públicas direcionadas para a área cultural. O desmonte das políticas culturais

nos

últimos

anos,

a

grande

perseguição

aos

artistas,

os

contingenciamentos financeiros, a transformação do ministério em uma secretaria sem prestígio vinculada ao Ministério do Turismo tem sido a realidade da cultura no Brasil. E se antes da Pandemia o setor cultural já era fortemente atacado pelo último e atual governo seja na censura ou na diminuição severa de recursos humanos, logísticos e financeiros hoje a situação piorou muito com a Pandemia, pois o fechamento dos espaços culturais, dos teatros, das casas de shows, museus, bibliotecas, escolas e universidades e a proibição de ocupar lugares públicos abalaram a vida dos trabalhadores da cultura e toda a sua cadeia produtiva de criação, execução, distribuição e consumo/fruição. A vida dos artistas se tornou ainda mais difícil, e por outro lado sem querer amenizar todo esse contexto trágico, foi justamente a arte e a cultura que ajudaram a promover algum tipo de paz, entretenimento e bem-estar para a população e por meio de filmes, series, documentários, novelas, cinema, literatura, artes visuais ou teatro virtual contribuiu para que as pessoas a suportassem o isolamento social de maneira mais leve. Na perspectiva de alguns autores como De Marco (2020), considera-se que esse é um período renascentista onde surgem espetáculos que seriam inviáveis no âmbito físico, dando luz a novas linguagens, novas possibilidades em um novo campo que se abre, com muitos personagens do setor concordando com ele. Há que se notar que essas alternativas não buscam, e certamente não conseguiriam repor as perdas que ocorreram frente ao trabalho cotidiano (MATEUS, 2020). Medeiros (2020), alerta que, em compensação, a


pandemia gerou oportunidades também, como a de alcançar mais espectadores, pois se tem acesso ao mundo inteiro simultaneamente, ou não. No entanto um maior acesso à cultura por meio virtual não ameniza a situação histórica da cultura no país. No gráfico abaixo podemos observar a situação dos investimentos públicos em cultura na série iniciada em 2009 pelo IBGE, e de tudo o que foi gasto pelo governo federal apenas 0,08% foram para cultura, em 2020 este gasto chegou ao menor percentual de 0,04% e teve seu pico em 2013 com 0,12%.

Fonte: IBGE - SIIC 2009/2020

De acordo com o IBGE a partir do Sistema de Informações e Indicadores Culturais - SIIC na sua quinta edição o setor cultural perdeu mais de meio milhão de trabalhadores em 2020, durante a pandemia. E os investimentos do governo federal em cultura foram os menores em mais de uma década. Em 2020, o número de trabalhadores do setor caiu 11,2% em relação ao ano anterior. Na economia como um todo, a redução foi menor, de 8,7% no mesmo período. Entre os municípios, a despesa com cultura também foi menor de acordo com os resultados da quinta edição do SIIC.3 A crise sanitária promovida pela covid-19 ficará marcada na história. Todos as consequências sobre a vida social e

3https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/cultura-recreacao-e-esporte/9388-

indicadores-culturais.html?=&t=publicacoes


econômica de milhares de pessoas tem se mostrado intensa, no entanto particularmente o setor cultural, artístico e criativo vem enfrentando uma situação crítica e provavelmente serão um dos últimos setores a voltar a sua normalidade. O cancelamento de eventos e o fechamento de espaços públicos afetam sobremaneira a cultura e a arte, e elas necessitam da presença, do convívio das pessoas para acontecerem em seu melhor e mais potente fenômeno de contemplação e que se dá impreterivelmente no encontro de corpos.

A LEI ALDIR BLANC A lei federal nº 14.017/2020 conhecida como lei de emergência cultural Aldir Blanc foi criada pelo Congresso Nacional Brasileiro para atender às demandas do setor cultural afetado pelas medidas de restrição e isolamento social diante do estado de calamidade pública decretado pela União em função da Covid-19. Já abordamos que o setor artístico e cultural foi um dos primeiros a parar e será um dos últimos a se reestabelecer diante da Pandemia. Com a Lei Aldir Blanc o Governo Federal destinou uma verba de 3 bilhões de reais que foram divididos proporcionalmente entre os estados da federação e os seus municípios. A lei é uma homenagem ao músico brasileiro Aldir Blanc que foi vitimado pela covid-19. De iniciática da deputada Benedita da Silva a Lab, como é chamada a Lei Aldir Blanc determinava em regime de urgência um repasse financeiro a estados e municípios para aplicação em ações emergenciais para os trabalhadores da cultura. A aplicação dos recursos da Lab seguiu três parâmetros de acordo com o texto da lei abaixo:

a) renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura;


b) subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e culturais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social; e c) editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos destinados à manutenção de agentes, de espaços, de iniciativas, de cursos, de produções, de desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária, de produções audiovisuais, de manifestações culturais, bem como à realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais. O primeiro item da lei garantiu uma renda mensal durante três meses de R$ 600,00 para pessoas físicas artistas, técnicos e profissionais da cultura como forma de auxílio emergencial desde que comprovassem pelo menos dois anos de atuação em atividades culturais. A segunda forma de repasses se deu por meio de subsídios mensais que variavam de R$ 3.000,00 a R$ 10.000,00 para a manutenção dos espaços culturais mantidos por pessoas físicas ou jurídicas e das organizações da sociedade civil, com finalidade cultural e realizadoras de atividades artísticas e culturais. O terceiro item se deu por meio de editais e prêmios que atuaram como um fomento à realização e desenvolvimento de projetos culturais com certa ênfase na produção para internet e outros meios digitais. A regulamentação da Lab ficou a cargo de estados e municípios, de alguma forma houve dificuldades para muitos municípios no gerenciamento dos recursos da lei, mas a sua distribuição descentralizada e direta, do tipo fundo a


fundo, conseguiu viabilizar a aplicação desses recursos senão na sua totalidade, mas em boa parte nos municípios e estados. Em Minas Gerais por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo foram destinados mais de R$ 135 milhões que foram distribuídos por meio de 27 editais somente no inciso III de apoio às produções, além do auxílio emergencial e dos subsídios.4 Em resumo o recurso da Lei Aldir Blanc foi aplicado por meio da renda emergencial mensal aos trabalhadores da cultura, sendo a distribuição responsabilidade dos estados e Distrito Federal; por meio de subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e culturais, com responsabilidade dos municípios e Distrito Federal e pelos editais, chamadas públicas e prêmios, destinados à manutenção de agentes, espaços e iniciativas; sendo esse recurso de responsabilidade dos estados, Distrito Federal e municípios (LEI Nº 14.017, DE 29 DE JUNHO DE 2020).

OS PONTOS DE CULTURA: UMA POLÍTICA PÚBLICA ÉTICA Os Pontos de Cultura são uma ação integrante do Programa Cultura Viva implementado em 2004 por meio de uma política do Ministério da Cultura, no governo do Presidente Lula, tendo o músico e compositor baiano Gilberto Gil como gestor do referido órgão. No Brasil, o mecanismo de apoio e financiamento à cultura até a chegada do governo Lula era basicamente a Lei Rouanet 5, que, para a maioria dos produtores culturais e artistas populares, só garantia aos grandes eventos o acesso aos recursos públicos de financiamento, pois a lei se

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A relação dos editais provenientes da lei Aldir Blanc de Minas Gerais pode ser consultada na integra em <https://www.secult.mg.gov.br/leialdirblanc>. 5 Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991 que instituí o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), popularmente chamada de Lei Rouanet esse mecanismo possibilita que cidadãos (pessoa física) e empresas (pessoa jurídica) apliquem parte do Imposto de Renda devido em ações culturais


constituía a partir de incentivos fiscais. Desse modo os recursos públicos ficavam sob o controle da iniciativa privada, a serviço da cultura de massa. Essa lógica era fruto de um momento político e econômico vivido na década de 1990, cujo estado brasileiro havia passado por grandes desestatizações, mergulhando de cabeça no neoliberalismo, e em grande medida, a partir do Programa Cultura Viva, houve essa quebra no paradigma das políticas culturais baseadas nas leis de incentivo. Foi dentro do universo do governo Lula que as políticas públicas avançaram e deram para a cultura um maior sentido da sua importância em promover a emancipação humana, ao possibilitar acesso e fruição aos bens materiais e imateriais da cultura brasileira de forma mais convicta e próxima da sociedade. Assim, defendemos a ideia principal sobre políticas públicas como sendo um instrumento de potencialização do desenvolvimento plural do homem, em operação a um conjunto harmônico de tantos outros direitos, como educação, lazer, alimentação, meio ambiente e saúde, essenciais na construção de um indivíduo pleno e pleno no usufruto da cidadania, elemento de causa do bemestar social. Hoje usamos a ética para resolver diversas questões que vão desde o âmbito da vida privada quanto da vida pública. Pela ética regulamos nossas ações e condutas, tomamos partido disto ou daquilo, criamos ou desfazemos negócios, ganhamos ou perdemos amigos e trabalhos. Através da ética conseguimos paz de espírito ou nos angustiamos ao compactuar com algo que não desejávamos, a ética é capaz de trazer ao nosso ambiente conforto e lucidez.

Assim a ética é muito mais uma ação viva do que apenas um conceito abstrato, é parte integrante da prática social dos homens, objetivando-se tanto em suas atividades cotidianas


como nas formas de práxis que permitem a ampliação de sua consciência moral e seu enriquecimento como indivíduos (Barroco, 2010).

Assim, nossa hipótese de uma sociedade que preze o bem-estar comum seria realizável apenas e fundamentalmente através da compreensão da ética e o seu uso máximo sobre dois aspectos que são elementares na construção do homem e que poderiam trazer para a realidade essa sociedade futura mais equânime: a Política e a Cultura. E esses dois fatores combinados, nos dão um produto altamente eficaz para nossos dias, estando mediadas por políticas públicas, especificamente as políticas culturais. E sobre esses dois aspectos, a ética pode proferir uma nova visão de mundo, suportado por pessoas mais livres e humanas, tendo no sentimento do ser a essência de uma vida coletiva. Abordamos essa proposta, negando o sentido do ter, enquanto consumo, neste sistema capitalista que vivemos, cujas consequências têm sido cada vez mais o crescimento das injustiças sociais. Essas primeiras considerações nos dão a motivação sobre a importância da ética na vida social e na construção de políticas culturais. Pois o homem nasce sem a disposição para o bem ou para mal, mas enquanto indivíduo que vive em sociedade ele tem a tendência para aquilo que é bom. Segundo a filosofia grega, bem como todas as suas ações científicas ou artísticas, são desejadas e buscam a finalidade do bem. Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem (Aristóteles, 1984, p. 49).


Apesar disso, nem sempre a consciência justifica todas as ações do homem, à medida que ele precisa regular sua vida, pois a consciência é um estado de reflexão, mas não responsável por todos os acontecimentos, existem instâncias da realidade que limitam o poder dessa consciência do homem. Sobre isso destaca bem Maria Lucia S. Barroco: Considerar o papel ativo da consciência nas ações humanas não significa entender que o produto da práxis seja – sempre e diretamente – o resultado de uma deliberação consciente ou de uma projeção ideal. A realidade é dinâmica; logo, não existe uma relação de causa e efeito nas ações humanas. Os homens são os produtores de sua consciência, mas o produto de sua práxis não pode ser considerado uma consequência causal de projeção ideal, porque as circunstâncias sociais em que ele é produzido ultrapassam a determinação subjetiva dos indivíduos considerados isoladamente (Barroco, 2010, p. 22-3).

Conclui-se que o homem age sobre si, a partir das suas necessidades, e age de acordo com o ambiente que o afeta, e a consciência permite essa mediação. Podemos então pensar no Estado como sendo o melhor lugar para se articular princípios éticos que possam configurar-se em um bem coletivo? Há de se entender as contradições e as certezas dessa afirmação, a partir do surgimento da ideia do Estado, como este espaço de decisão político soberano para governar um povo dentro de um território delimitado, desempenhando assim funções políticas, sociais, legislativas e econômicas. O Ponto de Cultura nessas circunstâncias propõe uma ação do Estado, geradora de uma distribuição de recursos mais justa, inclusiva e sem intermediários, pois subsidia com orçamento público um processo do fazer cultural que não é caracteristicamente consumido e divulgado pela elite. Deste modo os Pontos de Cultura reorientam a aplicação dos recursos públicos, democratizam a difusão, a produção, e evidenciam os processos culturais da sociedade, valorizando a diversidade e imprimindo mais força e vigor na busca


de uma democracia cultural. O Ponto de Cultura então reforça a economia dos grupos culturais, acelera os processos de produção cultural, e permite acesso e distribuição desses produtos e bens culturais, ampliando o conceito de cultura, considerando todas as manifestações da vida em igualdade de valor. Outro fator importante se estabelece na compreensão simbólica do fazer cultural, os Pontos de Cultura invertem a lógica do interesse econômico que constantemente imprime uma espetacularização da diversidade cultural. É nesse sentido que o Ponto de Cultura é transformador, pois amplia a compreensão de cultura, como já abordamos. O Ponto de Cultura inova na forma de fazer cultura por adotar o conceito antropológico de cultura e por financiar as práticas e os processos culturais da diversidade brasileira, sem impor ou definir os caminhos que os grupos, as organizações sociais deveriam seguir. A esta mudança de abordagem correspondeu o direcionamento de recursos para além das tradicionais linguagens artísticas. Com isso, o financiamento não só deixa de direcionar recursos a um campo específico, como admite uma série de práticas ligadas à cultura popular, aos modos de fazer tradicionais, quando não à interação entre as mais diversas formas de expressão cultural, que vão da tradição oral à cultura digital. Isso não quer dizer, no entanto, que o programa deixa de financiar projetos ligados às linguagens artísticas – ele na verdade amplia o campo das políticas culturais para outras manifestações (LIMA; ORTELADO, 2013, pp. 361-362).

Os Pontos de Cultura apontam para uma perspectiva de reconhecimento social e redistribuição dos recursos e bens públicos a partir da valorização da cultura, das manifestações culturais existentes na sociedade. Podem então as políticas culturais assumir, por sua especificidade, uma forma de direito social, organizando e financiando a cultura de forma democrática e universal, apontando caminhos de fortalecimento da cidadania, sobretudo de uma


cidadania cultural, que envolva a distribuição econômica e o fortalecimento das diversidades. A prática que envolve o conceito de cidadania cultural deve ter como alicerce o desenvolvimento efetivo dos conceitos de patrimônio cultural, formação, informação, criação, distribuição e acesso. Essa prática não se realiza instantaneamente, pois tem um caminho longo a percorrer: sofre recuos, depende de avaliações e, normalmente, é incompreendida no momento de sua aplicação. Em um processo de transformação social são as mentalidades que mudam mais lentamente, mas sem um início de mudança neste campo não há transformação possível (TURINO, 2009, pp.199-200).

Os Pontos de Cultura têm transformado as perspectivas da cidadania através das expressões culturais. O direito à cultura parte do entendimento de que a cultura constitui elemento imprescindível para o exercício da cidadania, sendo hoje considerado direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. Neste, o direito de acesso à cultura é considerado um dos quatro pilares estruturantes dos direitos culturais: o direito à participação, o direito de acesso, o direito à pluralidade e à diversidade e o direito à memória (LIMA, ORTELLADO apud Souza, 2012). Ponto de Cultura atua com cultura popular, inclusão social e tem um claro papel na cidadania, mas ele é, sobretudo, um programa de cultura. Cultura como interpretação do mundo, expressão de valores e sentimentos. Cultura como intercompreensão e aproximação. Neste sentido seria mais apropriado classificar a ação do Ponto de Cultura no campo da ética (TURINO, 2009, p.82).

O Ponto de Cultura estabelece, na ação do Estado, enquanto política pública e gestão pública um comportamento ético, pois enfatiza fatores importantes para essa compreensão: é uma política de reconhecimento social, das práticas sociais, da diversidade, dos modos de existência e de produção material e imaterial dessa existência, na qual a cultura vem sendo vista de forma


ampla, que abriga e dá molde para a vida. Além disso, pela distribuição dos recursos financeiros do Estado para esses grupos comunitários desenvolverem e fortalecerem as suas dinâmicas de existência. A cultura traz aspectos universais e se forja também enquanto uma ação política, por isso uma política cultural como a dos Pontos de Cultura é claramente uma instância carregada de ética. A ética faz parte da vida humana e, assim como a cultura, ela é uma construção sócio-histórica, que se realiza nas manifestações, nas trocas sociais, que possibilitam a construção do ser na sua singularidade e coletividade, sobretudo em relação ao espaço, ao território em que se vive. Os Pontos de Cultura estão carregados de uma mudança social, de transformação de realidades carregadas de exclusão. Eles fazem uma ligação, entre a existência comportamental, simbólica, estética, política e econômica do homem, a uma existência transcendente, ancestral e que rigorosamente é fundamental para manter a vida social. Ao se estabelecer a cultura como base da vida, entendemos que tudo ao redor do homem é fator de escolhas, sendo que, assim, o homem também se subordina a sua cultura, podendo ser a causa e o objeto das transformações históricas e sociais. A ética então se coloca como uma determinação do ser social, que articula a sua existência a partir da cultura, da política e da natureza.

A IMPORTÂNCIA DA LAB PARA A DE MINEIRA DE PONTOS DE CULTURA Os Pontos de Cultura são atualmente no Brasil o resultado mais efetivo e eficaz de uma política cultural, são reconhecidos com uma instância de articulação política e cultural em todo o país. Observando o caráter de rede os Pontos de cultura se fortaleceram enquanto uma ação pública de reorganização do trabalho cultural, cuidando de sua viabilização em formas solidárias de


produção, a partir de princípios da ética, da autonomia, do protagonismo, do empoderamento observando as dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura. O Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura talvez sejam a única verdadeira revolução experimentada nesses 500 anos do Brasil. Revolução no seu sentido mais primitivo, de revolver – revirar, desarrumar, pôr em desordem – provocando profundas transformações na compreensão que sempre tivemos do papel de um Ministério da Cultura. Sustenta esta minha crença o fato de que o Programa e os Pontos subvertem a lógica que confere à expressão Cultura, um caráter de erudição e excelência artística, preconceituosamente consagrados pela elite e parte expressiva da nossa academia. Um programa audacioso, que traz para a centralidade da agenda de políticas públicas de Cultura, de forma inédita, o fazer cultural do Brasil profundo. E recupera seu conceito mais elementar: “Cultura é tudo o que o homem faz”. (Davy Alexandrisky, 2012).6

Um exemplo dessa forma de articulação coletiva foram as “Teias da Cultura” encontros nacionais dos Pontos de Cultura e sua última edição aconteceu em 2014 em Natal. Dada todas as questões sobre o setor cultural que a quase uma década vem sofrendo com instabilidades na sua gestão pública, os Pontos de Cultura conseguiram resistir e de alguma maneira se mantiveram em algum tipo de atividade e destaco aqui a Rede Mineira de Pontos de Cultura que foi um espaço potente de articulação e mobilização política, institucional e artística que converge os diálogos entre os Pontos de Cultura mineiros num espaço de solidariedade e de representação nas esferas públicas e de tomadas de decisão que envolva política estadual mineira de cultura. A rede possui uma comissão e um comitê gestor que organizam as demandas e as encaminham com o poder público, imprensa e sociedade em geral. A Rede Mineira de Pontos7

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Davy Alexandrisky é membro da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura. Disponível em

<http://pontosdeculturabrasil.redelivre.org.br/2012/04/06/pontos-de-cultura-revista-globalbrasil-15/>. 7

Para mais informações acessar o site: https://pontosdeculturamg.org.br/about.


de Cultura tem cerca de 200 instituições em mais de 120 municípios de Minas Gerais. Durante o ano de 2020, os membros do Comitê Gestor e da Comissão Estadual estiveram empenhados em garantir recursos da Lei Aldir Blanc para os Pontos de Cultura. Assim, foi realizado um mapeamento de 215 Pontos em atividade, para os quais foram garantidos recursos em um edital de credenciamento estadual, ou seja, os Pontos deveriam comprovar suas certificações para receber o valor de R$ 140.000,00 para se manter no período de pandemia. 146 Pontos de Cultura acessaram os recursos, em dois editais. Um edital para pessoas jurídicas e um edital para coletivos culturais. Assim foram distribuídos R$ 19.108.000,00 para a Política de Cultura Viva durante a pandemia, em Minas Gerais.(Rede Mineira dos Pontos de Cultura).8

Com essa articulação específica para a garantia de recursos para os Pontos de Cultura que integram a Rede Mineira foi possível organizar e realizar entre 2020 e 2021 a) Mapeamento e diagnóstico da Rede Mineira; b) Garantir uma assessoria e consultoria jurídica e contábil para a Rede Mineira; c) Criação da identidade visual da Rede Mineira; d) Criação deste site da Rede; e) Elaboração e minuta para regulamentação estadual da política de cultura viva; f) Aprovação de emenda parlamentar para realização do próximo Fórum dos Pontos de Cultura, em 2022. Entre 2007 e 2019 a Rede Mineira de Pontos de Cultura já realizou 8 Fóruns Estaduais. O Mapeamento e diagnóstico dos Pontos de Cultura de Minas Gerais buscou compreender a situação atual dos Pontos de Cultura no Estado de MG a partir de um recorte temporal de 2019 a 2021. O mapeamento foi elaborado pela rede mineira com assessoria do Observatório da Diversidade Cultural-ODC. Foram mapeados cerca de 171 Pontos de Cultura num universo de 230

8

Idem.


cadastrados pela comissão estadual de pontos de Cultura. O diagnostico e o mapeamento pode ser acessado no site www.pontosdeculturamg.org.br.

Mapa da rede mineira de Pontos de Cultura - 20219 A atuação da Rede Mineira de Pontos de Cultura foi fundamental na articulação de recursos da Lei Aldir Blanc de Minas Gerais em edital específico para os Pontos de Cultura. Tanto o edital nº 02/2020 quanto o edital nº 03/2020 foram exclusivamente para Pontos de Cultura este para pessoas físicas e aquele para pessoas jurídicas. Ao todo foram contemplados mais de 200 Pontos de Cultura pessoa jurídica com o valor de R$ 140.000,00 e 14 de pessoa física totalizando um repasse de quase 30 milhões de reais para Rede Mineira de Pontos de Cultura.

9https://pontosdeculturamg.org.br/storage/attachments/9w376kJz0cdKZr6hzHh5Un4FoO62ZSy

8OjZpiGP6.pdf. Link de acesso ao mapeamento e diagnóstico da rede mineira de pontos de Cultura.


Considerações

Não há dúvidas que a Lei Aldir Blanc também será um marco nas ações de políticas pública para cultura simplesmente pelo fato de mostrar ser possível ao estado estabelecer modelos de gestão e financiamento ao setor de forma mais eficaz, humana e ordenada. Nesse sentido o estado de Minas Gerais garantiu uma grande efetividade na execução e transferências de recursos e fica aqui demonstrado o quanto uma política cultural como a dos Pontos de Cultura foi fundamental para garantir força, articulação e mecanismos de controle e execução dos recursos emergenciais destinados aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura. Esperamos que a Lab seja um ato inspirador para uma política pública efetiva e não apenas pontual para a cultura brasileira, acreditamos ser possível esse compromisso político se houver uma responsabilidade assumida e um comprometimento ético do poder público em respeito a nossa cultura. Acreditamos que ações como a que encontramos nos Pontos de Cultura possam ter esse papel fundamental de cimento na construção de políticas públicas para cultura que não permitam a existência particular de direitos, mas fluidez de possibilidades a todos os indivíduos de se constituírem socialmente como iguais, onde todos tenham o bem-estar pleno, acesso a todos os direitos sem se descaracterizarem humanamente. Se esta reflexão que ora concluímos, levar-nos ao debate e à dúvida, será mais uma semente plantada no solo árido das polêmicas disputas que se seguem, inerentes ao processo de equalização dos interesses presentes em uma política pública. Sendo assim chegaremos à razão de tê-la feito, resta ao futuro como esperança, otimismo e entusiasmo que ela germine.


Referências

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TURINO, Célio. PONTO DE CULTURA: O Brasil de baixo para cima. Célio Turino. – São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.


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