Calíope [escritas e visualidades] vol. 2

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esse é tempo de partido, tempo de homens partidos, diz o itabira, e continua: esse é tempo de divisas, tempo de gent mas ainda não é tempo de meio silêncio, de boca gelada e tempo de barulho.

calíope é musa de bela voz, e é bonito falar alto quando te i o sussurro. falam aqui autores, pela escrita ou pela imagem, liberdade, e é isso a arte, a emergência da liberdade.

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é preciso dizer os nomes, expurgar cada crime podre, contu bonitos. crimes que salvam dos horripilantes vultos cafonas que o poder insiste em pintar de gente, mas desde quando p se misturam? já diria o poeta russo: gente é feita é pra bril mais vá para o inferno.

e o poeta baiano complementa: gente quer prosseguir, que crescer, gente quer luzir e enquanto os homens exercem poderes, índios e padres e bichas negros e mulheres e ado o carnaval, então cantemos, e cantemos alto contra qualqu silêncio, contra qualquer cafonice ufanista, contra qualquer mas cantemos.


o poeta de te cortada, murmúrio, é

impõem , falam de

udo, publicar os s e autoritários poder e gente lhar, e que tudo

er durar, quer seus podres olescentes fazem uer ordem de r feiura fascista, Álvaro Alencar

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75 |Em Busca da Forma: É uma Maldição Escreve


SUMÁRIO

12 | Tempestade - Ellen Soleiro 18 |Namoros Virtuais - Jorge Nogueira 26 |Nos Intervalos Circulares - Giordano de Lamarques 42 |Sobre Alguma Alice Que Não Sobrou - Badb Catha 60 |Ricardo Campos [Três Poemas & Três Visões] er [Giordano de lamarques Por Edla Ribeiro] Entrevista ÍNDICE VISUAL Thamyres de Souza [13, 16-17, 57,] Jonas Bezerra [Editorial, 20-21, 41, 55, 61, 66] José Humberto [24-25] Ricardo Campos [68-69, 70-71, 72-73]





“Caminhos não há Mas os pés na grama os inventarão” Ferreira Gullar

“É PROIBIDO PISAR NA GRAMA O jeito é deitar e rolar” Chacal


TEMPESTADE

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De s d e p e q u e n em mim: Não revel fragilidade. Mas as pe em si mesmas, que d Ellen Soleiro c o n t i d o , p e n s e i : T u d o Ellen Soeiro é uma moça que facilmente você encontrará p r e t o t r a n s f o r m a n d o bebendo um vinho barato e fumando um Minister sentada representa, tudo bem nos bancos do Arco do Triunfo sobralense. É acadêmica de Filosofia na UVA, mas acredita que os ensinamentos a m a r e l i l d e u m s o l , s e da rua são mais existenciais do que os artigos da sua linha de pesquisa preferida. Escreve, fotografa e vira e b e m . À s v e z e s , a s n u v mexe faz umas performances poéticas. Fala de si mesma em terceira pessoa, não para trazer um ar esotérico e n o f i n a l d e c o n t a s , h -talvez, mistério até pinte por aí-, mas porque é muito que vou fazendo o qu difícil descrevê-la.

tudo no automático, sinto dentro de mim: Bombas d

O m u n d o i n t e i r o m e d ó i , p o r q u e e u s o u o m Tentei fugir disso e pensar que por mais que eu se muro de Berlim antes de 1989; grão de areia em Jer em Pacífico, tem uma imensidão que me faz querer de mundo que tanto me machuca. Mas quando o de areia é levado pelas pernas do argentino e a go fervor… Bem, além da insignificância atual, já não


na, guardei uma coisa ar publicamente minha essoas estão tão atreladas durante meu choro não bem. Uma figura vestindo a tristeza que aquela cor m. E mesmo se fosse o e houvesse tristeza, tudo vens absorvem tanta água há chuva. Quando parece ue preciso fazer, mesmo

de Hiroshima e Nagasaki.

mundo e ele está em mim. eja um tijolo pichado no ricoacoara e gota de água emergir nesse fragmento muro se quebra, o grão ota evapora em um dia de o me resta muita coisa.

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Então, me permito desabar. Eu choro. Por medo? Não sei de quê. Durante um tempo, me contentava em dilacerar pele com unhas; ver minha carne e perceber o sangue sutil da minha existência. Mas hoje em dia… Isso não diz respeito somente a mim. Me satisfaço em amassar uma garrafa de plástico e pensar: Sou um tijolo e quando decido quebrar no muro, haverá um vazio dos que precisam de mim para suporte. Tudo bem, tento me convencer. Consigo me entreter fácil dentro de um ônibus. Uma janela já me basta. Mas. O mundo inteiro me dói, eu já disse. E quando passo rapidamente por ele em uma pintura abstrata esverdeada, me dói mais, porque… porquê. Vejo: Preciso realizar minhas coisas. E tudo bem quando o nublado dos olhos gotejam. Algumas pessoas usam guarda-chuva e… São só nuvens trovejando e pingando mais uma vez.


Já percebeu que quando você anda na chuva, as pessoas sempre se protegem? Dentro de lojas, lonas, chapéus, papéis amassados, passos apressados. Eu mesma, já me escondi dentro de um açougue e vomitei. Porque o mundo me dói. Mas quando você, de relance, observa quem não se importa muito com tempestades, as pessoas que não se dissolvem como o açúcar em água… Elas abraçam as nuvens no céu sem estrelas e dizem: Esse aguaceiro vai passar. E cessando com gotas rasas, elas respiram fundo -as nuvens-, recolhem a tempestade que preparavam e expandem enfeitando o céu azul, como quem agradece quem decide se molhar. . . . . . . . . .

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NAMOROS VIRTUAIS 18

Jorge Nogueira Nascido em Jaguaribe – Ceará, em 7 de novembro de 1986. Aos dois anos mudou-se para São Paulo, onde viveu por cerca de sete anos. Após esse período, morou em diversos lugares do Ceará, como Iguatu, Jaguaribe, Fortaleza e atualmente Juazeiro do Norte. Bibliotecário, exerce a profissão desde 2011. Participou de diversos grupos artísticos como ator e facilitador em projetos de incentivo à leitura. Possui trabalhos publicados em coletâneas de contos e poesias. Vencedor do I Concurso Literário LGBT do Ceará, Concurso Sesc de Contos e outros.


“OK”. Depois de tudo o que dissera, num desabafo doloroso, num turbilhão de palavras, ouvira apenas isto. Esperava explicações satisfatórias para o término, um motivo coerente que justificasse o súbito fim, e ainda através de uma mensagem em rede social. “Nem sequer um telefonema!” – admirava-se. 19

Mas os telefonemas tornaram-se cada vez mais dispersos. As desapegadas mensagens por chat, os emoticons que ela tanto odiava, eram parte da comunicação entre eles. Sempre esperava por algo mais, um convite imprevisto para saírem, um “eu te amo” inesperado. Sabia que era a pessoa mais interessada no relacionamento. Desde o início, tomara conhecimento disso, e doía. Tinha a impressão de que, ao ser a mais dedicada à relação, ficava,


não tinha tempo, que a faculdade e o trabalho ocupavam-no demais.

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“Quem gosta, procura, arruma um tempinho pelo menos para dar um oi, perguntar como está...”, remoía. Não entendia joguinhos psicológicos. Às vezes, imaginava que ele não respondia às mensagens intencionalmente, mas não atinava para o motivo disso. Queria acreditar que era uma forma de fingir que não estava nem aí, de não se mostrar preocupado demais. Outras vezes, pensava que ele realmente não estava nem um pouco interessado na relação e, por isso, não retornava as mensagens e telefonemas, dizia que não viu nenhuma ligação perdida, que provavelmente houve algum problema com a operadora. Não entendia o porquê dele não expressar o que sentia ao estar com ela; ao invés disso, publicava em redes sociais onde estiveram e fotos dos dois. Tinha a impressão de que


cada vez importava menos a sua presença, sua companhia, contanto que ela gerasse fotos e frases e postagens em redes sociais, para mostrar aos outros que ele tinha uma namorada bonita, que viajavam para belos lugares, que eram felizes. E terminou, após oito meses, por meio de uma mensagem em rede social. Talvez por não ter coragem de encará-la pessoalmente ou de sentir a dor em sua voz, através de uma ligação. Sem brigas, sem demonstrar que estava incomodado com a relação. “Mas por quê?”, questionava-se insistentemente. Na mensagem ele dizia que não tinha tempo para um relacionamento, que seu dia a dia era muito corrido, que não estava mais na vibe... E não era a primeira vez que um relacionamento acabava assim. Possivelmente por sair tão pouco, pela timidez e sua personalidade introspectiva, tinha dificuldades

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em travar conhecimento com pessoas “ao vivo”, e buscava conhecê-las pela internet. Mas nunca dava certo. Constatou que a maioria buscava apenas satisfazer seus desejos carnais, parecia ter medo de um compromisso, e preferia manter um relacionamento não definido, que quase nunca evoluía para algo mais sério. Talvez para não perder possibilidades, ficar com outras mulheres, mais bonitas e mais interessantes que ela. Dessa forma, não seria uma traição, já que não estavam “namorando”, refletia. E cada vez menos entendia os relacionamentos. Um “Topa sair?”, um “Vamos fazer alguma coisa?”, que no início pensava ser um convite para um cinema, uma praia, shopping, geralmente significava um convite para sexo. Um “Talvez”, um “A gente vai se falando”, quando os chamava para sair, poderia ser interpretado como um “Pode ser, se não aparecer alguém melhor ou algo mais interessante para fazer ”.


Após o término do relacionamento – o mais longo até então –, chegou à conclusão de que não queria mais se relacionar com ninguém, que as incontáveis tentativas mostraram-se sempre frustradas, que o “juntos para sempre” era coisa do passado, do tempo dos pais e avós, dos filmes românticos e contos de fada. Em seu quarto, no escuro, iluminado apenas pela tela do computador, sem ninguém para ver as lágrimas que escorriam ligeiras pelo seu rosto, compreendeu que teria que aprender a ser feliz sozinha, lidar com a solidão. Desi ludida, via-se no futuro: velha, sozinha, na casa cheia de gatos, o dia inteiro vendo TV. Mas havia alternativas, havia como fugir desse futuro? Sim, pensou, existem outras possibilidades...

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; ontem, um sonho me teve. Sonhei que jogava xadrez com a morte. Nós, bem ali, debaixo do verdejante pequizeiro, frondoso, com sua veraneia copa que quedava para os lados, quase que se apoiando no chão de terra batida, quase que caindo no cruzamento das três estradas que se estendiam sinuosas para longe. Não me lembro ao certo a que período se passava o desafio, mas recordo-me, embora que vagamente, que não havia se posto o astro; ainda era possível distinguir as cores das peças. A morte jogava com as peças claras e o jogo, já bastante desenvolvido. O tabuleiro, cuidadosamente trabalhado em pedra-sabão, contrastava abruptamente com as peças talhadas em madeira – todas com aparências de esboços e que por certo, se não tivesse o mínimo de conhecimento do jogo, não as distinguiria em uma olhadela – aparentavam serem de talhe

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bruto e recente, podendo muito facilmente terem sido feitas por mãos inábeis ou mesmo apressadas ou preguiçosas. Bem... ainda era possível distingui-las.

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O fato é que um silêncio rodeava aquele momento {meio vago se não fosse o pequizeiro, o cruzamento das estradas que a sábia árvore se desviava – há uma racionalidade profunda das coisas –, os bancos amadeirados que sustentavam os lugares de sentar e o tosco tabuleiro}, agravado ainda mais pelo aspecto imóvel e silencioso da morte, resolutamente concentrada no jogo. Sei que era atravessado por um sentimento de ter que mover a peça, mas não sabia o momento exato ou se era minha a vez de jogar. Por certo, havia um eclipsado desejo de perscrutar a paciência da morte com ansiosas perguntas esfíngicas, daquelas que só as aporias da linguagem se colocaram àquele s


espíritos livres – homens de muita presunção e coragem, que há muito tempo se atreveram a pôr-se em risco, a pôr em xeque as suas certezas, frágeis crenças enraizadas – mesmo na iminência dos desfiladeiros. Pensei em indagarlhe perguntas que me eram recorrentes como: sobre a velocidade da decomposição das maçãs; da possibilidade infinita do espaço e de sua expansão; sobre a possibilidade do movimento se tudo for matéria; da possibilidade de haver antimatérias entre as células mortas expulsas nas unhas que crescem nos dedos das mãos; dos intervalos do tempo e sobre ele próprio; da sinapse dos vermes nas valas do mundo; sobre as concreções do caos; sobre o nada. Bem, entendam... sei que essas perguntas por um lado tinham a centelha das olheiras de noites mal dormidas, mas também sei que por

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outro interstício tinham a ardilosa trama – talvez o mais ínfimo estratagema – de distrair meu adversário de sua concentração. Não o fiz. Ora, por medo de desviar a concentração do jogo e de ser Ela a se aproveitar desse momento. Não se sabia de quem era a vez. Mas sabia que qualquer movimento de peça não calculada era fatal. O jogo estava muito imbricado – e diante da compostura de um adversário resoluto –, me esforçava na astuteza da atenção. A todo instante, Ela, permanecia ali, comigo; um sumo de concentração. De súbito, não menos que isso, lembreime de meu pai, Francisco Olímpio, “Chico”, com certa ternura pelos entrelábios de minha mãe. Homem letrado, sabido dos feitos humanos, de suas estórias passadas e que embora envolto de uma áurea presença, era versado na ironia, atribuindo-se como melhor valor. No arrebatar da memória ~ estados do inaludível ~ lembrei-me de nós, dos tempos passados em


que morávamos no interior do Ceará, em terras dos antigos Kariris. Quando faltava luz, ele trazia duas velinhas empoladas em pires – aquelas bases de vidro que aparam os excessos das velas, quando muito dos conteúdos das xícaras – uma em cada mão. Na sala punha uma, para qu e aquele mais velho da reduta família não se assustasse e fizesse tanto alarde, praguejando com um vozerengo rouco e cansado, pensado que já fora julgado, condenado, e que só, já estava no purgatório, sem chance de “salvação” – talvez seja esse o sentimento similar, o desses indivíduos que se veem processo do indizível ou da solidão de muitos anos de vagâncias pelos evanescentes ermos das lembranças. A outra vela, levava cuidadosamente até o quintal, por vezes sob a boca estrelada da noite, colocando-a sobre a mesa de plástico ao lado do belíssimo tabuleiro de xadrez, esculpido em alguma madeira reluzente, adquirido com muito esforço

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em sua infância pouco abastada, mas rica em descobertas e façanhas juvenís.

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Tão logo chamava-me ansioso para testar seus ensinamentos e creio que também por atenção, já que seu trabalho na contabilidade – desses, quase automático, transfuso na duração viciada do corpo – consumia-lhe quase todo o dia. Passávamos maços e maços de velas jogando: eu esforçando-me para não cair mais uma vez na previsibilidade de seu cálculo e ele, nos mistérios do malabarismo, com o ar de graça que tornava interessante o jogo, jogava ironias de retribuição – sempre justificando, com um ar de professorado, que elas eram para serem mastigadas, que era m alimento que fortalece, se bem ruminadas – pensava: deve ser cansativo ser um animal ruminante! Mas deixe-me esclarecer, escutem... É que certa vez aconteceu de ele ficar sério durante o jogo. Nesse dia, parece que havia


tido problemas na empresa. Em casa, ouvia o resmungar não tão distante: o pai brigando com o pai, meu avô. Não soube ao certo o motivo. Nem lembro bem. Mas sei que tinha sido sério, visto não tê-lo presenciado comumente daquela maneira, principalmente quando faltava luz, que para a gente, era momento quase ritualístico de desviar um pouco dos febris computadores e das potências virtualizantes que tanto nos atravessava, ocupavam e distraía-nos. Neste dia, jogamos apenas duas vezes. Eu, de tanto jogar com ele, já havia conseguido chegar a um bom nível de repetição e na rapidez da primeira partida, houve um empate. Na segunda, ele, que costumeiramente escolhia as peças escuras – talvez por covalescença, era disso também! – dessa vez tinha escolhido as claras para jogar. Como ele havia me ensinado, no xadrez as peças claras sempre começam. Nunca entendi especificamente esta regra, mas nunca me pareceu arbitrária. Em certo ponto

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do jogo, já bastante avançado, na vez dele, senti uma inquieta quietude nos circundar; não só no quintal ou na casa, mas em tudo que nos avizinhava.

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Enquanto a chama trepidava, timidamente arrisquei a mirar seu rosto e logo percebi a rigidez com que se portava. Sua mão tampava a boca e segurava o queixo. Seu braço apoiado na mesa não encobria a visão quase nítida, ainda que tremeluzente, de seus ombros curvados para dentro. Olhos graves, sobrolhados, dois buracos negros fixos no tabuleiro. Apresentavam-se com uma contundente distancia, não só do jogo, mas sentia se estender entre nós. Após alguns centímetros de vela consumida, vi a cena que marcou nosso último jogo: a luz havia reinvindicado o estado das coisas. Cansadamente levantou a cabeça. Olhou fixamente para mim e retornando o olhar carregado e sombrio passou o braço sobre o


jogo, derrubando ao chão todas as peças do tabuleiro. Nesse dia, saiu de casa e só voltou tarde trazendo consigo as habituais latas de doces, compradas em algum mercadinho ou bodega, que talvez, pelo decorrer da hora, já estivesse por fechar e se prostrou, denso e fechado, em frente a tão familiar máquina, o computador. Ficou lá por horas a fios. Sabíamos que ele investia a raiva ou stress na comida: ele era grande e forte, mas mortal. Meses depois, o destino prega-lhes uma peça: ele que sempre brigava com meu avô, dizendo que iria morrer cedo por causa das danações que fazia durante a noite, com comida e “excessivos esforços de não se exercitar ”, ironicamente, de madrugada, após comer uma colher de doce, sofre um infarto. Morreu nas escadarias do primeiro andar, rente a porta de saída e, degraus acima, rente a porta de meu quarto. Ali, havia me habitado pela primei ira vez a noção de acontecimento.

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Naquela casa em que o tempo era múltiplo e a infância um acontecimento inteiro – algo havia se fragmentado. Ele sempre acreditava que nada ia lhe acontecer. Mas é engraçado, porque a gente sempre acha que as coisas só acontecem com os outros, mas para os outros, os outros somos nós. Na crendice popular, diz-se que a natureza pregou uma triste peça, visto que o filho morreu antes do pai, o que “naturalmente” era para acontecer ao contrário. Eu, porém, naturalmente vi como mais uma ironia do meu pai. No alumbramento dos pensamentos que se entrepostavam em processos, estava cada vez mais enredado em uma densa teia. Sentia a inclinação assídua da morte emanando daquele silêncio, muito embora tenha achado que foi mais a presença do medo, desses de ser derrotado naquele jogo que eu já havia treinado tanto com meu pai... a cara de reprovação... foi esse o acontecimento que me fez perceber


que a vez de jogar era da morte. Tudo parado. Parecia eterno, mesmo sendo isso algo que não nos cabe; palavra oca, naco de solavanco vago. Ousei cautelosamente olhar a face da morte. Mas não há cuidado suficiente a ser tomado quando se olha diretamente para o abismo: a silhueta é paralisante, contudo, familiar! ~Vi a possibilidade da velocidade da decomposição das maçãs ~ a possibili dade infinita do espaço e a possibilidade de sua expansão ~ a possibilidade do movimento ~ vi a possibilidade da matéria ~ vi a possibilidade de haver antimatérias entre as células mortas expulsas na possibilidade como unhas que crescem nos dedos das mãos ~ vi os intervalos do tempo e seu tempo próprio de ser tempo nas coisas enquanto possibilidades nos intervalos ~ vi a possibilidade da sinapse dos vermes nas valas do mundo ~ vi as possibilidades do

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Caos e o ‘sobejo’ do nada ~ vi a palavra Morte se transmutar na palavra Norte ~ na boca se confundir com a palavra Sorte e no quase se transliterar em Corte ~ senti um corte, forte e profundo e um rosto familiar riscado – os meus! {aqueles, malabaristas, dos espelhos} mirando para cima do lugar em que estava, na sombra do pequizeiro. Impulsivamente olhei para cima: vi a exótica flor do pequizeiro se desflorando e os pequis, já frutos maduros, se consumirem nos lapsos das sucessões. Beijei o absurdo, senti a convulsão e o seu sobejo, epifaniei-me na desrazão da vista. Arrebatado ao estado de coisa, desfaleceram-me os sentidos. Descerro os olhos. Vagamente vou retornando. Ainda acho que tudo isso era um canto e que havia me sentido como quem se tornou cego no fechar da vista e mesmo assim viu, em alguma dessas possibilidades, algo que sempre escapa, algo de inaudível no coração das coisas.


Dissipado da penumbra, vi: o tabuleiro estava como quem inicia uma partida. Nenhum resquício de peça deslocada. A morte ainda ali, comigo, debaixo do pequizeiro, imóvel, silenciosamente esboçando um grave sorriso! Lucubrações... ainda ressoam algumas questões que tornam a atravessar o breu das noites como olheiras debaixo desta vista míope: e se as mãos que talharam as peças tivessem se distraído ou mesmo as necessidades mudado o trabalho ou tal qual pior, perdido o Sentido?!? {Eis a dimensão temível da condição de processo} talvez o jogo seria outro, toscamente inimaginável. Mas de todas, de longe, a mais perturbadora dúvida é a compostura, o silencioso riso dessa cortesã de manicômios. Essas dúvidas deletérias me fitam com a vista graúda e a solene presença da morte que tem o intragável peso no espírito dos homens, atravessando identidades, ainda que inconfundível.

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De uma insone certeza ficou certo: o jogo jรก estava ganho;

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S O B R E ALGUMA A L I C E QUE NÃO SOBROU

Badb Catha é cearense, geógrafo, mestre em geologia, e professor universitário desde 2013. Academicamente, desenvolve pesquisa e ações em geoconservação, na região do Cariri. Na literatura se ampara, extravasa. Contémse, sem se conter. Na leitura e na escrita, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-se, respeitandose, e sendo-se fiel em todos os dias de sua vida, até que a morte...

Badb Catha


Ali se foi: A rainha de copas Tantos a cuidavam. Nunca estava só, mas era só. Foi ficando, devagarzinho, desde quando aquilo começou. Não tinha muitas lembranças do início, mas compreendia que antes batalhava muito. O cheiro tentador dos alimentos pedidos pelo corpo era de uma constância.... Havia momentos onde Alice pensava em perder a guerra. Entregar-se e... comer. Mas não! – Gritava por dentro. Ela lutava. Lutou. Fez-se resistência. Até aquela tentação tornar-se um misto de gastura e repugnância. A partir de então, foi fácil vencer. Fácil sair de Alice à R ainha de Copas. E se manter rainha. A gula é um pecado, mas a de Alice coagulara já havia tempos. Era de uma felicidade sádica. Ali(ce). Incapaz de suportar o próprio corpo, sepultada na remissão conquistada diante de um espelho onde a perfeição correspondia ao padrão exclusivo de suas retinas. A lógica pelo

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caos, somente a ela tinha o efeito de liberar a química de rir.

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E agora, logo agora, tantos traidores queriam destroná-la... Não! – Reprimia consigo aquela possibilidade. O orgulho era o maior escudo diante de si. Sempre foi. O orgulho, que eles chamavam de doença. O orgulho. Que ninguém, nem coisa alguma, poderia lhe tirar. Diante de si, só, se afirmava: Sou Alice, a Rainha de Copas. Extraordinariamente magra! – E assim conservou-se. De corpo, e alma.

Ali se vai: No país das maravilhas E eis que Alice cresceu. Timidamente. Travesti das escolhas pós-traumáticas que lhe couberam. Isolante, isolada. Caminhou assim. Até resolver crescer mais. Afinal, se foi inventado merthiolate que não arde, Alice


também poderia deixar de arder. E se reinventar: Chega de Alice jaz! – Do “isolada”, construiu “alada”. E voou. Alice, agora, jazz. Uma Alice experimental, alma improvisada: Por que não? – Transformar todas as tensões em intenções. Todo o tenso em intenso. Permitir-se a viver intensamente. Descobrir-se para cobrir-se. Com vários, e com ninguém. Assim, a chama de Alice acendia mais. Ascendeu. As gargalhadas histéricas às vistas alheias já eram um fato. E fato é prova. Comprovava: Nunca estava sozinha, sempre estava feliz. Porém - e não compreendia isso - era uma alegria triste. Aquilo vinha de um amálgama que corroía e sufocava. Estando sozinha, Alice era ela. Chorava, bebia... “Dry Martírio”. Porém se automedicava, remediava: Ba...tom – com pausa

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para respirar – e lábios vermelhos. (Leia-se, “red label” e tom...ba – sem pausa para cair).

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Alice chorava, Alice cheirava. Pó. “In wonderland”. E cresceu, cresceu mais. Tanto, até dizerem-lhe que “crescer ” era uma doença. Foi quando quiseram tratar de Alice. Mas ela não era um Tratado. Foi quando insistiram em curar Alice. E nisso, muito calor e frio se passou. Até, em um nascer de sol qualquer, ser julgada curada. E Alice admitiu, era o melhor para ela. Em um cantinho de si, guardava: Para eles, estou curada. E estou, de fato. A cura, esse estado de graça de fingir-se sã. Para continuar, Alice voltou. Muito. E diminuiu. Conheceu um moço, teve filhos. Junto a ele, foi so(m)bra até onde pôde. “Até onde pôde” foi o momento onde quis transmutar: Transpor era necessário. E se esse pensamento significava construir novos sentidos, foi preciso afastar-se do marido, e de tudo o mais que,


perto dela, longe estivesse. Em uma noite mais escura, ela sorria pensativa: Arrancaram-me tantos pedaços. E mesmo com tantas divisões, ainda assim sou número inteiro. Serei apenas uma, sendo também várias? – Questionou-se. Alice, Viole(n)ta(da), das cicatrizes visíveis. Da alma ferida, Alice, era qual Sof(r) ia. Do âmago, Alice que Luzia, agora era Maria. Das Dores... e mãe.

Ali se ia: Através do espelho Não recordava se estava dormindo, ou se era apenas algo perto disso. Mas lembrava bem de ter seguido aquele coelho branco esquisito que corria, ágil, carregando um relógio, enquanto parecia lamentar enlouquecido a real possibilidade de um atraso. Dali, foram ex atos onze segundos em queda livre desde o momento

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quando, por descuido, caiu no buraco. E Alice se viu ali, naquele lugar imediatamente indizível.

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Pomares e hortas se destacavam em meio a uma floresta imponente. Um longo rio poderia ser visto surgindo por entre as colinas, desaguando ao longe em um lago que chegava a se confundir em alguns pontos com o horizonte. Alice se encantou pelo brilho incisivo da luz que refletia nas águas. Não era uma luz qualquer. E percebendo isso, olhou ao redor. Viu que o azul do céu era mais azul, o vermelho das flores era mais vermelho. As cores, todas elas, eram mais! As coisas, todas elas, eram mais! Em meio ao campo, onde a grama era mais baixa, Alice percebeu o coelho acomodado próximo a um arbusto. E isso a fez, como em um lampejo, retornar da distração. R apidamente, se deu conta que havia mais personagens. Organizados em círculo, ali estavam um rato bastante inquieto, uma lagarta com cara de


filósofo, um gato estranhamente risonho, e uma lebre tomando chá. Todos escutavam atentamente um velho de chapéu, que se movimentava de modo bastante engraçado e firme para um senhor de idade. Curiosa, a garota quis se aproximar, para saber o assunto daquele encontro tão inusitado. Porém, enquanto se aproximava do grupo percebeu que não era vista. Chegou perto o bastante para tocá-los, e eles reagiam como se apenas uma brisa corresse disseminando poeira, folhas e sementes. Alice também não os compreendia. Falavam em um dialeto desconhecido. Tentou gritar, mas não a escutavam, como se estivessem todos em uma redoma. Ela conseguia interagir com tudo ao redor, menos com aquele recorte de cena. Irrequieta, Alice apenas observava. Por um instante, fitando o gato risonho enquanto tentava entender como o estado

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de riso parecia ser o natural naquele animal, ela lembrou-se da sua gatinha de estimação, e desejou que estivesse por perto. Chegou a sussurrar baixinho: onde estará minha gata.... Nesse momento, o rato pareceu enxergá-la e se assustou, escorregando, e caindo por trás das pedras onde se apoiava. Logo em seguida, desconfiado, ele voltou a posição em que estava. Alice ficou em dúvidas quanto a ter sido vista, mas aquietou-se com o pensamento de ter se enganado a respeito daquela percepção. Cansada de analisar aquilo que não conseguia entender, a menina se espaireceu com o lugar. De costas para todos eles, ela contemplava. Sentia uma doçura como jamais sentira. Uma ternura peculiar – talvez seja a descrição mais adequada. Sentia ainda além... um amor, como se pudesse ver a forma do amor, e tocá-lo. Novamente, o gato risonho – dessa vez como uma imagem mental atravessada no pensamento – a fez lembrar-se da gata de


estimação, com um desejo mais forte de que ela estive bem perto, em seu colo. Respirou, profundamente. E sentiu-se preenchida. Profundamente, respirou. E abruptamente, sentiu-se sem fôlego. A brisa, antes homônima à leveza, se tornara um vento mal. Começou a correr tão forte, que não lhe permitia inspirar. E mais além, parecia lhe sugar todo o ar de dentro, pelas entranhas. Feito o movimento do xadrez onde se derruba o rei, o sol foi engolido por uma nuvem muito escura, uníssona. Mais escura que o escuro que até então conhecia. E aquele estrondo era por dentro. O mal era mais. Quase de imediato, em pânico, Alice buscou resguardar-se no sentimento de que havia companhia. Virou-se institivamente, para ver a reação de tudo o que era vivo àquela situação. Procurava proteção, auxílio, um direcionamento para reagir. Paralisada, notou: todos aqueles que não a viam, nem a ouviam, agora fitavam-na. Todos, sendo vários olhares,

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com um mesmo olhar. Perverso. Um olhar de todos como sendo o de um. Maligno. E foi o chapeleiro quem lhe dirigiu a palavra, sedento de provocar-lhe medo. Ele babava terror. Percebes? Minha menina da pele de lua... Ver o que se come não é o mesmo que comer o que se vê!! – e seguiu um gargalhar escancarado, terrivelmente alto que estourava-lhe os tímpanos. Era como um concerto trítono, até um coro pronunciado por todos fazer dissonar ainda mais. Em um tom que lhe rasgava o coração, misturando uma canção que, quando viva, sua mãe lhe cantava para ninar, com pura angústia, eles entoavam: Brilha, brilha estrelinha... Pisque... Brilha, brilha estrelinha... Pisque! Pisque Alice! Os olhos, estrelinha. É hora de piscar! – isso se repetiu por mais duas, talvez três vezes. Espasmos! E seu estremecer contínuo no colchão seguia um movimento forçoso. Somente dor. Na alma, no corpo. Exalava um suor gelado, e aquilo ardia. Podia sentir cada poro feito uma ferida aberta. E sangrava,


sangrava muito. Com o rosto virado de lado e seu pescoço completamente distendido, viu a sua gatinha deitada na quina de uma cômoda antiga, que normalmente ficava próxima à porta de seu quarto. Mas naquela ocasião, o móvel vedava a porta, escondendo-a pela metade. Alice desejou a morte. Experimentava todo o peso do (i)mundo. No peso daquele homem sobre ela. Sem camisa, calças baixas, velho, forte, gordo, de um fedor insuportável, se fundia ao seu cheiro. Minha estrelinha... estrelinha do papai... assim. As reações de Alice eram nulas, mas sensíveis. Aquilo não terminava, como se estivesse qual condenada no inferno dantesco. E ele se satisfez até onde quis. Machucando-a feito ácido, o líquido quente despejado dentro dela sinalizou o princípio de três penetrações mais agudas, para então parar em um gemido horrendo de uma pessoa só. Esmurrando-a no rosto, sangrou-lhe o rosto inerte, e se afastou. Alice parecia anestesiada, só parecia. Perecia. Ele levantou-se e vestiu de uma vez a cueca

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rasgada juntamente com as calças. Virou-lhe às costas, e em três passos preparou um chute que desferiu no felino. Enfim, empurrou o móvel que bloqueava a porta, cerrando-a por fora. O último som foi o da chave que girou.

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E aqui permaneci, viva. Com defeito, sob efeito. Ao menos me matasse sem me deixar viva. Assim, perder o hímen seria a libertação da alma. O orgasmo – Se dividia, por entre soluços e lágrimas. E chorou mais, baixinho, até dormir... pensando em quem sabe acordar, ao invés de ser acordada, novamente. Nessa noite, Alice tinha 15 anos...


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Nestas pรกginas foram publicados t


trĂŞs poemas a pedido da autora.

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Ricardo Ca [três poemas & três visões] Ricardo Campos Artista Visual e poeta. Integra o movimento Roteiro Poético Boêmio (coletivo promove a sete anos, intervenções, performances e recitais poéticos na noite do cariri). Publicou os contos: “A sombra do invisível” e “Seu Dé” por ocasião do concurso bienal de publicação do SESC Crato, vencedor nas edições de 2009 e 2012. Publicação do livro de Poesias “Laboratório do Caus.” 2013. Nas artes visuais tem 03 exposições individuais e 05 coletivas.


ampos


A moça do ônibus A moça na cadeira da frente Nem percebe meu apelo Que bailando com o vento Logo atrás de seu assento Eu vigio o seu cabelo.

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Nesse ônibus em pedaços Cheio de gente sem sorte Observo sua ternura E o vento que tortura Seu cabelo de chicote. Passa a minha parada Não me importa o trabalho Contemplando o seu pescoço Viajaria sem esforço Até a casa do caralho. Levanta em fim minha musa Desce com sua saia amarela Nem se quer virou o rosto Pra ver escrito o desgosto De um poeta na janela.


Açougue sincero Ela Como comida de graça Churrasco de casa de primo Os preferidos comem primeiro Dentes levianos no seu cupim Para sempre uma fila de copos quentes. O meu amor de sobre coxa O meu amor de titela O meu amor que cozinharia com calma O meu amor que não palitaria seus restos. Ela Servida como buchada De costura sem cuidado As pimentas são apenas cosméticos Os molhos são de sua desova Mastigam com pressa os filhos da puta Meu amor agora, bolor de massa e saliva Minha comida instantânea da China Meu caldo de nervos quentes de aço. Ela Um Fast Food no inferno Ovos prematuros numa chapa analfabeta O meu amor sem maionese O meu amor de mar de micro-ondas

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O combo do amor que frita. Ela Coxinha dourada de asa que voa Costela delicia roída no céu O meu amor é açougue delicado O meu amor é facão de corte sublime O meu amor é sal grosso fino de atenção O meu amor é carvão O meu amor é carvão.

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Lembrança Me esqueces a conta - gotas Pinga a tua vida sem mim Como uma torneira sem dono Que a água chega ao fim Me esqueces como o sono Faz esquecer a labuta Me esqueces como uma puta Esquece uma noite ruim Me esqueces como uma mãe Que não lembra a teimosia De uma filha que fugiu Pra uma festa em qualquer dia Me esqueces como um rato Que viu seu ente morrer E volta pra armadilha Que tanto lhe fez sofrer Me esqueces como um garçom Que não trouxe a bebida Como uma atadura pregada Que mal trata a ferida Me esqueces como uma musica Que muita importância tinha E que agora só escutas Pela casa da vizinha

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Me esqueces como eu esqueço E o mundo todo o faz Esquecer é o passatempo De quem já não ama mais

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Um homem atravessado pela poesia. Esta é uma imagem recorrente na fala de Giordano Bruno sobre sua relação com a palavra poetizada. Uma imagem que evoca a dor e, consequentemente, a busca por uma cura, não a tradicional, que se concentraria no silenciamento da dor. Afinal, nada é tão simples. Muito menos quando ele afirma ser um pintor frustrado e que os desenhos que ilustram sua primeira publicação poética não passam de rabiscos.

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No que se refere à dor de Giordano, ela lhe oferece momentos de potente alegria criativa, em meio à confusão reflexiva que habita sua mente e levam-no adiante na tessitura de si mesmo. Tudo parece fazer parte de um itinerário que ele estabeleceu para si ao compreender que não sairia impune ou incólume de todos aqueles atravessamentos se não lhes fossem dados a devida atenção. Sua primeira obra publicada tem cerca de um ano de lançamento. E, segundo Giordano, pertence a um momento de transição em sua vida, onde o mundo exterior, pautado por um ordenamento das coisas, das pessoas, dos quereres, saberes e haveres, se choca com seu infinito particular, para o qual ele constantemente tem buscado formas novas – e renovadas – de aprender a manejar. O livro, então, começa a se esboçar mais organicamente pelo meio da graduação em filosofia. Suas angústias, receios e compreensões de vida vão desaguar e emergir em “Livro da Incontinências”, o livro do que não se cabe, nas palavras do poeta.

Foto: L


Lino Fly

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De maior latência, nessa época, a crise reviveu essa dimensão da frustração de não ser um pintor. Eu estava muito agoniado. Chegava em casa de madrugada e ia escrever, de cueca, nas paredes do meu quarto, sob uma luz azul. A maior desconstrução que eu tenho operado, talvez, seja a necessidade de externar a mim mesmo. Não no sentido de estar alheio ao mundo. Ao contrário. É de perceber os meus limites para depois ter contato com o mundo, de me cuidar. Isso perpassa as novas escritas e as novas formas que eu escolhi.

Livro das Incontinências, Editora Multifoco (Foto Reprodução)

Na obra, o autor é apresentado a nós sob o nome Giordano de LaMarques. Não, não é um heterônimo, a exemplo de Fernando Pessoa, pois não há despersonalização. Nem poderia ser um pseudônimo, pois Giordano não vê maneira de se esconder do trespasse com que a poesia lhe rasga. O LaMarques poderia ser um homônimo de si mesmo. O que complica ainda mais a questão. Ou não. LaMarques parece ser “apenas” um dos processos da existência – comuns a cada ser humano – a que Giordano se dá.


Eu sou muitos e muitos que aparecem para muitos. (...) A gente gosta de contar muito a vida e a gente está cheio disso, bombardeado de vida, de curriculum vitae, o tudo da vida. E a gente não conta os fracassos, os processos. E mesmo que não houvesse essa necessidade de dar um nome específico a esse processo que gerou a publicação de 2017, o nome de Giordano já chamaria a atenção. Giordano Bruno, o italiano e também filósofo, teve atenção da mídia ao ser associado ao caso do menino do Acre. Giordano Bruno, o cratense atravessado pela poesia, herdou o nome porque seu pai gostou da sonoridade que os dois nomes juntos causavam. Meu pai, como historiador, comprou um livro do filósofo Giordano Bruno. Eu não sei se ele chegou a ler esse livro. Mas ele tem o livro lá. É um livro azul com a capa do Giordano Bruno, ou pelo menos figura como Giordano Bruno. Minha mãe queria colocar só Bruno, ela achava que soava bonito. Só que meu pai insistiu no nome composto. Ele achava mais bonito – essa beleza almejada. É o que você é fadado a herdar sobre a sina do teu nome. Além da genética, o nome. E esse nome que é uma invencionice. E que, na verdade, foi associado ao nome porque as pessoas sempre querem parecer grandes. A gente nunca é associado a coisas pequenas. A história é contada pelos vencedores. Meu pai sempre me contou, desde pequeno, quem era Giordano Bruno. Foi um filósofo queimado pela Santa Inquisição, a dita Santa Inquisição, porque, tanto quanto Copérnico, ele tinha uma percepção de que existem mundos possíveis, que a Terra não

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era única. O que era um chute no saco do egoísmo e da vaidade humanas de acreditar que somos o centro do universo. Então, o Giordano Bruno tem essa associação comigo, tem essa relação que meus pais colocaram. Ao mesmo tempo, pra mim, na experiência, um misto de conflito pelo nome e, ao mesmo tempo, formativa. Esses dias eu estava me perguntado “será que eu não me tornei o que eu me tornei por conta do nome também? Qual a influência que o nome tem?”. A gente, às vezes, quer negar e tem essa percepção romântica da liberdade. É uma coisa da qual eu também tenho me despido. Para mim, hoje em dia, ser livre é reconhecer seus limites. Saber o que são seus limites é saber até que ponto tu pode traçar estratégias para lidar com as coisas do mundo, desde os hábitos até as coisas mais complexas. Ou, de fato, o que é mais complexo, que é conhecer o sentimento, se relacionar. Relacionar-se no sentido mais vasto possível. Encontrei Giordano na praça da sé, em Crato, numa manhã de segunda-feira. A brisa amenizou esse calor de setembro. De todo modo, era bom estar naquele espaço da cidade. As praças se parecem com aquele lugar da nossa casa predileto, onde nos guardamos por alguns instantes, para logo voltar à rotina de afazeres, alguns inexplicáveis, outros inúteis. Esse momento para si, contudo, não deixa de ser atravessado pela vida poética e pela vida ríspida que se juntam no ambiente urbano. Eu gosto muito de flanar pelas praças. Elas são muito potentes de encontros e desencontros. Tem muitas histórias aqui. Pensar, por


exemplo, que a Praça da Sé é um cemitério muito antigo. Imaginar que vários outros tipos de tribos passaram por aqui. Conhecimentos milenares. É algo de reconexão com a imaginação. (...)Em certo ponto, é necessário parar e ser atravessado. Eu gosto muito de vir aqui sem celular porque é um tempo em que você é atravessado por sons e escuta a cidade. Contrasta com isso, o tempo das árvores. Não tem tempo mais revolucionário do que o tempo das árvores, o tempo da grama em relação à velocidade dos automóveis, a velocidade dos para-brisas dos olhos das pessoas que passam só limpando a vista. “Eu quero ver”, “eu quero não ver”, “eu quero ver”, “eu quero não ver”. Estar na praça, escondido como quando nos encontramos, é também um desses momentos mediados pelo voz poética que ressoa nele, em alguns momentos, com dicção filosófica; em outros, apenas interrogação; em outros ainda, como contemplação. Nada na vida é gratuito. Eu me sento na praça e não é somente um exercício imaginativo de estar conversando com os índios Kariris, obviamente num contexto anacrônico. Por que não dizer que é isso a literatura? Um anacronismos dos raciocínios lógicos. Giordano é um filósofo poeta. Ou melhor, um poeta filósofo, pois a poesia sempre terá a primazia das coisas, seja na criação, seja no conhecimento reflexivo, um legado emprestado à filosofia pelos poetas. Obviamente, alguém mais apressado veria alguma pretensão

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nesse modo de interpretar. Contudo, a poesia jamais se deu à Verdade como a filosofia, pois, na experienciação de poetas – crianças e loucos também, ensinamento de Quintana – a verddae não é absoluta e, com certeza, é passageira. Não obstante, filosofia é coisa fácil na boca e na língua de Giordano. Um conhecimento que circunda, que se esgueira, que se mete de permeio em seus escritos.

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Realmente, eu acredito que tem um vínculo direto. Pensar através da imagem. (...) As duas tem a mesma matéria de trabalho. A filosofia pretende a Verdade e a poesia não. Não essa Verdade necessariamente. Uma outra verdade. Ela diz verdades. Se a pretendesse, talvez fosse outra coisa, não poesia. Desconfio inclusive daqueles que, na poesia, pretendem dizer a Verdade. A verdade não é dita só em uma forma. É dita em muitas formas. A gente consegue acesso a ela de formas inimagináveis. Mas eu acredito que a verdade possa ser o almejar dos poetas enquanto delirosos. A diplomação como filósofo ocorreu em 2014, pela Universidade Federal do Cariri, UFCA. A escolha pela formação acadêmica é ontologicamente poética. No autor, os pensamentos se arquitetam sutilmente através de imagens. Então, a filosofia – conhecimento que dá terreno ao surgimento das ciências naturais – chegou e deu potência a essa inclinação criativa, questionando-a a todo instante. Um momento de interlocução entre duas forças concorrentes, mas não discordantes. Aos treze anos de idade perguntar: quem eu sou. A pergunta


básica que eu escutei de uma criança, meu primo, se tocando do espelho e perguntando “quem eu sou?” Os tempos de universidade também serviram às novas invenções de Giordano, retirando o texto de seu descanso no papel, por meio dos saraus de poesias organizados com outros colegas. Um movimento de circulação cultural que se mantém ainda hoje nos ambientes acadêmicos. Essas experimentações vão sedimentando um terreno onde, para ele, o performar poético se tornaria uma nova forma de expressão. Um corporificação do escrito poetizado. Uma representação física de atravessamentos. Desse instante de outras descobertas – e do reconhecimento da potência criativa de outros nomes da região – é que se estabelece um contato maior com o Cariri. Embora se diga um cosmopolita, é para cá que Giordano sempre retorna, seu lugar de pouso, não, necessariamente de repouso. Aqui o contato da voz antiga, da ancestralidade se pôs em amalgama com outras vozes contemporâneas, nascidas e que se perfazem nesse esteio criativo que permeia as terras dos Kariris. Realmente eu tenho um contato muito forte com o Cariri, não necessariamente por ter nascido aqui, mas porque aqui eu encontrei muita potência, muita corporalidade potente de poética e de escritores literatos, desde o Cláudio Reis ao Ricardo Campos, muita gente. (...) Eu acho que o contato foi esse de fricção, do corpo a corpo, do tato, da tensão. Meu maior momento enquanto formação

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de indivíduo poético foi devedor ao pessoal aqui do Cariri, com o Roteiro Poético Boêmio, antigamente era Conexões Poéticas, feitas pelo Cláudio Reis e Edson Xavier e Claudia Rejane. Esse era um contato ao qual eu nunca tinha tido. Eu tinha visto no ano anterior, esboçado certos aspectos de fanzine e dessas experiências literárias com meus colegas de curso. E a gente esboçava essa experiência literária. Começava a ter essa ânsia literária. Quando eu tive esse contato com o pessoal daqui, no calçadão aqui do Crato, o pessoal no bar, declamando poesia, uma luz verde, o Daniel Batata e o Ythalo, com um sintetizador falando poesia. Aquilo foi... A cidade se abriu! Brotou pra mim uma cadência, um laivo ensandecido das mariposas noturnas desses poetas. Esse contato só foi se fortalecendo. Realmente o sentimento com a poesia, desde o início, e ainda é, estranho. 84

Um sentimento estranho ilustrado pelo flerte entre loucura e imaginação, ambas unidas para dar conta do caos que é viver. E nos carrega resoluta para os seus territórios. A poesia é estranha. Vive o contrário do que se espera, do que se foi estabelecido. Sempre se dará como porta voz das inquietações de quem a escreve de quem a lê, sem deixar de demarcar o próprio espaço, amalgamando criador e criatura – para Giordano uma tríplice aliança entre obra, autor e leitor. A poesia não é minha. Ela é o que é para você. Em estado latente de incontinência por não poder suster aquilo que guarda. Mas, que em tempos de manifestas repressões


contra o que estava oprimido, não pode se curvar. Não é apenas não conter diante de si mesmo, é não ser capaz de se conter ao mundo. É preciso você ser atravessado por uma certa experiência que te faça sair do medo de lidar com a poesia. E lidar com poesia precisa de um pouco de flerte com a loucura. É uma forma de compreender o mundo um tanto diferente. Talvez o poeta esteja mais próximo desse momento original do que outros. Obviamente, eu estou sendo bem pretencioso. Somos uns deslocados. A poesia não está dissociada de um momento, de um corpo. Esse corpo que é produzido nessa escrita que a atravessa, que é dita. Embora seja eu, não sou eu mais. Ao mesmo tempo que a gente é, deixa de ser. A experiência é vivida num corpo biológico. A gente costuma dizer “sou eu”, mas não é. Se até as unhas crescem e são células mortas, porque o nosso ser do sujeito não muda? Essa morte continuada também é nossa transformação. É uma percepção de vida para a qual é preciso tempo, um tempo diferente desse cronológico, dos relógios, que é o tempo virtual, das informáticas. Está faltando imaginar. Estão muito na invencionice, nas inovações tecnológicas e todo aparato da técnica que esquecem de fato essa origem, uma origem vinculada não só a esse tempo cronológico, do horário marcado, de tudo cronometrado. Dizendo-se um pintor frustrado, Giordano, graficamente, põe em sua poesia muito essa questão do desenho e, por consequência, da ação. Movimentar os olhos para agitar o anima particular. As poesias contidas no livro tem um movimento que não é acompanhado apenas da esquerda para a direita. Dos movimentos costumeiros se

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partem para a palavra feita em espiral – como no poema “Cabeça de Nuvem” – extrapolando os limites conceituais que separam palavra e imagem. Um recurso muito simples e que se repete ao longo da publicação como uma lição que deve sempre ser revisitada. Num outro poema, “No meio, as margens”, a palavra “eternamente” é posta com suas letras uma sobre a outra até que se forme às vistas do leitor que, para decodificá-la resgata o aprendizado primeiro, soletrar para ler, soletrar para compreender. Muitos recursos imagéticos são convocados aqui, a passagem de tempo – o tempo, essa entidade poderosa assustadora e alentadora na mesma medida – a visualidade que sua passagem expõe. O desenho da palavra, não o gráfico, mas a forma – e o conteúdo – que ela deverá assumir no papel. O espaço que a palavra toma para si no papel que dá efeito visual a essa passagem de tempo e a sua cadência. Representar o tempo graficamente dentro da poesia cria um paradoxo com a pressa com que se vive. Isso parece afastar a poesia da realidade, como se suas invenções já não fossem suficientes para nos deslocar de um modo programado de encarar o mundo que nos cerca. Não, não é que a poesia se ausente da realidade. A poesia se dá às invenções. A realidade, à distorção. Existe uma pressa muito grande, não em direção a algo. É a velocidade em função de si mesma, transformada em um bem da cultura capitalista, organizando o caos. A poesia não está deslocada de um corpo, por isso ela também não pode ser entendida como apenas abstração de um ser. Uma das chaves que serve para abrir seus espaços se encontra no tempo, um tempo abstrato experimentado e experienciado no tempo cronológico.


Quando vem “eternamente”, ela tem uma pausa fonética, um peso, a cadência da palavra sendo dita. É muito potente. Talvez seja o espaço para que o tempo da eternidade se eternizar ali. A gente tem a separação de tempo e espaço, mas é meramente ilustrativa também. As palavras ressoam e precisam de um determinado tempo, como as coisas do mundo. A planta que nasce, ela demora para brotar da semente e a gente também, para brotar. Inclusive essa experiência poética de leitor, né. A experimentação do corpo poético – porque é um corpo também –, na medida em que você lê, você não é só leitor, você escreve o livro. O livro está sempre se reapresentando. A obra se apresenta e se reapresenta. No trabalho artesanal. Trabalho original. Manual e com técnica, que se aprende e que, no entanto, não pode ser ensinado. Talvez, compartilhado. Cabe a cada um, individualmente, encontrar seu método de viver e de passar pelos próprios atravessamentos. As palavras se desgastam com o tempo. A gente deixa de usá-las porque, de fato, elas se desgastam. Então, a materialidade da palavra está exatamente nessa visão de um brinquedo quebrado na poesia. Realmente, trabalhar com a palavra, na poesia, é trabalhar com um brinquedo quebrado. Você precisa ainda tentar almejar um estado original e desse estado original, perceber que há muitas formas possíveis de colocar. E o choro sempre é o liame, é o lírico. A poesia escrita, na imagem, é muito vivaz no que diz respeito a se atravessar por mim. Afinal de contas, eu digo que a poesia é um atravessamento.

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Como eu estou entendendo agora, a poesia, a escrita, os afetos em geral são um atravessamento. É algo no qual eu retomo a potente relação com a filosofia. A palavra não contém toda a potência do que se precisa dizer. Num poema, as escrevinhações do sentido são mais potentes, pois o leitor é a voz que amplia e dá potência ao canto, não do poeta, mas da poesia. Um reverberamento incapaz de ser medido, visto que ele se expande a cada nova leitura, reprisada ou inédita. A experimentação – ou repetição reelaborada por vivências tantas – do êxtase.

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A poesia de fato não é minha. A poesia [reunida em livro] é uma obra orgânica. Na medida em que a obra nasce, ela já é orgânica. É como ela é para você. (...) Talvez, o que eu me tornei nessa relação com a poesia seja esse encontro. É sempre o encontro. O encontro que é não necessariamente o contato, mas o desencontro, de não entender a poesia. Hoje em dia, eu pendo demais, e já tentei duas vezes entrar pra ler o mundo do Guimarães Rosa, o “Grande Sertão: Veredas”, e não consigo. “Dom Quixote”? Talvez pela edição ser um pouco mais antiga, o “Dom Quixote”, do Cervantes, a linguagem. Eu começo a ler e daí travo porque tem percepções, isso do ponto de vista romanesco. Às vezes, o contato com isso que a gente desconhece seja o que dá mais potência. Nossas frustrações sejam aquilo que dão nossa potência de criar, a dissuadir-nos desse tempo cronológico, esse tempo do celular, esse tempo das coisas. É esse baque. Essa experiência irreversível. Esse atravessamento irreversível que é a experiência, e tem sido, pelo menos, a poética. Poética eu digo, não


necessariamente, do gênero poesia, mas o poético do sentido do olhar. E reflexivo também. É no sentido da busca que, nas entrelinhas, Giordano se põe a caminho. Uma busca que não almeja a salvação, mas o livramento. Eu vejo a salvação como uma operação de prisão. A gente está tentando se salvar de alguma coisa. Quando eu me pergunto “do que é que a gente está tentando se salvar?”. No caso da poesia, a gente está tentando se livrar do quê? Da angústia da poesia. Quando você escreve, você tenta se livrar da angústia. No sentido da salvação, não na perspectiva pessimista, ao contrário, uma perspectiva, talvez, vitalista. Eu vejo a não salvação como potência de criação. Eu, particularmente, enquanto indivíduo, não dissocio esse trajeto que eu faço da escrita, ou do que me atravessa na escrita, com o que me atravessa no ato de filosofar. Todo o esboço desenhado em “Livro das Incontinências” passeia por noções dessa necessidade de reconhecimento, de si, do outro, do mundo e novamente de si, a partir do que esses contatos proporcionaram. São significâncias que repousam numa fenda profunda enquanto aguardam o momento de serem reveladas. A sensação do atravessamento marca esse instante, da premência de partir, mas, ao mesmo tempo de ficar, de mergulhar incontáveis vezes no desconhecido que habita em nós. Um movimento circular e cíclico. Vir à superfície para ver o que há, sem, todavia, se abster da própria bagagem. Um retorno que não pode ser alijado do desejo

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de sair. Um constante retornar a si mesmo para poder oferecer algo que assusta, mas é belo. É encontrar uma nova forma de lidar com o mundo, lidar com o caos e lidar com a ordem. A presença disso que está intimamente guardado vai deixando pistas ao longo da obra. O uso de vocábulos como “interdito”, “casular”, “insignificado”, que vão se intercalando com construções vocabulares mais sofisticadas, alguns neologismos, na tentativa de dar corpo ao que não tem forma ainda. “Pensentir”, “escrevento”, “entreboca”. Os espírito sempre em busca de saída, vazando por entre as palavras, por entre os espaços causados pelos atritos, rasgadas quando friccionamos umas nas outras. Cicatrizadas ao se darem conta do que podem suportar em meio às suas limitações. Sentimentos arquitetados por pensamentos. Pensamentos arquitetados por sentimentos. São marcas formais que constroem conteúdos e ajudam na visualização da imagem quase que intuitivamente. O lado de cá e o lado de lá são demarcados e misturados em delírios e epifanias. Negação e confissão em torno da forma ideal, ainda que inconstante. Tenho amigos da filosofia, assim como eu tenho amigos da poesia. De fato, o que eu sei é que estou em eterno conflito sobre a identidade, sobre o que eu sou. A identidade sobre quem eu sou. É a grande pergunta. Um neologismo como “pensentir” é uma palavra que pretende, antes de mais nada, não dividir ou não partir da dimensão divisória de mundo, entre pensar e sentir, entre o pensamento e a ação e o sentimento. Ou, como a nuvem. Nuvejou. É um verbo. Nuvejar. Nuvejar é estar num estado de nuvem. Esse estado que é e não é, tem forma e não tem forma. Microscopicamente,


você não consegue separar as partículas da forma da nuvem. Mas, ao mesmo tempo, você consegue ver a certa distância perceber por onde as coisas se formam e se desformam. Hoje em dia, eu me vejo mais, inclusive na filosofia, eu me vejo mais como uma ameba que se estica, aí volta. E a forma fica se desfazendo, mas é um tornado em si. Reconhecer esses limites é uma extensão. A posteridade pra mim é essa. É conversar com você e saber que, num tempo cadenciado, estamos fazendo alguma coisa, mesmo que o esquecimento seja, talvez, o dom mais forte da vida. Do tempo. A gente tenta preservar, a qualquer custo, as coisas, mas a gente sabe – sabe, mas não quer saber – que as coisas estão mudando a todo tempo. Outro recurso recorrente na obra é o uso do ponto e vírgula, tanto em sua forma escrita quanto gráfica. O sinal corresponde a um momento intermediário na escrita. Gramaticalmente, unem os atributos que lhes identificam – a vírgula simboliza uma pausa ligeira entre períodos frasais encadeados; o ponto final determina a máxima pausa no texto – para gerar um outro símbolo, uma marcação diretamente ligada ao que foi dito antes. A negação temporária do fim. Tudo que é escrito neste livro, talvez, não tenha tanta importância quanto esse símbolo, o ponto e vírgula. É tanto que ele inicia e termina o livro. Ponto e vírgula é o anúncio, o prenúncio e, ao mesmo tempo, confissão, não no sentido necessariamente religioso, mas a confissão da procura por estilo. Eu nunca li Clarice Lispector, de fato. Isso eu deixo confesso. Me contaram de como ela começou a

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escrever em certo texto com uma vírgula. Isso me labutou na cabeça por tanto tempo. Como eu, advindo das gramaticais estruturas colegiais e das estruturas formais da literatura, compreenderia um texto começando com vírgula e letra minúscula? A vírgula é como se fosse uma pausa, como se algo já tivesse começado. E isso teve uma potência tão forte, simbolicamente, só que eu vi que não era suficiente. Sempre me incomodei com a poesia do Drummond, que é tão citada e gostada pelas pessoas. “No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho”. Me incomodou demais. Como é que pode haver uma pedra no meio do caminho se o caminho todo é maior do que a pedra? E o que é essa pedra para essa pessoa, esse eu lírico, que tem uma pedra no caminho e que se fixou na pedra no caminho? Na literatura, na escrita, pra mim era o ponto. Eu nunca me dei bem com o ponto final. A própria ideia do ponto como final já é pra mim algo absurdo. Não por reconhecer uma eternidade, de querer uma eternidade, de almejar uma eternidade. Não. Mas por ter uma visão de que a vida é sempre um devir, um rio que corre, é a terceira margem do rio, como diz o Guimarães Rosa. Independente da pedra, a vida sempre está correndo. Independente do ponto, a literatura corre e tem muitos sentidos. E eu sempre me incomodei tanto com o ponto quanto com a vírgula, que eu acreditava que, realmente, era uma continuação, mas não era suficiente pra dizer que certos momentos da vida tem uma instância que se fecha. Se fecha em que sentido? Minha mãe costuma dizer em ciclos, “a vida é feita por ciclos”. No texto, aquele momento que a gente sabe que o texto acaba, que não tem mais nada a ser dito. Como um livro que você precisa parar. Por sermos limitados, chega um momento


que trava. As coisas travam no ponto de vista mecânico e do ponto de vista subjetivo. Uma roda de bicicleta ela acaba por travar. Em determinado momento, ela desgastou ou aconteceu alguma coisa nela ou ela mesmo resolveu que não quer mais. (...) Essa percepção do ponto e vírgula é a de que nem a vírgula é suficiente nem o ponto é suficiente. Suficiente pra quê? Pra essa busca de estilo, o estilo que sempre me é angustiante. (...) O ponto e vírgula é uma coisa que não se cabe, que, ao mesmo tempo, é a filosofia e a poesia, que nenhuma é suficiente para mim enquanto experiência de indivíduo no mundo, esse tempo próprio de ser. A vírgula não é suficiente porque, de fato, eu consigo perceber que as coisas sempre estão caminhando. Eu nasci com o mundo caminhando. A gente nasceu com tudo caminhando. Mas o ponto não é suficiente como ponto final. As coisas não acabam a não ser para um determinado indivíduo, em determinada instância. Mesmo quando toda vida humano tiver sido varrida da terra, a vida continua. A vida perpassa onde a gente menos imagina. Ponto e vírgula é esse cai não cai. É um frevo. É essa coisa de acaba, não acaba, acaba, não acaba. Ponto e vírgula, na gramática, é uma sentença que vai acabar. Depois do ponto e vírgula, você bota a frase final e o ponto final. Mas não acaba. Só acaba quando eu morrer. Isto é, pra minha experiência enquanto indivíduo, experiência biológica. Eu sou um mero fragmento desse mundo, quase nada, insignificante, do ponto de vista global. Do ponto de vista de significância, do que me traz alegria, é isso. Dessa reflexão sobre identidade e tudo o que o conhecimento de si carrega é que o “Livro das Incontinências” vai deixando em

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Giordano, abrindo outros caminhos poéticos e filosóficos. Já não é a mais a busca por uma identidade, mas a criação de outras personas, de outras formas de ser, que serão transpostas formalmente para o fazer poético, oferecendo ao fazer filosófico o que lhe falta. Uma tentativa de dar rumo ao que se acumula dentro do poeta.

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Agora parte da criação da identidade, da criação dessa forma que, ao mesmo tempo, é similar, que conversa com o mundo, mas, ao mesmo tempo, não se confunde a tal ponto de ser algo comum. É o vulgo, como diz o Deleuze, “repetir, repetir, até se diferenciar”. Manuel de Barros também fala isso, talvez, mais eximiamente que o Deleuze. A imagem é mais potente. O conceito, às vezes, carece muito de imagem. O conceito filosófico carece muito de imagem. Às vezes, ele é muito bruto, por mais que ele seja polido. Esse aspecto dionisíaco do conceito filosófico e, ao mesmo tempo, que é implícito e apolíneo. Apolo e Dionísio. Apolo dito como deus da razão, da claridade. E Dionísio como obscuro, como o deus do vinho, da embriaguez. Tanto a poesia é um Dionísio explícito, mas numa tentativa apolínea de fazer a forma a isso tudo que é desvario, a tudo isso que é epifania, a tudo isso que é lírico. Um equilíbrio sutil, frágil, inconstante, incontinente na poesia do que está por dentro que exige empenho, ainda que doloroso. Saberes concomitantes que arrancam os para quedas do pensar, que gaguejam ao tentar soltar as línguas, que refletem sobre o que pensam e como pensam, sobre o que sentem e como sentem. Atravessamse, perdem-se, resgatam-se sob nova face que Giordano Bruno tenta


imprimir no papel, em suas performances poéticas e em como dá andamento a sua existência. A gente não pode ser repetido, não enquanto experiência de mundo. As pessoas conseguem se similar. Mas, como experiências de mundo, você pode me narrar toda a estrutura de um morcego. Mas, tu não pode me dizer da experiência subjetiva do que é ser um morcego, especificamente, um tipo de morcego. Em nenhuma época, em nenhuma outra era, haverá repetição do que nós somos. Soa como algo triste se a gente levar do ponto de vista de nossa finitude ser algo pesaroso. Mas, ao mesmo tempo, é muito alegre, porque cada coisa que a gente faz, cada palavra que a gente diz, cada pensamento que a gente perde, é uma existência singular. E só nessas perdições de esquecimento é que a gente tem essa noção importante da vida. De fato, a gente estuda demais, a gente quer ser o máximo, a gente quer ser o gênio. (...) A vida é muito rara. As pessoas acreditam que a vida se resume a certas percepções de mundo. Meu avô tem Alzheimer. Não é mais quem ele era. Eu não o conheço, nem ele me conhece. Somos dois estranhos mas, ao mesmo tempo, tão familiares quando a gente se encontra no riso. É necessário lidar com essa dimensão dolorosa, que as pessoas não entendem. Ao mesmo tempo, é gostosa porque a gente sabe que cada momento é único. Infelizmente, a vida me fez muito sensível. A vida fez todo mundo sensível. Isso de dizer que existem pessoas que não são sensíveis, que não pensam é muita ignorância. Isso é muita bobagem. Todo mundo pensa, todo mundo sente, de formas diferentes só. As pessoas só não querem contemplar o caos. Minha forma de lidar com o mundo é apertando

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a ferida. Onde me dói mais, é onde eu mais toco. Eu digo que eu sou um nervo exposto, transposto na imagem de mim, mudo, como alguém que tem algo a dizer, mesmo que sejam só travessias. É isso: eu sou um nervo exposto, latente. Ora dói, ora estou inerte. Mas estou vivo, pelo menos.

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Esta obra foi editada em Adobe InDesign CC 2018


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