miramargem / álvaro alencar / lab_artes_híbridas

Page 1







para minha mĂŁe, nascente para klarisse viana, correnteza



Aqui está; mira. Federico García Lorca

brincar com fronteiras é prazer genuinamente humano Flávio Cafiero

todo lugar faz pensar que somos de todo lugar Geraldo Urano



a especialidade da casa ĂŠ a anatomia dos desastres depois de dado o soco o corpo o pouco que revira entranhas e produz miragens ex. a reviravolta das cenas o verso livre o grande amor


na sarรงa sativa deus habita na erva psicoativa


até que venha o rio é só viagem e na estrada se camufla o mais das faces como se, secreto, o rio se desdobrasse em mil imagens, e num estalo, narciso acordasse, como se dum sonho houvesse adoecido e fosse ainda vesgo, míope e partido


p/ alderick na hora anunciada cairão os muros na presença do rei onde tudo se curva saberemos todos que é hora quando os tijolos voarem contra a fria face de saturno o rei virá de juba armada, virá, como quem sabe que saber é iniquidade mas insiste, ele sabe que no olhar há tudo


não te digo por um nome, prefiro que fique impune, pois de que serve o nome se hå mais coisas que pronomes — mas chamar-lhes ainda que por um nome, ainda que sem os pronomes, mas chamar-lhes, como se fosse fome


ficar no escuro não é evitar os espelhos mas com muita calma encará-los por ângulos vários, no menor detalhe — o amor reside no mínimo de falhas já sabidas beijadas e mordids e não, não insista, sossega coração de ilhas e persista no menor, no único conjunto de amabilidades e se refaça tanto no amor como na morte para assim saber-se vida



soneto

i

caminhei por noites inteiras entre homens de real candura, fui escura, poeta primeira entre todos daquela feitura ao sol me fiz marinheira, atriz de tamanha loucura, me fiz mínimo grão de poeira em águas de enorme fundura entre os puros também fui sozinha detestando qualquer censura, que pureza não me é rainha nem lascívia minha estrutura, era débil minha voz mesquinha, mas sincera — uma alegria dura


considerações sobre o mesmo e laborioso trabalho: a aranha arranha o jarro arranha a superfície táctil da fina face da vítima presa no enleado do ato a aranha arranha a superfície neutra do cárcere culpado mais e mais táctil transposto à condição de condenado


homens imprudentemente poÊticos p/ regiane collares a fera de itaro aferrada junto ao peito era o medo, intacta sob pedras, sob o nada dissipada. a fera era itaro e era o medo itaro inteiro e em partes tambÊm o oleiro em pura mågoa, toda a aldeia o era e o poço que sonhava em claro escuro, em sombra armada.


poética poesia é fome entre coisa e nome poeta ousa entre nome e coisa — pássaro, que sem interromper o voo, pousa


nada na palavra que digo silĂŞncio puro onde durmo e repito nada na margem do sentido nĂŁo digo palavra mas um rito feito de ĂĄguas onde dissolvo o batismo e nado submerso no corpo que habito


narciso olhar antes pro olhar de medusa, que arfar defronte si, sabendo-se intrusa —lutar e lutar até que se desmanche toda fonte —migrar inteiro pro olhar tornado em pedra para o sangue, agora mar e arfar antes que se perceba a impressão do corte, antes que se coloque descrição sob a imagem e saibamos todos o quão distante é o homem do seu retrato.





ponte um pé depois do outro — de madeira a aço o sapado, onde refaço o estado suspenso sobre o fluxo dos p a s

s

o

s


como voltar se já não há floreio na estrada

se já não há casa ou copo com água ou sede mesmo

como voltar se a estrada já se fechou já se moveu já é outra e qual o sentido de andar se não for adiante alimentando o tempo com nossa carne e nosso sangue

esboço para ponte


* * *

diz que do lado de lá do rio é que não se pode voltar

diz que é pra frente lá no desejo rio turvo rio ligeiro rio faminto que apressa o passo além dos portos

pra que voltar se não pra cumprimentar fantasmas e ouvir miasmas esmorecidos


m a r g e m *

* Toda palavra é um pequeno deserto, sem limites. À mercê de um olhar descuidado em proximidade do desastre que umidifica ou se desfaz em arenosos seres. Arriscar poesia é percorrer antes a distância até o fim. Sem mais, sem menos. Para tudo ao redor, rodar o pé.


mirar como quem com os pĂŠs enxerga as ĂĄguas mirar deste lado outra paisagem que, sendo imagem nĂŁo passa de miragem e no ar, como no mar sendo poema e imagem mirar noutro lugar uma terceira margem


ii

atravessar inteiro o tejo sem barca ou remo com os braços em nado extremo atravÊs do mesmo de um lado a outro seguir reto sem margem de erro


iii

imaginar a margem como barco em alto mar sempre no meio da viagem sendo ela a tempestade


idílio azul ii inflar até que estoure em dissonância o mar inteiro céu onde se esconde o que se ama e em ânsia remontar o combinado ds distâncias e arfar no azul que sendo corte também é lâmina



bibliรณfilo p/jorge nogueira livre o livro que leva consigo, livre a palavra de gozo, de casa, como caรงa a palavra ou parole, se extrema eterniza o laรงo, que calado significa mais e mais que palavra



polimérico p/ gabriel lucena do pouco que sei do pouco que sabe no pouco o oco da res macro molecular onde ouço polivocal o sentido novo e inato, abarco com os braços num abraço plástico e engenhoso o que era pra ser sempre e de novo


p/ daniel viana em vĂ´o os navios rolam da marĂŠ o oceano guarda pensamentos encalhados


p/ renato ferreira



***


“Sou o que não sei, o que vai ficar calado”*

Há de se ter sempre uma margem no mundo cortada por uma travessia. Nada se sabe da margem além da imagem cavada nos sulcos de nossas peles. Nada se sabe, também, da travessia, além do duplo do atravessamento: desejo-risco. Imaginar o pós-margem produz o potencial da presença naquela que atravessa, naquela que cruzando o entre-espaço mira o que tão logo se dissolve. O ruir das intenções é que as ações jamais se revelam nos destinos imaginados. Assim, Álvaro Alencar nos confronta com sua palavra poética sempre à beira dos estilhaços de “mil imagens” que se desdobram sobre si formando constelações. Sobretudo, tensiona a linguagem com a potência do saber que não há vitória, muito menos chegada, pois a palavra poética está sempre ao meio e, por isso mesmo, Álvaro escreve um desacordo sublime que fornece a irregularidade da forma que não nos informa, mas inventa correntezas. * Excerto do conto A terceira margem, in.: Primeiras Estórias (Guimarães Rosa). Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1988.


Se é preciso nomear há aí carência e desejo por um excesso de terra que nos assente sob o juízo de deus para que regulada a vida, façamos claro o que por desejo se fez escuro. Mas, se o trabalho da escrita é infinito e corrente “de que serve um nome/ se há mais coisas/ que pronomes”? O que pode a palavra, quando a leitura de miramargem excede o espaço e nos faz experimentar a distância através de uma estranha sensibilidade? Por isso, a leitura de miramargem uma vez experimentada se transforma sempre na primeira. Código indecifrável. Fracasso comemorável. Travessia sem chegada. Extremidade sem corpo. Àquelas desavisadas, portadoras da bravura da percepção, um aviso: pelo seu caráter único e múltiplo, cada poema aqui consiste em uma obra que ao se fazer presença, nos convida a “mirar/ como quem/ com os pés/ enxerga as águas”. Há sempre uma violência em cada verso, uma força que nos coloca famintas frente à própria possibilidade de criação, de furtar das imagens dispostas qualquer abismo que nos queira o corpo. Miramargem é corpóreo, ainda que seus signos não representem apenas a matéria. É uma anti-


substância corruptível das imagens que tanto assentamos para pensar a forma literária. Álvaro, dessa forma, liquefaz a solidez ao renegar o sossego e transbordar às indocilidades desrespeitosas das profilaxias da literatura asséptica. É o mundo o seu arquivo e ele põe em evidência o quão saturados de realidades estamos. Miramargem não se esquiva de nada, mas as inventa sob o signo da arte. E, assim, quem o lê produz na própria encarnação a navalha azul da poesia.

Kauan Almeida** Porto Alegre, Setembro/2019

** Poeta. Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu/UFRGS). Mestre em Ensino e Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia (PPGER/UFSB). Bacharel em Fisioterapia pelas Faculdades Integradas do Extremo Sul da Bahia (UNECE). Licenciando em Interdisciplinaridade em Artes e suas Tecnologias (UFSB). Integrante do Grupo de Pesquisa em Linguagens, Poder e Contemporaneidade (GELPOC/IFBA) e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB/UFSB).


Conheci o poeta Álvaro Alencar nos corredores hospitalares do campus Juazeiro da Universidade Federal do Cariri. Aluno de Filosofia, carregava sempre algum livro de poesia e algumas doses de necessárias acidez, loucura e beleza. Vivendo num período de autoritarismo e nessa distopia que se volta contra todos os batimentos do desejo, no embate de formas de vida Álvaro busca na poesia seu refúgio e sua resistência. posfácio

Miramargem traz não só uma coletânea de poesias, mas imagens belíssimas produzidas por Álvaro o que dá a dimensão de um artista plural e multifacetado. Algumas das poesias são escritas com dedicatórias a pessoas queridas o que nos remete ao cartão postal próximo do sentido que nos deu o filósofo francês Jacques Derrida. A poesia de Álvaro é sobretudo uma poesia de imagens e sentidos fluídos que ocupam entrelugares e fogem dos enquadramentos dialéticos fáceis, das sistematizações e categorizações acadêmicas. Há muito de poesia concreta flutuando nos espaços da página em branco fugindo da diagramação de colunas jornalísticas, mas seria reducionismo limitante enquadrá-


la como concreta ou marginal. Alguém que foge para as margens porque nas margens se experimenta melhor isso que temos uma vaga noção que seja a liberdade. Uma poesia que nos convida a pensar a margem. No pequeno deserto sem limites que é a palavra – alusão a uma das poesias presentes no livro – no livro de Álvaro afeto e lâmina são palavras que não se excluem. Luís Celestino de França Júnior* Juazeiro do Norte, Setembro/2019

* Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (2000), Mestre em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2006) e Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará. Atualmente é vice-diretor do Instituto Interdisciplinar Sociedade Cultura e Artes (IISCA) da UFCA. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia.


poemas e ilustrações © Álvaro Alencar organização lab_artes_híbridas _Bárbara Maria de Alencar Granja _Ricardo Rigaud Salmito _Thamyres de Souza Fernandes edição © oficina editorial revisão _Gabriel Lucena de Oliveira textos adicionais _Ricardo Rigaud Salmito p.30 _Kauan Santos Almeida p.43 _Luís Celestino de França Júnior p.46

Alencar, Álvaro MIRAMARGEM / Álvaro Alencar. Juazeiro do Norte : Oficina Editorial, 2019. p. 48. 1. Poesia Brasileira

Edição Virtual Juazeiro do Norte, dois mil e dezenove.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.