Edição especial do Boletim da Campanha ANA para discutir sobre pedofilia

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Os termos pedólo e pedolia têm sido larga e indiscriminadamente utilizados por profissionais, pesquisadores, instituições, leigos e mídia brasileiros. Em meio aos seus usos, há consideráveis equívocos que acabam por produzir e reproduzir compreensões errôneas, obscuras e confusas sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes, aumentando as vulnerabilidades de toda a sociedade sobre o problema. Sim, a confusão conceitual nos torna mais suscetíveis à própria violência, pois não é possível traçar estratégias de enfrentamento para o que mal conhecemos. O pedófilo é o sujeito que transita entre as categorias criminoso e patológico (LOWENKRON, 2011; OLIVEIRA, 2015), percorrendo os saberes e práticas das áreas do Direito, da Psicologia e da Psiquiatria, dentre outras. É considerado o “novo monstro contemporâneo” (LOWENKRON, 2012, p. 2) pois reagimos a eles com

sentimentos de repulsa, nojo, raiva, dentre outros. A pedofilia é confundida com abuso sexual, estupro e pornografia infantil, conforme achados de autores nacionais. Landini (2003), por exemplo, realizou pesquisa em um jornal de grande circulação nacional há vinte anos (1994-1999) e mostrou que a violência praticada pelos ricos foi retratada como produto de desvio psicológico de pedófilos, enquanto que os pobres foram associados à barbárie e à pobreza. Isso quer dizer que nossas explicações sobre o que é e o que não é pedofilia são atravessadas pela perspectiva de classe social. Lowenkron (2012) também constatou confusão conceitual quando analisou os discursos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, conduzida no Senado Federal brasileiro, que foi instaurada em março de 2008 com objetivo central de tipificar a pedofilia como cr ime. Assim, propomos o entendimento do conceito

de pedofilia a partir de uma perspectiva sócio histórica, em contraposição a visões individualizantes. Outra perspectiva que fortemente incide no debate sobre a pedofilia é a psicopatologia, embasada em manuais como a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID 10) da Organização Mundial de Saúde (OMS). A pedofilia, é definida como um “transtorno da preferência sexual” e o pedófilo apresenta “preferência sexual por crianças, quer se


trate de meninos, meninas ou de crianças de um ou do outro sexo, geralmente prépúberes ou no início da puberdade" (OMS, 1994, p. 66). Outro documento norteador é o Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais (APA, 2014), produzido pela Associação Psiquiátrica Americana. Em sua quinta edição, revela três diferentes categorizações, todas inseridas nos transtornos parafílicos: a pedofilia, o transtorno pedofílico e a orientação sexual pedofílica. Vale salientar que o título do item é transtorno pedofílico e não pedofilia. Este primeiro tem tempo mínimo de seis meses de ocorrência de “(...) fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos intensos e recorrentes envolvendo atividade sexual com criança ou crianças pré-púberes” (APA 2014, 698). Note-se três perspectivas para o diagnóstico: as fantasias, os impulsos e os comportamentos. Apenas estes últimos são crimes e/ou violências sexuais. Assim, tanto o DSM V, a literatura especializada (HUSS, 2011; OLIVEIRA, 2015) e a experiência do Programa Repropondo / Projeto Invertendo a Rota / Aldeia Juvenil/ PUC Goiás, descrita em Santos et al. (2009) têm demonstrado que homens podem ser diagnosticados e até mesmo se sentir como pedófilos, sem nunca ter praticado violência sexual. Inversamente, os homens que cometeram tais violências, os significados que produziram sobre eles e suas histórias de vida evidenciadas em pesquisas anteriores (ESBER, 2007, 2009, 2016) revelam que muitos deles não se enquadrariam no diagnóstico de pedofilia ou transtorno pedofílico. O que dizer sobre as mulheres pedófilas e/ou autoras de violência sexual? São personagens ainda praticamente inexistentes na literatura científica, nas instituições, nos filmes e até mesmo em nossas próprias mentes. Enquanto sociedade, ainda temos dificuldades em enxerga-las e identificalas como capazes de ter tais fantasias, impulsos ou comportamentos. Ao contrário do que pensamos, entretanto, há relatos de violência sexuais praticados por elas, seja contra meninos (ESBER, 2009) ou meninas (BASS e THORNTON, 1985).

Para finalizar, espera-se que o presente artigo traga à luz esclarecimentos sobre esse assunto tão povoado de tabus, não ditos, pontos cegos, mitos, preconceitos e indefinições. A literatura nacional é escassa, o que acaba por alimentar tais concepções da sociedade. Em pesquisas anteriores (Esber, 2007, 2009, 2016) defendeu-se veementemente que

sentido de infância e adolescência para a u t o re s d e v i o l ê n c i a s e x u a l . I n (Re)Descobrindo Faces Da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes (pp. 127–153). Goiânia: Cânone Editorial. Esber, K. M. (2009). Autores de violência sexual contra crianças e adolescentes. Goiânia: Cânone Editorial. Esber, K. M. (2016). As representações sociais sobre as vítimas para os autores de violência sexual contra crianças e adolescentes. Universidade Federal de Goiás. Huss, M. T. (2011). Psicologia Forense: pesquisa, prática clínica e aplicações. Porto Alegre:Artmed. LANDINI, Tatiana Savoia. Pedófilo, quem és? A pedofilia na mídia impressa. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, 2003. LOWENKRON, Laura. O Monstro Contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos. 2012. 395f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

pesquisadores e profissionais que trabalham com Autores de Violência Sexual (AVS) e/ou pedófilos devem buscar conhecer suas subjetividades para além de quaisquer rótulos, que apreendem e aprisionam a complexidade de todo e qualquer ser humano. Sem nos liber tarmos de classificações pré concebidas, não saberemos como lidar com eles na mesma arena das políticas públicas que cuidam da proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes. Em se falando em rede de proteção, caso um pedófilo ou autor de violência sexual queira buscar ajuda profissional para evitar a prática de violência, onde ele vai? Referências BASS, Ellen; THORNTON, Louise. Nunca contei a ninguém. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1985. Esber, K. M. (2007). “Tinha pavor em pensar que alguém pudesse descobrir”: o

LOWENKRON, Laura. “Todos Contra a Pedofilia”: Notas sobre a construção da pornografia infantil como “causa política” e “caso de polícia”. IX REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL. GT27 - Desejos que Confrontam Antropologia e sexualidades dissidentes, 2011. OLIVEIRA, Alessandro José de. Pedofilias: Doenças e Delitos. 2015. 194f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAUDE. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde: CID-10. São Paulo: EDUSP, 1994. Santos, B. R. dos, Esber, K. M., & Santos, I. B. de C. (2009). Autores de violência sexual contra crianças e adolescentes: responsabilização e atendimento psicoterapêutico. Goiânia: Cânone Editorial.



Direitos Sexuais:refere-se Refere-se a um Direitos Sexuais: a um conjunto de de normas, normas,leis, leis,portanto, portanto, quedizem dizemrespeito respeito à direitos, que à liberdade liberdadeautonomia, sexual, autonomia, sexual, integridade e integridade e segurança, segurança, privacidade, prazer, escolhas privacidade, prazer, escolhas livres livres e responsáveis, informação e exercício às formas de expressão sexual, de maneira segura e livre de pressões.




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