Nijinski: imagens | Amador Perez

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NIJINSKI : IMAGENS

1980 -1981 . rio de janeiro

Imagens e Espaços . Júlio Castañon Guimarães, 1983

DESENHO, s.m. A ideya, ou traça, que o Pintor tem na fantezia; o debuxo della no papel. (...) Designio, conselho...

Moraes, Diccionario, 1813

... Dans une ténébreuse et profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la clarté...

Baudelaire

Dançarino russo nascido em 1888 e morto em 1950, Vaslav Nijinski teve breve e fulgurante carreira, interrompida em 1919 devido a perturbações emocionais. Tendo sido também coreógrafo, é considerado dos maiores nomes da dança de todos os tempos. Fez parte dos Balés Russos, de Sergei Diaghilev, e esteve ligado à emergência de algumas das principais obras da modernidade. São legendários tanto seu desempenho como coreógrafo e dançarino em L'Après-Midi d'un Faune, de Debussy, quanto sua atuação como coreógrafo em Le Sacre du Printemps, de Stravinski. Em 1917, dois anos antes de seu afastamento definitivo, Nijinski apresentou-se pela segunda vez no Rio de Janeiro. A presença do dançarino motivou a fuga de um aluno de um internato em Niterói – o jovem estudante não podia conter seu desejo de ver Nijinski dançar. Anos depois, esse aluno, o poeta Murilo Mendes, revelaria que o fato de ter visto o espetáculo de Nijinski fora dos eventos que lhe haviam revelado a poesia - o outro fora a visão do cometa de Halley, sete anos antes. Pelo que havia de excepcional em suas respectivas aparições, os dois fatos inter-relacionam-se, plausivelmente, como metáforas recíprocas: o cometa Nijinski e/ou a dança de Halley. Por outro lado, seu desempenho em um palco de fertilidade demiúrgica, o imaginário de Murilo Mendes, fez com que – Nijinski e o cometa – fossem elevados pelo poeta à condição de metáforas da deflagração da poesia. Murilo Mendes, em um texto publicado postumamente, indaga: "Nijinski sonhará que é dançado pela dança?"

1. Nessa inversão de caráter metonímico, aparentemente dissociativa, percebe-se a conjunção que, no caso de Nijinski, fez dele um ser poético, isto é, deflagrador de poesia: Nijinski é a própria dança, e verdadeira transubstanciação mitopoética.

Algumas décadas depois de ence rrada a carreira de Nijinski e de descoberta a poesia de Murilo Mendes, Amador Perez inscreve a figura do dançarino em uma série de dez desenhos. Nijinski é o poderoso definidor desses desenhos. O que grafite elabora na folha em branco são justamente os elementos de um universo que se cataliza na figura de Nijinski – o cenário, ofigurino, a música, a coreografia, a invenção, a magia, o fervor. Certo é que entre o espaço efetivo de Nijinski, delido pelo tempo, e o espaço de representação dos desenhos, permeia o espaço do imaginário, que, assim como permite a metáfora muriliana, agencia a própria criação desses desenhos. No imaginário, dançam a dança, a poesia, a metáfora, o mito, a representação, Nijinski e a admiração a ele tributada.

Ao assumirem feição de livro, os dez desenhos passam a contar com a companhia deste texto, a eles anteposto. Disposto a acatar quaisquer denominações que lhe quiserem impor –antelóquio, prolóquio, prelóquio, prólogo, prefácio, exórdio, introdução, prefação ou, ainda, em reminiscências musicais, prelúdio e abertura –, este texto julga conveniente deter-se sobre sua própria natureza. Produzindo-se à margem do conteúdo principal do livro, ou melhor, paralelamente a ele, não tem, no entanto, intenção alguma de reduplicar esse conteúdo principal. Não se quer paráfrase ou glosa dos desenhos, na justa medida em que tem consciência de que se constitui como sistema de signos verbais que transita ao lado de signos não verbais. Assim, procura não mais se colocar como índice do universo dos desenhos. Permite-se, então, tal como até agora, assim como divagar sobre Nijinski, a dança, Murilo Mendes, a poesia, a metáfora, Amador Perez, o imaginário e o mais que se imiscuir confluentemente na conformação deste livro.

Francis Ponge2, ao se referir às relações entre ateliês, em especial entre seu ateliê de escritura e o ateliê de artistas plásticos, aponta para um 'ateliê contemporâneo' que poderíamos, extrapolando as observações do poeta francês, entrever como um radical 'arquiateliê'. De resto, por pertinente, vale lembrar que para Hugo Friedrich a unidade estrutural da poesia moderna é uma unidade estrutural de toda a arte moderna em geral, o que explica "as analogias estilísticas entre a lírica, a pintura e também a música" 3 .

Essas confluências – saudável convivência de linguagens – afloram sem dificuldades: Nijinski desperta a poesia em Murilo Mendes; o autor deste texto vale-se do relato desse fato como pretexto para iniciar esse mesmo texto; Amador Perez, que não viu Nijinski, pede a alguém que viu seus desenhos, não viu Nijinski, leu Murilo Mendes, para escrever algo a instalar-se como portada para o livro a configurar-se com esses desenhos; livro que é um livro de desenhos a partir da figura de Nijinski – a sequência poderia prosseguir, steinianamente. (A propósito, Gertrude Stein assinalou: "Logo fomos ao balé russo, estes eram os primeiros grandes dias do balé russo com Nijinski como o grande dançarino. E um grande dançarino ele era.")4. Todavia, impõe-se uma pergunta capital: porque Nijinski? por que, melhor dizendo, o fascínio em coetâneos e pósteros por ele exercido? De quem é conhecido apenas através de

relatos e fotografias, como sofrer impacto tal – sobretudo tendo-se em mente que sua atividade era medularmente ligada ao movimento –, a ponto dele, por exemplo, dedicar-lhe uma série de desenhos? Em Nijinsky Dancing, que apresenta uma coletânea de fotografias do dançarino, Lincoln Kirstein fornece dados para uma tentativa resposta:

... seus movimentos e gestos, tanto aqueles dentro da tradição quanto os que se distanciavam dela, falam ardentemente a gerações que nunca o viram. Como as ilustrações desta coleção atestam, é a impessoalidade penetrante de Nijinski, sua abrangente capacidade de personificar, mais do que representar, que continua a mesmerizar um público maior do que oque ele teve em vida. (...) Dotado com o magnetismo de um apresentador mesmérico, ele se despersonalizava ao máximo para adotar uma capacidade multiforme. Como as fotografias aqui demonstram, ele levava um brilhantismo físico particular a uma significação mais elevada, ao mesmo tempo generalizada e intensa, clarificada pela graça da arte5.

A tentativa resposta completa-se com todas as derivas oferecidas pela significação de Nijinski para Murilo Mendes: o ser poético convida a participar de sua essência.

Para a relação entre os desenhos e o dançarino, altamente significativo é o título do livro: Nijinski: imagens. 'Imagem' é palavra que acolhe significados diversos, e o que de início se aplica aos desenhos é o de representação gráfica, plástica, fotográfica, etc. Todavia, os desenhos suscitam ainda outros significados. (Não é apenas a palavra 'imagem' que designa os desenhos, mas também estes que desenham os desígnios da palavra.) Imagem é ainda a reprodução mental de uma sensação, experiência ou objeto, o que, em termos da psicanálise freudiana, recebe a denominação de imago (nominativo latino da palavra imagem). Esta se refere às representações objetais, ou seja, justamente às representações de um objeto. Para certas postulações psicanalíticas, é preciso que fique bem nítida essa distinção básica entre a representação mental e os objetos propriamente ditos. O paralelismo com essa estratégia permite situar a autonomia das imagens produzidas por Amador Perez. Já o artifício retórico do título, por si só, indicia essa verificação: os desenhos não se apresentam com 'Imagens de Nijinski', mas como "Nijinski: imagens". Os dois pontos explicitam a relação, mas eliminam seu aspecto meramente genitivo, isto é, possessivo ou limitativo. Trata-se de um jogo extremamente sutil, onde imagens de imagens de imagens retomam os espaços anteriormente referidos: o espaço de Nijinski, o espaço do imaginário e o espaço dos desenhos.

Ao tratar da imagem em seus aspectos literá rios, Octavio Paz oferece algumas considerações que se mostram úteis para estes comentários a partir do título deste livro. Segundo o crítico e poeta mexicano, toda imagem contém significados contrários ou díspares, que ela engloba ou reconcilia. Nesse sentido, Octavio Paz considera o herói trágico, por exemplo, como uma imagem. Antígona, dilacerada entre a piedade divina e as leis humanas, é uma imagem. "A imagem é cifra da condição humana. (...) submete à unidade a pluralidade do real" 6 .

Encarado à luz dessa extensão do sentido da palavra imagem, o personagem Nijinski, nos desenhos de Amador Perez, configura-se como imagem que cifra uma relação inerente à condição humana: a conjugação entre real e imaginário. Não sendo exatamente trágico enquanto personagem dos desenhos, o dançarino é a imagem lírica – quanto menos, pelo aspecto ambíguo, emocional e subjetivo – de uma interação entre realidade e imaginação que se encontra na base de todo potencial de cr iação e que, de resto, nestes desenhos, faz do dançarino do passado um personagem (do) presente.

As imagens deste livro, seu autor as elaborou com os parcos recursos do desenho, em verdadeiro corpo-a-corpo com os problemas que esses recursos, talvez justamente por parcos, colocam a todo momento, como a porosidade ou o brilho do papel, ou como a maciez ou a dureza do grafite. No entanto, com a folha mais ou menos branca e com o grafite mais ou menos escuro, constroem-se universos. Dentro dessa concreta alternância entre negação e afirmação, ressalta o fato de que a própria folha em branco é elemento tão constitutivo do desenho quanto o trabalho que ela suporta. Raramente o grafite ocultará por completo a folha; ao contrário da pintura, onde, salvo as exceções da contemporaneidade, a tela desaparece sob as tintas - a tela não é pintura, no sentido em que a folha em branco também é desenho. Nos desenhos de Amador Perez, esses elementos se encontram eficazmente operacionalizados. O sétimo desenho da série oferece amostra radical: o desenho é tanto o grande espaço em branco de onde surge a linha que dá origem ao torso, quanto os mais minuciosos detalhes desse torso.

O processo do desenho de Amador Perez pode resumir-se rapidamente. A partir de algumas fotografias, o desenho reconstrói uma realidade visível, transpondo um espaço externo para oespaço de uma folha de papel. É essa relação inicial que permite ao desenho o caráter detalhista. Todavia, são justamente os detalhes que irão marcar, paradoxalmente, a emergência dos desenhos como obras independentes, com linguagem própria. Esses detalhes resultam do fato de o foco estar voltado sobretudo para o rosto de Nijinski ou para sua mão, entregando o resto do desenho a outras argúcias do desenhista. Assim, em se tratando de desenhos de um dançarino, como privilegiar o rosto ou a mão e praticamente diluir o resto do corpo? O corpo de Nijinski, enquanto movimento, foi tornado estático pela fotografia, vindo a reencontrar sua dança no espaço específico do desenho: o movimento das linhas, das sombras, da luz, dos planos. Dançar e desenhar interagem. Nos desenhos, o movimento de Nijinski é o movimento do desenho. Mesm o porque o movimento de Nijinski não se realizava em ausência de música, e nos desenhos há como que uma abstração do som, transfigurado nos próprios elementos do desenho. Assim, as diluições, interações, superposições de cenários, figurinos, sombras e luzes recuperam, enquanto desenho, o espaço da dança de Nijinski. Os de senhos desmentem as fotografias. Isto bem se evidencia, por exemplo, no nono desenho, onde os retângulos da roupa se confundem com oespaço circunvizinho.

Em alguns momentos, eminentemente virtuosísticos, os desenhos, ao mesmo tempo que desvelam certos aspectos da figura representada, velam alguns outros aspectos. Nesse jogo entre desvelar e velar, que estabelece matizes sutilíssimos, os desenhos revelam-se, a si mesmos, como linguagem instauradora de sua própria realidade. Assim, no oitavo desenho da série, praticamente desaparece o primeiro elemento da conjunção 'Nijinski: imagens'. Apenas se entrevê um braço, pelo qual vagamente se constata o referente Nijinski sob um véu de grafite. No último desenho da série, a complexidade de timbres dos detalhes alça-se a tais requintes, que a linguagem do desenho assume sua total opacidade, ou seja, faz-se muito mais evidente que aquilo de que ela fala. Dentro de certa perspectiva, os desenhos de Amador Perez poderiam ser considerados atuais pela sinceridade que deles emana, sinceridade de dedicação ao personagem, o que é fruto de um lirismo que se absorve em meandros de artesanias. Todavia, os desenhos escapam a essa visão simplista e, em uma guinada de pura perversão, instauram sua modernidade como desenhos que se evidenciam enquanto desenhos, revelando essa consciência crítica de si que marca uma linhagem de obras da modernidade. O já referido sétimo desenho da série talvez seja o exemplo meridiano dessa postura. Do branco que também é desenho, emerge a linha que traça o próprio dis-curso da emergência do desenho.

Esta série de desenhos promove o aguçamento da sensibilidade de quem ante ela se detém. Em movimento de reciprocidade, porém, convoca uma contemplação, não somente admirativa, mas sobretudo atenta ao rico espectro de leituras que, como toda linguagem poética, cada um desses desenhos admite. Ao se conformarem em livro, os dez desenhos denunciam uma unidade não apenas externa, mas fundamentalmente interna: as dez imagens, multifacetando-se em imagens inumeráveis, esboçariam, em conjunção prismática, uma imagem do Desenho.

O livro – hausto de um exercício que se constitui desenho com sobras de eminência – entrega-se agora à fruição de seus leitores/espectadores, que por certo não poderão negar-se a se transformar em cúmplices dessas imagens lúcida e laboriosamente co-movidas e co-moventes.

1.Mendes, Murilo. Transístor, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 227.

2.Ponge, Francis. L'Atelier Contemporain, Paris, Gallimard, 1977.

3.Friedrich, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna, São Paulo, Duas Cidades, 1978, p. 144.

4.Stein, Gertrude. The Autobiography of Alice Toklas, Penguin Books, 1977, p. 149.

5.Kirstein, Lincoln. Nijinsky Dancing, New York, Alfred A. Knopf, 1975, p. 16-18.

6.Paz, Octavio. Signos em rotação, São Paulo, Perspectiva, 2a ed., 1976, p. 37-38.

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VII
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Amador Perez maio 2023

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