Anaeemanuel venusterra

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escolhe-se s贸 a estampa para sair an么nimo

Ana Hupe e Emanuel Arag茫o 1



Título deixamos para depois? Eu faço assim, geralmente. Pergunto agora, se seria importante tentar definir alguma regra, padrão, coisa que fosse. O título. que seja. antes de qualquer outra coisa, depois. Só consigo pensar que fico apavorada de ter que dar oi para todo mundo que entrar aqui. Queria um macacão zentai, aqueles japoneses que cobrem o rosto e corpo todos, escolhe-se só a estampa para sair anônimo. Podíamos pensar numa roupa dessa para uma próxima vez. Inventei uma ideia nos últimos dias de viajar de trem. Num lugar desconhecido, entre dois lugares desconhecidos. A ideia inicial era poder escrever durante uma viagem de trem. A viagem começa sentado num banco da estação de trem. O macacão é uma possibilidade. Dentro da estação aberta. Uma tentativa de definir o céu do lado de fora. Uma tentativa inicial de definir um espaço, um nome, um lugar, uma cor, um contorno de alguma coisa. A ideia de algo que só existisse como contorno, ou como estampa. É possível imaginar, inventar coisa que só existe como contorno? Tenho olhado muito o contorno das coisas, estou obcecada com a linha do horizonte, as linhas. Desenhando e redesenhando as Cagarras, a ideia é alcançar esse horizonte que está sempre à frente, chegar até às Ilhas, pegá-las. Fudeo, preciso de um macacão. É possível construir um personagem que seja só contorno? Assim, algo ou algum sujeito que só existe quando e se olhado. Uma tela pro outro. 2



Pera. Como um personagem que não tem rugas, só fumaça de cigarro no rosto? Um vulto, um fantasma, silhueta? Tem uma frase boa do Bowie que é algo assim: o tempo toma um tempo pra acender um cigarro. Um sujeito feito de fumaça. Aí eu continuo perguntando se rugas são ainda superficie…? Rugas porque é algo que se nota no rosto de alguém quando se olha bastante, profundamente. Fumaça me parece interessante para viajar no tempo, é algo mais leve do que o vento. Temos então um personagem de fumaça? Nossa, como é preciso concentração para escrever. Por isso os fones… no ouvido... Vou tentar um. Ufa. No interior do trem, eu me dei conta de como é dificil, ao contrário do que se possa imaginar, escrever sem ninguém que olhe, anônimo. Escrever sendo fumaça. Os limites de sempre entre narrador e personagem. Ou o que quer que seja qualquer uma dessas duas coisas. Escrever em deslocamento, essa necessidade de se concentrar, para mim, ao contrário, tem muito a ver com estar em lugar nenhum, que é o que acontece quando estamos em passagem, no trem, instáveis de um lugar para o outro. No avião ainda é pior, já viu o que acontece se há um crime num vôo? As leis ficam suspensas. Como são as leis por cima do Atlântico? Depende da hora em que se deu o acontecimento, se está mais próximo da origem ou do destino, foi o que um advogado me explicou. Parece o cenário perfeito para um crime, lugar da 3



dúvida. Você acha que o que define a quantidade de saudade é o espaço ou o tempo? Pergunto isso pensando no espaço do crime, e não de outra coisa. O que eu quero dizer é pensar no vazamento do outro como crime de falta. Um sujeito que se espaça no tempo, por cima do Atlântico. Onde é que se define o crime da falta? Onde é que podemos apontar ele como algo que se perde? Eu tenho pensado na ideia do vazamento do outro como crime de falta… Não faz nenhum sentido, talvez… Tentando de novo, pensando no sujeito fumaça como alguém que se perde do outro e que se escreve/inscreve em espaço de deslocamento, onde é que apontamos a morte dele como crime? Sobre a morte dele, não sei ainda, mas já temos deslocamento de tempo e espaço e um sujeito fumaça, muito me aliviam as definições, que coisa, aprendemos a classificar, a separar, categorizar para pensar. A medida que se faz, fala, a coisa caminha como definição sempre. A questão é se é possível definir direções diversas ao mesmo tempo como definição de qualquer coisa que seja? Quando a gente escreve, a gente já está definindo e sempre sai muito pior o que colocamos na tela, da mente à tela, é sempre menor (às vezes, raramente, maior, é quando a coisa acontece, talvez). A fala é um espaço mais livre, mas menos profundo, talvez, dependendo? Aaaaaah, que papo chato. O que temos, por enquanto como cenário, é um trem, um avião, o teatro, a tela, a cabeça, a fala, o sujeito fumaça. Duvido sempre um pouco da ideia da fala como espaço livre, mas isso não importa agora. Queria saber se é possível caminhar com definições distintas de uma mesma narrativa que se segue, sem que tenhamos, como recurso de oraganização, que separá-la 4



em pedaços. É possível que a fumaça sirva pra isso. A fumaça na tela, por cima do Atlântico. Você é muito bom de amarrar. Não estamos separando nada, afinal. Sugeriria que a gente pulasse uma linha, mas isso foi no início, to gostando do embaralhamento, da falta de detalhes no rosto, penumbra, é de onde começamos e onde estamos. Eu sou muito bom de (me)amarrar. É muito íntimo isso que a gente faz agora, na verdade. É uma ideia estúpida! Gosto do embaralhamento também, sempre, mas acabo dando um jeito de perder dele. O que é uma ideia estúpida? A gente se expor desta forma? Depende das palavras que escolhermos. (será que tem alguém lendo?) Acho que nunca tem. Eu digo que é estúpida por ser por si. E por tudo que se investe em cada coisa que se põe no lugar de alguma outra coisa ou no lugar do vazio. ... Voltando pro trem, tá? As paisagens passando pela janela. Você lê no trem? Eu poderia ter um escritório permanente num lugar que vai sempre de uma a outra parte, sou muito produtiva em trens. Em vésperas de viagens sempre fico muito ansiosa com a possibilidade de poder sentar quieta no trem, no avião, gosto mais desse tempo-espaço do que de chegar. Acho bom a coisa do escritório no trem. Penso. Acho bom. Eu acho que eu me perderia nisso sempre. Mas acho bom. Onde. Tentando aqui formular uma relação entre o sujeito fumaça, o trem, o crime e a saudade. Desculpe ter inventado de colocar o tema da saudade junto com outras coisas mais concretas que parecem mais justas aqui. Ainda me pergunto se tudo isso pode ser só superficie de alguma coisa. 5



Vamos preferir pensar que a gente vai editar tudo depois, assim fica mais fluido. As saudades têm tudo a ver com estarmos aqui. Você tá com saudade de quê? De quem. A gente não vai editar nada!!! A saudade tem a ver com a fumaça dentro do vagão. Não sei bem explicar isso, mas é como se fosse possível se determinar nalgum canto por dentro de um outro contorno, mas sem que o contorno esteja ou seja você. Daí o crime, eu acho. De ser uma troço perdido no contorno de um outro. De ser só um possível enquadramento de alguma outra coisa. A saudade de ser isso que só sempre está em função de uma outra coisa que se desloca no espaço e não existe no tempo, pelo fuso, que seja. Uma coisa que se passa. O tempo toma aí um tempo pra acender um cigarro. Você está precisando jogar o corpo dentro. Tenho saudade de quando fumava cigarros. Não dos cigarros, mas do tempo. Será que é medo de se perder no contorno do outro o que você está dizendo? Me pergunto. Acho que estamos perdidos, jogados num tempo-espaço para tentar descobrir alguma coisa e é bom que não haja preocupação com o resultado, só um pouco, outro pouco deve se importar, acho. Pode ser que você esteja falando uma coisa e eu, outra. Necessariamente eu estou falando de uma coisa e você de outra. Que bom que seja assim. Ou não se fala. Ou não qualquer outra coisa que seja. Estive lendo um manual de como se escrever romances nos últimos dias. Parece boa a ideia de um manual de como se inventar qualquer coisa que seja. Eu adoro a palavra coisa. Ela deve se repetir aqui mais uma centena de vezes. Um manual de como se colocar por dentro de alguma coisa. Ou de como tirar alguma coisa que seja de dentro de 6



você. Por isso andava tão feliz com a ideia de um personagem superficie. Acho eu. Podemos voltar a ele quando queira. Um romance é um contrasenso nesses tempos em que não cabem as grandes narrativas, os começos, meios e fins. Tempos de manuais. De notas, já reparou que tudo é as dez mais, os cinco menos. Um horror. Às vezes, é engraçado. Para onde vai agora a fumaça? Por isso a vontade de falar de algo sem dentro. E por isso a saudade ou nostalgia, sempre sofro em diferenciar, que carrega a fumaça em seu deslocamento. A nostalgia em falar de alguma coisa, em alcançar conteúdo, sem discussões formais aqui sobre forma e conteúdo, estou falando da nostalgia em falar de algo. O sujeito fumaça é saudade de ser personagem… O do que se pode dizer de fato sobre alguma coisa, ele carrega nele uma mudança de fusos e uma ausência de leis definidas. E, assim, o seu crime maior é o de poder ser. Sujeito fumaça é ninja. Já reparou que este evento é tão metalinguístico quanto nós? Que todo o tempo alguém explica para outra pessoa do que se trata? E ninguém sabe ao certo. Cada um vem com uma novidade. (ou seja, uma tv e uma tela sugerem a dispersão, tudo o que a gente tá aqui tentando questionar) Mas não é isso, é sobre explicar, sobre dizer do que se diz, mas não dizer o que se diz. Que bom saber que você sabe o que a gente está tentando questionar, me alivia... Dá um certo alívio sempre a certeza do outro. Certezas aliviam, 7



mas é só um modo de dizer. Sobre a diferença entre saudade e nostalgia, não te respondendo, mas colocando o que penso: saudade é positiva, nostalgia negativa. Concorda? Acho que não. Não entendo mesmo a diferença. Você quer dizer que saudade carrega ainda a potência se ser, a possibilidade de se preencher de presença da coisa que faz dela saudade? Saudade dá vontade de quero mais, de reviver, nostalgia tem mais ressentimento. Sujeito fumaça tem nostalgia e saudade, claro, ele é Zeus, completo. Será que a gente consegue preencher a fumaça de conteúdo? Ainda que seja conteúdo que falta, que faz falta? Se você tivesse que escolher um conteúdo pra existir, pra dizer, qual seria? Qual o sentido da vida? É a capa de uma revista que está nas bancas. É absurdo, né? Mas as pessoas acho que não pensam nisso. É esse conteúdo para existir. Não tenho mesmo como te responder.

Pulei umas linhas. Percebi. Vamos falar do palco? Estive aqui pensando algumas vezes na foto que você me mostrou do palco. O palco ali ao lado, 20 anos atrás, ou quase isso. Eu gosto disso, do palco ali ao lado 20 anos atrás ou quase 8



isso… É preciso explicar a ideia do palco e da foto, considerando que isso pode ser lido algum dia por alguém que não esteja aqui conosco agora e que não saiba nada da foto que começou esa conversa mas que não consta nela? Melhor não explicar nada, já está tudo uma loucura, continuemos nessa linha. Quer ver as fotos? Encontrei um monte, foi uma coisa louca, tive que ir num depósito onde minha mãe guardou todos os álbuns, depois que se mudou. E no meio da poeira toda, de uns móveis trepando nos outros, calor, uns homens me olhando e eu passando as páginas dos álbuns rapidamente até ver se tinha alguma coisa que poderia lembrar, que poderia servir. E de repente, eu começava a rir lembrando de uma coisa que não tinha nada a ver com as fotos que eu procurava. Umas fotos das minhas irmãs assistindo televisão de cabeça para baixo no sofá, de bananeira, era um clássico, eu não fazia mais a mínima ideia de que isso tinha acontecido. Enfim. Eu não sei se eu quero ver as fotos ou se prefiro ficar com as suas descrições delas. Você sente saudade de você mesma nelas? Minhã mãe não colocava as fotos das apresentações nos álbuns, porque ficavam sempre tão toscas e ela fazia uma espécie de curadoria para compor aqueles álbuns. Falamos do limbo do limbo então, das fotos que não entravam nos álbuns e da época que a história do teatro prefere não ter. Sinto saudades de algumas coisas. Mas, para ser honesta, eu detestava o palco. Eu morria de vergonha. Eu era uma das piores bailarinas, ficava sempre lá trás. E de vez em quando dançava na frente, mas acho que por uma questão pedagógica. 9



Eu tinha consciência disso e ainda assim achava importante dançar. Deve ser pela formação militar germânica. Adoro uma boa questão pedagógica. Acho lindo isso. A parte mais legal era os figurinos, fazer. As estampas do macacão. Sim? E os cortes, os tecidos. Estou sonhando com o macacão zentai. Imagina acordar e ir na padaria sem ser reconhecido. Vou planejar um para o caso de haver uma próxima vez. Você usaria? Na verdade, por mais que ache bobo dizer isso, eu acho que eu não conseguiria viver sem ser reconhecido. Tenho um pouco de vergonha de assumir isso porque parece sempre mais profunda a ideia do desaparecimento, mas eu acho que eu sou mesmo só superfície e se me tiram isso eu fico sem eu. Por isso inventar a fumaça toda, pra fazer testes sem muitos riscos de danos físicos concretos... Invejo essa maneira de encarar o mundo. Não acho que eu tenha exatamente dificuldades de relacionamentos sociais, eu sou até boa nisso, acho. Mas minha maior angústia é ter que dar oi para todo mundo o tempo todo, por isso queria morar em outra cidade, país, por um tempo, pra realmente me sentir mais livre. Quando eu digo isso eu não quero dizer que eu tenho nenhuma facilidade em nada disso. Muito ao contrário, e é só porque me importa. Detesto encontrar gente na rua, desvio, finjo que não vi, detesto tudo, mas imaginar a possibilidade de não encontrar me desaparece por completo sempre. Por isso sempre ando por 10



aí fazendo de conta que tem alguém sempre comigo, me olhando me ouvindo, me andando junto. Foi assim que eu comecei a escrever cenas. É claro que eu só me dei conta disso muito depois. Eu sempre faço de conta que alguém está sempre comigo. Sempre. Acho muito sozinho o mundo. Muito grande e sozinho. Fico sempre triste de estar sozinho. É claro que sempre que eu estou com alguém eu gostaria de estar em outro lugar, numa outra paisagem, podendo inventar um outro olhar qualquer que me signifique de alguma outra maneira. Eu sempre, sempre, estou no lugar errado, hora errada, com meu eu errado. Sempre queria um outro... Esse sentimento deve apaziguar quando seu filho nascer. Acho lindo esse método de inventar um amigo para conversar, meio esquizo, mas é lindo. O que você faria hoje se não estivesse aqui? (vou ao banheiro rapidinho). Acho que a ideia do filho é um pouco essa mesmo. Imagino conversas que vou ter com ele daqui a vinte anos. Imagino muitas coisas. Ele já é, desde já, um desses olhares que me significam. E isso é bom. É claro que ele deve discordar muito das conversas que eu inventei pra nós dois. É terrível, mas assim eu espero. Acho que eu seria o sujeito fumaça por cima d0 Atlântico, dentro do trem. Sem escritório fixo. Sofrendo por estar lá. O troço de ter um filho mais duro sempre é que ele é a prova viva constante e recheada de carne do tempo passando. Mas isso é outro problema. Ter um filho recoloca o homem, diminuem as expectativas sobre as outras coisas, equilibra melhor as coisas da vida do 11



homem, assim imagino. Fico super a fim de experimentar (mas não agora, sempre). Não sei se equilibra nada. Até agora tem desequilibrado tudo. Mas… que bom eu acho… A coisa é saber que eu nunca mais me desfaço desse outro olhar sobre mim e sobre o mundo que eu resolvi inventar. É bem maluco isso de escolher criar um outro par de olhos pra ver o mundo. Me faz uma pergunta? Estou desconcentrada. Inventa um conteúdo pra fumaça. Que não seja o sentido da vida porque esse é muito duro com ela. Passei pelo Chaika, virou nada, uma possibilidade de letreiro vermelho. Descobri há dois anos atrás uma fábrica na favela da Maré que fazia todos os copos, pratos, talheres, de lá e da Padaria Ipanema. Recolhi em inventário. Estamos falando muito da memória, das saudades, fumaça andando para trás. Queria ir para frente em anos, ou conseguir estar aqui plenamente. Mas já descobri que isso só será possível no dia em que eu tiver um macacão zentai. Não há meditação que dê jeito. Nunca consegui meditar. Sempre me senti um farsante. Eu já tentei bastante. A beleza da coisa da fumaça é que ela não anda pra trás, nem pra lado nenhum por assim dizer. O preenchimento dela com memória ou com projeção de coisas é o que faz dela ser isso que pode. O caso é que aqui mesmo a gente não vai estar. Isso já é uma desistência primária. O 12



movimento de preenchimento da fumaça faz ela poder viajar por cima do Atlântico, disfarçada entre os assentos 36g e h sem que ninguém se dê conta. O que ela carrega em cada instante preciso, inventado por cada cabeça específica, é a questão e que seja saudade, ou memória. Invenção de memória é o presente de alguma coisa. Sem dizer nada de muito profundo com isso. Sério. O que me parece é que a gente só vê os letreiros quando eles caíram e são possibilidades de outros letreiros vermelhos. E aqui nessa cidade que a gente vive, isso acontece agora por todos os lados. Uma cidade um pouco fumaça sendo preenchida por conteúdos estranhos. Por isso me parece importante a gente cuidar dos nossos. Cuidar sem dizer nada de profundo. Sério. Sério, sério o quê? Palavra besta... Acho que estamos quase conseguindo inventar um método, e métodos são também alívios, vivendo numa cidade em que o que era construção já é ruína, não é assim a frase da música do Caetano? O que era construção, já é ruína. Tenho feito o exercício de ler por trás dos letreiros, de olhar o que está escrito e tentar valorizar o espaço em branco em volta das letras o desenho que poderia ser aquilo não fosse palavra. Acredito que isso possa ser uma maneira de enxergar melhor as entrelinhas. O que você gostaria que existisse no lugar do Chaika? (guarda essa pergunta). Meditei durante 4 anos e o que acho hoje em dia é que são todos farsantes, é só querer acreditar que você tá vendo azul que se vê. Armazem de fumaça, era o que eu queria. No lugar do Chaika. Acho bem bom isso de pensar nos desenhos por debaixo das letras. Bem bom mesmo. Sempre faço 13



isso desde pequeno de ficar desfazendo as coisas que eu olho pra elas virarem uma outra coisa que não seja o significado delas. Faço mesmo sem querer. Sempre fiz. Eu achava que enlouquecer fosse isso. Um passo sem volta pro concreto. Pra longe dos significados. Tenho uma história boa sobre isso até. Que eu ouvi de um psicanalista mas eu gosto de contar como se eu tivesse ouvido nuns tempos que teria trabalhado num hospital psiquiátrico: um interno vira pro outro e diz que o rádio dele (apontando para o osso presente no antebraço) tinha acordado naquele dia captando estações estranhíssimas… adoro isso… queria contar… achei que podia ser bom… adoro o retorno pro concreto... Agora que eu entendi a história, teve um delay interno. Muito bom. Mirar las palabras hasta que desaparezcan. Podíamos construir o armazém de fumaça que fosse para o corpo entrar, gosto da ideia do papel como projeto a ser desdobrado no real, traz mais irrealidade ainda. Um armário com geleca gelada e fumaça, pra ficar ali um tempo, no caso de faltar um macacão zentai. Sensorial. Geleca gelada é gênio! Podia ser também silicone de dentista, que tem um cheiro bom e uma textura delícia. O que você ouve? Little Joy. Mas queria dizer uma coisa mais cabeça... Ouvi o novo disco do Amarante, achei estranho. 14



Ouvi umas 20 vezes. Acho lindo. Me coloca direto no Atlântico. Acabei de ouvir faz 15 minutos... Não devo ter ouvido com atenção. Você viu que escreveram, em Frankfurt, um manifesto a favor dos professores no trem? Na verdade, você deve ter ouvido com atenção. Talvez tenha sido esse o problema. Vi o manifesto. No trem! Morri de inveja. Saudade de trem. Morreria de inveja também. Eu vi no facebook, você estava melhor do que eu, veja só. Tem gente que respeita quando a gente escreve, gente que escreve também. Saudade de trem é bom porque pode ser a saudade que você sente do trem ou a saudade do tipo do trem. Como uma qualidade específica de ser saudade. Ou ainda a saudade que o trem sente, dele mesmo, de ficar o tempo todo nisso de ser trem e de estar sempre nessa coisa de ser trem e andar e coisa e tal. O trem convoca, tenho vontade de trem, de fazer a viagem Berlim-Bielo Rússia, abrir um buraco no chão e colocar uma câmera lá. Tem o trem da morte que chama também. Onde é o buraco? No chão do trem ou no chão por debaixo de trem, por onde ele passa? Fiquei confuso... No chão do trem, para registrar a mudança de território, para 15



registrar o aproveitamento. Besteira, a gente tem vontade de transformar tudo em imagem, captar o invisível, Bielo-Rússia radioativa, talvez dê para captar essa fantasmagoria desse jeito, foi o que pensei. Mas não vai dar, foi um lapso. É bom isso de saber que foi um lapso. Um puta mérito! Tinha pensado em botar uma camera no chão por debaixo do trem. Entre uma madeira e outra dos trilhos. Pra esperar a hora que ele passa. E no resto do tempo só se vê o céu. E quando ele passa, ela vê um vulto preto correndo por cima que não quer dizer nada. E num instante específico ela capta a outra câmera colocada no chão do trem e as duas se olham e se apaixonam ou sei lá o quê desse tipo e depois vulto de novo e depois céu. Para colocar uma câmera no trilho é preciso estar fixo, parado numa estação, e meu pensamento funciona melhor em deslocamento. E se elas não se desconectassem, se fossem pro vagão do restaurante e surpreendessem-se ao verem caipirinha de fruta do conde no cardápio? Se pedissem uma, depois duas, três. E quando vissem o cartão, quer dizer o rolo (elas preferem filmar em analógico mode.) tivesse acabado no meio da viagem. Uma estava indo para uma casa num lugar descampado, na zona protegida, onde só se pode entrar com roupa especial para não pegar câncer de útero. A outra se sacrifica pelo encontro. Até porque câmera ela já não é mais depois do fim do rolo. Ela virou sujeito que se encontra com o outro, olha mas não registra. De repente um estampido. O crime que a gente estava esperando acontecer. Elas pensam que é uma bomba, normal. 16



Mas o fiscal que estava a caminho de conferir as passagens, meio rígida a face, esclarece a situação. Ela usava maria-chiquinha para fingir inocência, carregava um passe falso, escrito em tcheco, onde deveria preencher as cidades por onde passava, ela sabia onde escrever, porque era um espaço em branco reservado para a origem e destino, é intuitivo, não precisava saber o idioma. O problema que ela não sabia que tinha é que aquele passe falso era só para cidadãos europeus e, no dela constava o endereço da Prudente de Morais. Ela fez cara de menina perdida numa noite suja e fria de inverno. Estendeu-lhe o passe que já carregava três carimbos anteriores, o que poderia garantir alguma legitimidade. O fiscal pegou o papel devagar, olhou para ela, olhou para o papel. O fiscal pensa sobre as chiquinhas, acho eu. Um fiscal sempre pensa sobre as chiquinhas. O passaporte, o carimbo, nada disso importa mais a essa altura. E o crime? Qual é o nosso crime, morar em prudente de moraes? Eu fico me perguntando se o crime não foi cometido pelas duas câmeras silenciosas sem capacidade de armazenamento de mais nada e se as chiquinhas são culpabilizadas aqui nessa narrativa apenas por uma noção a priori dessa personagem que afinal é uma moça perdida numa noite de inverno e que tem como culpa a capacidade de produzir esse estranhamento na face que nos remete sem dúvida e sem equívoco a essa tal noite de inverno. Eu invejo essa capacidade de produzir ou conduzir o sujeito que olha/lê para um local/sensação específica… Mas vamos ao crime... O fiscal ronrona o motivo do estampido, elas não entendem russo e não querem se alongar na conversa com ele, porque ela 17



está no erro, comprou um passe que custava 500 euros para rodar a Europa inteira de um espanhol, em Amsterdã, por 50 Euros e não queria muita conversa com fiscais, mesmo. Ela supõe um suicídio, que todos os dias acontece no metrô, mas é noticiado nos alto-falantes como problemas técnicos para não dar ideia aos deprimidos de passagem. Europa pode ser foda no mau sentido. O frio, a organização extrema. Terrível que a solução do tal enigma tenha sido ronronada em russo. (seria o nosso clímax, né? Desculpe a invasão) O frio, a organização extrema. Fica a vontade... Você que tava do outro lado do trem, ouviu algo a mais sobre o caso? Eu não ouvi nem o estampido. Tudo pra mim são relatos de relatos de relatos. O que me parece é que o problema que se dá aqui é o do encontro imprevisto dentro e em volta de deslocamentos que estavam antes previstos e controlados. O problema me parece ser antes de mais nada o da falta de rolo das câmeras. O crime talvez. Não sei bem se parece justo. O problema assim seria o da alteração de uma natureza e de uma função antes previstas e supostas e de organização extrema. E do frio, sempre. Invento que a moça nunca soube do crime mesmo, foi até a Bielo-Rússia, voltou para casa na Prudente de Moraes e foi à praia no Capf Ferrat, já ouviu falar? Você tinha lugar fixo na praia? 18



Capf Ferrat? Eu não tinha nem praia... É o nome de um edifício perto do posto 10, modismos. Acho triste ela ir embora de lá assim. Estou aqui, muito sinceramente, interessado na ideia do crime. Não sei nem dizer bem por quê. Como a gente faz pra definir as legislações dele? Morro de saudades da moça no trem. Acabo sempre me identificando com o papel da câmera sem função e com dificuldades para me colocar em outro lugar que não seja o vagão-restaurante com as ideias preenchidas antes de qualquer outra coisa pelas caipirinhas de fruta do conde. A gente pode virar fumaça e voltar lá pro vagão, mas viagem tem disso, às vezes fica monótona, a gente não consegue mais ler, escrever acabou a bateria, está escuro lá fora (e frio), não vemos mais as paisagens, os outros passageiros estão dormindo, o vagão-restaurante encerrou expediente, as palavras cruzadas foram preenchidas, o jornal gratuito é em russo, a câmera tá sem rolo, como já sabemos. Estranhamente, esse momento do escuro, quando os outros dormem, mas eu sei que eles estão lá, perto de mim, sonhando com coisas diversas, e eu não consigo mais ver o lado de fora, nem os sonhos dos outros por assim dizer, e acabo ficando rodeado por coisas que eu não sei o que são, me faz muito bem. Neste caso, talvez até o jornal em russo faça bem. É como acordar sozinho no meio de um acampamento num lugar estranho enquanto os outros dormem. Parece que sou eu e que vivo a vida. Mais que todo mundo distraído ali dormindo e que a paisagem que eu não enxergo e que assim não existe. Mas eu 19



acho que tudo isso ainda é uma dificuldade nossa para escolher a natureza do nosso crime. Coisa tão séria que é isso. Sem recursos de linguagem. Como se isso fosse possível. Eu até queria conseguir, mas não chego a realizar essa coisa de não dormir, tem um remédio novo, 24/7, que faz a pessoa ficar 7 dias acordada, foi testado na Guerra do Iraque. É sério. Já deve estar sendo aplicado na Bolsa de Valores a essa altura. Yuppies 2013. (não pense que estou desvirtuando, isso tem tudo a ver com crime). Igual à galera que vai fazer doutorado em filosofia em Harvard e toma ritalina para finalizar a tese. Pode ser desse tipo o crime? Eu diria que é esse tipo de concentração que acaba impedindo a definição do que seria ele. Definição querendo dizer outra coisa, talvez encontro. Acho que o encontro com esse nosso crime demanda o máximo de desconcentração que se possa haver. Acho isso tudo uma busca, que parece fazer sentido aqui agora pra mim, por uma coisa que temos que tentar buscar num desencontro qualquer com o que seria o sentido dela mesma… tátátá,,, tentando ainda pensar que é possível falar de conteúdos e de vazios… ainda me volta na cabeça o encontro entre as duas câmeras sem função... (ai cadáver esquisito). Investigação, é o que precisamos fazer para desvendar o crime. E é o que fazemos, ironicamente. Você acha que faz diferença investigar in loco ou a distância? Eu acho que isso tem alguma relação com o método de curadoria que sua mãe utilizava na escolha das fotos que seriam 20



dispensadas da exposição. Sério. Se a gente conseguisse entender quais fotos eram descartadas talvez a gente pudesse começar a arranhar a superfície dessa coisa que a gente está chamando de nosso crime. Ou do cadáver que seja. Ainda que essas duas coisas já sejam muito diferentes e que se a gente diz que tem um cadáver tudo já muda muito de figura. Não que isso seja ruim. Qual é a nossa curadoria do que não está? A nossa antiritalina que escolhe só o que deve ser editado da tese de harvard e afunda a guerra no iraque? O método da minha mãe era estético, o que não estava bem enquadrado, bem focado, não entrava no álbum. Havia, porém, deslizes diversos e acho que neles é que residem as grandes descobertas. A foto das pernas das minhas irmãs no sofá em frente à TV, por exemplo, de cabeça para baixo. Tinha um flash estourando no vidro da varanda, não era para estar no álbum se o critério fosse seguido à risca, mas no erro é que estava a situação que me fez voltar. O que não está a gente talvez possa decidir depois, ou você tem alguma sugestão durante? Os cadáveres seriam, então, os lixos, o que ficasse de fora, podemos até ritualizar o enterro. Eu não sei bem se o que fica de fora é o que é a coisa ou se importa aquilo que faz ficar de fora. Acho bom dizer que o método da sua mãe era estético, mas a gente sabe que não é bem assim. E eu acho que o flash no vidro da varanda prova isso. O desvio no método da sua mãe torna ele rico pra gente. O que eu quero dizer eu acho é que os lixos são o próprio método, talvez. Ou os índices que deixam ele à mostra pra gente. Tenho andado muito pensando sobre como é que sempre a gente faz pra escolher o que não está ou não deveria estar. O 21



desvio. Não estou falando de um padrão de escolhas negativas. Talvez eu esteja falando de escolhas pautadas pela nostalgia, pela melancolia. A melancolia como potência de escolha que gera um encontro que é sempre nostálgico em si. Calma… São muitas coisas… Como é que a gente entende a vida por uma busca nostálgica por coisas que não são nunca elas… isso parece bem óbvio na verdade, não estou falando de método eu acho, estou falando da vida como potência nostálgica. (o fracasso como obra) Nostalgia e melancolia me parecem coisas bem diferentes. Eu estava numa aula há pouco tempo e um cara falou que todo artista é deprimido. Imediatamente reagi, a melancolia não me move. Mas relembrar e reconstruir em cima de acontecimentos do passado sim. Melancolia e nostalgia são coisas muito diferentes mesmo. Vou tentar dizer o que eu quero tentar dizer. Vamos. O que me parece é que pode haver uma outra coisa que não parece fazer sentido que seria uma potência melancólica na vida. Isso não tem nada a ver com depressão ou algo desse tipo. Melancolia, por definição, não gera movimento. E é sempre muito chata. O que me parece é que uma busca possível é subverter esse troço desse conceito e entender ela como potência pra esse tal encontro desfeito dele mesmo. Sabe? Uma potência em busca de algo que está desfeito sempre. A fumaça. O flash no vidro. A câmera que não roda e que por isso nos interessa. Você gostou da câmera desfuncionalizada, né? Desculpe 22



desconcentrar, mas tem dois caras abraçados há horas aqui do lado e um monte de gente chegando, estou achando essa nossa proposta um tanto antipática com os outros, embora esteja gostando dos fluxos encadeados aqui, não páro de pensar no macacão, de novo. Seria perfeito. Antipático é um abraço que dura horas. Um deles não parece muito confortável, colocando a bacia para trás. Bem, deixa para lá. Quer desistir do crime? Eu entendo se você quiser... Hahaha, não é tão grave assim. É só mais um entre os fluxos de pensamentos, acho que devemos ir até o fim e tentar desvendá-lo por mais árdua tarefa que possa ser, podemos torná-la prazerosa, entendendo que haverá momentos mais e outros menos. É a coisa do final do hamlet… ou do final do wittgenstein… a coisa do silêncio… acho uma dureza a sensação de nunca dizer nada… queria pelo menos uma vez na vida ir dormir com a sensação de que eu falei alguma coisa que faça algum sentido… por isso isso tudo… pra encontrar essa porra dessa fumaça… já sabendo que não vai estar… que nunca vai estar… engraçado como eu me pego agora, no meio desse caos em volta da gente, realmente interessado nessa conversa… estranho isso pra mim… é muito raro, na verdade, eu me interessar de fato por alguma conversa... Sabe que eu percebi isso em você? Que é difícil te entusiasmar. Pela insistência, conseguimos criar uma bolha inacreditável, algo a ser transportado para vida, para mim pelo menos. O que você achou do convite que eu te fiz depois daquele nosso café? 23



Eu pensei exatamente isso, que poderia ser uma boa conversa. O que me parece difícil em geral. Não que eu ache que ninguém diz nada de interessante, pelo contrário. Em geral, eu me pego muito preguiçoso pra tentar dizer qualquer coisa que me mova de fato. Sinto que eu estou sempre rodeando e rodeado pelos mesmos temas todo o tempo e que digo as mesmas coisas por já saber o que elas vão querer dizer e por achar mais ou menos justo o que elas vão querer dizer… Acho que a vantagem disso que a gente está fazendo aqui tem alguma coisa que ver com um certo esgotamento, considerando que já estamos aqui há mais de 3 horas... Deve ter a ver, me pergunto se não replicamos o que as pessoas já não fazem, expondo a crueldade da vida digital. Todo mundo olhando para baixo, pro seu umbigo, desconectado da realidade ou com menos conexão. Como se isso fosse mais uma vez um sintoma dessa coisa toda… Eu acho que a tentativa de um encontro passa por um outro canal, na verdade. É como se a gente entendesse que é impossível se encontrar com todos ao mesmo tempo. Acho que isso se distancia do umbigo. E, em última análise, eu estou pensando que estamos a escrever um livro. E que isso pode ser lido. Ainda que seja por nós mesmos, num outro momento. O que já é bastante. Descobri em nós os assassinos. Desvendei? Será que vamos conseguir identificar as frases de quem é quem, não importa. Pensei sobre isso várias vezes. Sobre qual frase é de quem... 24



Repetir as mesmas coisas sempre é uma constante para todos, não se aflinja. Por isso acho mais importante o jogo do corpo no mundo e o exercício de desmoralizar, de falar o que não deve, como forma de descobrir outros dizeres próprios nossos. Falar o que não deve. Sim. Acho que pode ser isso sim. Acho bom. Essa história tem a ver com aquela ideia de que só se pode pensar se você gagueja. Mas é melhor ainda pensar que você só pensa quando fala o que não deve. Quando faz o que não deve. Eu ia achar lindo pensar em nós como os assassinos. Ia ficar bem orgulhoso, a verdade. Como não dizer isso? Quero dizer, como dizer o que não se deve disso tudo? Cuidado com a resposta,... Pensa que ela deveria sempre ser outra... Estou gostando de ser antipática, assassina, de não precisar agradar ninguém, mas exerço muito mal esse papel, confesso, é preciso treinar mais. Você teria alguma pergunta a me fazer que não teria coragem caso eu não tivesse proposto isso? Eu fazia muito essa brincadeira de pedir a alguém que me dissesse uma coisa que não poderia dizer. E sempre que a pessoa se preparava para dizer eu dizia que aquilo não servia e que tinha de ser algo que ela não pudesse dizer… acho lindo isso como brincadeira de criança… sabe? O que eu perguntaria se pudesse é aquela coisa que passa pela sua cabeça no instante que você acorda por exemplo… ela acabou de passar pela sua cabeça… você se vira, percebe alguém ao seu lado que ainda dorme e entende que nunca poderia dizer aquilo que passou pela sua cabeça para aquele outro sujeito que dorme… que aquele pensamento específico vai ter que se contentar para 25



sempre em ser só seu, até que ele desapareça. Sim? A pergunta? Isso é uma pergunta a ser respondida? Correndo-se o risco de ao dizê-la não ser nunca o que não pode ser dito? A ideia é exatamente essa. Então vou tentar te dizer o que eu nunca diria e o que eu nunca responderia passará a ser outra coisa. Hoje de manhã eu pensei que deveria ter tomado menos cervejas ontem à noite, foi a primeira coisa banal que me passou pela cabeça quando tive dificuldade de levantar. E a segunda tenho vergonha de dizer, mesmo. Achei bem pouco. A regra é clara. Só vale se ela não pudesse ser contada para o sujeito que ainda dorme ao lado. Ainda que ele seja um sujeito imaginário. Isso importa menos. Não sei se devo, mas para qu ser pudica. Sonhei que um sujeito falava para mim que eu tinha uma buceta vintage. (porque eu não estava depilada no sonho e porque não estou na vida real). Porque gostaria de ser da época em que pentelho se usava. E o que eu não falaria para o cara imaginário que dorme ao meu lado é que achei bem estranha a maneira como gozamos ontem à noite. Valeu? Agora a gente começa a caminhar. Acho justo. Falar o que não deve. Abram as portas das suas casas. Deixem os ladrões entrarem. Eles vão levar tudo que puderem. Ai esse barulho tá quase chegando numa frequencia que dá vertigem. Deve ter coisa que a gente não está mais com capacidade de ouvir. De algum jeito estranho eu até gosto do barulho. Tenho muita dificuldade em geral com ruidos. De todos os tipos. Inclusive o 26



da minha própria respiração. Este agora é tão absurdo que até quase faz algum sentido. Não? Terrível? Melhor com ele do que sem, aliena todo o resto e de algum jeito torto nos faz voltar mais à nossa bolha. Acho que sim. Acho que sim. Sinto muita dor nas costas, por outro lado. Não sei mais bem onde estamos… Eu achei que a minha esposa grávida fosse passar por aqui em algum momento. Acho que choveu do lado de fora. Deve ser isso. Queria ver ela grávida. Como tá o diálogo, o cuidado, sei lá, é tudo igual? A gente tende a imaginar que fica tudo muito diferente. Tá um inferno! Mentira. Não sempre. Noutro dia, ela me disse que se não estivesse grávida de mim, estaria se separando. Aliás, tem chá de bebê no dia 27. Você está convidada! Oba. Tem sido um programa frequente. rs. Mas sobre a separação, prefira acreditar que são os hormônios. Não são. Ela tinha razão. A gente teve todo tipo de absurdos acontecendo até agora por conta dos hormonios. Dessa vez, ela tinha muita razão pra dizer isso. O que é terrível. Mas pensando bem, que bom que ela está grávida, não é mesmo? Eu sabia que se escrevesse isso ela iria aparecer… Tinha certeza absoluta… Oi, amor... 27



Maravilho esse sinc, sync. Parece que tem um monte de gente lendo o que a gente tá escrevendo. E a gente pensando que não tinha nenhum leitor. Jura? E agora? A gente começa a falar coisas sérias? Coisas que tentem fazer algum sentido? Ou não? Se a gente voltar para janela do trem? Procurar o que ficou por lá, acha muito longe? Não, adoro o trem. De algum jeito estranho, acho que eu nunca saí de lá... Amanheceu e o vagão-restaurante abriu de novo, pediram um capuccino, seria bom se tivesse cappuccino aqui. E pegaram o jornal em russo para ler. Foram para a página do horóscopo e pediram para um passageiro da mesa ao lado traduzir alguns signos, uma maneira de socializar. E eu que pensei que você ia dizer que elas tinham ido pra página dos obituários… Afinal são as duas únicas partes que valem a pena num jornal russo… Aliás, quem são elas? A título de esclarecimento, ainda que você deteste… Em algum momento da história, quando elas esperavam o fiscal das passagens chegar, viraram elas, uma que colocou a câmera na estação sobre os trilhos, voltada para o céu, para esperar o trem passar e outra que fez um furo no chão do trem e acoplou uma câmera lá. Eu pensei que elas iam se apaixonar uma pela outra, mas quando vi, você disse que a paixão era entre uma e a câmera. A que morava na Prudente de Morais era a de 28



chiquinha. A outra conseguiu descolar um endereço europeu para colocar no passe. São essas as duas, a título de esclarecimento. Todo mundo pode se apaixonar! Isso nunca deve ser um problema em narrativa nenhuma. Temos dois casais possíveis e um único crime! Adorei! Na falta de um macacão zentai, óculos espelhados serviriam. Eu tenho um par… Se soubesse, teria trazido… Talvez estejam na bolsa da nanda… Acho bom pensar o nosso tradutor de russo… a gente pode voltar ele um pouco no tempo para ouvir o ronronar do fiscal que revelava o nosso crime… não? Lá vou eu… Você está obcecado por descobrir esse crime, eu já desvendei, somos nós os assassinos, antipáticos, antirelacionais. Podemos entrar a fundo na onda do tradutor russo ou ir direto para Berlim, onde o trem pára. Elas lêem o jornal russo sozinhas primeiro. Intuitivamente tentando descobrir aquela junção de letras e símbolos desconhecidos a partir do modelo de como se organiza um jornal. Sim. Elas tentam decifrar o jornal por analogia formal e nada mais. Assim, acabam inventando acontecimentos para o signo de virgem que pertenciam ao de leão por um erro simples de contagem. O que muda radicalmente o curso da vida de uma delas. Ela que só consegue começar o dia e sair da cama depois de conferir o que diz o seu horóscopo. Passei por esse problema durante vinte anos, todo o tempo que 29



morei em Ipanema. Tinha certeza de que era libra. Até que resolvi ir numa astróloga que disse que pelo ano, pela hora do nascimento, eu era virgem, tive que recompor minha personalidade. Eu tive um problema similar, achando que meu ascendente era leão. Minha mãe mentiu a vida toda a hora do meu nascimento. Num processo quase psicótico de insistir que eu e meu irmão tínhamos nascido na mesma hora, com o mesmo peso, no mesmo dia, com 6 anos de diferença. Eu só descobri que não era assim no ano retrasado, quando finalmente consegui ter acesso à minha certidão de nascimento. Descobri sem querer algumas coisas da sua vida. Sem procurar, com todas essas ferramentas de busca ao nosso alcance. Estava conversando com meu orientador, ele me disse que era amigo do seu irmão, Aurélio, né? Que estudou na UFF. Olha só. Sim. Quem é seu orientador? Tadeu, conhece? Ele disse que te conhecia de pequeno, achei graça. Pequeno não, jovem… Talvez isso… Acho que eu vou precisar roubar seu carregador em algum momento…. tenho mais 50 minutos de bateria… sofro muito com isso. Pode pegar, quer fazer uma pausa, falar com a nanda? Será? Eu fumaria um cigarro. Estou com medo de falar com você fora daqui. Da bolha! Eu entendo se você me ignorar. hahahaha. Adorei. Passa o carregador. Até que horas a gente vai? 20h30 daí a gente imprime, o que acha? Acho bom. 30



Time takes a cigarete… como se escreve cigarette?Parece melhor com dois tês. Voltei. Temos 1 hora. Elas descem do trem. Em Berlim. Ainda ludibriadas pelo equívoco com o horóscopo russo. Hauptbanhof. A cidade do lado de fora. Invalidenstrasse. Uau, o que tem mesmo na Invalidenstrasse? Toda cidade tem uma rua dos Inválidos. Algumas tem o largo dos inválidos. O que é mais grave. A cidade está toda em obras. Tudo aberto por baixo do asfalto. Os operários que trabalham. Tratores alemães. Homens com roupas cor de laranja. Macacões cor de laranja. Macacões. Serviriam, era só acoplar uma máscara black bloc que fariam as vezes de zen tai. Aliás, estou de macacão, era só ter um black bloc aqui para me dressar melhor no rosto, será que há algum black bloc entre nós? Pensei em me meter nisso, tenho disposição. Estou pensando ainda. Berlim está em obras desde 89. Eu gostava do Parlamento dourado, que era do lado oriental, ficava ali ao lado da Berliner Dom, perto de Alexanderplatz. Demoliram alegando cupins. OS políticos alemães podem ser assim também. Saltaram na Invalidenstrasse e viram uns caras carecas com casaco verde musgo, ficaram apreensivas, não, continuaram andando e viram um anjo do Wim Wenders que elas pensam que são todos os malucos que andam a falar sozinhos nos metrôs. E não são poucos. Anjos protetores falando com seus amigos invisíveis. Será que são escritores? (acabou de chegar meu vizinho de Berlim, olha que louco!!) É dia ou noite em Berlim? Respeitamos o fuso? Quem é ele? Vizinho de porta? Elas não ficam apreensivas. Elas não têm 31



medo de nada. Elas têm os anjos do Wim Wenders e seu horóscopo já lido. Seria triste você virar Black bloc agora. Eu ficaria aqui sozinho. Mas acho justo, de qualquer maneira. Acho sempre justo e te parece cair bem: macacão e black bloc. Por dois motivos explanei esse meu desejo, um deles era para me aproximar mais das nossas personagens da Invalidenstrasse, que viajam de passe falso porque fazem parte de uma organização internacional de resistência e foram aprender umas táticas com os alemães, que são bom de guerra - que meu vizinho não me leia, mas é verdade. Pra mim, é muito importante o momento que elas se deparam com o muro. Eu preciso desse muro como fim. Ainda que seja a parte dele que já não está mais lá. Elas caminham sempre em direção ao muro. O objetivo da organização é enviar mulheres de chiquinha ao encontro do muro como processo de preparação para uma outra guerra qualquer que não sabemos mais muito bem qual é. O troço delas é esse, o de não saber mais muito bem que troço de guerra é esse. E assim, pra mim, as coisas parecem fazer algum círculo qualquer em torno desse buraco que levantamos desde o começo. Uma espécie de clareira aberta numa mata suja, da rua, um buraco, uma ponte pra algum canto. O muro que não está mais lá. Elas caminham. Quando elas chegam ao muro que não está mais lá, se perdem, uma vai prum canto, outra pro outro da cidade e acordam anos depois, hahaha Eu achava mesmo que elas poderiam se perder uma da outra. Tinha mesmo medo que isso pudesse acontecer. Acho sempre triste isso de ficar sozinho. Mas é assim que é. É triste que o 32



muro que não está desfaça a possibilidade do apaixonamento das duas. Eu acho essa cena da despedida das duas muito justa aí. E muito triste, ao mesmo tempo. Elas podiam conscientemente se despedir e se abraçar até não mais aguentar, como faz o casal aqui ao lado. Você percebeu que o casal anterior se pegou? Esse negócio de arte relacional pode ser proveitoso, às vezes. Eu achava que a ideia era sempre essa. Se não é, não vejo razão. Arte para pegar gente. Acho rico, válido, tudo é pretexto para habitar outros espaços. Ainda que sejam espaços vintage. Espaços de memória. Nunca mais vou conseguir falar vintage impunemente. Mas foi em sonho, técnica surrealista. Nunca mais ninguém vai conseguir falar vintage impunemente. Que bom. Essa coisa vintage é muito desgastante. O muro. O que pensam as duas na despedida? Elas choram? Alguém chora no meio disso tudo? Com as obras, as máscaras, os macacões, os casacos cor de musgo, e as separações nas cidades cheias dessas coisas que já não estão mais lá? Não consigo pensar o que elas pensam na despedida, porque não as conheço muito bem, sei que são passageiras, que usam maria-chiquinha para fingir inocência, que carregam passe falso, que são suspeitas de fazerem parte de uma organização internacional de black blocs (elenco aqui as características como forma de me aproximar delas melhor), que gostam de tentar ler numa língua que desconhecem, que acabaram de passar na Invalidenstraße e estão na marca do muro, perto de Tiergarten, que é uma área turística da cidade. Dizem que no verão a 33



galera vai para esse parque, menos explanado do que o Mauer Park. Ou seja, estão perto de umas moitas. É a última vez que vão se ver em muito tempo. Um abraço longo. Moitas alemães. Sei que meus braços são pedaços de uma manta… quando eu te abraço… mas eu não te quero santa… sei que meus braços são pedaços de uma moita… Você quer dizer que ainda existe a possibilidade de um reencontro em algum outro momento da vida, com as duas já pertencendo a outras organizações black blocs do mundo afora…? Existe essa possibilidade no mundo? Em algum canto da Ásia Menor, por exemplo? Tudo está interligado. Um dia, a de maria-chiquinha estava andando de bicicleta tentando se esquivar dos trilhos do tram, e ouviu um grito do outro lado da rua, um grito com erre com som de r, de um erre só entre vogais, um som que os alemães não sabem fazer. E quem estava do outro lado da calçada? Era agosto. Acho lindo. Era agosto. Não era setembro. O signo certo dessa vez.. Começo a pensar sobre qual vai ser a nossa última frase, em 26 minutos. Já sinto falta dessas ruas todas. É duro. Era agosto, o nome dela era agosto. Agosto era o auge do verão, dispersivo. E se a gente tentasse recompor essa história. A gente comeca pensando que o título viria no final (to super curiosa para saber o que está acontecendo no palco, tá um som bom). Acho isso do título sempre a parte mais difícil. Acho terrível depois disso tudo ter que dar um nome. Ao mesmo tempo, acho muito injusto fugir disso. Estou muito curioso com a chuva do lado de fora. Ainda mais considerando que estamos no auge do verão aqui dentro. 34



Hoje é mesmo um dia perfeito para escrever. Sobre o título, o que sempre faço é pegar uma frase de algum autor que estou lendo, é uma era de relações, tudo pode se encaixar. Ontem fiquei brincando de encaixar em diversas situações possíveis uma mesma expressão, sintonia das desconsiderações, algo assim, não fica parecendo título de exposição de arte contemporânea? O acaso controlado, a feira das incoerências, qualquer um desses ficaria perfeito aqui. Tudo meio cabeça, né? Acho duro. Gosto, mas acho duro. Vamos combinar uma coisa: a última frase vira o título. E ela acontece quando acontece o último minuto… O que te parece? Se não, podemos ficar com a coisa da sintonia... Eu escrevi a coisa da sintonia mais para ironizar essa ideia de título… Esse método que você propõe é meio roleta russa, mas tá valendo. Eu gosto dos seus títulos. Como era aquele da peça? Não tem nem nome. Maravilhoso. Esse é o que eu mais detesto!! Eu achei que o tema russo tava em alta. Por isso a roleta. Roleta russa, que te parece? hahaha Isso. Não tem nem nome é na linha dos contemporâneos cabeçudos. É bem isso. Depois eu passei a usar o método de usar frases roubadas. Tipo: meu avesso é mais visível que um poste... Faz meu tipo. Você viu o título que eu dei para este projeto? É do Blanchot, já nem lembro a frase, uso assim na cara de pau mesmo, sem créditos. Qual era a frase? Peraí, vou no hyperlink. Cadê? 35



15 minutos. Não escrevemos segundo o que somos; somos segundo o que escrevemos. Será? Não, é péssimo, é título de projeto. Gostei dessa: Não, é péssimo, é título de projeto. Gosto também da ideia de sortear uma frase, mas ficamos com este como plano a. Sortear uma frase deste texto para o título. Como fazer o sorteio? Vou tentar maçã f. Ouvindo aqui agora: vou acabar ficando nu pra chamar sua atenção… acho bom... Olha o que saiu: escolhe-se só a estampa para sair anônimo. Onde vc ouviu isso? Erasmo Carlos. Achei bom o sorteio. escolhe-se só a estampa para sair anônimo Acho justo. De volta à nossa fumaça, afinal.!. E de alguma maneira é uma homenagem ao nosso personagem central, macacão zentai. Esse é o seu personagem central. O meu é o sujeito fumaça. Talvez eles sejam a mesma pessoa. O seu é o crime. Vamos escrever o prefácio? O crime é o storyline! o plot,. O prefacio. Será? Acho legal, como uma forma de convidar para entrar na história. Este texto foi escrito durante seis horas etc e tal. 36



Achei bom esse prefácio seu. É só isso? Acho que não precisa de muito mais que isso. Durante uma coisa dessas de arte relacional… e a gente estava tentando só comer alguém, afinal… não? Oi? Oi. Você vem sempre aqui? Costumava vir mais antigamente. Quando você dançava ballet? Era pior do que isso, era jazz. Tem uma frase do Louis Armstrong que é assim: if you don't know what it is, than, it's jazz... Pode ser. Temos 01 público! Vamos colocar o prefácio no lugar e o título também? Jamais! Não era pra trabalhar com o fetiche do objeto livro? Era. É. Mas esse é assim. Prefácio vem no fim. E o título, pode ser no lugar? (4 minutos) É duro, mas eu topo fazer essa abertura pro formato. De todo o jeito, só se entende no fim. Na verdade, quem é que entende. Enfim. (gostei de terminar com uma rima). [é isso, acabou? Deixamos as duas sozinhas na moita?]

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