badenheim 1939
badenheim 1939
aharon appelfeld
Tradução do hebraico por Moacir Amâncio
Título original em hebraico: Badenheim Ir Nofesh Copyright © 2006, Aharon Appelfeld Amarilys é um selo editorial Manole. Este livro contempla as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Editor-gestor: Walter Luiz Coutinho Editor: Enrico Giglio Produção editorial: Luiz Pereira Design de capa: Axel Sande | Gabinete de Artes Editoração eletrônica: Luargraf Serviços Gráficos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Appelfeld, Aharon Badenheim 1939 / Aharon Appelfeld ; tradução do hebraico Moacir Amâncio. -- Barueri, SP : Amarilys, 2012. Título original: Badenheim Ir Nofesh. ISBN 978-85-204-3264-8 1. Ficção israelense I. Título. 12-06454 CDD-892.43 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura israelense 892.43 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos 1a edição – 2012 Editora Manole Ltda. Avenida Ceci, 672 – Tamboré 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel. (11) 4196-6000 – Fax (11) 4196-6021 www.manole.com.br | www.amarilyseditora.com.br info@amarilyseditora.com.br Impresso no Brasil | Printed in Brazil
Prefácio
O
escritor Aharon Appelfeld nasceu em Czernovitz, Romênia, em 1932. Aos oito anos, os nazistas o levaram, junto com o pai – a mãe já estava morta – aos campos de concentração, separando-os. O menino conseguiu fugir do campo e, como lembra, passou a viver entre os marginais, gente que não tinha motivos para fazer muitas perguntas. Ele evitava falar para que não percebessem o sotaque alemão, idioma que utilizava em casa e o identificaria como judeu. O capítulo durou três anos, até a chegada dos russos em 1944. Passou então a trabalhar para o exército como ajudante de cozinha, lavando pratos, descascando batatas etc. Com o exército russo foi da Ucrânia à Iugoslávia e de lá para a Itália, de onde seguiu para Israel. Levaram-no para um kibutz, fez o exército, aprendeu hebraico e estudou na universidade. Sua história é espantosa, como a de todos os sobreviventes, pelo próprio fato da sobrevivência: quando tinha trinta anos viu numa lista de recém-chegados um nome idêntico ao de seu pai. Pelo sim, pelo
não, procurou o homem. Foi o reencontro com o pai, com quem pôde enfim conviver. Suas primeiras tentativas de escrita – como me contou numa tarde chuvosa de inverno, em sua casa de Mevasseret Tsion, bairro dos arredores de Jerusalém – foram frustrantes. O texto não funcionava. Ele explica o motivo da seguinte maneira: “Porque eu escrevia o que tinha me acontecido. Se você escreve sobre o que lhe aconteceu isso é mais memória, não é criação. Quando escrevi a novela Tzili, esta é minha história, mas não é a minha história. No momento em que você escreve da memória, é a memória que escreve, não você. Agora, quando você escreve sobre uma garota, você já precisa perguntar, isso está correto ou não? Assim se comportam ou não? Você tem um processo criativo. Não é o que aconteceu de fato, mas... este é um sentimento correto ou não? Como o pintor que usa a cor verde, ou vermelha, talvez aqui, ali, esse é o processo criativo. Agora, todos os detalhes são autobiográficos, mas ao mesmo tempo, não.” E frisa: “Tudo o que escrevo é autobiográfico”. Mas não é memória, aí está o segredo do grande ficcionista que dedicou toda sua obra a uma temática única, recebeu os principais prêmios israelenses e foi traduzido para mais de vinte idiomas: “Eu não escrevo sobre a Shoá, eu escrevo sobre o indivíduo em tempos de cata-
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clisma. Eu escrevo sobre mulheres, crianças, adultos e velhos. Eu não acho que um escritor ou qualquer pessoa possa escrever sobre seis milhões de pessoas assassinadas. É impossível escrever sobre a morte. O que sabemos da morte? Eu escrevo principalmente sobre pessoas em tempos de cataclisma. Uma vez que a nossa história é cataclísmica, com muitos anos de cataclisma, o que escrevo é parte da história judaica. Eu tento entender o destino e o modo de ser dos judeus”. As interrogações implícitas nisso estão, claro, presentes na estranha narrativa de Badenheim, Estância de Veraneio, título original. Estranha porque o realismo revela-se fantástico e vice-versa. O narrador fala a partir de um ponto no passado, mas, de repente, a cena é presentificada como se o tempo houvesse parado num presente eterno. Trata-se de uma história com final conhecido, mas, apesar disso, ela não se fecha: voltada para si mesma, ela repete as interrogações e a angústia daquelas personagens que se debatem, riem, vão a paroxismos, numa situação limite de sua perplexidade. A intuição do horror, a sensação do absurdo, formam a atmosfera desse teatro de marionetes profundamente humanas que se movimentam aturdidas pelas páginas do livro. A inexorabilidade confere o tom – durante a tradução, lembrei-me de Vidas secas, de Graciliano
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Ramos, por causa do que há de previsível numa situação intolerável que apenas prossegue rumo a uma fatalidade. Ou seja, como em Kafka, o chegar é o não chegar. Moacir Amâncio Poeta, tradutor e professor de literatura hebraica na USP
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A
primavera voltou a Badenheim. Na igreja de aldeia, próximo à cidade, os sinos badalaram. A sombra das árvores retirou-se para a floresta. O sol desfez os restos de escuridão e a luz estendeu-se ao longo da rua principal e, então, de praça em praça. Era um instante de transição. Os veranistas estavam prestes a invadir a cidade. Dois fiscais seguiam pela rua e examinavam os encanamentos. A cidade, que trocara muitos moradores no correr dos anos, mantinha a beleza, uma beleza singela. Trude, a mulher enferma do dono da farmácia, estava à janela. Observava as cercanias com um olhar fragilizado, olhar de uma doente crônica. Piedosamente a luz tocou seu rosto pálido, ela sorriu. Um inverno estranho, um inverno duro passara pela cidade. A fúria das borrascas arrancava o telhado das casas. Boatos se espalhavam. Quando dormia, Trude mergulhava em visões. Martin não saía de perto da cama. Ela falava o
tempo todo sobre a filha casada e Martin garantia que tudo estava em ordem. Assim se passou o inverno. Agora ela estava à janela como se houvesse ressuscitado. As casas baixas, bem cuidadas, de novo aparentavam tranquilidade. Ilhas brancas dentro de um mar verde. — O correio chegou? — perguntou Trude. — Hoje é segunda-feira, o correio chega só após o meio-dia. O carro do empresário, o doutor Pappenheim, irrompeu da floresta e parou na rua principal. O doutor desceu e fez um aceno. Ninguém respondeu. A rua estava mergulhada em silêncio. — Quem foi que chegou? — perguntou Trude. — O doutor Pappenheim. O doutor Pappenheim trouxe o bafo úmido da cidade grande, com algo de euforia e insegurança. Matava o tempo no correio: telegramas e cartas expressas. Além da chegada do doutor Pappenheim não aconteceu coisa alguma. A luz da primavera se derramava amena, igual a todo ano. Depois do meio-dia as pessoas entravam no café e atacavam o sorvete cor de rosa. — O correio já chegou? — repetiu ela. — Chegou. Nada para nós. — Nada. — Agora podia-se perceber a doença na voz dela. Trude retornou à sua cama, a testa em febre. Martin tirou o casaco e sentou ao seu lado. 10
— Não se preocupe, há apenas uma semana recebemos uma carta. Está tudo em ordem. Os delírios dela não se apaziguavam. — Por que ele a espanca? — Ninguém a espanca. Leopold é uma pessoa adorável e gosta dela, o que você tem na cabeça? Ela calou como se tivesse sido admoestada. Martin estava cansado, apoiou a cabeça no travesseiro e dormiu. No dia seguinte surgiram os primeiros veranistas. A frente da confeitaria estava enfeitada com flores. No jardim do hotel via-se o professor Fussholdt e sua jovem esposa, o doutor Schutz, a senhora Zauberblit. No entanto, para Trude, era como se não fossem os conhecidos veranistas mas sim doentes que vinham para um sanatório. — Você não se lembra do professor Fussholdt? — perguntou Martin. — Eles parecem muito pálidos. — Vieram da cidade — disse Martin na tentativa de distraí-la. Agora Martin sabia que sua mulher estava muito doente. Os medicamentos não adiantariam. Para ela, todo mundo parecia fraco, doente e envenenado. A filha casada, prisioneira, espancada. Martin tentava inutilmente falar-lhe ao coração. Ela parou de ouvi-lo. À noite, Martin sentou e escreveu uma carta à filha, à Helena. “A primavera em Badenheim está bela e atraente. 11
Os primeiros veranistas já chegaram. Apenas mamãe é que anda muito saudosa.” A doença de Trude infiltrava-se nele pouco a pouco. Também ele começou a perceber nos rostos daquelas pessoas as manchas da palidez. Desde o casamento de Helena estava tudo diferente em casa. Por um ano tentaram impedi-la, mas nada funcionou. Ela estava completamente envolvida, como dizem. E o casamento, apressado, aconteceu. O verde escuro dessa primavera brotava nos jardins. As duas prostitutas locais, Sally e Gertie, vestiam-se conforme a estação, de modo primaveril, e desfilavam no passeio. Em certa época os moradores do local tentaram afastá-las. A luta que havia começado muitos anos atrás terminou sem resultado. O lugar acostumou-se a elas como se habituara às excentricidades do doutor Pappen heim e aos veranistas estranhos que se plantavam por aqui como uma raiz doente. O dono da confeitaria não as autorizava a pisar ali e assim permaneceram a distância as tortas de creme mais saborosas do mundo. Certa vez o doutor Schutz, juvenil, admirador de Sally, levou ao passeio algumas tortas para ela. A coisa caiu no conhecimento do dono da confeitaria e ele armou escândalo. No entanto a luta do dono da confeitaria também foi inútil. — Como vão as moças? — perguntou o doutor Pappenheim, de maneira festiva. 12
No correr dos anos haviam perdido a pose urbana, compraram uma casa modesta e começaram a se vestir como as moradoras antigas. Houve época em que organizavam festas escandalosas. Mas os anos e as concubinas locais acabaram por colocá-las de lado. Não fossem suas poupanças a situa ção seria péssima. Não restava a elas mais do que as lembranças, e nas compridas noites de inverno elas as puxavam do esquecimento, como viúvas. — Como foi o ano? — Tudo em ordem — disse Pappenheim, com alegria. — Inverno estranho, não? Elas gostavam de Pappenheim e com o tempo passaram a nutrir interesse nos seus artistas estranhos. Nesse mundo estrangeiro, procuravam firmar pé onde desse. — Não há com o que se preocupar, não há com o que se preocupar, o programa do festival está generoso este ano, e há muitas surpresas. — Quem virá, desta vez? — Um iánuko,1 um menino-prodígio, eu o descobri no inverno em Viena. — Um iánuko — disse Sally num tom maternal. No dia seguinte, os veranistas já inundavam Badenheim. O hotel rugia. A luz da primavera e o júbilo das pessoas enchiam as ruas; no jardim 1. Bebê. Termo iídiche proveniente do aramaico ianuká. Usado de maneira irônica para sugerir protecionismo. (N.T.) 13
do hotel os carregadores mais uma vez transportavam malas coloridas. O doutor Pappenheim encolhia-se constrangido. O quadro com a programação estava bagunçado. Ele corria de uma rua para a outra. Há anos os artistas o enlouqueciam, dessa vez por certo eles queriam arruiná-lo e destrui-lo de uma vez. As pessoas deixavam as malas no hotel e iam para a floresta. O professor Fussholdt e sua jovem esposa. Um homem alto conduzia a senhora Zauberblit com solenidade cerimonial. — Por que não seguimos à esquerda? — perguntou a senhora Zauberblit, e as pessoas realmente se dirigiram naquela direção. O doutor Schutz arrastava-se atrás deles, parecia enfeitiçado. — Por que eles andam tão devagar? — perguntou Trude. — Porque vieram veranear — disse Martin, como se explicasse algo simples. — Quem é o homem que está com a senhora Zauberblit? Decerto é o irmão dela. — Não, querida, o irmão dela está morto, morreu há muitos anos.
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