JULIETA DE FRANÇA | LEMBRANÇA DE MINHA CARREIRA ARTÍSTICA
Organizado por Amanda Bonan Com Lia Baron e Nara Reis Colaborações de Ana Paula Cavalcanti Simioni e Leila Danziger Editado por COLETIVA PROJETOS CULTURAIS Julho de 2014
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO, 3
Amanda Bonan e Lia Baron JULIETA DE FRANÇA, 8
Ana Paula Cavalcanti Simioni O ÁLBUM DE LEMBRANÇAS COMO MONUMENTO, 18
Leila Danziger REPRODUÇÕES DO ÁLBUM “SOUVENIR DE MA CARRIÈRE ARTISTIQUE", 30 DETALHES DO ÁLBUM, 67 CRONOLOGIA, 87 INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA, 98
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APRESENTAÇÃO Amanda Bonan e Lia Baron Julieta de França, nascida em 1872, é uma escultora paraenseque construiu sua carreira entre Belém, Rio de Janeiro e Paris. Apesar das singularidades de seu percurso profissional, teve relativo reconhecimento público. Seu nome não figurou entre aqueles referenciados pela história da arte brasileira. Felizmente, sua trajetória vai sendo revelada pouco a pouco. Em 2007, José Roberto Arruda França, sobrinho-bisneto da artista, doou ao Museu Paulista um álbum que até entãoestava de posse de seus familiares. Trata-se de um objeto muito especial (e de certa maneira pessoal), em que Julieta reconstrói, por meio da compilação de fotografias, cartas, recortes de jornal e certificados, seu caminho percorrido na tentativa de reconhecimento como artista, em uma época e contexto marcados pelo protagonismo eminentemente masculino. Ao ter conhecimento do álbum, interessou à Coletiva Projetos Culturais especialmente a forma como Julieta cuidou de preservar sua carreira artística, coletando, recortando e colando registros e avaliações críticas. Sua memória se constrói por meio de retalhos referentes à sua vida profissional e pública, recompostos segundo uma lógica afetiva, que não obedece a estruturas cronológicas ou temáticas rígidas, mas que envolve o leitor/ apreciador em um fluxo de vida e de trabalho artístico pontuado por êxitos,fracassos, tensões, reviravoltas. Para além de seu inegável valor historiográfico, o álbum se oferece como objeto de apreciação estética e induz, na leitura, curiosidade sobre os movimentos e ímpetos subjetivos que levaram a artista àquela particular composição. Este livro torna públicas reproduções imagéticas do álbum, arquivos gentilmente cedidos pelo Museu Paulista. As fotos retratam as páginas da forma exata como elas se oferecem à visão: certos recortes sobrepõem-se, outras peças estão dobradas. Os detalhes que nos chamaram a atenção foram reproduzidos em maior escala na parte final do livro. Todas as imagens passaram por um processo de tratamento, no intuito de favorecer a sua visualização. Algumas páginas em branco não foram incluídas nesta publicação, assim como páginas de conteúdos similares. Este livro reproduz quase todas as imagens do álbum de Julieta. O original do álbum encontra-se atualmente indisponível para consulta presencial, tendo sido temporária e devidamente reservado pelo Museu Paulista, em razão de um processo de reforma por que passa a instituição. Deve-se dizer que o trabalho editorial incluiu a recomposição sequencial de imagens de páginas duplas, realizado segundo o método de dedução, já que as folhas do álbum não foram numeradas pela artista. Retratamo-nos de antemão se porventura a ordem aqui presente não obedecer à do objeto original, mas não poderíamos perder a oportunidade de trazer a público tais fragmentos.
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O leitor encontrará ainda a transcrição de certos trechos de conteúdo textual, escolhidos por sua centralidade na compreensão da trajetória da artista. Os excertos, redigidos originalmente segundo as normas do português de fins dos novecentos, passaram por um trabalho de adequação às regras ortográficas atuais, permitindo maior clareza na leitura. No intuito de enriquecer a disponibilização do conteúdo do álbum, esta publicação conta com duas contribuições autorais inéditas. Com agudo rigor historiográfico, Ana Paula Cavalcanti Simioni pontua dados biográficos sobre a artista, costurados com um trabalho de reconstituiçãodo contexto cultural de seu tempo. Seu texto nos oferece a medida do pioneirismo de Julieta, diante das condições de produção postas naquele período. Precursora nos estudos sobre a trajetória da artista, devemosa Ana Paula a possibilidade de realização deste projeto, uma vez que travamos nosso primeiro contato com o álbumpor meio de um artigo seu, intitulado “Souvenir de ma carrière artistique: uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira”. Leila Danziger nos abre, por sua vez, o ambiente estético a ser explorado na apreciação do objeto. Um texto dotado de notável destreza poética nos conduza umavisada retrospectiva, partindo de um olhar contemporâneo: percorre imagens do trabalho de Julieta, pondo-as em relação com apropriações e condensações críticas que vieram a permear o discurso sobre a produção artística brasileira, sobretudo no que diz respeito à sua relação com a memória. Atualiza nossa sensibilidade diante do material aqui reproduzido. Tivemos a sorte de trabalhar com profissionais da competência de Catalina Chlapowski, designer; Sidnei Balbino, produtor gráfico eAndré Cossich, que realizou o tratamento de todas as imagens. As transcrições foram feitas por Janaina Garcia e as revisões, por Rosalina Gouveia. Nara Reis, que assina a coordenação de produção,ofereceu fundamentais contribuições para a organização da publicação. Sem a colaboração de José Roberto Arruda França, este livro não seria possível. Somos imensamente gratas a todos esses parceiros, assim como ao apoio do Museu Paulista. Esta publicação é fruto do Prêmio Mulheres nas Artes Visuais, concedido pela Funarte, a quem agradecemos e felicitamos pela iniciativa, reconhecendo a importância do desenvolvimento de políticas de gênero potencializadas por aproximações com o campo da criação artística e estética. É com muita alegria que apresentamos ao público o livro Julieta de França – lembrança de minha carreira artística. Com a difusão de imagens do álbum, acompanhadas de reflexões contemporâneas sobre a sua composição, esperamos que a publicação colabore para o aprofundamento da pesquisa sobre a vida ea obra desta artista,instigando também a investigação sobre a trajetória de tantas outras.
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JULIETA DE FRANÇA Ana Paula Cavalcanti Simioni Julieta de França (1872-1951) foi uma artista pioneiraem seu tempo. Nasceu em Belém, capital do Estado do Pará, em um momento em que a cidade enriquecia graças ao ciclo da borracha e modernizava-se a partir dos exemplos parisienses. Filha do maestro Joaquim Pinto de França e deIdalina Pinto de França, recebeu os primeiros ensinamentos artísticos com o pintor de origem italiana Domenico de Angelis, 1 que havia sido contratado para decorar o Teatro da Paz. Em 1897, seguindo um destino tradicionalmente reservado aos aspirantes à carreira artística no Brasil, dirigiu-se à Escola Nacional de Belas-Artes–Enba, no Rio de Janeiro, então capital do país, a fim de completar seus estudos. Mas é importante lembrar que a formação naquela que era tida como a mais importante academia nacional, se era prática comum para os homens, era então algo bastante novo, e incomum, para as mulheres. Durante todo o período imperial (1822-1889) o “sexo frágil”, como era então denominado, não era aceito na instituição, como ademais em todas as escolas consideradas superiores no Brasil. Apenas em 1892, já em tempos de República, com a lei que sancionava a abertura dos cursos superiores às mulheres é que elas puderam passar a usufruir de uma formação equiparável à dos homens.2 Excluídas de uma sólida formação artística e do sistema de exibições e premiações organizado pela academia, as artistas eram tidas, então,como simples amadoras. A ideia do amadorismo como uma condição feminina é frequente na crítica de arte de finais do séculoXIX e inícios do séculoXX. No pioneiro livro de Félix Ferreira, Belas-artes: estudos e apreciações (1885), as artistas doperíodo foram incluídas em uma categoria específica: a de amadoras, enquanto os homens eramdescritos como artistas ou como alunos. O amadorismo trazia implícitas conotações negativas: aideia de refinamento (em oposição a trabalho árduo), frivolidade (versus a arte séria dos homens), de ausência de profissionalismo, além de desconhecimento técnico. Vale notar que o termo era comumenteempregado para mulheres, tendo comocontraponto a noção de artista, conjugada sempre no masculino, com isso, trata-se de uma categoria de classificação sexuada e relacional. 3 Vistos como naturalmente diversos e desiguais, acreditava-se que homens e mulheres tivessem habilidades físicas e intelectuais determinadas por natureza; enquanto elas eram detalhistas, sensíveis e imitativas, eles eram dotados das ————————————————— 1 Domenico de Angelis, pintor originário de Roma, formado na Academia di San Luca, notabilizou-se pelas pinturas sacras. Por essa razão foi convidado por Dom Antônio de Macedo atrabalhar na Igreja de São Sebastião. A seguir realizou as pinturas decorativas para o Teatro Amazonas. Em 1900, já doente, retornou à Itália, morrendo em seguida. 2 O decreto 1.159 de 3/12/1892 afirma: “É facultada a matrícula aos indivíduos do sexo feminino, para os quais haverá nas aulas lugar separado”. Ver: Colleções das leis da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892. 3 Uma discussão mais aprofundada sobre essa questão pode ser encontrada em: SIMIONI, Ana Paula C. Eternamente amadoras: artistas brasileiras sob o olhar da crítica.In: FABRIS, Annateresa (org.). Crítica e modernidade. São Paulo: ABCA-Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Ou uma versão mais reduzida em:SIMIONI, Ana Paula C. “Profissão artista:mulheres, atividades artísticas e condicionantes sociais em finais do Oitocentos”. Anais do XXIV Colóquio do CBHA. Disponível em<http://www.cbha.art.br/ coloquios/2004/textos/10_ana_paula_simioni.pdf>. Acesso em 25/4/2014.
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faculdades criativas, simbólicas e intelectuais; nesse sentido eram eles capazes de criar as grandes obras do espírito, ser “geniais”, ao passo que elas estavam fadadas àcondição de serem vistas como eternamente amadoras. As crenças de época não possibilitavam a emergência de mulheres geniais.4 Ao pleitear o ingresso na Enbaem 1895, Julieta de França integrou as fileiras das primeiras mulheres brasileiras a terem acesso a uma formação artística completa, capaz de contestar o estigma do amadorismo. Inicialmente, cursou como aluna livre as disciplinas de pintura e escultura; mas aos poucos vai se destacando nas exibições internas da escola 5 e ganhando fama fora da instituição, chegando a expor com sucesso de público no salão da Mina Musical, em Belém do Pará, em 1898. 6 Nesse mesmo ano, ela se matriculou na aula de modelo vivo. Esse fato, aparentemente banal, merece destaque. Desde a Revolução Francesa, com a reorganização do sistema acadêmico na França, tendo à frente Jacques Louis David, 7 a pintura de história passou a ser altamente valorizada, considerada o gênero máximo a que os artistas deveriam se dedicar. Nelas, o corpo do herói constituía um elemento fundamental; cristalizando as virtudes morais, os discursos políticos almejados, o ideário a ser comunicado aos espectadores. A fim de bem representá-lo, os pintores se dedicavam intensamente ao estudo dos modelos vivos, dos nus. No entanto, tal práticaera vista como inadequada às mulheres; não se considerava aceitável que elas fossem expostas a corpos despidos. Por tal razão as academias francesas, e todas aquelas que seguiram seu modelo, como a brasileira, intitulada Academia Imperial de Belas-Artes, fundada em 1826 pela famosa Missão Artística Francesa, não aceitavam mulheres entre seus discípulos. Com isso, todas aquelas moças ansiosas por tornarem-se artistas se depararam, ao longo de todo o século XIX, com a impossibilidade de terem acesso à formação necessária para se realizarem nos gêneros máximos propagados pelo sistema, restando-lhes gêneros menos valorizados, como a pintura de gênero e as naturezas-mortas.8 O caso das escultoras é ainda mais dramático. Além dos obstáculos comuns àqueles com que se deparavam as colegas pintoras, deviam elas ainda lidar comos estigmas de época. Acreditava-se quea escultura era uma modalidade essencialmente masculina, por sua exigência de força física e vigor, e com isso, totalmente inadequada às mulheres,vistas então como “naturalmente frágeis e delicadas”. Tais sentidosampliavam-se no Brasil, país que muito recentemente abolira a escravidão (1888) e tendia a ver com muito preconceito o trabalho manual.Assim, quando observadas diante desse contexto, a matrícula de Julieta de Françae a da escultora Nicolina Vaz de Assis, nas aulas de modelo vivo,adquirem uma ousadia particular. Ambas demonstravam estar
dispostas a enfrentar tabus sociais bastante arraigados, com vistas a se tornarem artistas profissionais, naquela modalidade tida como imprópria às mulheres, a escultura. Algum tempo depois, no final de 1900, Julieta de França apresentou-se àquele que era considerado o prêmio mais importante outorgado pela Academia, o Prêmio de Viagem ao Exterior. Os alunos premiados recebiam uma bolsa para continuarem sua formação fora do Brasil, sendo a Itália e, principalmente, a França os destinos mais procurados . 9 Assim, na condição de candidata única, a artista apresentou-se às provas abertas para a turma de escultura, e obteve parecer favorável da comissão. 10 Com isso, tornou-se a primeira mulher a conquistar o prestigioso prêmio de viagem no Brasil. Em 1901, seguindo a indicação da comissão avaliadora, Julieta desembarcou em Paris e matriculou-se na Académie Julian, uma academia privada, inaugurada durante a década de 1870, que se consagrou internacionalmente pelos métodos de ensino, pelo grupo seleto de docentes contratados e, especialmente, por ser um espaço onde as mulheres poderiam acessar o modelo vivo que lhes era vetado nas instituições oficiais, e assim se formarem como artistas competentes. 11 Em 1902, Julieta de França matricula-se também no efêmero Institut Rodin, uma escola particular voltada para a formação de escultores, na qual ensinavam além do mestre que emprestava seu nome, seu principal discípulo, Antoine Bourdelle, reputado escultor que se ocupava das turmas femininas. A qualificação obtida em Paris logo se fez notar. Em 1903, consegue ter uma obra aceita noSalon da Société Nationale de Beaux Arts, o qual ocupava então o posto de principal salão internacional de exposição de artistas. 12 Tal conquista se repete no ano seguinte, quando exibe uma obra que chama a atenção da crítica. Uma matéria assinada por Henri Dac para o jornal Univers,de Paris, a destaca logo depois de mencionar as obras O pensador, de August Rodin;Mineur, de Constantin Meunier e, a seguir, frisa a qualidade de O sonho do filho pródigo, feito pela escultora brasileira. 13 Esse reconhecimento por parte da crítica francesa era tão importante que Julieta manteve a matéria em seu álbum e provavelmente enviou outra cópia para o diretor da Academia brasileira, o poderoso escultor Rodolfo Bernardelli, que manteve o cargo por 25 anos, entre 1890 e 1915. 14 Sua resposta estampa as dificuldades que ela enfrentava: [...] Tenho presente sua carta de 17 de maio pp por ella posso ver como seu espírito estava tranquilo, bom é isso e Deus queira que isso seja por muito tempo. Recebi o jornal que cita seu nome ao pé d´aquele grande mestre Rodin, a visinhança é perigosa e precisa tomar cuidado, lembre-se da fabula do Icaro [...]. 15 ————————————————— 9 A esse respeito ler:SIMIONI,Ana Paula C. “A viagem a Paris de artistas brasileiros no final do século XIX”.Tempo Social, 17(1):343-366. São Paulo, jun. 2005 (online);VALLE,
————————————————— 4 A esse respeito ler: NOCHLIN, Linda. “Why there be no great women artists?” Art and Sexual Politics. 2ª ed. New York: Macmillan Publishing Co., 1973. (1971, 1a
ed.). 5 “Na sala dos produtos escolares de senhoras merece honrosa menção a senhorita Julieta de França. O seu progresso manifesta-se em pequena série de estudos largos,
Artur. “Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Academia Julian durante a 1ª República”. 19&20, 3. Rio de Janeiro, nov. 2006 (online). Link: http://www.dezenovevinte. net/ensino_artistico/academia_julian.htm 10 A esse respeito consultar SIMIONI.Profissão artista;Op. cit.,p. 167-69. 11 Sobre a Académie Julian, consultar, entre outros: WEISBERG, Gabriel & Becker, Jane (orgs.). Overcoming All Obstacles: The Women of Académie Julian. New York-London:
rápidos, vivos [...]”, in: Artes e Artistas. Escola Nacional. Rio de Janeiro, 17 de dez 1896.In:DE FRANÇA, Julieta. Souvenir de ma carrière artistique. Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. 6 A esse respeito consultar: DE FRANÇA, Julieta. Souvenir de ma carrière artistique.Op.cit.
Rutgers University Press, 2000. 12 Nesse mesmo ano envia à X Exposição Geral de Belas-Artes a escultura Cupido, com a qual obtém medalha de prata de segunda classe.
7 Jacques Louis David (1748-1825), notável pintor francês, representante principal do neoclassicismo na França, foi o diretor da Academia durante a Revolução Francesa, sendo
14 Ao comentar o Salão de 1905, o importante crítico da época Gonzaga Duque explicita o poder detido por Bernardelli,diz: “[...] O Sr. Professor Bernardelli, director perpetuo e
responsável pela reorganização da instituição. Foi ainda o mais importante pintor durante o período bonapartista. Com a queda de Napoleão Bonaparte exilou-se em Bruxelas. 8 Na França, a Academia só aceitará as mulheres como alunas a partir de 1897. A esse respeito ler: SAUER, Marina.L´entrée des femmes à l´École des Beaux Arts, 1880-1923. Paris:
senhor absoluto da Escola de Bellas Artes, não sei se commendador da varias ordens estrangeiras, conselheiro esthetico do governo e outras instituições, monopolisava todas as admirações e todos os trabalhos[...]”.In: Contemporâneos. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929. (grifos meus). 15 Carta de Rodolfo Bernardelli para Julieta de França, datada de 27/06/1904.In: Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit.
Ensba, 1990.
13 Documentação no álbum Souvenir de ma carrièreartistique. Univers, Paris, 14/4/1904.
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Bernardelli não a elogia ou parabeniza, mas alerta-a de que talvez, como na fábula de Ícaro, pretendesse voar mais alto do que era capaz e com isso sua queda seria ainda maior. Esse desestímulo por parte do antigo mestre e diretor da Enbafoi constante durante sua estada na França. No álbum Souvenir de ma carrière artistique encontram-se diversas cartas trocadas entre professor e aluna que estampam uma relação bastante tensa. De um lado, Julieta de França reclamava das condições precárias em que ela, bem como outros alunos brasileiros viviam no exterior, graças aos valores exíguos pagos aos bolsistas, aos recorrentes atrasos nos pagamentos, à falta de subsídios para fundirem suas obras ou transportarem-nas ao Brasil; tais queixas se transformavam nas letras de Julieta em ameaças de desistência do estágio. 16 Em resposta, o diretor, em tom paternalista e autoritário, rechaçava as ameaças da estudante, lembrava-a de seus deveres como pensionista e artista, ao mesmo tempo em que a apontava como mulher nervosa, ameaçadora, traidora, sutilmente deixando entrever os riscos ao seu futuro como artista caso levasse adiante o escândalo prometido. 17 Em 1906, Julieta de França retorna ao Brasil, depois de uma temporada de muito aprendizado e relativo reconhecimento naquela que era então tida como a “capital artística do mundo”. Participa da XIII Exposição Anual de Belas-Artes, com um conjunto de sete obras, alguns bustos (os quais eram reveladores de que aos poucos conquistava uma clientela particular), gessos, maquetes e a obra final de seu estágio na França, intitulada Rapte eternel, um casal em bronze fundido claramente inspirado em O beijo, de Rodin. Sua participação foi detalhadamente comentada por Gonzaga Duque, o mais importante crítico de então, realçando suas qualidades e apontando os defeitos: O que penso? Com franqueza, inclino-me synmpathicamente para a obra dessa esculptora, a sua predileção pela nudez é uma prova de sua applicação. A grande esculptura é o nu. Mas, a Sra Julieta, não sei porque, não se dá ao trabalho de amadurecer as suas concepções, parece que tem a soffreguidão de produzir. [...] A inspiração fica na primeira maquette. Se o gênio a bafeja, essa maquette será extraordinária, mas se a ideia apenas resultar de uma especial disposição de temperamento, é preciso pensar muito, fazer e refazer, estudar pacientemente para encontrar a sua expressão exacta. 18
A atenção da crítica somada à obtenção da medalha de prata são termômetros de sua plena inserção nos meios artísticos oficiais. Mas, curiosamente, é justamente após esse ponto de sucesso que, segundo a documentação oficial, sua trajetória se esgota. A partir de então nunca mais Julieta de França figurará nas exposições organizadas pela academia nacional. O que poderia ter ocorrido para que uma artista em notável ascensão tenha simplesmente desaparecido do cenário artístico de seu tempo?
————————————————— 16 Pode-se acompanhar essas questões por meio das matérias de jornais assinadas por Joafnas que constam no referido álbum.JOAFNAS, “Cartas de longe”. Paris, 14 de jun.1902, s. ed..In: Souvenir de ma carrière artistique. Op. cit.Segundo uma matéria publicada por Joafnas, a pensão da artista ameaçara despencar de 500 para 100 francos por mês, valor suficiente apenas para o pagamento de um único modelo. Segundo o autor, por essa razão a artista teria ameaçado retornar ao Brasil, descumprindo suas obrigações como pensionista. JOAFNAS. “O sonho do filho pródigo”. Folha do Norte, 14 de agosto de 1904. In: Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit. 17 Consultar correspondência no álbum Souvenir de ma carrière artistique.Rodolfo Bernardelli, 10 de julho de 1901. 18 Gonzaga Duque Estrada. Contemporâneos. Op. cit., p. 145-146.
Uma matéria de jornal, publicada pela Fon Fon em 1908, cuidadosamente preservada pela artista em seu álbum permite-nos compreender o ocorrido. 19 Ela nos conta quedepois de retornar de seu estágio no exterior, Julieta de França candidatara-se ao concurso que escolheria o monumento comemorativo à Proclamação da República brasileira. Provavelmente trata-se da maquete mencionada, em tom elogioso por Gonzaga Duque na crítica citada anteriormente. No entanto, a obra apresentada pela artista foi desclassificada pelo júri. Ao saber do resultado, não se resigna. Julieta de França retorna à Europa com sua maquete e solicita avaliações de seus antigos professores, mestres consagrados mundialmente. Após receber julgamento favorável de 57 grandes nomes, retorna ao Brasil e exige uma retratação por parte da comissão nacional. Tal evento significava, para qualquer artista, independentemente do gênero, uma afronta para com o júri local, presidido pelo mais importante escultor patrício e, também, o todo-poderoso diretor da Academia até 1915, Rodolfo Bernardelli, com quem ela já havia tido muitas rusgas durante seu estágio em Paris. Julieta de França não apenas recusou seu veredito como quis, ao levar um livro assinado por outros artistas, questionar sua legitimidade no campo acadêmico brasileiro e internacional, ao trazer textos rubricados, entre outros, por Auguste Rodin. O caso na época teve grande repercussão, sendo frequentemente noticiado pela imprensa. 20 O episódio repercutira tanto porque reverberava uma série de ousadias: primeiramente, desafiavam-se a autoridade e a competência de professores e do diretor da Academia, o que era ainda mais atordoante por ter sido levado adiante por um ex-aluno premiado. A isso se acrescenta o fato de exibir atestados de afamados artistas internacionais, venerados pela academia brasileira, certamente subsidiária da francesa, referência ainda absoluta acerca da “grande arte”. Por fim, tal árdua batalha fora travada por uma mulher que, expondo publicamente as mazelas da academia pela imprensa, rompia com o esperado recato feminino. Tantas transgressões trouxeram consequências claras para a artista: desde então ela não mais figurou nos salões nacionais; desapareceu, simplesmente, da vida artística centralizada no Rio de Janeiro. Pode-se dizer que Julieta de França foi expulsa da história da arte brasileira, tornando-se mais uma lacuna do que uma presença na nossa memória coletiva. Desde esse momento, a escultora passou a trilhar uma trajetória marginal. Suas participações como artistas serão doravante esporádicas e ligadas especialmente ao circuito artístico de Belém do Pará, sua terra natal. Lá, estava longe da rede de influências da Academia sediada no Rio de Janeiro, tutelada por Rodolfo Bernardelli; além disso, em Belém, contava com o apoio do irmão, o deputado, Artur França, bem como com a simpatia da crítica de arte local. Assim, em 1912, esculpe o busto do Barão do Rio Branco, o qual será patrocinado pela Prefeitura de Belém. Julieta de França finalmente obtinha uma capa de jornal, capaz de eternizar sua imagem. 21 Durante a década de 1920, foi aprovada em concurso como professora de modelagem no Instituto de Surdos e Mudos, no Rio de Janeiro,o que consistirá doravante em seu ganha-pão principal, mas ————————————————— 19 “Uma artista brazileira”.Fon Fon, 14(11), 11/07/1908.In: Souvenir de ma carrière artistique. Op. cit. 20 Relatos sobre a contenda entre a escultora e o júri do concurso podem ser encontrados em: “Uma artista brasileira”.Fon Fon!11/07/1908; “O monumento da República”.Jornal do Commercio. Juiz de Fora, 16/07/1908. 21 Trata-se da capa de O Estado do Pará, c.1910. Encontrada em Souvenir de ma carrière artistique.Op. cit.
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não era algo capaz de fazer seu nome repercutir nos meios artísticos.Em 1921, volta a se destacar propriamente como escultora, novamente na imprensa do Pará, afinal ela conquistara um antigo sonho: obteve o primeiro lugar no concurso público lançado pelo Estado para o monumento em homenagem ao marechal Floriano Peixoto.Esses acontecimentos que marcaram sua biografia podem ser tomados como exemplares das dificuldades e possibilidades com que as artistas mulheres de sua geração se defrontaram. Diferindo da maior parte delas, que foram excluídas de nossa memória coletiva, o álbum elaborado por Julieta de França, diligentemente preservado por sua família e pelo Museu Paulista da USP, nos permite reconstituir, por meio dos ricos fragmentos deixados, quais eram as possibilidades de realização e os muitos impasses enfrentados pelas artistas daquele tempo. 22
Souvenir de ma carrière artistique: uma autobiografia muito particular Em meu doutorado defendido em 2005, a pesquisa sobre Julieta de França se encerrava no episódio envolvendo o concurso comemorativo à maquete da República de 1908. Isso porque até aquele momento eu estava trabalhando com a documentação “oficial” disponível, aquela produzida pela Escola Nacional de Belas-Artes e pela imprensa que a orbitava, centralizada no Rio de Janeiro. Para esse corpus documental, a artista havia sido “sepultada” dos meios artísticos locais depois da contenda, e com isso desaparecera sem deixar registros. Só algum tempo depois tive a grande sorte de conhecer um de seus descendentes, o professor José Roberto de França, o qual, muito amavelmente, localizou entre os parentes o precioso álbum intitulado Souvenir de ma carrière artistique. Sem dúvida trata-se de uma fonte única de informações sobre a artista, sobre seu meio cultural, sobre os impasses que os artistas e especialmente as mulheres artistas enfrentaram em seu tempo. Souvenir de ma carrière artistique consiste em um álbum de dimensões médias (25 x 30cm), em elegante capa de couro e tecido. Em seu interior há aproximadamente 100 folhas, muitas delas vazias; as demais são ocupadas por 76 recortes de jornais, todos versando sobre a carreira da artista (exposições, crítica obras, encomendas públicas recebidas, etc.). Além disso, pode-se encontrar ainda 18 cartas, algumas privadas e outras trocadas com figuras públicas; 20 fotografias, sendo a maior parte de obras suas e três de pessoas intimamente ligadas à artista; nove diplomas e programas escolares e, finalmente, seis certificados. Acredito que estejamos diante de um tipo muito particular de autobiografia. Sucintamente pode-se definir esse gênero como “a biografia de uma pessoa escrita por si mesma”. 23 Diferindo da biografia, que constitui uma narrativa global e exterior, na qual o historiador encontra-se distante de seu modelo, a autobiografia implica uma grande transformação. Nesta, artista e modelo coincidem, isto é, o biógrafo toma-se a si próprio
como objeto, impondo-se um desafio, o de narrar a própria história, por meio de elementos selecionados e reagrupados segundo uma lógica compreensiva prévia. Nesse álbum, Julieta propôs um sentido à sua biografia, ao seu passado, recomposto por meio de fontes escritas, sobretudo artigos de jornais rubricados por terceiros, ou ainda fotos de suas obras, bem como algumas cartas íntimas. Embora o álbum seja um conjunto de discursos (escritos e visuais), escolhidos, colecionados, colocados em uma ordem por aquela que o organizou, não há uma única linha por ela escrita. Não é um livro de memórias, muito menos de confissões, e nem uma autobiografia convencional, naquelas em que narrador e herói espelham-se uns nos outros. É interessante frisar que a artista não “escreve” ou “descreve” sua vida no álbum, mas na maneira com que seleciona conscientemente determinados materiais, os guarda e os arranja, ela termina por “inscrever” um sentido à sua vida. E esse sentido parece ser o de narrar uma trajetória de artista que almeja um reconhecimento público. O álbum não está organizado a partir de um princípio cronológico linear. Antes, o princípio de estruturação parece ser mais temático do que temporal. Inicia-se com diplomas e cartas dos períodos iniciais de sua formação, em Belém e depois no Rio de Janeiro; ao que se seguem documentos concernentes à obtenção do Prêmio de Viagem ao Exterior.Logo, a narrativa se quebra, há notícias sobre os prêmios obtidos como aluna da Enba entre 1897 e 1898 e, a seguir, uma longa série de ricas matérias de jornais, cartas, críticas e fotografias relacionadas ao período de cinco anos em que ficou em Paris. A partir desse momento, há uma nova quebra de linearidade na narrativa. A artista parece passar a organizar os recortes de jornais a partir de um novo tema, o das encomendas públicas recebidas. Inicia com o busto do Barão do Rio Branco (1912), a seguir o monumento em homenagem ao marechal Floriano (1920/21), para depois retornar a uma série de matérias de jornais acerca do famigerado processo em torno da sua desclassificação no concurso para o monumento em comemoração à República (1908). Julieta de França parece ter cuidadosamente selecionado e preservado as matérias veiculadas pela imprensa que foram favoráveis a seus pleitos. 24 Ainda que tal material tenha permanecido por muito tempo em um circuito íntimo e privado, ele parece ter sido destinado a cumprir uma função específica: a de criar uma versão pública de sua vida. Mesmo contendo algumas cartas pessoais esparsas em seu interior, o conjunto é composto centralmente por documentos selecionados, colados e dispostos de sorte a narrar os êxitos da trajetória da artista. Nesse âmbito, pode-se vislumbrar um sentido estratégico em sua feitura, pois, ao escrever sua trajetória a partir das falas e textos de críticos e jornalistas, Julieta de França parecia conferir mais “objetividade” aos fatos que permearam sua carreira.Caso as palavras fossem as suas, o álbum poderia ser tomado por um documento subjetivo, uma confissão de uma artista incompreendida em busca de consideração. Já as notícias de jornais aparentam uma ————————————————— 24 Depois das matérias dedicadas à disputa iniciada em 1906, o caderno segue com os seguintes tópicos: O monumento a Laguna, esboçado pela artista, desclassificado no
————————————————— 22 Alguns dados daí constantes puderam ser incorporados no livro, já citado. Para uma análise mais pormenorizada do álbum ver: SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Souvenir de ma carrière artistique. Uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira.São Paulo, Anais do Museu Paulista, vol. 15, n.1,jan/jun. 2007, p. 249-278. 23 STAROBINSKI, Jean. “The Style of Autobiography”.In:OLNEY, James (org.).Autobiography. Essays Theoretical and Critical. New Jersey: Princeton University Press, 1980, p. 14.
concurso levado a cabo em 1921. Tal ano constitui o marco final, em termos temporais da série. Mas o álbum traz, ainda, outro percurso temático que continua após o marco cronológico: a realização de uma maquete que concorreu ao concurso para o mausoléu de Afonso Pena (1910) e dois exemplos de medalhas comemorativas realizadas pela artista. A passagem por Paris e os documentos sobre o Sonho do filho pródigo (anteriormente referidos neste artigo); matérias sobre o sucesso da artista quando aluna da Escola Nacional de Belas-Artes, em 1899; e uma série de documentos avulsos, cartas íntimas, fotos de sua casa no Rio de Janeiro, fotos de sua filha, pequenos cartões enviados pelo presidente Hermes da Fonseca, em 1914, convidando-a para festas em seu palácio, dado que Julieta de França era professora de escultura de sua esposa, a caricaturista Nair de Teffé e ainda certificados de cursos e participações em salões esparsos.
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suposta imparcialidade, além de uma dimensão de reconhecimento público, por ela tão almejada. Dessa forma, Souvenir de ma carrière artistiqueconstitui uma autobiografia muito particular. Ele difere das modalidades autobiográficas praticadas pelas mulheres de seu tempo. Segundo a historiadora Michelle Perrot, os relatos escritos por mulheres do passado incidem preferencialmente sobre o domínio do privado, “o lugar de felicidade imóvel, cujo palco é a casa, os atores, os membros da família, e as mulheres, as testemunhas e as cronistas”. 25 Dado que as autoras foram secularmente excluídas dos espaços públicos, dos fóruns de decisão política na ordem burguesa e assim confinadas aos espaços privados e domésticos, tenderam a descrever os lugares sociais que podiam frequentar, o que se traduziu por uma atenção aos acontecimentos íntimos de suas vidas. Souvenir de ma carrière artistique distancia-se por completo dessas modalidades de autobiografias “femininas”. Sua vida é narrada de um modo muito diverso: opta por destacar sua atuação como artista, dedicada à vida pública. A artista seleciona documentação concernente à sua participação em salões, em exposições e em concursos de monumentos públicos. As poucas cartas coladas propositadamente no álbum são justamente as menos privadas, aquelas trocadas com o professor Rodolfo Bernardelli durante seu estágio como pensionista no exterior. Assim, o álbum parece responder a uma motivação fundamental: o desejo de ser reconhecida como uma artista de mérito, profissional, que não obteve o lugar público almejado em função de questões alheias à qualidade de sua obra. Os fragmentos cuidadosamente selecionados, alinhavados e encaixados possibilitam ao leitor compor uma imagem complexa ao final, um autorretrato da artista que permite ultrapassar uma história até então silenciada, esquecida, minimizada, como talvez seja a de tantas outras mulheres artistas que ainda hoje desconhecemos. A publicação oportuna desse valioso conjunto documental permite que as memórias de Julieta de França, artista paradigmática de seu tempo, transformem-se em história.
————————————————— 25 PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da história.Bauru: Edusc, 2005.
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O ALBUM DE LEMBRANÇAS COMO MONUMENTO Leila Danziger Sugiro um lugar para a leitura deste livro. Vá ao Jardim Botânico no Rio de Janeiro e siga por entre as palmeiras imperiais da aleia principal. Passe pelo Chafariz das Musas, pela gigantesamaúmae, quase ao fim, quando os ruídos trazem de volta o entorno da cidade, você encontrará um portal ladeado de bambuzais.Atravesse-o e observe sua grandiosidade pelo avesso. Creio que os fundos do portal abrigam esperanças extraviadas de nossa história da arte anterior ao modernismo.À sombra dessa construção, marco da presença tão contraditória do neoclassicismo no Brasil, as lembranças de Julieta de França encontram espacialidade privilegiada. Quantas vezes elao terá atravessado acreditando que o futuro – pessoal e coletivo – estaria à altura de suas ambições? Embora comprometida com os ideais da República, a produção artística de Julieta surge da instituição que fez erguer aquele portalem 1826 no centro do Rio de Janeiro – a Academia Imperial de Belas-Artes, transformada em Escola Nacional de Belas-Artes com a Proclamação da República, mudança que não implicou uma renovação artística efetiva.A presença desse elemento arquitetônico desterrado no Jardim Botânicoé um dos signos mais eloquentes da existência desde sempre precáriada instituição, cuja função seria transmitir e traçar rumos para a arte no país. Aquela ruína é o que resta da construção projetada por Grandjean de Montigny edemolida112 anos depois de sua inauguração,semjamais alcançar destacada projeçãosimbólica ecompletude física. Folhear o álbum de Julieta de França desperta uma emoção semelhante à de percorrer ruínas; nosso olhar contemporâneo, marcado pela valorização da memória a partir das últimas décadas do século passado, encanta-se com a nova configuração dos documentos produzida pelo tempo e pelo acaso. Em belo texto sobre os Carceri, de Piranesi, Andreas Huyssen sugere que “temos nostalgia das ruínas da modernidade porque elas ainda parecem manter uma promessa que desapareceu em nossa época: a promessa de um futuro alternativo”. 1 Embora fosse preciso refletir em que medida a arte e a cultura brasileira se inscrevem nesse pronome coletivo da frase de Huyssen, certo é que a arte moderna no Brasil se instaura sem relação ou nostalgia da produção artística do século XIX, aparentemente incapaz de nos acenar algum futuro, mas apenas nos reter em um passado obsoleto. A inteligência estratégica de nossos modernistas prescreveu que o modernismoignorasse a produção acadêmica e ouvisse os apelos da arte colonial, sobretudo Aleijadinho, que para Mário de Andrade nos atualizava com “toda uma história”. Segundo o crítico paulista, Aleijadinho “evoca os primitivos itálicos, bosqueja a Renascença, se afunda no gótico, quase francês por vezes, muito germânico quase sempre,
————————————————— 1 Huyssen, Andreas. A nostalgia das ruínas.In: Culturas do passado presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória.Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: ContrapontoMuseu de Arte do Rio, 2014, p. 93.
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espanhol no realismo místico”.Da produção acadêmica do século XIX, apenas Almeida Júnior parece-lhe capaz de nos acenar algum futuro e “profetizar para a nacionalidade um gênio plástico”. É inegável que os academicismos que se sucederam ao longo do século XIX apresentam obras tímidas, problemáticas sob os mais diversos aspectos, mas quenos constituemjustamente em sua fragilidade, expondo carências e impasses ainda hoje insolúveis. Recentemente, aarte oitocentista brasileiravem suscitando reavaliações e provocando talvez certa “nostalgia reflexiva”, para usar ainda a expressão de Huyssen, aquela capaz derevelar“que o pensamento crítico e a saudade não são opostos, da mesma forma que as memórias afetivas não desobrigam alguém de compaixão, discernimento ou reflexão crítica”. Não se trata de sonhar com uma suposta grandeza perdida, pois essa nunca aconteceu, mas de resgatar promessas e ideais não realizados, ouviras esperanças extraviadas daqueles tempos.
Não sei se no melhor de seus sonhos, Julieta de França imaginou que o álbum Souvenir de ma carrière artistique seria publicado um dia, mais de cem anos depois dos momentos mais intensos e conturbados de sua vida artística. Embora sua aspiração fosse enquadrar-se no precário sistema da arte acadêmica nacional, em vigência ainda nas primeiras décadas do século XX, o embate enfrentado pela artista para legitimar um de seus projetos artísticostemaspectos marcadamente atuais. Ao desafiar a soberania do júri que em 1906 recusou sua maquete para um monumento à República, Julieta de França lança luz sobre os intricados processos de legitimação da arte e suas condições de produção naqueles anos. A narrativa construída em seu álbum, a partir de documentos cuidadosamente selecionados, não demonstra sua implicação no debate político travado em seu tempo. Tudo parece se dar no campo artístico, onde sabemos que o engajamento político talvez fosse decisivo para a aceitação ou não da obra proposta. Em seu monumento, Julieta faz uso da alegoria feminina, que domina a simbologia cívica francesa da Primeira à Terceira República.Embora seja difícil avaliar os detalhes do monumento a partir das fotografias presentes no álbum, o endereçamento genérico à República era bem pouco capaz de servir aos interesses de qualquer uma das correntes que se debatiam tentando firmar-se como fundadoras da República brasileira. A jovem nação precisava de elementos que buscassem afastar claramente o imaginário monarquista, povoando-o com valores e heróis republicanos. Por outro lado, como artista mulher, a situação de Julieta de França era especialmente audaciosa. Como poderia ela firmar-se como escultora de monumentos, sempre intrinsecamente ideológicos, quando o direito ao voto foi concedido às mulheres em nosso país apenas em 1932? Vale lembrar que a opacidade política não era uma singularidade da atuação de Julieta. Segundo José Murilo de Carvalho, apenas
————————————————— 2 Andrade, Mário. Aleijadinho.In: Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 42. 3 Idem, p. 41. 4 Huyssen, Andreas. Op. cit., p. 93. 5 Carvalho, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 84.
Décio Villares e Eduardo de Sá foram artistas politicamente militantes naqueles anos, ambos comprometidos com o positivismo, como sabemos, uma das correntes que disputou a definição do regime republicano. Mas não me parece exagerado afirmar que o fracasso do monumento de Julieta de França não é maior do que o fracassode grande parte dos monumentos efetivamente construídos em nossas cidades. De que modo fruímos a presençade tantos Florianos e Deodoros erguidos sobre pedestais em nossas praças senão como formas que ao sol da tarde nos projetam as sombras de um passado vago? Talvez apenas a figura de Tiradentes tenha se firmado(mais por obra de pintores do que de escultores)como símbolo de comunhão nacional – esquartejado e ambíguo, entre herói e santo –, atuando sobre nosso sempre tão frágil civismo republicano. Julieta de França ainda não era capaz de perceber odeclínio da prática dos monumentos, seu acentuado desprestígio, detectado com humor e ironia por Robert Musil, em 1932,quando o escritor austríaco afirmounão haver nada mais invisível do que os monumentos públicos. Musilse referia aos monumentos tradicionais, produzidos pela cultura histórica do século XIX, essa mesma tradição a qual a República brasileira recorria na tentativa de dar visibilidade a valores que “formassem a alma” do povo.Há tempos sabemos que a permanência física dos monumentos não os impedem de se tornarem opacos e hieroglíficos. A perda do sentido original de sua fundação acarreta sua transmutação em forma, marco visual capaz de agir na construção mental que fazemos da cidade, construção esta que nos permite a orientação espacial, mas é incapaz de gerar sentido histórico. A perda de sentido dos monumentos orienta um dos mais belos fragmentos de Walter Benjamin, que em “Rua de mão única” nos fala sobre o aspecto indecifrável do obelisco de Luxor deslocado na década de 1830 do Cairo para a Place de la Concorde, em Paris. “Nenhum dentre dez mil que passam por aqui se detém; nenhum entre os dez mil que se detém pode ler a inscrição”. Seria preciso diferenciar o esquecimento produzido pelo excesso de história, que percebemos nas cidades europeias, daquele que é fruto de sua ausência, como acontece entre nós, mas assim sobrecarregaríamos o álbum de Julieta de sentidos demasiados. É preciso respeitar as lacunas, apagamentos e vazios que se inscreveram em seu livro; respeitar sua obra é dimensioná-la em sua justa modéstia. Os documentos que integram o álbum são escritos em uma língua queembora compreensívelnão é mais a nossa, produzindo certa estranheza e esforço de decifração. A caligrafia presente em vários papéis guarda a memória de gestos realizados por corpos versados em disciplinas da qual nos afastamos. Avançar entre as páginas deste álbum é percorrer um espaço esquecido, situado entre o público e o privado,e que subitamente é aberto à visitação. Sua leitura é um esforço semelhante ao de quem retira os lençóis que recobrem os móveis de uma sala que, em vão, aspirou à grandeza. Não sabemos bem o que protegem e talvez jamais saibamos ao certo. Os objetos perderam a forma. Como no portal da Academia Imperial de Belas-Artes, a entropia chegou antes do auge. Uma pátina vigorosa depositou-se sobre tudo euma camadade distância recobre agora as imagens de suas esculturas. Subtraídasdo contexto da arte acadêmica em sua frágilrelação com o imaginário republicano, asfotosno álbum se aproximam estranhamente das esculturas produzidas por Cy Twombly, artista americano, cujas obras ativam memórias inacessíveis, que jamais se entregam, escapando com sabedoria a cada que vez que
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acreditamos tê-las apreendido. Seguem recobertas por uma espécie de matéria que as torna especialmente resistentes às legendas dóceis. No álbum de Julieta, afotografiadeseu monumento dedicado à Retirada da Laguna solicita especial atenção.A foto é tão vaga quanto a marca desse acontecimento histórico em nossa memória coletiva. Em sua condição de imagem, o monumento perde detalhes, e o pedestal, cuja função é elevar a obra inserindo-a em um espaço simbólico distinto, torna-se corpo, silhueta, parte da escultura. Essa indiferenciação dos elementos e o silenciamento da narrativa tornam a imagem da obra mais próxima de experiências sensíveis que realizamos desde a arte moderna. Esse foi também um projeto não realizado, que respondia a uma iniciativa lançada por ocasião do centenário da Independência. Como imagem, o monumento de Julieta assombra aquele efetivamente construído ao pé do Pão de Açúcar, na Praia vermelha, com o qual convivemos sob o signo da paradoxal invisibilidade apontada por Musil. Pois acredito que os monumentos – voltados de maneira falaciosa para a eternidade – não existem apenas quando permanecem fisicamente na cidade. Para existirem, ou seja, para operarem no campo da memória, da história e da cultura, não é imprescindível nem mesmo que tenham, de verdade, sido construídos. Cumprem essas funções, com intensidades muito distintas, é certo, como projeto, maquete ou registro fotográfico. Algumas vezes, como no urbanismo utópico do século XVIII, não pretendiam de fato realizar-se. É o caso também dos desenhos de monumentos imaginários de Claes Oldenburg, que projetou, entre outros, um conjunto de cemitérios verticais espalhados pela cidade de São Paulo em forma de colossais parafusos. Creio que com a publicação do álbum de Julieta, seus projetos passam a integrar a imensa coleção de monumentos não construídos (como o de Morales de Los Rios ao Almirante Barroso) ou depostos ao longo dos séculos,infinitamente mais numeroso do que os que se erguem. Seu álbum nos ajuda a compreender os últimos instantes da produção de arte acadêmica no Brasil, o longo século XIX, e se atualiza como ruína delicada dos primeiros anos de nossa república.
————————————————— 6 Benjamin, Walter. Rua de mão única. In: Obras Escolhidas II. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 36. 7 Trata-se do Monumento aos heróis de Laguna e Dourados, de Antonino Pinto de Matos, situado na praça General Tibúrcio, na Praia vermelha, Rio de Janeiro, que embora tenha sido selecionado em concurso público de 1921, foi construído de fato apenas em 1938. 8 Ramos, Renato Menezes. “História, herói e imortalidade: o projeto não executado de monumento ao Almirante Barroso”, monografia apresentada como trabalho final de graduação, Instituto de Artes da Uerj, 2013.
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Feito este reparo, que tem por fim prevenir desde já qualquer omissão injusta, entremos na seção de escultura. D. Julieta França, que acaba de regressar da Europa, onde esteve como pensionista da Escola, tem talento, extraordinária força de vontade e perseverança, mas falta-lhe o sentimento delicado de Artista. “Confidence”, além de alguns defeitos de modelado, é de concepção pouco elevada. Sabemos como toda a gente o sabe hoje – que a Arte é a Natureza… sim, mas a Natureza refratada no espírito. Copiar na tela ou modelar no mármore uma cena grosseira da vida, é, quando não envergonhar ao próprio homem, pelo menos alienar as suas simpatias. “Confidence” parece-nos uma aberração do sentimento estético e nem sequer tem o mérito de ser o que a Artista quis representar. A artista imaginou uma mulher nua sentada nos joelhos de um homem também nu, que lhe diz confidências ao ouvido; mas fê-lo sem expressão, sem cobrir a realidade com o véu da fantasia, que é o traço subjetivo do artista. Holz definiu algebricamente a Arte na fórmula – Arte = Natureza - x. Ora, é justamente esse xa incógnitaque ao artista cabe descobrir. A Natureza é para ele o que a luz solar é para o fotógrafo: um elemento essencial, mas que não lhe dá nem tira mérito. O x é apenas um fugitivo momento, um trecho da Natureza, a que o artista imprime o cunhodo seu temperamento. Esse momento pode ser heroico ou ridículo, simples ou solene, mas deverá ser sempre alguma coisa de mais ou de menos do que a Natureza: nunca, porém, a Natureza mesmo. [...] (transcrição da imagem da página 40)
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ARTES E LETRAS JULIETA FRANÇA Em 1896 matriculava-se na Escola de Belas-Artes a nossa distinta conterrânea Julieta França. A escola fora remodelada pela reforma de Benjamin Constant e poucos alunos encorajaram-se para vencê-la. A nossa talentosa patrícia fez com distinção notável os preparatórios e matriculou-se. A sua perseverança auxiliou o seu talento; a sua constância nos estudos chamou a atenção dos mestres e condiscípulos e em breve a nossa conterrânea figurava como o primeiro aluno da escola. No primeiro ano de frequência obteve logo o 2ºlugar na aula de pintura e na de modelo vivo teve, desde que a assistiu o lugar na primeira turma, posto que conservou até ao fim do curso. Com três magníficos trabalhos de escultura que apresentou à escola conseguiu o 1ºlugar, em concorrência, o que lhe deu então inscrição ao concurso do premio de viagem. Feito o curso completo de pintura requereu concurso de desenho figurado, prova só extensiva aos professores. A futura escultora fez mais todos os preparatórios e o curso completo da especialidade a que se dedica, na nossa Escola de Belas-Artes, merecendo as melhores notas, pela sua grande aplicação, assídua frequência e decidida disposição para a difícil arte, tão bem definida
pelo ilustre jesuíta padre Antônio Vieira. São três as provas a que se submete o concorrente, a saber: 1ª –Fazer uma prova eliminatória, em quatro horas, de desenho copiado de modelo vivo. Esta prova chama-se eliminatória, porque sendo a primeira a apresentar, põem logo o candidato fora de concurso se não reproduzir todos os caracteres apresentados pelo modelo. 2ª–Admitida a primeira prova fazer, em 30 sessões, em barro, uma cópia de modelo vivo (uma academia), em baixo-relevo, reduzida aproximadamente à metade do tamanho natural. 3ª–Modelar uma cabeça de expressão, tirada à sorte, entrando 7 pontos na urna. O ponto é tirado na ocasião em que o candidato entra no recinto da escola, sendo a prova feita, sem modelo, em 8 horas. Servem para os membros da seção ajuizaremacerca da imaginação e conhecimentos anatômicos do candidato. Feita esta última prova, fica, com as outras duas, durante 8 dias, exposta ao público, sendo julgadas todas no último dia pela seção respectiva (de escultura), que fará relatório do seu julgamento ao conselho escolar. Sancionado por este, o relatório sobe, acompanhado do competente parecer, à aprovação do ministro do Interior. O candidato entra e sabe
no gabinete onde tem de produzir as provas, acompanhado por um professor e[...]. Resta-nos falar da última prova. A academia, que denota rigorosa observação do modelo e no acabamento muito cuidado, qualidade que aconselhamos à jovem artista não perca, ao ouvir todos os dias, junto de si, mormente na grande capital francesa, os novos como ela, falarem de independência de escolas, de fantasias sobre a verdade e de outras coisas muito ruins e muito prejudiciais para a Divina Arte, só bela, quando for, como até ao presente tem sido compreendido por todos os grandes mestres, isto é, quando bem reproduz a Natureza, o sempre novo e eternamente formoso modelo, com o que se aprende a escrever boa prosa, a compor epopeias como os Lusíadas, fazer músicas arrebatadoras, a pintar quadros admiráveis e a arrancar do barro vultos com formas eexpressão humanas –a especialidade dificílima a que se dedicou a senhorita Julieta França. França! Aqui está um prenúncio de bom agouro. Leva com o nome do batismo e do grande país, para o qual se dirige, aonde vai receber a consagração universal, todas as grandes manifestações do progresso humano. Será feliz. Rapim. (transcrição da imagem da página 47)
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CARTAS DE LONGE Paris, 14 de junho de 1902. Antes que se abrissem os dois salons de pintura, o da Sociedade Nacional de Belas-Artes e o da Sociedade dos Artistas franceses, ambos instalados nas vastas dependências do Grand Palais, um com entrada pela avenida d’Antin e o outro recebendo seus hóspedes pelo lado da avenida Nicolan2 com dois vizinhos arrufados, que moram no mesmo prédio, mas não seservem da mesma porta; antes que serealizasse essa solenidade genuinamente parisiense, que se chama o vernissage, isto é, a inauguração, que nada mais é do que um pretexto para a gente chic exibir toilettes ricas, contemplar celebridades artísticas, saturar-se de poeira e falar da vida alheia, não lhe restando, por isso, tempo para dar atenção às obras expostas; antes dessa data, marcada no calendário da elegância como dia santo, ao lado da do Gand-Prix e da Festa das flores, numerosas outras exposições de pintura, escultura, gravura e objetos d’arte sucederam-se em diversos pontos de Paris, mais ou menos concorridas e apreciadas. [...] Verdade seja que uma parte considerável dessas obras, a não ser num certo círculo de amadores, tão desequilibrados de espírito como os que os fizeram [...] outros preparam-se para desenvolver por meio do estudo e da perseverança as naturais disposições da nossa raça para o belo, como o sr. Fiuza e o sr. Braga. Mas o que mais diretamente deve interessar ao Pará é saber notícias do que mais de perto lhe toca, e para isso tive o cuidado de indagá-las bem minuciosas da jovem escultora Julieta França que aqui se acha como pensionista da Academia de Belas-Artes do Rio, e que teve a gentileza de permitir-me uma visita ao seu atelier da rua Falguère. O caminho percorrido pela nossa inteligente patrícia desde que, partindo sozinha e desprotegida para o Rio de Janeiro, entregou-se ao cultivo da arte para que tinha decidida vocação, até obter o melhor galardão que se pode ambicionar na nossa academia que é a bolsa de viagem; a sua tenacidade aqui, através de mil dificuldades e aborrecimentos, em
conquistar, malgrado a sua qualidade de estrangeira, excelentes notas nos cursos da Academia Julian, com as melhores referências de professores tais como o célebre Rodin –são a melhor e mais positiva recomendação para ela, e que seria injustiça recusar-lhe. Nos trabalhos que tem sucessivamente enviado para a Academia do Rio, como provas da sua aplicação ao estudo, é evidente o seu progresso sob o influxo deste empório da Arte que é Paris; e de um para outro como me foi dado ver, o seu aperfeiçoamento ressalta inegável. Se não lhe falharem os elementos indispensáveis à realização do monumento, com que ela conta dar uma demonstração decisiva dos seus esforços, monumento cuja maquetteapreciei, e que representará um acontecimento notável da nossa história contemporânea, penso que esse bastará para conferir-lhe o título de artista consumada, cuja glória refletirá no seu país natal. Infelizmente a estudiosa paraense ainda não conseguiu, por falta de recursos, levar a efeito o sonho que mais afaga, que é o de fundir em bronze algumas das suas obras, até aqui executadas em gesso, sujeitas, por conseguinte, pela fragilidade da matéria, a todas as contingências. Compreende-se que com a simples mesada servida pela Academia do Rio, e que nada mais é que o estritonecessário para manter-se, ela jamais poderá pôr de lado a quantia precisa para uma operação, que não custa pouco dinheiro. Seria fora de propósito aventurar a lembrança de um auxílio do Estado do Pará a uma artista que o está honrando no estrangeiro, a uma vocação que não oferece mais dúvidas sobre o seu positivo valor, e que não carece senão de ser amparada para desenvolver e frutificar. Talvez se oponham a isso quaisquer razões de Estado, entre elas a economia em tempo de crise. Quer-me parecer, todavia, se esta ideia pode merecer consideração junto aos que zelam pelas coisas públicas, que não será essa pequena verba de natureza a tornar o Estado mais pobre, tanto mais quando ninguém empobrece por fazer uma despesa produtiva. JOAFNAS (transcrição da imagem da página 51)
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NOTAS DE ARTE Ao sr. senador Antonio Lemos, intendente de Belém, oficiou de Paris a senhorita Julieta França, aplaudida escultora paraense, propondo-lhe a venda de alguns de seus últimos trabalhos artísticos. A essa proposta acompanham fotografias dos esboços das referidas esculturas, que têm de ser cinzeladas em mármore e, quase todas, reveladoras do belo talento da senhorita Julieta França. Eis a discriminação, com as alturas e preços dos trabalhos oferecidos ao chefe do executivo municipal: – Grupos: a República e o Gênio paraense,3m,95, por 21 contos de réis; Sonho do filho pródigo, 2m,60, por 17:000$;Confidencia[...], por 15:000$. – Estátuas:Amorcaçador, Faceira,Orgulhosa, O Echo, A História de Lindoya, medindo 1m,70, por 7 contos de réis cada uma. – Busto: Mocidade em flor, 4:000$. Conquanto seja bem relativo o juízo que se pode formar de uma escultura através de simples fotografias do esboço em gesso, destacaremos, todavia, a estátua Orgulhosa, pela nobreza da atitude e, principalmente, o busto Mocidade em flor, deveras digno dos aplausos que à sua autora tem conquistado em várias exposições. É este um delicadíssimo produto artístico, do qual ressalta intensa a expressão do semblante da mulher jovem que o cinzel de Julieta França perpetuou entre eglantinas e folhagens viridantes. Agrada-nos, sobretudo, este busto, por ser mais pessoal que todos os outros trabalhos, mais independente, menos adstritoàs regras acadêmicas, à preocupação clássica. D’esta voluntária escravidão de Julieta França às fórmulas oficiais da escultura são, principalmente, testemunhos lamentáveis o Amor caçador e A História: a feitura pode ser correta, a concepção é banal, vista em milhares d’outras esculturas de qualquer época, desde o primeiro ciclo helênico até nossos dias, sem esquecermos o Renascimento. Por termos em grande conta o dúctil espírito artístico da festejada paraense, cuja laboriosa tenacidade é servida por um talento de primor, para
glória do Brasil na Europa e honra da Escola Nacional de Belas-Artes, do Rio de Janeiro, que a laureou, –tomamos a liberdade de apontar-lhe o escolho do classicismo, pedindo-lhe que, fugindo às teorias das cátedras mais ou menos rotineiras de Paris, busque de preferência inspirar-se na sua própria concepção, à luz de uma ilustração digna de nossos tempos. Se lhe merecêssemos a honra de uma ponderação, recomendaríamos à operosa artista paraense a leitura do livro Les trois crises de l’art actuel, de Camille Mauclair, uma das mais profundas e oportunas obras de crítica artística estampadas em fins do ano passado. Ignoramos que solução dará o esclarecido intendente da Capital à proposta da senhorita Julieta França, nem estas simples linhas correntes são traçadas com intuitos sugestivos: quisemos apenas dar a lume a notícia, sem desprezar o ensejo de aduzir considerações invaliosas, porém porventura não de todo inúteis para uma verdadeira artista que não somente sabe ver, mas também sabe observar e refletir. Paraense de Belém. (transcrição da imagem da página 53)
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115 [...] Sintetizaremos as nossas apreciações, dando os mais sinceros parabénsà aproveitável paraense, cujo trabalho de um ano de academia denota boa soma de talento artístico e grande força de vontade. Seus desenhos ocupam o primeiro plano; seu pulso hesita, ainda, no delineamento das figuras das telas a óleo; o colorido nem sempre é natural; carecem às vezes de vida os personagens; as esculturas são ainda imperfeitas; mas é bastante; já é muito, já é admirável o que nos dá Julieta França, ao cabo do seu primeiro ano de tirocínio acadêmico. Ou muito nos enganamos, ou o Brasil artístico alguma coisa deverá, no futuro, a esta esperançosa filha da Amazônia. (transcrição página 53)
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Em torno do projetado monumento ao marechal Floriano nesta capital RIO, 18 — É concebida nos seguintes termos a carta que a viúvado general Joaquim Ignacio dirigiu à escultora Julieta França. “Minha senhora e prezada compatriotaescultorad. Julieta França –Afetuosas saudações –Ontem somente tive conhecimento através da sua entrevista no vespertino O Globo, do modo por que, ao que informam telegramas do Pará, se referiram alguns órgãos da imprensa daquela adiantada capital a iniciativa do meu saudoso marido marechal Joaquim Ignacio para perpetuar no bronze a figura gloriosa do inolvidávelFloriano, em uma das praças de Belém. O esclarecimento que a sua grande alma de patriota e o seu acatado nome de artista trouxeram a publicidade, num nobre gesto de acentuada elevação moral e cívica, é tão cabal que desnecessário se tornaria a deduzir qualquer detalhe que por ventura pudesse trazer. Foi na realidade, a vida do meu falecido marido, tão ilibada que o seu nome é assaz conhecido em todo o nosso querido Brasil. Pelo seu altruísmo, abnegação e probidade, em quase cinquenta anos de vida pública, desveladamente dedicada ao trabalho constante, em prol das causas que recomendam o homem na sociedade, bem mereceu as homenagens sinceras das enérgicas palavras de sua entrevista, que encerram como que uma justa advertência a qualquer obscura intenção que as entrelinhas do comentário acaso pudessem insinuar. Queira, portanto, aceitar em meu nomee no dos meus filhos, a nossa eterna gratidão por sua espontânea, posto que esperada, franca e digna atitude que tanto nos sensibilizou e bastante nos obriga. Desejo ainda dar-lhe ciênciade que um dos meus filhos nesta semana e na primeira oportunidade providenciará seja conhecida em Belém a repercussão, que aqui teve o que lá foi publicado sem a indispensável perquisição. Subscrevo-me com estima, e admiração – Amiga muito grata (a) Leonidia Fernandes Cardoso”. (F.) (transcrição da imagem da página 62)
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Monumento a Floriano A ESCULTORA PARAENSE JULIETA FRANÇA DEFENDE A MEMÓRIA DO GENERAL JOAQUIM IGNACIO RIO, 9 – A escultora paraense Julieta França tendo lido nos jornais telegramas daí sobre o monumento a Floriano Peixoto, procurou o diretor deO Globo, fazendo importantes declarações sobre o assunto. Começou dizendo que através dos comentários da imprensa paraense vê-se a oposição ou a política malsã do Pará, que quer manchar a reputação dum militar dos mais dignos do Exército, caluniando sem escrúpulo a honestidade por demais conhecida do bravo general Joaquim Ignacio. Sente-se, assim, no dever de esclarecer o caso, em que é parte, estando empenhada em que se faça luz sobre a verdade e declara que obteve no concurso o primeiro lugar entre as maquetes apresentadas para a ereçãodo monumento. O produto total da subscrição atingiu 17:000$000 e deduzidas as despesas correspondentes aos prêmios de adaptação da exposição das maquettes, ficaram 8:000$000 para iniciar a construção do monumento, cujo orçamento é de 250:000$000. Adianta mais que, ao receber o prêmio de 5:000$000, assinou um contrato, o qual poderá divulgar em qualquer tempo, para patentear quão baixa é a intenção do politiqueiro que fornece notas tão deprimentes e ultrajantes à memória dum militar que foi honestíssimo, tendo morrido pobre. Lembra que os 40:000$000 a que aludiram jornais mal informados não são produto apenas da subscrição paraense, pois os Estados do Amazonas e Alagoas votaram créditos, respectivamente de 10:000$000 e 20:000$000, os quais ainda não foram entregues à comissão do monumento, perfazendo tudo a importância dos 47:000$000. Explica ainda que, sendo a execução do monumento orçada em 250:000$000, é
claro que não podia ela com 8:000$000 erigi-lo e que isto mesmo ficou esclarecido quando foi receber o prêmio no Pará, tendo acordado com os interessados que aqui esperaria, como está esperando, poder continuar a execução do seu projeto já começado e não continuado por falta absoluta de dinheiro. Conclui dona Julieta França com as seguintes palavras: “Procurei no leito, já moribundo, o general Joaquim Ignacio, mostrando-lhe o tópico dum jornal paraense, aqui transcrito, ondeointerpelavam sobre o destino desse dinheiro. O general, num digno esforço de hombridade, assentou-se no leito de morte e sobre os joelhos, escreveu de próprio punho, um protesto e retificação a tal lamentável incidente. Não tinha ainda terminado, quando forte crise o acometeu, não lhe consentindo prosseguisse, ao que se opôs o bravo general, dizendo: “Mesmo morrendo, preciso cumprir um dever.” E pegando de novo a pena concluiu sua defesa, que remeti para o Pará. Tive profundo pesar em trazer ao leito de um moribundo dos mais ilustres e dignos, e que tanto honrou a pátria, servindo-a em vários atentados contra ela, um caso desses. (F) (transcrição da imagem da página 63)
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123 Julieta França, a nossa ilustre conterrânea, discípula lau reada da Escola Nacional de Belas-Art es, que lhe conferiu o prêmio de viagem à Europa, da seção de escult ura, consagração do alto mérito e do superior talento de que deu provas sobejas em 24 exames e concursos durante o período acadêmico de seus estudos, uma vez terminado s estes, seguiu para Paris, a aperfe içoar-se. E fê-lo com tanto bri lhantismo e real aproveitamento, que , seguindo na Académie Julien o curso de Verlet, o estatuário insign e, que é uma fulgente glória da moderna França artística, aí foi van tajosamente classificada em vár ios concursos, com menções que lhe deram honrosa posição entre os mai s notáveis de seus colegas, art istas já feitos e de nome presti gioso no meio acadêmico parisiense. Emancipada do tirocínio escolar, terminado este após as mai s concludentes provas de mestria técnica, era justo que tentasse por si só a produção profissional art ística, entre os diversos esboços de grandes obras escultóricas que concebeu com arrojo e largueza, como com independência e originalidade, marcados com o selo do bom gosto e da harmonia plástica, a todos sobrelevou, pelo grandioso da ideia e a oportunidade do ass unto, o monumento glorificador da República brasileira, interpretado expressamente para comemo rar o evento político de 15 de novembro de 1889. Inspirada da nobre audáci a que é característica do seu tem peramento impulsivo, com um subjetivi smo imaginoso muito seu, a artist a, insubmissa por índole, pessoalís sima e plena senhora de si, interp retou o magno acontecimento da imp lantação da democracia em nosso paí s em imagens e linhas de grande poder sugestivo, compondo-as com acentuada vibração e aplicando-as sobre massa arquitetônica de agradável efeito e equilíbrio, produz indo um conjunto ao qual não falta majestade, imponência, beleza est ética e significação[...] (transcrição da imagem da pág ina 66))
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UMA ARTISTA BRASILEIRA
tal na feição humanística de Fon-Fon. Quem terá razão, o arquiteto Augusto Vianna ou Rodin? O Sr. Zeferino Costa ou Teixeira Lopes?
Não é desconhecido nem privado de mérito o nome de Julieta de França.
Como decidirá o Congresso este caso, no qual está em jogo o mérito de uma distinta Escultora?
Da Fon-Fon de 11 de julho 1908
Discípula da nossa Academia de Belas-Artes, conquistou, em concurso, o prêmio de viagem à Europa. Era, portanto, uma discípula distinta na nossa incompreensível Academia. No velho mundo Julieta de França dedicou-se seriamente à sua Arte, frequentou os principais mestres, conseguiu vários prêmios honrosos. De volta ao Brasil, a distinta escultora propôs-se vender ao Governo o seu monumento à “Glória da República do Brasil” e dirigiu-se para isso ao Congresso, que, acertadamente mandou ouvir a nossa douta academia, A comissão, composta dos Srs. Rodolfo Bernardelli, Girardet, Zeferino Costa e Araújo Vianna, foi de parecer que o projeto de Julieta de França “não satisfazia”, o que quer dizer que a ciência solene da Academia reprovava o trabalho da discípula, que pouco tempo antes lhe havia merecido a distinção de um prêmio. D. Julieta de França partiu de novo para a Europa e submeteu seu trabalho à opinião de Grandes Mestres da Escultura. Estas opiniões reuniu ela em livro, do qual nos ofereceu um exemplar. São firmadas pela competência de Verlet, Rodin, Teixeira Lopes, Maignan, Carolus Duran, Injalbert e muitíssimos outros, que atestam o valor do monumento, contendo também o mesmo livro opiniões do Mestre querido e notável que é Rodolfo Amoedo, do magistral artista do pincel, que é Eliseu Visconti, e outros nomes consagrados. A citada comissão da Academia de Belas-Artes nega valor ao trabalho de Julieta de França, ao passo que um grande número de Artistas, cuja fama não se limita às salas e corredores danossa Academia, afirmam-lhe a superioridade. E agora? Chega a ser uma coisa pilhérica e como
Damos a seguir a fotografia monumento de Julieta de França.
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Legenda da imagem: Projeto de um monumento à República do Brasil por Julieta de França. (transcrição da imagem da página 67)
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O monumento ao Dr. Affonso Penna Escrevem-nos: “O nome de Julieta de França, [...] corajosa artista brasileira que na nossa Escola de Belas-Artes conquistou a golpes de talento o prêmio de viagem à Europa, é bastante conhecido dos que no nosso meio se interessam pelas coisas de arte, para que seja necessário preconizá-lo. Julieta de França apresenta-se concorrente à execução do mausoléu do Dr. Affonso Penna, e, a ser tomado em consideração o nome desta[...] artista, a ela parece deve ser, por gratidão dos brasileiros,confiada essa missão. A maquetteque vimos figurar na exposição da Escola é um documento formal, indiscutível, bem palpável de que esta moça, de real talento, não perdeu tempo na Europa. É de um modo singularmente característico que Julieta de França tratouo assunto daquela ordem,reunindo em um conjunto simpático toda a vida de um homem da envergadura do Dr. Affonso Penna.[Na]maquette reúnem-seas três mais elevadas virtudes do Exmo. Presidente, as quais ele próprio no estertor da morte balbuciou e foram elas –Deus, Pátria, Família. Para a sua característica fé católica Julieta de França representouno alto e face do mausoléu, como que dominando aquela estátua rígida coberta pela bandeira até ao peito, o Christo,cuja serenaatitudeatirasobre si o primeiro golpe de vista, e ele descepelos braços distendidosdaquela imagem sagradaaté fixar-se na estátua do ilustre morto que a bandeira da República Brasileira amortalha orgulhosamente. A Pátria, a inspirada artista expressa-a pela República, que, à direita do morto, envolta em denso crepe e reverente, vem oferecer-lhe a palma. A Família, esta é de modo tão elevadamente representada por uma mulher curva de dor e conchegadoa si o filhinho, que bastava este grupo para elevar a maquette de Julieta de França ao primeiro lugar. Na arquitetura, as armas da República e duasbelas águias que se harmonizam perfeitamente, dando a esse ensemble a maior simplicidade monumental, vê-se e pode-se dizer com certa vaidade que temos nascida entre nós a arte moderna, a arte sentimental.” (transcrição da imagem da página 68)
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26 DE OUTUBRO DE 1921
A comemoração do Centenário Nesse sentido foi aberto um curso de maquettes tendo concorrido vários artistas, em número de dezoito, cujos trabalhos [foram] expostos no salão do 5ºandar do edifício do “Jornal do Commercio” e julgados por uma comissão especialmente nomeada. O julgamento, porém, ao que nos informam, não obedeceuao princípio de justiça. É assim que foi classificado em primeiro lugarum trabalho que não preenchia a condição principal do edital de concorrência.
[...] O edital de concorrência, na sua cláusula 9ª, prescreve: “Tendo-se em conta o isolamento do Monumento, no extremo de um cabo, fronteiro à barra, o concorrente procurará reunir à sua perfeição artística tudo o que de grandioso e impressionante for possível, já pela concepção, já pelo conjunto”. Ora, disse-nos aquela escultora patrícia que o trabalho classificado não consistia essa cláusula na[...] Entretanto, atendendo à reclamação que nos fez, em nossa
redação, aquela concorrente, transmitimo-la a quem de direito, tanto mais quanto se trata de assunto que diz respeito à celebração do Centenário e, só por isso, deverá ser apreciado com muito apuro e elevação de vistas, para que possa haver o estímulo que é um dos principais elementos para que todos nós concorramos para o êxito da comemoração da grande data histórica. (transcrição da da página 83)
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Pátria 26 outubro 1921 O SR. CALÓGERAS NA PRESIDÊNCIA DE UM JÚRI DE ARTE Entrevista com a escultora Julieta França Estão em exposição, no salão do “Jornal do Commercio”, as maquettes dos artistas que apresentaram trabalhos ao concurso do monumento dos heróis de Laguna e Dourados. A comissão julgadora dos trabalhos já se reuniu, sob a presidência do sr.Calógeras, e como nos constava que o julgamento proferido não tomara em consideração nem o valor artístico das maquettes concorrentes, nem as próprias condições estabelecidas para a fatura do monumento, aproveitamos a oportunidade de falar àescultora Julieta França para solicitar-lhe informações mais precisas. A distinta escultora brasileira, cujos trabalhos já a consagraram como uma grande artista, assim respondeu às nossas perguntas: –Apresentei um trabalho a esse concurso, juntamente com o arquiteto sr. José Fraduan e com grande surpresa o vimos excluído pela decisão da comissão julgadora.
A exclusão desse trabalho é tanto mais injusta quando é ele o único que corresponde à exigência do edital que para tal fim foi publicado. Ele determinava o seguinte: “Tendo-se em conta o isolamento do monumento, no extremo de um cabo, fronteiro à barra o concorrente procurará reunir à sua perfeição artística tudo que de grandioso [e] impressionante for possível”. Pois bem o monumento por nós concebido era o único que correspondia a essa exigência: tendo 33 metros de altura e à extremidade um grande farol era visível de dia ou de noite à grande distância. Era em suma um monumento próprio ao local, onde deveria ser instalado. Não dizemos que entre os demais 17 trabalhos apresentados não existiam trabalhos de arte; somente não são aplicáveis ao local apontado, uma ponta dum cabo, em frente à barra…
Eu quis realizar um trabalho de arte para o centenário da nossa independência, pondo o meu esforço nesse intuito, e creio tê-lo feito, e o que fiz poderá ser apreciado no salão do “Jornal do Commercio”.
Por esses motivos, o que tenho a dizer sobre este assunto não é senão um protesto contra a decisão da comissão julgadora, a qual, presidida pelo sr. Calógeras, só tinha um técnico, o sr. Corrêa Lima. Os outros membros eram engenheiros, um senador...
Lá está a maquette apresentamos.
(transcrição da imagem da página 85)
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CRONOLOGIA
1872 Nasce Julieta de França, em Belém, Pará, filha do maestro Joaquim Pinto de França e de Idalina Pinto de França. Em Belém, inicia seus estudos artísticos com Domenico de Angelis. 1897 Inscreve-se na Escola Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro. 1898 Expõe no Salão da Mina Musical, em Belém, Pará. Matricula-se na aula de modelo vivo do ENBA. 1899 Recebe o Prêmio de Viagem ao Exterior pela ENBA. 1900 Desembarca em Paris e matricula-se na Académie Julian. Mora em Paris, como Pensionista da União, pelos próximos cinco anos. 1902 Matricula-se no Institut Rodin. 1903 Medalha de prata na X Exposição Geral de Belas-Artes, da ENBA. 1905 Exibe obra no Salon da Société Nationale de Beaux Arts, de Paris. 1906 A obra O sonho do filho pródigo é aceita no Salon da Société Nationale de Beaux Arts, de Paris. Recebe crítica positiva, assinada por Henri Dac para o jornal Univers, de Paris. Retorna ao Brasil. Participa da XIII Exposição Anual de Belas-Artes e recebe a medalha de prata. Candidata-se ao concurso que escolheria o monumento comemorativo à Proclamação da República brasileira. É desclassificada pelo júri. Retorna à Europa com sua maquete e solicita avaliações de seus antigos professores, inclusive Auguste Rodin. Após receber julgamento favorável de 57 nomes, retorna ao Brasil e questiona sua desclassificação pelo júri brasileiro. 1909 Apresenta-se pela última vez no Salão da ENBA. 1912 Esculpe o busto do Barão do Rio Branco, patrocinado pela Prefeitura de Belém, Pará. Década de 1920 Aprovada em concurso como professora de modelagem no Instituto de Surdos e Mudos, Rio de Janeiro. 1921 Primeiro lugar no concurso público lançado pelo Estado do Pará para esculpir o monumento em homenagem ao marechal Floriano Peixoto. 1951 Falece no Rio de Janeiro.
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Referências bibliográficas
SOBRE OS AUTORES
Cavalcanti, Ana. Souvenir de ma carrière artistique. Uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira. Anais do Museu Paulista (Impresso), v. 15, p. 249-278, 2007.
Amanda Bonan Historiadora da arte e sócia diretora da Coletiva Projetos Culturais, onde desenvolve projetos de pesquisa e curadoria em artes visuais e cinema. Mestre em História e Crítica da Arte na Uerj. Tem graduação em Produção Cultural pela UFF. E-mail: amanda.bonan@coletiva.art.br
______. Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras, 1884-1922. 1ª ed. São Paulo: Edusp-Fapesp, 2008, v. 1. 336p. Cavalcanti, Ana; Valle, Arthur; Dazzi, Camila (orgs.). Oitocentos. Arte brasileira do Império à Primeira República. 1ª ed. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes/UFRJ, 2008, v. 1, Danziger, Leila. Diários públicos: memória e esquecimento. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, Mestrado da Universidade Federal de Goiás, 5(2), julho/dezembro de 2007; publicado também em Visualidades (UFG), 5:79-91, março de 2009. Danziger, Leila; Costa, L. C.; Seligmann-Silva, M.; Cabo, S.; Lins, Vera. Diários públicos: sobre memória e mídia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Contracapa-Faperj, 2013, v. 1. 224p. Gracie, Reila (org.). Julieta e Nicolina – duas escultoras Brasileiras. Textos de Paulo Sérgio Duarte e Noemi Ribeiro. Rio de Janeiro: Prestígio, 2009, 132p. Fabris, Annateresa (org.). Crítica e modernidade. 1ª ed. São Paulo: ABCA-Imesp, 2006, v. 1. Bueno, Maria Lúcia (org.). Sociologia das artes visuais no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Senac, 2012, v. 1.
FICHA CATALOGRAFICA
Ana Paula Cavalcanti Simioni Docente do Instituto de Estudos Brasileiros/USP. Doutora em Sociologia pela USP. Autora de Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras, 1884-1922 (São Paulo: Edusp-Fapesp, 2008). E-mail: anapcs@usp.br. Leila Danziger Artista plástica, pesquisadora e professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduou-se em artes pelo Institut d’Arts Visuels d’Orleans, França. É doutora em história da arte pela Puc-Rio, com pós-doutorado pela Bezalel Academy of Arts and Design Jerusalem, Israel. Publicou Diários públicos (Contra Capa-Faperj, 2013), Todos os nomes da melancholia (Apicuri, 2012) e Três ensaios de fala [poesia] (7Letras, 2012). E-mail: leiladanziger@gmail.com
Lia Baron Doutoranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Fez o mestrado Crossways in European Humanities – Erasmus Mundus (2009), com bolsa da União Europeia. Graduou-se em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (2005). É sócia diretora da Coletiva Projetos Culturais. Atua nas áreas de Comunicação e Produção Cultural (especialmente em gestão pública de cultura). E-mail: lia.baron@coletiva.art.br
PRODUÇÃO GRÁFICA
Sidnei Balbino TRATAMENTO DE IMAGENS
André Cossich TRANSCRIÇÕES
Janaina Garcia REVISÃO DE TEXTO
Rosalina Gouveia CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS DA REPRODUÇÃO DO ÁLBUM
AGRADECIMENTOS
Ana Paula Santos (Centro de Artes Visuais da Funarte) Ernandes Evaristo Lopes (Museu Paulista/USP) Flávia Urzua (Museu Paulista/USP) Geraldo Marcolini José Roberto de França Arruda Tomás Bonan Marcolini
As imagens do álbum são propriedade do Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
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Este projeto foi contemplado pelo Edital Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais, em 2013/2014.
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