O homem e o Rio

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O HOMEM E O RIO

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O HOMEM E O RIO _____________________________________________

Alufa-Licuta Oxoronga

REDENÇÃO - PARÁ [5]


Título Original O Homem e o Rio

© Copyright by – Alufa-Licuta Oxoronga 2018 Programação Visual: Alufa-Licuta Oxoronga Revisão: Alufa-Licuta Oxoronga Arte da Capa: Alufa-Licuta Oxoronga Redenção: 2018. ISBN 1. Literatura Brasileira – Poesia 1. Poesia Brasileira 1. Título

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O Homem e o Rio 80 p.; il.

Poesia [6]


A morte não é a maior perda da vida. A maior perda da vida é o que morre dentro de nós enquanto vivemos. (Norman Cuisins)

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Apresentação Na arrumação de meus papéis (que não são poucos, tanto os papéis quanto a desordem em que eles estão inseridos) deparei-me (confesso isto com a maior naturalidade do mundo, e não discuto o mérito disto) com a extrema necessidade de pensar e de sentir o pensar em parar de sentir. Deparei-me com aquele sentimento suprareal que, às vezes, nos vêem sob forma de idéia e nos martela a alma a ponto de esmiuçar o espírito até que este, sem forças, entrega-se ao ato inspirador e leva o homem a entregar-se também à inadmissível tarefa de arriscar-se. Não se há de negar que o homem, com todas as implicações de inferências de sua vivência absolutamente humana tende, em sua primeira tarefa criativa, a refletir para a obra a humanização de sua vivência, ou seja, procura de todas as maneiras, mesmo que de forma maneirista, levar para a obra o seu reconhecimento humano. Sei que não é hora de discutir estas afirmações; o momento é de compreensão. E muito embora esta compreensão seja menos conclusiva, a assertividade do homem deve levá-lo a aceitar suas próprias motivações, ou, as motivações que o motiva a viver e criar deve leválo a assertividade da vida. Deve levá-lo a associar-se à vida e esta à sua obra. Isto adquire uma capital importância tanto na vida do homem quanto nas descobertas que ele chega (quer de forma intrínseca, quer de forma extrínseca). Este foi o grande mistério que me envolveu no ato criatório de “O homem e o rio”. Mas logo vi, que em toda a minha vida, e, do mesmo modo, em toda a minha criação poética, não havia ambivalência alguma entre uma e outra. Tudo era nítido, visível e transparente. Pois, [9]


como diz Pessoa: “o poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir”. O próprio Pessoa arremata: “Nada disto tem de ver com a sinceridade”. Diante disto, pus-me a traçar os primeiros versos do que agora é “O homem e o rio”. Um livro que fala, naturalmente, de homem e de rio. E confesso que ele (o livro) não me forçou a qualquer ambiguidade, a qualquer pano de fundo que me caísse como vestes necessárias. Apenas induziu-me a falar destas duas naturezas como se uma só fossem. E digo isto (por mais estranho que possa parecer) com toda a inteireza de coração. Portanto, toda a minha luta diária pela expressividade poética de meus escritos, pela simbologia das evidências dos objetos descritos, pelo aviltamento instintivo de minha alma, levou-me a pensar e a sentir; só não sei, até agora, em qual classificação de poeta devo inserir-me: se inferior, médio ou superior. Quando imaginamos compor um livro somos, no exato da palavra, os criadores. Detemos o sacro direito sobre a cria. Contudo, quando nos deparamos com algumas páginas já prontas, o livro se insurge, cria vontade própria, tem “pitis”,“rompantes” e, por fim, liberta-se dos grilhões da cadeia criativa e do próprio criador e passa a andar com as próprias pernas, sem necessidades de direcionamentos ou indicações. E assim vai até que ele (o livro) usando do próprio livre-arbítrio que lhe é peculiar, dita ao criador o momento de parar, de seguir uma outra estrada. E, muito embora isto seja (para o criador) um martírio, para o livro é a mais expressiva forma de libertação. Vale a pena dizer que, o processo criativo de “O homem e o rio” não tem um fecho decisório. Ainda está [ 10 ]


por ser findo. Desta forma conclui-se que deste livro nascerá um outro (melhor ou infinitamente pior ainda não o sei). O primeiro passo para se compreender “O homem e o rio” é compreender os amarres da vida, é aceitar, necessariamente, todo o infortúnio de se querer, no mínimo, essencial à própria vida. É certo, caríssimo leitor, que não busquei, nem ao menos coloquei explícito neste livro, o comportamento decorrente desta união, deste convívio, desta compreensão, que, ao mesmo tempo é humana e representativa, de homem e de rio. Dois seres, inanimados ou não, isto pouco importa, o que faz a diferença, o que dita a verdade norteada, a ambivalência sentida, é a sublimidade implícita na idéia de dois seres, ligados intrinsecamente por um desejo, um afã, uma necessidade extrema de se fazerem conhecidos. E este comportamento (dúbio ou não, também isto pouco importa ante a grandeza dos acontecimentos) é o que possibilita o nascer da poesia, é o que motiva a qualquer poeta, a qualquer escritor a valorizar a abstração humana em toda a sua plenitude. Assim nasceu “O homem e o rio”. Não para romper ou desassociar com o estado de espírito do criador, mas, sobretudo para afirmar em seu arcabouço formal e final o tom representativo da própria poesia que o contém. O autor

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Um olhar sobre O Homem e o Rio Comentar uma obra literária não é tarefa das mais simples, tanto mais quando se trata de uma obra, cujo autor - verdadeiro artesão das palavras - escreve em versos com um estilo todo particular, como é o caso de Alufá Licutã Oxorongá. Para realizar essa tarefa (o comentário) deveria ser eu ou um grande entendedor da arte literária ou ser por demais ousado. Acredito que não sou nem este primeiro, nem este segundo. Então? Então, proponho-me a comentá-la por ser admirador da poesia de Alufá Licutã Oxorongá. Apontarei as marcas de estilo e de construção do fazer poético presentes em O Homem e o Rio, marcas que faz deste livro uma grande obra. Estarei tecendo comentários também sobre as deixas existentes na produção poética, ou seja, apontando as costuras do artesanato, pois ele não é só perfeição uma vez que é artesanato, e artesanato se faz à mão. O livro O Homem e o Rio apresenta-se composto de um único poema, o que torna sua leitura mais delicada, pois, para termos o entendimento do poema, devemos ler todo o livro; para o leitor de “pouco entusiasmo” é fácil se perder na leitura e/ou dela desistir. O eu lírico, dono das emoções, ora se projeta por vida própria manifestando suas emoções, ora é apresentado por um outro eu onisciente e onipresente, como se fosse um narrador. Observe que na primeira estrofe do poema, já temos um alguém apresentando a situação: “Por entre fechado arvoredo, em uma abstração de segredo, um homem contempla o rio.”

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(...) Na segunda estrofe lemos: “E quando as margens costura os fios d‟água em dúbia tecedura, o homem, em vigor, eleva um grito:” Esta é a voz de um eu observador (se é que posso denominá-lo assim); e em seguida o eu lírico, dono das emoções irrompe: “Ó Deus, se Tu a todos abençoa, dá-me, que seja uma única canoa,” (...) Assim o poema vai sendo tecido por duas vozes. Outras obras de Alufá Licutã Oxorongá é construída sob este mesmo engenho: um único poema e duas vozes – a voz daquele que apresenta a situação e a voz daquele outro que vive as emoções. Esta construção poética é vista apenas em obras do gênero épico, como é o caso de Os Lusíadas, de Camões, e dos autores indianistas brasileiros, a destacar o belo poema I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. Na literatura contemporânea, não temos notícia de outro poeta que escreva desta mesma forma. Posso dizer então que este é um estilo particular do autor de O Homem e o Rio. Alufá Licutã Oxorongá cultua a forma, dando a seus poemas rima e métrica; esta obra não é regida pela métrica, mas há uma tentativa de deixar os versos quase que uniformes, proporcionando-nos uma boa leitura. As estrofes de seis versos, o que seriam sextilhas perfeitas [ 14 ]


sem nada deixar a desejar caso fossem metrificadas – o que não é uma exigência no poema contemporâneo – são melodicamente marcadas pela rima, como exige os cânones da sextilha: AABCCB, ou seja, rimam entre si o primeiro com o segundo versos, o terceiro com o sexto e o quarto verso com o quinto. No que diz respeito à rima, a costura deixa a desejar somente na escolha das palavras, como os vocábulos de mesma classe gramatical. O uso de verbos no infinitivo, por exemplo, deixa a rima meio „cansada‟: “A orquestração da vida/porvir, incita Jupiá a desistir” (...) Há também a inversão dos termos da oração; em “Mas tu podes esta história mudar Basta um gesto, uma graça, um olhar” O verbo mudar foi para depois do complemento esta história. Não há nada errado nisto, pois até os poetas clássicos já se utilizavam desse recurso (a inversão da ordem) para a criação da rima; contudo, rima deste tipo parece forçada. Também está muito presente nos versos de O Homem e o Rio o adjetivo, quase sempre antes do substantivo, o que é uma marca do autor Alufá-Licutã em seus poemas; ele está sempre antepondo o adjetivo ao substantivo; no entanto, quando este efeito proporciona a rima, causa aquela mesma idéia de coisa forçada. O vocabulário usado na presente, como em outras obras deste autor, é digno de observação. Sempre muito rico de palavras, Alufá-Licutã busca do mais recôndito da [ 15 ]


gramática vocábulos como halo argêneo, anátemas, ergástulo, feetérea para compor seus versos; isto é marca positiva, pois um vocabulário bem trabalhado (e não de difícil entendimento para o leitor) enaltece autor e obra. Também transpõe para o papel palavras que parecem criadas por ele, como parança, andança, em meio outras tantas do vocabulário simples e popular, o que é de total aceitação, pois a arte não se prende a cânones ou preconceitos, mas ultrapassa limites. A construção do paradoxo homem x rio formou um jogo de idéias, onde hora se vê duas grandezas diferentes que se comunicam: de um lado o homem e o infortúnio da vida, do outro lado, o rio e o rebojar de suas águas; ora, vê-se apenas o homem, sendo o rio uma metáfora de vida. É uma malha bem tecida, que foi antes de tudo, cuidadosamente arquitetada e construída pelo poeta, seguindo um único tema. A presença do pai (Jubal) e da mulher amada (Alba Juçara) no poema é mais um detalhe que merece atenção na construção da trama: Jupiá refletia sobre a vida, logo iria fazer reflexões sobre pai e/ou mãe e mulher que amara, pessoas tão importantes na vida de um homem. Em todo esse engendramento, o que parece não soar muito bem é a presença do pai Julemá e do filho Jupiá figurarem na mesma canoa, no final do poema: este primeiro já havia morrido e o segundo se despedia da vida (ou acabara de morrer), o que seriam então fantasmas. São 180 estrofes e uma carga lírica de valor expressivo, como o contido nestes versos: “Vi toda a vida vencida quando vivenciei a partida de papai e de Alba Juçara.” [ 16 ]


São versos com poder de reboar no eu de qualquer leitor, a menos que este leitor nunca soube o que é perder. O Homem e o Rio é um grande livro. Cícero Ferreira Silva Poeta, contista, artista plástico, Graduado em Letras

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O homem e o Rio: das profundezas à imensidão O livro O homem e o Rio é, antes de qualquer coisa existencial, a começar pela capa que sem dúvida é o pórtico para algo desconhecido, para o interior do ser enigmático. Ela apresenta uma criatura taciturna voltada para si, como quem lamenta algo ou apenas faz uma oração. Por seu redor, caem pequenas gotas sinalizando uma lenta chuva ou um longo choro devido a uma vida de dissabores. Assim, por meio dessa pintura, somos convidados a refletir sobre o alhures e porque não sobre o que há dentro de nós, nos recônditos sombrios do nosso ser, ponderando o que fizemos, quem somos, o que gostaríamos de ser: homens, seres alados, anjos? Por tudo isso, adentramos o pórtico do Homem e o Rio. Aqui nos deparamos com um homem maduro, vivido e sentido de desesperança, lançando seus olhos sobre o rio de abundância, de profundidade e alegrias. O homem vê o Rio como sua terra natal. Terra esta que ainda o abraça, que deseja libertá-lo, por meio do batismo, de todo o pesar que tem de conceitos nefastos de si. O homem contempla o rio e o seu eu mais íntimo, refletido no rio, ressurge com força diante de si; vê sua história, seu pessimismo entrelaçado aos sonhos há muito escondidos nos entrementes do seu subconsciente. Então, inusitadamente, encontra-se falando com o rio como a um amigo a quem confia suas amarguras de borboleta presa ao casulo, suplicando a ele e a Deus alguma ternura da vida, posto que até então só recebera dor e solidão. Surge em sua mente as memórias de seu pai falecido, como [ 19 ]


também a imagem terna e sensual de seu grande amor igualmente falecido. Nessas alturas, o homem não encontra nenhum consolo refletido. A vida, os sonhos, os prováveis sabores vindouros, nada é capaz de prendê-lo ali. Assim, ele se precipita nas águas do Rio na certeza de encontrar sentido em suas profundezas e imensidão. Por fim, o livro O homem e o Rio consegue por meio do verso expressar sentimentos, ideias e reflexões comuns aos homens que, por vezes, vê-se à deriva em meio à imensidão da sociedade, das gentes que a todo tempo buscam sentido para suas vidas apenas na superficialidade da vida, voltados para o espelho de narciso, sem nunca se esforçar em sentir o que está por detrás ou simplesmente ao seu redor. Vanderlan de Freitas Santana

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o caminho que ela há de seguir no céu?” Almeida Garrett

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RESPOSTAS ÀS MARGENS DO RIO

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Por entre fechado arvoredo, em uma abstração de segredo, um homem contempla o rio. A cortina vaporosa d‟água em sua brancura de anágua causa-o murmuroso arrepio.

Suas mãos revolve a água e pr‟alma um segredo deságua inebriado de tosco sentimento: “Andei por diversos caminhos, conheci roseirais de espinhos e nunca proferi um lamento.

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Por dentro, eu fui costurado de todo abismo indesejado desde o tempo em que nasci. Mas hoje, sinto que minh‟alma anseia vestir-se de uma calma qu‟eu jamais vi, ou mesmo senti.

Qual brisa soprando as folhas, fiz minhas próprias escolhas entre as margens do desejo. Por dentro de noites ernas depurei-me das dores internas sem lançar-me a um só arquejo

Vi da vida, a sã claridade, do homem, a rude insanidade que ainda procuro olvidar. Mas nunca perdi o prumo, o meu remar sempre teve rumo mas hoje, começo a duvidar. Em todas as minhas „andanças‟, mesmo, em tantas „paranças‟, nunca senti-me desfeito. Nos meus crepúsculos tristonhos vesti-me de lânguidos sonhos e de vida, meu sedento leito.

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Nem os lampejos de dor que o rubro cravo do amor um dia abriu-me à tristeza, mudou-me de minha cadência, de buscar na vida a ciência de ter paz, ante a incerteza”.

Olhando o friso da água que do leito macio deságua uma manta terna e pura. O Homem se antepõe à solidão e com duro olhar de ingratidão em silêncio, se detêm em tortura.

E a paz, que tanto almeja e que a si mesmo esbraveja ser uma busca constante, parece seguir outra estrada, onde o duro fio da invernada é morada bem menos distante.

E sem ter consolo de uma prece, aos poucos, o homem fenece e sente no peito um afeto frio. Ele toca o manto da água e d‟alma, retira uma mágoa e oferece, em culto, ao rio.

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Sem um salmo de acalanto, da face, desce um pranto e ao chão, em gotas, saliniza. E o homem, em refuto de desejo, ao rio fulgura um beijo e este, indiferente, desliza.

Enquanto a água corrente cumpre seu rastro/serpente e se perde por dentro da mata, o homem, envolto às margens, se despe de antigas roupagens e de indesejada tristeza se ata.

Quando os fios indômitos da dor com seu infindável rancor encontra no homem um mirante, toda a estrutura da paisagem envolve-o, em outra margem que dele próprio a quis distante.

A cortina vaporosa da água, ou sua brancura de anágua, causa-o murmuroso arrepio. Mas ele, em marcha triunfal, faz da dor, intransponível mural e do silêncio, subterrâneo rio.

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Qual fosse prece que ensalma, a solidão invade a sua alma e o remete a nova confluência. Sentindo o êxtase que o envolve, o homem, plausivelmente resolve pôr-se às margens da existência.

E quando as margens costura os fios d‟água em dúbia tecedura, o homem, em vigor, eleva um grito: “Ó Deus, se Tu a todos abençoa, dá-me, que seja, uma última canoa, um último remar neste rio/infinito.

Em toda a orquestração do caminho, pela consistência do meu „ninho‟, só encontrei impropério sem fim. O meu caminhar tornou-se inútil, o viver, sem respostas e fútil; acaso não há virtudes em mim?

Se o rio não se guarda da fonte, a vida, do seu ato rocinante, por que eu deveria me resguardar? Dá-me, ó Deus, sem demora, nesta minha singularíssima hora, um único motivo pra continuar.

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Nestes subterrâneos da existência, vista-me, de uma nova „querência‟ ou faça de mim, uma argila de ser. Doma a minh‟alma refratária e dá-me, a negra veste mortuária ou, um motivo pra continuar a viver”.

Um impassível mistério, de ergástulo áspero e sério, tece silenciosos sinais. No homem, Deus cristaliza as suas laminas de brisa e os seus imponderáveis portais.

Sem que haja um obstáculo, a vida encena o espetáculo de seu hiperbólico universo. E o homem, olhando o rio, sente o irrepreensível desafio de não ser de si mesmo submerso.

Seu olhar, baço e sem brilho perdido na vivência do trilho de sua quimera de andante, são dois açudes em secura que, em murmúrio, perjura por ter sido pego em flagrante.

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Seus traços enigmáticos frios, melancólicos, fleumáticos, pedem paz, pela chaga que rói. Sua alma, contraditoriamente dispersa, com a água do rio divaga, conversa, em desvendamento da vida que dói. “Tu fostes um oráculo afamado, mas do ventre que fostes gerado recebestes apenas os rastilhos. Andastes em sendas e veredas mas rasgastes as finas sedas em deslumbre aos belos junquilhos.

Conhecestes a feetéria solidão, no dia em que deixastes este chão e fostes vagar noutros céus. Tu vistes os nenúfaros nas águas e não soubestes aplacar tuas mágoas pois preferistes o lúgubre à luz de Deus.

Abristes caminho à vida/cansaço em si mesmo enlaçastes um laço e hoje, tens estes olhos perdidos. Conhecestes d‟agua a linguagem e fizestes, em indissolúvel equipagem um pórtico, aos cais esquecidos.

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Adquiristes este vocábulo tardio, de quem desvencilha-se do rio, mas não, das margem estrutural. O silêncio, a angústia, a tristeza tu as vistes, uma a uma sobre a mesa e delas, tu tecestes tua vida/avental.

Conservastes o ofício do medo, a indumentária, a chave, o enredo de uma pagina ainda rabiscada. Mas tu podes esta historia mudar bastas um gesto, uma graça, um olhar e a dor de tu‟alma será aplacada”.

Tendo o murmúrio vencido o homem, surpreso e contido do rio, recebe um galanteio. A água, em jubilo constante, o dá, em abismo hiante, uma taça, um vinho, um anseio.

E o homem, Jupiá Ximbé, toma pra si uma renovada fé e se increpta à vida/ânsia. O seu exercício da lonjura em um sorvedouro de loucura se alberga da incógnita esquivança.

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Igual a grampiformes raízes, que traçam o caminho, as diretrizes do rio e de suas ribanceiras, Jupiá, entre lumes irreais, deixa os lamentos, os “ais” e traça suas próprias corredeiras.

Na forma de uma nova escrita sua figura se acrescenta, se excita e da tristeza, deixa a vala. Pela orquestração do indicio toma a linguagem como ofício e fitando o rio, pausadamente fala: “Há sempre uma névoa escura que nos lastra, envolve e costura em um só alinhavo de remorso. Mas sei, na mesa posta da manhã ainda hei de encontrar um novo afã pois a esta azafama me esforço.

A refração da água do rio são recursos textuais do cicio ao meu corpo dado e negado. Neste viver que ainda fascina circunspectarei meu rio, minha sina até qu‟eu seja por Deus transformado.

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Já fui semente, hoje sou fruto da vida vesti-me de luto mas cumpri a devida mudança. Precipitei-me da vida/charneca vazia e entre brumas e provisória elegia compus o umbral de minha esquivança.

O halo argêneo do meu dia, quedou-se pela noite fria e dela, aceitou a escuridão. Mas, ao frêmito de uma palma joguei pra dentro de minh‟alma um novo poema, uma nova inscrição.

A robustez da loucura alinhavou toda a costura de minha tristeza sem prantos. Mas Deus, que a tudo renova deu-me, em emaranhado de prova alegria, ante o meu desencanto.

Deu-me o improvável conforto de me querer pedra de porto, ou, águas correntes de rio. De me querer plangente brisa que, ensimesmada, cristaliza o avesso do imponderável vazio.

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Deu-me, neste viver contundente, o querer seguir em frente, sem barco, sem remo, sem nau. Ante desesperada insistência, deu-me, à transitória existência, um coração de águia e asas de pardal”.

Se sentindo arqueiro sem lança, Jupiá se envolve em lembrança de sua vida, parca e breve. Dos lábios abre um sorriso como se olvidasse no peito preciso um bater humano, ainda que leve.

Uma alegria, um raro instante em que sua vida, em rompante, não lhe matasse em dor de solidão. Um afeto, ainda que escondido, calcado, recalcado e medido como semente macerada em pilão.

Um desejo, uma fútil/quimera que retire do peito a fera que ruge sem que haja descanso. Uma ternura, que guie seus passos e remova da dor, os duros laços e traga à sua vida um novo balanço.

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Uma escrita, um epílogo, um estudo que não o deixe tão mudo e nem o leve a viver na loucura. Um ideal, um sonho, um caminho que o torne, mesmo sozinho, uma estrela, que entre trevas fulgura.

Com o coração descoberto Jupiá chega bem perto da água corrente do rio. Com os olhos ávidos e sedento, mira todo o deslumbramento e pra vida, acende novo pavio: “Eu sei que é nestas águas que deixarei a dor, as mágoas desta venturosa sofreguidão. Mas sei o que a alma não nega: sem remos nas mãos não se navega, sem sonhos, não se sai do chão.

Sei que ao fim da primavera nem toda flor se encastela ou dormita seu ser/fruto. Sei que o homem, mesmo sozinho, acaba encontrando o caminho que dê a si mesmo um desfruto.

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Sei, mesmo uma pequena candeia, em chama resiste, se incendeia, ainda que não haja escuridade. Sei que nem toda brisa é leve, nem todo recolhimento é breve e nem toda luz traz claridade.

Sei, nem toda alma é boa, nem toda ofensa se perdoa, nem todo gemido, ledo engano. Sei, nem todo rio tem estuário, nem toda dor, um calvário e nem toda loucura, desejo insano.

Por isto, não se pode olvidar que nem todo rio chega ao mar, nem todo amor cala o coração. Às vezes, o consolo, o tormento, são duas estradas ao vento feito gotas de águas ao chão.

A vida tem o seu lugarejo, onde aprisiona o desejo, quando este se lança ao desvario. Da mesma forma farei: na cadência das águas porei a estreiteza do meu leito/vida/rio”.

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Pelo último arquejo do dia, Jupiá sente frio, arrepia e entre as árvores arma a rede. Sua alma tranquiliza, atenua percebendo os frisos da lua d‟entre frondes da ramagem verde.

Ele rompe a umbilical placenta de sua pusilânime purulenta que ainda o unia à cova. E aos poucos, sua humana elegia se desnuda da esquivança vazia em linguagem lúbrica e nova: “Como uma abelha em flor que sente do néctar o odor antes que o encontro aconteça. Será que ainda há um gesto que não seja ingrato, indigesto, e que minh‟alma, enfim, o mereça?

Será que este reluzente horizonte que se abre em força de mirante vai além do meu ignaro desejo? Eu o terei como fonte imergida, como manhã pela névoa vestida ou somente , como negro cortejo?

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Este rio, de água límpida e calma (estrada aberta pra minh‟alma) quem dera fosse sempre assim. Acaso não é oferta que me aflige um querer, que diariamente exige uma nova lavradura de vida em mim?

Não recebi do tempo meu fruto; apenas um sopro de vida em luto já bem tarde eu pude ajuntar. Será que todo o meu sacrifico não serviu (que seja) como indício de uma vida ainda a se costurar?

Será que o inverno implacável, que seca a semente saudável é o que fez estéril meu fértil chão? Ou, esta amortalhada fisionomia que trago, tão áspera, tão fria, é que faz cativo o meu coração?”

Neste viver lívido e novo Jupiá, o florescido renovo se converge em ramo inconteste. e este impossível movimento sua alma livre de rebento de entusiasmo se reveste.

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Tendo a noite como manto, de seus lábios sai um canto, qual rio depurando os cristais. Ao saboreio da calma madrugada, despoja de sua humana/invernada qual plumas em voo sobre quintais.

Os reflexos de sua face no sorvedouro humano renasce insubmisso e indiferente. E na corpórea paz da manhã enche o seu peito de afã e se faz um porto convergente.

Mas o sorver da vida, em respeito ao despertar da alma no peito da incólume (mas neófita) criatura, compassivamente (e altiva) proclama que a bruma restante, a vida/chama é virtude que nem sempre perdura.

Igual água de manso regato que, em incessante corrida no mato aceita a marcha, mas não o estio; Jupiá, à chama/vida anseia e qual fosse torrencial cheia avizinha-se aos sortilégios do rio.

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E, ao silencio da memória põe-se, incógnito e sem gloria à sua angustia/vida ululante: “O sol nascente de outrora se pôs por dentro, não aflora, nem traz paz ao meu horizonte.

Já fiz e refiz o meu caminho e esgarçou-se o último linho da existência do meu ser. Acaso, encontrarei nestas águas um cântaro para por as magoas que transbordam e não posso conter?

Acaso, os alinhavos da vida, de linhas rotas, frágeis e puída, já não fizeram-me, fragmento? Já não seria isto tudo o último prelúdio de um estudo em pastoreio do meu sofrimento?”

Cansado de sua alma selvagem olha a tremula água da margem e se recolhe, murcho, ao remanso. O ante, fruto indomável mira o espelho da água inefável e se embale a um molde mais manso.

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E, ao halo solar da aurora ressoa, de dentro para fora um cântico de gloria e de paz: “Do chão veio a pele escura, dos subterrâneos, a bravura e dos céus, esta vida feraz.

Da solidão, o emblema perfeito, d‟alma, o escopo, o leito, e da mão, os fios de água pura. Do olhar, veio o solstício noturno, da entrega, o gemido soturno, e da urgência, os fiapos da ternura.

Do exílio, a existência deserta, do desejo, a margem incerta, e da dor, a inconveniência dos dias. Dos sonhos, veio a rosa dos ventos, do pranto, cataclisma de pensamentos e da sede, o olor d‟águas bravias.

Da noite, o desabotoar da caricia, do dia, o extenuar da perícia e da culpa, os impulsos da lei. Do orgulho, veio a amarga ausência, do acaso, a incógnita referência e de Deus, esta vida que O darei”.

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Entre os frisos da mata, a desembocadura humana se ata à relíquia de um novo painel. A obstinada marcha das águas leva Jupiá a entender suas fragas e seu ventre vertido de fel.

Ao cortejo das árvores e folhas e do vetusto dossel das escolhas o tempo adormece ao vento que tange. As libélulas ruflam suas asas em colheita de voos e de casas por sobre as águas que plange. Os sortilégios d‟água do rio e o fragor d‟asas do frio cumpre seu contínuo estêncil. O dormir e o acordar duradouro faz Jupiá vivenciar o nascedouro de si mesmo e do próprio silencio.

Ele olha pra dentro da margem e se vê com uma outra roupagem: de semente que chegou a ser fruto. Perde os símbolos perdidos da face e aos poucos, renova e renasce despindo-se da vestidura do luto.

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O silencio, o sossego e a bruma a voz d‟águas e o riso da escuma são bacias sorvendo o céu. Em Jubiá, nova vida costura como esboços para nova postura como fios d‟ouro da vida/carretel.

Ao abrir-se à irreal janela o tempo, à vida se encastela como fogo pra louça/faiança. E Jupiá, cumprindo o destino deste novo viver cristalino se precipita à memória, à lembrança: “Tendo pronto a minha morte nesta vida fiz-me forte como as estrelas do céu. De penhascos à penhascos, encontrei da vida os frascos e da vivência, o seu laurel.

Depois de correr mundo e de procurar à fundo as enterradas respostas. Voltei para este leito de rio e ao preencher meu vazio fechei minhas últimas portas.

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A mais tênue margem que veem-me, como tiragem de um último capítulo; é do meu pai: Ulemá Jubal, que viveu o seu ideal sem ser preso à vida/círculo.

Ao cair do último sereno o seu rosto, seu traço ameno, revigorou-se a muitos sinais. (Viveu, de manhã a manhã, sem perder um único afã longe dos sonhos intestinais.)

As suas amarras segregadas constantemente resguardadas hoje, faz sombra aos meus passos. Dói-me a dor de um castigo vivenciar, neste rio/abrigo as alças de seus últimos laços.

Em uma tarde fria e cinzenta a sina fez-se dura e cruenta n‟alma aberta de meu pai. Quando adentrou neste rio o vento soprou em cicio como dizendo: vai! vai! vai!

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O rio acolheu sua vida/moldura e o aprisionou em sepultura sem flores, sem choro, sem vela. Ao meu pai, homem brilhante, o rio deu-lhe, em amor prestante, as chaves de sua vida/cancela.

Deu-lhe, como última prova, límpidas águas como cova e saudades, como cúmulo. Deu-lhe, como última verdade, anseio de uma eternidade e margens, como único túmulo”.

Imerso em seu pensamento Jupiá nem sente o vento cortando as lágrimas do rosto. Abatido, triste e solitário dá, à sua vida/ calvário desdém como pesado imposto.

Mira a sua face na água e joga pra fora uma mágoa vestida de forte lembranças: (A água, o rio, a frágil igara, e o milagre do amor: Alba Juçara, negros olhos e cabelos em tranças.

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Um traje branco de lírio, um fogo brando, um círio, um sopro de vento em flor. Ternura, tormento, centelha, flamboyant em tarde vermelha um belo ornamento, um andor.

Um fio que o vento esvoaça, primavera que logo passa pálpebras abertas ao sol. Um brilho aurifulgente linda voz de água corrente, um poema ao arrebol.

Cúmplice de sonhos e segredos de paz, sacrifícios e medos, archote luminoso no céu. Graça de voz, o mesmo de figura, tela revestida em moldura, aurora, vestida de amarelo burel.

Sopro de vida, friso de aragem, plácida elegância de margem, um frêmito de palmas ao vento. Cheiro de arminho, corpo lavrado, côncavo caminho, ingênuo bordado, pérola harmônica em suave movimento.

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Ribanceira de confidencia, um fulgor de vã existência, verão, sem o silencio do estio. Em voo, uma perfeita andorinha que se viu, prisioneira e sozinha entre as margens deste rio).

A lembrança de Alba Juçara fulgura uma dor avara ao coração de Jupiá. Seus abraços e seus beijos em relâmpagos de desejos não o deixa dormitar.

Igual um nó, em que se ata e logo depois, se desata ao perscrutar dos desenganos, entre as margens da lucidez, Jupiá revela a limpidez de um homem e seus danos: “A minha vida tem claridade que não esta, pela metade que vivo sobre este céus. Falta-me a prece, a oração que faça, deste meu coração um vivo altar para Deus.

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São tantos os desenganos neste trinta e poucos anos que em viver, não há deleite. As flores que trago comigo são dores, que n‟alma abrigo roxas, murchas, de fúnebre enfeite”.

Mirando o rio que deságua suas corredeiras de água qual fosse pétalas de flor, Jupiá sente-se mais calmo e medindo sua vida a palmo falta-lhe: Deus, alegria, amor.

O voo/nuvem felicidade do seu viver pela metade cobrou-lhe um alto preço. A forja, a lança, o arado para o seu coração enlutado tornou-se pedra de tropeço.

Quando o voo é recolhido e de suas asas partido por mal destino ou má sorte, abre-se no negro horizonte o arrebol de um sol pospante e em Jupiá: um princípio de morte.

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MARGENS OPOSTAS DO HOMEM

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O fim da inocência do florão da existência do homem e do rio, aplaina o desagradável e expele o irretratável ao seu ascendente desvario.

Em um silencio dissonante, a verde mata exuberante envolve a alma de Jupiá. E na gênesis da vida/ânsia, ele encontra a justa distância, do mistério a se revelar.

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Ele encontra, em meio a lírios, a justa conta de seus martírios que a tempos o atormenta. Ele encontra, dentro d‟alma, um estranho frio que o acalma e um fogo que não o esquenta.

E embora ache tudo isto tolice, retira d‟alma a última meiguice e da lucidez, corta a única rama. Vocifera ao peito que o aqueça e entre as mãos, põe a cabeça, e a si mesmo grita e reclama: “Desde o tempo de menino ative-se ao sonho/ensino de uma mística renúncia: da alegria, impassível tristeza, da fé, arrabalde de incerteza e da voz, aturdida pronúncia.

Conquistei o mais alto cume e desci ao lúgubre estrume no espaço de poucos dias. Da flor, conheci o espinho, do rito litúrgico, o vinho e da loucura, as vãs filosofias.

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O amor, deu-me Alba Juçara, a dor, uma saudade avara e a vida: um querer prosseguir. O crepúsculo deu-me os mormaços, a luta, os conhecidos cansaços e a fé: um lindo sol do porvir.

A solidão, deu-me um deserto, o caminho, um destino incerto e cada noite: um sonho desfeito. Mas, em um sopro derradeiro Deus deu-me, em sonho/canoeiro, este rio como meu último leito”.

Buscando o brilho do sol Jupiá se inflexa do farol de sua existência alcançada; e, olhando as águas do rio refaz a sua própria vida/pavio em nova escrita reinventada.

Em desespero, em desencanto, dos olhos, desce um pranto e dos lábios, nasce uma rouca voz: “Já trilhei, por demais sozinho, não alcancei o consolo, o carinho, e nem vi, da vida/linha o retrós.

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Eu sei que a loucura me avara quando sonho com Alba Juçara ou, com a ternura de Ulemá Jubal. Sei-me, um desbotado retrato: sem pejo, sem afeto, sem recato indiferente ao bem ou ao mal.

Sei-me, uma corrente partida, um silêncio, que ninguém olvida, uma fé, em recolhimento de ruína. Sei-me, um ramo seco de alegria, uma candeia, sem o azeite que alumia, uma dor, que se aloja e não termina”.

E, quando a água amortece Jupiá, finalmente reconhece que ainda lhe resta um afã. Olhando as águas, medita e tece nos lábios nova escrita: “Sentirei ainda um novo amanhã?

Viverei esta última cena, embora um tanto pequena, sem o seu manto de dores? Será, que esta última promessa, não me pregará uma peça, dando-me novos clamores?

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Será, que esta plácida elegância, que minha vida espera em ânsia é um fio que jamais teci? Será, que nesta última jornada, encontrarei a página rasgada que a tempos, de mim escondi?

Será, que a moldura deste céu, não esconde um suado mel, por detrás do sol poente? Será, que a minha vida/sorte é navegar em vento forte e, não morrer tranquilamente?

E os mistérios deste rio, acenderá o ultimo pavio de minha vida já afogada? Ou, nele apenas construirei a fôlego, que ainda terei: a cinza, o pó, o nada?”

Ainda olhando para o rio Jupiá reconhece o extravio de seu deselegante viver. A sua figura, outrora discreta, desvencilha-se da alma asceta e caminha, rumo ao entardecer.

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O extravio da sã/memória, em um desterro de glória, não tarda, deixa o seu fruto: Se a noite, tem seu negrume, o fruto cítrico, seu azedume, Jupiá, as vestes do negro luto.

A dor, que o envolve em tecedura Constrói, por dentro a loucura e por fora, desavisado desdém. E Jupiá perde toda a cadência quando vê, no peito, a demência de ser, de si mesmo, algoz e refém.

E nem a transposição da luz que, em asas rubras o conduz ao seu intimo „ser/fera‟, não basta, pelo que dentro devora, pelo que sai, de dentro para fora, pelo que hoje é, e antes não era.

A sua convicção de arbusto enche de dor e de susto a sua alma puída e pregressa. E sem o engenho do afã constrói, de manhã a manhã um viver sem muita pressa.

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De um ponto ao outro do rio faz da vida, seu último pavio, vestes largadas ao quaradouro. E ao sol, ou ao cardume de estrelas, sente dores, e ao querer retê-las guarda de si mesmo a vida/tesouro.

Os cabelos, uns tanto crescidos, suas mãos, em gestos recolhidos marcam, indeléveis, sua insanidade. Da vida, retira a sua última esmola, das águas do rio, faz a sua estola e na loucura encontra a claridade.

Com um olhar perdido, sedento, de quem já viveu o último vento de uma vida já escrita, já findada; Jupiá, da brenha vazia e deserta, toma pra si a sua chaga/coberta e dela, faz o fio pra sua estrada.

Sob as plumas das árvores verdes constrói sua vida, arma suas redes, e vive seus mais secretos temores. Noite a noite, dia a dia, o abandono é a única companhia, único dono de seus coração repleto de dores.

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Antes, trazia no seu imberbe rosto os lampejos de um humano gosto, com todo o êxtase que ele envolve. Hoje, vagando entre as secas folhas, sem domínio das próprias escolhas, é um louco, e da loucura se absolve.

E, interpretado como louco que a cada dia perde um pouco da humana e emoldurada sanidade. Jupiá aceita a última quimera que a ensandecida alma gera e grita, grita, pro rio/eternidade: “Conheço as tuas ribanceiras as tuas águas, vivas corredeiras e todo o teu subterrâneo calado. No teu leito/cortejo, descoberto fiz o meu abismo, meu solo abjeto e fui reconstruído, e fui gerado.

Todo o meu caminho de chão foi trocado, revisado de ante mão, pelo rio/caminho de tuas águas. Em um remar diário de canoa visitei tuas margens, tua lagoa, mas lá, não deixei minhas magoas.

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A minha vida/mormaço entre as alças do teu laço perdeu a direção do sol. Fechado em dor mormente fiz-me solitária semente nas tuas águas/vida/paiol.

Fiz-me desperdiçada figura que a cada instante inaugura um contraditório viver. N‟águas, fiz-me um sôfrego no chão, inábil trôpego e na dor: uma essência de ser.

Procurei por estas encostas o mistério das respostas de minha alma defensiva. Mas foi no cordão de tua margem que encontrei força e coragem pra manter minh‟alma viva.

Vi toda a vida vencida quando vivenciei a partida de papai e de Alba Juçara. Todo este cúmulo de água trouxe-me, qual fosse anágua, uma dor que fere e não sara.

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Trouxe-me, por sobre a vida/mesa, lânguida e mórbida tristeza e uma dor que nunca passa. Trouxe-me um estéril chão onde enterrei a minha canção e minha própria vida/couraça.

Trouxe-me um destino sem rumo uma vida, erguida sem prumo e mãos, sem forças e vazias. Trouxe-me uma sede estranha, uma fúria, que arde em sanha e urzes, de mutiladas agonias.

Trouxe-me um interino calvário como as contas de um rosário ou, um crepúsculo tristonho. Trouxe-me uma vida sem abraço; um céu, riscado em mormaço e uma alma, sem o saboreio do sonho.

Trouxe-me um fruto amargo que fez, do caminho largo, uma senda tacanha e estreita. Que fez, da historia construída uma farsa a ser esquecida e uma ilusão a ser desfeita”.

[ 62 ]


Um vento frio, cortante e tenace sopra, violento, por sobre a face de Jupiá em extrema solidão. O seu humano flagelo se assenta e ele, sente a dor, a tormenta que faz d‟alma, escuro porão.

Acalentando a dor nos braços Jupiá, sente os cansaços e faz dele, um pórtico vazio. O sopro do vento o encanta e ele, inerte, não se levanta das margens contrárias do rio.

Com Alba no pensamento, sente o costurar do vento em um vendaval de tristeza. Toca de leve a água cristalina e fala, para sua malfadada sina: “Basta-me da vida a mesa.

Eu tive, nesta vida, um romance que tiraram-me, em um só lance, qual fosse a vida um brinquedo. Por isto, neste meu viver a esmo, tornei-me reflexo de mim mesmo sem ato, sem palavras, sem enredo.

[ 63 ]


Tornei-me, um remo sem rumo, uma entre/safra, um resumo, um ser, sem uma resposta. Tornei-me, um rio minguante, uma adaga afiada e cortante e margens, de uma vida oposta.

Tornei-me, um íngreme barranco, onde, um improvável banco, já está posto à espera do meu ser. Uma vida, estendida no quaradouro à espera do derradeiro estouro quando eu, do meu todo me perder.

Tornei-me, um fraco tecido, não no que poderia ter sido mas, no que hoje deveras sou. Um fraco, sem viço nas veias, um perdido, em imaginárias teias, um sereno, que o sol já quarou.

Um ser de pouquíssima coragem, uma peça de fraca aniagem sem genealogia e sem formosura. Um tecelão, que nada mais tece, e , mesmo que a vida me quisesse não me encontraria nesta fundura.

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Um pássaro aflito na noite, um vento, preso em seu açoite, escravo e de si mesmo feitor. Um sol, de uma vivência aquém, sem ter de lutar por algo ou alguém um pomo, de inexistente dulçor”.

Em meio a emaranhados de folhas Jupiá reorganiza suas escolhas no teu tempo findado de ser. Rasga todo o véu opalescente que ainda o unia à sua mente e aquieta-se, em vontade de morrer.

A quietude sobre a água do rio faz do lugar, ermo e sombrio um mundo de dúbio encanto. Jupiá, aos poucos se entrega e, em desfecho de última sega de seus olhos, brota um pranto.

E, como as nuvens na alvorada, que pela brisa é soprada em um rastilho de ternura: a orquestração da vida/porvir, incita Jupiá a desistir dos seus roseirais de loucura.

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Mas, a doce frutificação da vida outrora, desejada e repartida, torna-se um enorme fardo. Sua ânsia desencontra-se da calma e dispara, para dentro de sua alma, um murmúrio, um venenoso dardo: “Será, que neste meu último arquejo viverei um sonho, um desejo, ou apenas, este remar sem rumo? Será, que todo o meu sereno quarado me dará, ante este viver subjugado, um remédio, um bálsamo, um prumo?

Será, que nestas anáguas do rio, livrarei deste estranho vazio, ou farei, de mim mesmo, atroz? Será, que em último desperdício, terei, como nascente, o precipício e nunca chegarei à minha foz?

Será, que todo um viver plausível, pode tornar-se tão ínfimo, invisível, ao ponto de ser tão intrigante? Ou, ainda terei um breve momento onde não serei de mim mesmo isento, e deixando a canoa seguirei avante?

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Será, que sob este céu de astros deixarei meus passos, meus rastros, para que outros o veja e o siga? Ou, apenas terei uma frágil canoa que, ao rebojo d‟águas, reboa causando n‟outros medo e intriga?

Será, que todo este rio/caminho é roupagem que se veste sozinho qual se fosse rumores de lenda? Ou, ao cumprir a última remada, ao ver, do sino a última badalada, ainda terei um amor nesta senda?”

A descortinação do véu/vida grimpa em Jupiá uma ferida que só a humana loucura cria. E ao curso inquieto da água ele mergulha sua distinta mágoa e sua última gota de alegria.

O ruir de suas frágeis raízes, o dá, em novas diretrizes, um longo silencio calcinado. E nem as miríades de bolhas ou, o espalmar das verdes folhas o tira do seu destino revelado.

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Com um olhar duro e subjugado, Jupiá se ressente quieto e calado às margens obliquas do rio. Com estupor de animalesca fera, pega a dor, que por dentro o dilacera e se lança, ao fulgor do desvario.

Constrói para si uma canoa e se lança, nas águas que reboa, por entre musgos e parcéis. Ao estrugir dos diários banzeiros e dos frios ventos sobranceiros da lucidez, arranca os últimos anéis.

Como um hábil construtor, Jupiá, orfanda a sua insana dor e ao ermo d‟água, erige um castelo. Oclusa no peito um desalinho e faz do rio, único caminho e do remar, um ultimo anelo.

A canoa que o transporta abrindo n‟águas, uma porta, o leva, para pórticos irreais. A sinfônica do remar do início perde o tom e mostra o indício de um homem vencido e sem paz.

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Enquanto a canoa desliza no rio e cumpre o seu destino, seu fio, em um vivo lençol de espuma, Jupiá, não fala, não ri, não chora nem vê, que toda a calma de fora ruge, por dentro, como o puma.

Sem demora de cautela montado, em sua canoa/sela, some, no sinuoso rio Jupiá. Pelos remos da vida é tocado e pelas águas da morte é levado sem pórtico, ou porto a atracar.

Seguindo os astros do céu que sobe e desce como véu em um encanto de mistério. Jupiá, faz do sinuoso rio, um cobertor para o seu frio e caminho, para o cemitério.

Em perfeito entendimento o rio consente o acolhimento da aguardada humana/peça. Mesmo sem saber a medida de onde, no homem finda a vida e no rio, onde a vida começa.

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HOMEM/RIO/HOMEM

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A vida tem duras penitencias que cria suas próprias resistências ante as névoas do humano viver. Tem o riso, amargo e tormentoso, o âmbar, que se retrata silencioso e o choro, que vem desde o nascer.

Tem o vento, que em canto enfurece, a noite, que em desencanto amanhece e a fé, este raríssimo estandarte. Tem a paz, que sucumbe à guerra, a saudade, que ao peito encerra, e o amor, que de repente se parte.

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Tem cortejos, revertidos de sudários, pecados, envoltos a escapulários e ódio, impedindo que o lírio viceja. Tem sonhos, que alentece em dor, frio, que não se consola ao calor e presa, que nenhum arcífero alveja.

Tem ânfora, que não retém água, rio, com desembocadura de mágoa e voz, que aos poucos silencia. Tem segredo, que vislumbra vento, escárnio, que não merece julgamento e anseio, incontido de agonia.

Todos estes arabescos de vida é dado ao homem de partida quando nada mais há que o conforte. Tomando nos braços este presente, Jupiá, em sua canoa, segue em frente para além da vida, para além da morte.

E quando alguém, pelo rio passa, singrando a cortina da fumaça vê sombras de misteriosa figura. Dentro de uma insustentável canoa, um homem, sentado à proa, com os remos, a água costura.

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Seus traços, afigura a de um moço que traz consigo o viço, o roço, de um destino adverso e sombrio. Por entre a névoa que cresce, a figura se mostra e desaparece subindo e descendo as águas do rio.

Às vezes, olhando direito, dá para ver, neste misterioso leito não um, mas dois homens a remar. São duas diáfanas figuras cingindo suas humanas costuras na névoa do rio, sob a luz do luar.

Um, traz em seus braços, o anoitecer da vida, os mormaços, de um inverossímil lassidão. O outro, um pequeno opúsculo, um delírio de um crepúsculo e o epicédio de uma paixão.

Um, sentado sempre à proa, toca os remos da frágil canoa em uma escarlate alegoria. O outro, como se estivesse em prece, sentado à popa, se esvanece de uma tristeza e de uma alegria.

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E aos devaneios dos dias as duas figuras, as duas utopias, tornam-se, um ao outro análogo. Aos estímulos sagrados da vida, ou, à existência um tanto comprida, não tecem um único diálogo.

Conhecem seus próprios anseios e seus mais íntimos devaneios neste eterno ofício de remar. Um do outro, são velhos amigos, conhecem seus próprios postigos e se entendem pelo simples olhar.

Nesta improvável existência, onde a vida, com sua cadencia, se abrevia, antes de estar completa. O homem, que tão pouco dura, que não conhece a própria „findura‟, não faz da morte sua última seta.

E quando os mistérios da morte faz da vida, companheira e consorte, abre-se um novo e misterioso trilho. É quando a última gota se esvai, quando o filho encontra o seu pai e o pai, alegremente, a seu filho.

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E quando isso sempre acontece, mesmo entre a névoa que cresce além da vida e do seu ínfimo fio, pai e filho, em um grande mistério, em um remar difuso e ermitério, tornam-se um: o homem e o rio.

E quando o deslumbre vazio estabelece no homem e no rio a sua forma bem construída, um ao outro se intera: o homem, deixa sua alma de fera e o rio, a sua secura de vida.

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