Juiz manda Estado pagar salário a delegado condenado por morte de advogado em Manaus

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PODER JUDICIÁRIO DO AMAZONAS 4ª Vara da Fazenda Pública

SENTENÇA Autos nº: 4000142-50.2020.8.04.0000 Classe

Mandado de Segurança Cível

Assunto Sistema Remuneratório e Benefícios Impetrante: Gustavo de Castro Sotero Impetrado: Estado do Amazonas e José Lazaro Ramos da Silva - Delegado Geral

Vistos etc.

I.- Relata-se Trata-se de ação de mandado de segurança ajuizada por Gustavo de Castro Sotero com vistas a afastar ato supostamente ilegal praticado por Estado do Amazonas e José Lazaro Ramos da Silva - Delegado Geral, tendo as partes sido devidamente qualificadas na inicial.

O impetrante objetiva o reestabelecimento do pagamento do salário integral do impetrante que se encontra preso e condenado em primeira instância pelo cometimento de crime de homicídio.

Segundo a narrativa do Impetrante, é delegado da polícia civil do Estado do Amazonas, e encontra-se respondendo a processo criminal pelo cometimento de homicídio, no qual já foi condenado em primeira instância, encontrando-se preso preventivamente.

Relata

o

Impetrante

que

a

sentença

dos

autos

0641996-45.2017.8.04.0001, da qual já recorreu, além de tê-lo condenado a pena privativa de liberdade superior a 4 anos, também o condenou à perda do cargo público.

Complementa que, a despeito da autoridade coatora não ter sido

Este documento é cópia do original, assinado digitalmente por PAULO FERNANDO DE BRITTO FEITOZA, liberado nos autos em 27/08/2020 às 17:05 . Para conferir o original, acesse o site https://consultasaj.tjam.jus.br/pastadigital/pg/abrirConferenciaDocumento.do, informe o processo 4000142-50.2020.8.04.0000 e código 6D76BBF.

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formalmente notificada da sentença acima mencionada, determinou a redução do pagamento dos vencimentos do Impetrante, com fulcro no art. 84, III, Lei 1762/86.

Afirma que a decisão do Processo Administrativo violou o princípio da presunção de inocência, uma vez que não há condenação penal irrecorrível em desfavor do Impetrante capaz de subsidiar o desconto de 1/3 de sua remuneração.

Diante do alegado, o Impetrante requer o restabelecimento do pagamento da integralidade de seus vencimentos.

Juntou aos autos os documentos de fls. 21-142.

Decisão interlocutória de fls. 155-162, deferindo o pedido de antecipação da tutela.

Informações da autoridade coatora prestada às fls. 179-205, informando o cumprimento da liminar.

O Estado quedou-se inerte, a despeito de sua intimação.

Parecer do Ministério Público às fls. 209/215, tendo este opinado pela concessão/denegação da segurança.

É o relatório.

II.- Fundamenta-se

A pretensão autoral consiste em restabelecimento do vencimento do paciente e do pagamento de seu auxílio alimentação, os quais passaram a ser descontados de sua folha de pagamento, com fulcro no inciso III, art. 84, Lei 1.762/86 (Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado do Amazonas), que

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prevê a possibilidade de redução de 1/3 (um terço) da remuneração de servidor que estiver afastado de suas atividades por motivo de prisão preventiva.

No caso em tela o impetrante encontra-se preso preventivamente por força de sua condenação criminal nos autos n. 0641996-45.2017.8.04.0001. O autor insurge-se contra a decisão da impetrada que não observou o seu direito ao devido processo legal, negando-lhe o contraditório e ampla defesa, bem como o princípio constitucional de irredutibilidade de salário.

A autoridade coatora, ao decidir por determinar o desconto na remuneração do impetrante, baseou-se na Lei 1.762/86 que rege os funcionários públicos civis do Estado, que assim dispõe em seu art. 84, inciso III: Art. 84. O funcionário perderá: I - o vencimento ou remuneração do dia, se não comparecer ao serviço, salvo por motivo legal ou por doença comprovada, de acordo com as disposições deste Estatuto; II - um terço do vencimento ou remuneração do dia, se comparecer ou dele se retirar antes da hora regulamentar, ou ainda, ausentar-se, sem autorização, por mais de sessenta minutos; III - um terço do vencimento ou remuneração durante o afastamento por motivo de prisão preventiva, pronúncia por crime comum ou denúncia por crime funcional, ou ainda, condenação por crime inafiançável em processo em que não haja pronúncia, tendo direito à diferença se absolvido; (grifo) IV - um terço do vencimento ou remuneração, durante o período de afastamento em virtude de condenação, por sentença definitiva, à pena que não acarrete a perda do cargo. Parágrafo único. Para efeitos deste artigo, serão levadas em conta as gratificações percebidas pelo funcionário.

Verifica-se, assim, que a impetrada respaldou a sua decisão em

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expressa disposição legal, visto que a lei em referência está em pleno vigor. No entanto, observa-se que essa previsão, na prática, funciona como uma verdadeira antecipação de pena sem condenação definitiva, o que fere o princípio constitucional de presunção de inocência, nos termos do art. 5º , inciso LVII, da Constituição Federal.

Além disso, observa-se que o desconto nos vencimentos do servidor é totalmente incompatível com o princípio constitucional da irredutibilidade salarial, prevista nos arts. 37, inciso XV e 39, § 4º, ambos da CF/88.

Dessa forma, constata-se que o dispositivo da lei estadual acima transcrito é incompatível com a Constituição Federal, visto que fere direitos e garantias fundamentais, inclusive este foi o entendimento recente do Supremo Tribunal Federal em relação à lei dos servidores públicos estaduais do Pará que tinha em seu bojo dispositivo semelhante ao que o Impetrado utilizou como fundamento para reduzir o salário do Impetrante. Vejamos: DIREITO CONSTITUCIONAL. LEI ESTADUAL Nº 5.810/1994 DO ESTADO DO PARÁ AUTORIZANDO A REDUÇÃO DE VENCIMENTOS DE SERVIDORES PÚBLICOS PROCESSADOS CRIMINALMENTE. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, AMPLA

DEFESA

E

IRREDUTIBILIDADE

DE

VENCIMENTOS.

INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA. 1. A jurisprudência dessa Corte é pacífica no sentido de que não é recepcionada pela Constituição Federal norma legal que consigna a redução de vencimentos de servidores públicos que respondam a processo criminal. 2. Ofensa aos arts. 5º, LIV, LV e LVII, e 37, XV, da Constituição Federal, os quais abarcam os Princípios da Presunção da Inocência, da Ampla Defesa e da Irredutibilidade de Vencimentos. Precedentes: RE 482.006, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; ARE-AgR 776.213, Rel. Min. Gilmar Mendes; ARE 1.084.386/SP, Rel. Min. Luiz Fux; ARE 1.063.064/SP, Rel. Min. Marco Aurélio; ARE 1.017.991/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; ARE

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1.089.248/SP, de minha relatoria. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade procedente. (STF ADI 4736/PA, Relator Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno. Data da Publicação: 12/12/2019).

É importante destacar que não se pretende aqui defender a suposta conduta criminosa do impetrante, mas tão somente constatar a incompatibilidade da decisão resistida nestes autos com a Constituição Federal. Entende-se que quem age em desacordo com a legislação penal deve cumprir a sanção que lhe é imposta, porém deve-se respeitar o princípio constitucional da presunção de inocência, enquanto não houver trânsito em julgado da sentença condenatória.

Uma pessoa encarcerada preventivamente tem direitos que devem ser garantidos pelas autoridades competentes. No caso posto nos autos, tem direito a receber o seu salário, com desconto legalmente previstos. Dessa forma, também considera-se indevido a suspensão de pagamento de auxílio alimentação, eis que como o próprio nome indica tem caráter alimentar. Aplicável ao caso dos autos, a decisão do Supremo Tribunal Federal que se transcreve: DIREITO

ADMINISTRATIVO

SERVIDOR SUSPENSÃO

PÚBLICO DO

ADMINISTRAÇÃO

E

DIREITO

ESTADUAL.

PAGAMENTO PÚBLICA.

DOS

OFENSA

PROCESSUAL

PRISÃO

CIVIL.

PREVENTIVA.

VENCIMENTOS AOS

PRINCÍPIOS

PELA DA

IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS E DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.

PRECEDENTES.

CONSONÂNCIA

DA

DECISÃO

AGRAVADA COM A JURISPRUDÊNCIA CRISTALIZADA DO STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO E AGRAVO MANEJADOS SOB A VIGÊNCIA DO CPC/2015. 1. O entendimento assinalado na decisão agravada não diverge da jurisprudência firmada no STF, no sentido da impossibilidade de redução dos vencimentos de servidor público preso preventivamente. precedentes. 2. As razões do agravo interno não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão

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agravada. 3. Em se tratando de mandado de segurança, inaplicável o artigo 85, § 11, do CPC/2015. 4. Agravo interno conhecido e não provido, com aplicação da penalidade prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015, calculada à razão de 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa, se unânime a votação. (STF - AG/RE/AGR: 1059669, Relator: ROSA WEBER, 1ª TURMA, Data de Publicação: 03/04/2019).

Oportuna ainda a decisão seguinte: MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. REDUÇÃO DE 1/3 DA REMUNERAÇÃO. ARTIGO 64, III DA LC Nº 04/1990. CUSTÓDIA CAUTELAR. MATÉRIA JÁ ANALISADA PELO PLENO

DESTE

TRIBUNAL.

INCONSTITUCIONALIDADE.

DECLARAÇÃO

IMPOSSIBILIDADE

INCIDENTAL DE

DE

REDUÇÃO.

AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DA IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS. PRECEDENTES DO STF. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Não se pode considerar legítima a redução de 1/3 dos vencimentos pelo fato de o servidor encontrar-se preso preventivamente, sem que tenha havido condenação, sob pena de violação frontal ao princípio da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal). 2. O artigo 64 da Lei Complementar Estadual nº 04/1990, que prevê a redução do vencimento de servidor público estadual afastado por motivo de prisão preventiva, não pode ser aplicado, eis que incompatível com a Carta Magna por expressa violação aos direitos e garantias fundamentais, em especial ao Princípio Constitucional da Presunção de Inocência. (0105389-74.2012.8.11.0000 MARIA

APARECIDA

RIBEIRO,

TURMA

DE

CÂMARAS

CÍVEIS

REUNIDAS DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO, TJMT. Julgado em 05/10/2017, Publicado no DJE 10/10/2017).

Portanto, verifica-se que a decisão da impetrada, a despeito de compatível com legislação estadual, não encontra respaldo na jurisprudência nem na Constituição Federal, norma basilar de todo o ordenamento jurídico, devendo o

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ato praticado pela autoridade coatora ser corrigido por mandado de segurança. III.- Decide-se

Diante do exposto, CONCEDE-SE A SEGURANÇA pleiteada, determinando-se à autoridade coatora que proceda a manutenção do pagamento integral de todos os componentes da remuneração e do auxílio alimentação do Impetrante. Mantem-se a liminar concedida às fls. 155/162. Por conseguinte, extingue-se o processo com resolução do mérito, nos termos do art. 487, I, do CPC.

Sem condenação em custas, nos termos do art. 17, IX, da Lei n. 4.408/2016.

Sem condenação em honorários advocatícios, conforme enunciado 512, da Súmula do STF.

Sentença sujeita à remessa necessária

Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquivem-se os autos com as cautelas de praxe.

Publique-se. Intime-se. Cumpra-se.

Manaus, 07 de agosto de 2020.

Juiz Paulo Fernando de Britto Feitoza

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