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GAZETA DO POVO
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domingo, 7 de abril de 2013
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Lei Pelé, 15 anos A matéria prima
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A matéria prima
8/4 Os novos ricos 9/4
Gols e negócios
10/4 O contra-ataque
Filhos da revolução
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esportiva
Leonardo Mendes Júnior
❚❚A Cidade de Deus entrou para o imaginário brasileiro a partir de uma tela de cinema. O thriller de ação homônimo de 2002, dirigido por Fernando Meirelles e Katia Lund, apresentou a favela ao público médio com um a estética única, emprestada dos videoclipes, e uma linguagem crua trazida das quebradas do morro. Para Thiago Mosquito, o bairro da zona oeste carioca sempre foi vida real, nunca ficção. A partir das ruelas em que se desenrola a história de Zé Pequeno, ele construiu um roteiro próprio, digno de ser rodado por um cineasta de prestígio internacional. Com o pai preso, foi criado pela mãe e o padrasto. O futebol desde sempre surgiu como caminho para a vida. Aos 5 anos, era levado pela avó para treinar na escolinha do bairro. No futsal do Fluminense, ganhou o apelido de Mosquito, pela semelhança com um amigo do treinador. Do Flamengo foi embora aos 13 anos, em 2009, por falta de pagamento de ajuda de custo. Como atleta do Vasco, deu a prova definitiva de que não era apenas mais um garoto sonhando em jogar bola. Marcou 12 gols em 5 partidas do Sul-Americano sub-15 de 2011, pela seleção brasileira. Deixou o Uruguai como craque, artilheiro e campeão do torneio. Saltou dali para o momento mais turbulento da sua carreira. O mesmo atraso de pagamentos serviu de justificativa para deixar o Vasco, após quatro meses sem aparecer em São Januário – e sem assinar seu primeiro contrato profissional, o que seria possível em janeiro do ano passado, quando completou 16 anos. Em maio, apareceu no Macaé. Quatro meses mais tarde, era emprestado ao Atlético, sem ter disputado uma partida sequer pelo clube da região serrana do Rio. Um percurso que teve os três clubes como meros pontos de parada escolhidos por atores mais poderosos na orientação do jovem atacante. Até o Sul-Americano do Uruguai, Mino Raiola cuidava da carreira de Mosquito. A partir da saída do Vasco, a função passou a ser exercida por Gustavo Arribas. Raiola, italiano, é um dos empresários mais influentes do mundo do futebol. Com portas abertas nos gigantes Milan e Internazionale, tem como joias da sua carta de clientes os atacantes Zlatan Ibrahimovic, do Paris-St.
“Estavam acostumados a ter cabresto, ser cuidados. Quando acabou o passe, alguns jogadores me diziam que se sentiam inseguros por não ter mais o clube como dono.” Gislaine Nunes.
Germain, e Mario Balotelli, do Milan. Arribas, argentino, mantém o fundo de investimento HAZ Sports Agency, em sociedade com o israelense Pin Zahavi e outro argentino, Fernando Hidalgo. Zahavi foi sócio de Kia Joorabchian na conturbada passada do fundo MSI pelo Corinthians. Hoje, o trio mantém um parceiro brasileiro bem menos estrelado, o Macaé. Clube fachada em que o HAZ registra jogadores captados pelo país. Um negócio lucrativo, que faz os R$ 750 mil pagos ao Vasco como ressarcimento pela saída de Mosquito – e para aquietar o boicote que se articulava contra o Atlético em torneios de base – parecer dinheiro pequeno. O mundo em que um garoto de 17 anos – que não pode dirigir um automóvel, nunca votou e ainda não se alistou ao serviço
militar obrigatório – passa pelas mãos de dois empresários de renome internacional e se torna pivô de disputa entre dois campeões nacionais começou a ser construído quando Mosquito mal havia passado dos 2 anos de idade. No dia 24 de março de 1998, o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sancionou a Lei Pelé, publicada dois dias depois no Diário Oficial. A legislação articulada pelo maior atleta da história, na época Ministro E xtraordinário dos esportes, mudou para sempre o futebol brasileiro. O passe, vínculo que prendia por tempo indeterminado o jogador a seu clube, foi extinto. A ligação formal passou a ser representada apenas pelo tempo de contrato. Ainda haveria um período de três anos para a adaptação às novas normas, mas a fissura provocada se-
gue até hoje, sem cicatrizar completamente. Mais do que isso, pôs no centro das decisões um novo e poderoso personagem, o empresário. O futebol brasileiro em que a Lei Pelé foi concebida era próspero. A estabilidade econômica construída a partir do Plano Real, em 1994, enfim parecia chegar aos gramados. Gigantes multinacionais destinavam investimentos graúdos a alguns dos maiores clubes do país. O fundo norte-americano Hicks, Muse, Taste & Furst (HMTF) havia se associado a Corinthians e Cruzeiro. No Flamengo e no Grêmio, o dinheiro saía dos cofres da agência de marketing esportivo ISL, parceira da Fifa – hoje, sabe-se, inclusive em negócios fraudulentos. O Nations Bank era o financiador de Vasco e Bahia. Parcerias que seguiam o rastro da já consolidada cogestão Palmeiras-Parmalat. Nos três anos entre a sanção e a entrada completa em vigor da Lei Pelé, o cenário econômico do Brasil e de seu futebol mudaram. A estabilidade do Real foi abalada pela crise que atingiu México, Argentina e o Brasil, desva-
lorizando a moeda nacional perante o Dólar. Nos gramados, os fundos cortaram investimento, deixando dívidas e escândalos que estourariam ao longo dos anos seguintes. A guinada contribuiu para que os clubes pouco se preparassem para a mudança na legislação. “Por ter pouco conhecimento da lei, os clubes passaram a fazer contratos mais longos, pois se trocaria o passe pela multa salarial com base na duração do vínculo. Os elencos ficaram inchados e caros por causa de jogadores que, se você pensasse um pouquinho mais, não teria investido”, conta Ocimar Bolicenho, superintendente de futebol do Paraná entre 1999 e 2002, atualmente exercendo a mesma função na Ponte Preta. Segundo o dirigente, apenas o Clube dos 13 teve alguma participação na elaboração da lei, o que aumentou ainda mais a incerteza sobre o que fazer. “Perpetuou-se a interpretação de que jogadores eram escravos dos dirigentes, por isso os clubes não deveriam participar. Em alguns casos, eram mesmo. Mas tomaram isso por base para todos”, diz Bolicenho. Uma regra sem exceção para Gislaine Nunes. A advogada de 42 anos liberou quase uma centena de jogadores somente nos três anos de carência da Lei Pelé. Hoje, sua marca passa de 400. Todos, para ela, ex-escravos que no começo nem tinham certeza de querer a liberdade. “Estavam acostumados a ter cabresto, ser cuidados. Quando acabou o passe, alguns jogadores me diziam que se sentiam inseguros por não ter mais o clube como dono”, diz. O clube, de fato, deixou de ser o dono, papel agora exercido pelo empresário. Mosquito que o diga. Aos 17 anos, passou pelas mãos de dois dos maiores agentes do mundo. Operações tão complicadas que ele, orientado, prefere não comentar. Com o olhar tímido típico de adolescente, enquanto a tarde cai no CT do São Paulo, em Cotia, limita-se a responder perguntas prosaicas sobre o sul-americano sub-17, para o qual se preparava. O máximo que a mente se permite viajar é até 2016, ano olímpico. “Será muito especial jogar a Olimpíada pelo Brasil na minha cidade”, diz. Terá, então, 20 anos e uma história que daria um ótimo filme sobre como o futebol brasileiro viu o poder mudar de mãos sem nunca estar como quem realmente deveria: os jogadores.
A
pós 15 anos da promulgação da Lei Pelé, podese dizer sem medo que o futebol pôs fim à precariedade das relações trabalhistas entre clubes e boleiros, porém manteve o boleiro – não importa se consagrado ou no início da carreira – com baixa autonomia para tomar decisões para o andamento da carreira. Acabou o ‘passe’ e surgiu a figura do intermediário nas negociações contratuais. No placar: 1 a 1. A partir de hoje, até a próxima quarta-feira, a Gazeta do Povo mostra as diversas faces do ordenamento que chegou a ser chamada de abolição, em 1998, quando veio à tona. A norma, que carrega o nome do maior símbolo de perfeição no esporte, tem uma série de defeitos, vários adversários, muitas histórias de prejuízo ou enriquecimento. Certo mesmo que agora é exagero chamar o futebolista de escravo –no máximo, dependente.
Histórico
Duas realidades
União Europeia abre caminho de mudança atormenta dirigentes e faz o ‘fim do mundo’
A Lei Pelé veio mudar uma estrutura legal de quase 30 anos, que, na prática, havia transformado jogadores em propriedade dos clubes. Veja o que mudou:
Quando surgiu a Lei Pelé, a Europa – assim como hoje – mandava dinheiro e também indicava o caminho e a intensidade do vento da mudança. Em 1995, a União Europeia determinou que clubes de futebol não poderiam impor restrições a transferências de jogadores nascidos nos países do bloco, tampouco cobrar indenização para liberar atletas com menos de seis meses de contrato a cumprir. A decisão foi uma resposta à fracassada transferência, cinco anos antes, do atacante belga Jean-Marc Bosman do Liége, clube de seu país, para o francês Dunkerque. Nascia a Lei Bosman, que na prática pôs fim ao passe na Europa Se no principal centro do futebol mundial a nova legislação equilibrou a relação entre clubes e jogadores, além de promover uma inédita internacionalização dos times, no Brasil o efeito foi devastador. “Foi a entrada de um profissional em uma relação que era basicamente amadora”, resume Felipe Ximenes, superintendente de futebol do Coritiba. Na época, Ximenes trabalhava no Vasco. Eurico Miranda, então presidente do clube carioca, foi um dos maiores opositores da entrada em vigor da Lei Pelé. Como deputado federal, tentou derrubá-la até o fim da carência, em março de 2001, quando o passe foi extinto na prática. “O Eurico falava que seria a falência dos clubes porque via a fragilidade das instituições. Eram 40, 50 anos sem recolher FGTS e de repente começaram a perder jogador por três meses de atraso no recolhimento. Parecia o fim do mundo”, relembra Ximenes, sem atribuir unicamente ao fim do passe a perda de poder dos clubes perante os empresários. (LMJ)
“O Eurico falava que seria a falência dos clubes porque via a fragilidade das instituições. Eram 40, 50 anos sem recolher FGTS e de repente começaram a perder jogador por três meses de atraso no recolhimento. Parecia o fim do mundo.” Felipe Ximenes.
Vínculo Lei 6.354/76 (‘Do Passe’) Existe mesmo quando o contrato chega ao fim, caracterizado pela figura do passe.
Lei 9.615/98 (‘Pelé’) Só é válido durante a vigência do contrato. Nos seis meses finais do vínculo, o jogador pode assinar um acordo prévio com outro clube. No dia seguinte ao encerramento do contrato, está livre para negociar com qualquer time, sem pagamento de multa.
Transferência Lei 6.354/76 Somente pode ser feita mediante o pagamento de um clube para o outro, mesmo que o contrato do atleta tenha chegado ao fim.
Lei Pelé Pode ser feita mediante o pagamento de multa rescisória, calculada com base no valor do salário. Após o contrato, é feita sem qualquer ônus.
Passe na mão Lei 6.354/76 Para jogadores que completam 32 anos, com dez anos de serviço efetivo prestado ao último empregador.
Lei Pelé O passe dá lugar aos direitos esportivos. Essa nova figura vai para a mão do jogador imediatamente após o fim do contrato ou caso ele pague a multa rescisória.
Atraso Lei 6.354/76 O não pagamento de salário por três meses ou mais resulta no impedimento de o clube disputar competições oficiais, mas não afeta seu vínculo com os jogadores.
Lei Pelé O não pagamento por três meses ou mais dá razão à rescisão contratual por parte do atleta. Por remuneração entende-se não só o salário, mas gratificações (direito de imagem), 13º salário, prêmios e contribuição previdenciária.
Prazo de contrato Lei 6.354/76 De três meses a dois anos.
Lei Pelé De três meses a cinco anos.
Entrevista Eduardo Carlezzo, advogado.
Lei Pelé, mas pode chamar de Hadson
Reprodução
“O agente de jogadores sempre existiu, mas só após a Lei Pelé ganharam relevência no mercado” Eduardo Carlezzo atua com as diversas pontas envolvidas em qualquer negócio do futebol. Seu escritório de advocacia, um dos mais conceituados da área no país, presta assessoria a atletas, agentes, clubes e investidores. Trânsito livre que permite a ele afirmar que a Lei Pelé fez os clubes pagarem por sua desorganização.
Clubes de futebol são unânimes ao apontar a Lei Pelé como responsável pela proliferação dos empresários. Quais pontos facilitaram essa ação? A figura do agente de jogadores já existia antes da Lei Pelé e era reconhecida pela Fifa, embora ainda não devidamente regulamentada. Contudo, no Brasil, apenas após a edição da lei e, especialmente, após a extinção do passe, é que os agentes ganharam relevância no mercado. Durante a vigência do passe, o atleta ficava sempre ligado ao clube e basicamente dependia deste. Posteriormente fez-se necessária a figura de intermediários nas negociações, coisa que os atletas não estavam acostumados a realizar naquele momento, dada sua forte dependência dos clubes.
Os clubes se prepararam adequadamente para a mudança proposta na lei? Os clubes não estavam preparados e muito menos buscaram se preparar para o fim do passe, considerando que houve um período de três anos de adaptação até que este fosse finalmente extinto. Ademais, na época os clubes nacionais tinham uma posição financeira bastante frágil e eram muito mal organizados, o que fez com que o impacto fosse muito maior. Lembre-se que com o fim do passe veio também a possibilidade do atleta buscar na Justiça do Trabalho sua liberação contratual em caso de atraso salarial por três meses ou mais. Muitos clubes pagaram caro pela desorganização que havia naquele momento, já que centenas de ações milionárias foram parar no judiciário devido ao regime de quase total inadimplência que vigorava naquele momento. (LMJ)
❚❚Pelé para todo o futebol brasileiro, a Lei 9.615/98 poderia muito bem ser chamada de Lei Hadson no Paraná Clube. O caso do meia contratado em 2003 tornou-se símbolo da maneira desastrada como os times de futebol lidaram com os primeiros anos da nova legislação. Hadson desembarcou na Vila Ca panema no início de 2003, para a disputa do Campeonato Paranaense. Recebia R$ 650 na carteira, mais R$ 1 mil de direito de imagem. Dispen sado sem entrar em campo, entrou na Justiça alegando rompimento de contrato. Ganhou, cinco anos depois, uma indenização de R$ 2,5 milhões. Hadson não foi o único jogador a ganhar dinheiro do Paraná com base na Lei Pelé. Em 2001, no período de carência da Lei, o volante Fredson aproveitou-se do não recolhimento de impostos para romper seu contrato. Fez uma ponte no Pelotas e de lá seguiu para o Espanyol, onde atuou por quase uma década. “O contrato do Fredson havia sido assinado na lei antiga, mas havia uma brecha que permitia a ele se beneficiar pela lei nova. Houve um hiato de jurisprudência nos primeiros três anos que muitos jogadores aproveitaram para romper contrato em vários clubes”, afirma Ocimar Bolicenho, superintendente de futebol tricolor entre 1999 e 2002. (LMJ)
Gislaine, a doutora que sacudiu a bola
❚❚Oficialmente, os clubes teriam três anos para se adaptar à Lei Pelé, até que ela entrasse plenamente em vigor. Na prática, porém, quando o prazo de carência acabou, em 26 de março de 2001, uma personagem já havia sacudido o futebol nacional e libertado quase uma centena de jogadores. Gislaine Nunes, então advogada do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo, contabilizou 70 ações vitoriosas somente nesses três anos. Setenta processos dos quais os jogadores saíram com o passe na mão. As ações de Gislaine se baseavam em dois pontos: 1) o artigo 31 da Lei Pelé, que previa a rescisão quando ficasse caracterizado o atraso no pagamento de remuneração (salário ou direito de imagem) e contribuição previdenciária por três meses; 2) o artigo 5º da Constituição Federal, que trata do livre exercício profissional. A isso, somou-se a histórica incapacidade administrativa dos dirigentes brasileiros. “Antes, o clube atrasava e não tinha uma punição efetiva. Com a Lei Pelé essa mediação passou ao Judiciário, os atletas receber apoio. Criou-se a consciência que se não recebesse, bastava ir na Justiça. A primeira grande conquista foi a penalidade pelo atraso de pagamento”, conta advogada. Gislaine entrou com a primeira ação baseada na Lei Pelé em 28 de março de 1998, dois dias depois da publicação da matéria. Alexandre, goleiro do Comercial de Ribeirão Preto, foi o primeiro a receber a alforria. Hoje com um escritório próprio e mais de 400 casos bem sucedidos, a advogada continua vendo os mesmos erros de antes. “Os dirigentes acham que ainda têm o chicote e os grilhões que prendiam os atletas. ‘Está insatisfeito? Vai na Justiça e reclama’. Têm a cara de pau de atrasar dois meses, pagar o terceiro e achar que não vão perder o jogador. A mora já está caracterizada”, afirma. (LMJ)