Prêmio Vicente Sales de Experimentação Artistica -Da Estória á História - Re_visit(a)ção Fragmentada

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DA ESTÓRIA À HISTÓRIA Re_visit(a)ções Fragmentadas

Redenção, 2021

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Prêmio Vicente Salles 2021

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O CONTATO

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onheci o senhor Antônio Gomes Marinho na minha infância. Naqueles remotos tempos era comum na cidade de Redenção se ouvir o ritmo frenético das mãos sobre os couros dos atabaques (rum, rumpi e le) convocando os Orixás. O culto do candomblé em Redenção remota aos primeiros pioneiros que por aqui chegaram, trazendo seus tambores, agogôs e cabaças. Não tinha consciência das evocações, contudo, o registro sonoro permeava o meu ser em uma consagração e mistério. Aquela figura esguia, pequena, de andar rápido, subindo e descendo a rua, ao amanhecer e ao entardecer, com suas

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roupas sempre alvas e, com indumentárias sobre o peito, me instigava a curiosidade. Sabia pouco do senhor Antônio, mas sabia dos olhares de meu pai e minha mãe que, mesmo gentis e educados, sempre acenando com a mão e desejando um bom dia, ao seu aceno matutino ou vespertino, encobriam um silêncio reprovador, de cuidados que não entendia, de zelo que não queria. Sabia do senhor Antônio pela fala da molecada: dos menorzinhos, os olhares de esmera abelhudice; dos maiorzinhos, o receio na forma de um leve amedrontamento.

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INICIAÇÃO Relato - Antono dos Orixás

Eu comecei kardecista, como médium vidente, trabalhando muito cheguei a vice presidente da mesa, Como eu tinha que estudar e trabalhar, pedi permissão a mesa para trabalhar. Um tempinho mais e fui para a umbanda, mas lá eu vi muita coisa errada e não me adaptei e sai. Fiquei cuidando dos meus orixás, zelando. Até que chegou a hora das portas se abrirem e conheci um pai de santo na Bahia, conversei com ele e comecei a iniciação, entrei como yàwó, fiz minha preparação, minha feitura de santo e, depois de sete anos recebi o deka, que é o diploma.

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A LEVEZA DA VIDA

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ntônio Gomes Marinho, mais conhecido por Antônio dos Orixás, devido o seu comercio de produtos religiosos ou “casa da macumba”, como era mais comum em narrativas populares da época, sempre foi uma figura que aguçou minhas áureas bisbilhotices, tanto as afetivas quanto as olfativas. No fugir de minha criancice soube da dimensão do seu reino, de seus invariáveis mistérios. Desbravar a imensa Av. Maria Ribeiro (avenida de importância impar para mim) era um ato diário, corriqueiro e esperado, poois foi nesta avenida que encaminhei os sons de meus primeiros passos aos vastos mundos das diárias descobertas, foi também nesta avenida

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que vivenciei minhas tantas descobertas (amorosas, escolares, culturais e políticas), haja vista que foi ali, no início da década de setenta, quando Redenção desnorteava-se de suas „consturanças‟ de uma pequena e pacata „currutela‟ e fiava seus primeiros fios, aos fusos intransponíveis do tempo, em „consturanças‟ de cidade, que meus pais fincaram morada e estadia de existir. Por ali passei adolescência, juventude e velhice, haja vista que ainda resido por ali, no mesmo lugar em que meu pai construiu a pequena cocha de palha piaçava, depois, deu encaibramento e reboco a pau-a-pique nas feituras de uma nova casa, que permaneceu deste jeito por longos anos, por um quase infindável tempo, até o começo da conhecida corrida pela madeira, quando meu pai trocou suas paredes

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por tábuas e, mais tarde, no decair da década de oitenta, por alvenarias. Foi diante desta casa, em um retratar diário de coisas, gentes e bichos, que o senhor Antônio Gomes Marinho aparecia e sumia, avenida acima, deixando em meus olhos um rastro de “ainda descubro o que esse homem faz”.

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INTERRUPÇÕES Relato - Antono dos Orixás

Eu nunca parei e não posso parar. Houve uma interrupção porque me zanguei com uns médiuns que não queriam nada com a cultura, não queriam se aperfeiçoar. Ai, eu pedi o próprio orixá da casa, em jogo de búzio, e me mandou suspender e ai eu suspendi, mas nunca parei, eu sigo firme na minha missão, atendo A, B e C, não me importa quem é e o que foi, para mim tudo é irmão, se eu posso ajudar eu ajudo e se não posso eu falo, que as portas estão abertas. E sempre estarão abertas a todos e, a aqueles que ainda não vieram que os Orixás hão de o beneficiar, pois as portas sempre estarão abertas a todos.

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O ENTERNECER DO TEMPO

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o fugir de minha criancice e no apegar do adolescer, em um dia caiado de ousadia, adentrei, sem pestanejar, no tão misterioso “Bazar dos Orixás”. Reconhecia, de muitos, o agradabilíssimo cheiro que dali se exalava avenida afora. Um cheiro quase ocre, com nuances amarronzadas. Era assim que o sentia (e ainda sinto em minhas memórias afetivas). Um cheiro em cor, sabor e fragrância peculiar. Na minha terna existencialidade mundana, já havia descoberto este cheiro em outros lugares, geralmente em cruzamentos de ruas de pouco trânsito, quase sempre no raiar do dia, quando a 12


escuridão se apoleirava em resguardo de descanso e ofertava ao sol, com seus raios translúcidos, o coser da aurora. O cheiro destas encruzilhadas era o mesmo cheiro que vinha da famosa “casa da macumba”, esse lugar sacralizado de mistério. Pouco a pouco, a passos pequenos, fui fazendo minhas descobertas, longe dos olhares de mamãe e papai. Fui „aprochegando‟ a passos miúdos, devagarzinho, meneando o andar para as ocasiões de inesperado espanto. Um dia, corajosamente, adentrei a pontinha dos olhos. Nem cheiro senti, tamanha efervescência no peito.

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ENSINO Relato - Antono dos Orixás

Eu comecei a trabalhar com dez anos de idade, estou com 72 anos de idade e já fazem 62 anos que comecei e, quem sabe é Deus, na força dos Orixás, eu não falo que faço e aconteço não, quem faz primeiro é Deus na força dos Orixás, felizmente eu vim parar em Redenção e os deuses me abriam a porta e me deram esse terreno, onde funciona o Terreiro Afro Brasileiro dos Orixás, que eu fundei com todas as dificuldades, com todo o preconceito de muitas pessoas, com todas as fofocas, mas não liguei para isso, ergui a minha cabeça e vou e vou até hoje.

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O ENCANTO REVELADO

lugar sagrado, sacramentado, quase sempre juramentado de surras a qualquer aproximação, se abriu aos meus olhinhos curiosos. Estatelei a garganta em um embargar de contentamento. Desde pequeno fazia meus homens de barros. Papai foi um artífice na obra do adobe. Sabia, como ninguém, o tempo exato da massa. A sintonia dos seus passos, cortando o barro vermelho na velha olaria, era uma dança quase hipnótica aos meus olhos. Por vivenciar tanto esta dança, de tanto vê-lo fazer aquele assentamento de barro, água e capim, para em seguida mergulhar na forma, tomei gosto pelo

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barro, pelas trincas dos adobes de secagem abruptas, com os quis fazia minhas casas imaginarias, tomei gosto pelo barro. E, com este barro fazia meu encantado reino, com bonecos de todos os tamanhos. Bonecos muitos parecidos com o que vi naquela “casa da macumba”. Um reino, para mim, bem familiar. Não sabia dos nomes, dos lugares vindos, dos significados das cores das miçangas, mas sabia que o meu mergulho era definitivo. Alinhado e fabricado de pertencimento, no prumo exato do querer. E lá estava o senhor Antônio dos Orixás, em revelação de conforto, no tamanho exato de minha ousadia. Acenou, convidou-me a entrar. O ar me faltou. As pernas bambearam. Extrai o medo das entranhas e adentrei aquele tão esperado (e quase intransponível) reino. O Senhor

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Antônio Gomes Marinho, em cincerone condução, levou-me ao contado de cada imagem, de cada símbolo, ponteando nomes e significados, instrumentalizando-me a um novíssimo sentir.

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APRENDIZES Relato - Antono dos Orixás

Olha, na nossa cidade, não tenho muito, entendo que sejam poucos, pois acho que tem uma base de meia dúzia a dez, mas lá fora, em Brasília, São Paulo, Goiânia, Palmas, eu tenho alguns filhos que já tem barracão montado, sob a minha orientação.

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O TEMPO E O SEPULCRO SILENCIOSO DA DOR

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or muito tempo parei no “Bazar dos Orixás”, conversas compridas eu tive com o senhor Antônio. Aprendi, confidenciei sonhos, descansei meus medos e, aos poucos fui fazendo novas descobertas, atinando novos rumos aos meus passos, preenchendo meus dias com poesia e telas. Mais um poucochinho e dei o meu primeiro grande pulo no açude da vida. Saí de Redenção e corri mundo, girando oferendas a outros quereres. Nos retornos à Redenção o te mpo bor dav a o utros apegare s e, a figur a do se nhor A ntô nio dos Orixás foi aos

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poucos desbotando aos meus olhos. Ainda o via, certamente, diurna e apressadamente pela grande avenida Maria Ribeiro. Acenava-o, respeitosamente. Quando dava, parava em seu Bazar para curtas conversas. Quase imperceptivelmente notei o ralear dos sons de tambores no ensombrar da noite redencense. Ouvia-se um ou outro batuque, aqui e acolá, sem a expressividade dos áureos tempos. Já me apanhado homem feito, ali, no alto dos meus quase trinta anos, com encourado saber rangendo o meu coração, com alguns livros já publicados, aquele silêncio me incomodou. Perguntando aqui e ali, descobri que os sinfônicos sonidos dos tambores, que tanto me embalava o sono, esgavam se emudecendo por dentro, em partituras de novos cultos. Não

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demorou e igrejas começaram a se erguer pelas ruas de Redenção. Um pouco mais e o senhor Antônio dos Orixás fechou o seu bazar e edificou o seu terreiro em um novo quintal, poucochinho afastado da cidade, em um bairro que mal nascia, chamado Setor Cumaru. Demorou quase nada e os sons dos tambores noturnos de Redenção, que tanto embelezavam o tempo, se arrefeceram de vez. A voz ancestral do lendário atabaque deu lugar a preces de aleluia.

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ESPAÇO E MANUTENÇÃO Relato - Antono dos Orixás

O terreno tem espaço suficiente. Tem espaço que sobra, o que está faltando é recursos para manutenção, porque isso vem das autoridades, do ministério da cultura, porque sempre teve isso, infelizmente aqui no estado do Pará, agora é que estão lembrando, estão enxergando que existe uma cultura afro brasileira, porque de muitos anos para cá eles tem colocado em uma gaveta e vem sentando em cima, e a gente não pode fazer nada, o que tem lá é construído com as minhas mãos, com o meu suor, dos meus clientes, o que sobra eu vou aplicando lá.

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A PARTITURA INCOMENSURÁVEL DO AFETO

oisas de pouco tempo, na incorporação do firmamento, os objetos sagrados do meu existir se afiaram em uma inesperada cerimônia. De muito já não via o senhor Antônio dos Orixás. Sabia dos alicerces sagrados do seu “Terreiro dos Orixás”, pois não se esquece de quem o conduz a aos preparos do existir. Aprumei meus pés e fui visitar o senhor Antônio. Desejava vê-lo, conversar com ele, saber de seus giros e repiques. Escarvoei meus passos e fui até ele. O aprendiz se pôs ao mesgtre em um floreio de abraços. O tempo ainda não tinha se descosgurado aos avanços do vírus,

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os abraços eram uma obrigação coreográfica de amizade. Diante daquela figura de homem, meus pensamentos debandaram ao reino infantil. Aos primeiros contatos, ao olhar, „entrebrechando‟ a porta do Bazar dos Orixás. Do mesmo jeito cheguei. O templo, em alicerces resistentes, ao comando de ancestralidade coexistência, irrompeuse à minha frente, em tamanho de fervorosa alegria. O senhor Antônio dos Orixás, de braços abertos, me abraçou. Convidou-me a entrar e sentar. Por longas horas conversamos. Lembranças vieram à mente em floreios de convidativos afetos. Re_conheci vozes d‟outrora. Vozes bantus em ocasionais espera me visitaram o ser. Xequerês, quissanges, balafons, berimbaus, agogôs, cowbells musicaram a minh‟alma a uma prática

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quase amortecida, emurchecida, quase escondida em meu ori vivencial. Barro, bronze, ferro, madeira, cabaça se mostraram a mim em um cordofone gingado. Estava em casa, novamente, murmurei. “Seja bem vindo, filho”, quase em sonido ouvi. “Tonibobé”, pronunciei em leve e delicado suspiro.

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TERREIROS EM REDENÇÃO Relato - Antono dos Orixás

Olha, eu não estou criticando nenhum babalorixá e nem um pai de santo, mas eu acho uma grande desunião sobre espiritualidade, falta de preparação, falta de conhecimento, eles não procuram um pai de santo que entende para se curvar para ele, pois eles acham que se curvar está se humilhando, aí é falta de compreensão, falta de conhecimento, porque na Bahia é diferente, onde eu aprendi o pai de santo procura o outro para dialogar, para se curvar, para entrar em contato sobre o trabalho e, aqui acho muito difícil, mas eu não ligo para isso, eu ergo a minha cabeça e toco a minha missão como Deus determinou.

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ANEXOS Registros Infográficos

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