Elã

Page 1

รกlvaro alencar



se é a mim que procura dá meia volta que pros teus olhos sou estreita e obscura. que caminhos busca? resta resignar-te, pois sou todos. a estrada é uma e outra e delineia minha envergadura. sou também nenhum caminho, vereda escura. não cometa o equívoco de tomar-me por nobre, pois em mim dormem poças e pedras. ouve minha voz que assobia agouro como cadela possessa no cio, ganidos tão áridos quanto tua verborragia rouca. em mim tua aritmética verbal se avoluma e despenca, nem belo nem feio, mas absurdo petardo que condena tua parca torre. de que te servirão tuas gentes escravizadas? teus palácios gélidos, sisudos, de cristal? põe feições nos teus ídolos e deixa-os minguar cá comigo. não desconfio do teu silêncio quando caminha por minhas veias, reconheço teu sangue sorumbático. assemelha-se as pedras quando tocadas pela visão do halley desgraçado. por acaso é medo que o possui, do mínimo olhar fundador de salinas? toma-me então por ponte que atravessa o instante. se é a mim que procura dá meia volta... mas não há retorno possível nem direção de saída. encontrando-me precisa da chave, mas nunca houve uma!. porém, imaginemos que a porta está entreaberta, imaginemos ainda que ela o houvesse requisitado em sonhos e, ouça bem, que ela própria girasse a maçaneta e o convidasse para o salão. sabemos como termina: contigo reduzido aos seus andrajos diante da musa ferina a qual chamam poesia. a velha esfinge, cansada de indagar, tão só o devoraria. mas não há chave, nem porta. a fera dormita entre as pedras e o consome cada vez que você me encontra. encontra-me para chegar à ela, mas silencio e plof! desapareço onomatopéica. entre meus dentes, em farelos, a chave e o poeta



mineralogia em dez acontecimentos



a pedra exprime o indizível anseio da forma

verter-se em saber-se tal ser por a partir de desfazer-se chão

desertificada espera áspera mística sonâmbula

diluída no espelho miragem úmida


a pedra a pedra que a si cogita nítida existe quando desfeita conformada na vertigem ao delito líquida? rítmico?


vĂŞ-la repetidas vezes irretocĂĄvel fissura sĂŞ-la tantas partes inominĂĄvel tessitura


funda impérios e despautérios afunda olimpos sem conta édens inférteis desponta superfície fria no indistinto solo lunártico


tumular angular edificante ígnea metamórfica renal sanguínea


desmonta muros sem conta, desiste supraestética, comporta sempiternos deuses onde assenta a palavra multidão, irrefreável condição: morte do cristo. porta sempre aberta para a mobilidade dos homens, bélica vistosa quando catapultada dela própria inapreensível escrita lida como silêncio


a pedra viva assistida pelo tempo deformando-se esculpindo-se vestida de ilha deserta


a pedra acontece estรกtua


a pedra

preconiza a distância entre o horizonte e a ausência

verifica, à distância, o oculto entre solo e a saliência


penso a pedra dentro em repouso preciosa pela ausência de mãos que a modelem nudez naturante em sua existência mais concreta de pedra-ideia atenta ao cinzel e ao martelo que profanam o belo da pedra sua face insuspeita de bicho-coisa que vê ouve sente em silêncio e o sei pois ouvi dela mesma percebi-a em íntima conversação silêncio é palavra de pedra sei como desvendá-la deixei-a desabrochar forma em não-acontecimento que é como vem a recusa a pedra recusa a estátua



MONÓLITO a palavra metal – metálica na boca, nos dentes, ventre numa rompente sanguínea de real-distopia no entre pernas suculentas, rio melí fluo corre em silêncio entre pelos, pelas pedras para cima, para cima, para, desenhando em veias vivas os rios primitivos-deuses verve ulysses, vulva, válvula lá onde pousa a ‘strela lá onde dalva bate panos em pedras, espera pedro, espera vera, espera dalva, espera a pera apodrecer concreta, virar pedra, virar calma e adormecer férrea pra nascer palavra à revelia da civilizada regra esculpida nos paladares marmóreos mortos e adequ ados, quadros equalizados sobre o leite fervido na lata de zinco metalon prata, nata vulcânica que perfaz a chama em só fumaça branca sabor de leite, semente espessa e opaca, cristais tão pálidos como almas de baratas aeter num(a) espaçonave odisseica trespassando o amazonas para alcançar o triste lete desfazendo o acontecimento no salino enguiço da ferrugem


FRAGMENTÁRIO se alguma musa sussurra é junto do peito II palavra alguma é secreta porém estrada que se percorre em segredo III ao longe indo sumindo desfazendo se diluindo a pouca forma o fino traço esfacelando os des troços IV do farelo do substrato à fria pedra ao firme traço da babel gasosa bovina silenciosa


NARCISO EM FUGA tu que cava desinventa duplica a própria tormenta corre confusa tua senda contínuo oposto penelopesco o destino do relógio de parede diante do anti-si-mesmo

espelho


ANOTAÇÃO é d o m i n g o – escrevo como que para registo – e é como se os dias não mais passassem mas se dispusessem em desordem uns sobre os outros numa unidade duvidosa é d o m i n g o vivo-o sem certezas não por rebeldia aos fatos mas por saber que é obscura e saborosa a imensidão inexpressiva é d o m i n g o os olhos dissimulam estrelas frágeis e subitamente ofuscantes a i n d a d o m i n g o horas e minutos oscilam vertiginosamente estáticos, desaprendemos o homem debruçados sobre o sexo das pedras iludindo a ventania passante deixa a revolução e reação para a poeira da história, abandonaremos a própria história para nos recolhermos a caminho da caverna sem luz ou sombra


quase não mais domingo e os séculos respondem pela cartografia expressa nas rugas domingo perpetuamente atualizado no agora e nossas crianças morrem como antes não de fome ou napalm mas de envelhecimento e indiferença


FIAR o fio do tempo costura a saudade, dissuade a pressa fincada entre os anos, no ventre do instante prenhe de acontecer a aurora resolvida a desfazer-se emudece o galo já ralo de cantá-la – ele empoleira-se no ocaso fiando o silêncio


IMAGENS DO DEGREDO no deserto de mim decomposto e reduzido acho inseto vaga-lume proscrito que acende para dentro escorpião melancólico sonhando borboleta e borboleta idiossincrásica de asa amputada, desdenhando a ideia de beleza no deserto de mim profuso desconexo confuso não me acho senão inseto complexado na acidez do ermo as baratas imersas no profundo estômago onde amargo moscas místicas nas portas esperando em todos os orifícios o ruir dos muros e em tudo as aranhas costurando pacientemente o tempo que me amarra, pernas e braços prisões do espaço resvalo de poema


do deserto de mim te escrevo em desespero e nem constância e seus dedos atam-me ao mundo escorrego para o que esqueço desinvento o dizer para morrer em silêncio sem palavra que moleste a solidão esqueço, tão debilmente e de inseto sou ranhura, racho somente entre os tijolos de barro branco e as flores feias do tempo


ÀVÔ para Antônio Felipe depois de os olhos calçados ia tanger o horizonte para mais e mais o azul chover silêncio depois de lembrar o tato ia recordar nas nuvens a forma das pedras tocadas pela ausência depois de saber estrela ia sorrindo girassóis para o estio do inverno sem metáforas depois da palavra sentava-se e olhavase ao longe diluindo o anoitecer depois da insurreição do tempo depôs o sentido apurado reinventando o gerúndio da memória


IDÍLIO AZUL o azul dito por entre grades é amarelo e por entre os dentes é como o ferro pintado que o enquadra? ferro sanguíneo forjando diálogos ígneos: — o azul penetra-nos tremeluzindo


EXFINGE nada te pergunto e te devoro nos pormenores letra vírgula ponto voluptuosa devoro o que resta do teu corpo na estreiteza do sentido desmonto-te indecifrável te abro de olhos fechados percorro-te arranco teus membros sangro e sagro tuas vísceras em desuso repito as palavras sussurrando sibilando gastando-as até o nada que nos engolfa II nada te pergunto pois cabem no silêncio todas as respostas e nenhuma é certa só pretensão de engodo e esgotamento


III denoto ruína quando diante do espelho vejo-me: a fera medrosa engasga vencida com pergunta e resposta já saltando da língua IV o instante é pleno de horror: s a l t o e qualquer palavra é circusntância de embotamento


POEMA ENTORNADO

NO CORPO


esmero tudo que me encara e encanta coisa rara : o corpo do poema me fascina consternado, vejo-o apรณs a chacina mutilado, o corpo do poema me domina


o corpo do poema é só entorno, dentro ‘coisa alguma’ predomina. poeira emprestando ser ao mofo, celebrante máximo das ruínas. o corpo do poema é sem adornos que falseiem sua forma tão ferina. é puro, lúcido, de magro contorno: velha nervura em face de menina. a palavra não o contém, é o morto que sustém que quando ele ilumina é um estro-corpo num limite novo, invólucro que o mantém ser-outro dentro da incontornável carnificina onde o vejo desenrolar-se in loco.


em torno do poema o corpo fátuo carne sangue ossos pele em farrapos é seu invólucro tudo que o cerceia as palavras, nomes vagos o delineiam


faces mudas se entrelaรงam modelando um raro rosto onde a fala habita airada inventando um novo corpo raso de forma e excessos magro implume insosso enovelado no entrepernas condicionando o natimorto entre insultos e sequelas dentro do poema-engodo sobreposto as mazelas: signos do vulto absorto em impagรกveis bagatelas feitas deste ato rouco


Ballet parangolé sob o espectro de Hélio Oiticica

a personagem sob a veste é como parte da mortalha que sacraliza a inconteste visualidade que os igualha dentro da estrutura móvel forjada por corpo e trapo ao largo do intransponível espaço entre fato e lapso dentro mesmo do cadáver cinético lido como mundo que agora queda encoberto unindo o duplo num uno que é um outro completo feito no tempo oportuno


inventar é não saber ‘voz extraída de invenção da cor, um nove sete sete’ compor a partir das partículas de amarelo a sutil cor do solo morro tassila todo no papel obsequioso oiticica anota o passo a cor do passo a cor da cor da cor invencionada o que não serve vira arte concreta neo concretude desinventada nas formas tristes da cidade a bandeira sobre o corpo barroco sob o corpo vestindo-o compondo-o corpo-veste o traço e prosaico se lança em frangalhos delirantes em busca da ideia sob os trapos coloridos que vestem o preto corpo preto feito de pedra e aço e bruma a completude de castro a bandeira sem pátria contra ufanista lunática mesmo não identificada camaleoa voz do guerreiro e suas nuances pré-históricas o instinto o medo o desejo imoral da dor superação : primeiro e único manifesto de rompimento TANTRUM a superação do quadro série branca estado branco a ultrapassagem do ser quadrante cor é estrutura intrínseca guache guache guáche dobrável das figuras espaciais núcleos numeráveis por ordem de criação a interminável invenção da luz entre o concreto e o sentido do toque


mar arguto posto sobre os ombros dos meninos bailarinos dos RIJANVIERA pés que passam em largos passos pés de água pedra brita areia pés de passos 1 ato de deslocar o apoio do corpo de um pé a outro enquanto se anda 2 espaço compreendido em cada um desses deslocamentos 3 a maneira o andamento 4 marcha animalesca 5 entrada estreita 6 padrão composto pelo movimento dos pés e corpo que pode ser entendido como dança 7 o som que anuncia a chegada 8 impressão de passagem lembrança 9 grande oco entre um pé e outro onde não existe nada que figure com utilidade sendo então lhe atribuímos o sentido de coisa inadequada que pode ser posta a margem ademais a margem é ampla e recebe todos os tipos de ocos a margem é centro pictórico do corpo morto serigráfico PARANGO corpo dentro da obra que forma o expositor espécie de conluio entre sujeito e objeto que choram e festejam juntos frases cifradas da obra tatuadas corpo que acolhe a inscrição cor estrutura sobreposta a pele pela menor distância entre a e b asa sobrehumana de água e farinha pele refeita de ladeiras e cristais


Quando tudo se vestiu de morte surgiu ao norte do teu corpo banzo um anjo – Cazimi – combusto dizendo que não éramos nada do que havia antes, mas feitos de ferro robusto que não fenece sem que haja luta. Através dele tudo se transmuta em cor solene de sangue e metal, fundido em contínua forja que aparenta ser irreal ao esvair sua forma em cheiro apontando antes para o que se evola que para o substancial.



FRAGMENTÁRIO 2 é preciso desaprender máquina reaver o sentido simples, limpo de palavra II ao abrir a porta que mostra o poema verá seu corpo ausente, sua mão que pende sobre o mundo, esquecida de si, movendo-se como se rompesse seu casulo num dia mais escuro III soma teu grito aos grilos magros e aprenderá que qualquer badalo é canção


PÁSSARO mais persona que pessoa mais ave de escarças plumas opaca uva como cristal: densa, quase translúcida. face acesa pela lua neutra e dupla asas da ave que recolhe o suculento sumo das estações em si condensa a interminável voragem das fornalhas o velho pássaro obtuso comedor de eternidades


ISTO

se desenrola como um quebra-cabeças de mil peças perdidas que nada quebra que nada integra, tão só medida defasada que (?) irradia tipos da caterva íntima e escarça. este isto será um poema violento. violino violará o espaço do que sinto e lento redistribuirá em tons fáceis o fino recato com que te olho.

[poema não concluível]


PÔ-Ê-MÁ diz tédio do poema palavra corpo gozo do poema em rotação mas diz calado tímido quase sussurrando sonhando pra dentro entranhado no objeto secreto abjeto concreto o esporro do poema rude grosseiro ligeiro como coqueiro agreste menos substantivo verbo adjetivo menos menos quase inteiro do pouco de que é feito no cheiro no feitio no trejeito ou hilemórfico: matéria e forma acopladas em máquina de guerra pronta para o assalto criando atalho através do entulho corpovocabular • não digo que seja inútil o poema, mas que de nada serve além de a sua própria decadência. não direi, contudo, que seja fraco o poema, mas franco e drástico a medida que se apequena


diante do fantástico das mãos encarquilhadas, pois não são velhos os poemas, mesmo os que já o são. silente e perturbado pelo não-dito conduzo indefesas erupções, ademais são frágeis os homens e as mãos que esculpem pedras rijas e ancestrais. são quimeras os poemas, e nisso se salvam são sonhos dum grande plano irreal.


PROTOPELÍCULA para Otávio Neto como introdução descrevo o espaço da sempre primeira cena: calçada mal iluminada luzes quentes assim como o ambiente passos esparsos para reconhecer o terreno já em traço. 1º ATO meio-dia do expediente bancário: senhas sobressalentes dão motivo a cena, cumprimentos agradecimentos protocolares, só que em azul. mãos e braços já em 2º ATO marcam continuidade: surge adiante um padre de cidade pequena, o roteiro aponta para o milagre


assim como para o alter ego floral que o condena. (3º ATO para o entrave: longa ausência que marcaria um comum final) mas um 4º ATO veio rápido dando-nos ares de concerto esfumaçado, ou de um adaptação para o cinema. e novamente primeira cena onde alternam-se espaços e personas – chegaste brumoso mar contra calcário liso e era ainda inteiro e indeciso, era intenso e o mesmo, como se nunca houvesse ido


PRÉ-FACE ainda entre espelhos o jogo, no sigilo das imagens o chocarse agora:

lĂ­ngua em redoma


NUVEM suspender a forma pois que é só matéria gasosa fora da fôrma (salvo o rigor do dissipado que engendra quedas em dispersão)


BADULAQUE [inconcluso] 1 se é pelo óbvio diz objetivamente. sê breve e não te repitas no ordinário. diz sem trato de beleza, diz rápido e inteiro, sem orgulho, sem mesuras. fala e retira-te na palavra.


2 oculta o que não é pertença tua: toda expressão que te dobra a língua. elide-as no gestual já conturbado e só n’outra língua, numa como a tua, mastiga essas palavras de dizer coisa nenhuma.


3 procura-te boca por boca, voraz dissimula encontro mas é só espelho raso e sem moldura. procura-te dente por dente, machuca a carne que é tua e a alheia, não diferencia as dores e por isso dói



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.