A história secreta de Paris

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Título original em inglês: Paris – The secret history Copyright © 2006, Andrew Hussey Amarilys é um selo editorial Manole. Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil. Capa: Gabinete de Artes Imagem de capa: Vista de Paris, c. 1890 (Wikipedia Commons) Projeto gráfico e editoração eletrônica: Daniel Justi Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)    Hussey, Andrew     A história secreta de Paris / Andrew Hussey;    tradução Fabiana de Carvalho. – Barueri, SP:    Amarilys, 2011.

Título original: Paris : the secret history. Bibliografia. ISBN 978-85-204-3262-4

1. Paris (França) - Civilização 2. Paris    (França) - História 3. Paris (França) - Vida    intelectual 4. Paris (França) - Vida social e    costumes I. Título. 11-06395

CDD-944.361

Índices para catálogo sistemático: 1. Paris : França : Civilização 944.361 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por Xerox. A Editora Manole é afiliada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos. 1a edição brasileira – 2011 Direitos em língua portuguesa adquiridos pela: Editora Manole Ltda. Av. Ceci, 672 – Tamboré 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel. (11) 4196-6000 – Fax (11) 4196-6021 www.manole.com.br / www.amarilyseditora.com.br info@amarilyseditora.com.br Impresso no Brasil. Printed in Brazil.


Para a minha mãe, Doreen. E para o meu pai, John Hussey – flâneur extraordinaire.


Eu corri tão longe para fazer este retrato de Paris que posso honestamente dizer que o fiz com minhas próprias pernas. Também aprendi a caminhar nas pedras da capital de um modo ágil, rápido e alegre. Esse é o segredo que uma pessoa tem que aprender para ver tudo. Louis-Sébastien Mercier, Le Tableau de Paris, 1782–88

Explorar Paris... Ivan Chtcheglov, Internationale Situationniste, 1957


su már io

Lista de ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . x Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . xiv Introdução: A autópsia de uma velha prostituta . xv

Parte um O Velho Oceano, pré-história a 987 d.C. Água suja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3

Cabeças cortadas . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Deuses do mar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Infiéis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Parte dois Cidade da alegria, 988-1460 Um lugar cruel e brilhante . . . . . . . . . . . . 55 Geometria sagrada . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Amantes e eruditos . . . . . . . . . . . . . . . . 69 Santos, poetas, ladrões . . . . . . . . . . . . . . . 81 Destruindo o templo . . . . . . . . . . . . . . . 92 Rebeldes e revoltas . . . . . . . . . . . . . . . . 99 Os demônios ingleses . . . . . . . . . . . . . .

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A dança de Machaberey . . . . . . . . . . . . . . 112 Mapas e lendas . . . . . . . . . . . . . . . . .

124

Parte três Cidade matadouro, 1461-1669 Escuro com excesso de luz . . . . . . . . . . . . 131 Escolha agora: a missa ou a morte! . . . . . . . . 140


Tanto acima quanto abaixo . . . . . . . . . . . . 150 Dias sinistros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158 Tornando o paraíso visível . . . . . . . . . . . . 167 Uma confusão maravilhosa . . . . . . . . . . .

176

Parte quatro Nova Roma e velha Sodoma, 1670–1799 Esplendor e miséria . . . . . . . . . . . . . . . 187 Sombra e fedor . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 Manifesto pornô . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 Visão noturna . . . . . . . . . . . . . . . . . .

217

Da revolta à revolução . . . . . . . . . . . . . . 230 O caminho sangrento para a utopia . . . . . . . 240

Parte ci nco Casa dos sonhos, cidade dos sonhos, 1800-50 Império . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

251

Ocupação e restauração . . . . . . . . . . . . . 264 O mundo burguês de Luís Felipe . . . . . . . .

273

O espelho de Balzac . . . . . . . . . . . . . . . 284 A era da desobediência . . . . . . . . . . . . . . 293

Parte seis Rainha do mundo, 1851-99 O império dos cretinos . . . . . . . . . . . . . 308 Fantasmas à luz do dia . . . . . . . . . . . . . . 317 Relâmpago vermelho . . . . . . . . . . . . . . 329 Depois da orgia . . . . . . . . . . . . . . . . . 348

Parte sete Campos magnéticos, 1900-39 Novos espíritos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371 Novas guerras . . . . . . . . . . . . . . . . . . 384 Os camponeses de Paris . . . . . . . . . . . . . 395 Cai a escuridão . . . . . . . . . . . . . . . . . 406


Parte oito A capital da traição, 1940-44 Noite e neblina . . . . . . . . . . . . . . . . . 423 Patriotas e traidores . . . . . . . . . . . . . . . 442

Parte nove Sociedade do espetáculo, 1945-2005 Paisagens depois da batalha . . . . . . . . . . .

457

A sétima “Wilaya” . . . . . . . . . . . . . . . 469 Uma conspiração obscura . . . . . . . . . . . .

481

O assassinato de Paris? . . . . . . . . . . . . . . 497

epílogos Paris underground . . . . . . . . . . . . . . . . . 518 Paris à deriva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 521 Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 525 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551 Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . 555


Lista d e ilus tr açõ e s

Página 2: Lutécia durante a ocupação romana (c.50 a.C. até 400 d.C). Página 38: Paris durante o período merovíngio (c.490-640). Página 54: Vista de Paris no século XI por Adolphe Rouargue (181070). (Mary Evans Picture Library) Página 130: Um mapa de Paris, La Ville de Paris, par tout tant renommée, & principale ville du royaume de France, en 1548, por Sébastien Munster, 1568. (Bibliothèque Nationale de France) Página 186: Vista de Paris por um artista desconhecido, século XVII. (Musée Carnavalet, Paris; © Foto RMN/Bulloz) Página 250: Vista de Paris de um balão acima da Île Saint-Louis por Louis-Jules Arnout, 1846. (Cliché Bibliothèque Nationale de France, Paris) Página 306: Desenvolvimento de estradas em Paris entre 1850 e 1914. Página 370: Mapa do metrô de Paris em 1900. (© Collection RogerViollet) Página 422: Sinais de trânsito alemães em Paris, 1942. (Keystone/Getty Images) Página 456: La beauté est dans la rue, grafite, maio de 1968, Paris. Ca d er n os de imag en s

1. Os líderes gauleses unidos contra Julio César (100-44 a.C.), liderados por Vercingetorix (ob. 46 a.C.), de uma capa para proteção de livros escolares, litografia colorida do final do século XIX. (Coleção particular; Archives Charmet/Bridgeman Art Library) 2. Lutécia ou o segundo mapa de Paris nos séculos IV e V d.C., Escola Francesa, 1722. (Bibliothèque des Arts Décoratifs, Paris; Archives Charmet/Bridgeman Art Library)


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3. Sainte Geneviève gardant ses moutons, óleo sobre tela, Escola Francesa, século XVI. (Musée de la Ville de Paris, Musée Carnavalet, Paris; Archives Charmet/Bridgeman Art Library) 4. A catedral de Notre-Dame, Paris. Foto de um antigo cartão postal, sem data. 5. Epitáfio de François Villon (1431–?) do Le grant testament Villon et le petit, son codicille. Le jargon et ses balades, xilogravura, 1489. (Edição de Pierre Levet; Bibliothèque Nationale de France, Paris) 6. Weighing of souls, escultura francesa em pedra do século XV. (Sculptural Programme of the Cathedral of Notre-Dame, Paris; © Adam Woolfitt/Corbis) 7. Gravura da danse macabre, artista desconhecido, 1493. (Bibliothèque des Arts Décoratifs, Paris; © Photo RMN/Bulloz) 8. Retrato de Catarina de Médici (1519–89), pintura a óleo, Escola Francesa, século XVI. (Galleria degli Uffizi, Florence; Bridgeman Art Library) 9. La cour des miracles, litogravura colorida, c.1870-80, de Henri Morin, Le Vieux Paris. (Bibliothèque Nationale de France, Paris) 10. Gravura do Massacre do Dia de São Bartolomeu, Paris, 1572, de de Soligny. (© Collection Roger-Viollet) 11. Le Cimetière des Innocents et le quartier des Halles 1750, gravura de Fedor Hoffbauer (1839–1922), século XIX. (De Paris à travers les âges, ed. Pascal Payen-Appenzeller, Paris, 1978 – reimpressão da edição de 1865; Bibliothèque Nationale de France, Paris) 12. Garden and cirque at the Palais-Royal, Paris, de Fedor Hoffbauer, c.1885. (© Gianni Dagli Orti/Corbis) 13. Scène grivoise de François Boucher (1703–70). (© Collection RogerViollet) 14. The sans-culotte, Escola Francesa, século XIX. (Bibliothèque des Arts Décoratifs, Paris; Archives Charmet/Bridgeman Art Library) 15. A meeting of artists, mudscrapers and rag merchants, ilustração de um popular café no Palais-Royal em Paris, Escola Francesa, c.1800. (Musée de la Ville de Paris, Musée Carnavalet, Paris; Archives Charmet/Bridgeman Art Library)

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16. Gargantua, caricatura de Luís Felipe I por Honoré Daumier, 1831. (Bibliothèque Nationale de France; © Collection Roger-Viollet) 17. Vista aérea de Paris, c.1871, mostrando prédios públicos, muitos dos quais foram destruídos durante a Comuna de Paris. (© Corbis) 18. The occupation of Paris, 1814 – English visitors in the Palais-Royal, Escola Inglesa, século XIX. (Coleção particular; Bridgeman Art Library) 19. O bombardeio de Paris, Escola Alemã, c.1870. (© Gianni Dagli Orti/ Corbis) 20. O cerco a Paris, bombardeio dos prussianos, 1870–71, Escola Francesa, século XIX. (Musée de la Ville de Paris, Musée Carnavalet, Paris; Lauros/Giraudon/Bridgeman Art Library) 21. A construção da avenue de l’Opéra, Paris, 1º e 2º arrondissements, 1878. (© Collection Roger-Viollet) 22. Insurgentes da Comuna de Paris mortos e não identificados, 1871. (© Bettmann/Corbis) 23. Barricadas em uma rua de Paris durante a Guerra FrancoPrussiana ou durante a Comuna de Paris, c.1870–71. (© HultonDeutsch Collection/Corbis) 24. Ilustração de Jacques Tardi para Viagem ao fim da noite de LouisFerdinand Céline, 1932. (© Editions Gallimard) 25. André Breton, c.1930. (Coleção particular) 26. Une maison close monacale, rue Monsieur-le-Prince (couple s’embrassant), fotografia de Halász Gyula Brassaï, c.1931. (Coleção particular; © Estate Brassaï – RMN/Photo RMN/Michèle Bellot) 27. Cena do filme Hôtel du Nord, dirigido por Marcel Carné, com Arletty e Louis Jouvet, França, 1938. (© Sunset Boulevard/Corbis Sygma) 28. Combatentes da Liberação de Paris, 1944. (© Hulton-Deutsch Collection/Corbis) 29. Mulheres francesas punidas por colaboracionismo, 1944. (© Bettmann/ Corbis) 30. Um policial atira gás lacrimogêneo para dispersar multidões durante a revolta dos estudantes em Paris, 17 de junho de 1968. (Reg Lancaster/Getty Images)


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31. Revoltas nos subúrbios de Paris, 28 de outubro de 2005. (© RM Jean-Michel Turpin/Corbis) Todas as tentativas foram feitas para encontrar os donos dos direitos autorais. Os editores ficarão satisfeitos em retificar em futuras edições quaisquer erros ou omissões apontados.

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Agradecimentos

É um fato óbvio que explorar Paris é o trabalho de uma vida toda, mas esta é uma lista de colegas, amigos e outros que me ajudaram ao longo do caminho até aqui. Entre eles estão Abdellatif Akbib, Lisa Allardice, Khalid Amine, Françoise Bailly, “Béatrice”, David Bellos, Gavin Bowd, Constant, Jason Cowley, Martin Crowley, Anne Cunningham (que estava comigo quando fui para lá pela primeira vez), Shigenobu Gonsalvez, Juan Goytisolo, Michel Guet, Cécile Guilbert, Chantal Guillaume, Sophie ­Herszkowiscz, Allen Hibbard, Les Hodge, Michel Houellebecq, Isidore Isou, Aimé Jacquet, Mark Kermode (pelos backing vocals), Ramez Malouf, Patrick McGuinness, John McHale, Anna McIver, Jeffrey Miller, Sophie Morel, Ovidie, Laura Owen, Paul Quinn, Tariq Ramadan, Ralph Rumney (falecido em 2002), Roland Sabatier, Jeremy Stubbs, Yves Trentret, Zinédine Zidane. Eu também gostaria de agradecer à minha atenta e sábia ­editora, Kate Barker, da Penguin, e ao meu agente Peter Robinson. E sempre, com amor, Carmel Regan de Roscommon, por ser quem ela é.


I n tro dução

A autó p s ia d e u ma vel ha p ros tituta

Paris desperta fortes emoções. “Quão diferente foi minha primeira visão de Paris do que eu havia esperado”, escreveu Jean-Jacques Rousseau, um dos primeiros exploradores da cidade moderna. “Eu havia imaginado uma cidade que fosse tão bonita quanto era grande. Eu vi apenas sujeira, becos fedorentos, casas pretas feias, um cheiro de imundície e pobreza. Meu desgosto ainda permanece.”1 Anos atrás, cheguei a Paris pela primeira vez, descendo de uma estação de metrô em Barbès, e, como Rousseau e incontáveis outros chegando à cidade pela primeira vez, não vi o que esperava encontrar. As ruas eram confusas, impossíveis de entender de cara, uma confusão de cores estrangeiras e barulho. Anos mais tarde, Barbès continua sendo um dos meus lugares favoritos em Paris, precisamente porque é caótico, ocasionalmente sórdido e sempre incontrolável. Assustou-me na época, e me fascina agora, porque pertence a vários séculos de uma só vez. Eu precisei de muito tempo em Paris e infinitas jornadas pela cidade para compreender a complexidade desse fato. Em sua longa e vasta história literária, Paris tem sido diversamente representada como uma prisão, um paraíso e uma visão do inferno. Ela também foi caracterizada como uma bela mulher, uma feiticeira e um demônio. Neste caso, a literatura não é uma refração, mas uma acurada reflexão da vida cotidiana: Paris realmente é feita de espaços radicalmente diferentes e múltiplas personalidades, sempre se estranhando e, com frequência, em barulhenta colisão. Tem sido assim por quase dois mil anos. Nos últimos tempos, Paris tem sido reproduzida em pôsteres, postais e ilustrações que são enviados pelo mundo como metonímias vazias para arte, sexo, comida e cultura. A Torre Eiffel, a Sacré-Coeur, Notre-


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Dame são todas partes de uma cultura visual global, uma linguagem infantil disneyficada que distorce e destrói o significado verdadeiro. Esse processo é ganancioso e voraz: não apenas monumentos e igrejas, mas também as pinturas de Degas e Manet, as fotografias de Robert Doisneau ou Willy Ronis, os filmes de Marcel Carné ou François Truffaut foram todos separados de seu contexto verdadeiro, reduzidos a clichê e mercadoria. Não causa surpresa que nos últimos anos sejam os vibrantes e imprevisíveis territórios de Sydney, Nova York ou Londres que têm cativado a imaginação mundial. E também não causa surpresa que nestes tempos sombrios, quando o centro da cidade vem sendo mais uma vez violado pela administração pública e pelo capital, um examante de Paris, o artista inglês Ralph Rumney, tenha comparado a cidade ao ‘cadáver de uma velha prostituta’.2 Mas, viva ou morta, a velha prostituta ainda lança um poderoso encanto. Este livro não tem a intenção de ser uma história definitiva de Paris. As milhões de palavras devotadas à cidade ao longo dos séculos sugerem que, de todo modo, tal coisa não existe. Em vez disso, A história secreta de Paris tem como objetivo contar a história de Paris do ponto de vista das “classes perigosas”, um termo usado por historiadores franceses para descrever elementos marginais e subversivos na cidade – rebelados, vagabundos, imigrantes, outsiders sexuais, criminosos –, aqueles cujas experiências contradizem e se opõem à história oficial. Uma das inspirações por trás deste livro é London – The Biography, de Peter Ackroyd, e, em particular, a noção de Ackroyd de que a história não é uma narrativa fixa, mas um diálogo inacabado.3 Nesse espírito, a narrativa de Paris tenta traçar a sempre mutante geografia de Paris, examinando sua história no espaço, no tempo e na rua. Nem literatura nem guia de viagem, Paris foi escrito acima de tudo para ser usado. É um livro de história que pode ser levado ao bar, ao metrô, ao próprio coração do labirinto – e lá ser empregado como intérprete, guia e interlocutor. O pequeno e elegante volume de Edmund White, O flâneur, também procura “ler” a cidade.4 Mais precisamente, as investigações de White são emprestadas da prática parisiense do século XIX da flânerie


introd u ç ã o

– divagações à toa por Paris durante as quais um cavalheiro podia, em um espírito de ironia imparcial, revelar as detalhadas contradições do prazer urbano, de um encontro com uma prostituta em particular a uma noite em um cabaré ou em uma casa de ópio. Diferente do flâneur, este aventureiro subterrâneo aqui não está simplesmente procurando prazer – embora eu não o evite! –, mas também o significado associa­ tivo de lugares na cidade. O explorador busca intoxicação, desorienta-se deliberadamente e prepara-se para se perder na cidade a fim de achar sua própria saída. Enquanto o familiar se torna desconhecido, o novo e o velho significados dos prédios, ruas, sinais de trânsito, quadras e ­espaços abertos são revelados. Quando esboçou seus próprios mapas mentais de Paris nos anos 1930, o crítico alemão Walter Benjamin insistiu que é nas mudanças físicas da Paris cotidiana que podemos vislumbrar o que faz a história. A alegação de Benjamin era de que as experiências cotidianas – passear à toa pelas ruas, beber café ou álcool, envolver-se com alguém, do sexo oposto ou do mesmo sexo – sempre contêm um significado maior e mais complexo. Vista dessa maneira, a vida da cidade é revelada como uma série infinita de momentos, sempre efêmeros e às vezes desconcertantes, que também são sua história real. Paris é acima de tudo, como Benjamin a descreveria, uma cidade de aventuras secretas. Os mistérios parisienses aparecem na superfície da vida cotidiana – o sorriso de um estranho no metrô, um bar em que você nunca esteve, uma visita a uma parte esquecida da região urbana. Os prazeres da cidade também podem ser interditos, impenetráveis e, às vezes, perigosos. Paris sempre foi um carnaval de luz e terror.5 Uma das bases da mitologia de Paris é a ideia de que a arquitetura da cidade é o cenário ideal para uma história de amor. As metáforas usadas para descrever Paris no século XIX – como, por exemplo, “rainha do mundo” – enfatizavam a natureza opulenta e sensual da cidade, tornando-a feminina e fazendo dela um objeto passivo de prazer. A morte de Diana – o derradeiro trajeto de carro entre a fina elegância dos tecidos da Place Vendôme e os destroços retorcidos no túnel sob a Pont d’Alma, onde os turistas ainda depositam coroas de flores – só poderia ter acontecido aqui.

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Mas os parisienses não são sentimentais. Eles acreditam que o mundo é comandado por uma teoria irônica e não por Deus. O estereótipo do parigot parisiense é um morador nativo da cidade cujo humor negro e seco trabalha de modo constante e consistente contra o governo e o Estado. Sim, o amor está no centro do mito e da realidade em Paris, mas ali também estão comida, bebida, religião, dinheiro, guerra e sexo. Com isso em mente, Paris é uma história contada na forma de uma jornada – ou várias jornadas, na verdade – a partir de bares, bordéis e darkrooms, até propriedades desprivilegiadas das periferias, elegantes salons e cidadelas de poder, em todos os lugares interrogando, dissecando ou simplesmente sendo seduzido pelos mitos encantadores de Paris. E Paris seduz sem perdão. Diana é apenas o mais recente e famoso exemplo daqueles que foram fatalmente seduzidos aqui. É obviamente o mais cruel dos paradoxos que Diana tenha descoberto de modo tão súbito, mas também tarde demais, que o feitiço da velha prostituta é também uma maldição fatal. A i n v e n ção d o par i s ie n s e

A história de Paris não é simplesmente um conto de princesas e reis: de certa forma, ela é exatamente o oposto. Paris é, afinal, a cidade onde, após séculos de conflitos sangrentos, a revolução popular foi inventada. Paris pode ser uma capital mundial em termos políticos, religiosos e culturais, mas uma das verdades que definem a cidade é que sua história foi, em grande parte, forjada na adversidade por seus habitantes – os chamados petites gens (as pessoas comuns). Por isso é tão importante ser capaz de distinguir entre mito, lenda, folclore e a maneira como os verdadeiros parisienses se comportam e se enxergam. Como inúmeros historiadores de Paris já apontaram, não é por acaso que a palavra “parisiense” tem sido há muito um sinônimo da palavra “agitador”. Esta é uma tendência que pode de fato ser encontrada na imaginação parisiense e provinciana desde a Idade Média, quando os parisienses eram normalmente descritos como trublions (“perturbadores da paz”) ou maillotins (“martelos de guerra”).6 Esses termos sempre tiveram um significado específico e político. A palavra maillotin, por exemplo, tem origem nas pesadas marretas de chumbo, ou maillets, usadas


introd u ç ã o

por rebeldes furiosos no século XIV para esmagar estátuas e cabeças (geralmente de agiotas e oficiais do fisco, que eram principalmente judeus e lombardos). Outros agitadores, trublions, comandavam as desordenadas e muitas vezes espontâneas insurreições, ou jacqueries, contra governo e rei em protesto contra a fome e a injustiça. A mais famosa e bem-sucedida dessas jacqueries foi comandada em 1357 por Étienne Marcel, que lançou uma greve de trabalhadores e matou um príncipe, respingando sangue em si próprio. A estátua de Marcel ainda impera sobre o Sena a partir da fachada do Hotel de Ville.7 Fora de Paris, os rebeldes parisienses eram motivo tanto de riso quanto de medo. Na metade do século XVI, Rabelais descreveu o “parisiense” maldosamente como um “gros maroufle”,8 um inescrupuloso, vulgar e desonesto gato de rua. Ele seguramente esperava que sua descrição arrancasse um riso de reconhecimento por toda a França e também em Paris. Ao longo dos tempos, a palavra “parisiense” também tem sido usada em francês para descrever cigarros elegantes, várias posições sexuais (em geral, variantes de sodomia, dependendo de em qual parte da França você está), calças indecentes, biscoitos, um marinheiro ­inútil, uma forma de cozimento, placas de tipografia. Para os provincianos, à la parisienne significava um trabalho não terminado ou mal feito. O desdém dos provincianos pelos parisienses é percebido na rima infantil “Parisien, tête de chien, parigot, tête de veau” (“Parisiense, cabeça de cachorro, parisiense, cabeça de bezerro”). Dentro da própria cidade, no entanto, as identidades parisienses foram há muito tempo divididas em um sistema de classes hierárquicas restrito. No século XVIII, Louis-Sébastien Mercier contou mais de doze classes diferentes, mas admitiu que podia ser apenas uma estimativa ­superficial. Em 1841, Balzac usou a palavra parisiénisme (um termo usado pela primeira vez em 1578) para se referir a uma complexa série de códigos e padrões sociais peculiares o suficiente para fazer da ­autoimagem de Paris e dos parisienses um alvo de sátira: “L’atticisme moderne, ce parisiénisme (...) qui consiste à tout affleurer, à être profond sans en avoir l’air” (“O moderno aticismo, esse parisianismo (...) que consiste em tornar tudo superficial, ser profundo sem o parecer”).9 Os parisienses de uma classe social elevada deliberadamente construíram o parisiénisme para ser moderno,

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sofisticado, deliciosa e charmosamente leve, elegante e espirituoso. Este era o tipo de parisiense que deliberadamente cultivava o ­accent pointu – todas as palavras eram sibilantes, com uma forte ênfase em uma pronúncia suprimida de vogais curtas no final de cada palavra –, o que para muitos provincianos é a característica da arrogante e esnobe alta classe parisiense. Esse sotaque ainda é ouvido e continua a irritar os não parisienses contemporâneos tanto quanto irritava Balzac. Existia (e na realidade ainda existe) um sotaque nativo de Paris comum nas ruas. Ele era originalmente uma confluência dos sons de Picardia, Flandres, Normandia e Britânia. Surgiu provavelmente no início dos anos 1100, quando o baixo latim da rue de Fouarre – a região eclesiástica da nova cidade – se desintegrou no francês. Ele foi modificado nos séculos XVI e XVII pela afluência de trabalhadores, principalmente barqueiros e comerciantes, da província de Berry, porém manteve-se relativamente intocado por influências externas.10 A característica comum era (e continua sendo) uma tendência a rolar o “r”. O som de er ou el é geralmente alongado ou aberto para o som de ar ou arl. É uma tendência que remonta ao século XV e ao poeta François Villon, que constantemente transformava rimas como “merle” (“pássaro negro”) em “marle”. Uma peça cômica da época de Luís XIV tinha um personagem chamado Piarot (ao invés de “Pierrot”) por causa dessa tendência de pronúncia, e no século XIX o som era notado como uma característica do sotaque de Belleville e Ménilmontant, onde um concierge (zelador) era um “conciarge”. Foi quando o termo parigot se tornou amplamente usado para descrever trabalhadores nativos de Paris. No início, ele era usado para zombar e ridicularizar as classes mais baixas. Na literatura, os parigots eram alvos de riso, explorados sexualmente ou retratados como uma carica­tura. Na vida real, eles eram aparentemente apenas perversos: “Os parigots nascem maus”, escreveu um jornalista sensacionalista. “Eles admiram o crime, participam dele quando podem, evitam o trabalho e também procuram tirar vantagem para si sempre que possível.”11 Apenas um pouco menos agressivo e depreciativo que parigot era o termo titi, uma palavra infantilizada usada no século XIX para descrever um jovem trabalhador, geralmente usando boina, cachecol e fumando um cachimbo, com ar


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atrevido. O estilo era tão comum que era facilmente imitado por jovens ricos e rebeldes que queriam chocar: esse disfarce obviamente carregava consigo o perigo de ser descoberto e surrado como um ofensivo farsante pelas verdadeiras classes trabalhadoras. Do mesmo modo, as parisienses da classe trabalhadora eram misteriosas e ameaçadoras na mesma medida. A parisiense da classe trabalhadora acima de tudo não era confiável – embora valesse a pena conhecêla por ser sexualmente fácil. No século XIX, a parisienne trabalhadora foi também apelidada parigote – e geralmente descrita como uma desbocada que não hesitava em proferir insultos e xingamentos a qualquer bourgeois (burguês) respeitável que cruzasse seu caminho. Essas mulheres também eram, ao menos na imaginação masculina, maravilhosas no sexo. Essa imagem pode ser encontrada no final da Idade Média, em François Villon, que tinha uma afeição particular por uma amante vagabunda, La Grosse Margot: Puis paix se fait et me fait ung gros pet Plus enflee qu’ung vlimeux escharbot. Riant, m’assiet son poing sur mon sommet. Gogo me dit et me fiert le jambot. Tous deux yvres comme ung sabot Et au resveil quant le ventre luy bruit Monte sur moi que ne gaste son fruit. [Depois vem a paz e solta um peido bruto, Venenoso tal sapo dendrobata. Logo me acerta, rindo, o cocuruto: “Vem, vem, neném”, nas coxas me arrebata. E dormimos qual saco de batatas. Pela manhã, quando lhe ronca o ventre, Monta em mim, antes que se gaste dentro Seu fruto.]¹² A imagem da prostituta de coração afetuoso persistiu até o século XX. La Grosse Margot é evidentemente a ancestral das mais famosas

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­parigotes – a atriz Arletty e as cantoras Fréhel e Édith Piaf. Por razões óbvias, entretanto, nenhuma dessas mulheres esteve algum dia inteiramente à vontade com essa caricatura de seu gênero e classe social. Arletty, por exemplo, viveu e morreu em um confortável apartamento no lado oeste da cidade, diametralmente oposto a Belleville ou Ménilmontant, onde sua imagem nas telas nasceu. Acusada de colaborar com os nazistas (dizem que a resistência parisiense planejava cortar fora seus seios como castigo) e eliminada da cultura da cidade que a inspirou, ela morreu uma figura melancólica e solitária. Fréhel era, na verdade, uma nativa da Britânia que tomou seu nome artístico do Cabo Fréhel de seu território natal. Ela chegou a Paris quando criança e trabalhou como cantora de rua, fazendo seu nome nos salões musicais da época com uma mistura de sagacidade e melodrama. Seu momento mais célebre, no entanto, aconteceu quando seu auge já havia ficado para trás, com o papel de Tania, uma ex-estrela empobrecida, no filme Pépé le Moko,* de 1937. Ela conforta Pépé, um elegante gângster parisiense (interpretado por Jean Gabin) que está fugindo em um casbá de argelinos, cantando para ele “Où est-il donc?” (“Onde está ele agora?”). Este é um perturbador e nostálgico lamento pela velha Paris da Place Blanche, uma Paris imaginária para a qual Fréhel jamais pôde voltar. Ela terminou sua carreira na pobreza e destruída pela ­bebida. Serge Gainsbourg, ele mesmo um conhecedor do desastre alcoólico, teve-a como inspiração e lembrava-se com afeto de ter pagado uma bebida para ela – uma senhora exótica, tremendo porque precisava beber, em um bar na rue du Faubourg du Temple em 1951. A mais icônica e derrotada de todas as parigotes foi Édith Piaf, que nasceu em Belleville, o coração da classe trabalhadora. Suas canções mais famosas exaltavam o mito de que uma parigote, uma criança pobre dessa parte da cidade, podia encontrar amor e felicidade na “Grand Paris”. Ela cantava brilhantemente sobre ruas de pedra, tocadores de acordeom, prostitutas, amantes-soldados durões mas vulneráveis, dando a Paris toda uma nova mitologia. Quando se tornou verdadeiramente

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Lançado no Brasil com o título O demônio da Algéria. (N.E.)


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famosa, após a Segunda Guerra Mundial, ela nunca foi perdoada por aqueles que a conheciam bem e que diziam que sua atuação era uma mentira a serviço das forças que mantinham as petites gens em seu lugar. Amigos e admiradores do início de sua carreira, como o pianista Georges van Parys, desprezavam a Piaf do pós-guerra como uma “impostora” e a descreviam como uma traidora de suas origens. Não é de espantar que Piaf – inteligente, sagaz, altamente sexualizada e esmagada por uma fama que destruiu cada milímetro de sua verdadeira identidade – tenha encontrado refúgio em romances destrutivos e no álcool. A “autenticidade” de Piaf, é intrigante notar, foi o que a arruinou. Essa era exatamente a qualidade que ela mesma amava mais do que qualquer outra. Quando isso se foi, e ela percebeu o quanto havia se distanciado de suas raízes, finalmente se afundou no álcool.13 Os parisienses que já a haviam amado aceitaram sua morte sórdida com uma característica falta de sentimentalismo. Os parisienses são, de fato, uma raça notoriamente cabeça-dura. Os parigots, titis ou gamins de Paris nunca ou raramente se assumem como tal: eles se veem como lojistas, barmen e garçons, trabalhadores braçais, artesãos, músicos, batedores de carteira, catadores, bebedores, socialistas e anarquistas. Acima de tudo, os parisienses se veem como uma classe ou uma série de classes tão variada e rica quanto a cidade em si. A imagem do povo parisiense criada na literatura, na arte e no cinema é rejeitada por eles como, no mínimo, folclore e, na pior das hipóteses, uma tentativa deliberada por parte das elites dominantes – sejam lá quem elas forem – de acalmar e dominar os ânimos naturalmente rebeldes da população. Um dos poucos clichês com os quais a classe trabalhadora parisiense se identifica é o uso habitual da gouaille (“ironia” ou “malícia”), em geral em conjunto com l’esprit frondeur (um uso agressivo da sagacidade – lite­ ralmente um “tiro certeiro de estilingue”, chamado assim por causa da fronde, uma catapulta usada nas rebeliões de rua no século XVII). Mas mesmo isso ficou sob ameaça nos últimos tempos. Mais notadamente no final de 2001, quando houve uma ação para retirar as prostitutas da rue SaintDenis. A imprensa local se posicionou de imediato contra esse ataque a um dos últimos vestígios do patrimônio parisiense. Mais especificamente,

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tornou-se claro, pela leitura dos mais barulhentos artigos no Le Parisien, que as prostitutas mais velhas – as chamadas traditionnelles – eram particularmente apreciadas pelos clientes não apenas por sua atração sexual, mas também por sua gouaille. Retirar essas mulheres das ruas da cidade, argumentou-se por várias semanas na televisão, no rádio e nos jornais, indicava que a cidade reluzente do novo século XXI não tinha espaço para a cultura de rua parisiense tradicional. Isso era tão sério, por exemplo, quanto os problemas enfrentados pelos tradicionais cafés e bistrôs, que também estavam sendo expulsos da cidade pelos altos aluguéis e pela cultura do fast-food. A migração forçada dessas prostitutas locais, também se afirmou, era na verdade uma poderosa metáfora para uma crise de identidade maior que a cidade vinha enfrentando desde o final do século XX. A questão foi mais uma vez levantada: algo da verdadeira Paris ainda pode existir no século XXI da imagem, ilusão e espetáculo? Mais precisamente, de que vale a cidade de Paris sem os parisienses? Pa ri s, a baixo d o so lo

No auge do verão de 2001 – quando comecei a escrever este livro –, um dos poucos cafés que permaneciam abertos durante as férias dessa época, quando os parisienses tradicionalmente fogem para as montanhas ou o litoral, era o La Palette na rue de Seine. Há alguns anos, esse bar tinha sido visto ao redor do mundo como cenário para um comercial da Kronenbourg em que um patron submisso e melancólico se refugia dos insultos de sua esposa atrás do bar, encon­ trando conforto em um copo da famosa lager francesa gelada. Para milhões que não sabiam seu nome, o La Palette, com seu imaculado bar de madeira, espelhos ladrilhados e divertidas mesinhas, representava um ideal de relaxamento alcoólico francês. Na vida real, o bar é um refúgio de mercadores de arte, agentes, editores, donos de galeria e, ocasionalmente, artistas que vêm aqui porque esse é o melhor lugar na rue de Seine para tomar uma bebida e negociar um contrato. Ele é, na clássica tradição da Margem Esquerda, extremamente luxuoso e sujo ao mesmo tempo. É exclusivo e pode ser intimidante. Os garçons compartilham piadas internas com os frequentadores; aos demais, eles servem sarcasmo e desdém com evidente satisfação, mas sem cobrar a mais.


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Mas, no verão de 2001, mesmo o La Palette tinha um ar descon­traído. O garçom gordo, que usava um gibão de couro e havia se especiali­zado em humilhar qualquer um que não conhecia, estava brincando com clientes obviamente estrangeiros, um dos quais nem sequer sabia falar francês. Os mercadores, empreendedores e agitadores tinham ido embora, ou estavam disfarçados de gente comum bebendo, rindo e eviden­ temente se divertindo. Por algum motivo, todos os lugares em Paris durante os meses daquele verão pareciam carnavalescos, estranhos e festivos ao mesmo tempo. Todos comentavam esse novo e misterioso fenômeno. Mesmo os travestis brasileiros do Bois de Boulogne notaram um boom na temporada, como um deles animadamente contou nas páginas do Le Figaro, em uma época na qual eles tradicionalmente passavam por um aperto. Enquanto observava a cidade ao meu redor, refleti sobre o livro de Louis Chevalier, L’Assassinat de Paris (“O assassinato de Paris”), que eu havia lido naquele verão.14 Gostei muito do detalhamento do livro de Chevalier, a luz sobre aquelas esquinas obscuras de Paris e a vida parisiense que mesmo os que estudam a cidade a vida inteira podem não conhecer. Eu segui seus mapas e instruções e visitei os lugares que ele disse que estavam perdendo sua importância mágica ou totêmica. Mas não acreditei em sua tese – a de que a Velha Paris estava ­morta e enterrada para sempre – nem por um momento. Mesmo da mesa de um café na rue de Seine, era possível ver que isso não era verdade. Mais do que isso, Chevalier se contradisse quando falou sobre a história de Paris estar perdida sob nossos pés. Certamente a Paris subterrânea, como o metrô, era uma presença viva invisível que podia ser encontrada escavando-se camadas da cidade, em histórias orais, literatura e música, cavando cada vez mais profundamente, além dos encanamentos e catacumbas, até sua essência. O romancista Louis-Ferdinand ­Céline, talvez o maior cronista da história secreta da cidade no século XX, descreveu a vida de Paris como um “métro émotif”, um movimento subterrâneo incessante entre luz e escuridão, de um lugar para outro, entre diferentes espaços e tempos.15 A metáfora agora fazia sentido. Eu coloquei minha cópia do livro de Chevalier na mesa do café La Palette e virei o resto da minha cerveja. Decidi que o objetivo de meu próprio

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livro seria mostrar que Chevalier estava errado: Paris estava mudando de uma maneira que ninguém poderia prever. Não fazia diferença se Paris, a velha prostituta, estava moribunda ou mesmo morta; seu feitiço sedutor e fatal ainda se mantinha no ar noturno. Seguindo os passos de Villon, Mercier, Restif de la Bretonne, André Breton, Walter Benjamin, Georges Perec e todo o resto, eu iniciei minha jornada e comecei a fazer meus próprios mapas da cidade.


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