Produção Cultural pelo Afeto

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Escute o livro aqui.

AUTORA: Aline Cântia

CO-AUTORIA: Chicó do Céu

COORDENAÇÃO EDITORIAL: Aline Cântia

EDITOR: Fernando Chagas

PREPARAÇÃO E REVISÃO: André Curvello

DIAGRAMAÇÃO E CAPA: André Curvello

EDITORA: AbraPalavra

Catalogação na Publicação (CIP)

Cântia, Aline

C231p Produção cultural pelo afeto : uma experiência do Instituto Cultural AbraPalavra / Texto de Aline Cântia e Chicó do Céu ; ilustrações de André Curvello – Belo Horizonte : Editora AbraPalavra, 2024.

132p. : il. ; 12 x 18 cm.

ISBN 978-65-996282-1-4

1. Instituto Cultural AbraPalavra. 2. Gestão Cultural.

3. Produção cultural. 4. Cultura. 5. Economia criativa.

I.Título. II. Chicó do Céu. III. Curvello, André.

CDD: 306

Bibliotecária: Pâmela Bastos Machado CRB6/3070 [2024]

Todos os direitos desta edição reservados à Editora AbraPalavra

Rua Aiuruica, 41, 802 bl B - Bairro Fernão Dias, Belo Horizonte - MG

https://linktr.ee/abrapalavra

Este livro foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. Projeto 0758/2020.

Sumário

PARTE 1 – PRIMEIROS CAMINHOS

Uma candeia para nos guiar Palavras sobre o AbraPalavra (Cida Falabella)

Mapa de navegação: como nos guiamos para chegar até aqui

Carne de língua (um conto africano para começar)

Primeira parada: histórias, nossa matéria-prima

PARTE 2 – PÉ NA ESTRADA

Por que os contadores de histórias têm boa memória e são bons bebedores de vinho (outro conto africano para continuar)

Segunda parada: escutar, nosso componente essencial

rotas

PARTE

3 – ROTAS ESCOLHIDAS

O afeto como bússola Novas
................................................ 05 .......................... 06 ............................................................................................ 09 .................... 12 .................... 14 .............................................................. 21 ...................................................... 22 ......................................................................................... 24 .................................................................... 32 ...................................................................................... 41 .................................................... 49

As Duas Mulheres e o Céu, das terras do Kalunga à beira-mar de Cabo Verde

Movimento 1 – As parcerias

Movimento 2 – Institucionalização do coletivo

Movimento 3 – Formação e pesquisa

Movimento 4 – Internacionalização

Movimento 5 – Participação social

Movimento 6 – Gestão e produção cultural

Movimento 7 – Criação artística

A lenda das areias Compartilhando nosso mapa de navegação .............................................................. 50 ......................................................... 52 ......................... 61 ........................................ 69 ........................................... 76 ............................................ 88 ............................... 93 ................................................ 102 .......................................... 105 ........................................................................... 106 ........................... 108
PARTE 4. NA LINHA DO HORIZONTE

Parte 1 – Primeiros caminhos

Uma candeia para nos guiar:

Palavras sobre o AbraPalavra (Cida Falabella)

“Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos.”

Na primeira vez em que entrei em contato com a produção do Abrapalavra, tinha acabado de chegar ao parlamento. Era um convite muito bonito, com suaves ilustrações, acompanhado de chá de candeia, erva que não conhecia. Com a agenda cheia de compromissos, não pude ir à abertura da mostra de mesmo nome, mas tomei o chá numa noite fria, e ele me aqueceu.

Já tinha ouvido falar muito desse povo, pois minha vida de

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artista me aproximou de contadores de história, passando pelo sertão do Rosa e minhas queridas amigas do grupo “Tudo era um vez” e, com elas, o Grupo Miguilim de Cordisburgo. Mire e veja. Sempre me encantou o trato com a palavra desses entregadores de imagens, a potência delicada da voz, que materializa um mundo e nos oferece reflexão, deleite e mutação.

No ano seguinte, o convite veio me convocando, queriam que estivesse em uma mesa. Na verdade, era uma roda com duas mulheres incríveis: Nívea Sabino e Chica que conta. Foi uma noite mágica, de memória, histórias, risos e algumas lágrimas.

Mais um ano e mais uma mostra. Lá estava eu abrindo a noite com Aline, de mãos dadas. Tão emocionante, a plateia cheia de jovens, os olhos ávidos por ouvir. Pronto, agora eu seria definitivamente deles, desses donos das palavras, dos livros, dos contos, de tantos projetos, da palavra-ação. Daí pra frente, começamos a trocar mensagens e conversar e nos reunir. Nosso trabalho pela cultura viva nos aproximou ainda mais, pois esse povo bonito é ponto de cultura da primeira geração e constrói redes incríveis por todo o país, com seus projetos que acolhem e estimulam as bibliotecas comunitárias, escolares, nos presídios, nas cascas de geladeiras em desuso. (E aqui lembro com muita alegria do percurso na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte que me formou como arte-educadora.)

Com eles, aprendemos muito no processo de aprovação da lei Cultura Viva da primeira capital do país e do caminho para a implantação real dessa política em Belo Horizonte.

Recentemente tive a audácia, depois de já termos construído esses laços de afeto e confiança, de me oferecer pra fazer uma breve cena na Candeia. E assim vivi um outono cheio de delicadezas na troca com o público.

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Além de tudo que fazem ao vivo e em cores, a preocupação com o registro dos processos, de compartilhar o aprendizado, levou esse povo apaixonado a ter uma editora! E esse livro que tenho a honra de prefaciar (me sentindo muito chique) é um novo filho! Um livro que conta o encontro e a jornada de Aline e Chicó, guiados pelo encanto com as histórias, a vida, os livros, a oralidade, mas também com a construção de um compromisso com os processos de participação social, com as políticas públicas, com a cultura e a educação, com a democracia. Um caminho pelo afeto, olho no olho, escuta apurada, tempo dilatado. Caminho das delicadezas, renovadas pela presença, pelo encontro.

Mais do que contar uma história bonita e instigante, criativa e decidida, esse livro traduz a trajetória do AbraPalavra e seus princípios éticos e estéticos. Assim tem a força de ser instrumento para gestores, educadores e artistas, trazendo informação e sobretudo inspiração, afirmando o poder da arte e da educação na refundação dos pactos da vida vivível, do cotidiano, do cuidado. Além de tudo isso, é um livro saboroso, para ser degustado como uma boa história. Deixe que eles te levem por aí, pelo mundo, por Minas, por tantos cantos.

Por fim, mas sem encerrar nunca essa prosa, quero dizer que esse povo é corajoso e sempre esteve junto do lado certo da história. Acredita que cidadania rima com democracia e que os afetos são políticos. Arregaça as mangas diariamente para se colocar à disposição da sociedade e da sua transformação, e o faz lindamente.

Que alegria caminhar com esse povo.

Cida Falabella é atriz, diretora e vereadora de Belo Horizonte.

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Mapa de navegação: como nos guiamos para chegar até aqui

Damos-lhes as boas-vindas!

Este livro nasceu junto com nosso primeiro projeto de manutenção para um edital do Fundo Municipal de Cultura de Belo Horizonte. A ideia inicial era escrevermos juntos sobre a trajetória de dez anos do Instituto Cultural AbraPalavra, apenas na perspectiva histórica. Queríamos falar sobre os lugares por onde passamos, as pessoas que foram importantes, as criações artísticas e as produções. Seria uma espécie de álbum de família para registrar um recorte temporal. No entanto, entre escrita, aprovação e execução do projeto, uma pandemia se instaurou no mundo, tivemos um hiato na valorização das políticas públicas para cultura e tanta coisa mudou, incluindo nós mesmos. O AbraPalavra completa 13 anos no ano de publicação deste trabalho. Assim, nosso propósito com este livro também se transformou.

Queremos sentar ao seu lado para lhe contar histórias, mostrar rotas alternativas dentro da arte e da produção cultural, e apresentar nossa trajetória para além de um relato temporal, mas como um guia que democratiza os caminhos sobre sonhar, elaborar, executar e dar continuidade a projetos culturais de qualidade. Você vai perceber que a narrativa acontece muitas vezes em primeira pessoa do singular, por ter sido eu, Aline, a

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responsável por ter colocado essa história no papel. Às vezes, o texto aparece em primeira pessoa do plural (já que a coautoria de toda essa narrativa é do Chicó do Céu), e ainda em terceira pessoa, quando falamos do Instituto Cultural AbraPalavra. Com o tempo, o instituto foi se tornando uma persona. Contamos aqui como escolhemos pavimentar o nosso caminho da produção cultural com o afeto. De um lado o trabalho artístico, criativo, árduo, constante, simbólico; do outro, a sobrevivência por meio de editais, vendas, papeis, planilhas, equipe, prestações de contas, concorrências, mercado, políticas públicas, instabilidade política e econômica.

Dividimos o livro em quatro partes. Na primeira, contamos sobre o início da caminhada, os primeiros passos e quais metodologias — ainda muito intuitivas — escolhemos para começar. Na segunda, você vai encontrar dois elementos que foram fundamentais para firmarmos nosso pé na produção cultural: a escuta e o afeto. Na terceira, trazemos os movimentos que fizemos para construir a sustentabilidade de nossos trabalhos. Na quarta e última parte, compartilhamos nossa rota de voo por meio de um movimento que sai do livro e vai para o mundo virtual: vocês poderão ouvir algumas das histórias que contamos por aqui, andar junto por alguns caminhos, acompanhar nossa rota e dividir com a gente a sua.

O trabalho que acontece nos bastidores da produção cultural muitas vezes é composto por um tecido invisível que sustenta uma rede de pessoas e mantém uma cadeia produtiva de fazeres e saberes. Quando este trabalho é afetivo, circular e coletivo, fortalece quem somos, nos lembra de onde viemos e nos faz olhar com empatia e esperança para onde queremos ir. Agradecemos e dedicamos este livro a todas as pessoas que sempre nos acolhe-

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ram em suas casas (seja para um café, seja abrindo a tela e nos deixando entrar), que estiveram ao nosso lado, acreditando que daria certo, que nos acompanham nos encontros presenciais e online, que sustentam todos os dias a nossa rede de afetos.

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Aline Cântia Chicó do Céu Fernando Chagas

Carne de Língua

Essa história foi contada pela primeira vez no Quênia e chegou até mim por meio do narrador camaronense Boniface Ofogo. Depois, eu li em alguns livros e escutei da boca de outros narradores.

Tudo começou sem muita explicação, quando a rainha de um reino muito grande e poderoso começou a adoecer. Ela, que sempre foi ativa, bem-humorada e reconhecida pela sua vivacidade, começou a ficar com a pele opaca, sem brilho e principalmente sem palavras. Nada saía de sua boca e ela preferia ficar no quarto, quieta, a participar dos passeios e encontros. O rei, muito preocupado, buscou todos aqueles que se dedicavam à ciência da cura. Levou-os ao reino, prometeu fortunas, mas ninguém encontrou a resposta para o que acontecia.

Preocupado com aquela mulher que, a cada dia, definhava mais, o rei saiu para caminhar quando ouviu, ao longe, uma risada larga e alta, e se lembrou da sua esposa. Ele seguiu aquele som, foi até a casa e espiou pela janela. Ali, ele viu uma mulher sentada com seu esposo. Os dois estavam rindo e ela tinha um brilho nos olhos e na pele. O rei bateu à porta. O homem atendeu e ficou sem reação, olhando o rei parado à sua frente.

Sem tempo para explicações, o rei perguntou ao homem o que ele fazia para que sua esposa fosse tão linda e saudável. Sem pensar muito, aquele camponês respondeu:

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– Isso é carne de língua!

Com pressa, o rei nem chegou a agradecer. Voltou na mesma hora para o palácio e mandou o cozinheiro real preparar uma grande sopa de carne de língua para a rainha. O cozinheiro preparou tudo com os melhores temperos e especiarias, e fez uma grande sopa. A rainha tomou a sopa, mas continuou na mesma tristeza de antes.

Em busca de uma solução, o rei então levou a rainha para a casa do camponês e levou a camponesa para o palácio. Em pouco tempo, a rainha ficou novamente corada, já a camponesa adoeceu e perdeu toda luz que carregava nos olhos e na pele. O rei voltou para a casa do camponês sem entender o que estava acontecendo, e foi logo perguntando:

– Que tipo de língua você usa para colocar nas refeições?

Então o camponês, dando uma risada, explicou:

– Quando falei de carne de língua, não quis dizer que ela deveria comer carne de língua. Eu estava falando das histórias que eu conto para ela todos os dias. É assim que eu a alimento.

O rei levou a rainha para o palácio e passou a lhe contar histórias todos os dias. Ela se recuperou totalmente e nunca mais ficou doente.

É por isso que, até hoje, todos dizem que ouvir histórias faz bem para a saúde de qualquer pessoa.

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Primeira parada:

Histórias, nossa matéria-prima

“Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas.

Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua.

E o cachorro da casa era um grande personagem.

E também o relógio da parede!

Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.”

Mario Quintana

Impossível começar este livro sem contar um pouco das histórias que estão inscritas em nós. Eu trago em mim a sombra das palmeiras que rodeavam a Praça da Matriz, em Caratinga (MG), onde passei parte da infância. Basta silenciar o tempo, que consigo revê-las: altas e centenárias. Surgiam pela grande varanda que tínhamos em casa. Enquanto escrevo, é como se voltasse lá e pudesse abrir novamente as portas grandes e amareladas. A minha infância foi habitada por muitas histórias. Rememoro facilmente todas estas vozes. A do meu pai que, pequeno e

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magro, com os seus óculos de aros grossos, tinha um tom que se misturava à algazarra dos bichos quando declamava: “As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. A voz da minha avó, que cantarolava versos aprendidos entre as colheitas do café, da minha mãe, que lia em voz alta todos os livros que chegavam em casa. E das duas juntas, cantando e declamando versos. “Vanceis de certo não sabem quem eu sou. Creio que não. Vanceis tão tudo ficando bobo, com essas caras jururu...”. E a voz um pouco mais rouca com um chapéu de lado embalava a minha imaginação. Eu também consigo me lembrar da minha própria narrativa dessas histórias e da imaginação acerca das imagens que povoam aquelas letras ainda tão desconhecidas para mim. Lembro que as decorava de tanto ouvir a voz miúda da irmã um pouco mais velha que eu. Depois, as narrava para todos que eu encontrava: nas ruas, nas viagens pelo sul de Minas, nos encontros com primos na Zona da Mata.

Em outro canto de Minas, na cidade de Contagem, no bairro Fonte Grande, uma família vinda de Itaperuna (RJ) se instalava naquela cidade que estava em pleno desenvolvimento. Entre eles, estava o Chicó, que vivia em uma casa cheia e que sempre recebia os amigos. Era ali que, durante a noite, quando chegava do trabalho, o pai ligava o aparelho de vinil e ouvia músicas nacionais e internacionais. Entre eles, Legião Urbana, Cazuza e Barão Vermelho, Rita Lee e Mutantes, Titãs, Raul Seixas, Geraldo Vandré, Gonzaguinha, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e o Clube da Esquina, Elomar, Cátia de França, Zé Ramalho, Alceu Valença, Luiz Melodia, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Black Sabbath, Pink Floyd, Deep Purple, Queen, Uriah Heep, Emerson, Lake and Palmer, Eloy, Ten Years After, Genesis, Yes, Rolling Stones, Janis Joplin, Bud Guy, Johnny Winter e

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muito mais. Destes, os estilos de que seu pai mais gostava eram o Rock, a MPB e autores com linguagem regional e temática, que refletiam as condições sociais do povo brasileiro. Ali, ele ficava contando para o filho as histórias dos artistas: suas aventuras, histórias de vida e das músicas. Esses momentos foram alimentando nele um desejo pelas histórias e biografias.

Até que um dia, quando a família tinha se mudado para o recém-inaugurado bairro Funcionários, em Contagem, Chicó se encontrou com o violão que o pai tinha em casa e raramente tocava. Aos 16 anos, resolveu retirá-lo de cima do guarda-roupa e começou a flertar com a possibilidade de aprender os primeiros acordes. E somente um ano depois começou a se dedicar diariamente ao instrumento. Em poucos meses, já estava tocando e cantando as primeiras músicas. No repertório, Legião Urbana, Rita Lee, Raul Seixas, Alceu Valença, Zé Ramalho e outros artistas populares, cujas canções tinham harmonias mais simples de tocar, segundo ele.

Dois caminhos que se encontraram anos mais tarde.

Era 2006, eu era professora dos cursos de Comunicação em uma faculdade em Belo Horizonte e o Chicó acabava de se tornar o primeiro da sua família a entrar no curso superior. Encontramo-nos na sala de aula e tivemos uma afinidade imediata. Enquanto eu dava aula sobre Mídia e Cultura, Chicó participava de todos os trabalhos em grupo e sempre estava muito disposto a compartilhar suas vivências culturais da periferia de Contagem.

Nessa época, além de estar em sala de aula, eu já trabalhava também na Pró-Reitoria de Extensão, especialmente com o Pro-

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jeto Rondon — um trabalho de integração no interior do Brasil, em diversas áreas, e que envolvia a participação voluntária de estudantes universitários e professores. Logo que Chicó ficou sabendo do projeto, se prontificou a participar, mesmo sendo funcionário público recém aprovado num concurso da Secretaria da Fazenda de Contagem. Depois de passar pelas entrevistas e pelo processo seletivo do Rondon, foi convocado. A etapa seguinte foi convencer o chefe. Explicou que aquela era uma oportunidade única na vida. Com a ajuda dos colegas do setor, conseguiu 15 dias de licença. Assim, ele foi pra Frei Gaspar, no Vale do Mucuri, e eu segui com outra equipe para Poté, também no Vale.

Seis meses depois dessa experiência, a “oportunidade da vida” bateu novamente à porta de Chicó. Eu já não estava mais em sala de aula. Já me dedicava exclusivamente à Extensão, lugar em que me encontrei aos 25 anos de idade e com uma vida inteira de sonhos pela frente. Com essa dedicação, consegui incluir o nosso projeto no Rondon Nacional, e surgiu a chance de irmos para Mato Grosso, na cidade de Acorizal.

O ano era 2007. Com Chicó já selecionado para mais uma edição do Rondon, contei sobre a possibilidade de irmos para Acorizal, e quem sabe, após o trabalho, esticar uns dias na Bolívia? Imediatamente, ele disse que falaria de novo com o chefe. Fiquei ansiosa pela resposta. No dia seguinte, Chicó chegou à faculdade com um sorrisão no rosto: “Então, ele não deixou. Aí eu pedi exoneração.” Nessa época, ainda não tínhamos nenhum projeto juntos. Éramos amigos que dividiam muitas histórias bonitas. Mas, naquele momento, senti uma responsabilidade para que desse certo. Eu só não sabia muito bem o quê.

E assim nós viajamos para Acorizal com um grupo de estu-

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dantes de comunicação, pedagogia, enfermagem, farmácia e outros cursos. O trabalho era realizado em parceria com a prefeitura, escolas e organizações locais: cortejos em praça pública, rodas de conversas com mulheres, trocas de saberes com os agentes comunitários de saúde, oficinas para professores e um programa de rádio. A cidade toda escutava a rádio local, e conseguimos um espaço diário para falar sobre o projeto, dar dicas de saúde, educação e conversar com o ouvinte sobre a cidade. Como eram apenas 15 dias, tudo acontecia de maneira muito intensa. Num fim de tarde, após voltarmos do Rio Brotas, sentei na varanda da casa em que estávamos e escrevi uma letra para falar da cidade. Mostrei para o Chicó e para o Fabiano, outro estudante de comunicação e também músico. Eles colocaram melodia ao som de uma viola de cocho – típico instrumento da região. Levamos no dia seguinte para a rádio e, em pouco tempo, toda a cidade cantava com a gente. Nesse momento, comecei a entender que música e literatura poderiam ser uma boa dobradinha nessa amizade.

Terminamos o projeto e não voltamos para Belo Horizonte. Partimos para a Chapada dos Guimarães: Chicó, Fabiano, Danielle (estudante de enfermagem e hoje uma incrível profissional da saúde dedicada à saúde pública) e eu. Ali experimentamos nossa primeira apresentação de leitura de poesia com apresentações musicais em um bar na cidade. Ficamos alguns dias, mas Fabiano e Danielle não seguiram com a gente para a Bolívia. Iniciamos a primeira viagem a dois, de muitas outras que viriam. Chegamos à Bolívia por terra, de ônibus. A primeira travessia era entre Cárceres e San Matín.

São muitas histórias que essa viagem guarda e que, de certa forma, foram se transformando em metodologias de trabalho

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– aprimoradas ao longo dos anos. A primeira delas era sempre escolher duas janelas no ônibus e tentar criar conexões com o(a) passageiro(a) ao lado. Assim foi entre San Matín e Santa Cruz de La Sierra. Ao meu lado, viajava um senhor, com quem passei muitas horas aprimorando o espanhol. Até que certa hora, ele me perguntou onde dormiríamos naquela noite, e eu disse que chegando lá na Rodoviária (chegaríamos de madrugada), eu veria algum hotelzinho lá perto ou esperaria amanhecer. Ele imediatamente disse que não, e ofereceu uma estadia na casa dele e da sua esposa por uma noite. E, assim, nossa primeira noite na Bolívia foi hospedados na casa de um senhor muito gentil e de sua esposa que, ao amanhecer, nos prepararam um lindo desayuno com café com leite, suco de laranja e medialunas.

Ao todo, foram 15 dias de aventuras, passando por Santa Cruz, La Paz e diversas pequenas cidades do país. Experimentamos sabores e pronúncias. Descobrimos nosso jeito de viajar juntos entre risadas, gravações hilárias de vídeos e atritos de quem ainda não sabe tanto assim sobre o outro. Conversamos sobre as nossas histórias de vida, experimentações com bonecos e canções. Teve um pouco de tudo: multa por não termos o papel de entrada no país, revista na rodoviária, trocas de moeda. Enfim, fomos aprendendo que fazer arte também é lidar com papéis e burocracias.

Voltamos para Belo Horizonte. Eu continuei dando aulas na faculdade e Chicó começou um novo trabalho como monitor de arte-educação na Escola Integrada. Seis meses depois, veio uma nova edição do Projeto Rondon. Iríamos pela primeira vez para o Norte do país, na cidade de Magalhães Barata, no Pará. A viagem foi bem no início das férias e, mais uma vez, quando todo mundo voltou para casa, nós resolvemos continuar a viagem. Chegavam

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para essa nova jornada dois amigos de BH e de Contagem: Téo Nicácio e Léo Primo. Essa viagem pode ser considerada nosso marco, um divisor de águas para a construção de nosso trabalho artístico, cultural e social. Começou a germinar ali a história do Instituto AbraPalavra e de sua produção afetiva, não violenta e de base comunitária. E é a partir dela que começaremos o primeiro capítulo deste livro.

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Parte 2 - Pé na Estrada

Por que os contadores de história têm boa memória e apreciam os bons vinhos?

(Um conto africano para continuar)

Os pássaros não podem escrever, eles têm penas demais.

Ora, conta-se, na África ocidental, que, no início dos tempos, não havia histórias e também não havia sabedoria. O mundo era muito triste. Por isso, o primeiro contador de histórias foi também um buscador de histórias que saiu mundo afora acompanhado de um pássaro-escrivão: o marabu.

O marabu é o único pássaro que sabe qual das penas de seu traseiro deve ser arrancada para que, com ela, se possa escrever, o que faz dele um pássaro especial. É por isso que foi o escolhido para sair pelo mundo, pousado no ombro do primeiro buscador e contador de histórias.

Andaram pelo mato afora, pela savana e ao longo dos rios, para escutar os ventos, as pedras, as águas, as árvores e os animais. Encontraram muitas pessoas até então desconhecidas que iam lhes contando suas histórias.

Munido da pena arrancada de seu traseiro e utilizando uma tinta feita de água, pó de carvão e goma-arábica, o marabu-escrivão anotava, conscienciosamente, todas as histórias que escutava. O buscador e contador de histórias caminhava e pensava: “Não me será possível recordar todas essas histórias”.

Mas o marabu continuava a ouvi-las e a escrevê-las.

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Pois saibam que, uma vez tendo voltado para casa, o primeiro buscador e contador de histórias obteve a solução para o problema que o atormentava. Seguindo os conselhos do marabu, encheu de água uma grande cabaça e nela mergulhou todas as histórias escritas. Durante toda a noite, naquela cabaça — que, na África, é chamada de canari —, as palavras escritas com tinta se dissolveram na água. No dia seguinte, na refeição da manhã, o marabu mandou que o buscador e contador de histórias bebesse todo o conteúdo do canari como desjejum.

Assim, todas as histórias bebidas tornaram-se histórias sabidas.

Se, por acaso, você precisar beber uma história, escute o meu conselho: beba tudo. Não deixe nada no fundo do copo, porque isso poderia dar um branco em sua memória.

Essa é a razão pela qual, em todos os tempos, os contadores de histórias sempre foram, também, bons bebedores de vinho.

(Contado por Gislayne Avelar Matos e Inno Sorsy, no livro “O ofício do contador de histórias”. São Paulo: Martins Fontes, 2005)

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Segunda parada:

Escutar, nosso componente essencial

“Somos um grupo de três artistas e profissionais da imagem, do som e das letras que, mambembes, querem compartilhar as histórias vividas e ouvidas ao longo de viagens pelo Brasil. Moramos em Belo Horizonte e nos meses de fevereiro e março vamos percorrer o litoral e o sertão do Nordeste brasileiro. Na bagagem, levaremos oficinas, cinema, música e oralidade. Nos encontros ao longo desta viagem, sejam eles em salas de aula, quintais, praças ou teatros, vamos em busca de outras vozes, que tornarão mais fortes o nosso canto, a nossa poesia e a nossa história.” (Janeiro de 2007)

Esse foi nosso primeiro release de apresentação, numa época em que o termo “produção cultural” ainda não fazia parte do nosso cotidiano. Queríamos percorrer o Brasil, conhecer as pessoas que poderiam nos contar suas histórias, fotografar paisagens que nos atravessassem, compor novas canções e criar roteiros que poderiam virar histórias, um documentário ou apenas uma página no diário de bordo. Para isso, era preciso pensar maneiras de viabilizar essas viagens. Tínhamos em mãos algumas experiências, ideias e práticas artísticas. Traçamos uma rota partindo de Belém até chegar à Bahia. Uma rota que, claro, foi sendo alterada significativamente ao longo do trajeto.

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Nosso primeiro passo foi criar uma lista de oficinas que poderíamos realizar. Na busca para fazer este livro, fui atrás dos e-mails enviados na época, e o que encontrei foi muito diverso, mas diz muito sobre o caminho que escolhemos traçar. As oficinas, voltadas para educadores, artistas locais e estudantes universitários, versavam sobre “Diversidade em Sala de Aula: Possibilidades para utilização da Lei 10.639”; “Comunicação e Mobilização”; “Memória e História: A construção de um projeto de pesquisa em história oral”; “A Arte no contar histórias: Práticas de narração e leitura na sala de aula utilizando-se da Arte” e “Elaboração de projetos tendo em vista a captação de recursos”. Com título, ementa, número de vagas, conteúdo e preço, esse material foi enviado para inúmeras faculdades particulares e públicas dos Estados que seriam percorridos. Muitas mensagens foram respondidas, algumas se perderam pelo caminho e outras se efetivaram em encontros. Relendo cada e-mail, percebi que a ideia que chamamos hoje de “produção afetiva” já dava seus primeiros indícios ali, o que me faz acreditar que ela nasceu justamente do nosso desejo genuíno pelos encontros. Para além das oficinas, também levávamos filmes em DVD para passar nas comunidades rurais. Nossa proposta era uma apresentação artística musical, com intervenção de poesias e contos, para abrir ou fechar a transmissão.

Nossa primeira parada nessa viagem foi Marabá, no Pará. Quando todos voltaram para suas casas após a edição do Projeto Rondon, nós ainda ficamos mais alguns dias na casa da mãe de uma amiga fotógrafa (Úrsula Bahia) – que nos oferecia o melhor da comida e do acolhimento paraenses. A essa altura, Téo Nicácio já tinha chegado (vindo de ônibus de BH) e, juntos, seguimos de transporte público para Marabá, de onde partimos para

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Parauapebas. De lá, pegamos o trem para São Luís. E aqui vale uma pausa para um pequeno causo:

Tínhamos combinado com a Gabi, uma amiga turismóloga que vivia em São Luís, de ficarmos hospedados na casa dela. O trem sairia às 6h da manhã com previsão de chegada no comecinho da noite. A gente pegaria as chaves com Gabi, porque na madrugada ela voaria para Belo Horizonte. No entanto, a viagem durou muito mais tempo que o previsto, e chegamos em São Luís praticamente na manhã seguinte, quando Gabi já tinha viajado. Numa época em que nos comunicávamos por telefone ou por e-mail, tínhamos acabado de perder nossa hospedagem em pleno Carnaval lotado de São Luís. Chegamos na estação ferroviária e por ali mesmo dormimos até amanhecer de fato. Depois do café da manhã numa lanchonete, me veio uma ideia que compartilhei com meus companheiros: “Há alguns poucos meses, o orientador da Gabi tinha me escrito, muito interessado nos meus estudos do Mestrado (sobre o Quilombo Kalunga). E me veio uma ideia: quem sabe ele não nos acolheria por alguns dias?” Claro que eu não pedi logo a hospedagem. Eu fui a uma lanhouse e mandei um e-mail explicando a situação e pedindo indicações de hospedagens mais econômicas. O plano deu certo: em poucos minutos, Joselito me escreveu dizendo que nos acolheria em sua casa, onde vivia com o companheiro dele, e ainda nos buscaria de carro na estação ferroviária. Assim, passamos nosso carnaval. Eles viviam em São José do Ribamar, numa casa no meio do mato. Nos ensinaram muito sobre o Maranhão, nos levaram à Casa Fanti Ashanti, e, depois de uma semana, partimos para Pedreiras, cidade do nosso grande mestre João do Vale.

O Orkut era a principal rede social da época e a utilizávamos muito para fazer contatos nas cidades, a partir de comunidades e

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de amigos de amigos. Foi assim que conhecemos Danielle, moradora de São Luís. A família fez uma grande festa para nos receber e nos apresentou pessoas incríveis vindas da cidade de Pedreiras (MA), onde nasceu o compositor brasileiro João do Vale. Imaginar que iríamos para a cidade em que ele tinha nascido deu um novo rumo para a viagem. Entre vários contatos, nos passaram o número do então secretário de Cultura do município, Wescley Brito. Eu liguei e ele ficou bastante interessado, mas não confirmou nada. No entanto, o “bastante interessado” bastou e nós seguimos para Pedreiras com todas as nossas malas e mochilas – que eram muitas. Ao chegar lá, liguei para ele e avisei que já estávamos na cidade, prontos para começar o trabalho.

Wescley é um grande poeta e foi ao nosso encontro, organizando todas as atividades, hospedagem e alimentação. Nós não cobrávamos nada. Tudo era sempre à base da troca.

Na primeira madrugada em Pedreiras, no quarto de hotel, eu e Chicó conversamos por toda uma madrugada. Falamos das tensões, dos sonhos de cada um, refletimos sobre o momento até ali. Em algum lugar dentro de nós, sabíamos que ali iniciávamos, de maneira muito intuitiva, nosso projeto cultural juntos. Era preciso que cada um de nós estivesse muito alinhado com o desejo do outro.

Foram dez dias de muitos trabalhos em Pedreiras. Norteados pela busca de uma vivência ética e coletiva e de um trabalho que fosse organizado horizontalmente, tanto na organização quanto nas relações com a comunidade ao entorno, desenhávamos também nossa primeira metodologia. Primeiramente, visitamos as comunidades rurais para conhecer mais da cidade . Fomos ao Largo da Onça, comunidade onde nasceu João do Vale, e conhecemos um primo seu. Por alguns dias, realizamos uma oficina

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sobre memórias, narração de histórias e tradições culturais no Auditório do Colégio São Francisco, no bairro Engenho, para poetas, atores, educadores e gestores da cidade. Fizemos um mergulho em criações artísticas coletivas a partir da memória viva daquela cidade, forjada na literatura de cordel e na música popular. Ao final, realizamos em um sarau que contou com a presença do prefeito na abertura institucional, a mediação de Wescley Brito e apresentações nossas e de todos os participantes que estiveram conosco naqueles dias.

Além do trabalho, a visita a Pedreiras teve muitos desdobramentos ao longo dos anos. Devido às experiências que eu tinha junto às comunidades quilombolas, ao chegar no Largo da Onça, pude identificar que haviam ali indícios de uma comunidade remanescente de quilombo. Pedi a Wescley para me levar lá mais algumas vezes. Depois de fazer algumas entrevistas no local, passei para a Secretaria de Cultura os caminhos para a identificação da comunidade pela Fundação Palmares. Anos mais tarde, a comunidade Largo da Onça foi reconhecida oficialmente pelo órgão.

Outro desdobramento daquela viagem foi a concepção artística de um espetáculo do grupo Boneco de Pano, de Contagem (MG), do qual Téo fazia parte, a partir do poema O Espetáculo da Vida. E eu ainda fui finalista do Prêmio Sesc de Fotografia em 2011, com uma imagem capturada no Largo da Onça.

Saímos de Pedreiras e fomos para Teresina, onde passamos alguns dias articulando conversas com artistas e com gestores públicos, como Chagas Vale, que nos falou sobre Acauã – um município que foi a marca do Fome Zero no primeiro mandato do governo Lula. Seguimos pra lá, mas antes, outro pequeno causo:

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Como contei há pouco, eu e Chicó criamos uma metodologia de viajar de ônibus: cada um em uma janela para criar conexões com o(a) passeiro(a) ao lado. Essa viagem foi assim. Bem perto das nossas poltronas, viajavam duas irmãs, muito jovens, cantoras gospel. Não demorou muito, Chicó e Téo tiraram os violões das capas e foram horas de cantoria no ônibus, dividindo opiniões. Alguns queriam dormir, outros diziam que a música estava animando a viagem. Foi nessa que uma senhora veio sentar ao meu lado para ouvir a cantoria mais de perto. Conversa vai, conversa vem, contei para ela sobre nosso projeto e tudo que carregávamos na mala. Ela era uma vereadora da cidade e então disse que organizaria nossa estadia por lá. Ao chegarmos na rodoviária, o marido dela colocou nossas bagagens na parte de trás da caminhonete e nos levou para um hotel. No dia seguinte, fomos encaminhados para a Pousada do SESC e assim realizamos mais uma semana de muitas oficinas e apresentações artísticas no sertão do Piauí. Um detalhe é que nessa viagem estreamos nosso cinema itinerante. No caminho de ida, atrás de uma caminhonete, fomos ouvindo Béradêro, do Chico César. Ao chegarmos, colocamos uma tela enorme, no meio da comunidade e exibimos Narradores de Javé (Direção de Eliane Caffé, 2003) num lugar onde nunca haviam assistido a um filme antes.

Do Piauí, fomos num ônibus fretado até Caruaru (PE), com pessoas que saíam de madrugada para comprar roupas nas feiras e depois revender. De Caruaru, seguimos para Recife. Caminhando pelo centro histórico, em um Museu, descobrimos que, naquele dia, o então ministro da Cultura, Gilberto Gil, daria uma coletiva de imprensa. Então, me veio uma ideia que logo compartilhei com Chicó: “Eu me formei em jornalismo, temos uma máquina boa. Bora lá fazer um cadastro de imprensa?”. Como os

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ventos naquela viagem sopravam a favor de nosso desejo pelos encontros, deu tudo certo e, poucas horas depois, estávamos lá, frente a frente com o Gil. Entre a emoção e a euforia, conhecemos o compositor Guitinho de Xambá, que após ouvir sobre nossa viagem, nos contou cobre o Programa Cultura Viva. Em seguida, disse que a gente precisava conhecer o Ponto de Cultura “Olha o Chico”, em Piaçabuçu (AL). E foi pra lá que seguimos.

Chegar em Piaçabuçu foi um marco em nossa caminhada. Ali conhecemos de perto o que eram os Pontos de Cultura, e tivemos o primeiro contato com a narração de histórias como uma linguagem artística. Ao chegarmos na rodoviária, fomos até a casa de Dalva e Jaziel, que viviam com seus filhos, com Baunga e com quem quisesse passar por ali. Uma casa à beira do Rio São Francisco – que logo depois seguiria seu caminho até desaguar no mar. Após a primeira acolhida, Dalvinha nos levou para conhecer a sede do “Olha o Chico”. Uma biblioteca, computadores, tecidos, crianças e jovens aprendendo música, mestres e mestras na porta conversando sobre os próximos projetos. Entro mais um pouco e vejo uma roda de crianças com uma contadora de histórias bem no meio. Era Linete Matias que, naquele momento, abria para mim um imenso portal.

Linete era uma griot aprendiz, cercada de muitos mestres e mestras que estavam ao seu lado, como Mestre Pagode, Mestre Cícero, Mestra Lourdes — artesão das bonecas. Havia junto muitas crianças e adolescentes em um grupo musical que chamamos de “Radiola Medonha”. O nome veio porque nessa mesma viagem, em São Luís, a gente foi tomar café em um bar e um senhor nos contou: “ontem tinha uns jovens aqui ouvindo uma radiola... olha, era uma radiola medonha!”.

Saímos de Piaçabuçu com brilho nos olhos e um desejo de

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caminhar junto com tudo que vivenciamos ali. De lá, fomos para Salvador e finalmente voltamos para casa, em Belo Horizonte. A partir de então, uma nova história começa.

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O Afeto como bússola

A palavra afeto tem sua origem no latim affectus, que significa “disposição, estar inclinado a”. A raiz vem de afficere, que significa “fazer algo a alguém, influir sobre”. Podemos imaginar que ele é como se ele fosse um sopro que nos move em direção ao outro, nos tornando abertos para troca à medida que também nos deixamos ser vulneráveis. E, a partir de todos os encontros que contamos até aqui, o afeto passou a ser o fio condutor de nossa trajetória, como uma expressão de conexão por meio da escuta, do tempo de qualidade, de um olhar atento ao outro, do cuidado, da presença e da empatia.

É indescritível a sensação que tive ao reler todos os e-mails, trocados entre nós e entre os parceiros que foram surgindo ao longo da caminhada. É ver um projeto de vida nascer, ver o crescimento de cada um de nós e as trocas feitas com uma comunidade de pessoas que passou a nos nutrir de formas diferentes. Voltar a 2008 me fez entender porque hoje conseguimos sustentar um trabalho como artistas, gestores, produtores e geradores de muitos trabalhos. Foi neste ano que, pela primeira vez, nos colocamos corajosamente vulneráveis ao que viria.

Chegamos de viagem, eu ainda dando aulas na faculdade, mas buscando os primeiros cursos sobre a narração de histórias, e Chicó fortalecendo seu trabalho musical. A gente dividia a mesma casa e o sonho de algo que era ainda invisível, porém

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já palpável, porque nos modificava diariamente. Foi nessa época que conheci o Instituto Aletria, que, além de oficinas, também realizava diversos projetos de narração de histórias pela cidade, entre eles, a Feira de Histórias e o Conto Sete em Ponto. Logo passamos a frequentar o espaço e ali conhecemos contadoras e contadores de histórias que foram muito importantes nesse momento, especialmente pela acolhida.

O Projeto Conto Sete em Ponto acontecia no teatro da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais. Chicó e eu fomos assistir à apresentação do espetáculo Contos de Todos os Cantos, com Renata Mattar (sanfona e voz), Giba Pedrosa (narração) e Gustavo Finkler (violão e voz). A experiência de assistir àquele formato simples, focado na palavra e na música, nos atravessou na mesma hora. Sentados um ao lado do outro, a gente se entreolhou como se dissesse “é isso, encontramos nosso lugar”. Após a apresentação, tivemos a oportunidade de conversar com eles. No dia seguinte, de novo, numa roda de conversa no quintal da Aletria. Foi quando soubemos que o grupo iria se apresentar novamente dali a duas semanas, em São Paulo. Lá fomos nós assistir outra vez. Era preciso sentir de novo aquela sensação. Depois da apresentação, Renata e Gustavo nos convidaram para ficar na casa deles. Claro que aceitamos. Foram duas noites de muito aprendizado, em que Renata e Gustavo nos falavam sobre o que era para eles a música na narração de histórias. O que o público espera desse encontro entre a palavra e a canção? A música que não é enfeite, é história também. É encontro com esse portal que se abre toda vez que uma voz conta que era uma vez.

Desse encontro, nasceu a amizade entre nós quatro. Em julho de 2008, viajamos juntos para a Argentina. A proposta era celebrar os quarenta anos do Gustavo. Eu e Chicó, muito gentil-

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mente, também fomos convidados. Nossa identidade como uma dupla ainda era muito fugaz, mas Renata e Gustavo nos acolheram de forma generosa. Ainda sem saber que estava fazendo produção, escrevi um release em espanhol, descolei contatos em diversos espaços da Argentina e, junto com Renata, fizemos um roteiro de viagem que começava em Buenos Aires e ia até Salta, passando por algumas áreas rurais do país. Em Salta, nos encontramos com artistas do candombe e depois, como de costume, a viagem tomou outros rumos pra todos nós, que acabamos nos reencontrando em muitas travessias.

Em 2013, Chicó e eu aprovamos nosso primeiro projeto no Fundo Municipal de Cultura de Belo Horizonte, que era a gravação de um CD. Não pensamos duas vezes e fomos até São Paulo convidar os amigos Renata e Gustavo para serem nossos diretores. Assim nasceu o trabalho “Contos de Lá nos Cantos de Cá”, que teve, entre outras gravações, O Par de Sapatos, de Pierre Griparie – a primeira história que tínhamos escutado com eles no projeto Conto Sete em Ponto.

Chegamos tão animados com esse novo universo, que, em 2008, com apenas duas ou três histórias na manga, nos apresentamos em quatro cidades de Minas Gerais. Fomos de ônibus de BH pra Recife e de lá para Porto de Galinhas, para nos apresentar na FliPortinho. Estivemos em 12 bibliotecas comunitárias de Belo Horizonte, além de creches, feiras literárias e outras ações de arte e educação. Nossa estratégia de venda dos trabalhos era assim: eu escrevia os textos do release e o Chicó diagramava no Word. Depois, buscávamos e-mails de escolas, fundações, feiras literárias, editoras etc. e enviávamos nosso trabalho, contando sobre nossa trajetória e propondo a realização das atividades.

Neste mesmo ano, criamos o Movimento Cultural Radio-

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la Mambembe, que se iniciou na viagem pelo Nordeste e continuou em Belo Horizonte, no Bar Massala, em Santa Tereza. Durante seis meses, semanalmente, realizávamos uma atividade cultural com diversos coletivos e artistas de BH e de Contagem, em uma transversalidade da música, do teatro, da literatura e das artes visuais.

Aqui tem um causo que acho vale muito a pena ser compartilhado:

Na primeira quinzena de julho de 2008, eu e Chicó fomos para mais uma edição Minas do Projeto Rondon, dessa vez na cidade de Setubinha. Ficamos apenas sete dias, porque de lá voltaríamos para BH e, em seguida, faríamos a viagem para a Argentina. Acontece que não havia ônibus direto para BH e resolvemos ir até Pedra Azul De lá, seguiríamos para Teófilo Otoni (onde dormiríamos uma noite na casa dos meus tios) e então chegaríamos a BH. Em uma época sem internet no celular e em que nem todos os lugares aceitavam cartão de débito, chegamos a Pedra Azul com apenas cinco reais. Fomos direto para o centro achar uma agência do Banco do Brasil para sacar dinheiro e seguir viagem. No entanto, não esperávamos a notícia de que não tinha agência do BB na cidade. Não sei de onde tirei essa ideia, mas olhei para uma agência do Banco Bradesco e pedi para o Chicó esperar do lado de fora. Entrei e pedi para falar com o gerente. Expliquei a ele a situação e pedi cinquenta reais emprestados, prometendo que, no dia seguinte, faria o depósito na conta dele. O gerente aceitou, me emprestou o dinheiro e, quando saí, não vi o Chicó. Esperei por uns cinco minutos, até que ele chega carregando balas, iogurtes (vencidos) e umas pipocas doces – tudo comprado justamente com nossos únicos cinco reais. Perguntei o porquê daquilo, e ele disse que tinha certeza de que eu conseguiria o

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Produção Cultural pelo Afeto dinheiro. E foi assim que compramos as passagens para Teófilo Otoni. No dia seguinte, claro, paguei o gerente do Bradesco.

Gosto de lembrar desses causos e eles sempre aparecem nas nossas conversas, como uma maneira de nos fazer retornar ao que somos. Escrevo esse livro em 2024 e temos muito mais responsabilidades, com projetos maiores, convênios com governos, uma equipe, mas é sempre importante voltar à nossa essência e nos perguntar: se a gente tirar tudo isso, o que nos resta? Momentos como este de Pedra Azul, ou de quando viajávamos sozinhos para conhecer o passageiro vizinho, traziam um misto de frio na barriga com o desejo de fazer dar certo, um tipo de risco controlado (mas nem tanto). E é justamente o afeto que nos deixa expostos a uma condição de vulnerabilidade, abertos e receptivos, sendo aquela capacidade de nos conectar com o próximo, de nos abrir para novas percepções.

Hoje conseguimos denominar o tipo de produção que fizemos, desde o início, como “produção afetiva”. Isso porque, quando olhamos para a produção cultural pela lente do afeto, ele nos faz ver uma rede de conexões que se tece naquilo que é do cotidiano. Produzir com afeto nos fez estar junto do outro por um bem comum. Portanto, cada ação da produção (desde enviar um e-mail até produzir um grande evento) está imersa em uma rede de acontecimentos que importam e, por isso, nos afeta e é afetada por nós.

Nosso desejo por um projeto coletivo se concretizou com a criação do Instituto Cultural AbraPalavra, em 2011, uma entidade cultural com personalidade jurídica sem fins lucrativos. Queríamos expandir os horizontes de nosso trabalho, alcançar comunidades rurais, urbanas, quilombolas, indígenas, entre outras, de maneira mais significativa, para além de chegar, realizar apresen-

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tações artísticas e voltar para casa. Queríamos estabelecer uma presença contínua, cultivando espaços para que outros grupos de contadores de histórias pudessem nascer, para realizarmos cursos de formação e trocas de saberes. Nos interessava a ideia de ampliar as oportunidades de trabalho para a comunidade, capacitando artistas e gestores públicos na elaboração e gestão de projetos culturais, e na elaboração, execução e capacitação na área de projetos. A institucionalização do AbraPalavra consolidou e ampliou práticas já existentes, e permitiu que mais pessoas fossem incorporadas à nossa missão de fomentar uma rede de produção cultural, com a valorização da participação ativa e do desenvolvimento comunitário.

Ao integrar afetividade e circularidade, o Instituto Cultural AbraPalavra propõe um modelo de produção cultural que é ao mesmo tempo empático e sustentável, baseado em um ecossistema de relações sociais e econômicas. O conceito de afeto de que tratamos aqui dialoga com os estudos do sociólogo Muniz Sodré1, que aborda o afeto de uma maneira enraizada nas interações sociais e culturais. Para além da mera expressão emocional, o autor incorpora uma dimensão mais ampla de conectividade e significado humano. Para Sodré, o afeto não se limita apenas a sentimentos ou emoções individuais, ele se expande para o campo das relações sociais, sendo um elemento crucial na construção e manutenção de laços. O afeto pode ser entendido como uma força vital que permeia as interações humanas, influenciando a maneira como as pessoas se comunicam, se relacionam e criam sentidos em suas vidas. Ele vê o afeto como fundamental para a compreensão da sociedade, não apenas em termos de estruturas

1 SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política.

Petrópolis: Vozes, 2006.

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e sistemas, mas também no que diz respeito às experiências vividas e compartilhadas que definem a condição humana. Sodré afirma que o afeto é essencial para a coesão social, atuando como uma cola que une indivíduos e comunidades. Ele encara o afeto não apenas como uma questão de emoção, mas como uma dimensão fundamental da existência humana que influencia a forma como entendemos a nós mesmos, os outros e o mundo ao nosso redor.

Como isso acontece na prática? Em 2016, estávamos finalizando um dia de trabalho na comunidade do Pompéu, em Sabará, quando começou a chover muito. Ficamos dentro da casa do Silas e da Fia aguardando o tempo firmar e, como de costume, tomando café com broa e falando da vida. Nessa tarde, contamos um pouco das nossas viagens internacionais para participar de diversos festivais. Foi nessa hora que veio uma pergunta de dentro pra fora e vice-versa. Por que a gente não faz nosso próprio festival e traz pro nosso quintal as pessoas que a gente quer ver de novo, para que mais pessoas assistam? Lembramos que havia um edital do Fundo Municipal de Cultura de BH aberto e ali mesmo começamos a rascunhar. Passados mais ou menos nove meses, o projeto foi aprovado. Em junho de 2017, realizamos a primeira edição da Candeia: Mostra Internacional de Narração Artística.

Para a realização da primeira Mostra, convidamos uma equipe bem maior do que estávamos acostumados a trabalhar, tais como assistentes de produção, técnicos, ilustradores, designers, fotógrafos, videomakers, narradores convidados, além de todos os outros profissionais e fornecedores envolvidos. Nesta primeira edição, a ideia de uma produção cultural afetiva e circular, proposta pelo Instituto Cultural AbraPalavra, traz o foco não

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apenas para o produto final, mas todo o processo e os laços que se formam ao longo deste caminho.

A produção cultural pelos afetos sugere uma abordagem que prioriza o impacto humanizado das relações construídas a partir das atividades culturais.

Tecer relações de afeto dentro da equipe da Mostra Candeia e de todos os demais projetos que o AbraPalavra realizou tornou-se uma metodologia de trabalho, não apenas para o sucesso final dos projetos, mas principalmente para a construção de um ambiente de trabalho coeso, produtivo, criativo e coletivo, onde todos buscavam um bem-comum maior. No contexto da gestão e produção cultural, organização de eventos internacionais, vários projetos realizados simultaneamente, onde a pressão e os desafios são constantes, o afeto é o nosso pilar para a sustentação de uma equipe engajada, motivada e que, acima tudo, trabalha por um mesmo ideal. O AbraPalavra conseguiu criar um ambiente de confiança mútua, essencial para uma comunicação aberta e eficaz. Em um campo tão dinâmico quanto o da produção de festivais, onde imprevistos são comuns, a confiança facilita o compartilhamento de ideias, preocupações e soluções de maneira franca e construtiva. O afeto aqui atua como um navegador que nos orienta pelos desafios com um sentido de unidade e propósito compartilhado. Nossa estrutura é colaborativa e permite que os membros do Instituto e de cada projeto que ele realiza façam parte das tomadas de decisão, criando um ambiente de compromisso coletivo.

A Mostra Candeia tem duração de uma semana. Durante esses dias, não existe a ideia de uma divisão hierárquica das atividades e do trabalho, assim como ninguém realiza uma atividade repetitiva e única, para que todos tenham uma visão completa

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do processo. Toda a equipe tem a oportunidade de se envolver em diferentes aspectos do evento, desde a banquinha de vendas até as apresentações dos artistas ou das mesas no palco, passando ainda pela produção das oficinas, ensaios técnicos, camarins, recepção do público e convidados, entre outras atividades e tarefas. Almejamos que cada pessoa experimente e compreenda as diversas etapas e responsabilidades envolvidas na realização da Candeia, queremos todos envolvidos no processo, até mesmo para que cada pessoa possa perceber com qual função se identifica mais. Aqueles que normalmente estariam restritos a uma única atribuição têm a oportunidade de expandir seus conhecimentos, habilidades e perspectivas, estando em várias etapas da realização da Candeia e contribuindo para um ambiente coletivo, e não individual.

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Cultural
Afeto
Produção
pelo

Novas rotas

Ainda no início de 2009, realizamos outra viagem pelo Nordeste e Norte, com a mesma metodologia da primeira. Saímos de Belo Horizonte com destino a João Pessoa, onde fomos recebidos pelo poeta e gestor cultural (na época era presidente da Fundação Municipal de Cultura) Lau Siqueira.

De João Pessoa, fomos a Alagoa Grande, onde passamos um tempo no quilombo Caiana dos Crioulos. Em seguida, partimos para Catolé do Rocha, terra do Chico César. Lá, conhecemos o Chico e a família dele, e também nos encontramos com o Téo Nicácio e o Diogo Magno, que se juntaram à trupe. Ainda em Catolé do Rocha, visitamos outra comunidade quilombola da região: a Lagoa Rasa, onde fizemos um documentário.

Seguimos para a Ilha do Marajó, onde nos encontramos com Mariana Prohman, uma amiga artista de Curitiba. De lá, fomos para Teresina de Goiás e Cavalcante, na região da comunidade Kalunga. Em todas essas cidades, contamos histórias, fizemos oficinas e fomos conhecendo uma gente que luta bravamente para manter o fazer artístico longe dos chamados “grandes centros”. Essa viagem também durou em torno de três meses, e foi a continuidade de nossas tentativas de experimentar os encontros como forma de produzir culturalmente.

No retorno a Belo Horizonte, focamos muito na criação e na participação de todos os encontros presenciais. E, assim, após

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assistir a muitas apresentações, conversar por longas horas com narradores de histórias, além de trocar muitos e-mails com eles, começamos a compreender melhor nossa identidade. O repertório, que começava a ganhar corpo, transitava entre contos da tradição oral e autorais, sempre na perspectiva da música como uma forma de contar histórias. Com o trabalho ainda começando, tínhamos como estratégia ter um apanhado de histórias que atendesse a públicos de diversas idades, até que fomos convidados para o festival Causos e Violas, organizado pelo contador de histórias José Bocca, em Votorantim (SP). Era nosso primeiro festival e escolhemos criar nossa primeira dramaturgia para a narração de histórias: Canto de Rio, que contava a história de uma moça chamada Doralice. Depois de conhecer o mar, ela vive uma história de amor e mistérios. O trabalho é costurado pelas músicas de Dorival Caymmi. Hoje, acredito que esse tenha sido nosso primeiro trabalho de narração artística, embora esse nome/conceito tenha sido pensado por nós alguns anos depois.

A participação no festival teve uma repercussão na minha vida profissional. Alguns meses antes, eu tinha me encontrado com o escritor José Eduardo Agualusa e, numa conversa, comentei com ele que estava vivendo 60% da minha vida para a arte. Então, ele me disse que era preciso ser 100% para chegar onde eu queria. Isso ficou guardado em mim.

Pedi licença do trabalho para participar do festival e não consegui. A solução que encontrei foi dar aula na quarta-feira à noite e, em seguida, viajar de ônibus para Votorantim. Cheguei pela manhã, participei das atividades e, no fim de tarde de quinta, fui para São Paulo, peguei um voo para Belo Horizonte e cheguei a tempo de dar aula novamente. Saí da aula, peguei o ônibus e voltei para Votorantim, onde fiquei até o fim do festival, no domingo.

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Algum tempo depois, senti uma dor insuportável e o diagnóstico foi cálculo renal. Fui visitar o Sílvio, acupunturista e contador de histórias. Ele me disse, enquanto colocava as agulhas, que aquilo era reflexo de algum medo. Naquela maca, decidi escolher seguir o caminho que eu desejava desde os primeiros diários. Ao acabar a sessão, fui ao banheiro e expeli a pedra. Não demorou muito, chegou o fim de semestre, saí da faculdade e procurei um contador para virar MEI.

Dispostos a desbravar o mundo, fizemos muitas apresentações artísticas em 2009. Nossa primeira viagem naquele ano foi para o festival internacional Mucucuentos, em Mérida, na Venezuela. Era a primeira vez que iríamos para aquele país que povoava nosso imaginário das mais diversas formas. Era também a primeira vez que contaria histórias em espanhol e para o público infantil. Eu já tinha viajado para outros países da América Latina para dar palestras ou participar de rodas de debate em universidades, mas dessa vez era muito diferente. Eu estava bastante na defensiva, diante de um espaço totalmente desconhecido. Tínhamos combinado que eu contaria em espanhol e o Chicó cantaria em português, até mesmo para que as crianças pudessem conhecer um pouco do idioma. De alguma forma, eu também me sentia pressionada nessa lógica e, por isso, os momentos prévios às apresentações eram um tanto tensos. De muitas formas, essa viagem me afetou como narradora de histórias. Quando chegamos ao aeroporto de Caracas, uma contadora de histórias e um amigo nos esperavam no saguão segurando um cartaz com nossos nomes e um sol desenhado. Ela nos levaria para um hotel, mas, no meio do caminho, mudou a rota e perguntou se gostaríamos de ficar na casa dela. Claro que aceitamos e chegamos em uma casa que parecia saída dos contos de fadas.

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Era pequena com muita cor, luzes pequenas e bruxas e gnomos por todos os cantos. Na frente, uma varanda, onde durante a noite, tomamos algo e cantamos. Lembro do Chicó tirando o violão e cantando uma música brasileira que todos conheciam. Nessa hora, eu tive um sentimento que nunca esqueci: era uma espécie de saudade antecipada. Fiquei muito grata por ter aceitado o convite de ir para a casa de uma pessoa que não conhecia, mas que me foi apresentada pelas histórias. Seguimos um pouco mais fortes para Mérida, vivenciar nosso primeiro festival fora do país e conhecer esse universo que anos mais tarde passamos a adentrar. A tensão gerada pelo medo de as crianças não me entenderem foi logo se transformando em uma genuína alegria compartilhada por elas. Como eram generosas com meu portunhol, como estavam abertas à escuta, ao aprender junto comigo. Perceber que contar histórias em outro idioma poderia se tornar um jogo foi me deixando mais confiante ao longo dos dias. O afeto compartilhado me deixava predisposta a ser atravessada por tudo que se apresentava na experiência oferecida pela narração.

Lembro que, certa vez, a narradora de histórias e parceira do AbraPalavra Bárbara Amaral contou em uma oficina que algo parecido havia acontecido com ela: após narrar a lenda urbana de Belo Horizonte “Capeta do Vilarinho” em portunhol em um festival no Peru, na cidade de Trujillo, uma senhora já bem velha, que tinha sido atriz a vida inteira, disse a ela: “Hoje todos nós falamos uma única língua”.

O Festival em Mérida, que duraria 15 dias, acabou sendo realizado em apenas uma semana. Assim, ganhei um bom tempo para conhecer o país. Voltamos para Caracas e assistimos a um histórico discurso de Hugo Chavez. Também pudemos conversar e conhecer um pouco melhor as pessoas. Chicó voltou para Belo

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Horizonte e eu ainda fui passar alguns dias na região litorânea do país, onde também vivi outras aventuras com as pessoas que fui conhecendo no caminho.

Foi também em 2009 que iniciamos nossas parcerias com projetos que tinham relações ampliadas entre livro, leitura, literatura e comunidade. O programa “Bibliotecas Sempre um Papo” foi um deles. Estivemos em diversas bibliotecas de BH e da região metropolitana, com apresentações artísticas e atividades de formação. Este projeto nos deu as primeiras percepções de que biblioteca era também um espaço potente para construções de laços e parcerias.

Os dois anos seguintes foram fundamentais para nosso trabalho artístico e de organização financeira. Em 2010, Chicó foi pai do Luan – nosso companheiro de muitas histórias desde então. Eu, que tinha saído do trabalho como professora universitária, tinha certeza de que precisaria dar certo e fiz uma organização para isso. Ainda que não tivesse nenhuma proximidade com planilhas e números, passei a adotá-los como guias dessa nova fase. Com o dinheiro da rescisão, me organizei e coloquei como meta que, em dois anos, estaria vivendo exclusivamente do trabalho artístico. A primeira medida foi me tornar MEI, que era ainda algo muito recente, criado por meio da Lei Complementar nº 128/2008, e que tinha entrado em vigor em julho de 2009. A maior dificuldade foi encontrar um contador que topasse me ajudar nessa formalização. Acabei fazendo tudo praticamente sozinha, confiando que daria tudo certo. Escolhi o MEI porque começaria a mandar nossos projetos para empresas e para prefeituras, e sabia da importância da regularização.

Avisamos aos quatro ventos que estávamos livres para trabalhar com a arte e que já podíamos emitir nota fiscal. Com essas

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Produção Cultural pelo Afeto

duas informações, batemos em muitas portas, conversamos com muitas pessoas, enviamos e-mails para escolas, feiras literárias, prefeituras, escolas, bibliotecas, empresas. Onde tivesse uma pessoa disposta a ouvir histórias, nós estávamos lá. Compreendendo que agora tínhamos o tempo a nosso favor, passamos a enxergar cada dia como um vasto território de novas possibilidades e novas maneiras de ser e de fazer arte e cultura. Entrei no curso de Produção Cultural do ODC – Observatório da Diversidade Cultural, que era oferecido gratuitamente no Palácio das Artes. Mais do que instrumentalizar, o curso me ofereceu uma formação reflexiva e propositiva, com partilha de textos, provocações e a importância do trabalho feito no coletivo. Descobrir a produção e a gestão cultural como um caminho para dar sustentabilidade ao nosso trabalho foi uma virada de chave fundamental. Para mim, era visível que precisa conhecer mais a fundo os pilares da produção cultural, e assim desenvolver um trabalho amparado também em técnicas que iriam proporcionar o sucesso na execução de nossos trabalhos e projetos.

Nesse período, como ainda não tínhamos condições de ter uma equipe, passamos a acumular funções de produtores, gestores, comunicadores, artistas, educadores e divulgadores. Nós aprendíamos tudo isso junto. Chicó começou a tocar violão aos 18 anos, eu tinha feito teatro na adolescência, mas comecei a pesquisar mesmo a linguagem artística da narração oral somente aos 24. Assim, nós tentávamos criar um tipo de aprendizado que estabelecesse uma relação dialógica entre esses conhecimentos. Enquanto nos debruçávamos na criação artística para desenvolver nossa identidade, tentávamos entender sobre marketing, comunicação e produção, sabendo que o que “vendíamos” era algo intangível. Perceber como os conhecimentos poderiam con-

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tribuir entre si foi o caminho escolhido. E, como desde o início, nossa essência era ser transeuntes, compartilhamos, a partir de agora, alguns movimentos que fizemos nessa direção.

47 Parte 2 - Pé na Estrada

Parte 3 - Rotas Escolhidas

As duas mulheres e o céu Conheci essa história no Kalunga, que é uma comunidade quilombola de Goiás. Morei um tempo por lá. Um dia, eu estava deitada na rede da casa de Dona Lió. Era uma casa feita de adobe na comunidade da Ema. À noite, comecei a escutar umas mulheres que ninavam as crianças com murmúrios e cantigas. Então, eu levantei, girei a tramela da janela e fiquei escutando aquelas mulheres. Nessa hora, a Dona Lió, que estava acordada, acendeu a lamparina e começou a conversar comigo. Ela falou para eu olhar pro céu e começou a me contar.

Há muito tempo, no início do mundo, a distância entre o chão e o céu era bem menor do que é hoje. Dava até pra gente tocar nas nuvens, se esticasse um pouco o nosso corpo. Nessa época, duas mulheres muito amigas viviam em algum lugar lá da África. Elas passavam o dia inteirinho juntas, trabalhando com seus pilões. Elas pilavam o milho, pilavam o arroz. Pilavam e cantavam, pilavam e falavam. Às vezes, elas falavam bem baixinho, trocavam segredos, mas outras vezes não. Iam chegando mais mulheres e elas iam pilando e cantando e falando, e um dia uma dessas mulheres pilou tão alto que fez um furo no céu. O céu reclamou, mas não adiantou nada. Elas continuaram pilando e falando, pilando e cantando. E o céu, então,

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começou a se afastar da terra, bem devagarinho. Ele foi subindo, subindo. À medida que ele subia, começou a ver outras mulheres pelo mundo. Mulheres que navegavam, mulheres que lutavam, mulheres que defendiam seus povos. E ele foi subindo até chegar no topo do mundo, que é onde está até hoje. Dona Lió me contou que aqueles buracos nunca mais foram fechados. Até hoje, se a gente abrir a janela do quarto à noite e olhar para o céu, pode ser que a gente escute essas mulheres cantando. Porque aqueles buracos se transformaram nas estrelas que iluminam a escuridão da noite.

Muitos anos depois, escutei essa história, contada mais ou menos assim, também em Cabo Verde.

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Movimento 1 – As parcerias

“Andar em bando” é um termo que a contadora de histórias Emilie Andrade nos deu de presente e, desde então, o usamos frequentemente, porque ele representa muito do que é o nosso trabalho. Em 2010, escrevemos nosso primeiro projeto cultural para uma chamada pública. O edital era Bolsa de Circulação Literária – Funarte e previa oferecer bolsa para pessoas que desejassem desenvolver atividades de fomento à área literária, como oficinas, cursos, palestras e programas de contação de histórias. As ações deveriam acontecer nos municípios atendidos pelo programa Territórios da Cidadania, do Governo Federal e foram concedidas 50 bolsas, cada uma no valor de R$ 40 mil. Nós enviamos o projeto “Da Estante pro Instante e Vice-Versa” e fomos aprovados em 2º lugar na região Sudeste. Foi uma festa! Nosso primeiro projeto aprovado. Mas a festa quase se transformou em drama. Estávamos em Uberlândia, fazendo um trabalho para o SESI, quando meu telefone tocou lá do Rio de Janeiro, informando que o documento que eu tinha enviado para comprovar endereço não era válido. Eu morava de aluguel em um barracão de fundos, numa casa em Santa Tereza. Estava a muitos quilômetros de casa. Liguei para todos os meus amigos possíveis. Dois deles, Bianca e Teo, foram imediatamente para a minha casa tentar encontrar algum comprovante. Depois de

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muito procurarem, Bianca teve a ideia de procurar na caixa de correios. Sim, lá estava uma conta recém-chegada da internet. No último dia, consegui enviar o documento e tudo deu certo. Foi o primeiro perrengue burocrático de centenas que viriam pela frente.

O projeto realizou a “Semana das Letras, da Música e da Memória” e passou por Teodoro Sampaio (SP), São Romão (MG), Santa Fé de Minas (MG) e Cavalcante (GO), municípios escolhidos por estarem intrinsecamente ligados desde as primeiras décadas do século XVIII, pela formação histórica advinda das rotas das minas. Com entradas por terra e localizações próximas a importantes vias fluviais (rios Santo Anastácio, São Francisco e Paranã), tornaram-se ponto de ligação entre o sertão e o Atlântico. Logo depois, também fizeram parte da rota de tropeiros, que levavam suas mercadorias para o centro-oeste brasileiro.

Com a intenção de reconhecer esta memória coletiva, valorizar a identidade e promover a diversidade cultural local, o projeto “Da Estante pro Instante e Vice-Versa” levou a estes municípios formação em contação de histórias, oficina de poesia e possibilidades no digital, apresentações artísticas e sarau cultural. Fizemos uma viagem precursora, para pré-produção, e depois voltamos para as atividades presenciais.

Ao fim do projeto, produzimos um pequeno livro, em forma de um antigo caderno de viagens, com um passeio pelas histórias e letras de cada lugar. O caderno-livro, com 14 páginas, foi realizado a partir de fotografias e seleção de textos produzidos nas atividades de criação literária e da pesquisa da literatura de tradição oral, e foi encaminhado, em versões impressa e online, para todas as Secretarias Municipais de Educação – com o devido direcionamento para seu arquivo nas escolas, bibliotecas

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e centros sociais. O projeto também contou com a participação da contadora de histórias de São Paulo, Vivian Catenacci, que já tinha realizado trabalhos em Teodoro Sampaio (SP). Pouco tempo antes, Vivian havia defendido o mestrado com uma dissertação sobre o ofício do contador de histórias, um texto que ficou durante muito tempo na minha cabeceira e me ajudou muito a iniciar as reflexões sobre a narração: “O voo dos pássaros: uma reflexão sobre o lugar do contador de histórias na contemporaneidade”.

Escrever e executar esse projeto nos fez entender que escrever um projeto também era “contar uma boa história”. Essa “fórmula” foi utilizada em diversas outras iniciativas do nosso trabalho, como contaremos mais adiante. “Da Estante pro Instante e Vice-Versa” nos rendeu muitas outras atividades. Voltamos algumas vezes a Santa Fé de Minas, estivemos na Funarte para falar sobre o projeto em um seminário, fizemos uma reunião local na Funarte com outros contemplados pelo edital, conhecemos outros contemplados que se tornaram parceiros ao longo da vida e, principalmente, percebemos a importância de colocar as parcerias e o trabalho em rede como pilares daquilo que estávamos construindo. Também fui convidada para escrever sobre o projeto no livro sobre a primeira edição do Encontro Funarte de Políticas Públicas para as Artes, que reuniu gestores, produtores, autoridades e pesquisadores do segmento cultural . O livro era uma reflexão sobre o papel das instituições públicas no desenvolvimento das linguagens artísticas.

A construção de redes e parcerias estratégicas desde o início nos ofereceu um leque ampliado de recursos, não só financeiros, mas também de conhecimentos técnicos, humanos, de infraestrutura e de comunicação. Chamo de parcerias um tipo de rela-

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ção que é colaborativa, ou seja, em que duas ou mais organizações trabalham juntas para alcançar um objetivo comum e que só poderia ser atingido em colaboração. Parceria é uma relação que se baseia na confiança e na partilha de competências, recursos, riscos e benefícios. Na prática, sempre tivemos parcerias com diversas instituições, sejam elas públicas ou privadas. As primeiras parcerias formalizadas que tivemos foram com o Instituto Imersão Latina, de Belo Horizonte, e com o Museu do Ouro/ Ibram, de Sabará (MG). Após uma apresentação sobre o projeto “Da Estante pro Instante e Vice-Versa“, na primeira edição do Encontro Política para as Artes, na Funarte (RJ), uma moça me chamou e perguntou se tentaríamos o edital Pontos de Memória. Eu tinha lido sobre o edital, mas expliquei que não conhecia a fundo o tema Museologia Social e ela, muito gentilmente, disse que poderia fazer uma chamada de skype para me explicar mais. Na conversa virtual, ela me explicou que um museu vai além do espaço físico. É um território, a partir do conceito de Museologia Social. Nessa perspectiva, os processos de memória são organizados pelas pessoas das comunidades, por grupos e movimentos sociais, em formatos abertos reconhecidos como memória social brasileira.

Alguns meses antes, eu tinha ido pela primeira vez à Comunidade do Pompéu, em Sabará, com a Isabela – educadora do Museu do Ouro (que eu tinha conhecido no curso de Produção Cultural da ODC). Estava na produção de um espetáculo sobre os cinquenta anos do museu. Fomos lá almoçar no restaurante Moinho D’água e ouvir algumas histórias. Após o almoço, Isabela pediu pra eu contar uma história debaixo de alguma árvore por ali. Quando comecei a contar, foram chegando muitas pessoas, de diversos cantos. Contei a história Par de Sapatos. Uma

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moradora disse que a contaria para o pai assim que chegasse em casa. Outra começou a me contar uma lenda que circulava pela região. Eu prometi que voltaria lá muitas vezes. E assim foi. Quando entendi melhor sobre museologia social, chamei a Isabela para escrevermos juntas um projeto para o edital Pontos de Memória, a ser realizado no Pompéu. Conversei então com a Brenda, diretora do Instituto Imersão Latina, para que ele fosse o proponente. E assim nasceu o Ponto de Memória do Pompéu, com o projeto aprovado logo em seguida. Para que o projeto pudesse ser executado, trabalhamos de forma compartilhada entre os grupos, gerando responsabilidades conjuntas. Já conhecer o Imersão Latina e seus fundadores há anos também foi muito importante para que tivéssemos uma compreensão comum sobre o enquadramento do projeto, seus princípios, valores e abordagens, além da relação colaborativa que envolvia a responsabilidade compartilhada de resultados, prestação de contas e obrigações. Para executar o projeto, também criamos outras parcerias, como a Escola Municipal Rosalina Alves Nogueira, que recebia os encontros às quintas-feiras à noite. Para isso, era preciso organizarmos a utilização do espaço, a presença de um funcionário, o horário de fechamento e a entrega das chaves, dentre outras coisas.

Desde que passamos a nos dedicar exclusivamente às atividades artísticas e culturais, firmamos parcerias com editoras, prefeituras, escolas das redes pública e privada, centros culturais, museus, organizações do terceiro setor, iniciativas privadas e outros. Fazer parcerias foi sinônimo de sobrevivência para o nosso trabalho e talvez exatamente por isso nunca tivemos medo de procurá-las. Sabemos que o setor cultural no Brasil é um dos que mais sofrem com o baixo orçamento, o que piora a cada crise

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econômica ou financeira que o país atravessa, assim como a cada eleição de representações do perfil neoliberal. Nesta concepção, pensar um trabalho que se realiza em parceria e também em rede é refletir sobre a solidariedade como prática social e econômica. Prática essa que se expande para a esfera pública. Nesses quase 18 anos de trabalho, são inúmeros os exemplos sobre esse tipo de parceria que podemos trazer aqui.

Nós produzíamos nossos releases, criávamos apresentações a partir das agendas temáticas das escolas ou de temas universais, separávamos um tempo diário para enviar para listas de escolas, prefeituras, editoras, escolas, feiras literárias. Não conseguíamos enxergar outro caminho a não ser esse. Queríamos criar condições para um trabalho digno e contínuo, tanto artístico quanto de produção. Sabíamos o que poderíamos oferecer e o que nos faltava. Estávamos começando a entender as lacunas e as potências. A narração de histórias estava ganhando cada vez mais espaço, e nosso trabalho, que unia as histórias e a música, foi conquistando o público, que continuou nos acompanhando nos anos seguintes. A organização administrativa e de comunicação visual do nosso trabalho também oferecia uma confiança para quem fosse nos contratar. Aos poucos, a mídia impressa também passou a se interessar pelo nosso trabalho, e jornalistas se tornaram nossos parceiros, ampliando para o mundo dos periódicos essa “amizade que gera bons frutos” – como publicou o jornal O Tempo em uma das matérias sobre nossa parceria.

Como vimos, nosso conceito e nossa prática de parceria estão intimamente ligados à ideia de compartilhamento. Essa percepção ficou mais clara após nosso retorno de Cuba. Entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, estivemos no Festival AfroPalavra, em Havana. Pouco antes de embarcarmos, fiz contato com uma

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amiga que tinha ido a Cuba com as Brigadas Populares. Ela me passou o contato do jornalista cubano Alexei, para quem enviei um e-mail, contando o que faríamos lá. Alexei me respondeu rapidamente e, no dia em que aterrissamos em Cuba, ele estava no aeroporto, junto da equipe do Festival, com uma câmera na mão registrando tudo. Nosso futuro amigo tinha pedido licença do trabalho para nos acompanhar durante os dias do festival e ainda faria um documentário. Conhecer Havana com o olhar atento, cuidadoso e histórico de Alexei foi um presente, porque era possível ver de perto o que aquela ilha tão falada no mundo todo tinha de mais genuíno a nos ofertar.

Passamos a virada do ano na casa de Mirta Portillo, a coordenadora do Festival. Nesse dia, estavam assando um carneiro e era dia da festa de Babalú Ayé, uma das entidades da santeria cubana mais conhecidas e respeitadas. A casa estava cheia, muitas pessoas cantando, conversando e nos contando um pouco sobre a história daquela família que, de repente, se tornava tão próxima de nós. Virar o ano nessa casa, junto com Chicó e outros dois companheiros de viagem, era algo que definitivamente trazia mais luz para nosso caminho dali pra frente.

O Festival também foi um divisor de águas. Primeiramente, pela diversidade artística dos grupos que estavam se apresentando e das possibilidades que se abriam para nós. Nossas apresentações foram para o público adulto, concentrado em dois espaços muito bonitos e próprios para a escuta, no centro histórico de Havana. Levamos, eu, Chicó e Raphael Salles, o trabalho Baobá Griot, que trazia contos recolhidos por nós em comunidades quilombolas do Brasil, além de muita musicalidade com percussão, violão e vozes. O público conhecia as músicas, era receptivo à escuta das nossas histórias e, ao final, parecíamos que estávamos

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ali havia horas compartilhando contos e canções sem fronteiras. Poetas, músicos, artistas plásticos, médicos, professores e jornalistas se juntaram a nós em diversas caminhadas pela cidade, cada um nos apresentando uma sociedade cubana baseada nos valores nascidos e alimentados pela solidariedade e pela equidade. E vimos isso nas sólidas manifestações de solidariedade com a gente, como, por exemplo, um rodízio de pessoas que enviavam e-mails (de seus trabalhos) para nossas famílias que estavam no Brasil, dando notícias, uma vez que a internet paga (em hotéis, por exemplo) era muito cara.

Chegamos no Brasil em janeiro de 2011, depois de uma breve passagem por Costa Rica, onde ficamos na casa de uma contadora de histórias que conhecemos via Red Internacional de Cuentacuentos. Com as diversas parcerias e redes já formadas ao longo dos anos, olhamos para o futuro com lentes aguçadas pelas últimas experiências.

As experiências em Cuba, Costa Rica e os outros encontros pelo Brasil nos ofertaram referências e instrumentos para que déssemos o primeiro passo para a institucionalização. As vivências aliadas à energia criativa que nos impulsionava, potencializada pela juventude e pelo desejo de fazer nascer algo novo, que nos desse oportunidade de ir além, juntando mais pessoas, ampliando o alcance de nossos trabalhos e quem sabe, transformando a realidade ao nosso redor, foram fundamentais. As oportunidades que tivemos por meio de tantas parcerias fizeram com que tivéssemos acesso a muitos conhecimentos sobre os modos de fazer cultura. E foi assim que, no dia 17 de março de 2011, nasceu o Instituto Cultural AbraPalavra.

Após a criação do instituto, continuamos criando muitas redes, mas uma chave muito importante “virou” em nossa traje-

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tória: nós passamos a ser um lugar em que as pessoas buscavam parcerias. Animados com essa nova fase e conscientes da importância do caminho coletivo, o AbraPalavra já nasceu calcado no trabalho colaborativo e em rede, abrindo caminho para ampliar e democratizar o acesso ao conhecimento e às informações, possibilitando a atuação coletiva, propiciando a troca de experiências e de serviços das diversas etapas da cadeia da economia criativa, como produção, fruição, distribuição. O Instituto AbraPalavra tornou-se um lugar de acolhida e contribuição para mediação entre sociedade civil e poder público, para atuação nas políticas públicas locais e regionais. Abria-se a possibilidade de intercâmbio entre grupos artísticos e culturais, fomentando a formação de mais parcerias e de novos projetos.

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Movimento 2 - A institucionalização do coletivo

Quando criamos o Instituto Cultural AbraPalavra, sabíamos que seria uma aposta a médio e longo prazos, mas começamos a utilizar nos nossos trabalhos nomes como Coletivo AbraPalavra, grupo AbraPalavra e até Caravana AbraPalavra. Em 2011, nos dedicávamos muito mais ao trabalho de artistas e sobrevivíamos basicamente da venda de apresentações artísticas e cursos de formação. A rotina era muito pesada porque éramos apenas nós dois fazendo tudo dessa produção. E ainda iniciávamos a fase de escritas de projetos culturais e de participação social nas atividades políticas do município.

Durante muitos anos, saíamos de casa por volta de 5h da manhã, pegávamos metrô e ônibus, para chegarmos às 7h para as apresentações e formações nas UMEIS (Unidades Municipais de Educação Infantil). Em geral, passávamos o dia todo nas escolas, até almoçando, e só íamos embora às 17h. Nossas apresentações, em geral, eram no início da manhã e no início da tarde, e as formações aconteciam durante o dia, aproveitando os horários de projeto dos professores. Como não havia tanto acesso à internet, nós usávamos os intervalos para fazer ligação para outras produções e pedíamos os computadores das salas dos professores para

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produzir releases, diagramar novos materiais, procurar novos trabalhos e responder e-mails. Assim, passávamos muitas horas nas escolas. À noite, fazíamos ensaios ou nos apresentávamos em outros eventos, como congressos, seminários e até homenagens (em que contávamos a história de vida do homenageado).

Também nessa época, fazíamos muitos trabalhos para editoras, que nos contratavam para contar as histórias de seus livros em escolas, salões e feiras de livro. Essa experiência nos ajudou muito a ampliar nosso repertório e a construir artisticamente nossas apresentações. No entanto, quando alguma história não nos atravessava, tornava-se algo um tanto doloroso, mas acabávamos fazendo, tentando encontrar nela algo que tivesse significado para a gente, fosse uma palavra, uma imagem, um personagem.

Uma questão importante é que, embora o mercado cultural dos contadores de histórias viesse se mostrando cada vez mais crescente, tínhamos que criar, para além das vendas, ações estratégicas ao longo de todo o ano. Nos meses de janeiro a março, em Belo Horizonte, devido às férias escolares, remanejamento de verbas públicas e outros fatores, a demanda pelo trabalho diminuía em quase 80% em relação aos outros meses do ano. Este foi um dos gargalos identificados e trabalhados por nós. Mensalmente, levantávamos receitas e despesas, discutindo e desenvolvendo estratégias para os recursos futuros, especialmente numa organização para esta época mais crítica do ano. Ao estabelecermos parcerias de continuidade, conseguimos construir uma agenda de atividades, como prefeituras municipais, por meio da utilização do ICMS Patrimônio Cultural, e os espaços culturais que oferecem atividades durante as férias escolares. Além disso, fazíamos uma poupança anual para ser utilizada como nossos

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salários nestes meses mais difíceis.

Outro gargalo encontrado foi com relação aos baixos valores pagos pelo mercado às apresentações de narração de histórias em detrimento a outros segmentos das artes, como o teatro e a música. As parcerias e debates com outros narradores de histórias, assim como a manutenção da qualidade artística e principalmente, a profissionalização de nosso trabalho, começou a trazer novos olhares do mercado para o segmento que, se ainda não pagava os mesmos valores, começava a ficar mais aberto para discussões e consequente valorização desses artistas. Essa foi uma causa que abraçamos desde o início das nossas atividades e colocávamos as discussões sobre a valorização da narração em todos os espaços possíveis.

Escrever projetos para os editais nos ajudou a olhar para a nossa estrutura de produção e a ampliar esse corpo de trabalho. Consequentemente, abrimos mais espaço para a narração. Após a Bolsa Funarte de Circulação Literária, ganhamos alguns Prêmios nos dois anos seguintes: Agente Jovem do Ministério da Cultura (2012), com o trabalho do Chicó; Darcy Ribeiro Minc/ Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) (2012); Pontos de Memória (2012 e 2013); Microprojetos São Francisco Funarte (2012); Cultura Afro-Brasileira Fundação Palmares (2013); e Prêmio Programação Cultural Oficial da Copa do Mundo Ministério dos Esportes (2013).

No edital Microprojetos São Francisco, tivemos dois projetos aprovados e, com isso, diminuímos os trabalhos realizados com as editoras. Passamos então a nos dedicar a uma pesquisa autoral, além dos contos de tradição oral. Um dos projetos foi realizado em Itaguara (MG), com apresentações artísticas, pesquisa de campo, entrevistas e cursos de formação na cidade e na

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área rural. O outro projeto foi inteiramente de criação e fruição artística, chamado Vida e Obra. Contamos as histórias de artistas que viveram em cidades à beira do Rio São Francisco e, depois de cada apresentação, fazíamos um bate-papo com os jovens, além de uma troca de vivências também realizada com os educadores das instituições participantes em cada cidade. A intenção era falar sobre a pesquisa e a concepção artística do “Vida e Obra”, orientando para formas de se trabalhar o conteúdo após a aula-espetáculo. Também foi neste mesmo período, em 2012, que aprovamos nosso primeiro projeto no Fundo Municipal de Cultura de Belo Horizonte: a produção e gravação do CD “Contos de Lá nos Cantos de Cá”.

Embora a criação do Instituto tenha sido pensada para uma atuação a médio/longo prazo, esse tempo nos deu um impulso muito grande para realizar projetos, porque sabíamos que, lá na frente, a continuidade existiria por meio do AbraPalavra. Nós criávamos sentidos para o instituto, à medida que organizávamos nossas ações, atividades e coletivos. Criar sentido é fazer uso das narrativas, observando o papel das histórias na descoberta e cultivo de significados, e na compreensão dos processos, como um meio primário para conectar significado às vivências.

Em 2013, efetivamente, passamos a atuar com o instituto, cientes de que nosso trabalho só seria realmente sustentável, tanto artisticamente quanto economicamente, se fosse feito de maneira organizada, colaborativa, circular e participativa no âmbito das políticas públicas para o setor. Hoje, ao falarmos sobre o AbraPalavra, em mesas de debate, entrevistas, encontros, lives, oficinas, uma característica que sempre destacamos é essa produção organizada, circular e afetiva, que faz com que tenhamos um ambiente horizontalmente construído e bastante flexí-

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Produção Cultural pelo Afeto

vel às mudanças e transformações, a partir do que o cotidiano nos aponta. Em muitos ciclos, especialmente quando estamos a todo vapor na execução dos projetos, existem movimentos que vêm de fora pra dentro. Diante desses movimentos, recorremos à resiliência, capaz de nos fazer aprender com o que passou, para seguirmos firmes em nossos propósitos. Ao mesmo tempo, sempre separamos uma brecha para observar o movimento que é interno, que vem de dentro pra fora. É ele que nos faz dar pausas para retomar o caminho. Experimentamos um constante movimento de recolhimento e expansão, norteados pelos princípios que nos orientam: o afeto e a empatia.

Entre 2012 e 2013, iniciamos outra fase importante: a do crescimento da equipe. Primeiro, contratamos a Verlaine Prado, que cuidaria da organização geral do instituto, organizando os papéis, deixando a documentação e os pagamentos em dia, cuidando da agenda e dos contatos. Ela ia três vez por semana à tarde na minha casa, onde, até então, funcionava a sede do AbraPalavra. A presença da Verlaine passou a nos dar mais tempo para procurar parceiros, vender os espetáculos e as formações, além de agilizar o envio de projetos, uma vez que as documentações necessárias já estavam sempre atualizadas e organizadas. Logo em seguida, chegou mais uma pessoa para a equipe: a Tatiane Reis, com quem eu já tinha trabalhado em emissoras de rádio e produtoras (final dos anos de 1990 e início dos anos de 2000). A Tati, formada em Relações Públicas e com experiência em eventos sociais, me ligou para contar que tinha saído do seu emprego e queria experimentar outros trabalhos. Conhecendo o perfil empreendedor e organizado da Tati, a convidei para estar com a gente na produção executiva. E, claro, apresentei a Tati para todos os artistas que conhecia para que ela também pudesse

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experimentar essa vivência, além de criar suas redes de contatos. A presença da Tati no AbraPalavra foi muito importante. Ela cuidava das produções, nos dando mais tempo para trabalhar nas criações artísticas e também nos dedicarmos às escritas dos projetos – um universo pelo qual ela também passou a se interessar. Nosso acordo no início era que 10% de todo rendimento do mês seria repassado para ela, além da sua participação efetiva em todos os projetos aprovados dali pra frente. A conexão de trabalho com Tati e Verlaine foi fundamental, porque elas, acima de tudo, acreditaram no nosso sonho e compartilhavam dele.

Entre 2013 e 2014, o Instituto AbraPalavra se firmou como uma Organização da Sociedade Civil (OSC), que une a experiência de gestão da sociedade civil e o comprometimento com a base comunitária. A partir dos projetos de museologia social, memória e cultura, também passou a fazer parte de conselhos e comissões paritárias, além de participar de eventos culturais pelo país, representando a sociedade civil. As OSCs são entidades privadas, sem fins lucrativos, com CNPJ, constituídas em forma de fundações ou associações. Há ainda uma dúvida no imaginário social se OSC e ONG são a mesma coisa. O termo OSC, usado pela primeira vez pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) na década de 1990, foi adotado no Brasil a partir da publicação do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). Desde então, o termo ONG (Organização Não Governamental) caiu em desuso. No caso do AbraPalavra, a personalidade jurídica escolhida foi de Associação, que é resultante da reunião de duas ou mais pessoas para realização de um objetivo comum, no nosso caso, ligado à arte, cultura e educação. Para que ela existisse, foi criado um estatuto, com informações como missão, denominação, objetivos, competência de nossos dirigen-

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tes, regras para eleição, responsabilidades, e as leis atuais que nos regem. Além disso, cada alteração é registrada no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Cada reunião é assinada pelos membros e gera uma ata assinada por todos os presentes. Além disso, o instituto conta com uma equipe contábil e jurídica, uma vez que todas as demonstrações contábeis de uma OSC seguem as mesmas regras estabelecidas para as empresas com fins lucrativos. Anualmente, publicamos o balanço patrimonial, com demonstração de resultados financeiros, informações sobre as origens dos recursos e suas aplicações. A diretoria não recebe financeiramente pelas função que desempenha, mas pode receber para prestar serviços à instituição.

Em 2014, participamos da Teia Nacional da Cultura, um encontro dos Pontos de Cultura do Cultura Viva que tem o objetivo de fortalecer o exercício dos direitos culturais e promover a atuação cultural em rede, com realização de oficinas, fóruns e seminários temáticos. Além de participar como representante da sociedade civil, conheci e reencontrei muitas pessoas que passaram a fazer parte de maneira mais contundente do dia-a-dia do instituto. Uma delas foi o pesquisador, músico e gestor cultural Fernando Chagas, que estava representando o Ponto de Cultura Tribal sob Rodas da Imaginação, de Cabo Frio.

(Estes parênteses são uma licença poética para contar que a Teia Nacional da Cultura uniu dois jovens militantes culturais. Fernando mudou-se de mala e cuia para Belo Horizonte algum tempo depois, ampliando nossa rede de afetos. Em 2017 nos casamos no Pompéu, aquela comunidade rural de Sabará, MG, onde tantas histórias foram compartilhadas).

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A vinda do Fernando para Belo Horizonte e para o Instituto AbraPalavra contribuiu muito para o nosso crescimento institucional. Ele trouxe, além da ampla experiência com o trabalho coletivo, uma visão de gestão e participação social que nos ajudou na sistematização de dados e indicadores, e com isso olhar com mais clareza para o organograma, a missão, os objetivos e a visão do instituto. Músico violonista e pesquisador das artes da cena, Fernando também se juntou às nossas criações artísticas. Juntos, fizemos algumas viagens e turnês levando as histórias e a música. Além da experiência artística, ele trouxe sua experiência de dez anos como presidente de outra instituição cultural, de participação política desde as primeiras gerações do Cultura Viva e também da gestão pública, por ter sido secretário municipal de Cultura de Cabo Frio (RJ).

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Movimento 3 – Formação e pesquisa

Desde os nossos primeiros anos de trabalho, sempre desejamos ir além da criação de espetáculos, criando trocas de experiências e contribuindo para a formação de outros contadores de histórias. Quando começamos a enveredar pelo campo da produção e da gestão cultural, as capacitações dentro desse campo também passaram a ser parte dos nossos projetos. Paralelamente às formações, o trabalho de pesquisa ganhou espaço no AbraPalavra. Essa dinâmica do nosso trabalho, calcada na disciplina e na circularidade, nos deu base para colocarmos a formação e a pesquisa como dois pilares do instituto. O AbraPalavra se tornou um espaço de encontro de pessoas da narração de histórias e de outras linguagens artísticas, assim como educadores, bibliotecários, escritores e uma comunidade interessada nas artes da palavra.

O instituto busca articular e compartilhar os conhecimentos produzidos no campo acadêmico e no meio popular, a fim de estabelecer relações com a sociedade nos seus mais diversos territórios. Hoje temos, ao longo do ano, um programa variado que inclui atividades práticas como oficinas, cursos e ações experimentais; palestras, ciclos de reflexões, fóruns e seminários. As atividades ocorrem de forma presencial ou online.

Poderíamos dividir a história do AbraPalavra em três

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momentos: o primeiro dizia respeito à formação para o público da educação, em que éramos contratados pelas próprias escolas; no segundo, ofertamos formações para novos contadores de histórias; e, no terceiro — e atual —, proporcionamos a constância de formações em áreas transversais ofertadas por diferentes profissionais.

Até chegarmos em um formato para o primeiro curso de narração, oferecido nós dois, passamos por muitas horas de leituras, de conversas, aprofundamento, pesquisa, formações e experimentações. Em agosto de 2010, a diretora da Unidade Municipal de Educação Infantil Juliana nos chamou para uma formação para professores da educação infantil. O curso tinha duração de quatro meses e foi, sem dúvida, nossa grande escola para aprimorarmos outras formações, assim como nossas técnicas artísticas. Mais do que ensinar a contar histórias, nosso trabalho era trabalhar a prática da narração de histórias no ambiente escolar.

A partir dessa primeira experiência, diversas outras escolas passaram a nos convidar para dar formações para professores, e fomos nos especializando nesse tema. Nossos objetivos eram sensibilizar os professores para a arte de contar histórias, focando nas maneiras de narrar que cada um mais se identificava –como contação de causos, mediação de leitura, narração de contos de aventura, narração com objetos, histórias cantadas, entre outras. Trabalhávamos alguns recursos cênicos para expressão corporal e oral, e a musicalização, como utilização dos instrumentos da bandinha escolar e do próprio corpo como espaço sonoro. Discutíamos repertórios a partir dos contos que cada um já conhecia e das obras literárias presentes nas bibliotecas escolares. Refletíamos sobre os conteúdos desses livros e buscávamos o trabalho em grupo para os momentos de criação. Estimuláva-

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mos ainda o uso de outras linguagens artísticas a partir do desejo do grupo.

Ao longo dos anos, fui anotando perguntas frequentes feitas pelos professores, para que elas se tornassem uma bússola para as novas formações. Como a minha trajetória acadêmica era focada em comunicação e literatura, passei a sentir necessidade de compreender mais o universo da educação. Assim, comecei o doutorado em Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), para compreender melhor esse lugar do professor contador de histórias. Para isso, me baseei na educação popular e nos estudos do cotidiano. A partir destes estudos do doutorado, passei a estabelecer com mais clareza as funções da narração de histórias, como a função cultural, artística, social e educativa. Essa percepção me ajudou a preparar melhor os professores para atuar como educadores-narradores.

Foi também a partir das pesquisas do doutorado, que fizemos um projeto na comunidade do Pompéu, Sabará (MG), chamado Casulo: Escola Popular de Cultura, Memória e Turismo Comunitário. Era uma escola a céu aberto, com oficinas oferecidas pela própria comunidade e por pessoas que vieram de outras comunidades rurais e urbanas. Por um ano, trabalhamos com cursos de crochê, tricô, ervas medicinais e temperos, fotografia, comunicação e mobilização e escrita e elaboração de projetos culturais, atendendo aproximadamente cem pessoas, entre jovens, adultos e idosos. Esse foi o último projeto que o AbraPalavra realizou diretamente na comunidade porque, a partir dessas experiências, os próprios moradores, em especial a família do Silas da Fonseca e da Fia, passaram a escrever projetos e realizá-los a partir das associações locais. Hoje nós estamos sempre na comunidade, acompanhando de perto esse envolvimento, e sen-

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Produção Cultural pelo Afeto

do público das atividades culturais e sociais que eles realizam. As duas filhas do Silas e da Fia, Nádia e Laura, têm realizado diversas ações culturais na comunidade, assim como promovido as atividades do Rancho da Cultura (espaço cultural rural criado pelo Silas) e os livros de poesia do pai. Nádia tornou-se uma grande empreendedora cultural, com atuação eficaz nas áreas de teatro, literatura e patrimônio cultural, além de diversos projetos atravessados pela diversidade.

Chegava a hora de nos voltarmos às formações de narração para artistas. Em nossos cursos e oficinas, realizados em festivais, mostras, faculdades e centros culturais, trouxemos a arte de contar histórias como resultado de investigações e de um trabalho e esforço criativo. Nosso principal objetivo era criar um espaço de trocas, aprofundamento, pesquisa, formação e fomento à narração de histórias, com encontros que prezassem pelas discussões teóricas alinhadas à prática. Entre 2012 e 2020, realizamos dezenas de encontros teóricos e práticos para propor mergulhos na narração artística, que ia se tornando cada vez mais a espinha dorsal do Instituto AbraPalavra. Começamos a incluir cursos e workshops de produção cultural nas atividades programadas e promovemos a participação ativa dos participantes em diferentes áreas da produção e gestão cultural. Mais do que ensinar a receita de bolo para escrever projetos, a intenção dos encontros era formar grupos de pessoas que pensassem as politicas públicas para cultura, os conceitos, os caminhos possíveis de financiamento, economia criativa, entre outros saberes.

A partir de 2017 ampliamos a gama de profissionais que participavam das nossas formações, com o intuito de trabalhar a cultura de forma mais aprofundada e transversal. Esse movimento se intensificou a partir da pandemia do Covid-19, quando adap-

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tamos muitos dos nossos projetos para o formato online. Além de chegar a muitas pessoas, passamos a convidar profissionais de outras cidades, estados e países. Diante desses desafios e transformações impostos, o Instituto Cultural AbraPalavra encontrou caminhos para fortalecer e expandir sua missão de promover a cultura e os afetos. Nós, que estávamos acostumados aos encontros presenciais, a conversa no corredor e os cafezinhos partilhados, tivemos que pensar novas maneiras de estar junto no ambiente online.

Para nos conectarmos às pessoas, fazíamos primeiramente o convite para um ritual: antes de começar qualquer curso ou live, sugeríamos que os participantes preparassem um café ou um chá, escolhessem um lugar que gostassem e fizessem uma respiração junto com a gente. Assim, esse território, ainda pouco explorado por nós, tornou-se o cenário de uma adaptação necessária, e o que inicialmente surgiu como uma resposta à crise foi se transformando em um processo de expansão e inovação. Reconhecendo o duro impacto econômico da pandemia global, identificamos que poderíamos também ser um espaço de geração de trabalho e renda. Convidamos profissionais de diversas áreas para se juntarem a nós, ampliando nossa equipe e criando oportunidades coletivas. Com a ampliação do número de pessoas, também se ampliaram os temas abordados nas nossas formações. Isso trouxe discussões sobre diversidade, acessibilidade e cultura, gestão e produção e também sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, estabelecidos pela ONU.

Logo no início da pandemia, conscientes da necessidade emergencial de apoio e orientação, organizamos um workshop gratuito sobre elaboração de projetos culturais. Sem patrocínio,

73 Parte 3 -Rotas Escolhidas

nosso objetivo era compartilhar conhecimento essencial, facilitando o acesso a recursos e informações durante um momento de incerteza. Desde 2020, realizamos aproximadamente cinquenta formações, alcançando participantes de todos os estados brasileiros. Esse conteúdo está disponível gratuitamente no nosso canal do Youtube. E, mesmo retornando às atividades presenciais, optamos por manter o ambiente virtual como um espaço permanente de aprendizado e interação.

Por acreditar tanto na formação, seguimos planejando e construindo sobre esse tema. Em 2024, vamos inaugurar a Escola Livre de Estudos da Narração Artística (Elena), aprovada no Edital Olhos D’agua, do Ministério da Cultura.

Assim como a formação, a pesquisa é um pilar fundamental no nosso trabalho, que engloba a investigação acadêmica, os estudos livres e a pesquisa de campo. Um exemplo que traz a importância dessa frente do Instituto AbraPalavra é o projeto “Vozes da Mata”, viabilizado através de um edital do Fundo Estadual de Cultura de Minas Gerais. Na época, eu fazia doutorado em Educação (UFF) e estudava a relação entre os narradores de histórias e os educadores populares, como Silas da Fonseca (Pompéu-Sabará) e Sebastião Farinhada (Espera Feliz). Em parceria com o cantador popular Sebastião Farinhada, estivemos em diversas comunidades da Zona da Mata mineira, conversamos com os moradores, participamos de caravanas agroecológicas, realizamos trocas de saberes e decidimos gravar um CD de músicas e histórias com ele e também com a comunidade envolvida. A gravação foi feita na casa do Fabrício e da Priscila, na Violeira, zona rural de Viçosa, onde montamos um estúdio de gravação. Lá, convivíamos com educadores populares, artesãos, estudantes e professores da Universidade Federal de Viçosa (UFV) – todos

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envolvidos na discussão da educação popular, da agroecologia e da cultura popular. Foi uma experiência educativa em que ética e estética caminhavam juntas, transformando a casa (e o disco) em um espaço sensível e reflexivo, um diálogo entre teoria, prática, arte e política. Foram dois anos de pesquisa de campo para a produção do disco, com idas e vindas às cidades de Acaiaca, Araponga, Viçosa e Espera Feliz. Ao todo, realizamos (Farinhada, Fabrício, Chicó e eu) quatro cursos de formação em narração de histórias e memória social com os professores, 12 apresentações artísticas e aproximadamente oitenta horas de gravações em vídeo de conversas, entrevistas e registros das manifestações da cultura popular. Sabíamos portanto que, apesar de estarmos ali com 12 pessoas para a gravação do disco em si, ele era composto por muitas outras vozes: estudantes e monitores das Escolas Famílias Agrícolas, educadores, benzedeiras, agricultores, homens, mulheres e crianças que constroem no cotidiano a transformação das suas realidades.

O nosso encontro com o Farinhada se dá num processo de formação permanente, no sentido em que afirma Paulo Freire, no livro “Medo e ousadia: o cotidiano do professor”:

“[...] não importa se a educação se exerce de maneira informal, em casa, ou formalmente, na escola, através de relações informais entre pais e filhos, ou formais, na escola, entre professores e alunos – a educação tem a ver com um processo de formação permanente. (...) Mas este processo é, necessariamente, um processo artístico” 2

2 FREIRE, Paulo e SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1986.

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Produção Cultural pelo Afeto

Em 2022, criamos a Editora AbraPalavra, que é uma das possibilidades para continuar, sistematizar e fomentar todo esse trabalho de pesquisa do instituto. Buscamos, assim, trazer muitas vozes partilhadas.

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Movimento 4 – Internacionalização do AbraPalavra

Belo Horizonte é o lar para onde sempre retornamos, embora nossos pés busquem alcançar terras d’além montanhas. Nos primeiros anos, fomos conquistando territórios brasileiros, buscando chegar a cada cantinho, a cada área rural, comunidades ribeirinhas, onde muitas vezes as apresentações artísticas nunca haviam chegado. Promover a interiorização e a democratização do acesso à cultura sempre foi nossa missão, tanto levando apresentações quanto formações e momentos de trocas de saberes. Com o passar dos anos, à medida que começamos a realizar projetos maiores, também começamos a convidar os artistas dos interiores para estarem nas nossas programações culturais.

Conhecer outros países, seus artistas, nos desafiar a narrar histórias em outros idiomas e conhecer mais sobre como são feitas as políticas públicas nestes lugares também sempre estiveram em nossa pauta. Desde a primeira viagem para Bolívia, ou o primeiro festival na Venezuela, muitos outros países passaram a fazer parte do nosso diário de bordo. Podemos citar Cuba, Argentina, Paraguai, Chile, Itália, França, Portugal, Espanha, Cabo Verde, Tunísia, Costa Rica, Malta, Alemanha e Holanda. Desde o início de nosso trabalho, antes mesmo de criarmos o Instituto

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AbraPalavra, fomos procurando e criando estratégias de divulgação e de circulação internacional de nossos trabalhos artísticos. Então, vieram à tona algumas perguntas: Como apresentar nosso trabalho a produtores e programadores estrangeiros de modo estratégico? Quem está interessado em projetos de narração de histórias? Como divulgar o próprio trabalho para outro público, que não o nacional?

Sobre a primeira dúvida que tínhamos (como apresentar o trabalho de modo estratégico), quando começamos, havia um site espanhol chamado Red Internacional de Cuentacuentos. Lá encontrávamos muitos festivais pelo mundo e muitos contadores e contadoras de histórias interessados em partilhar. Assim, o primeiro caminho que fizemos foi de busca e pesquisa. Depois de organizar uma lista de nomes pelos quais tínhamos interesse, fazíamos o primeiro contato. Essa era a maneira de responder à segunda pergunta: quem estaria interessado em projetos de narração de histórias? Importante dizer que traduzimos nossos materiais (release e breve resumo de cada apresentação) para espanhol e inglês, a fim de chegar a mais pessoas. A partir do primeiro contato, íamos tentando criar conexões entre o que o festival/produtor realizava com nossos projetos. Os tipos de desdobramento foram vários: cartas-convite para participarmos de festivais via financiamento no Brasil (buscamos por meio de editais de passagem aérea, de intercâmbio e até em embaixadas); convites diretos para participar da programação das edições seguintes dos festivais; e produção local. Essa ultima categoria era um trabalho de produção interligada: se houvesse interesse, fazíamos a produção à distância. Dependendo do número de ações fechadas, conseguíamos pagar nossas passagens com um trabalho, os dias de hospedagem com outro e ainda era possível

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voltar com um pouco de cachê para casa.

A produção local é um trabalho minucioso, onde vamos buscando contatos de contatos, achando sites, perfis nas redes sociais e enviando sempre muitas mensagens e e-mails. Nesta etapa, entra a última questão, que é a de apresentar nosso trabalho a um outro público que não o nacional. A pesquisa também propõe buscar esse público: população que tem o português como língua de herança, brasileiros que moram no exterior, estrangeiros interessados em conhecer mais sobre o Brasil, além da comunidade interessada em ouvir histórias. Para alcançar esses públicos, focamos não só nos produtores de festivais e contadores de histórias, mas em bibliotecas, centros culturais, bares e cafés temáticos. Com o tempo, também passamos a receber convites sem necessariamente termos que procurar as produções.

São muitos causos e histórias envolvidos nessas viagens, que precisam ser contados.

A primeira delas foi a nossa viagem para Tunísia, via edital de intercâmbio do Ministério da Cultura, para atividades culturais durante o Fórum Social Mundial. A gente estava num café, no bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte, quando recebemos o e-mail informando sobre a aprovação. Ficamos em êxtase, porque seria nossa primeira viagem para o continente africano. Resolvemos iniciar um curso de francês imediatamente. Afinal, faltavam três meses para a viagem e ainda iríamos antes para um festival no Chile. Investir em idiomas é sempre um passo importante quando falamos de internacionalização. O curso de três meses acabou virando muitos anos posteriores de estudo de francês. Mas esses primeiros estudos para viagem foram importantes. Queríamos saber nos comunicar minimamente em hotel, transporte e com o público do nosso projeto. Iríamos fazer um

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trabalho com as mulheres que participaram da Primavera Árabe. Elas tiveram uma luta significativa nas manifestações tunisianas que desencadearam na Primavera Árabe, muitas vezes fazendo marchas pela Avenida Bourguiba, em Túnis, a capital, levando junto maridos e filhos.

Os três primeiros meses de francês, feitos com a professora Daniela Perucci, que também é atriz e palhaça, me ajudaram a fazer coisas básicas como comprar comida, tirar dúvidas simples no hotel sobre endereços e visitas para além do Fórum. As camareiras do hotel também foram muito incríveis e me ajudaram ensinando nomes de comidas e objetos. Uma delas chegou a me emprestar um hijab (que tampa cabeça e parte do pescoço) para que eu fosse a uma mesquita com ela. Saber os nomes também nos ajudou bastante nos grandes mercados de Túnis, onde íamos praticamente todos os dias ouvir as pessoas, ver as cores e os instrumentos musicais. Mas é claro que o pouco tempo de estudo me fez passar por algumas situações como responder perguntas em francês e ouvir: “Desculpe, eu não falo português”. E eu estava tentando, sim, falar em francês. Ou quando queria ir a um bar, chamei um táxi com quatro amigos e não consegui falar o nome certo do tal bar. Eu também não conseguia explicar onde era o lugar. Depois de darmos muitas voltas, o taxista — já bem chateado — nos deixou à noite em um lugar completamente diferente do que eu tinha sugerido.

O show de Gilberto Gil, na abertura do Fórum, foi outro momento-chave. Nós fomos um dos primeiros a chegar ao local — um espaço enorme, descampado — e ficamos bem perto do palco, atrás de uma grade. Aí então, lembramos que nossos crachás atestavam que estávamos no Fórum via Ministério da Cultura do Brasil. Na mesma hora, gastei novamente o pouco do

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francês que sabia e conseguimos entrar na área demarcada para imprensa e convidados, e ficamos bem mais próximos do palco. Chicó era um dos ouvintes mais entusiasmados, cantava e dançava todas as músicas de maneira muito intensa. Em determinado momento, olhando para trás, vimos que muitas pessoas seguiam os passos do Chicó para acompanhar a ginga brasileira naquele show. Quando terminou, Chicó pediu ao filho do Gil, que tocava com ele no palco, a lista de músicas que estava pregada no chão. Durante essa conversa entre o filho do Gil e o Chicó ao fim do show, fomos sendo levados para atrás do palco, e nos convidaram para conhecer o Gil pessoalmente. Contamos pra ele que tínhamos ido via um edital do MinC, que éramos contadores de histórias e músicos. Chicó, após soltar uma declaração de amor ao nosso primeiro Ministro da Cultura do Governo Lula, ainda ganhou um vídeo com o Gil mandando um abraço para sua banda de BH, Batucanto. Da Tunísia, esticamos a viagem em alguns dias para um trabalho na Itália, e votamos para o Brasil com o certeza de que nosso coração era do mundo.

Alguns anos depois, em 2014, fui para Cabo Verde acompanhar um trabalho de produção em um festival de música. Dessa vez, em vez de me hospedar num hotel, resolvi fazer contatos com estudantes caboverdianos moradores do Brasil para ter outros contatos por lá. Um deles, morador de Viçosa (MG), me apresentou à sua prima Perla, que me acolheu durante todos os dias no país. Fui para a cidade de Praia e ela me recebeu no aeroporto junto com um amigo, mesmo com meu voo tendo atrasado muitas horas. Fomos para sua casa e ali tive um quarto pra mim, uma autonomia no ir e vir, uma gama de novos amigos que ela me apresentou e uma vivência muito mais próxima da realidade do país.

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Dividi meu tempo entre o trabalho no festival e a busca por novos contatos. Fui ao Centro Cultural Brasil Cabo Verde, onde encontrei uma equipe muito engajada no movimento de aproximação dos dois países. Fui convidada para realizar diversas apresentações de narração de histórias para crianças que frequentavam o espaço e ainda fechamos algumas oficinas em uma comunidade periférica chamada Achada Grande Frente, um dos primeiros bairros a surgir nos arredores da Cidade da Praia. O bairro, localizado bem próximo ao aeroporto, abrigava a maior parte dos armazéns comerciais de Cabo Verde e o porto da cidade. Foi historicamente povoado por pescadores, pastores e estivadores. No entanto, a especulação imobiliária deslocou os moradores locais e isso levou a uma segregação. Simbolicamente, a região ficou dividida em Achada Grande Frente Riba (parte superior) e Achada Grande Frente Baxu (parte inferior) — ocupada por trabalhadores dos armazéns, pescadores, vendedores ambulantes e trabalhadores ocasionais. Essa parte inferior do bairro enfrentava uma condição econômica extremamente precária e, ao mesmo tempo, mantinha as tradições culturais dos povos locais. Em 2014, nasceu nessa comunidade o movimento KorrentidiAtivista, com o objetivo de contribuir para a construção e o fortalecimento comunitário. Posteriormente, o movimento virou a Associação Pilorinhu. Quando estive lá, nesse mesmo ano de 2014, era tudo muito recente e eles já tinham ocupado um espaço da Câmara Municipal de Praia, que havia ficado mais de 12 anos abandonada. Realizei com eles, durante três dias, uma oficina de narração de histórias a partir das memórias individuais e coletivas. Logo no primeiro dia, criamos uma forte conexão quando eu abri a conversa narrando “As Duas Mulheres e o Céu”, um conto que ouvi com Dona Lió, na comunidade Kalun-

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Parte 3 -Rotas Escolhidas ga, em Goiás. Ao fim da narração, um dos jovens levantou a mão e me perguntou onde eu tinha conhecido a mãe dele, já que era ela quem contava essa história. Compreendi ali, na prática, a circularidade das histórias.

Envolvida com todas aquelas pessoas, conheci um contador de histórias local (infelizmente não consegui encontrar seu nome em nossos registros). Ele nos apresentou a uma pesquisadora que trabalhava com a comunidade dos Rabelados e estava indo para lá naquele mesmo dia, no fim da tarde. Eu não pensei duas vezes. Algumas horas depois, já estava de mochila no lugar combinado para pegar o transporte para Espinho Branco, uma localidade no interior da Ilha de Santiago, a oitenta quilômetros da capital, Praia.

Lá estavam os Rabelados, que, em sua formação, modos de fazer e saberes têm semelhanças com os quilombos brasileiros. Passei alguns dias na comunidade, aprendendo um pouco de crioulo, além de estar todo o tempo com as crianças, que me ensinaram muitas cantigas, jogos e brincadeiras locais. Fiquei hospedada na casa de um casal bem jovem, que falava um pouco de português e pude, inclusive, contar histórias da tradição oral brasileira. Ali me contaram melhor sobre os Rabelados, que surgiram na década de 1940, quando chegou a Cabo Verde um grupo de padres de batina branca, vindos da Europa. Os sacerdotes falavam português e tinham a intenção de renovar os procedimentos litúrgicos, substituindo os padres nativos de batina preta e que falavam crioulo. Com isso, desejavam extinguir as práticas ancestrais e as formas de cultos religiosos tradicionais. Os povos se rebelaram e refugiaram-se em áreas montanhosas de difícil acesso. Com o tempo, foram se reintegrando à região mais propícia de se viver em comunidade, mas continuam com

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Afeto suas práticas e fazeres.

Essa viagem me fez compreender como a internacionalização da cultura passa pelas vivências que queremos ter com as pessoas locais e a abertura que temos para isso. Logo após a viagem para Cabo Verde, fomos pela primeira vez ao evento MICSur, Mercado de Indústrias Criativas do Mercosul, na Argentina, com o objetivo de compartilhar nossos trabalhos como artistas da narração de histórias. Foi nossa primeira experiência como vendedores nas Rodadas de Negócios, apresentando o AbraPalavra (apresentações artísticas e oficinas) para compradores de diversos países da América Latina.

Em 2023, nove anos depois dessa viagem para participar do MICSur, estivemos em dois outros Mercados de Indústrias Criativas, via Ministério da Cultura. Em maio, voltamos à Argentina para participar do MICA – Mercado de Indústrias Criativas da Argentina. Dessa vez, nos inscrevemos como Compradores e fomos um dos cinco selecionados no país, na categoria Editorial. Queríamos conhecer escritores, ilustradores, contadores de histórias e tantos outros profissionais da cadeia produtiva do livro, para trazermos para nossos projetos, como Mostra Candeia, Mostra Sons da Cidade, além da programação cultural anual que o Instituto AbraPalavra vem realizando. Essa viagem simbolizava o retorno do MinC (extinto de 2019 a 2022, período em que virou secretaria) e estávamos na comitiva da ministra da Cultura, Margareth Menezes. Recriado no dia 01 de janeiro de 2023, no primeiro dia do terceiro mandado do presidente Lula, o novo MinC tem seis novas secretarias: Cidadania e Diversidade Cultural; Direitos Autorais e Intelectuais; Economia Criativa e Fomento Cultural; Formação, Livro e Leitura; Audiovisual; e Comitês de Cultura. O Brasil foi o país homenageado no MICA

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Produção Cultural pelo

23 e isso também marcou a retomada do país no mercado cultural internacional. Paralelamente, foi perceptível o quanto tínhamos caminhado desde a participação no MICSur em 2014.

Outra experiência importante na área de internacionalização foi alcançar os espaços europeus de narração de histórias e de produção cultural. Em 2015, realizamos nossa primeira turnê com apresentações artísticas, lançamento de CD e oficinas de narração de histórias em Barcelona (Espanha), apresentações em Lisboa e participação no Festival Festa dos Contos, em Montemor O Novo (Portugal), com nossos trabalhos de narração artística e música. Na ocasião, também iniciamos nossas participações em conversas sobre políticas públicas para arte e cultura, em especial na Espanha, junto do Ponto de Memória no Exterior - Associação de Capoeira Vadiagem, do Mestre Gil. Na equipe, estavam eu, Chicó, Fernando Chagas, Tatiane Soares e Flora Lopes (percussionista).

Em 2016, fui fazer doutorado-sanduíche em Barcelona, com o professor e pesquisador Jorge Larrosa. O período de pesquisa e escrita foi também de um salto internacional nas ações do AbraPalavra. Fincamos moradia a quarenta quilômetros de Barcelona, em Sitges, cidade litorânea cheia de histórias, que começou a ganhar mais visibilidade quando Rusiñol, conhecido pintor catalão, instalou seu estúdio-casa no Museu del Cau Ferrat. O lugar virou um museu público em 1933. A partir daí, a cidade se transformou num centro de propagação do modernismo. Em meados dos anos de 1960, Sitges tornou-se um centro de resistência à ditadura franquista e, nos anos após a ditadura, a cidade virou uma referência em diversidade cultural e de gênero. Um lugar com tantas histórias foi sendo descoberto por nós que, logo na primeira semana, resolvemos dar uma passadinha no centro

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cultural que tinha atrás de casa.

Todas as quartas-feiras era possível assistir a filmes por dois euros. E, às quintas, tinha um evento chamado Tertúlia Boêmia. Fomos no primeiro dia para assistir e nos deparamos com um grupo de pessoas muito interessadas em arte e cultura, além de extremamente generosas e acolhedoras. Logo no primeiro dia, já nos apresentamos e preparamos para, dali a algumas semanas, uma noite brasileira de contos e choros. Na ocasião, conhecemos artistas como Manuel Blessa, Marc Martinez Rex e Blanca de Nícolas, que foram se tornando nossos anfitriões.

Para a pesquisa do doutorado, fomos para Bilbao, País Basco, nos encontrar com o narrador de histórias camaronês Boniface Ofogo, que divide a vida na Espanha entre Madri e Bilbao. Combinamos tudo por e-mail, e ele me ofereceu a sua casa para ficarmos por uma semana, acompanhando o seu dia-a-dia na pequena cidade de Laudio (Llodio, em espanhol), onde vivia com a esposa e dois filhos. Em uma mistura de idiomas, eu e Fernando tentávamos aprender um pouco da euskera – língua do País Basco, enquanto tocávamos e cantávamos músicas brasileiras. Acompanhamos oficinas de narração de histórias de Boni e tivemos a oportunidade de também oferecermos oficinas sobre narrativas na Universidade de Bilbao, para alunos de Letras/ Espanhol. Também estivemos na Holanda, Itália, Inglaterra e França, acompanhando outros trabalhos, pesquisas e apresentando nossos trabalhos artísticos de contos e música brasileira. Preparar um trabalho artístico focado na promoção e na difusão da cultura brasileira é um caminho para fortalecer a internacionalização a partir da própria cultura local.

Em 2019, voltamos para a Europa, porque Fernando tinha passado no Doutorado na Universidade do Minho, em Braga

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Cultural pelo Afeto
Produção

Parte 3 -Rotas

(Portugal). Aproveitamos sua estadia lá para realizar novos projetos e produções internacionais, em especial em Portugal e Galícia. Voltamos em 2020 para o Festival Atlantica, em Santiago de Compostela, no início do mês de março. Após três apresentações (a abertura no teatro, uma tarde de contos no hospital e outra numa escola de português), recebemos a notícia de que as fronteiras entre Espanha e Portugal seriam fechadas na manhã do dia seguinte. Naquele momento, o mundo mudaria completamente por causa da pandemia da Covid-19. Voltamos para Portugal e fomos até o Porto, para resolver questões na embaixada brasileira. As fronteiras com o Brasil também estavam fechadas. Assim, ficamos até o mês de maio em Portugal, com voos cancelados e sem previsão de volta, até que a embaixada nos contactou para um voo de repatriamento. Com diversos projetos presenciais no Brasil para começar, foi preciso redefinir a rota.

Somente no final de 2022 voltamos a viajar para fora do país. Passamos quase dois meses em Malta, um pequeno país formado por ilhas e que fica na região central do Mediterrâneo. Nosso objetivo era divulgar nossas atividades culturais e também realizar um intercâmbio com outras instituições culturais e de literatura, como a National Literacy Agency, a Universidade de Malta, além de estabelecer uma parceria para projetos futuros com a Unidade Diplomática de Cultura do Ministério das Relações Exteriores do país. A estadia foi muito proveitosa para o Abrapalavra, que tem firmado como uma de suas missões fomentar o intercâmbio cultural entre Brasil e demais países.

Outro lado da internacionalização do AbraPalavra é o movimento de trazer convidados de outros países para participar de nossos projetos, em especial a “Candeia: Mostra Internacional de Narração Artística” e o “Sons da Cidade: Mostra Internacional

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Escolhidas

Produção Cultural pelo Afeto de Violão de BH”.

Embora tenhamos essa experiência de viagens internacionais, reconhecemos que existe uma lacuna entre a potente e diversa produção de arte e cultura no Brasil e a circulação dela em outros países. É muito importante que haja um comprometimento com esse tema, como a criação de programas específicos para a internacionalização.

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Movimento 5 – Participação Social

Compreendemos participação social como um processo de aprendizagem, ou seja, um caminho que nos ajuda a contribuir para o compartilhamento de saberes e para o empoderamento das comunidades. Lembro de uma conversa com Boniface Ofogo, em Bilbao, quando ele dizia que na sua família um problema poderia ser debatido por horas, dias, meses. A questão não era o resultado final, mas sim o “durante”. Com a participação social, é a mesma coisa: o que vale são os processos que, em geral, são demorados e nem sempre chegam rapidamente a um fim. Desde o início dos nossos trabalhos, sempre tentamos atuar ativamente no processo de formulação e implementação de políticas públicas que nos afetasse diretamente. Essa participação social se manifesta na presença ativa em reuniões públicas, assembleias, comissões e conselhos.

Historicamente, houve proliferação de movimentos sociais, tanto emergentes quanto revitalizados, nas décadas de 1970 e 1980, durante o processo de redemocratização do Brasil, buscando, essencialmente, outras maneiras de interação entre governo e comunidade. Aquele contexto foi fundamental para a promulgação da Constituição Federal de 1988, que passou a criar espaços públicos para a participação social no debate, na consulta e na construção de políticas públicas. Já a partir de 2003, é possível

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dizer que o Brasil, além de atender às instâncias e mecanismos de participação social, gerou uma demanda para a elaboração de conferências e conselhos nacionais de políticas públicas.

Foi nesse período que eu comecei a me interessar pela participação social nas políticas públicas, a partir de uma vivência que tive na comunidade Kalunga, em Goiás. Nessa época, eu era recém-formada em jornalismo, estava imersa em uma cooperativa de jornalistas que criamos e ainda trabalhava na Revista Voz (fruto deste projeto na cooperativa). Para completar, ainda tinha uma pós-gradução em andamento. Certo dia, li uma reportagem sobre o Cais do Parto, uma ONG que trabalha com parteiras tradicionais, e achei que seria uma boa pauta. Durante o processo de produção, me informaram que, dali a alguns dias, seria realizado um encontro nacional de parteiras em Brasília. Somente mulheres teriam permissão para participar. Peguei um ônibus BH–Brasília e, nos dias de imersão, conheci dona Lió – uma parteira da comunidade Kalunga. Ela me contou que o lugar havia sido um grande quilombo e me convidou para passar a Folia de Reis por lá. Parti no dia 26 de dezembro de 2002 para conhecer a comunidade quilombola Kalunga. Andei por quase toda a sua extensão, a pé ou em lombo de burro, sendo levada pelas mulheres, as crianças ou os agentes comunitários de saúde. Uma viagem que duraria trinta dias transformou-se em três meses. Depois, estiquei por mais quatro meses, e daí dois anos de mestrado. Neste período, vivenciei muitas ações de políticas públicas nos territórios, especialmente com a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em 2003.

Ainda em 2006, quando começamos nossas ações no Projeto Rondon, a participação social e o envolvimento em discussões

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sobre políticas públicas se fortaleceram, tornando-se pilares para nossa construção e atuação. A partir de 2010, quando passamos a nos dedicar exclusivamente ao trabalho artístico, essa participação foi ficando mais intensa. Em 2011, após a realização do primeiro projeto aprovado em edital público, publicamos o texto “Bolsa Funarte de Circulação Literária: quando as políticas públicas, o livro e as pessoas se encontram” no livro “Política para as artes: prática e reflexão”, publicado pela Funarte.

Entendendo que a participação social é um dos instrumentos de acesso à democracia. Por ela, podemos atuar nas causas em que realmente acreditamos. Fazer parte destes movimentos é refletir e atuar na construção de um país mais justo e igualitário. Atuar na ponta, na base comunitária, estar junto das pessoas lutando junto ou sendo mediador dessas conversas junto ao poder público é um dos caminhos para lutar por mais direitos em nossas áreas de atuação. Mas também é assim que nos tornarmos mais conscientes sobre o direito de toda população. Mais do que aprovar um projeto em um edital, executá-lo e depois prestar contas, percebemos que também era fundamental atuar nas discussões, na luta por mais recursos, na produção de indicadores e de artigos que ajudassem a construir a memória daquele trabalho coletivo, entre outros.

Em 2014, fomos membros da Comissão da Teia da Memória e Comissão Provisória de Gestão Participativa/Compartilhada do Programa Pontos de Memória – Cogepaco. Em 2023, passamos a integrar a Comissão de Certificação de Pontos de Memória, como representantes da sociedade civil. Em 2020, também passamos a ocupar a Comissão Estadual dos Pontos de Cultura. Em 2022, o Comitê Gestor dos Pontos de Cultura MG, e, em 2023, a Comissão Municipal dos Pontos de Cultura de Belo Horizonte,

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sempre nos colocando à disposição para participar de mesas de debates, rodas de conversa, mutirões para certificações de outras entidades e participação como representantes em audiências públicas nas esferas legislativas.

A área da cultura é historicamente uma das áreas que mais sofrem com a execução orçamentária, seja no âmbito federal, estadual ou municipal. São muitos desafios e amarras, como dificuldades jurídicas, prazos, burocracias, além da própria disputa orçamentária a cada ano. Dentro dessas disputas, ainda temos os setores e as linguagens artísticas. No caso do AbraPalavra, uma das nossas lutas sempre foi a valorização do narrador de histórias como um profissional da arte e da cultura. Essa luta vai desde os valores praticados no mercado até a inclusão da categoria nos editais e nas políticas públicas. Para que isso aconteça, é preciso visibilidade, reconhecimento e dados. O Instituto AbraPalavra tenta sempre estar presente nesses debates e construções coletivas.

Em 2023, com a retomada da cultura na agenda nacional, realizamos muitos encontros e participamos de tantos outros. Em abril, organizamos o Seminário “Cartografias Narrativas: as bibliotecas como espaço de convivência entre saberes e práticas da diversidade, cultura, educação e sustentabilidade”. Com o objetivo de discutir políticas públicas de cultura, o evento teve a presença do diretor nacional do Cultura Viva do MinC João Pontes, em uma mesa composta pela secretária municipal de Cultura de Belo Horizonte, Eliane Parreiras, o subscretário estadual de Cultura de Minas Gerais, Igor Arci, a vereadora Cida Falabella, os deputados estaduais Leleco Pimental e Lohanna França. No terceiro dia do encontro, tivemos um debate com a deputada estadual Macaé Evaristo, que abordou o tema “Bibliotecas na

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atualidade e a reconstrução das políticas públicas de cultura”.

O ano foi intenso. Em maio, estivemos no MICA Argentina. No mesmo mês, abrimos a Audiência Pública sobre a lei Cultura Viva de Belo Horizonte. Em junho, participamos do I Encontro Intermunicipal de Cultura do Norte de Minas de Culturas, em Montes Claros. Em julho, estivemos no I Emuse — Encontro Nacional de Educação Museal, que aconteceu em Cachoeira (BA). Fomos para recife em agosto, no edital nacional de lançamento dos Pontões de Cultura. Já em setembro, participamos da mesa de abertura — ao lado da ministra da Cultura, Margareth Menezes — do lançamento do Programa Nacional dos Comitês de Cultura. Em outubro, estivemos na abertura do Fórum Municipal de Pontos de Cultura de Belo Horizonte. Em novembro, debatemos na mesa redonda sobre arte no brasil no Festival internacional de Violão de Maldonado, no Uruguai, e também no Mercado das Indústrias Criativas do Brasil (MICBR), numa mesa sobre escrita literária e mercado editorial, com a Secretaria de Formação, Livro e Leitura do MinC.

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Movimento 6 – Gestão e Produção Cultural

Nossa experiência ao longo desses anos tem nos mostrado que a organização formal de qualquer grupo estabelece dois universos que são distintos, mas que precisam andar alinhados e equilibrados: a produção cultural e a gestão. Em alguma medida, os artistas enfrentam dificuldades em lidar com a gestão e a administração de suas produções culturais, por uma série de razões, seja pelo foco quase exclusivo na criação, a falta de formação ou conhecimento da área administrativa, a complexidade do mercado e do setor cultural, com suas questões históricas, organizacionais e políticas, os recursos limitados, questões emocionais e a própria gestão do tempo. Todas essas questões interferem muito na condução de uma organização cultural na hora de conciliar o produto artístico com a sua cadeia de financiamento, distribuição e administração.

Para muitos artistas, torna-se difícil separar as questões criativas das decisões de gestão administrativa, que demandam atitudes objetivas e, na maioria das vezes, pragmáticas. Não foi diferente para o AbraPalavra, mas o desejo de viver desse trabalho artístico, dos processos sociais e culturais vinculados a ele fez com que desenvolvêssemos uma consciência fundamental: nos preparar para a vida que escolhemos ter. Para lidar com esse universo da gestão cultural e administrativa, buscamos a capaci-

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tação, a orientação sobre gestão de negócios, construímos dia a dia uma rede de apoio e de parcerias públicas e privadas, fomos nos capacitando numa educação financeira e de planejamento estratégico. Tudo com calma, pé no chão e sabendo que as coisas levam tempo para se firmarem.

Paralelamente a esse movimento mais interno do AbraPalavra, uma outra atitude foi necessária: ter uma equipe de trabalho fixa, que cuidaria das questões administrativas, de produção executiva e burocráticas. Ao situarmos cada etapa do processo cultural de forma clara e delimitada entre a produção e a gestão, temos conseguido promover um melhor aproveitamento de habilidades. Como fazemos isso? Primeiramente, separando uma porcentagem do orçamento mensal para o pagamento da equipe fixa, também incluindo rubricas específicas em todos os projetos enviados para os editais culturais.

Até o ano de 2017, trabalhávamos entre vendas de apresentações artísticas e participações em editais públicos e privados voltados a projetos de circulação artística e projetos locais de memória. A realização da primeira edição da Mostra Candeia tornou-se um marco na nossa trajetória, ao abrir um caminho de possibilidades para atuarmos também na produção e gestão de eventos culturais. A Mostra Candeia, que teve sua primeira edição em 2017, tem acontecido de maneira ininterrupta. Para além de celebrar a tradição oral e a arte de narrar, a Candeia também se destaca como um importante veículo para a difusão cultural, a formação de público e a qualificação profissional, abraçando ações educativas e de formação por meio de palestras, cursos, oficinas, workshops e intercâmbios. Essas atividades não só beneficiam artistas e grupos locais, mas também criam um espaço para o diálogo e a colaboração entre público, artistas nacio-

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nais e internacionais. Uma das características da Mostra é o convite para que os narradores que vêm de fora fiquem todos os dias, com o intuito de, além das atividades que vão realizar, também possam assistir uns aos outros e conviver nos bastidores da produção. Essa metodologia de trabalho acaba provocando outras conexões para além da Mostra Candeia, tanto entre os artistas convidados quanto entre público e narradores, gerando outros projetos e trabalhos futuros em comum. A Mostra Candeia também nos trouxe novos artistas/produtores culturais, que seguem com o AbraPalavra ao longo dos anos e nos novos projetos.

Após a realização da primeira edição da Mostra Candeia, passamos a ter muitos outros projetos no formato evento cultural”, como “BH Ao Pé do Ouvido”, que é um projeto de literatura ocupando a cidade por meio de intervenções urbanas, como, por exemplo, os sussurradores de histórias, a banquinha “troco café por histórias” e os lambe-lambes pela cidade. O projeto “Era uma Voz” já teve três edições e traz um momento de trocas de temas diversos por meio de mesas de debate, workshops, palestras, com o objetivo de trazer vozes diversas da cidade. Alguns projetos ao longo destes anos também foram transversais à saúde e ao bem-estar, como o “Valorize BH” e “BH Arte e Tradição”.

A Mostra Sons da Cidade, um encontro internacional de violão, que também tem sido realizada de maneira bianual em Belo Horizonte, é outro projeto do Instituto AbraPalavra, trazido a partir de uma demanda do nosso gestor Fernando Chagas. O evento, que conta com a curadoria de Fernando e do violonista Carlos Walter, trouxe uma nova dimensão para o instituto, que foi de investir em produtos culturais que vão além da narração artística e que se utilizam da mesma metodologia de produção coletiva, afetiva e circular.

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Ao falarmos sobre a produção de eventos, é importante trazer como as nossas vivências nas festas populares nos ensinaram muito sobre como fazer produção cultural na contemporaneidade. A primeira delas é a própria festa de aniversário, algo tão caseiro e familiar, mas que envolve pré-produção, organização financeira, separação de funções, prazos, planejamento, divulgação, comunicação visual e pós-produção. Quem vamos convidar? Para quantas pessoas? Quem ficará responsável por comprar os itens? Quanto vamos gastar? Quem traz o quê? Onde será realizada? Quais os temas ou cardápios? As festas populares são realizadas por um tipo de organização que demanda investimentos e recursos. Ao mesmo tempo, proporcionam momentos histórica e socialmente marcantes. Organização, planejamento, financiamento, divulgação, execução, monitoramento e comunicação das atividades são essenciais a todas as festas da cultura popular. São um fluxo que se configura como um processo de organizar. Essa dinâmica segue a lógica da produção cultural, onde cada etapa demanda esforços diversos.

Em 2009, conhecemos o cantador e educador popular Sebastião Farinhada, do município de Espera Feliz (MG). Desde então, ele se tornou um parceiro e mestre de nossos trabalhos. No dia 29 de junho, é comemorado o dia de São Pedro e, independentemente do dia da semana em que a data caia, é realizada a Fogueira de São Pedro, também conhecida como a Fogueira do Farinhada. Estivemos lá algumas vezes, sempre tendo a oportunidade de acompanhar todo o processo, desde os dias anteriores, quando a família e a comunidade se juntam para os preparativos da comida, das bandeiras, da colheita e do roçado. Durante muitos anos, a festa aconteceu na comunidade de São Domingos e atualmente acontece no assentamento Padre Jésus. Para Fari-

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nhada, a Fogueira de São Pedro é uma festa pensada como uma experiência de encontro, de troca, uma experiência educativa. É um momento singular, quando as pessoas da sua comunidade e família interrompem a rotina de trabalho e de lida da casa para festejar. Homens e mulheres transitam pelo assentamento, cada um com as suas funções, mas trabalhando juntos, enquanto se esbarram, trocam uma conversa, riem e seguem os caminhos. “O melhor da festa é esperar por ela”, o burburinho de como vai ser, me contam as irmãs de Farinhada.

Quando realizamos uma Mostra, um festival, um encontro no AbraPalavra, nos inspiramos nesse aprendizado. Embora cada um tenha a sua função mais determinada, cada pessoa da equipe de produção circula entre os espaços e funções, assim como participa da pré-produção. Quando surge um edital em que gostaríamos de propor algo, reunimos a equipe do instituto para conversamos sobre ele, para que cada um(a) traga suas percepções, seus olhares e suas ideias. Ao termos o projeto aprovado, fazemos uma celebração coletiva para iniciarmos a pré-produção, geralmente um café da manhã mais estendido ou um encontro no final de tarde e início da noite. A preparação é coletiva, com comes, bebes e escutas partilhados. A produção segue no mesmo ritmo e a execução traz a proposta da festa: é preciso parar para estar junto.

A presença dos convidados durante todos os dias da Mostra Candeia, a convivência integrada entre artistas, equipe e público, é uma forma de tentar “estacionar o tempo”, para vivenciarmos juntos o momento presente. Nos projetos e ações culturais que acontecem ao longo do ano, como oficinas, apresentações artísticas, rodas de conversas, lives, que muitas vezes acontecem de forma paralela, tentamos ter, no mínimo, duas pessoas da equipe

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de produção junto, para abrir qualquer atividade com uma fala acolhedora ou uma história, preparar o ambiente para receber as pessoas, ter uma escuta atenta, deixar à disposição água, café, chá e biscoitos caseiros.

A comunicação do instituto também busca ser acolhedora, entendendo que é ela que traz a vontade do público de estar junto, que cria proximidade e confiança. A formação de uma comunidade cujos membros se reconheçam nela é fundamental para seguir o trabalho cultural e artístico. Entre as possibilidades de dar mais visibilidade ao trabalho, está a assessoria de imprensa, que, na maioria das vezes, é realizada por profissionais formados em Comunicação Social e que tem como objetivo levar o conteúdo de nossos projetos até a mídia e também influenciadores digitais, ampliando assim o nosso alcance. A assessoria de comunicação também é responsável pela produção do clipping — um registro de tudo que foi publicado, servindo como uma memória de nossos trabalhos no tempo e no espaço em que acontecem. Em geral, todos os editais públicos e privados nos pedem um portfólio ou clipping. Portanto, é importante ter esse material bem organizado, atualizado e sempre à mão. No AbraPalavra também temos os portfólios, organizados por nossa designer, separados por temas. Por exemplo, um portfólio apenas de ações internacionais, outro de ações de formação, de projetos socioculturais e assim por diante. Para alcançar os jornalistas e/ou influenciadores digitais, também produzimos para cada projeto um press-kit que dialogue com o tema. Na Mostra Candeia, sempre produzimos um pacotinho personalizado com o chá da folha da planta candeia e um texto convidando a pessoa a parar e tomar um chá. Junto desse press-kit, vai o release e outras informações sobre o evento. No caso dos influenciadores

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digitais, nós sempre buscamos aqueles que têm afinidade com os projetos que estamos divulgando, para que eles produzam um conteúdo que dialogue com os seus públicos. Mas a comunicação vai muito além das redes sociais e da imprensa. Ela acontece no cotidiano e no presencial também. Qual a forma que me comunico quando converso com cada parceiro do projeto e com os técnicos do teatro? Como respondo às mensagens de e-mail e WhatsApp? Como recebo o público que chega ao nosso evento?

Nos projetos presenciais, sempre temos uma pessoa da equipe responsável por receber o público e acolhê-lo, dar as boas-vindas e também para tentar auxiliar em caso de imprevistos. Este trato é tão importante que faz com o que o público se fidelize, que continue acreditando no que estamos propondo. Ele será nosso produtor e nosso comunicador espontâneo, ao levar outras pessoas no dia seguinte ou mesmo divulgar nas redes sociais. Ele vai confiar no que buscamos oferecer.

Durante a pandemia, quando nos vimos sem a referência do presencial, buscamos nessa comunicação acolhedora os caminhos para continuar nos conectando com o público. Primeiro, criamos o projeto Contos com Vinho, em que eu contava histórias tomando uma taça de vinho em vídeos no Instagram. Depois, passei a convidar outros narradores em lives ao vivo. Em seguida, conseguimos aprovar o projeto em um edital de eventos remotos pela Belotur (Empresa de Turismo de Belo Horizonte). Também criamos o podcast Histórias com Café.

Impossibilitadas de nos encontrarmos pessoalmente, eu e a contadora de histórias Bárbara Amaral (hoje também nossa produtora) começamos a pensar numa forma de continuarmos conectadas, apesar do cenário de isolamento. Foi assim que nasceu o podcast, onde, quinzenalmente a gente partia dos contos

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Parte 3 -Rotas Escolhidas da tradição oral para falarmos sobre como os temas nos atravessavam. Não demorou muito e chegaram outras duas mulheres: Ana Martins e Paula Libéria, que já eram nossas amigas e parceiras de trabalho. O podcast ganhou mais força, espaços na mídia e até encontros presenciais formado por rodas de conversas e apresentações artísticas.

Realizamos ainda na pandemia uma edição da Mostra Candeia e duas edições do Sons da Cidade. Para chegarmos aos nossos públicos, também buscamos a comunicação mais acolhedora possível. Fizemos o projeto Correspondência, em que as pessoas preenchiam um formulário e nós enviávamos cartas, mimos e programações impressas de nossos projetos. A experiência da Mostra Sons da Cidade, que teve uma edição presencial e logo em seguida duas online, também virou artigo acadêmico e posteriormente um livro – lançado durante a quarta edição (já realizada inteiramente de forma presencial em 2022).

A utilização do espaço online continuou mesmo após o fim da pandemia, porque a conexão feita com todo o Brasil precisava continuar. Assim, os projetos realizados atualmente, ainda que presenciais, têm sempre uma parcela híbrida ou exclusivamente online, para continuarmos este trabalho de descentralização.

Atualmente, nós pensamos a gestão, a comunicação e a produção cultural como os instrumentos para organizarmos nossos trabalhos. Como fontes de financiamento, temos a comercialização de produtos culturais (de forma presencial e online), convites que nos chegam para atividades de apresentação artística, palestras e formações e, principalmente, fomentos por meio de editais públicos e privados, além de financiamentos de projetos por meio de emendas parlamentares e fundos diretos. Os editais não são políticas públicas, e sim um dos instrumentos para

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promover a criação, a execução e o fomento de projetos. Por isso, atuamos com os conselhos e comitês, para lutarmos por mais fontes de recursos e estabilidade para os artistas e profissionais da arte e da cultura. No final do livro, vamos compartilhar nosso mapa de navegação e trazer um pouco mais sobre os caminhos que encontramos para buscarmos e materializarmos os financiamentos de nossos projetos e ações.

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Movimento 7 - Criação Artística

O movimento que encerra este ciclo é a criação artística, porque dela tudo começou. A narração de histórias como linguagem artística abre portas para conversas sobre repertórios, corpo, público, escuta, palavra, fundamentações teóricas, conceitos e fundamentos.

Os contos narrados oralmente são a matéria prima da nossa criação artística, que, desde o início, se materializou de forma transversal à música. A partir do encontro de uma contadora de histórias e um músico, passamos a estudar como essas duas linguagens artísticas poderiam se somar. Geralmente, o conto chega primeiro e depois a música. Isso acontece porque o conto vai se materializando à medida que ele é narrado oralmente. É nesse momento que vou construindo as imagens, o ritmo, os silêncios, a maneira como meu corpo se movimenta. Quando entrego a primeira versão de um conto narrado, o Chicó vem com a música que, ao utilizar seus elementos como ritmo, timbre, melodia e harmonia, passa a potencializar o que estou contando, contribuindo para despertar sensações nos ouvintes, como alegria, medo, nostalgia, saudade, suspense, entre outros. Nesse contexto, trabalhamos a música em diversos momentos da história, mas nunca de maneira ilustrativa, e sim como uma outra forma de contar. Ela pode aparecer no início para criar uma ambientação

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e preparar o ouvinte para o conto que vai chegar, pode ser inserida como canção dentro da narrativa para compor os personagens ou contribuir para criar imagens. Um exemplo disso é a história “A Princesinha Medrosa”, de Odilon Moraes. Nós cantamos a música “Se essa rua fosse minha” na hora em que a princesa fecha os olhos para ouvir o som das estrelas na água. Outra situação é quando a música faz parte da história, como no conto de tradição oral A Tartaruga e a Fruta Amarela, em que os animais precisam cantar uma música para não esquecer o nome da história. Ainda trabalhamos ambientações sonoras para auxiliar o ouvinte a construir as imagens e sensações que vão sendo narradas. Essas duas histórias trazidas como exemplo fazem parte de um trabalho chamado “Contos de Lá nos Cantos de Cá”, que também é o nosso primeiro CD. Construímos com esse trabalho um repertório variado, que pode ser adaptado em função do público, contexto, tempo.

Entre outras criações artísticas, podemos destacar o espetáculo litero-musical Canto de Rio, criado a partir de um conto autoral costurado por diversas canções de Dorival Caymini. Em 2012, circulamos com o trabalho “100 Anos de Gonzagão”, fruto de uma pesquisa bibliográfica e de campo — em Exu, cidade natal de Luiz Gonzaga. Em 2018, impactados com o momento político que vivíamos, produzimos o trabalho Ode à Esperança, com contos de tradição oral e literários e músicas que tratassem do tema. Em 2019, produzimos a apresentação “Notas Breves de uma Saudade”, dedicada às narrativas de língua portuguesa. Realizamos uma apresentação presencial, e as apresentações do ano seguinte tiveram que ser transcriadas para o ambiente virtual. Essa foi uma nova experimentação artística. Em 2023, produzimos um EP com a compositora Isabella Bretz e o músico

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Parte 3 -Rotas Escolhidas

Rodrigo Lana: a história Refúgio, uma proposta de escuta e composição autoral para o conto de tradição oral Fátima Fiandeira. Nesse trabalho, ofertado apenas digitalmente, narração, piano, vozes e elementos digitais conduziram a história como um convite para pensarmos sobre mulheres, homens e crianças que vivem em outros países por situações nem sempre escolhidas por eles.

Em alguns momentos, a burocracia que envolve a gestão e a produção cultural nos deixa com menos tempo para a criação artística, mas é a ela que sempre retomamos para lembrar quem somos e como nascemos — primeiro como dupla, que, aos poucos, foi virando muitos. E é desse desejo que nascem novos trabalhos, novas experimentações e repertórios.

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Parte 4 - Na linha do horizonte

A lenda das areias

Era uma vez um rio, um pequeno fiozinho de água que um dia nasceu no pico de uma montanha muito alta.

Pois, nem bem nasceu, aquele riachinho cismou que queria conhecer o mar. E foi descendo a montanha, curioso com tudo o que via pelo caminho. Foi crescendo, ganhando mais água, foi virando um rio de verdade. Depois de um tempão, chegou ao pé da montanha e deu de cara com um montão de areia. Olhou para um lado, areia. Olhou para o outro, areia. Olhou para a frente, areia, a perder de vista. Por toda parte, um grande deserto. Não havia outro jeito. Para chegar até o mar, lá longe, ele tinha que atravessar aquelas areias. Ele bem que tentou. Por mais que se esforçasse, não conseguia seguir adiante. Suas águas se afundavam nas areias. Quanto mais força ele fazia, mais para dentro delas ele era levado.

Então, uma voz, vinda das areias, falou para o rio:

– Assim, você nunca vai alcançar o mar. O único jeito é deixar que o vento transporte você até lá.

– Como assim? – perguntou o rio muito espantado. – De que maneira o vento poderia fazer isso?

– Primeiro, você se transforma em vapor e o vento carrega você para o céu em forma de nuvem. Depois, a nuvem vira chuva e é nessa forma de chuva que você cai no mar.

– De jeito nenhum! – disse o rio. – Se eu deixar de ser rio, quem pode garantir que vou ser eu mesmo outra vez? Deve existir outra maneira.

– Não existe. – disse a voz.

– Eu nunca ouvi nada tão sem sentido como isso que você está dizendo.

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Como posso arriscar a fazer uma coisa que nunca fiz antes? E se eu virar vapor e sumir? Não posso acreditar em algo que não conheço.

– Pois se você continuar insistindo em fazer só o que conhece, investindo com toda a força contra as areias, o máximo que vai acontecer sabe o que é? Você vai virar lama, sem sair do lugar, sem conhecer o mar.

– Mas eu sou um rio respeitável. Não posso virar vapor assim, sem mais nem menos. Demorei muito para formar tanta água, como é que, de repente, vou deixar de ser o que sou?

– Você não sabe de verdade quem você é, não adianta ficar repetindo essa lengalenga. Tente se lembrar de outra coisa, a não ser que você se contente em se transformar num grande lamaçal, barrento e parado.

O rio não queria virar lama, isso é que não. Começou a se perguntar, a pensar no que a voz havia dito. Devagar foi se lembrando, talvez algum dia, lá longe, no passado, ele já tivesse virado vapor, não tinha certeza, mas quem sabe?

Ele ficou cheio de dúvidas, com muito medo, mas uma hora resolveu se arriscar.

Quando o vento veio chegando, estendeu os braços para ele. Então, o rio se largou nos braços do vento e virou vapor. Enquanto era levado, durante o caminho para o céu aconteceu de tudo. Ele teve medo, chorou, outra hora pensou que estava ficando louco, que nunca mais ia voltar para o chão. Algumas vezes se divertiu, viu coisas maravilhosas, de novo chorou e duvidou de tudo. E assim foi descobrindo tanta coisa que ele poderia conhecer e fazer que nem sequer imaginava.

Quando finalmente chegou ao mar, como uma chuva grossa e quente, sentiu uma alegria enorme. Além de conhecer o mar, que era o que ele mais queria na vida, tinha aprendido quem realmente era.

(Contado por Regina Machado, no livro “Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias”. São Paulo: DCL, 2004)

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Compartilhando nosso Mapa de Navegação

Neste mapa de navegação, sugerimos algumas rotas e sugestões para você traçar seu próprio caminho dentro do universo da produção cultural afetiva, a partir das nossas experiências.

Identidade artística

Criar uma identidade não é se colocar em uma caixinha ou criar rótulos, mas sim pensar melhor sobre os caminhos e trilhar uma trajetória a partir daquilo que se propõe a ser e a fazer. A identidade não apenas define a singularidade da obra e do artista, mas é um instrumento para comunicar sua visão, é a sua assinatura estética. Independente da área artística, essa identidade contribui para definir o diálogo que o artista vai criar com seu público e parceiros. Embora ela possa ser transformada e atualizada ao longo do tempo, é importante que em cada momento da sua carreira, você tenha uma identidade bem marcada.

Três passos para construir essa identidade:

Experienciar e Experimentar

Embora muito semelhantes, estes dois termos se diferenciam no sentido de que experienciar enfatiza uma dimensão mais interna, emocional e pessoal da experiência, enquanto experimentar traz a proposta de tentar ou testar algo novo. Ambos

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Parte 4 -Na Linha do Horizonte são importantes para que o artista se permita explorar diferentes meios, técnicas e temas dentro da sua linguagem artística. Partir dos seus desejos pessoais, da sua história de vida, construindo narrativas de si também ajuda nessa etapa, porque nos conecta com quem somos. Essa fase é fundamental, porque nos dá dimensão do que nos toca, nos atravessa e do que funciona tecnicamente.

Estudar

Aprofundar-se em estudos teóricos sobre arte e sobre a sua linguagem pode ajudá-lo a compreender, a partir do contexto histórico dos diferentes movimentos e técnicas, o seu próprio trabalho. O estudo pode acontecer das mais diversas maneiras: seja o estudo acadêmico, com graduação e suas especializações, sejam os estudos livres, autodidatas, a partir do encontro com mestres, residências, assistindo a outros artistas.

Praticar e dialogar

Escolher espaços para praticar e buscar diálogos sobre sua obra com outros artistas e com o público pode contribuir muito para trazer novas ideias e percepções que ajudem a definir a identidade artística, alem de nos encorajar a colocá-la no mundo.

Organização Jurídica

A organização jurídica do trabalho do artista é um passo fundamental para que ele tenha sustentabilidade e possa desenvolver o seu trabalho. Além de facilitar a gestão financeira e operacional, também permite que se tenham benefícios legais,

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previdenciários, fiscais e de segurança:

Benefícios legais:

A formalização oferece proteção legal para o artista e seu trabalho, facilitando o registro de direitos autorais e a proteção da propriedade intelectual.

Benefícios previdenciários:

Ao contribuir para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como um trabalhador formalizado, o artista passa a ter direito à aposentadoria por idade ou contribuição, garantindo uma renda permanente. Em caso de incapacidade temporária para o trabalho devido a problemas de saúde, o artista formalizado tem direito ao auxílio-doença, que consiste em um benefício financeiro até a recuperação. Além disso, para as artistas gestantes, o registro jurídico proporciona o direito ao auxílio-maternidade.

Acesso a oportunidades:

A formalização abre portas para mais oportunidades, uma vez que que os contratantes exigem que os artistas tenham nota fiscal e possam cumprir os procedimentos legais do contrato. Além disso, muitos editais, subsídios e oportunidades de financiamento exigem que o proponente tenha uma estrutura jurídica formalizada.

Gestão financeira:

É muito importante que haja uma separação entre finanças pessoais e profissionais, sem esquecer a preparação de um fundo de reserva e a capacidade de investimentos necessários.

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Hoje em dia, temos muitas opções de organização jurídica, como:

MEI (Microempreendedor Individual):

Esse formato se popularizou bastante nos últimos anos. É o ideal para artistas que trabalham sozinhos e faturam até um limite específico por ano, pois oferece um regime tributário simplificado, cobertura previdenciária e é fácil de gerenciar. Recentemente, tem perdido algumas categorias voltadas ao trabalho cultural, o que tem gerado muitas discussões e debates.

Microempresa (ME):

Adequada para artistas com receitas anuais maiores do que as permitidas para MEI, além de permitir a contratação de mais funcionários e oferecer outras vantagens fiscais.

Empresa de Pequeno Porte (EPP):

Destinada a negócios com uma receita bruta maior do que a de uma ME. Está ligado ao Simples Nacional, que simplifica o pagamento de impostos.

Cooperativa:

Uma opção para artistas que desejam trabalhar coletivamente. Nessa modalidade, um grupo de artistas se une para compartilhar recursos, espaços e oportunidades, mantendo a autonomia artística individual.

OSC (Organização da Sociedade Civil):

Essa modalidade é voltada para projetos artísticos com foco social, cultural ou educacional que buscam impacto na comuni-

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-Na Linha do Horizonte
Parte 4

dade. Podem ser elegíveis para financiamento público e privado específico, como emendas parlamentares e fundos diretos nacionais e internacionais.

Definir a forma jurídica mais adequada depende de muitas questões, como o volume de receita gerada, a natureza do trabalho artístico, os objetivos de longo prazo e a disponibilidade para focar na complexidade administrativa e fiscal. Uma análise criteriosa das necessidades específicas do artista ou coletivo artístico pode ajudar nessas decisões, contando, sempre que possível, com a consultoria de um profissional de contabilidade ou direito.

Parcerias e formação de redes

Criar parcerias no ambiente artístico é fundamental para a continuidade de um projeto, ou mesmo para sua expansão, visibilidade e ampliação da rede de contatos e oportunidades. O trabalho realizado em rede também nos traz possibilidades de compartilhar recursos.

Alguns tipos de parcerias que podem ser desenvolvidas:

Parcerias com outros artistas

É possível pensar em projetos colaborativos, como desenvolver obras ou projetos em conjunto, unindo diferentes habilidades e visões artísticas; organizar exposições, mostras, circuitos e lançamentos que apresentem o trabalho de diversos artistas, compartilhando custos, redes de contatos e aumentando o alcance do público. Outras parcerias possíveis são as residên-

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Parte 4 -Na Linha do Horizonte

cias artísticas, potencializando recursos, mobilidade, expressões artísticas e espaços.

Parcerias com espaços culturais, OSCs e outras instituições

Espaços culturais para apresentações, ensaios, criações, reuniões e práticas de escritório são um grande desafio para a classe artística. Por isso, é tão importante pensar nas parcerias com estes lugares, que podem acontecer das mais diversas formas. Negociar o uso de espaços em troca de porcentagem de venda de obras ou ingressos; oferecer cursos e palestras nos espaços, agregando valor à programação cultural; uso colaborativo de escritórios com divisão de custos. Compartilhar espaços de trabalho é uma prática cada vez mais comum entre artistas, afinal, além de diminuir os custos, também fomenta um ambiente de criatividade compartilhada e oportunidades de ampliar as redes de contato. Também é possível pensar em parcerias com espaços de trabalho alternativos, como cafés, bibliotecas, universidades e centros culturais, para usar o espaço em troca de oficinas gratuitas ou uma apresentação artística.

Parcerias com empresas e marcas

Pesquisar empresas e marcas que, de alguma forma, dialoguem com seu trabalho é uma maneira de chegar até elas em busca de parcerias. Para isso, após pesquisar a missão, a visão e as áreas de atuação da empresa, é importante criar um material apresentando o trabalho e propondo quais tipos de parceria seriam viáveis. Por exemplo, desenvolver um trabalho para aquela empresa em troca de um produto; apresentar uma obra específica para a empresa ou marca, seja para eventos, espaços corporativos ou campanhas, em troca de royalties; apresentar

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um projeto que tenha a ver com a missão da empresa e propor o patrocínio direto ou via leis de incentivo à cultura. Este trabalho é muito minucioso e pode levar mais tempo, uma vez que é preciso criar uma relação de confiança e credibilidade. Nos tempos atuais, com as publicidades em redes sociais, esse é outro caminho para parceria com empresas e marcas, construindo narrativas/storytelling nos espaços virtuais.

Um ponto importante quando se fala de parcerias e redes é o suporte e a solidariedade. Em tempos difíceis, como foi a pandemia da Covid-19, por exemplo, a rede e as parcerias podem oferecer suporte emocional e financeiro aos seus membros. Outro ponto é a defesa de direitos e interesses, uma vez que coletivamente é muito mais apropriado defender e garantir os direitos e interesses dos artistas e profissionais da cultura, e ampliar a participação social em comunidade.

Participação Social

O acesso à cultura é um direito fundamental, previsto no art. 215 da Constituição Federal de 1988. A participação social de artistas, profissionais, trabalhadores da cultura e público consumidor de arte e cultura em comitês, conferências e comissões é muito importante para ampliar a participação nas políticas públicas e de recursos disponíveis para a cultura e outras áreas. Essa participação exige muita dedicação de tempo e esforço, mas é uma ferramenta importante para batalhar por decisões e políticas que afetam diretamente o setor cultural e a sociedade como um todo. Realizar essa participação social de forma coletiva é ainda mais importante, para que as políticas públicas reflitam as necessidades e os desejos da comunidade artística e cultural.

Em 2024, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei

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Parte

do Sistema Nacional de Cultura (SNC), que é uma estratégia de gestão compartilhada entre União, estados, Distrito Federal e municípios, além da sociedade civil, com o objetivo de fomentar políticas públicas culturais em todo o país.

Muitas vezes, as pessoas não sabem como começar a participar socialmente destas discussões. No Brasil, existem várias esferas em que essa participação pode ser efetivada, como essas que assinalamos a seguir. Lembramos que a participação também pode se efetivar em reuniões públicas, quando o eleitor para votar nos membros das comissões e dos conselhos, entre outras iniciativas.

Conselhos de Cultura

Os conselhos nacionais, estaduais e municipais oferecem um espaço formal para a discussão e deliberação sobre políticas culturais. A entrada nessas comissões geralmente é feita através de inscrição e um processo de eleição aberta, garantindo que a seleção de membros seja transparente e democrática. As reuniões são abertas ao público.

Conferências de Cultura

As Conferências de Cultura, realizadas em âmbito nacional, estadual e municipal são outro mecanismo de participação. Em geral, acontecem de quatro em quatro anos, com o objetivo de debater, avaliar e propor diretrizes para as políticas culturais. Essas conferências são abertas a todos, funcionando como uma plataforma inclusiva para que artistas, profissionais da cultura e o público em geral contribuam com suas visões e sugestões para o desenvolvimento cultural. Cada conferência conta com eleições de delegados que representarão um grupo maior nas

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do Horizonte
4 -Na Linha

Produção Cultural pelo Afeto devidas esferas.

Grupos de Trabalho, Comissões e Comitês Além dos conselhos e conferências, existem grupos de trabalho, comissões e comitês que se formam para tratar de temas específicos dentro do campo da cultura. Cada um deles tem seu papel e responsabilidade dentro de cada espaço. De forma geral, os grupos de trabalho são formados por pessoas das mesmas áreas ou interesses e atuam para discutir e trazer resultados para determinadas questões. As comissões representam um grupo ou rede maior, com o intuito de ajudar a tomar decisões e levá-las para as esferas públicas. Em alguns casos, os comitês são grupos menores que representam as comissões.

Mercado de Trabalho

O campo da arte e da cultura tem uma natureza dinâmica e em constante evolução. Assim, o artista precisa estar sempre aberto a explorar diferentes vias de sustento, trabalho e reconhecimento. Historicamente, o orçamento da cultura é muito menor do que a demanda, o que também faz com que este mercado seja muito mais escasso. Abaixo, listamos alguns caminhos possíveis:

Venda Direta

A venda direta de obras e/ou apresentações artísticas é uma das formas mais tradicionais de monetizar o trabalho, podendo incluir a venda de obras de arte físicas, apresentações ao vivo, músicas, livros e outros produtos culturais. Com o avanço da tecnologia, a venda direta também se estendeu para o ambiente

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Parte 4 -Na Linha do Horizonte digital, através de lojas online e plataformas de conteúdo digital. Para isso, é preciso se atentar a algumas estratégias como:

Definição do público-alvo:

É importante saber para quem queremos vender e, para isso, é preciso compreender os interesses, características, hábitos e canais de comunicação mais eficazes para alcançá-lo. Após esse trabalho de definir o público e chegar até ele, podemos trabalhar a proposta de “furar a bolha”.

Criação de portfólio:

A apresentação do que você faz é fundamental nessa etapa de venda direta, porque ela destaca, de maneira clara, o seu estilo e a sua temática. Hoje há muitos aplicativos gratuitos para trabalhar o design da sua identidade, enquanto não houver na sua equipe um profissional especializado nisso. À medida que seu trabalho for crescendo, é importante contar com profissionais especializados. Sites próprios, plataformas de portfólio (canais de áudio, vídeo, entre outros) e redes sociais do trabalho são excelentes pontos de partida. As plataformas como Instagram, Facebook, TikTok e Pinterest podem ajudar a construir este portfólio. Nelas é possível divulgar o trabalho, contar histórias dos processos e interagir com o público com consistência e qualidade de conteúdo.

Plataformas de venda online e/ou diretas em eventos presenciais:

Um caminho também é explorar plataformas de vendas online que oferecem a estrutura necessária para alcançar um público mais amplo e facilitam o processo de vendas e entregas. Além

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disso, participar de feiras de arte, de livros, mercados locais, exposições e outros eventos culturais pode ser uma forma de vender diretamente ao público, e ainda criar oportunidades de networking.

E-mail marketing:

Construir uma lista de e-mails permite comunicar-se diretamente com o público. Existem muitas plataformas e programas para uso individualizado dos e-mails, que geralmente estão conectados no celular das pessoas, ou seja, estão literalmente “na mão” do seu público. O e-mail pode ser usado para informar novas obras, convidar para eventos e formações, entre outros.

Precificação:

Colocar preço nos trabalhos é sempre uma questão, seja para as apresentações artísticas ou para produtos culturais. Embora não haja uma fórmula, é importante pensar nos custos de produção, no valor de mercado e no próprio histórico de cada artista. Existem algumas plataformas que ajudam a ter referências de preços, como o Salicweb, do Ministério da Cultura. Nos Diários Oficiais (municípios, estados e da União), é possível ter acesso às tomadas de preços.

Busca de compradores:

Após definir o público-alvo (da obra), produzir portfólio e pensar a precificação, uma etapa muito importante é a de buscar os compradores (público-alvo da venda) que podem ser programadores de espaços culturais, curadores de festivais, mostras e feiras, diretores de escolas, gestores públicos e gestores de espaços culturais. Essa pesquisa é feita de forma manual, buscando

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Parte 4 -Na Linha do Horizonte nos sites especializados, nos sites de prefeituras, em mapas culturais do estado, município ou federal, entre outras possibilidades. Após essa busca, é recomendável fazer uma planilha com itens como nome, cidade/estado, telefone, e-mail, site, observações/atualizações de contato, data de envio do material, retorno.

Financiamento Coletivo:

Você já ouviu falar do termo “mutirão”? Essa é uma prática comunitária bastante popular no Brasil, especialmente em áreas rurais, em que um grupo de pessoas se junta de forma voluntária para ajudar em atividades como construir uma casa, plantar, colher ou até fazer uma festa. Na prática, cada participante contribui com seu trabalho e habilidades, e, quando necessário, outros farão o mesmo por ele. O financiamento coletivo, ou crowdfunding, é uma nova versão do mutirão, pois uma comunidade também se une para ajudar a construir algo concreto, no entanto, em uma escala global e por meio de plataformas digitais. O financiamento coletivo permite que pessoas de qualquer lugar do mundo contribuam para a concretização de projetos e, como retribuição, recebe um brinde, um serviço ou o próprio produto apoiado, por exemplo.

Para lançar uma campanha de financiamento coletivo, é importante definir quais seus objetivos, qual o orçamento e o prazo necessários. Além disso, estabelecer metas e recompensas que podem ser produtos, serviços ou experiências. Após esse trabalho de pré-produção, faça uma busca pelas plataformas para projetos coletivos e selecione aquela que tenha mais a ver com o seu perfil. Dois pontos muito importantes são a produção do conteúdo que será veiculado e a divulgação de todo o trabalho.

A divulgação engloba, além de pedir o apoio, manter os apoia-

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Produção Cultural pelo Afeto

dores bem informados e atualizados, para construir assim uma relação de credibilidade e transparência. Por fim, quando finalizar a campanha, é necessário garantir a entrega de todas as recompensas.

Participação em Editais e Chamamentos Públicos:

Ao longo dos últimos vinte anos, o envio de projetos para editais e chamamentos públicos tem sido cada vez mais consolidado como um dos meios mais procurados para fomento às atividades culturais no Brasil. Para solicitar, aprovar e posteriormente gerir esses recursos, o produtor/artista também precisa se qualificar para atender aos desafios, principalmente em termos de burocracia e organização. É preciso submeter o projeto cultural conforme os requisitos estabelecidos pelas legislações de cada edital. Após a aprovação e a execução adequada, o projeto cultural será submetido a uma avaliação final, que consiste na análise e validação da prestação de contas realizada.

Neste contexto dos editais, os artistas e produtores culturais devem estar atentos a algumas etapas. A primeira é a leitura atenta do edital.

A importância de entender o edital

O edital é a bússola para qualquer projeto cultural que se pretenda submeter a um processo de seleção. Ali você vai encontrar todas as informações necessárias sobre os objetivos do certame, os limites e possibilidades de financiamento, as proibições e as regras gerais. Um bom caminho é imprimir o edital ou baixá-lo de maneira que se possa fazer anotações e destacar seções

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importantes, como prazos, documentação necessária e limitações orçamentárias.

Após estudar o edital, o segundo passo é pensar no projeto cultural, que nada mais é do que um instrumento técnico e estratégico. Para iniciá-lo, seja escrevendo ou conversando sobre ele com outros parceiros, sugerimos começar respondendo às seguintes perguntas:

O quê?

Responda o que será realizado no projeto: um show, um livro, uma circulação, uma residência, um festival, uma peça teatral, uma gravação e lançamento, uma pesquisa. Tente ser bem específico sobre as atividades, eventos ou produtos culturais que serão desenvolvidos.

Quem?

Responda a essa pergunta de duas maneiras: “Quem está envolvido no projeto?”. Essa resposta está ligada à equipe principal: coordenador, diretor, ator, músico, diagramador, contador, assessor de imprensa, etc., de acordo com seu projeto. E a segunda é “Para quem é meu projeto?”. Aqui vem a resposta sobre o seu público-alvo.

Quando?

Todo projeto pede um cronograma. Por isso, é importante anotar as datas de início e término das atividades e a sequência delas ao longo da realização.

Como?

Aqui você vai explicar quais estratégias serão usadas para a

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-Na Linha do Horizonte
Parte 4

execução do projeto, como se dará a divulgação para chegar ao público, como será feita a contratação de pessoas, a produção de cada detalhe. Uma dica é, a partir do cronograma detalhado, explicar como cada parte dele será executado. Nesta pergunta, também é importante refletir sobre como será a avaliação do projeto, como você vai mostrar que ele foi realizado.

Por quê?

Essa pergunta vai te auxiliar a escrever uma parte muito importante do projeto: a justificativa. Pense na importância artística, cultural, social ou educacional do seu trabalho e como ele contribui para os objetivos que estão descritos no edital.

Onde?

Pensar nos locais possíveis para realizar o seu projeto, desde lugares físicos, como escolas, centros culturais, locais ao ar livre, teatros até plataformas digitais e ambientes remotos é fundamental. Descreva porque este local escolhido é apropriado e não se esqueça de pensar em acessibilidade, localização, aspectos culturais e históricos, entre outros. A escolha do local também influencia muito o orçamento geral do projeto.

Quanto?

Essa resposta ajudará a pensar o orçamento do projeto, que deve detalhar todos os custos, sejam eles diretos — como cachês de artistas, gestores, produtores, técnicos e outros profissionais envolvidos, custos de materiais, aluguel de espaço, transporte e alimentação, entre outros — ou indiretos, como despesas administrativas, taxas de banco e outros gastos operacionais que não necessariamente estão ligados à execução, mas são essenciais

124 Produção Cultural pelo Afeto

Parte 4 -Na Linha do Horizonte para o funcionamento do projeto.

A partir das respostas às questões acima, será possível formular os textos que, em geral, são:

Resumo

Quando o edital pede um resumo, é importante ser bem direto, como por exemplo: “Realizar uma circulação do Sarau [nome], nas cidades [nomes], durante [número] meses, atraindo um público de aproximadamente [número] pessoas, com o objetivo de promover o incentivo à leitura entre jovens e adultos”.

Apresentação

Embora apareça primeiro, pode ser a última etapa a ser escrita, já que ela precisa conter todas as informações do projeto.

Objetivos

Na hora de escrever os objetivos, é importante pensar que eles devem ser claros, curtos e alinhados com o projeto e com as expectativas do edital. Em geral, os dividimos em objetivos mais específicos, que detalham o que o projeto pretende alcançar, por exemplo, “promover o teatro de bonecos por meio de oficinas de arte e exibições públicas em cinco comunidades locais”. Os objetivos devem ter critérios fáceis de mensuração para que, ao final, seja fácil avaliar se foram realmente alcançados. Uma dica é trazer sempre verbos de ação como criar, construir, promover, organizar, realizar, entre outros.

Justificativa

Quando um parecerista está com diversos projetos para ler, ele vai analisar muitos itens objetivamente, a partir das regras

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daquele edital. A Justificativa, no entanto, é o lugar onde terá um norte para compreender porque seu projeto deve ser realizado. Embora você possa escrevê-la de diversas maneiras, vamos compartilhar uma estrutura que pode te ajudar a construí-la a partir do seu próprio estilo de escrita:

Um bom jeito de começar é contextualizando o projeto, ou seja, contando a história dele. Em que cenário cultural, social, ambiental e/ou educacional ele está inserido, qual sua importância, de que maneira ele poderá beneficiar o público atendido, quem participa, quais oportunidades ele traz etc. Depois, sempre que possível, traga dados, pesquisas, fale de outras ações bem-sucedidas que já foram realizadas. Volte aos temas e objetivos do edital e fale resumidamente como poderá atendê-los. Traga uma marca pessoal sua, como esse projeto também te atravessa e por isso você resolveu escrevê-lo. Esse é o momento de fazer com que os financiadores vejam não apenas a viabilidade do projeto, mas também o seu valor.

Cronograma

O cronograma, que em geral tem uma tabela própria em cada formulário, define os prazos de cada etapa do projeto. Na hora de colocá-lo no papel, é importante ter anotado todas as atividades necessárias, definindo o período previsto para a realização de cada atividade. Lembre-se de que, para começar, tem que se ter em vista o tempo de aprovação no edital e de liberação do recurso. No cronograma, algumas ações poderão acontecer de forma simultânea, como por exemplo, circulação de um espetáculo e assessoria de imprensa. É preciso colocar um prazo para finalização do projeto, produção de relatórios e prestação de contas. O mais importante é incluir prazos considerados possíveis, já que

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o cronograma é uma ferramenta fundamental para manter todas as fases alinhadas entre si.

Acessibilidade

Quais medidas acessíveis (de comunicação, atitudinal e de estrutura) podem ser propostas para que seu projeto chegue a mais pessoas? O primeiro passo é estudar sobre o tema acessibilidade cultural. É possível encontrar palestras e materiais disponíveis sobre o tema na internet. Uma ótima alternativa é conversar com pessoas com deficiências, para escutá-las sobre demandas e possibilidades de acesso. Ao escrever o projeto e definir o local, verifique se ele é acessível, incluindo acesso sem barreiras, banheiros adaptados e sinalização adequada. Pense na possibilidade de ter materiais de divulgação acessíveis, com descrição de imagem, interpretação de libras em vídeos e/ ou legendas. Informe-se a respeito de serviços de interpretação para Língua Brasileira de Sinais (Libras) em apresentações e eventos, e pense nas estratégias para levar o público surdo para seu projeto. A acessibilidade atitudinal também é fundamental, e um dos caminhos é treinar a equipe sobre acessibilidade, para garantir um projeto inclusivo para todos os participantes. Inclua um processo de pesquisa para avaliar a eficácia das medidas de acessibilidade e faça melhorias a partir dos retornos. Não deixe de pesquisar estes valores para colocá-los no orçamento.

Plano de Divulgação

No plano de divulgação, o proponente insere todas as ações necessárias para divulgar e promover o projeto. Quando o proponente tem a definição do público-alvo, também consegue delimitar melhor as estratégias de divulgação, seja para um público

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Parte 4

mais amplo ou para públicos específicos. Em geral, utilizam-se as mídias sociais para postagens regulares, anúncios pagos, lives e interações com o público, assessoria de imprensa para enviar materiais para a mídia local, sites de arte e cultura, influenciadores digitais e outros formadores de opinião. Também nessa etapa, é importante listar os materiais de divulgação, tais como panfletos, cartazes, programas, convites, banners, e-mails marketing, vídeos, postagens específicas para cada rede social, entre outros.

Orçamento

Pesquisar a realidade do mercado e conversar anteriormente com os profissionais da equipe principal são duas etapas importantes na escrita de um projeto cultural, pois garantem a viabilidade financeira e a credibilidade do projeto. A pesquisa ajuda a saber o custo médio dos itens necessários e evitar subestimação ou superestimação que possa comprometer a execução do projeto, assim como sua aprovação. Entender os limites de financiamento e categorias de despesas elegíveis especificadas em editais também é fundamental. Muitos editais, por exemplo, limitam o valor máximo para um profissional ou para gastos administrativos.

Geralmente, os editais já apresentam suas planilhas, cabendo ao proponente preenchê-la com custos, como pagamento de pessoal, custos com materiais de arte, cenografia, figurino, consumíveis, aluguel de espaços, despesas de transporte, diárias, serviços de contabilidade e jurídico, comunicação, impressão de materiais promocionais, tráfego pago, intérpretes de língua de sinais, audiodescrição, adaptações físicas, entre outros. Muitos editais pedem que cada item do orçamento seja descrito e justificado. Por isso, é importante pesquisar em cotações reais e atualizadas,

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Parte 4

e considerar as variações de mercado de acordo com o tempo entre a escrita e a execução do projeto.

Indicadores e resultados

Caso o edital peça que sejam especificados os indicadores e resultados do projeto, informe o número de participantes ou espectadores, número de obras produzidas, alcance de mídia e engajamento do público nas redes sociais. Explique os resultados sustentáveis que o projeto pretende ter sobre a comunidade, a cultura local ou o campo artístico. Descreva como os dados serão coletados para medir cada indicador, incluindo pesquisas, registros de participação, feedback dos participantes, análise de mídia social, entre outros. Além disso, apresente como vai comprovar ações, como envio de relatórios fotográficos mensalmente, listas de presença, cópia de contratos de serviço etc.

Uma parte fundamental que não pode ser deixada de lado é a organização dos documentos que precisam ser enviados. Geralmente, essa etapa é eliminatória e, caso não seja enviada, pode gerar a desclassificação do proponente.

Organizando documentos

Antes de iniciar o processo, faça um checklist de todos os documentos exigidos pelo edital e verifique se todos estão atualizados, especialmente aqueles com data de validade, como certidões negativas. Crie uma pasta no seu computador ou drive e mantenha cópias digitais de todos os documentos atualizados.

Em geral, os principais documentos solicitados são:

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Linha do Horizonte
-Na

Clipping:

Reunião de materiais jornalísticos impressos ou digitais que mencionam o proponente ou projetos que ele realiza ou já realizou. Por isso, é importante guardar tudo, para ter sempre em mãos quando precisar.

Currículo do proponente:

Documento que detalha a formação, experiência profissional, habilidades e realizações do proponente.

Currículo da equipe:

Reunião de currículos da equipe principal do projeto.

Documentos pessoais:

Identificação pessoal, como RG, CPF e comprovante de residência atualizado em nome do proponente.

Documentos da empresa:

Quando a inscrição é por meio de PJ, solicitam documentos que comprovam a existência legal da empresa, como CNPJ, contrato social e comprovante de endereço comercial.

Certidões negativas de débito:

Estes são documentos emitidos por órgãos públicos que comprovam a ausência de débitos tributários ou outras irregularidades fiscais.

130
Cultural
Afeto
Produção
pelo

Execução do projeto

Com o projeto aprovado, após receber o financiamento, o proponente deve seguir o planejamento inicial para garantir que todas as etapas e objetivos sejam alcançados.

Algumas dicas para que esse projeto seja realizado com tranquilidade é prezar sempre pela organização, pela escuta coletiva e pela empatia. Ao formalizar os acordos de trabalho, é importante conversar e ouvir as opiniões sobre etapas, valores acertados e funções, assegurando clareza nos termos e condições, protegendo todas as partes envolvidas e tornando o processo muito mais prazeroso.

Lembre-se de organizar uma pasta no Google Drive ou em outra plataforma de armazenamento em nuvem para coletar e armazenar todos os documentos relacionados ao projeto, tais como documentação visual das atividades, listas de presença, comprovantes de todas as transações financeiras, extratos de pagamento, notas fiscais, entre outras informações importantes sobre os fornecedores.

Se possível, priorize contratar um gestor financeiro para administrar o orçamento do projeto. Ele vai garantir que todas as despesas sejam executadas de acordo com as normas fiscais e com o orçamento aprovado. Manter uma documentação detalhada e organizada desde o início facilita o processo de prestação de contas ao final do projeto e evita gastos ou devoluções de recursos ao final. Uma dica é produzir diários de bordo do projeto, para que você possa acompanhar o que tem funcionado, como está sendo realizado, o que pode ser melhorado para o próximo, além de ser um registro e uma memória do projeto.

Para continuarmos juntos nessa caminhada pela arte, pela

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do Horizonte
Parte 4 -Na Linha

Produção Cultural pelo Afeto

cultura e pelos afetos que nos movem, convidamos você a acessar o QR code abaixo e nos escutar falando um pouco sobre cada etapa da escrita de um projeto. Você ouvirá dicas para executá-lo e conhecer mais sobre as leis, fundos e outros mecanismos de acesso a financiamentos, como a Política Nacional Cultura Viva, a Política Nacional Aldir Blanc, os Fundos e as Leis de Incentivo. Assim, nosso encontro continua vivo e circular como tem sido a nossa produção por aqui.

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