Prêmio Vicente Salles - Da Estória à História: Re_visit(a)ções Fragmentadas

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DA ESTÓRIA À HISTÓRIA Re_visit(a)ções Fragmentadas

Redenção, 2021 3


Prêmio Vicente Salles 2021

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“Ao narrar, o sujeito se impregna do presente e torna o objeto narrativo, suas vivencias, acontecenças ou sabenças, um acontemcimento que lhe dá sentido desejado. Ao narrar o passado, o sujeito que narra é portador de uma memória construida no tempo e na história de sua própria vivencia de ser, intrepretadas e ressignificadas no seu tempo presente.” Guimarães Neto

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SINTESE BIOGRÁFICA Maria Carrion, natural de Jussara (GO), nascida em 9 de Junho de 1936. Viúva do mineiro Antônio Carrion, pioneiro redencense, que chegou em nossa região no ano de 1958, junto com seu pai, o espanhol, José Carrion, um dos desbravadores do Sul do Pará, cuja memória foi eternizada em nome de uma das principais avenidas de nossa cidade. A Família Carrion estabeleceu residência primeiro em Conceição do Araguaia, à época, a cidade fronteiriça entre o mundo civilizado e o mundo das bandeiras verdes. Tempos depois, a família se mudou para a região conhecida por Boca da Mata, atual Município de Redenção, a convite do ex-prefeito e fundador de Redenção, o senhor Luiz Vargas Dumont. 6


INSTINTO

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e a índia morrer de parto, o indiozinho é morto também. Essa era uma cultura nas aldeias no tempo antes de Redenção. Não sei se ainda é. Se ainda fazem isso. O irmão Miguelzinho1, que era da inspetoria2, era o inspetor dos índios, criou uma índia por nome Koytira, nascida lá no Gorotire3. A mãe dela morreu no parto e 1

Miguel Araújo, que na época era responsável pela inspeção dos índios, pelo Serviço de Proteção Indigena (SPI). 2

Inspetoria, era onde ficava os servidores do antigo Serviço de Proteção do Indio (SPI), antecessor da Funai e, hoje está localizada a Aldeia Las Casas, da nação mẽbêngôkre, conhecidos por Kayapós. 3

Gorotire, território indígena Kayapó, situado no município de Cumaru do Norte.

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os índios da aldeia iam levando ela para matar quando o irmão Miguelzinho, que na época era o inspetor deles, não deixou. Ele pediu para criar a indiazinha e os chefes da aldeia deixaram. Koytira foi criada como se fosse filha pelo irmão Miguelzinho. Tinha de tudo. Ela virou uma índia bonita, trabalhadeira daquele jeito, asseada, daquele jeito, mas sabe, índio é índio, quando chega o tempo dela ficar com homem não tem quem segura. Ela saiu a pé de Conceição4, indo para Gorotire. Quando soube do sumiço dela o

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Conceição do Araguaia, centenária cidade do Pará, situada às margens do Rio Araguaia, que, até 1982 o seu município abrangia até a cidade de Marabá e foi importante centro de catequização indígena, tendo à frente, o Frei Gil de Vila Nova, fundador da Cidade.

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irmão Miguelzinho montou no carro e correu atrás dela, que já estava estrada adentro. No outro dia ele mandou ela para a aldeia Gorotire. Quando chega o dia da índia ficar com homem, não tem choro não. Era uma índia trabalhadeira, asseada, mas não teve jeito. Chegou o dia dela e se o Miguelzinho tentasse segurar ela fugiria de qualquer jeito. É o instinto natural deles.

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O TAMANHO DE UM SONHO

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ou lhe falar uma coisa, peço que me ouça com atenção. Nos tempos da Boca da Mata5, o finado Luiz Vargas6, que foi amigo do meu sogro, José Carrion7 e do seu filho, meu finado 5

Boca da Mata, nome dado a Redenção, antes de sua fundação, em razão da região ficar no início da mata fechada da Companhia de Terras da Mata Geral (nome oficial da Fazenda Santa Tereza). Naquele tempo, quando se falava em Boca da Mata se sabia que ia para a localidade que hoje é Redenção. A região também era conhecida por Região dos Campos. 6

Luiz Vargas Dumont, experiente agrimensor de terras devolutas, acompanhou João Lanari do Val (proprietário da Fazenda Santa Tereza) nas primeiras expedições ao sul do Pará. Em 1969 idealizou e fundou a Cidade de Redenção, com o objetivo de diminuir os transtornos para adquirir mantimentos para a Fazenda Santa Tereza, que eram comprados em Conceição do Araguaia, cidade dista a mais de 100 quilômetros da Fazenda.

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esposo, gostava de arranchar lá em casa, naquele tempo só tinha mata entre a Fazenda Santa Tereza8 à Conceição e, quando ele ia comprar mantimentos sempre arranchava em casa. Ele era um homem muito gordo, pesado, comia comida que dava sustança. Ele ia montado em um cavalo e o vaqueiro dele ia puxando mais dois. Antes de chegar nas beiras do Arraia, onde hoje é a 7

José Carrion, de elevada altura, experiente e destemido mateiro, de origem espanhola, esteve com o Dr. João Lanari em suas principais comitivas no sul do Pará. Era afamado por sua coragem e por sua eximia mira durantes as caçadas ou enfrentamentos dentro da mata, não temendo onça ou índios, 8

Fazenda Santa Tereza é o nome de fantasia da Companhia de Terras Mata Geral, criada pelo agrônomo João Lanari do Val. A fazendo continua sendo uma das principais do estado. Atualmente está sob o comando de Cassio do Val, filho de João Lanari

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Alacilândia9, ele costumava pousar também na Fazenda dos Ferreiras, do senhor Luiz Ferreira10, lá pelas bandas do

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Alacilândia, localidade que fica entremeio Redenção e Conceição do Araguaia, localizada na beira do Rio Arraia, serviu de entreposto durantes as comitivas organizadas por João Lanari em busca de mantimentos para a sua Fazenda. A picada (estrada) de Conceição do Araguaia até Alacilândia, foi organizada por Salvador Gurjão, que era Promotor de Justiça à época. Salvador Gurjão é que cedeu um guia, experiente, (siriqueira) para guiar a primeira comitiva de Conceição para a região onde hoje é Redenção, que, por medo dos índios e de onças, abandonou a comitiva nas cabeceiras do Ribeirão Porteira, tendo a comitiva seguido guiada por Raimundo Preto. 10

Luiz Alves Ferreira (*07/09/1895+13/03/1979), patriarca da Família Ferreira, casado com Clarinda Ferreira (*27/10/1902+11/11/1985), proprietário da Fazenda Retiro, local de repouso das Comitivas organizadas por João Lanari do Val, em suas idas para Conceição do Araguaia, em busca de mantimentos.

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Porteira, ali onde hoje é a Cachamorra11, onde até hoje vive a dona Silvina12, viúva de Valdemir Ferreira13. Quando um cansava tinha pelo menos dois descansados para levar o homem, para não perder tempo descansando os animais.

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Cachamorra, oficialmente Comunidade Espirito Santo, dista a poucos quilometros de Redenção, onde a Familia Ferreira possui suas propriedades. 12

Silvina Ferreira, esposa de Valdemir Ferreira, nora de Luiz Ferreira, patriarca da Família Ferreira, antigos moradores da região em que foi feito as primeiras picadas (estradas abertas a fação, machado e enxadão) ligando a cidade de Conceição do Araguaia e a Fazenda Santa Tereza, e, onde as comitivas de João Lanari costumava pernoitar. 13

Valdemir Ferreira, filho de Luiz Ferreira, casado com Silvina Ferreira, ajudou na abertura de quase todas as grandes fazendas da região.

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Uma vez ele arranchou em casa e, depois do almoço, quando a gente estava proseando na área de casa, ele disse: Maria, sabe o que eu tive pensando? Eu respondi: Oxi, não sou advinha, se o senhor falar eu saberei se não falar só o senhor saberá. Ele pausou um pouco e disse: Vou fazer uma cidade para todos nós ali na Região dos Campos14 (disse apontando para os lados em que hoje está localizada Redenção). Eu fiquei espantada com aquela conversa, na hora eu perguntei: Como assim, doutor? Como é que o senhor vai fazer uma cidade no meio do nada? Ali só tem 14

Região dos Campos foi o nome em que ficou conhecido a região em que a cidade de Redenção está localizada, na época das primeiras comitivas, por ser uma região plana, pouco acidentada e com uma vegetação original predominante de campos. Este nome predominou até se popularizar o de Boca da Mata, que antecedeu ao atual nome (Redenção).

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campos para as tropas. Ele olhou para mim e para o meu finado marido e disse: Tu não acreditas, né Maria, acredita não, mas vou fazer. Olhei ele de volta e disse: Acredito não, eu só acredito vendo, só vendo o senhor falar eu acredito não. Mas vocês vão ver, disse ele de volta. Vão ver. Vão ver que vou construir uma cidade para nós. E ninguém mais precisará ir até Conceição para comprar mantimentos. Depois daquele dia, todas as vezes que ele arranchava em casa, ele falava aquele negócio de construir uma cidade na região dos campos. Toda vez era a mesma conversa. E eu duvidando dele. No fundo, no fundo eu não descreditava, mas era difícil acreditar em uma empreitada dessa.

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Eu pensava que ele estava variando, que ele comia demais e variava de tanto comida pesada que comia. Eu sempre dizia isso a ele: “o senhor está é variando, a comida hoje estava pesada”. A gente ria e ele continuava nessa história e eu brincando de desacreditar. E não é que ele fez a cidade. Um dia saiu a noticia que ele tinha ido a Belém para resolver a papelada para começar a cidade. De repente, começou a apresentar um ranchinho aqui, outro ranchinho acolá. E eu disse: uai, já tem até um ranchinho lá na região dos campos. Não demorou e já apareceu uma torre e eu dizendo: ô, já tem uma torre ali, uns ranchinhos acolá, será que vai virar cidade mesmo? Com pouco apareceu um boteco. Meu marido já sabia que lá tinha um boteco para ele beber pinga. Não precisaria mais 16


sair pela estrada afora em busca de uma garrava de pinga. Com mais um pouquinho as noticias chegavam até em casa, que tinha começado a apresentar uma farmácia naquele lugar, uma farmácia boa, ali onde hoje é o Bradesco. Ai, quando abrimos os olhos a cidade já estava apresentada. Infelizmente o doutor Luiz Vargas não teve o prazer de ver a realização do sonho dele. Se ele tivesse vivo ele veria o tamanho da nossa cidade hoje. Infelizmente ele partiu e não viu esse sonho realizado. Dou Graças à Deus todos os dias, pois eu vivi estas duas partes da história de nossa cidade. 17


Um dia eu vi duas mulheres comentando na televisão: ah, porque nós fundamos Redenção, fomos a Belém, coisa e tal e eu pensei: “Meu deus, quanta mentira. Meu pai do céu. Foi o coitado do Luiz Vargas que fez tudo isso. Sofreu criticas, todo tipo de escarnio e ele acreditando no seu sonho. Toda coisa caia em cima dele e ele seguro no que acreditava”. Uma pena que ele não está vivo para ver essa nossa redenção. Ele acreditava, tanto acreditava que guardou o seu primeiro ranchinho, todo alinhavado empalha, pregado bem pregado na sua casa, para mostrar a força que ele tinha e o tamanho do seu sonho.

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O FIM DAS LONGAS VIAGENS

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ocê sabia que sempre fazíamos compras de mantimentos em Conceição do Araguaia, pois lá era a cidade mais perto para todos quer moravam por este lado de cá, entre a Boca da Mata, Fazenda Santa Tereza e as Matas do Pau d’Arco. E essas compras eram feitas em lombos de animais. Você já pensou? Pois eram. Você já pensou a situação? Daqui para lá, para Conceição, o finado meu marido ia montado, para voltar, com as tropas abarrotadas de mantimentos, ele via andando tocando os animais. Era um sofrimento demais. Demorava uma eternidade aquelas viagens.

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Você já pensou nisso! Quando o doutor Luiz Vargas passava por nossa casa ele arranchava, almoçava, descansava as tropas e falava a historia da criação da sua cidade e eu não acreditava. Para nós era um sonho longe demais, fazer as compras pertinho de casa. Mas eu não acreditava e ele falava; Pode acreditar, Maria, pode acreditar. Vou fazer uma cidade para nós logo ali, na região dos campos e vocês vão parar de fazer compras em outras cidade e vão fazer compras na cidade que vou construir. Isso para nós era um sonho. Eu dizia: que nada, doutor, o senhor está falando isso para me botar alegre. Ele repetia. Pode acreditar, você vai ver, você vai ver com seus próprios olhos, Maria, pois vou construir a nossa cidade. E não é que ele construiu mesmo? E ainda botou o nome de Redenção. Uma boniteza só. 20


CHEVROLET DA SANTA TEREZA

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aqueles tempos da Boca da Mata, a fazenda Santa Tereza trouxe um Caminhão Chevrolet para ajudar na compra dos mantimentos, mas o caminhão ficava dormindo o ano todo na fazenda. Passava um ano inteiro dormindo. No dia que que precisavam de comprar mercadoria, eles acordavam o velho Chevrolet. Tocavam energia para o bicho andar. Mas não tinha estrada naquele tempo, era só picada, feita a machado e enxadão. Quando acordavam o Chevrolet, o meu finado marido era chamado para preparar a estrada por onde o caminhão ia passar. 21


O meu finado marido preparava toda a picada, que ia da Fazenda Santa Tereza até as cabeceiras do Porteira, lá na região dos campos, hoje Redenção. O meu finado marido preparava toda a estrada e o caminhão se escambava para Conceição, em busca das mercadorias e dos mantimentos para o pessoal da Fazenda. Se eu contar ninguém acredita. O Adhemar Guimarães15 era o motorista, era ele que guiava aquele bicho e, quando ele ia passando pela região dos campos, o pessoal ia correndo com medo, assustados com o barulho daquele bicho 15

Adhemar Luiz Guimarães, falecido recentemente, foi o cozinheiro das mais importantes comitivas organizadas por Dr. João Lanari, foi também o proprietário do primeiro hotel a se estabelecer na cidade de Redenção, ainda em atividades. Era um profundo conhecedor de histórias e estórias da fundação de Redenção.

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de metal. Alguns iam correndo e gritando: o anticristo chegou, o anticristo chegou. Corria de medo do barulho do caminhão. Tadinhos, eles estavam acostumados com os burros, jumentos, mulas e cavalos, não conheciam caminhão e vendo o barulho que o Chevrolet fazia, dá, dá, dá, dá, era para matar os pessoa de medo. Aconteceu um causo interessante, quando eu morava em Goiatuba16, eu trabalhava no Cartório do Primeiro Oficio de Goiatuba e o meu patrão, de nome Oseias Borges Guimarães17, gostava de contar história do povo de lá. 16

Goiatuba, município brasileiro do interior do estado de Goiás, região centro-oeste do país, pertencente à região geográfica intermediária de Itumbiára. 17

Oseas Borges Guimarães, filho de Braz Simões Borges e Elizema Eliza Guimarães, foi alfabetizado pelos pais, que

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Goiatuba era assim, tinha um córrego, ai desce e depois sobe, coisa assim, como toda cidade. O meu patrão disse que teve um tempo que lá ninguém conhecia veículo, lá não tinha veículo, o povo de lá não sabia o que era veículo. Um dia chegou um Ford antigo, movido a gasogênio, com duas turbinas levantadas, o povo de lá não sabia o que estava acontecendo. O povo estava na lida de uma cidade pequena, mulheres lavando roupa na fonte, meninos brincando, homens cuidando dos animais e, de repente começou o barulho e foi aumentando, um tá, tá, tá, tá, tá danado e o povo

eram professores. Seu primeiro emprego foi como professor em uma fazenda, foi fotógrafo e ingressou na vida pública através do Cartório de Registro Civil, que na época pertencia a seu primo, Zacarias.

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assustado e as mulheres falando: “o que é isso, meu Deus, o que é isso”. Quando o Ford apareceu no meio da estrada, despejando aqueles tufos de fumaça, era mulheres correndo para todos os lados, largando as roupas e tudo o mais, umas correndo com as trouxas nas cabeças, outras com as bacias sem nada dentro nas mãos. Um destempero danado. Oseias disse que teve uma mulher, que estava lavando roupa na fonte que, quando viu o Ford, assustou tanto que botou o cachorro escanchado, pensando que era o filho e correu mundo afora, deixando o filho pequeno pra trás. E o Ford passou fazendo aquele barulho: tá, tá, tá, tá. Mais para embaixo, na saída de Goiatuba, tinha uma viúva, muito rica, chamada 25


Maria fulana de tal, que tinha duas filhas muito bonitas. E o Ford passou fazendo o tá, tá, tá, tá e a mulher perguntou a uma filha: o que é isso, quer barulho é esse e a filha respondeu: sei não, mãe, mas o povo fala que o mundo vai acabar. Quando foi passando na frente da casa dela, o homem do Ford precisou de água e parou na frente da casa para pedir agua. Quando o homem desceu do Ford a dona Maria correu para a frente das filhas e começou a gritar: “moço, pelo amor de Deus, não mate a minha filha não, pode levar o que você quiser mas não mate as minhas filhas não”.

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O CURUMIM

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aqueles tempos era muito sofrimento. Tudo era sofrimento. Mas não tem vitória sem luta e nem luta sem vitória. Esse sofrimento de ontem traz alegria hoje. Eu passei pelo sofrimento e hoje canto vitória. É um privilégio muito grande. Eu passei pelas duas partes da cidade. Hoje temos tudo em nossas mãos. Se precisamos de médico temos na hora. Isso é alegria sem tamanho para mim. A gente vivia coagido no meio do mato feito índio. Naquele tempo era tudo mais difícil. O meu marido sempre comprava penicilina, porque dava muito doença nos meninos, aqui e acolá eles ficavam

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doentes de dordoi18. Aquilo fazia muito mal para a gente mas o que curava dordoi era penicilina. E dordoi também atacava os índios. Tinha dia que era de chegar cinco a seis índios lá em casa dizendo: ô, o índio está com o olho doendo. A gente pingava uma, duas gotas cedo, depois do almoço pingava de novo e o índio dizia: agora o índio ficou bom, o índio vai embora. Com pouco, no outro dia apareciam mais dez ou quinze. Até parecia um hospital. Por isso eles me chamavam de mãe.

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Dordói, doença nos olhos, nome popular para conjuntivite, ou terçol, que atinge geralmente bebês e crianças.

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A INDIA BUCHUDA

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em uma história de uma índia buchuda, com um espinho no pé que aconteceu naqueles tempos da Boca da Mata. Um dia, chegou lá em casa um casal de índio, a mulher mancando, o índio amparando ela e foram logo dizendo: Índia está com espinho no pé e não pode andar. O meu finado marido tirou mais de cem espinhos de tucum nos pés dela. Ela não estava podendo andar. Coloquei pomada Minâncora e, no outro dia ela já aguentava andar. Eles passaram mais um dia descansando da viagem porque a viagem para a Las 29


Casas19 era longa e, no outro dia eles me chamaram no quarto e ela me disse: ô, o curumim que tá aqui é seu, a mãe ajudou muito porque eu ia morrer, agora estou curada e o curumim que está aqui dentro da barriga é seu. Eu disse: tá bom, tá bom, a gente tem que falar que tá bom, mas fiquei pensando no que ia fazer. Passou uns dias, eu preocupada com o que ia fazer com o curumim e o índio apareceu falando: índio veio falar com a senhora. Respondi: pode falar. Ele disse: ô, índio está com dó de dar o curumim. Eu disse: não, pode ficar com seu curumim. Por lá ficaram e nunca mais vi. Eu fiquei 19

Las Casas, Aldeia, território indígena Kayapó, localizado no município de Pau D’Arco, próximo a localidade de Santo Antônio.

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foi aliviada. Já pensou, criar filho dos outros, ainda mais esse filho sendo filho de índios? Os índios daquele tempo eram índios brabos. Foi custoso amansá-los.

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CHEGADA EM REDENÇÃO

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m 1959 nós viemos de Jussara, Goiás. José Bueno Cintra era nosso conterrâneo de Jussara. No começo nós viemos para Conceição, de avião. Viemos de Jussara nós, José Bueno, Claudino. Nós abrimos a pista de pouso da Fazenda Santa Tereza e mais algumas aberturas e fomos para o nosso lugar, para a nossa fazenda, logo ali, pertinho das áreas de campo, onde hoje é conhecido por maginco.

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O BOM SELVAGEM

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m índio é selvagem mas também tem um pouco de consideração. Um dia o meu finado marido chegou em casa muito zangado. Estava bufando pelas ventas de zangado, porque um homem tinha jogado umas ‘pileras’ pra ele lá na região dos campos, onde hoje é Redenção. Meu vei chegou zangado e não percebeu que tinha uns índios lá, descansando. Ele chegou e falou que tinha tido vontade de matar a pessoa que tinha jogado ‘pileras’ nele. Ele acabou de falar e os índios vieram para perto e disseram: Pai, fale, pode falar, onde está que nós vai matar. Pode falar que nós mata. 33


CARNE DE ANTA Um dia, meu sobrinho matou uma anta muito gorda, ninguém comia aquilo. Ele abriu as mantas, a carne gordurosa e bem amarelinha e deixou as mantas nas varas para secar. Um belo dia apareceu a Maria Eugênia, que cuidava dos índios, chegou com um magote de índio e disse que os índios queriam comer carne. Não foi nada não. Eu fui no estaleiro e peguei uma manta da carne da anta que meu sobrinho tinha matado e levei para eles e disse: pegue essa panela (apontei para um tacho, bem grande, que estava no terreiro) e pode preparar, tem óleo de anta na lata e farinha para completar. 34


Maria Eugênia fritou e de fato a carne cheirou muito. Os índios comeram quase todas as mantas. Passou pouco tempo e os índios começaram a reclamar de dor de barriga. Ai lembrei que tinha sal de fruta em casa e dei para eles. Quando foi no outro dia que eles iam voltar para a Las Casas, não sobrou nenhuma manta no varal, eles comeram tudo e, o que não comeram, eles levaram. Até hoje fico pensando na dor de barriga que eles tiveram, de tanto comer carne gorda de anta.

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JOÃO LANARI DO VAL Naquela época, o Dr. Joao Lanari 20 dava muitos mantimentos para os índios. Um dia, eles estavam indo das Las Casas para Gororite e passou em casa e meu finado marido deu uma marrom (leitoa) para eles, eles jogaram a marrom no pescoço e ainda levaram todas as carnes que estavam nos varais. Eles passaram pela Fazenda Santa Tereza e o Dr João Lanari deu três ou quatro 20

Joao Lanari do Val, engenheiro agrônomo que, em 1959 organizou a primeira expedição com o objetivo a desbravar as terras sul paraenses, acompanhado de José Bueno Cintra, (mateiro experiente, que, em 1925 acompanhou a Coluna Prestes), Jorge Mendonça (amigo de João Lanari) e Adhemar Guimarães (cozinho da expedição), criando a Companhia de Terras da Mata Geral (Fazenda Santa Tereza) e dando inicio à criação da Cidade de Redenção.

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novilhas para eles, mas, quando eles começaram a entrar na picada da mata fechada, as novilhas sentiram o cheiro das onças e recuaram. Eles fizeram de tudo e as novilhas não seguiam. Fizeram de tudo e as novilhas só recuavam. Não deu outra. Eles pegaram as novilhas e furaram os olhos de cada uma delas, para elas não ver o que estava no caminho e seguiram caminho, levando as novilhas e a leitoa marrom.

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CLAUDINO Zé Claudino era perigoso. Ele vivia ali, no chiqueirão, um garimpo de diamante e sempre quebrava um. Era muito bom na mira, no gatilho do 38.

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ANEXOS Registros Infográficos

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Maria Carrion e Cassio do Val, Da estória à Estória-Revisitações Fragmentadas

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Maria Carrion e Cassio do Val, Da estória à Estória-Revisitações Fragmentadas

Maria Carrion e Alufa-Licuta Oxoronga, Da estória à Estória-Revisitações Fragmentadas


Maria Carrion e amigos, Da estória à Estória-Revisitações Fragmentadas




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