"A questão criminal no Brasil contemporâneo", Vera Malaguti

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a questão criminal no brasil contemporâneo

vera malaguti batista


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A questão criminal tem ocupado uma centralidade absoluta no cenário político brasileiro. A expansão exacerbada do sistema penal, sem paralelo em nossa história, implica em que essa centralidade não seja apenas política mas também social e econômica. Pretendemos recorrer primeiramente à história para que tenhamos uma visão em perspectiva que pode nos ajudar a desnaturalizar o contexto em que vivemos, conjuntura que talvez fique conhecida no futuro como O Grande Encarceramento. Para encararmos essa questão precisamos primeiro, entender a questão criminal a partir da história, do “curso dos discursos sobre a questão criminal” como nos ensina Raúl Zaffaroni1. A história da configuração do poder punitivo para a neutralização da conflitividade social estaria associada à formação do Estado e ao processo de acumulação de capital. O crime e seus tratamentos não constituem categorias ontológicas, morais ou “da natureza”. O sistema penal aparece então como constructo ou dispositivo, relacionado à realidade econômica e social e às relações de força presentes no modo de produção capitalista. Zaffaroni, a partir de Foucault, localiza no século XIII o primeiro discurso integrado entre política criminal, direito penal e criminologia, através do aparecimento da estrutura da Inquisição. As mudanças nas relações de poder confiscariam às vítimas o conflito criminalizado, que passa a ser administrado de forma centralizada entre a Igreja e as primeiras formas de Estado, para gerir a conflitividade e a violência e garantir uma determinada idéia de ordem. Surge então uma nova atitude para determinar a verdade: a busca da verdade

* Comunicação apresentada no 2º Fórum Nacional de Alternativas Penais: “Audiências de Custódia e a Desconstrução da Cultura do Encarceramento em Massa”, realizado entre os dias 24 e 27 de fevereiro de 2016 – Salvador/BA.

1. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El curso de la Criminologia. In: Revista de Derecho Penal y Criminología, n. 69. Madrid: UNED, 2002.

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“criminosa” era o método da Inquisição. Institui-se então uma averiguação realizada pelo que exerce o poder sobre o objeto estudado, a partir de uma posição privilegiada, sem diálogo com “o outro”. Os discursos sobre a questão criminal, ou a criminologia, se ancoraram nesse saber/poder e se intensificaram com as crescentes possibilidades técnicas de domínio da natureza, transladada nas relações com “os outros”, como aponta Marildo Menegat2. Na segunda metade do século XX dois livros produziram rupturas no curso desses discursos: Punição e Estrutura Social e Vigiar e Punir. O primeiro, escrito em 1939 no contexto da Escola de Frankfurt por Georg Rusche, perdeuse na Europa conturbada daquele momento e veio a ser atualizado por Otto 4

Kirchheimer e publicado nos Estados Unidos dos anos sessenta. Rusche é o primeiro a analisar historicamente as relações entre condições sociais, mercado de trabalho e sistemas penais. O poder punitivo oscilaria então entre um direito penal de execuções, mutilações, açoitamento e encerramento e discursos mais liberais, de acordo com a abundância ou falta de mão-de-obra. Esse movimento pendular vai do século XV ao XIX, quando a Revolução Industrial consolida a prisão como a principal pena do Ocidente, completamente associada à fábrica. Os trabalhadores que não estivessem sendo explorados sem limites nas fábricas, estariam exercendo suas penas através do trabalho forçado, lucrativo e funcional à ordem capitalista industrial3. Na mesma década quente em Paris, Michel Foucault escreve Vigiar e Punir, a partir da obra de Rusche. Ele avança na análise do simbolismo do poder punitivo, suas funções jurídico-políticas no cerimonial de reconstituição da soberania lesada no absolutismo. Os rituais organizados, o suplício como técnica

2. MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro: Faperj/Relume Dumará, 2003.

3. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ Revan, 2004.


para impor as marcas do poder no corpo, estariam traduzindo relações de força e não de justiça. Ele mostra como, a partir do século XVIII, essas cerimônias se tornam perigosas nos embates entre as classes empobrecidas e o poder absolutista4. É a partir dos medos das elites do momento que a Reforma das Luzes aparece como nova estratégia política; punir e não vingar. A punição e a repressão passam a ser funções regulares através de uma nova economia e uma nova tecnologia. Junto com as demais “disciplinas”, essas fórmulas gerais de dominação irão produzir uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição e controle dos corpos dóceis. A crítica da prisão, que é contemporânea à sua consolidação, demonstra que o aparente e crônico fracasso dos objetivos do sistema penal esconde a sua principal função: realizar o controle diferencial e seletivo das ilegalidades populares, neutralizar as resistências a uma nova ordem que se impunha contra o novo sujeito político do século XVIII, a multidão. Cabe a nós, que pensamos a questão criminal contemporânea, entender as novas funções da prisão e do poder punitivo no neoliberalismo, ou capitalismo de barbárie. A esse respeito, Loïc Wacquant propõe a idéia do paradigma norte-americano de incremento do Estado Penal em contraposição à dissolução do Estado Previdenciário: a nova gestão da miséria se daria pela criminalização da pobreza, nos discursos e nas práticas5. A hegemonia deste modelo produziu o que Wacquant denominou de onda punitiva, produzindo um processo de encarceramento em larga escala nunca visto na história da humanidade, hoje já questionado pela esquerda e até pela direita estadunidense. Trabalhando a história ideológica do controle social no Brasil de hoje, Neder aponta o arbítrio das fantasias absolutistas de controle social policial

4. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. 5. WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova

gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ Revan, 2003.

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absoluto no imaginário brasileiro, a partir das suas matrizes (no sentido de uma permanência cultural) ibéricas. A partir da reforma pombalina da segunda metade do século XVIII em Portugal, instaura-se um processo de modernização que conjuga a incorporação de novos pressupostos teóricos e ideológicos cuidando de que a base de sustentação da hierarquização não fosse afetada. Esta ambigüidade revela-se no desdobramento deste processo para o Brasil. A discussão em torno da redação do código penal de 1830 articulava o liberalismo de Beccaria com as formas de controle e punição da escravidão. No Rio de Janeiro do século XIX, o chefe de polícia Eusébio de Queiroz 6

apontava a escravidão como limite à adoção de políticas mais modernas de policiamento urbano. Propõe então o confinamento dos escravos nas fazendas e o rígido controle de seus deslocamentos6. Para Neder, nem o fim da escravidão e nem a República romperam com o legado da fantasia absolutista do controle social, da obediência cadavérica. A atuação da polícia nas favelas brasileiras nos dias de hoje é a prova viva deste legado. O período pós-emancipação no Brasil é marcado por profundas inquietações. A independência inspirava vários projetos para a nação que lutavam por hegemonia. A principal questão a ser administrada, ideológica e politicamente, era a convivência do liberalismo com o sistema escravista. Para entender esta conjuntura, os problemas do liberalismo no Brasil7, gostaríamos de refletir sobre o que Gizlene Neder denominou “iluminismo jurídico-penal luso brasileiro”8. A autora trabalha as transformações do Brasil

6. Cf. NEDER, Gizlene. Absolutismo e punição. In: Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, ano 1, n.º 1. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 132. 7. Robert Schwarz analisando Machado de Assis trabalha o liberalismo no Brasil como as

“idéias fora do lugar”. 8. NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ Freitas Bastos, 2000.


colônia em Império Luso-Brasileiro, a partir das Reformas Pombalinas em Portugal na passagem do século XVIII para o XIX. Compreendendo que os atores no poder eram bacharéis, ela trabalha a influência da reforma de Coimbra em 1772 e a criação dos cursos jurídicos no Brasil em 1827. A idéia central de sua tese está baseada nas permanências históricoculturais de uma maneira de incorporar o liberalismo europeu sem rupturas com o tomismo, o militarismo e a religiosidade de nossas matrizes ibéricas. Assim, busca-se sempre uma fórmula jurídica-ideológica que assimile uma hierarquização absolutista, que preserve as estratégias de suspeição e culpa do direito canônico e que mantenha vivos o arbítrio e as fantasias absolutistas de controle total. A herança jurídico-penal da inquisição ibérica é uma das marcas de um modelo de Estado que vinca a história do Brasil até os dias de hoje. “O discurso do direito penal, que tem a pretensão de exercer-se como locução legítima, numa língua oficial, está permanentemente produzindo sentidos que viabilizem a expansão do sistema penal, expansão que também se orienta na direção das mentalidades e da vida privada”9. Nesta herança, o dogmatismo legal se contrapõe ao pluralismo jurídico, o diferente é criminalizado, há uma coercitividade do consenso e uma manipulação dos sentimentos ativados pelo episódio judicial10. Para Batista, esses mecanismos sobrevivem e se agudizam em determinadas conjunturas políticas, reproduzindo o tratamento dispensado ao herege: o princípio da oposição entre uma ordem jurídica virtuosa e o caos infracional; a matriz do combate ao crime é feita como cruzada, com o extermínio como método contra o

9. BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros. Aula inaugural dos cursos da Universidade Candido Mendes, proferida em 12 de março de 2001, Rio de Janeiro.

10. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro - vol. I. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 2000.

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injusto que ameaça; é produzido um direito penal de intervenção moral baseado na confissão e no dogma da pena. Essa ordem jurídica intolerante e autoritária não suporta limites, transforma-se num sistema penal sem fronteiras, com a tortura como princípio, o elogio da delação e a execução como espetáculo. No processo que intitulam de história da programação criminalizante no Brasil, Batista e Zaffaroni mostram como os usos punitivos do mercantilismo praticados no corpo do suspeito ou condenado no âmbito privado vão dando sinais de anacronismo depois da independência e na constituição do capitalismo no Brasil. As permanências, no entanto, são muitas: “a alçada criminal abrangia a pena de morte natural inclusive em escravos, gentios e peões homens livres, 8

sem apelação nem agravo, salvo quanto às pessoas de mor qualidade, quando se restringiria a degredo por dez anos e multa até cem cruzados”11. Do ponto de vista jurídico, do império das leis, as Ordenações Filipinas, que constituíram o eixo da programação criminalizante do Brasil-colônia, regeram o direito penal até a promulgação do código criminal de 1830. É importante frisar que no direito privado várias disposições das Ordenações Filipinas regeram até 1917!12 As demandas por ferocidade penal, a seletividade da clientela do sistema penal são permanências históricas. Mas, a partir das contradições que surgem entre o sistema colonial-mercantilista e o capitalismo industrial que se configurava já na segunda metade do século XVIII, vai-se esboçando uma outra conjuntura. No bojo da Independência, a Constituição de 1824 produz algumas rupturas, ma non troppo, que fazem parte do universo liberal no conjunto das idéias fora do lugar da modernização à brasileira. Surgem as

11. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro - I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

12. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit.


garantias individuais: “liberdade de manifestação do pensamento, proscrição de perseguições religiosas, liberdade de locomoção, inviolabilidade do domicílio e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão, a reserva legal, o devido processo, a abolição das penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade das penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado”13. É lógico que tudo isto não poderia colidir com o “direito de propriedade em toda a sua plenitude” que, mantendo a escravidão sem uma só letra da lei, instituiria a cilada da cidadania no Brasil, digamos a ciladania, que pontua até hoje os discursos do liberalismo no Brasil. Como assinalou Machado Neto a cidadania no Brasil nasce restrita aos homens brancos e proprietários14. Essa nossa história faz com que nosso sistema penal e nossa maneira de pensar e sentir a questão criminal sejam marcados por práticas de extermínio, aniquilação e desqualificação jurídica do povo brasileiro advindas da predação colonial contra os povos originários e os afrodescendentes. Pensando então, na longa duração do autoritarismo no Brasil, nos demos conta de que a “democracia” é um intervalo da nossa história; na verdade, essa maneira de pensar e sentir a questão criminal é a grande permanência que atravessa o sentido do nosso sistema jurídico-penal. Para pensarmos nossa “torturante contemporaneidade” nos remetemos ao momento de transição da ditadura civil-militar quando estava disseminada uma resistência às práticas do Estado de exceção. Foi naquele momento histórico que os meios de comunicação começaram a esculpir cotidianamente o novo inimigo público, aquele que vai ensejar desejos de extermínio: o traficante. Quero dizer com isso que a política criminal de drogas que nos é imposta no auge da ditadura pelos estadunidenses seria o grande vetor de extermínio e encarceramento no período democrático.

13. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 39. 14. MACHADO NETO, Zahidé. Direito Penal

e Estrutura Social: comentário sociológico ao Código Criminal de 1830. São Paulo: Edusp/ Saraiva, 1977.

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Na geopolítica das drogas a América Latina foi transformada em campo de batalha. Produtora de maconha e cocaína, abalada por uma crise econômica que produziu, nos oitenta e nos noventa, multidões de camponeses sem terra e trabalhadores urbanos informais ou desempregados, nossa parte da América inscreveu-se duplamente no mundo: através de nossa inserção na divisão internacional do trabalho e no estereótipo pejorativo que acompanha a expressão “traficante”. Para enfrentar esta política criminal em forma de guerra, temos que desconstruí-la e para isso devemos romper com o discurso moral. Como disse Massimo Pavarini, mais moralidade como mais penalidade é o trágico equívoco 10

de todas as campanhas punitivas15. As cruzadas contra as drogas, essa combinação de elementos morais, religiosos e de confronto, produziram, em muitos países da América Latina, um direito penal sem fronteiras, forjando em certas prisões federais algo que aspira a ser muito parecido com as imagens sinistras dos prisioneiros de Guantánamo. A ditadura, com suas campanhas de lei e ordem e sua política de segurança nacional, construiu assim o estereótipo político criminal do novo inimigo interno: o traficante. A guerra contra as drogas pôde assim garantir a permanência do aparato repressivo, aprofundando seu caráter autoritário e assegurando investimentos crescentes para o controle social e a segurança pública. Não foi só a infraestrutura que se manteve após o período militar: o novo inimigo propiciou também a renovação dos argumentos exterminadores, o aumento explosivo das execuções policiais e a naturalização da tortura. Tudo é normal se o alvo é o traficante nas favelas. Tivemos no Rio de Janeiro um projeto de ocupação militar nas áreas de pobreza em nome dessa guerra.

15. PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso italiano. In: Revista Discursos Sediciosos:

crime, direito e sociedade, nº 2. Rio de Janeiro: ICC, 1996. pp. 67-76.


Podemos, através dessa reflexão, pensar que talvez essa economia de guerra seja o principal sentido da Guerra às Drogas, já que todos os seus objetivos explícitos configuram um retumbante fracasso. A produção, a comercialização e o consumo daquelas substâncias alcançadas pelo proibicionismo só aumentaram junto com as maiores taxas de encarceramento da história da humanidade e a violência disseminada pelas cidades e campos. Salo de Carvalho, na mais atual e completa obra sobre a questão das drogas no Brasil, critica “aquelas ideologias ocultadas pelos Aparelhos de Estado que inviabilizam a otimização dos Direitos Humanos, demonstrando a diafonia existente entre o discurso oficial e a funcionabilidade do sistema de drogas fundados em legislações penais do terror”16. Salo critica historicamente a legislação penal sobre drogas no Brasil com dispositivos vagos e indeterminados e uso abusivo de normas penais em branco, que “acabaram por legitimar sistemas de total violação das garantias individuais”17. O autor demonstra também o alinhamento legal do Brasil à política estadunidense, a partir dos anos setenta, através da absorção do discurso central em que o inimigo interno seria o produtor e o traficante. Para ele o ápice do modelo jurídico-político ocorre ao final da década de setenta e início da década de oitenta, “com a total incorporação dos postulados da Doutrina de Segurança Nacional na concepção de seguridade pública”, dentro das categorias desenvolvidas pelos teóricos da ditadura militar (geopolítica, bipolaridade, guerra total e inimigo interno). Esta conjuntura produziu o que denominei de adesão subjetiva à barbárie que constitui a crescente demanda coletiva por castigo e punição18. Nas sendas

16. CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Luam, 1996, p. 10. 17. Op. cit., p. 27.18. Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Adesão Subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo

neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. 18. Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Adesão Subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

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de Foucault, Edson Lopes nos demonstra as afinidades entre os assujeitamentos e a subjetividade imposta pela cultura punitiva, que tem na figura da vítima seu principal dispositivo, e no medo sua mais potente metodologia. No próprio campo do marxismo, Melossi já anunciara o deslocamento entre o poder punitivo e as condições objetivas, através da constituição dessa colossal demanda por pena. Na virada do século XX o neoliberalismo produziu uma perda geral de intensidade do trabalho: o capital é agora vídeo-financeiro19. A nova demanda por ordem vai exigir o controle do tempo livre. A prisão não é mais lucrativa pelo trabalho dos presos, mas pela sua gestão, a ser terceirizada e privatizada, pela 12

sua simbiose com as periferias urbanas e pelo seu capital simbólico. A indústria do controle do crime vai gerar uma nova economia, com seus medos, suas blindagens, suas câmeras, suas vigilâncias, sua arquitetura. A segurança privada vai substituir a construção civil como grande absorvedora de mão de obra desqualificada. Nesta nova configuração, a prisão não só não desapareceu como se expandiu como nunca. Expandiu-se e articulou-se para fora dos seus limites com dispositivos de vigilância, com as medidas fora da prisão, e também com o controle pela medicação. Neste cenário surgem as penas alternativas, numa perspectiva de alternativas à pena, como a partir de Radbruch diria Alessandro Baratta. Pensadas como estratégias de desafogamento da justiça penal, elas podem acabar por impor um controle social mais capilarizado, mais minucioso, que vai estender os tentáculos do poder punitivo aos pequenos conflitos do cotidiano, bem no espírito da devassa inquisitorial que o fundou. A juridicização do cotidiano vai criar um

19. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O Príncipe da Moeda. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1997; e As Ruínas do Pós-Real. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1995.


conjunto de dispositivos biopolíticos: o controle dos conflitos privados vai demandar juristas e demais especialistas para se tornar o centro da vida política. As estratégias de mediação e restauração aparecem como alternativas à pena na conjuntura dos anos setenta e oitenta. Seu maior risco é, ao invés de desjudicializar os procedimentos, expandir a mentalidade judicial para os “novos operadores”. Observemos o caso do júri, dispositivo jurídico nascido historicamente da pretensão política de ser o sujeito julgado por seus pares, por seus iguais. Na tradição brasileira, as sentenças populares costumavam ser mais generosas do que aquelas geradas pelo saber dogmático penal. Hoje dá-se o contrário: o senso comum criminológico punitivo inculcado pela grande mídia produziu uma ferocidade crescente na mentalidade dos jurados brasileiros. A tradição garantista do pensamento jurídico, antes considerada conservadora, vai ser lembrada saudosamente e vai tornar-se vanguarda se comparada à sanha punitiva alimentada pelas coberturas midiáticas espetaculares. Pensemos também em alguns fatos noticiados, nos quais os Conselhos Tutelares, concebidos para democratizar a justiça dirigida a crianças e adolescentes, transformam-se em dispositivos policialescos, prontos a penalizar e criminalizar as relações familiares, principalmente as dos pobres. O principal poder decantado desse conjunto de movimentos punitivos vai ser a legitimação da intervenção moral, da invasividade do Estado penal nas relações familiares e de vizinhança. Quanto maior a conflitividade social decorrente da devastação promovida pelo capital, maior deve ser a legitimidade da pena. O que vai articular essa nova economia política é a constituição de uma cultura punitiva. A indústria cultural e a grande mídia vão tratar de inculcar diariamente o dogma da pena e o respectivo modelão penal já decadente nos Estados Unidos: das bugigangas eletrônicas à prisão supermax privatizada. O importante é punir mais, melhor e por muito tempo: o negócio dos cárceres precisa de muitos hóspedes e de longas estadias... É aquele processo que

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Wacquant chama de remasculinização do Estado, que produz um giro do social para o penal e que terá efeitos tanto nos orçamentos públicos como na prioridade discursiva, colonizando a assistência social pela “lógica punitiva e panóptica característica da burocracia penal pósreabilitação”20. O livro de Vera Andrade, A Ilusão de Segurança Jurídica, traz uma profunda reflexão sobre as promessas não cumpridas do sistema penal e seu afastamento de análises empíricas sobre seu real funcionamento21. Afinal, o Direito Penal surge na Europa revolucionária do século XVIII para conter a barbárie do poder punitivo do absolutismo. Se o positivismo surge na Europa na ambiência dos medos pós14

revolucionários, suas verdades científicas ajudaram a desqualificar as utopias de igualdade, demonstrando uma hierarquia de raças que legitimava o colonialismo em curso. Quando falamos do positivismo como cultura e sua recepção nas colônias queremos afirmar que essa cultura, de longa duração, produziu não só uma maneira de pensar a questão criminal, mas principalmente uma maneira de senti-la: afetividades punitivas que naturalizam a truculência e cultuam a pena como solução mágica e restauradora de todos os conflitos. Ao começar a escrever uma história da criminologia na América Latina, Rosa del Olmo estudou a importação de saberes e pautas vindos do Hemisfério Norte produzindo uma verdadeira ocupação estratégica que tomava corpo em cátedras, seminários e publicações. Na virada do XIX para o XX (transição da escravidão e da República) o positivismo se torna o saber/poder hegemônico na compreensão da complexa questão criminal. Nessa conjuntura o positivismo criminológico ajudava a neutralizar a potência dos desejos de nação “mestiços” e “degenerados”.

20. WACQUANT, Loïc. Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Vera Malaguti Batista (organizadora). Rio de Janeiro: Revan, 2012.

21. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.


A auto-patologização aprofundava os fossos construídos entre os homens brancos e proprietários e o resto do nosso povo. Tendo como objetivo maior a manutenção da ordem social projetada da escravidão para a República, o positivismo criminológico se travestia de técnica, encobrindo com o fetiche criminal sua natureza política. É Nilo Batista quem nos assevera dessa função encobridora dos conflitos sociais que é o dispositivo crime. No Brasil republicano o desenvolvimento das instituições policiais estarão participando dos deslizamentos de sentidos da medicina legal para medicina social, muito mais abrangente. Flamínio Fávero afirma que “...a medicina legal deve agir, de preferência na elaboração e execução de certas leis que demandam conhecimentos de ordem biológica a fim de que a ordem social permaneça”22. Aquele paradoxo da introdução do cartesianismo em Portugal acompanha essa nova estratégia de dotar a fé na ciência de uma reedição racional do salvacionismo. Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na intelligentzia e nas práticas sociais e políticas brasileiras, ele foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado, patologizado, discriminado e por fim, criminalizado. Funcionou, e funciona, como um grande catalizador da violência e da desigualdade características do processo de incorporação da nossa margem ao capitalismo central. Descolonizar nossa elaboração da questão criminal impõe uma ruptura radical com aquela objetificação e hierarquização das nossas matrizes inquisitoriais. A consolidação da mentalidade obsidional europeia produziu uma máquina de classificação e seletividade para lidar com o seu grande Outro. Na atual conjuntura esse quadro se apresenta de maneira dramática. Como diz Zaffaroni, nascemos como um continente que é instituição de sequestro e na

22. Correa, Mariza. (1998). As Ilusões da Liberdade. Bragança Paulista: Edusf, p. 224.

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atualidade essa vocação se aprimorou. Milhões de latino-americanos apodrecem em prisões abaixo de todos os padrões de dignidade. A intensidade dos conflitos sociais e sua leitura penal positivista produziu o maior encarceramento da nossa história, e a política criminal de drogas prestou grande contribuição neste processo. Quanto mais prendemos e matamos pior ficamos e os meios de comunicação vão produzindo um discurso tautológico que gera adesão subjetiva à barbárie: demanda por mais pena e mais severidade penal. O pensamento criminológico em nossa margem precisa mergulhar na nossa história. Nem os povos originários do Brasil e nem os africanos que nos povoaram tinham a necessidade de polícia ou de sistema penal para resolver 16

seus conflitos. A justiça de transição da África do Sul contemporânea é um exemplo disso. Há alguns meses atrás, no Brasil, uma nação indígena não aceitou o resultado de um júri considerando aquela cerimônia como brutal. Nós, que naturalizamos as violências e o caráter genocida de nosso sistema penal, estamos numa encruzilhada ética e civilizacional: ou aprofundamos radicalmente nossa crítica ao poder punitivo ou estaremos eternizando ad infinitum nossa autocolonização. É esse o sentido de estarmos discutindo aqui alternativas penais, elaborando coletivamente, a partir da nossa realidade, novos caminhos para a administração de nossa conflitividade social.


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#Publicação comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo em ocasião da 32a Bienal de São Paulo - Incerteza Viva.

#Publication commissioned by Fundação Bienal de São Paulo on the occasion of the 32a Bienal of São Paulo - Incerteza Viva.


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lugar de agência e afetos entre modos de fazer, aprender e cuidar intervenção nos sistemas de (re-)produção e invenção de mundos implicação ética nas contradições e paradoxos das coletividades OIP é uma iniciativa que se manifesta por meio de grupos de pesquisa, leituras públicas, apresentações, oficinas, intervenções, instalações, escrita, tradução e produção de publicações como esta. no contexto da 32a bienal de são paulo: incerteza viva, a oficina se constitui pela colaboração entre jota mombaça, rita natálio, thiago de paula, valentina desideri, diego ribeiro e amilcar packer.

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FONTES NEUZEIT S, GEORGIA E UNIVERS


Vera Malaguti Batista ĂŠ Professora Adjunta de Criminologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e SecretĂĄria-Geral do Instituto Carioca de Criminologia.


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