Em carta, ex-secretária municipal de Educação denuncia racismo na internet

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“Serafina”, Será eu, Seremos nós? Nos últimos dias sofri alguns cyber ataques e eles se referiam a mim não pelo meu primeiro e último nome (o que uso habitualmente) mas pelo meu terceiro nome que muita gente não conhece: "Serafina." Serafina erá a avó do meu pai que está vivo e tem hoje 84 anos. Nascida filha de uma escrava com um senhor que não a reconheceu. Foi criada numa senzala com sua mãe e aos 16 anos dada em casamento a um lenhador de quem ninguém soube o nome. Serafina teve 11 filhos, dos quais minha avó Alayde era a caçula. Serafina não tinha registro, mas calculava-se que havia nascido após 1871 por ter sido beneficiada pela Lei do Ventre Livre. Morreu perto do seu centenário. Era baixinha e brava e por não saber ler nem escrever, contava histórias ao meu pai, seu neto preferido, e o incentivava a estudar e ser educado porque só assim seria respeitado no mundo de brancos, lá pelos idos nos anos 1930 no Rio de Janeiro. Na minha família de negros pobres suburbana do Rio de Janeiro, fui a primeira menina nascida em algumas gerações. Família predominantemente de homens e na tradição religiosa dos meus avós, fui agraciada com 3 nomes antes do meu sobrenome. Helena da minha mãe e Serafina (a mulher mais velha conhecida entre os ancestrais). Por ela seria protegida e guiada pela vida afora. Meu pai seguiu à risca os ensinamentos da sua avó, e passou a ser de chamado de "Sabido", e, na crença da força da parentalidade em nossa vida, passou a mim, pelo nome da sua avó, a sua sina: estudar para ser respeitado no mundo dos brancos. Esse último ataque não foi o primeiro em que questões relacionadas à minha experiência de gestora viriam à tona evocando minha ancestralidade velada: Serafina. Como se fosse um xingamento. Assim como essas mesmas pessoas à época das discordâncias na gestão me chamavam de “Katirina”, fazendo um trocadilho do meu nome com a personagem do folclore nacional reproduzida no Boi de Parintins, a preta pobre, empregada da fazenda. Me calar diante desses ataques racistas e considerar que estávamos tratando de discordâncias, erros ou incompreensões da gestão foi aceitar o silenciamento imposto a nós negros por nos “destacarmos no mundo dos brancos”. No mundo dos brancos, fui educada a buscar o reconhecimento por mérito, por ações de impacto e a não evocar nunca minha identidade negra. Isso seria demérito. Quando o início do discurso que se quer crítico à minha experiência de gestão, sabidamente bem sucedida, inicia por alusão à minha ancestralidade, o debate sai da arena pública e se desloca para o preconceito racial. Encerra-se o meu direito à fala, porque não mais se trata da mesma razão dialógica. Afinal de contas podem os negros ter espírito, no sentido da alma científica? A que lugar se destina nossa fala, ou nossas ações, mesmo quando elas são bem sucedidas? Mesmo tendo feito duas graduações, mestrado e doutorado, tendo ocupado postos importantes da gestão pública e entregado resultados importantes para a população que


confiou no meu trabalho, me dei conta de que o maior desagravo não estava nos possíveis equívocos ou incompreensões inerentes às funções da gestão pública. Conflitos, embates, discordâncias, erros, acertos, diferenças, consensos, são parte da arena pública. São o dia a dia da gestão. Só não vivencia essas experiências e aprende a ser melhor com elas quem não está no mundo social para melhorá-lo. O racismo é a pior face da desigualdade porque é estrutural, é insolúvel, é invisível, é subjetividade travestida da lógica objetiva de outros temas, mesmo os politicamente relevantes. Ele desumaniza as relações e é tão letal quanto a pandemia. #Sejamos todos Serafina. Manaus, 11 de maio de 2021. Kátia Helena SERAFINA Cruz Schweickardt


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