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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE TECNOLOGIA DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO
SOB O CONCRETO, AS DUNAS ou Como o junkspace invadiu a cidade (Natal do séc. XXI) Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no semestre de 2015.1, como requisito para a obtenção do grau de Arquiteta e Urbanista. Graduanda: Ana Luíza Silva Freire Orientador: Prof. Dr. George Alexandre Ferreira Dantas
Natal, RN Junho de 2015
ANA LUÍZA SILVA FREIRE
Sob o concreto, as dunas, ou Como o junkspace invadiu a cidade (Natal do séc. XXI).
Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no semestre de 2015.1, como requisito para a obtenção do grau de Arquiteta e Urbanista.
Aprovado em: ____ de junho de 2015. BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________ Professor Dr. George Alexandre Ferreira Dantas – UFRN (Orientador)
____________________________________________________ Professora Dr. Giovana Paiva de Oliveira (Examinador interno)
____________________________________________________ Vinicius Galindo (Examinador externo) Natal / RN
Natal/RN
O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido, e vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Gaston Bachelard, A poética do espaço.
Agradecimentos O curso de Arquitetura e Urbanismo não foi, nem de longe, apenas um primeiro momento de minha formação profissional. Ao mesmo tempo em que apreendi ferramentas técnicas da profissão, pude notar que meu olhar perante à cidade e à diversas relações existentes nela foi sendo construído de maneira questionadora, contribuindo, acredito, para uma formação mais global e que considero ainda mais importante que a de arquiteto: a humanista. O contato com pessoas que já possuíam esse olhar, portanto, foi tão significativo quanto as aulas de campo ou as horas passadas tentando cumprir as atividades propostas. Agradeço enfaticamente, então, aos professores – que procuram, cada um ao seu modo, despertar nossa vontade de buscar conhecimento, seja em sala de aula ou em encontros informais e eventos educativos no Galinheiro. Em especial, agradeço ao orientador deste trabalho, George Dantas, por acreditar no estudo, me incentivar a produzi-lo, e pela determinação em esclarecer os caminhos possíveis para o seu desenvolvimento. Agradeço também ao professor José Clewton e a sua disponibilidade de compartilhar informações, materiais e incentivo, tanto em sala de aula quanto em conversas pelos corredores. À turma que acompanhei durante esses seis anos, desde o segundo semestre de 2009, muito obrigada. Acredito que a experiência na UFRN não teria sido tão positiva se não fosse com a companhia de vocês. Principalmente, aos colegas mais próximos, parceiros de madrugadas estudando: Meline Pitta, Fernando Cortez, Maria Helóisa Alves, Lenilson Jonas, Rui Alexandre. Obrigada! À todos os amigos que encontrei nos corredores e átrios do Galinheiro, entre a agonia de PPUR e a descontração de encontros para assistir filmes, tomar café (ao professor Eugênio e sua receita de biscoito de batata doce, e à Seu Mário, sempre bem humorado), ou se divertir na extroversão das macaxeiradas. À equipe do LabCon, onde fiquei mais de um ano como bolsista, em especial à Aldomar Pedrini e Clara Ovídio, os quais mesmo dentre preocupações de trabalho de uma rede nacional, sempre estiveram disponíveis a inspirar e apoiar os bolsistas. Aos amigos da vida, que colaboram para o meu crescimento pessoal, e onde encontro interlocução para as minhas dúvidas - até mesmo sobre arquitetura - e que em nenhum
momento (mesmo quando existem distâncias) deixam de me incentivar: Juliana Fernandes, Vinícius Cortez, Naiana dos Anjos, Heloisa Solino, Mirela Coelho, Marina Régis. À tantas outras pessoas que hoje não estão mais presentes, sejam familiares, amigos e alguns que nem sei como rotular, mas que foram de inegável importância e que contruibuíram em algum momento para a minha formação - obrigada. À profissionais incríveis que conheci durante três anos em Curitiba e na Faculdade de Artes do Paraná (2006-2009) – foi lá que entrei em contato com estudos da sociologia, antropologia, e da arte - assuntos que me instigam até hoje. À minha família, tão grande e também tão resumida: à minha mãe e irmã, obrigada pelo apoio, pela paciência, e pela estrutura de vida diária que existe graças à vocês.
Natal, junho de 2015.
FREIRE, Ana Luíza Silva. Sob o concreto, as dunas ou Como o junkspace invadiu a cidade (Natal do séc. XXI). Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Centro de Tecnologia – Curso de Arquitetura e Urbanismo. Natal/RN: 2015.
Resumo O trabalho em questão constitui-se de uma análise crítica, apoiada em articulações entre texto e imagens reais e fotomontagens, de transformações espaciais ocorridas em Natal a partir do século XXI. O caráter ensaístico do trabalho procura elucidar reflexões sobre a ordem urbana estabelecida, e fundamenta-se conceitualmente no texto Junkspace, de autoria do arquiteto holândes Rem Koolhaas. Metodologicamente, realizou-se um diagnóstico não sistematizado das regiões Sul e Leste da cidade, de maneira a relacionar a produção espacial contemporânea encontrada nas áreas ao conceito que alicerça este trabalho. Construiu-se, também, uma argumentação a partir da revisão bibliográfica necessária à compreensão do tema central. O debate estabelecido gerou uma leitura da cidade que relaciona a expressão da arquitetura aqui encontrada com mecanismos de perpetuação de uma sociedade de consumidores. A partir de diversos desdobramentos das reflexões suscitadas pela aplicação do Junkspace à realidade urbana Natalense, estabeleceu-se uma crítica à questões sociais atuais. Ademais, utilizando a técnica da fotomontagem, desenhou-se cenários fictícios que procuram fortalecer conceitos debatidos ao longo do trabalho, suscitando outras reflexões sobre a cidade atual, os futuros possíveis, e a atuação dos planejadores e produtores espaciais urbanos. Palavras-chave: Junkspace; Arquitetura contemporânea; Rem Koolhaas; Internacional Situacionista.
Abstract This assignment consists of a critical analysis, based on connections between text, real pictures and photomontages, describing spatial transformations in Natal from the twentyfirst century. The essayistic character of the work seeks to elucidate reflections on the established urban order, and is based conceptually on “Junkspace”, a text written by the Dutch architect Rem Koolhaas. Methodologically, it was based on a diagnosis not systematized of the South and East areas of the studied city, relating the contemporary spatial production elements found the previously mentioned areas with the concept that underpins this work. It built up also an argument from the literature review needed to understand the central theme. Thus, a debate was generated, establishing an expression of the architecture found here, showing the perpetuating mechanisms of a society of consumers. From various reflections raised by the implementation of Junkspace Natal’s urban reality, it was settled a critique of current social issues. In addition, using the technique of photomontage, we drew up fictitious scenarios that seek to strengthen concepts discussed throughout the work, prompting further reflection on the current city, possible futures, and the role of planners and urban spatial producers in producing urbanity in a sphere dominated by the consumerism issue. Keywords: Junkspace; International.
Contemporary
architecture;
Rem
Koolhaas;
Situationist
Lista de Figuras FIGURA 1: MAPA ILUSTRATIVO COM FOCOS DE OBSERVAÇÃO EM DESTAQUE - ÁREAS PERTENCENTES ÀS REGIÕES ADMINISTRATIVAS SUL E LESTE DE NATAL/RN ............................................................................................. 14
FIGURA 2: MAPA ILUSTRATIVO SOBRE A PRODUÇÃO ESPACIAL RECENTE DE NATAL, COM ALGUNS EXEMPLOS DESSA PRODUÇÃO OBSERVADOS NAS ÁREAS DO UNIVERSO DE ESTUDO DESTE TRABALHO. ........................................ 22
FIGURA 3: MAPA PSICOGEOGRÁFICO DE PARIS (1957)......................................................................................... 25 FIGURA 4: INSTANT CITY VISITA BOURNEMOUTH (1968). .................................................................................... 27 FIGURA 5: THE INVISIBLE UNIVERSITY, POR DAVID GREENE (1970). ................................................................... 29 FIGURA 6: THE INVISIBLE UNIVERSITY, IMAGEM POR SALLY HOGDON (1970). .................................................... 29 FIGURA 7: "O MONUMENTO CONTÍNUO" SOBRE A CIDADE DE NOVA YORK. .......................................................... 31 FIGURA 8: "O MONUMENTO CONTÍNUO". ............................................................................................................ 32 FIGURA 9: INTERVENÇÃO DO GRUPO PORO, "OUTROS SETORES", REALIZADA EM BRASÍLIA (2012)........................ 35 FIGURA 10: INTERVENÇÃO URBANA COM FIOS, REALIZADA EM JOÃO PESSOA - PB (2015). ................................... 35 FIGURA 11: MONUMENTO À CATRACA INVISÍVEL, DO COLETIVO CONTRA-FILÉ (2004). ....................................... 36 FIGURA 13: RELOCALIZAÇÃO DA PONTE D. MARIA PIA (2013). ........................................................................... 40 FIGURA 14: EUROPA NUMA ROTUNDA (2001). .................................................................................................... 41 FIGURA 15: IMAGENS DE "GUIDE DO SHOPPING", TASCHEN, 2001. ...................................................................... 44 FIGURA 16: TIRINHA DA SÉRIE “A LONGA NOITE DE ELBERT”. .............................................................................. 47 FIGURA 17: FACHADA DO SHOPPING MIDWAY MALL ........................................................................................... 48 FIGURA 18: TIRINHA DA SÉRIE "PALESTRA SOBRE OS NOVOS TEMPOS". ................................................................. 53 FIGURA 19: RELOCALIZAÇÃO DO ARENA DAS DUNAS ........................................................................................... 90 FIGURA 20: RELOCALIZAÇÃO DE DUNAS 01 ......................................................................................................... 91 FIGURA 21: RELOCALIZAÇÃO DE DUNAS 02 ......................................................................................................... 92 FIGURA 22: RELOCALIZAÇÃO DE DUNAS 03 ......................................................................................................... 92 FIGURA 23: SUB JUNKSPACE NOVA PARNAMIRIM ............................................................................................... 94 FIGURA 24: SUB JUNKSPACE - AV. SENADOR SALGADO FILHO 1.1 ....................................................................... 95 FIGURA 25: SUB JUNKSPACE - AV. SENADOR SALGADO FILHO 1.2 ....................................................................... 95 FIGURA 26: SUB JUNKSPACE - AV. SENADOR SALGADO FILHO 2.1 ....................................................................... 96 FIGURA 27: SUB JUNKSPACE - AV. SENADOR SALGADO FILHO 2.2 ....................................................................... 96 FIGURA 28: SUB JUNKSPACE - ARREDORES DA AV. ROMUALDO GALVÃO .............................................................. 97 FIGURA 29: SUB JUNKSPACE - NATAL SHOPPING ................................................................................................. 98 FIGURA 30: SUB JUNKSPACE - MURO DO NATAL SHOPPING ................................................................................. 98
O intervalo das páginas 62 até 82 constitui-se de uma catalogação de imagens importantes à argumentação do trabalho, apresentadas em um formato que não contém título ou fonte. Entretanto, registra-se aqui que todas as imagens contidas no intervalo citado são ou de autoria da autora ou retiradas a partir de imagens de satélite disponibilizadas pelo software Google Earth.
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Sumário INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 01 – ARQUITETURA ALÉM DA ARQUITETURA ............................................................................ 17 1.1 DO ESPAÇO PÚBLICO AO ESPAÇO DE CONSUMO .................................................................................. 18 1.2 BREVE PANORAMA SOBRE A PRODUÇÃO ESPACIAL RECENTE DE NATAL ................................................ 20 1.3 ESTUDOS DE REFERÊNCIA .................................................................................................................. 24 1.3.1 SÉCULO XX ..................................................................................................................................................................... 24 INTERNACIONAL SITUACIONISTA ................................................................................................................................. 24 ARCHIGRAM .......................................................................................................................................................................... 27 SUPERSTUDIO ...................................................................................................................................................................... 30
1.3.2 ARQUITETURA, ARTE E ATIVISMO URBANOS NA ATUALIDADE .............................................. 34 PEDRO BANDEIRA ............................................................................................................................................ 39 CAPÍTULO 02 – JUNKSPACE TROPICAL ............................................................................................................. 43 2.1 JUNKSPACE: UMA DISCUSSÃO SOBRE O CONCEITO .............................................................................. 44 2.2 JUNKSPACE EM NATAL ...................................................................................................................... 51 A) A INVASÃO DO JUNKSPACE ...................................................................................................................................... 51 B) A PRODUÇÃO DA PAISAGEM “ESPAÇO-LIXO” ...................................................................................................... 54 C) POSSÍVEIS ARTICULAÇÕES ENTRE IMAGEM E TEXTO ...................................................................................... 59
CAPÍTULO 03 – ESTRATÉGIAS PARA O JUNKSPACE ..................................................................................... 85 3.1 TÁTICAS DE IMAGINAÇÃO .................................................................................................................. 86 3.1.1 SUPER JUNKSPACE .............................................................................................................................................. 87 3.1.2 PAISAGENS DESLOCADAS ................................................................................................................................... 89 3.1.3 SUB JUNKSPACE .................................................................................................................................................... 93
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................................................... 100 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................... 103
i nt r oduรง รฃ o
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INTRODUÇÃO Na última década, a urbanização de Natal vem passando por transformações importantes que, além de alterar a paisagem urbana, também modificam as maneiras de se locomover, entreter, consumir, habitar e vivenciar a cidade. Os recentes empreendimentos públicos e privados da esfera da construção civil acarretaram mudanças no uso e ocupação do território da cidade, o que veio acompanhado, geralmente, por uma mínima regulação e estruturação urbana por parte das instâncias político-administrativas. Assim, a produção espacial urbana que acontece na capital do Rio Grande do Norte a partir dos anos 2000, em um contexto de estabelecimento de novas políticas nacionais de distribuição de renda e medidas de combate a fome e a pobreza - fatores que fomentaram uma nova dinâmica de crescimento nas cidades brasileiras. Ademais, outras medidas para o fortalecimento do mercado interno em um ambiente de crise econômica global envolveram grandes investimentos na indústria da construção civil e no estabelecimento de moradia social – como o programa Minha Casa Minha Vida, a partir de 2009. Dessa maneira, são instituídas mudanças substanciais em Natal e região metropolitana, com um boom imobiliário que trouxe, de um lado, o estabelecimento de muitos condomínios fechados para as diversas classes sociais, e de outro, a política nacional de implantação de moradia social. O desempenho das cidades, dos centros dinâmicos nos anos recentes, assim como a incorporação de novas polarizações e a elevação do grau da urbanização brasileira, traduz a tendência de descompressão da concentração da renda nacional, decorrente do novo padrão de crescimento brasileiro, da primeira década do século XXI, focado na produção e consumo de massa, cujas medidas de combate à fome e à pobreza constituíram um círculo virtuoso de fortalecimento (CLEMENTINO; FERREIRA, 2015, p. 21).
Além disso, as obras urbanas para sediar a Copa de Mundo de futebol em 2014 abriram espaços subterrâneos, cobriram paisagens naturais e expandiram os limites territoriais da capital às suas cidades periféricas, onde cada vez mais uma maior parcela da população vai estabelecer residência. Estabeleceu-se, então, uma produção espacial que acarreta em mudanças fundamentais da cidade, “em decorrência das transformações e ajustes estruturais experimentados na política, na economia nacional e no mercado de trabalho na transição do século XX” (PESSOA; DIAS, 2015, p.264).
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Diante dessas considerações, é válido refletir sobre as relações de desenvolvimento dessa produção espacial recente a partir de uma lógica do capital, afinal os investimentos por empreiteiras, investidores particulares e construtoras são numerosos e, financiados pelo poder público, promovem um impacto importante na esfera de vida cívica. A pertinência dessa discussão diz respeito tanto aos interesses engendrados pelas forças que comandam a recente produção espacial de Natal quanto ao espaço resultante dessa construção, sendo esse o local onde a vida social acontece. Desta forma, entende-se que são necessários esforços de esclarecimento acerca de conceitos que permitam uma leitura coerente sobre a produção espacial contemporânea de cidades integrantes de uma lógica pós-moderna e ocidental de desenvolvimento urbano. Diante da realidade urbana de Natal, infere-se que a cidade participa dessa dinâmica, e que uma leitura generalista de seus processos recentes de transformação espacial é oportuna para fins de análise crítica. Portanto, interessa, para este trabalho, estabelecer um debate reflexivo sobre novas vivências e espaços que são expressão também das novas relações oriundas da lógica supracitada, e não propor soluções à quaisquer questões urbanas e do campo da arquitetura. Entende-se que esse tipo de perspectiva pode embasar o desenvolvimento de diversos outros trabalhos na área, e, por exemplo, servir como aporte teórico para desdobramentos de propostas de intervenção urbana que busquem uma vivência criativa, não tolhida, em prol de espaços verdadeiramente livres nas cidades. Dentre as discussões existentes nesse campo de estudo, o conceito de Junkspace, formulado pelo arquiteto holandês Rem Koolhaas, foi o norteador principal para a elaboração da análise de um recorte espacial da Natal atual. Pressupõe-se que essa leitura da cidade a partir da definição de Koolhaas pode ser significativa, pois provoca a arquitetura e a produção espacial próprias do nosso tempo histórico - a qual ocorre de maneira globalizada e que responde fortemente a razões de ordem econômica. O termo junkspace ou “espaço-lixo” permite convergir diferentes expressões da arquitetura e do urbanismo de forma coerente, uma vez que não se atém a formas físicas e estilos da arquitetura. Destarte, depreende-se que Natal possui elementos que permitem a leitura do espaço de acordo com as descrições apresentadas pelo arquiteto holandês. É através da apropriação desses significados enquanto categoria arquitetônica que torna-se possível eleger exemplares emblemáticos dessas arquiteturas na cidade, relacionando-os com questões
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urbanas do tempo presente e delineando considerações sobre a produção espacial atual natalense. As forças hegemônicas que modelam o mundo onde vivemos, portanto, modelam também o desenvolvimento urbano, e o surgimento de junkspaces diz respeito ao tipo de crescimento que responde mais à anseios relativos aos poderes hierárquicos da sociedade do que à necessidades de cidadãos comuns - como os empreendimentos imobiliários que possuem pouca relação de integração com o espaço urbano e que tentam suplantar essa desconexão com facilidades em suas áreas internas. A compreensão desse tipo de produção espacial pode revelar um outro entendimento sobre a realidade urbana em que vivemos, e relaciona-se com outras questões sociais que motivam formas de construção da cidade. Essas formas de construção, por sua vez, estimulam maneiras de ocupação e vivência urbana, pois, devido a problemas sociais, construímos seguindo determinadas características, e devido a determinadas características urbanas, problemas sociais são evidenciados. Diante dessas considerações, questionam-se as transformações recentes da ordem urbana de Natal, a partir de sua relação com aspectos sociais próprios do nosso tempo histórico, e da perspectiva crítica elucidada pelo conceito Junkspace. Não propõe-se a soluções de problemas, mas a contestação, avaliação e reflexão sobre a lógica de desenvolvimento espacial discutida e apresentada ao longo deste estudo. Por conseguinte, torna-se possível estabelecer um debate sobre outras realidades urbanas possíveis de acordo com o diagnóstico obtido pela apreensão dos espaços-lixo, bem como fundamentar um diálogo sobre a vida pública, urbana, e social de Natal. De forma geral, este estudo tem por objetivo dar elementos para a compreensão das transformações urbanas ocorridas nesse começo de século em Natal, no tocante à uma perspectiva de caráter conceitual fundamentada pela ideia de Junkspace. O entendimento, então, sobre o que é Junkspace e sua relação com questões urbanas, de maneira abrangente, da cidade estudada, e o relato de aspectos físicos da discussão conceitual em consonância com expressões da organização espacial de nossa sociedade, configuram o nosso objetivo. Especificamente, pretende-se: discutir o conceito Junkspace, problematizando o texto original de Koolhaas; identificar criticamente o Junkspace em Natal, seguindo uma operacionalização que não se reporta à configurações de listagens ou inventários, mas que é uma construção crítica; construir propostas de reflexão, a partir de especulações e
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provocações projetuais sobre a crítica estabelecida anteriormente, utilizando a fotomontagem como linguagem, sem necessariamente recorrer ao aparato da linguagem técnica da arquitetura. O universo de estudo limita-se às regiões administrativas Sul e Leste da cidade. Essa escolha justifica-se a partir da motivação inicial para o desenvolvimento deste trabalho, a qual partiu da observação das transformações espaciais recentes de Natal, e que por isso, possui relação direta com as áreas da cidade mais familiares à autora. Dessa maneira, foram estabelecidos raios de observação em áreas de Lagoa Seca e Tirol, Candelária, Neópolis e Nova
Parnamirim
–
essa
última,
já
uma
região
fronteiriça,
e
pertencente
administrativamente ao município de Parnamirim. Essa dimensão mais subjetiva da delimitação do universo de estudo, que não baliza uma área exata de observação, recai sobre o caráter mais generalista deste trabalho. Assim, por estabelecer um debate conceitual sobre as recentes transformações da ordem urbana de Natal, este estudo analisa a paisagem de maneira não sistematizada; opera, portanto, como um ensaio livre. Figura 1: Mapa ilustrativo com focos de observação em destaque - Áreas pertencentes às regiões administrativas sul e leste de Natal/RN
Fonte: Produção da autora sobre imagem do Google Earth. Sem escala definida. Disponível em:<http://earth.google.com>. Acesso em 30/05/2015.
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Metodologicamente, o trabalho se estrutura a partir da discussão apoiada por diversos autores sobre o conceito Junkspace. A partir desse debate, faz-se o reconhecimento das áreas de estudo, de maneira a catalogar a produção espacial coerente à conceituação discutida, e a estabelecer relações do debate elucidado com questões urbanas próprias de Natal. Em seguida, constrói-se propostas provocativas, com um caráter reflexivo e irônico, sobre a produção espacial criticada anteriormente. Dessa maneira, pretende-se alcançar a meta de refletir sobre aspectos da realidade urbana contemporânea geral da cidade, desdobrando a discussão crítica em proposições especulativas. O trabalho estrutura-se em três capítulos principais: o primeiro traz uma revisão de conceitos importantes para o entendimento do estudo, bem como do contexto histórico recente que culminou no estabelecimento da produção espacial que constrói a Natal atual (a produção que esse estudo se refere será discutida nos capítulos 01 e 02). Ainda no capítulo 01, são apresentados estudos de referência de áreas da arquitetura, design, e da arte e ativismo político, os quais tem como objetivo comum a proposição de uma reflexão sobre os modos de produção espacial e de vivências no espaço público pertinentes à realidade urbana de cada proposta. O segundo capítulo discute o conceito de junkspace à luz de diversos autores contemporâneos, relacionando-o com questões póprias da cidade estudada. É feita também uma categorização e discussão crítica dos junkspaces encontrados nas áreas do recorte espacial deste estudo, e seus impactos nas esferas urbana e pública de Natal. O terceiro capítulo, por sua vez, traz uma série de propostas que desenham conjecturas sobre aspectos da discussão anterior, desenvolvidas a partir de uma abordagem crítico-irônica. O último capítulo estabelece uma reflexão sobre as questões discutidas no capítulo anterior a partir de propostas de intervenção urbana. Por fim, tem-se as considerações finais do trabalho, com uma ponderação sobre as proposições iniciais do estudo e os resultados obtidos
c a pí t ul o01
a r qui t e t ur a a l é m daa r qui t e t ur a
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CAPÍTULO 01 – ARQUITETURA ALÉM DA ARQUITETURA
A produção espacial de uma cidade não só estabelece funções básicas de uso e ocupação do território urbano, como também revela quais estruturas políticas e econômicas, próprias ao contexto histórico de cada obra, foram determinantes para a concepção de cada área ou edifício. Logo, entende-se que os projetos de arquitetura e urbanismo carregam uma ideologia ou de quem os projeta, ou de quem os idealiza – que pode ser um empreendedor com interesses particulares ou uma instância governamental que possui visão voltada a interesses de toda uma comunidade, por exemplo. Além disso, qualquer projeto que acontece em determinada realidade urbana possui a potencialidade de provocar reflexões perante o espaço que está estruturando, a sociedade que o pleiteia, e as governos que o oportunizam. Este capítulo traz uma discussão acerca dos conceitos fundamentais para o melhor entendimento deste trabalho, além de delinear um panorama da realidade urbana atual de Natal a partir de estudos do Observatório das Metrópoles. Ademais, apresenta uma série de exemplos dos campos da arquitetura, como trabalhos do Archigram e Superstudio e do arquiteto Pedro Bandeira; da arte, ativismo político e design crítico, como o Grupo Poro, o Coletivo Contra-Filé, o Ocupe Estelita; e dos estudos híbridos entre temas urbanos e sociais, como a Internacional Situacionista. Dessa maneira, procura-se fundamentar teoricamente o caráter reflexivo da disciplina da arquitetura e de outros caminhos que provoquem questionamentos acerca da produção espacial que já é realidade em nossas cidades.
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1.1 Do espaço público ao espaço de consumo Tradicionalmente, o local do encontro, do acontecimento inesperado e espontâneo e da experiência cívica nas cidades é entendido como o espaço público, ou o espaço onde se dá a vida pública. Esse espaço não é o resíduo territorial dos espaços privados, mas o local onde se dá a realização espacial da esfera pública nas cidades (GHIRARDO, 2002, p. 45). Assim, a dimensão democrática urbana relaciona-se com seus espaços públicos e coletivos: historicamente, local onde se dava a participação política, e atualmente, local onde é possível perceber valores societais que podem ser expressados através de mecanismos de exclusão ou integração de segmentos sociais com o território urbano. É importante, portanto, considerar os espaços públicos diante do estabelecimento de qualquer estrutura inserida no espaço urbano. Não é para menos que mesmo em realidades em que a regulação político-administrativa do território é falha, existem regulações mínimas a serem cumpridas por empreiteiras e investidores da construção civil. O impacto de novos projetos em fluxos tanto de pedestres como de automóveis, no estabelecimento de áreas mais ou menos inseguras, na permeabilidade e paisagem urbana são alguns dos aspectos da dimensão metropolitana que não deveriam escapar diante da inserção de qualquer novo edifício ou mesmo estrutura pública nas cidades. No entanto, conforme explica Diane Ghirardo (2002, p.46), o significado de “espaço público” mudou ao longo da história, e muitas vezes serviu para designar espaços que camuflam uma série de práticas exclusivistas, próprias aos valores da sociedade de cada época. Apesar de existir um imaginário que iguala os espaços públicos a espaços abertos e acessíveis por todos, essa concepção não corresponde de forma equânime a diversas realidades e situações históricas. A produção espacial urbana contemporânea, juntamente a outros modos de capitalização da vida, faz parte do contexto mundial de pós-modernismo e globalização. Em tal contexto, o desenvolvimento de cidades, com seus espaços públicos e privados, corresponde às estruturas específicas dessa situação – o surgimento da sociedade de consumo principalmente após a segunda Guerra Mundial trouxe novos maneiras de vivenciar o espaço urbano, sendo que a mercantilização dos aspectos dessa vivência gera impactos na ocupação e uso do território das cidades até os dias atuais.
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Diante dessas condições contextuais, acontece um processo de sobreposição de usos na cidade. Espaços privados passam a ser vistos e vendidos como locais onde atividades sociais similares as do espaço público, aberto e acessível à todos – ao menos em teoria – acontecem, e de maneira “mais segura” ou “confortável”. Esses espaços privados que permitem a reunião de coletividades misturam noções do que é social, coletivo, público ou privado e de uma acessibilidade aparentemente livre. Para Ghirardo, existe uma diferença entre “locais publicamente acessíveis” e “espaços públicos”: o primeiro é descrito de maneira mais apropriada como “espaço social” (2002, p.46). Esse tipo de espaço corresponde aos ambientes privados que emulam características de espaços públicos abertos e de acessibilidade democrática. Essa imitação opera em locais como shopping centers e centros de serviço e empresariais, mas através de uma monitoração e exclusão refinadas de grupos da sociedade que não tem poder de consumo diante das facilidades oferecidas no local. Mais adiante, a partir do final do século XX, ficou claro que a interpretação do significado de espaço público modificou-se perante as conjunturas próprias dessa época. Nesse sentido, a noção de espaço público passa a ser interpretada a partir de duas leituras afins: a primeira, como espaços para consumo, e a segunda, como espaços a serem segregados de maneiras específicas, a serem monitorados e controlados (GHIRARDO, 2002, p. 46). Atualmente, percebe-se como a lógica do capital engloba os mais diversos segmentos da vida em sociedade. A produção do espaço urbano também acompanha essa lógica, a qual transforma os espaços onde a vida social, pública, acontece. Nesse sentido, vê-se uma diminuição dos espaços públicos, abertos e acessíveis, e um aumento de espaços privados publicamente acessíveis, os quais promovem a experiência social mas operam através de mecanismos de exclusão que vão na direção oposta a da construção de uma cidade democrática, capaz de colaborar para a diminuição das desigualdades sociais a partir de projetos públicos de livre uso e ocupação a todos. Ademais, a lógica capitalista ainda possui ferramentas para inverter ideais da sociedade que não favoreçam o crescimento da mercantilização de seus setores, fazendo com que – no âmbito urbano - aspectos democráticos sejam substituidos por estruturas que promovem principalmente a exclusão e o consumo como soluções para questões urbanas complexas.
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1.2 Breve panorama sobre a produção espacial recente de Natal A paisagem urbana atual de Natal revela que a cidade vem passando por modificações recentes no uso e ocupação de seu território. Observa-se o delineamento de uma nova dinâmica na cidade, decorrente principalmente da implantação de estruturas importantes de organização de fluxos e moradia, tais como túneis, viadutos e estradas, acrescida de novos empreendimentos imobiliários. Essa conjuntura relaciona-se com fatos que vêm ocorrendo no país principalmente a partir da virada do século XX para o XXI, como o crescimento econômico, a distribuição de renda, as novas posições na estrutura social, a inclusão social via consumo, e a emergência de um discurso desenvolvimentista por atores do Estado (RIBEIRO, 2013, p.06). Além disso, a lógica global do capital inclui a realidade brasileira, que precisa lidar com as consequeências desse modelo, como a crise econômica ocidental e seus impactos principalmente a partir do ano 2000 (ver Quadro 01). A experiência de urbanização atual, portanto, relaciona-se com uma “formação urbana desenvolvimentista e em suas tendências na direção da ordem urbana neoliberal” (CLEMENTINO; FERREIRA, 2015, p. 37). O desenvolvimentismo refere-se a ampliação do poder do Estado com a retomada do crescimento e a redução da pobreza, e, partir desses fatores, surgem duas tendências principais nas cidades (ENANPUR, 2012, p. 02): a difusão do padrão de consumo da sociedade capitalista ocidental e o acirramento do conflitos entre interesses especulativos e patrimonialistas. Na escala municipal, os reflexos de decisões governamentais nacionais referentes às medidas de contenção da crise e a descentralização da renda, juntamente à políticas específicas locais, estimularam, entre outras instâncias, o setor da construção civil. Dessa maneira, em um primeiro momento (até meados de 2008) o setor imobiliário foi alavancado pelo investimento estrangeiro – realidade notada até hoje em Ponta Negra, por exemplo, que conta com diversos edifícios e flats próprios a esse público, bem como com um mercado de restaurantes e outros serviços oferecidos por estrangeiros que aqui vieram morar. Em um segundo momento, o financiamento massivo em projetos de habitação social através do programa Minha Casa Minha Vida estimulou o espraiamento do território urbano, com o aumento da conurbação existente entre áreas periféricas - como a região limítrofe entre
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Natal e Parnamirim - impondo uma estruturação urbana mínima dessas áreas por parte das governâncias locais. Além disso, na mesma época, observa-se um crescimento no número de edifícios comerciais e de serviços ou mistos, que reuném clínicas, cafés, mercados e algumas vezes moradia em uma única estrutura física. Há ainda o surgimento de diversos centros de lojas e serviços de alimentação nas áreas em expansão de Natal, como também a inauguração do maior shopping center da cidade em 2005, do Norte Shopping em 2007 e a reforma de centros comerciais mais antigos, consolidando a importância dessas estruturas na vida urbana Natalense. De acordo com Angela Lúcia Ferreira e Maria do Livramento Miranda Clementino: Esses empreendimentos, públicos e privados, aliado a alterações no Plano Diretor desses municípios, evidenciam mudanças no uso e ocupação do solo rural ou semirural e configuram uma expansão do urbano em direção à periferia metropolitana. O setor imobiliário, que marcou e definiu o que se chamou de “Metropolização Turística” e teve sua dinâmica reduzida pelo arrefecimento dos investimentos estrangeiros após 2008, se beneficia não somente dos novos recursos advindos do Programa Minha Casa Minha Vida, mas também da produção de novas áreas urbanas minimamente qualificadas (CLEMENTINO; FERREIRA, 2015, p. 36).
Além dos fatores políticos que impulsionaram o mercado imobiliário com o consequente estabelecimento de novos edifícios e os programas de governo que financiaram obras de impacto na infraestrutura urbana, diversos fatores sociais, como mudanças nas dinâmicas populacionais e flutuações no mercado de trabalho e cadeia produtiva também explicam a produção espacial recente ocorrida em Natal. A transição demográfica contemporânea, por exemplo, a qual refere-se a mudanças na estrutura etária e na composição familiar, impulsiona uma ocupação domiciliar com menor densidade – as famílias atuais geralmente possuem menos componentes além de serem organizadas em múltiplos tipos de arranjos. Esse tipo de ocupação impele o estabelecimento de unidades residenciais menores, porém em maior quantidade para suprir a necessidade habitacional. A partir dessa necessidade, portanto, surgem novas formas de consumo do espaço urbano, as quais relacionam-se com o crescimento do espaço urbanizado e com novas configurações estruturais na cidade.
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Figura 2: Mapa ilustrativo sobre a produção espacial recente de Natal, com alguns exemplos dessa produção observados nas áreas do universo de estudo deste trabalho.
Fonte: Produção da autora sobre base cartográfica disponibilizada pela prefeitura de Natal. Disponível em: <http://natal.rn.gov.br>. Acesso em 30/05/2015.
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Quadro I.1 – Ciclos Históricos segundo as escalas nacional, regional e local: o caso de Natal Ciclo Nacional Modelo Liberal: 1990/2003. Reestruturação produtiva, de 1990 a 1992 (caracterizada pelo quadro de recessão da economia, aumento de produ- tos importados).
Ciclo Regional: Nordeste 1990-2003: Ganha relevância o “desenvolvimento regional restrito, especializado, centrífugo: enclaves territoriais que se manifestam como ilhas de inclusão, mas capazes de fazer sinergia regional”. Ex.: recursos do PRODETUR. “Economias dinâmicas” e “economias estagnadas” (Tania Barcelar).
Ciclos Locais: RM Natal Desenvolvimento moderado: média de crescimento de 4,10%, Nordeste (3,0%) e do Brasil (2,5%). Participação no PIB do Brasil e do Nordeste passa de 0,46% em 1970 para 1,1% em 1999, em relação ao PIB brasileiro, e, no Nordeste, a participação passou de 4,7% para 6,4%. Na RM Natal: construção civil, têxtil e confecções foram reestruturadas; alimentos e bebidas; “manchas de modernidade”.
Modelo liberal: 2003/2010
2003-2010: Crescimento foca- do na produção e consumo de massa (crescimento do crédito; aumento real do SM; políticas públicas de transferência direta de renda (Bolsa Família); gera empregos formais; as cidades médias passaram a crescer com mais intensidade; as cidades são elementos chave da dinâmica regional.
Acompanha o Nordeste Boom da construção civil/ imobiliário turístico (20042008). Aumento da modernização do setor de serviços. Varejo moderno. Nova economia: energia eólica.
Fonte: CLEMENTINO, 2013, em Observatório das metrópoles, 2015.
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1.3 Estudos de referência 1.3.1 SÉCULO XX A década de 1960 testemunhou mudanças importantes na maneira de pensar arquitetura, seus modos de projetar e seu papel na sociedade – mudanças de perspectiva sobre a disciplina arquitetônica que relacionam-se com o início do declínio do movimento moderno. Foi também nessa década que o movimento de contracultura ganhou força no mundo ocidental em geral, concomitante ao surgimento de diversos grupos criativos que possuíam um caráter de design crítico frente à questões da sociedade daquela época, quer seja o design de objetos, arquitetura ou de matérias do planejamento urbano. Ademais, tal produção criativa foi contemporânea à um pensar sobre o modo de vida que se estabelecia desde o fim da 2a. Guerra Mundial, a partir do fim de uma era em que a economia relacionava-se mais a um ciclo de consumo voltado para a subsistência do que ao acúmulo de produtos. A seguir, apresentam-se trabalhos do grupo Internacional Situacionista, do Archigram e do Superstudio, os quais surgiram e desenvolveram suas atuações baseadas no contexto existente na segunda metade do século XX.
INTERNACIONAL SITUACIONISTA O pensamento do grupo Internacional Situacionista, apoiado em teorias Marxistas, tinha como objetivo atuar subversivamente contra o capitalismo. Dessa maneira, sua produção intelectual se volta a temas por onde a vida humana, nas cidades do fim da década de 1950 e começo dos anos 60, se desenvolvia: a universidade e o meio estudantil, a produção espacial, a arte e cultura, a economia, o cotidiano. Guy Debórd, o pensador mais influente desse movimento, dedica um capítulo de seu livro “A sociedade do espetáculo” ao tema do planejamento espacial, discorrendo sobre a homogeneização e banalização da produção do espaço em decorrência do sistema capitalista: A produção capitalista unificou o espaço, que já não é limitado por sociedades externas. Essa unificação é ao mesmo tempo um processo extensivo e intensivo de banalização. A acumulação de mercadorias produzidas em série para o espaço abstrato do mercado, assim como devia romper as barreiras regionais e legais e todas as restrições coroporativas da Idade Média que mantinham a qualidade da produção artesanal, devia também dissolver a autonomia e a qualidade dos lugares. Essa força de homogeneização é a artilharia pesada que faz cair todas as muralhas da China (DEBÓRD, 1997, p. 111).
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Assim, a dissolução de fronteiras legais e geográficas para o fluxo livre de mercadorias seriam o motivo para a reconstrução e modificação constante do tecido urbano: para não encontrar entraves, o capital planifica as qualidades específicas dos lugares, diminuindo a autonomia de cada um deles. Para Debórd (1997, p. 112), o urbanismo é o cenário do capitalismo. Essa concepção precede ao conceito principal que origina a teoria da “sociedade do espetáculo”. De acordo com essa teoria, a imagem atribui o valor último a qualquer objeto - a “fetichização da mercadoria”. Assim, não é o produto em si que possui valor, mas sua(s) representação(ões). A imagem, então, media relações espetaculares, pois não são estabelecidas de forma direta e sim indiretamente, a partir de símbolos. O pensamento urbano situacionista, por sua vez, baseava-se em idéias e práticas da “psicogeografia” e da “deriva”, as quais alicerçam o objetivo maior do grupo, a “construção de situações”. Essas situações proporcionariam vivências ativas, construtoras de espaços e suas relações – não espetacularizadas, portanto. A deriva definiria a atividade de, a partir de um lugar qualquer, se deixar caminhar seguindo impulsos dos momentos urbanos, sem rumo, ou seguindo um jogo com regras pré-estabelecidas (e não caminhar apenas com o objetivo de chegar a um ponto). A psicogeografia, por sua vez, diz respeito a uma cartografia de diferentes ambiências psicológicas, afetivas, provocadas basicamente pelas derivas. Nossa idéia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram (DEBÓRD, 2002, p.37) Figura 03: Mapa psicogeográfico de Paris (1957).
Fonte: Vitruvius. Acesso em 30/05/2015. Disponível em < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/696>.
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Essas estratégias estruturam formas de compreender as cidades de maneira mais subjetiva, não apenas funcional, e mesmo as representações cartográficas dessas experiências não seguiam os parâmetros técnicos comuns (ver figura 03). De maneira geral, serviam também para vivenciar o espaço urbano, público, de maneira não submissa a soluções de compreensão e vivência habituais. A revolução proletária é a crítica da geografia humana através da qual os indivíduos e as comunidades devem construir os locais e os acontecimentos correspondentes a apropriação de sua história total. Nesse espaço movente do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia do lugar pode se reencontrar, sem reintroduzir um apego exclusivo ao solo, e assim trazer de volta a realidade da viagem, e da vida entendida como uma viagem que contém em si mesma todo o seu sentido. (DEBÓRD, 1997, p.117).
Os situacionistas eram contra o monopólio do território urbano e sua produção por urbanistas, planejadores e gestores, pois para aqueles a cidade deveria ser construída coletivamente: a construção de qualquer cidade “dependeria da participação ativa dos cidadãos, o que só seria possível por meio de uma verdadeira revolução da vida cotidiana” (JACQUES, 2003). O objetivo era alcançar um modo de vida não espetacularizado e não alienado, e a produção espacial enquanto estruturadora de locais onde as vivências se estabelecem, não poderia deixar de ser questionada. “O urbanismo não existe: não passa de uma ‘ideologia’, no sentido de Marx. A arquitetura existe realmente tanto quanto a Coca-Cola: é uma produção envolta em ideologia, mas real, satisfazendo falsamente uma necessidade forjada; ao passo que o urbanismo é comparável ao alarido publicitário em torno da CocaCola, pura ideologia espetacular. O capitalismo moderno, organizado de modo a reduzir toda a vida social a espetáculo, é incapaz de oferecer um espetáculo que não seja o de nossa própria alienação. Seu sonho de urbanismo é sua obra-prima” (I.S., 2002).
Dessa maneira, , os Situacionistas promovem um importante argumento à reflexão da produção espacial de cidades, ao questionarem essa produção sob à luz do desenvolvimento econômico capitalista. Em Natal, a construção de espaços e de estratégias urbanas baseadas em representações e não necessariamente em soluções reais à questões da cidade também é uma realidade. Assim, a discussão sobre a ordem urbana atual aqui encontrada não pode fugir ao olhar do desenvolvimento capitalista e suas derivações – um pensamento que será mais discutido no prosseguimento deste trabalho.
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ARCHIGRAM Também na década de 1960, o grupo de arquitetos Archigram desenvolveu projetos que lidavam principalmente com interfaces entre arquitetura, planejamento urbano e tecnologia. Entre outras respostas, seus projetos ofereciam também um possível caminho de atualização da profissão de arquiteto que começava a atuar em uma sociedade em processo de pós-modernização. O caráter da produção do grupo foi sobretudo experimental, com poucos projetos construídos, sendo apresentada em revistas próprias (10, ao todo, sendo que a última é considerada a número 91/2) e exposições, através de colagens, pinturas, fotografias e desenhos. A vasta produção do Archigram, embasada em muitos casos na interferência da tecnologia na arquitetura, não limitava-se à uma junção casual dessas matérias, mas desdobrava-se a fim de pensar outras formas de habitar, se locomover e vivenciar as cidades. A tecnologia traria possibilidades diferentes das exploradas pelo movimento moderno à arquitetura, e assim, essa adquire mobilidade ou possibilidade de modificar e intercambiar seus elementos. Essa mobilidade, tanto enquanto arquitetura nômade (ver Figura 04, “Instant city visita Bournemouth”) quanto como uma variabilidade estrutural ou uma arquitetura que cresce, possibilitava a adaptação da estrutura proposta - através do aparato tecnológico. Essa possibilidade de atualização respondia à efemeridade e transitoriedade do contexto social que se desenvolvia na época. Por isso, a produção do Archigram é caracterizada como “open end”: seus projetos delineiam estruturas em processos, que não são fixas, como um software de código aberto, passível de modificação e melhoramento por qualquer um. Figura 04: Instant city visita Bournemouth (1968).
Fonte: The Archigram Archival Project. Acesso em 30/05/2015. Disponível em <http:// http://archigram.westminster.ac.uk/>.
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Em 1963 o grupo produziu uma mostra para o Instituto de artes contemporâneas de Londres, chamada “Living city”. Essa exposição foi formulada como um manifesto das crenças do grupo de que a cidade deveria ser um organismo único – “mais do que uma coleção de prédios, mas um meio de libertar as pessoas através da tecnologia, empoderandoos de maneira que possam escolher como querem conduzir suas vidas”1 (tradução livre). De acordo com Rodrigo Kamimura, o Archigram considerava a arquitetura a partir de sua “inserção no processo produtivo do território” (KAMIMURA, 2009. p. 06). Seguindo essa idéia, pode-se citar o projeto “Walking city”, em que enormes estruturas robóticas móveis e que possuíam inteligência poderiam percorrer o mundo, movendo-se para onde eram necessários seus recursos e onde seus habitantes desejassem. As walking city poderiam se conectar umas com as outras, e se dispersariam quando não fosse mais necessária a união. O projeto “Instant city” também possui a mobilidade como norte conceitual. Constitui-se de um dirigível que transportaria os recursos de entretenimento e educação de uma metrópole para pequenas comunidades, onde ficariam temporariamente, como em uma grande feira ou evento. Assim, momentaneamente, habitantes de cidades pequenas poderiam apreciar a agitação da vida em uma metrópole. A arquitetura seria “feita de evento, e não de envelope” (KAMIMURA, 2009, p.22). Conceitos apresentados pelo grupo como “expendability” (dispensabilidade) e “throwaway economy” (economia do descarte) alinham-se à cultura do consumo, em ascensão naquela época, e eram utilizados como estratégias de projeto. De fato, havia uma apropriação das múltiplas possibilidades trazidas pelo pensamento pós-moderno. A série “Instant city” assume o entretenimento e o lazer como caminho de planejamento, ao invés buscar seguir uma lógica funcionalista como a do movimento moderno. De acordo com Kamimura, o contexto em que o Archigram atuou foi determinante para o caráter de seus projetos, os quais abarcaram a impossibilidade de se manter uma uma postura determinista, fixa, em uma sociedade em mutação. Dessa forma, os projetos do grupo abordam características ainda hoje consideradas representativas da sociedade de consumidores pós-moderna, relativas à transformação e adaptação de estruturas comumente consideradas imóveis, como as da arquitetura. Em L.A.W.U.N. 2 – The Invisible University (1970), Archigram sequer desenha ou 1
“in the city as a unique organism, which is more than a collection of buildings, but a means of liberating people by embracing technology and empowering them to choose how to lead their lives”.
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projeta qualquer edificação ou estrutura física, arquitetônica. L.A.W.U.N. é a sigla de Local available world unseen networks (Redes globais invisíveis disponíveis localmente – tradução livre), e a proposta número 02 desse conceito corresponde à uma “universidade invisível” (Figuras 05 e 06). O projeto dessa estrutura detém-se no estabelecimento de uma matriz informacional, a partir de onde são configuradas as atividades e eventos, de acordo com as necessidades e desejos individuais de cada usuário: “a universidade invisível era uma noção vagamente sugerida a partir de um conjunto de fotografias de paisagens naturais, onde a intervenção humana fosse passageira – execução de uma atividade ao ar livre, como um concerto musical” (CABRAL, 2002, p. 277). Espaços funcionais, fixos, portanto, não seriam necessários para acontecimentos e atividades humanas. De fato, no enunciado da série de projetos L.A.W.U.N., em 1969, David Greene (um dos fundadores do Archigram), manifestava: “Eu tenho o desejo que/ o ambiente construído/ Me permita realizar/ Minhas próprias coisas2” (Tradução livre). Figura 05: The Invisible University, por David Greene (1970).
Fonte: The Archigram Archival Project..Disponível em <http:// http://archigram.westminster.ac.uk/>. Acesso em 30/05/2015.
Figura 06: The Invisible University, imagem por Sally Hogdon (1970).
Fonte: The Archigram Archival Project. Disponível em <http:// http://archigram.westminster.ac.uk/>. Acesso em 30/05/2015.
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I have the desire for/ The built environment/ To allow me to do/ My own thing.
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A perspectiva imaginativa do Archigram sobre como arquitetos, enquanto produtores de espaços, podem desenhar estruturas que promovam outros modos de viver a cidade, provoca diferentes considerações não só sobre nossa atividade profissional, a qual pode ser desenvolvida até não houver sequer uma edificação projetada e construída, mas também sobre como nossas vidas são influenciadas pelos espaços onde habitamos, nos locomovemos e temos momentos de lazer. A consciência de fatores como a tecnologia, além de características próprias a um tempo histórico – como a relação entre consumo, efemeridade e pós-modernidade, por exemplo, a qual será discutida no capítulo 02 deste trabalho – delimitam em até algum ponto maneiras de viver, e também maneiras de conceber espaços. O arquiteto, designer, planejador ou gestor urbano estão em posição de perceber isso, e trabalhar de maneira otimista frente tal realidade, como fez o Archigram, ou oferecer resistências às forças da ordem hegemônica em que estamos inseridos.
SUPERSTUDIO Na Itália, o grupo Superstudio também se dedicou a desenvolver um pensamento sobre a arquitetura e o urbanismo diferentes das previsões feitas pelo movimento modernista. Esse grupo fiorentino fez parte do mesmo contexto que o Archigram, atuando principalmente na década de 60, e compartilhou de ideais do movimento italiano de antidesign. O anti-design italiano foi um movimento que surgiu a partir da percepção de que o design funcionalista, herdeiro da tradição Bauhaus, não oferecia um controle sobre os significados e mesmo sobre a utilização final de objetos. A proposta original do design delimitado por questões de forma e função não lidava com os signos desses objetos, e a função dado ao produto final pelos seus usuários não exatamente era a mesma para qual o objeto havia sido criado. Contestava-se não só a metodologia do design funcionalista, mas como essa herança participava da atuação do projetista da época. Assim, o anti-design foi um movimento que procurava enfatizar símbolos, significados e gestos culturais ao invés da forma e da função de um objeto. Esse posicionamento metodológico norteia o desenvolvimento das ideias do Superstudio. Através de fotomontagens, o grupo criou uma série do que chamavam de
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“utopias negativas”: imagens que retratavam cenários fictícios, os quais tinham o objetivo de alertar para as consequências de certas direções seguidas pelo planejamento urbano, sobretudo para o modernismo levado ao máximo de racionalidade e uniformidade. O uso de fotomontagens elucidava o caráter questionador do trabalho do grupo, a intenção de projetar para o estabelecimento de debates e não para solucionar questões. A utopia “Il monumento continuo” (O monumento contínuo) propunha a homogeneização do espaço físico através de uma mega-estrutura que enveloparia superfícies específicas – as habitáveis – da Terra, sendo que todo o resto do território do planeta ficaria protegido do contato humano. Através do exagero de certos preceitos do modernismo, da planificação total do planeta através de uma estrutura arquitetônica contínua, o Superstudio sugeriu um mundo sem diferenciação espacial, cultural, ou econômica entre quaisquer lugares. Tolerado de Francia, um dos fundadores do grupo, explicava que “é papel o designer/arquiteto atentar para a reavaliação do seu papel no pesadelo que ele ajudou a construir3”. GLANCEY, 2003). Figura 7: "O monumento contínuo" sobre a cidade de Nova York.
Fonte: The Guardian. Disponível em: <http://www.theguardian.com/artanddesign/2003/mar/31/architecture.artsfeatures >. Acesso em 30 de maio de 2015.
O Superstudio, portanto, criou uma utopia que discutia não só os preceitos da arquitetura moderna, como também a atuação de arquitetos enquanto produtores do espaço e ainda a sociedade em si. A proposta “O monumento contínuo” nos leva a um mundo mais conectado à natureza, distante das lógicas de consumo e entretenimento existentes a partir 3
Na fonte original, “it is the designer who must attempt to re-evaluate his role in the nightmare he has helped to conceive”. GLANCEY, Jonathan. Anti-matter: Italy's Superstudio hated both the bland future and the twee past. Disponível em: < http://www.theguardian.com/artanddesign/2003/mar/31/architecture.artsfeatures >. Acesso em 30 de maio de 2015.
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da tecnologia. De acordo com Kenneth Frampton: Ainda que possamos questionar sua eficácia, a vanguarda arquitetônica dos anos 1960 não havia abdicado por inteiro de sua responsabiliade social. Existiam algumas facções cuja orientação era decididamente política e cuja atitute diante da tecnologia não era de modo algum desprovida de sentido crítico. Entre elas, devese mencionar o grupo italiano Superstudio, que, nesse aspecto, estava entre as mais poéticas. (…) O Superstudio, liderado por Adolfo Natalini, começou em 1966 a produzir um conjunto de obras mais ou menos divididas entre a representação da forma de um Monumento Contínuo, como um signo urbano mudo, e a produção de uma série de vinhetas que ilustravam um mundo do qual os bens de consumo haviam sido eliminados. Sua obra ia da projeção de vastos megalitos imepenetráveis, revestidos de vidro espelhado, à reprodução de uma paisagem de ficção científica na qual a natureza se tornara benévola - em resumo, a quintessência da utopia arquitetônica. (FRAMPTON. 1997, p. 350)
Assim, “O monumento contínuo” sugeria que, caso o planejamento urbano seguisse como estava – e, para o Superstudio, isso significava uma concepção de cidade funcional distante de uma autenticidade própria ou o planejamento europeu que buscava a conservação histórica muitas vezes com métodos pouco francos – nós viveríamos em um mundo escasso de expressões singulares, pois tudo seria tão estéril que poderia ser substituído pelo grid global. Figura 8: "O monumento contínuo".
Fonte: The Design Museum. Disponível em:< http://design.designmuseum.org/design/superstudio>. Acesso em 30 de maio de 2015.
Vê-se, portanto, através de “O monumento contínuo”, a contestação contundente da produção espacial consagrada à época da atuação do Superstudio. O posicionamento contra essa produção, ratificado a partir das imagens que exageram exatamente as caracterísiticas que estão sendo criticadas (e a ideologia por trás delas), criam cenários utópicos que nos levam a repensar o que está sendo construído atualmente, bem como quais são os preceitos
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que determinam essa construção. A estratégia de criar utopias negativas gera um conceito que importa não só para pensar que outros cenários são possíveis na paisagem demonstrada na fotomontagem, mas também que relações espaciais e sociais existem a partir do objeto que de fato se critica, bem como que alternativas existiriam com sua retirada ou transformação – estratégia a ser utilizada também neste trabalho. A distopia abre espaço para reflexões pois facilita a visualização de outros conceitos a partir da negação de uma realidade ou cenário já estabelecido, fazendo com que o filtro que esse cenário determina, o olhar que temos ao olhar uma paisagem construída que já conhecemos, seja atenuado.
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1.3.2 ARQUITETURA, ARTE E ATIVISMO URBANOS NA ATUALIDADE O contexto urbano atual possui uma discussão ampla acerca de uma espetacularização (conforme conceituado por Guy Debórd e os Situacionistas) generalizada, passividade social, da corrupção, e do caos que parece crescer nas cidades. Problemas sociais como a desigualdade, a violência, bem como o amplo tema “direito à cidade” são tópicos importantes para o processo criativo de artistas e arquitetos contemporâneos, os quais buscam na intervenção urbana um meio de esclarecimento e exposição de fatores da realidade da cidade, bem como de ressignificação de diversos de seus elementos e questões. A expressão “intervenções efêmeras em espaços públicos” é recorrentemente utilizada para falar desses canais que procuram contestar questões diversas da cidade, apesar de que o termo possui variações tanto em seu nome quanto em seu significado exatamente por compreender um conceito bastante amplo (o qual não é possível ser discutido de forma aprofundada neste trabalho). No entanto, a idéia básica descrita por essa expressão refere-se a certas apropriações urbanas que buscam uma apreensão de áreas urbanas ou questões sociais que estão esquecidas, abandonadas ou que simplesmente não são vistas como problemas devido à falta de conhecimento e alienação - no sentido do termo defendido pela Internacional Situacionista - da população. Então, a expressão “Intervenções efêmeras em espaços públicos” refere-se a objetos, performances, encontros, ou eventos que trabalham com a potencialidade de ressignificar um lugar, um uso de espaço, e que lidam com aspectos mais subjetivos relativos à um local. O significado desse termo tem interesse para este trabalho quando descreve esse tipo de intervenção, o qual desenvolve uma “poética” no espaço da cidade, e não soluções funcionais (apesar de que a poética também pode se apropriar do que originalmente seria uma resposta a determinado problema). Intervenções são quase sempre efêmeras. Duram o tempo de uma panfletagem no centro da cidade ou o tempo de uma folha de ouro cair de uma árvore. Duram o tempo do deslocamento do ritmo cotidiano para um ritmo poético, questionador. É possível re-sensibilizar o espaço urbano? (PORO, 2002).
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Figura 09: Intervenção do grupo Poro, "Outros setores", realizada em Brasília (2012).
Fonte: Grupo Poro. Disponível em http://poro.redezero.org/>. Acesso em 30 de maio de 2015.
Figura 10: Intervenção urbana com fios, realizada em João Pessoa - PB (2015).
Fonte: Arquivo pessoal, 2015.
A figura 09 mostra, por exemplo, uma das placas de uma intervenção efêmera realizada pelo grupo Poro, em Brasília, intitulada “Outro setores”. Constituiu-se de várias placas, como a da foto, sendo que cada uma possuia uma mensagem como “Setor de imaginação”, “Setor de gratuidade”, “Setor de encontro”, “Setor livre”. Essas placas foram colocadas em áreas verdes da cidade. A figura 10 diz respeito a uma intervenção realizada em João Pessoa-PB em janeiro de 2015, como resultado de um workshop de instalações efêmeras. Em uma semana os participantes tiveram aulas informativas sobre esse tipo de projeto, e desenvolveram diversos conceitos sendo que um deles foi construído coletivamente e executado. A intervenção constitui-se de uma trama de fios coloridos que une uma tradicional
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barraquinha de pastel e caldo-de-cana do centro da cidade à uma também tradicional estátua de Jackson do Pandeiro, localizadas numa praça posterior ao edifício do Iphan-PB. Simboliza o pertencimento dessa barraca, inicialmente uma apropriação informal, a uma área histórica que segue um caminho de esquecimento para a memória coletiva. Contemporaneamente, diversos coletivos de arte debruçam-se perante a questão urbana, mesclando arte e ativismo político. De fato, a maioria desses coletivos atuam a partir de uma intenção de subversão da ordem hegemônica, pois motivam-se, segundo Túlio Tavares, a refletir sobre as relações entre arte, política e questões da vida cotidiana no contexto de uma produção espacial estrategicamente excludente: Por isso a procura por movimentos populares, ir para a cidade, para as ocupações, para lugares abandonados, lugares que ninguém vê. Sabíamos que novos símbolos poderiam ser produzidos, mesmo que fosse símbolos que perdessem a categoria de “arte”. Porque esses grupos deixaram de ser um movimento de arte e se tornaram um movimento da cidade, ambiental, político, social, aproximando o campo da arte àquele do ativismo político por meio de intervenções em espaços não institucionalizados e de caráter eminentemente crítico. (TAVARES, 2015, p.19).
Portanto, por se preocupar com as dimensões políticas e sociais da arte, buscando a desalienação do comportamento cotidiano dos e pelos cidadãos, os artistas passaram a lidar com urbanismo, comunicando-se e posicionando-se perante o objeto de estudo fundamental de arquitetos, planejadores e estrategistas urbanos. Figura 11: Monumento à catraca invisível, do Coletivo Contra-Filé (2004).
Fonte: Rompendo amarras - USP. Disponível em < https://rompendoamarrasusp.wordpress.com>. Acesso em 30 de maio de 2015.
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O “Monumento à catraca invisível” (Figura 11), por exemplo, surgiu em 2004 de um projeto que tinha como objetivo a criação de um espaço para criação e reflexão sobre a possibilidade de se construir uma vida pública em São Paulo. O coletivo Contrafilé partiu da ideia de “descatracalização da própria vida”. Essa ideia surgiu da imposição do projeto de que eles deveriam projetar para a Zona Leste paulista, sendo que essa área era pouco conhecida dos integrantes do coletivo. Então, a digressão partiu da percepção das múltiplas catracas existentes na cidade, simbólicas ou não, que delimitam e restrigem a circulação dos cidadãos e que nos sujeitamos cotidianamente: “uma catraca foi colocada em cima de um pedestal no Largo do Arouche, na cidade de São Paulo. Embaixo foi colocada uma placa com a inscrição ‘Monumento à Catraca Invisível – Programa para Descatracalização da Própria Vida, Junho/2004’” (GONÇALVES, 2006). A intervenção ganhou notoriedade a partir de uma reportagem do jornal Folha de São Paulo e chegou inclusive a ser tema de redação do vestibular Fuvest. Foi também incorporada pelo circuito financeiro e publicitário ao ser utilizada em uma propaganda do Banco Itaú. Por fim, virou símbolo de luta de movimentos sociais, que incorporaram a queima de catracas em diversas manifestações. Esse intercâmbio de conhecimentos diante não só da construção das cidades mas também de nossas próprias vidas - conforme o que é colocado por muitos dos próprios grupos - colabora para uma expansão da atuação de nossa profissão, incitando maneiras de abraçar a vida cotidiana e entendê-la, no caminho oposto ao de pressupor que a cidade é plana como uma tábula-rasa. Vão na contramão da lógica perversa de exploração do território com a finalidade de rendimentos e aumento de privilégios de setores privados. Sobretudo, as reinvidicações e contestações são pela vida pública, que vai além do espaço público enquanto entidade puramente material, e são também pela recuperação e valorização de uma memória coletiva. Em Recife, Pernambuco, existe uma rede coesa de indivíduos organizados em coletivos e movimentos sociais que desenvolvem estratégias de atuação contra avanço feroz de instâncias privadas no espaço público da cidade, sendo que o que vem obtendo uma maior repercussão é movimento Ocupe Estelita. Tal movimento promove a ocupação de uma área de aproximadamente 10 hectares em uma antiga área ferroviária no centro da cidade, através de manifestações artísticas e culturais, feiras, debates, e encontros no espaço. A ocupação visa contestar e combater a
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apropriação da área para a construção do projeto Novo Recife, um empreendimento de 12 torres de até 40 andares cada uma, através de um agenciamento de diversas construtoras e empreendedoras. Dá voz também à memória dessa área urbana, bem como aos assentamentos populares existentes próximos ao cais e que já possuem um histórico de lutas pela urbanização e permanência no local. O Ocupe Estelita é um movimento de resistência que expôs a necessidade de atuação da população frente ao desenvolvimento urbano excludente que responde somente a interesses e fins políticos privados – a tomada do direito de áreas públicas por investidores do circuito financeiro-imobiliário, nesse caso. Através da ocupação não só o debate sobre a construção do Novo Recife ou da recuperação do cais é reiterado, como também é amplificada a discussão sobre a lógica de produção de nossas cidades. Esse movimento, que tomou proporções nacionais, convive também com outras intervenções que possuem uma resposta em menor escala à questões urbanas, mas que também colaboram e são de fundamental importância para a revalorização do espaço público e da vida que acontece nele. Seguindo essas características, é válido citar a criação do dicionário “Terminologia Urbana do Recife”, o qual descreve tanto objetos quanto lugares, situações e personagens da cidade a partir de significados coloquiais ou que revelam diversas condições encontradas no espaço urbano. A definição de Árvore, por exemplo, diz: “1. Refúgio do sol. Lugar para descanso e encontro sob a sua sombra. 2. Estacionamento. 3.Mictório público masculino. 4.Marco arqueológico espacial. 5. Mobiliário urbano em extinção. 6. Obstáculo nas calçadas” (2011). Figura 12: Terminologia Urbana do Recife
Fonte: Pau Faus. Disponível em < http://issuu.com/paufaus/docs/tu-recife_por>. Acesso em 30 de maio de 2015.
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Esse dicionário é um dos produtos de um workshop em que os participantes foram convidados a percorrer a cidade à pé, em um exercício de deriva, que se propôs a criar uma narrativa da cidade a partir de um movimento de aproximação e presença junto ao cotidiano encontrado por onde o percurso se desenvolveu. A criação de instrumentos que possibilitem a leitura de aspectos do cotidiano da cidade, sejam intervenções efêmeras em espaços públicos como o Monumento à catraca invisível ou outros objetos que não se localizem na cidade mas que tenham sido desenvolvidos a partir dela, em uma interpretação mais direta de seus elementos e distanciada da espetacularização - como o dicionário citado anteriormente - permitem a criação de situações fora da ordem de produção e consumo em que somos constantemente alinhados. Permitem, então, uma aproximação entre as pessoas e a questão refutada pela intervenção, sendo que aquelas, não estando passivas, podem perceber quais mecanismos estão sendo discutidos, quais influências esses mecanismos tem sob a vida delas, bem como refletir sobre sua atuação na comunidade.
PEDRO BANDEIRA O pensamento questionador sobre as cidades que vivemos bem como sobre sua produção espacial é o que conecta as atividades desses artistas e ativistas. Então, por lidarem com urbanismo e temas afins, suscitam discussões dentro do próprio campo da arquitetura e ampliam também a atividade do arquiteto e urbanista para uma possibilidade de atuação mais transdisciplinar. O arquiteto e professor português Pedro Bandeira desenvolveu variados trabalhos que, flutuando entre os campos da arquitetura e da arte, oferecem uma discussão sobre a pertinência de certos projetos arquitetônicos e urbanos bem como das provocações possíveis a partir da interação entre os campos de desenho, teoria da arquitetura e suas aplicações.
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Figura 13: Relocalização da Ponte D. Maria Pia (2013).
Fonte: Pedro Bandeira. Disponível em < http://www.pedrobandeira.info/>. Acesso em 30 de maio de 2015.
A proposta de Bandeira para o concurso que buscava uma solução para a Regeneração Urbana do Quarteirão da Aurifícia na cidade do Porto, Portugal, constitui-se da relocalização da ponte D. Maria Pia (Figura 13), a qual se encontra, à época do concurso, na área do Quarteirão. A ideia defendida pelo arquiteto é o desmonte e transferência da ponte, removendo-a de seu lugar original, e levando-a para o centro histórico da cidade. Assim, a estrutura que já não é mais utilizada de acordo com sua funcionalidade primordial, seria ressignificada como um monumento, construindo um símbolo próprio para Porto: Propomos um monumento da desindustrialização, um monumento em que a materialidade oitocentista dá lugar à imaterialidade contemporânea, assente numa lógica de rizoma ou rede complexa sem lugar para pontes dicotómicas que ligam apenas dois lugares (BANDEIRA, 2013).
Baseado em projeções imagéticas, o conjunto de obras de Bandeira não se detém em uma representação tradicional de arquitetura, mas em composições que narram valores subjetivos de suas propostas. O caráter provocativo é norteador de grande parte de sua produção, como também é visto no projeto “Europa numa rotunda” (Figura 14) de 2001. Nesse caso, Bandeira propõe um “antimonumento” a União Européia enquanto unidade à primeira vista includente, composta por 15 nações distintas, mas que é também fronteira excludente para outras globais. A idéia consiste-se em construir um mapa da Europa em concreto, vazado, na área interna de uma rotatória. Dentro do mapa haveria uma espécie de gramado verde, que ao ser visto de perto, notaria-se que sua composição é de cacos de vidro verde de garrafas de vinho. O gramado representaria a impressão de bem-estar social mas que na verdade é uma realidade agressiva, refletindo a opressão do projeto Europeu principalmente no tocante às políticas de imigração: “Do ‘verde’, que vulgarmente
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associamos a um sentimento de esperança, surge a denúncia de um território apelativo mas paradoxalmente inacessível para muitos” (BANDEIRA, 2001). A circulação de automóveis ao redor da rotatória também enfatiza essa inacessibilidade. Figura 14: Europa numa rotunda (2001).
Fonte: Pedro Bandeira. Disponível em < http://www.pedrobandeira.info/>. Acesso em 30 de maio de 2015.
Através de uma abordagem provocativa que, não necessariamente soluciona questões tipicamente resolvidas através da arquitetura, Bandeira consegue atribuir reflexão e humor à atividade do arquiteto. E, a partir desse desvio de uma perspectiva comum de resolução de problemas, suscita levantamentos acerca de outras questões que envolvem o estabelecimento de territórios, sejam elas políticas, como no caso de Europa numa rotunda, ou turísticas, como a relocação da ponte D. Maria Pia. Sucintamente, considera-se que o trabalho dos grupos citados neste capítulo tem em comum a discussão não só da arquitetura mas também da produção espacial urbana, baseada em uma percepção crítica das ordens hegemônicas vigentes em seus contextos históricos. A construção da arquitetura não é mais importante para esses grupos do que o debate que essa pode fomentar: “arquitetura não precisa ser”, conforme enunciou o Archigram em sua revista no. 09 (In: Sadler, 2005; apud Kamimura, 2009, p. 06). Por que todos os grupos aqui citados surgiram a partir da segunda metade do século XX, relacionam-se com a sociedade de consumidores em ascensão à essa época e vigente ainda hoje (sobre a qual o segundo capítulo traz uma discussão mais aprofundada). Então, uma discussão sobre a produção espacial e a atividade do arquiteto e planejador urbano é ampliada para uma esfera mais abrangente, a qual diz respeito à sociedade e a ordens arraigadas ao seu funcionamento.
c a pĂ t ul o02
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CAPÍTULO 02 – JUNKSPACE TROPICAL O fenômeno da globalização, baseado no avanço do meio técnico-científico informacional, possibilita o surgimento de redes mundiais as quais estipulam tendências, mercados e influenciam os desejos humanos. As cidades, inseridas nesse contexto, passam a engendrar mecanismos de produção, inclusive espacial, de maneira similar. Dessa forma, torna-se coerente entender e relacionar realidades urbanas distintas, pois essas conectam-se a partir da lógica global de mercados, a qual chega a sobrepor-se perante características de ordem histórica, social, e econômica de cada região. Neste capítulo pretende-se analisar as transformações urbanas recentes de Natal (a capital de um dos estados do Nordeste brasileiro, em uma realidade latino-americana e que opera em sistemas entendidos como “capitalismo tardio” e “economia em desenvolvimento”) a partir do conceito de Junkspace (espaço-lixo) – criado por um arquiteto holandês, que estudou na Inglaterra mas que publicou o texto sobre espaços-lixo a partir de um workshop realizado nos Estados Unidos. Ler a cidade de uma maneira generalista, a partir da conceituação Junkspace, significa analisá-la a partir de circunstâncias próprias do tempo histórico em que vivemos, conforme será discutido na primeira parte deste capítulo. Adiante, segue-se uma catalogação de exemplos da produção espacial de Natal categorizados como Junkspace, ademais de uma interpretação desses espaços a partir da relação com o ambiente urbano da cidade. Assim, este capítulo apresenta uma visão sobre o desenvolvimento urbano de Natal decorrente de uma produção espacial que se relaciona com mecanismos políticos, econômicos e sociais próprios da atualidade.
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2.1 Junkspace: uma discussão sobre o conceito O texto “Junkspace” foi publicado originalmente em 2001 no livro Guide to shopping (Guia de compras [tradução livre]), o qual refere-se ao resultado de um workshop dado por Rem Koolhaas na escola de design da universidade de Harvard, Estados Unidos. Essa publicação reporta-se ao fenômeno de propagação de shopping centers pelo mundo principalmente a partir da década de 1960, e quais as consequências e relações disso com os processos de globalização e pós-modernidade dos dias atuais. Ademais, o Guia apresenta ideias que demonstram como uma “lógica shopping”, a qual tem a privatização e o consumismo como motores de desenvolvimento da sociedade, atua nos processos de transformação de espaços públicos e privados e na produção espacial dos lugares onde a vida pública acontece (ou deixa de acontecer). Figura 15: Imagens de "Guide do shopping", Taschen, 2001.
Fonte: Adam Photo. Disponível em < http://adamphotogallery.com>. Acesso em 01 de junho de 2015.
O ensaio de Koolhaas descreve o que ele entende como “produto construído da modernização” (Koolhaas, 2002, p.175 [tradução livre]). Diferente de arquitetura moderna, a qual possuia uma ideologia própria, a condição de espaço-lixo não diz respeito a princípios específicos, mas conceitua a materialização dos processos necessários à manutenção e crescimento da ordem hegemônica atual – os principais mecanismos que norteiam o desenvolvimento da sociedade - através da arquitetura.
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Como uma primeira aproximação aos esforços de definição, o termo Junkspace pode dar significado a toda produção espacial em que é possível perceber a materialização da política do lucro pelo lucro, das alianças entre empreendedores que prejudicam o bem estar social coletivo, da monetarização de qualquer espaço que possa gerar sobretudo renda aos seus responsáveis. No entanto, Junkspace não é produzido somente por instâncias privadas, e abrange uma variedade de estruturas físicas e funcionais também promovidos por setores de gerenciamento público. Dessa maneira, qualifica múltiplas características arquitetônicas, que inclusive podem ser contraditórias entre si. Essas características encontram coerência no ícone do junkspace (ou espaço-lixo), por que esse é sobretudo político, referente a complexidade das cidades e do tempo histórico atual. Para Rafael Moneo: “Koolhaas está interessado em exibir os resultados formais quando perdemos o respeito pelas linguagens e normas convencionais e atendemos às forças autênticas que modelam o mundo moderno: a tecnologia e a economia” (2008, p. 284). Assim, o Junkspace definiria, com toda sua amplitude, a arquitetura emblemática desse começo de século. Sobretudo, essa classificação retrata uma produção espacial que vai além tanto de preceitos funcionais e estéticos como de uma crítica à estandardização das cidades devido aos processos de globalização e pós-modernização. De fato, o texto original não apresenta qualquer panfletagem a favor ou contra os espaços-lixo, mas um caráter dúbio de apresentação dessa categoria, que flutua entre celebração e crítica. Fredric Jameson defende que o junkspace é a “nova linguagem do espaço que se comunica através do auto-replicamento”, e que “o espaço se torna o código dominante ou a linguagem hegemônica deste momento histórico”. (JAMESON, 2003). Junkspace, portanto, só pode ser entendido a partir de uma leitura da produção espacial indissociada de seus contextos social, econômico e político. O termo é bastante vasto, exatamente por referir-se a fatores mais subjetivos como a cultura, a economia e o poder. Sob uma certa interpretação, poderia mais confundir do que explicar qualquer coisa; no entanto, para este trabalho sua discussão limita-se a produção de espaços na contemporaneidade, mais exatamente nos últimos 15 anos (também em coerência com a data publicação do texto original), e que correspondam a composições arquitetônicas e de estruturação urbana de qualquer cidade que sobrepujem qualquer outro valor ideológico em prol de princípios próprios de
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desenvolvimento do sistema capitalista neo-liberal – uma visão construída a partir da análise de críticas de diversos autores sobre o texto de Koolhaas. Destarte, entende-se que Junkspace, em sua amplitude de significado, é a expressão de uma nova espacialidade e realidade urbana. É produzido, portanto, não só por investidores privados do setor imobiliário, mas também pelas instâncias governamentais devido ou a uma frouxidão do cumprimento de suas regulamentações ou a políticas públicas de ordenamento de território e estruturação urbana que não são adequadas a uma democratização do espaço da cidade. Diferencia-se ideologicamente do urbanismo modernista, o qual baseava-se no zoneamento de funções e fluxos em um dado local e que, em linhas gerais, tinha em sua concepção uma forte relação com questões sociais de vivência urbana. Por ser uma categoria que vai além de preceitos funcionais, estéticos, sociais, ou próprios da disciplina arquitetônica, a produção de espaços-lixo não possui parâmetros formais bem estipulados. Conforme é descrito por Koolhaas, é uma “tipologia do amorfo” e, no entanto, “uma tipologia do amorfo é ainda uma tipologia” (2002, p.179). A proliferação do amorfo, retratada pelo arquiteto, é explicada por Jameson como um reflexo da intolerância à regras, regulamentos e protocolos, o que gera uma arquitetura que é simultaneamente “promíscua e repressiva” (Koolhaas, 2002, p.183). O Junkspace é um triângulo das Bermudas de conceitos, uma placa de petri abandonada: ele cancela distinções, solapa resoluções e confunde intenção com realização; substitui a hierarquia pela acumulação, a composição pela adição. Mais e mais, mais é mais. O “espaço-lixo” é, ao mesmo tempo, maduro demais e subnutrido, um colossal cobertor de segurança que cobre a Terra com uma barreira de proteção intransponível... O “espaço- lixo” é como estar perpetuamente condenado a uma Jacuzzi com milhões dos seus melhores amigos... Um felpudo império de manchas, no qual unificam-se o alto e o baixo, o público e o privado, o reto e o curvado, o estufado e o faminto, para oferecer uma descosturada colcha de retalhos do permanentemente desagregado (Koolhaas, 2002, p. 176).
Contextualmente, o surgimento de espaços-lixo responde a processos iniciados na metade do século XX, em consonância com transformações sociais que levaram ao fortalecimento de uma “sociedade de consumo”. O fim da 2a. Guerra mundial e a subsequente ascensão de vendas de artigos de luxo principalmente em países de 1o. mundo (em contraponto ao período anterior em que o comércio limitava-se a produtos essenciais para a subsistência social) são apontados por Jameson como motivos para uma mudança na
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orientação ideológica da mercantilização da sociedade, e para o início da concepção da realidade que ainda vivemos e que se constrói hoje. Figura 16: Tirinha da série “A longa noite de Elbert”.
Fonte: André Dahmer – Malvados. Disponível em <http://www.andredahmer.com.br/>. Acesso em 02 de junho de 2015.
A realidade urbana atual relaciona-se, portanto, a uma ruptura social que é citada por Zygmunt Bauman como decorrente de uma “revolução consumista”. Tal expressão refere-se a passagem da atividade de “consumo” enquanto forma de suprimento de matériaprima e bens essenciais à manutenção da vida, ao fenômeno do “consumismo”, o qual é um atributo da sociedade, uma característica que norteia seu desenvolvimento. Esse atributo foi adquirido quando o consumo tornou-se “o verdadeiro propósito da existência” e quando “nossa capacidade de ‘querer’, ‘desejar’, ‘ansiar’, e particularmente de experimentar tais emoções de fato passou a sustentar a economia” (Campbell apud Balman, 2007, p. 38). Portanto, a sociedade consumista é aquela que tem o consumo como atividade fundamental para sua forma específica de convívio humano, a qual estabelece parâmetros e estratégias de vida e que manipula as possibilidades de escolha e conduta individuais. Anteriormente, o trabalho assumia esse papel de atividade fundamental, o qual caracterizava a chamada “sociedade de produtores”. Diante dessa conjuntura, é criado o shopping center conforme o conhecemos hoje: enclausurado e condicionado artificialmente (por Victor Gruen em 1956, no estado de Minnesota, EUA). Sua origem responde ao crescimento do acesso ao automóvel particular e dos subúrbios de classe média nos Estados Unidos, o que foi tido como “uma oportunidade de corrigir os problemas do centro das cidades por meio de ambientes saudáveis e felizes que acomodassem os automóveis com facilidade” (GHIRARDO, 2002, p.73). Os shoppings são chamados por Diane Ghirardo de “projeto antiurbano” (2002, p.73), e constituem um emblema das cidades de consumismo resultantes da transformação da sociedade consequente ao processo de mercantilização, o qual ocorreu mais intensamente
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desde meados da década de 1950. Oferecem uma grande variedade de eventos culturais, cívicos, recreativos – tudo dentro do âmbito do consumo. Simulam em seus interiores um espaço urbano, com uma praça central e passeios laterais ancorados por lojas menores em suas longitudes e de grande porte nas suas extremidades. Também entre as décadas de 50 e 60, surge e ganha força o grupo “Internacional Situacionista”, o qual promove um importante debate sobre a mercantilização crescente dos processos sociais e urbanos. Liderados por Guy Debórd, os Situacionistas tem seu arcabouço intelectual desenvolvido a partir da perspectiva de que “a imagem é a forma final da fetichização da mercadoria” (DEBÓRD, 2003, p.21). A fetichização corresponde a importância da vivência dos sentimentos de “querer”, “ansiar”, “desejar” para a sociedade consumista, e a ressonância ampla dessa importância nos âmbitos econômico e social. A imagem, por sua vez, designa a representação do capital, sua forma de aparição, e é ela que media as relações sociais da sociedade do consumo. O valor ou significado de objetos, situações e relações nessa sociedade reside não na coisa em si, mas nas suas representações – pode se inferir que o junkspace, portanto, enquanto emblema da sociedade contemporânea, é a imagem espacial, urbana, dessa fase atual do sistema capitalista do século XXI. Figura 17: Fachada do shopping Midway Mall.
Fonte: Ar Clima. Disponível em < http://arclima.com.br>. Acesso em 01 de junho de 2015.
Dessa maneira, se a representação do capital é o meio por onde ocorrem as relações sociais, então a mediação dessas relações - que é feita através de imagens – ocorre de forma indireta, distanciada do objeto enquanto ele próprio. Essa mediação estabelecida através das representações é definida como “espetáculo” por Debórd, pois a experiência direta de vida é
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substiituída por sua imagem, o que posiciona as pessoas como espectadores de suas próprias atividades e relações. O que Debórd tem em vista sob o conceito de imagem são as relações sociais fetichistas, fundadas na autonomização do valor e estendidas à totalidade do uso social do tempo, do espaço, para além do trabalho assalariado, mas essencialmente obedecendo à sua lógica disciplinar e contemplativa. As imagens e representações que, no espetáculo, substituem o diretamente vivido são, antes de tudo, uma forma de relação social nas quais os indivíduos, que nela se relacionam, se posicionam efetivamente como espectadores contemplativos em e de suas próprias atividades e relações genéricas (AQUINO, João Emiliano Fortaleza, 2007).
De acordo com esse raciocínio, o shopping center, por exemplo, é atraente para a sociedade consumista não apenas por possibilitar uma realidade distante do esvaziamento dos centros das cidades e da fomentada sensação de insegurança relacionada à vivência nos espaços públicos. Esse tipo de edifício possibilita em um único local o uso de mecanismos de controle, vigilância e espetáculo (GHIRARDO, 2002, p.72), promovendo trocas sociais que, amparadas pelo consumo, são construídas a partir de representações de valores sociais e culturais – Junkspace, portanto. Outro aspecto importante da sociedade de consumidores é relativo ao tempo. Bauman explica que nossa sociedade está imersa em uma “cultura agorista”, a qual associa a felicidade à “um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinado a satisfazê-la” (BAUMAN, 2007, p. 44). Desejos e necessidades exigem novas mercadorias, as quais determinam novas necessidades e desejos, em um moto perpétuo de obsolescência. Bastante resumidamente, o tempo histórico em que vivemos é chamado de “modernidade líquida” pelo autor citado anteriormente exatamente pela relação que a sociedade de consumidores tem com o tempo: esse agora não é linear ou cíclico, mas descontínuo, fragmentado, “tempo de possibilidades, aleatório, aberto em qualquer momento ao imprevisível romper de novo” (BAUMAN, 2007, p.47). O texto de Koolhaas, desde o seu conteúdo até sua forma quebradiça, interrompida constantemente por pontos e reticências, é análogo ao tempo pontilhado citado por Bauman como característica da sociedade de consumidores. Diferente da sociedade anterior, a de produtores – a qual viu, de maneira coerente à sua busca por solidez social, o surgimento e a consolidação do movimento modernista da arquitetura - a sociedade consumista não poderia ter como linguagem espacial um código baseado em racionalidade, regularidade,
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ordenamento e durabilidade. Os valores contemporâneos não se relacionam com aspectos da solidez, e por isso o junkspace é o espaço da cultura do “agorismo”: “Toda a materialização é provisória: cortar, dobrar, separar, revestir: a construção adquiriu um novo suavidade, como a alfaiataria“ (KOOLHAAS, 2002, p.178). ”É a (re)produção do espaço: “restaurar, reorganizar, reagrupar, renovar, revisar, rever, recuperar, redesenhar, retornar” (KOOLHAAS, 2002, p.183). Então, conforme explanado por Bauman, infere-se que, a partir do processo de mercantilização da sociedade e sua dependência da perpetuação do consumismo, originou-se um novo estilo de vida. O espaço-lixo, por conseguinte, é construído para a materialização do imaginário de valores da sociedade que segue aquele modo de viver, que surgiu em meados da década de 1950, e sua produção espacial corresponde, como foi defendido por Debórd, ao “cenário do capitalismo” (2003, p.110). Com a compreensão de aspectos da sociedade pós-moderna, a qual configura-se a partir da expansão da elaboração de subjetividades, imagens e representações, depreende-se que a materialização e produção espacial, atualmente, não corresponde necessariamente à solução real de questões ou a um crescimento econômico da sociedade como um todo. Antes, entende-se que a produção espacial e a arquitetura contemporâneas desenvolvem-se a partir da construção de espaços baseados em imagens de e para o consumo. Por assumir a amplitude de representações do capital e suas inúmeras materializações na sociedade pós-moderna, o termo Junkspace é confuso, dúbio, e parece referir-se a tudo. De fato, Koolhaas faz citações em referência tanto a aeroportos e a projetos de restauração arquitetônica, como também a língua inglesa e ao corpo humano alterado por cirurgia plástica. O espaço não apenas como o da cidade, mas como o do ser humano – e por isso inclui seu próprio corpo. Ainda assim, o cerne do significado de Junkspace é da matéria da arquitetura e suas produções, e, porque o texto debruça-se especificamente sobre a produção espacial atual, cabe interpretá-lo sob à luz dos contextos social, econômico, político e global, em que cada território se insere.
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2.2 Junkspace em Natal a) A INVASÃO DO JUNKSPACE A redação de Koolhaas é composta de várias frases curtas e descritivas que definem de múltiplas maneiras, inclusive de forma conflituosa, o termo Junkspace. De acordo com o universo de estudo deste trabalho, a expressão do Junkspace aqui constatada limita-se à suas expressões urbanas e espaciais – o texto original aplica o conceito a outros meios, como o corpo humano. À vista disso, se faz necessária uma síntese das várias descrições encontradas no texto, as quais serão demonstradas adiante, a partir de exemplos da produção espacial da cidade de Natal. Portanto, a teorização de Koolhaas acerca da produção espacial da sociedade de consumo foi tomada, para fins de argumentação, como uma categoria a ser interpretada de acordo com a realidade urbana local. A pertinência dessa discussão para a realidade de Natal advém de um esforço de entendimento sobre as transformações recentes que a ordem urbana da cidade vem passando. Dessa maneira, infere-se que a produção espacial alavancada por medidas governamentais a partir de meados dos anos 2000, sobre a qual é possível notar principalmente um boom imobiliário habitacional e de serviços, além de diversas obras de estruturação urbana, é, possivelmente, Junkspace. Essa dedução relaciona-se ao forte componente econômico propulsor do desenvolvimento dessas transformações, as quais refletem ambições e desejos próprios ao tempo histórico atual pois, em linhas gerais, respondem a necessidades urbanas contemporâneas com soluções possibilitadas por processos de privatização ou construção de espaços segregadores. Diante dessas alterações da ordem urbana, é importante salientar que as imagens que definem a produção espacial de um dado local são administradas pelo imaginário e pela imaginação urbanos, os quais detém-se sobre representações de interesse da sociedade que ali vive. Por “imaginário”, entende-se “a representação da sociedade através da cidade” – uma reflexão cultural sobre a cidade; e, por “imaginação”, refere-se a uma reflexão político-técnica sobre “como a cidade deve ser” – tema de debates de projetistas, planejadores e gestores urbanos (GORELIK, Adrian, p.261, 2004). As representações simultâneas desses imaginários e imaginações, os quais “criam realidade urbana e essa reforça a representação de um ideal de nação” (GORELIK, p.262),
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norteiam o desenvolvimento urbano tanto formal quanto o informal. Os fenômenos sociais, entre eles a produção espacial da sociedade, são promovidos pela representação de valores próprios dessa mesma estrutura – espetáculos, conforme definição da Internacional Situacionista – quer sejam esses produtos do pensamento técnico-formal projetivo, ou de ações informais dessa sociedade. A cultura urbana, então, apóia o processo de estruturação de cidades capitalistas na pós-modernidade, de acordo com seu imaginário e imaginação. Natal, inserida em uma dinâmica global com características de desenvolvimento próximas a uma realidade geral latino-americana, reproduz uma imaginário próprio de cidades incluídas em uma categorização atual de “em desenvolvimento” (o que define muito mais uma condição sólida do que uma fase de onde é possível ascender ao desenvolvimento pleno). Conforme explicado por Marlo Trejos Hampf, Na América Latina, o crescimento das cidades nas duas últimas décadas debateuse entre o Urbanismo Espontâneo de habitats autoconstruídos nas zonas marginais, interstícios e áreas abandonadas das cidades planejadas; e uma Arquitetura de Mercado, dedicada à busca de nichos de mercado. A Arquitetura de Mercado é o resultado do que Michael Foucault entende como “técnicas de controle dos impulsos e canalização dos desejos em direção ao ciclo produçãoconsumo”. A tabulação e organização desse desejo é feita por corretores de imóveis que se servem de aparelhos midiáticos para moldar as imagens e desejos da cultura de massas no que diz respeito à arquitetura. Nesse sentido, a habitação é o produto por excelência, porém, este fenômeno afeta também o espaço urbano sujeito a novos rituais comerciais e lúdicos (HAMPF, 2004).
Assim, condomínios fechados, centros comerciais, de lazer e serviços são potencialmente Junkspace, o que pode ser confirmado caso a características físicas desses edifícios e sua relação com o meio urbano correspondam sobretudo à supremacia de fatores econômicos e à imagem da importância desses fatores para as relações dentro da cidade. A arquitetura de mercado, portanto, gera espaços que, produzidos com elementos que representam sentimentos de saúde social, como segurança, limpeza, beleza, lazer – tudo possível através do consumo – mas que, de fato, não correspondem à realidade urbana. Conforme descrito por Koolhaas: “O Junkspace pretende unir, mas, na verdade, separa. Ele cria comunidades não baseadas no interesse comum ou na livre associação, mas em estatísticas idênticas, em demografias inevitáveis: uma tessitura oportunista de interesses encobertos” (Koolhaas, 2002, p.183). Os elementos que promovem a sensação de saúde social são reproduzidos espacialmente em qualquer região da cidade, como áreas de lazer, arborização interna à condomínios fechados, estruturas para recreação, bem como os elementos que promovem o
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sentimento de segurança social, alcançado pelo uso de muros, grades, cercas elétricas, dispositivos de vigilância, etc. Reproduz-se também imagens tidas como símbolos de riqueza e status: edifícios cada vez mais altos (que remetem aos arranha-céus, em contraponto às edificações térreas mais próximas de uma arquitetura vernácula e que exige menos tecnologias de ponta para sua produção); materiais como vidros, espelhos, metais polidos, pedras importadas (que requerem um maior dispêndio de energia e dinheiro para sua fabricação, e/ou transporte); grandes áreas para a locomoção e proteção de automóveis particulares – rodovias, estacionamentos, viadutos, pontes, túneis (em contraste ao mais bem distribuído uso de território por transportes de massa, bem como a todas as implicações mais onerosas relativas à ocupação de áreas cada vez maiores para a manutenção de ferramentas que valorizam o que é exclusivo em contraponto ao que é coletivo). Produz-se, dessa maneira, um cenário do consumismo próprio à realidade da cidade. Figura 18: Tirinha da série "Palestra sobre os novos tempos".
Fonte: André Dahmer – Malvados. Disponível em <http://www.andredahmer.com.br/>. Acesso em 02 de junho de 2015.
Considera-se junkspace a produção espacial aqui encontrada que se dá em detrimento da construção de soluções reais para as questões urbanas, soluções que alterem a ordem da cidade em prol de espaços mais inclusivos e não baseados em valores sociais que oferecem serviços dependentes do poder de compra ou do valor representativo da esfera social de cada indivíduo. Espaços que são acessíveis através do consumo do território, de produtos ou serviços, ambientes controlados por vigilância e com regulação de atividades e pessoas que os utilizam, em substituição à vivências da esfera pública e à resolução real de questões sociais. Espaços do espetáculo, conforme explicam os Situacionistas, onde as relações entre as pessoas e o ambiente são indiretas, mediadas pela imagem. “No fim, haverá pouca coisa a se fazer além de comprar.” Será que isso não revela uma extraordinária expansão do desejo em todo o planeta e uma instância existencial totalmente nova daqueles que podem pagar por isso e que, agora, há muito familiarizados tanto com a vida esvaziada de sentido quanto com a impossibilidade de satisfação, constroem um estilo de vida em que uma nova e
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específica organização do desejo oferece tão-somente o consumo dessa impossibilidade e dessa ausência de sentido? De fato, talvez esse seja o momento propício para retornarmos ao delta do Rio das Pérolas e ao socialismo pósmoderno de Deng Xiaoping, no qual “ficar rico” não significa, na verdade, ganhar dinheiro, mas, sim, construir imensos shopping-centers — o segredo deles está no fato de que o “ir às compras” não exige que você compre, e que a forma do shopping é uma performance que pode ser realizada sem dinheiro, desde que os espaços adequados a ela, em outras palavras, o “espaço-lixo”, tenham sido providenciados (JAMESON, 2003, p. 17).
O junkspace, portanto, refere-se à estruturas que dão lugar a características específicas do estilo de vida da sociedade de consumidores. O espraiamento da malha urbana Natalense, a exploração do solo de forma desequilibrada em relação à questões sociais e ambientais e o parco investimento em estruturas que promovam a convivência em uma esfera pública e não-privatizada referem-se, portanto, a uma produção espacial que pode ser categorizada de acordo com o conceito de Koolhaas - o que será demonstrado a seguir, na catalogação de exemplares encontrados na cidade – bem como traçar conjunturas sobre essa leitura.
b) A PRODUÇÃO DA PAISAGEM “ESPAÇO-LIXO” A paisagem urbana de Natal oferece elementos importantes para a compreensão de que a ordem urbana vem passando por transformações recentes. Sendo “paisagem” um termo amplamente discutido por diversos campos teóricos, o aporte necessário para a compreensão da leitura desse termo neste trabalho situa-se no entendimento de que a paisagem é formada pela ação do homem e de forças da natureza no meio ambiente, em diversos tempos históricos; esses diferentes momentos coexistem na paisagem atual, e proporcionam uma funcionalidade à ela, “a paisagem é história congelada, mas participa da história viva. São as suas formas que realizam, no espaço, as funções sociais. Assim, pode-se falar, com toda legitimidade, de um funcionamento da paisagem” (SANTOS apud NOBRE, 2001, p. 24). De forma genérica, observa-se que em Natal há uma crescente ocupação do horizonte pelo aumento de edifícios verticalizados e a elevação e o rebaixamento de níveis do solo para a construção de projetos de infraestrutura urbana, por exemplo – os quais são características fáceis de perceber dentre um conjunto de aspectos que compõem o processo de modificação
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espacial pelo qual a cidade vem passando. Conforme explica o arquiteto e professor Paulo Nobre: O processo de produção do solo urbano dá-se pela intervenção de diversos agentes, que podem ser públicos ou privados. O Estado é o agente público, que normalmente promove a instalação da infra-estrutura urbana. Os agentes privados são os empreendedores imobiliários, entre outros, que empregam seu capital, principalmente, na construção e comercialização de moradias. Assim, uma cidade é produzida, usada e administrada por esses agentes, públicos e privados. Para equacionar os diversos interesses envolvidos nesse processo, na maioria das vezes conflitantes, o poder público procura controlar e fiscalizar o uso e a ocupação do solo. Regras são estabelecidas através da legislação urbanística, com o objetivo de assegurar o prevalecimento dos interesses coletivos sobre os particulares. (NOBRE, 2001, p.38/39).
Existe, portanto, uma dinâmica complexa que está a construir o espaço urbano de Natal e que acontece em uma escala que altera a ordem urbana da cidade. Tratam-se tanto de obras de infra-estrutura pública quanto de empreendimentos de investidores particulares, que acabam por atingir nosso dia-a-dia por estruturar caminhos, maneiras de obter serviços e de habitar – mesmo que essas vivências sejam propiciadas a partir da não-construção, do esquecimento, do abandono ou do negligenciamento de partes do espaço. As cidades receberam amplos contingentes de migrantes (nacionais e intraestaduais); a população mudou seu perfil de preponderantemente rural para urbana; suas atividades sociais e econômicas cresceram e se tornaram cada vez mais dinâmicas e complexas (notadamente nas metrópoles e nas cidades maiores); a população urbana experimentou transformações significativas em sua qualidade de vida e em seus valores, atitudes, motivações, aptidões e aspirações. No entanto, todo esse relevante processo sociocultural e socioespacial (e urbanístico) mostrou aspectos colidentes: a ocupação territorial operou contra a natureza, a produção foi depredadora e contaminante, a qualidade de vida tornouse precária para muitos, a segregação residencial intensificou-se no interior das cidades e a vida na cidade começou a entravar-se, na medida em que se agravaram os problemas urbanos de transporte, segurança, moradia e tantos outros. A tudo isso, agregam-se os efeitos adversos da globalização, o recrudescimento e “agudização” das falências político-eleitorais e político -administrativas que vêm afetando o país historicamente. Cabe destacar a insuficiente capacidade de gestão, o pouco espírito público dos governantes, a ausência de vontade política direcionada para a solução dos problemas urbanos, o escasso compromisso com a cidade e seu futuro e, em muitas situações, o descaso e até a corrupção. (CLEMENTINO; FERREIRA, 2015, p. 20).
Dessa dinâmica, incorpora-se a este trabalho especialmente as transformações espaciais trazidas pelos investidores privados. Muitos desses empreendimentos do âmbito da construção civil se apoiam em preencher lacunas existentes na esfera pública da cidade, oferecendo sonhos, desejos, pretensos modos de vida que prometem a realização ou
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melhoramento de uma série de desejos coletivos, como: segurança frente ao índice crescente de violência; conforto e lazer controlados frente à qualquer estranho e potencial indesejado devido a área privada. Entretanto, também são demonstrados Junkspace produzido pelas instâncias governamentais, caso as estruturas sobrepujem os aspectos dessa categoria tanto quanto a especulação imobiliária por empresários. A inserção desses edifícios na cidade acaba por transformar o espaço urbano, que é (ou deveria ser) coletivo. A proteção privada de alguns cerceia outros, bem como os acessos de automóveis e pessoas delimitam fluxos e suas infraestruturas no espaço público circundante ao edifício. A colocação de jardins, esculturas e logotipos na paisagem urbana dos investidores de cada empreendimento, então, reforça a exclusividade e a separação ensejada por cada um desses edifícios, sinalizando a demarcação de territórios na cidade. Dessa maneira, o local onde a vida pública deve acontecer acaba por ser definido em boa parte pelo espaço entre os edifícios ou estruturas promovidas pelos investimentos do capital privado da construção civil. Além de desenhar o caminhar, o estar em área pública, os edifícios da especulação imobiliária também desenham a paisagem urbana, os horizontes que percebemos enquanto vivenciamos a cidade. A paisagem natural, comum a todos, também é construída a partir de interesses que não respondem à noção de bem comum ou à busca pela real soluções de problemas urbanos. Em uma dinâmica característica da cidade capitalista, do espaço onde vive a sociedade de consumidores, a produção do espaço urbano corresponde muito à construção de alternativas que mediem questões sociais, mas que não as solucionem por completo. Em Natal, percebe-se que o setor imobiliário possui grande força enquanto definidor do espaço urbano, e que, a partir de seus interesses, procuram articular tais questões com suas próprias mercadorias. Ademais, o sistema político-administrativo possui lacunas que reverberam nas decisões de estruturação e gestão da cidade, com uma visão de planejamento urbano que, muitas vezes influenciada por empresários e pessoas de grande poder político e financeiro, favorece apenas uma parcela da população e não atua de maneira a diminuir distâncias sociais através de uma distribuição espacial e de serviços urbanos equilibradas. Assim, infere-se que a produção espacial que aqui ocorre e que é definida de maneira desequilibrada por investimentos particulares, obedece mais aos interesses dessa classe do que a esferas de discussão que, ainda com muitas fragilidades, tentam articular a cidade como bem comum, reconhecendo os conflitos e os interesses diversos.
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De fato, estamos em um momento em que é fácil se considerar privilegiado por viver nesses espaços privados, sob a luz da promessa de segurança. A especulação imobiliária desenvolve-se a partir da exploração de problemas urbanos típicos a um país subdesenvolvido – ou “em desenvolvimento”, porém nunca completamente “desenvolvido”. Dessa forma, os espaços-lixo de Natal correspondem a um contexto global mas também muito próprio da realidadade sócio-econômica, de forma geral, do Brasil. Diferente de casos citados por Rem Koolhaas no texto “Junkspace” e “Cidade Genérica”, os quais referem-se principalmente à cidades asiáticas e norte-americanas, não chegamos ainda em um nível de planejamento urbano capaz de ordenar espaços seguindo estratégias de desorientação, por exemplo. Aqui, a escassez da produção espacial a partir de um planejamento urbano sólido, centrado em uma ideologia de desenvolvimento de espaços coletivos saudáveis para todos – ou que forneçam a mesma condição, qualquer que seja ela, para todos - é que possibilita a sobreposição de interesses privados sobre os públicos. Assim, em um contexto urbano sem nenhuma uniformidade, que possui lacunas básicas de serviços fundamentais a uma estabilidade social coletiva, se dá a proliferação de uma comunidade que vê a sua própria exclusão de uma vida na esfera pública como fator essencial para a sobrevivência. As construtoras e os empresários do setor imobiliário, então, encontram um terreno fértil para o lucro baseado na promessa de supressão das necessidades básicas em falta: segurança e lazer. Nada, no entanto, foi planejado em conjunto. Os prédios são projetos que não foram pensados para fazer sentido com o local onde se inserem, mas para que seus construtores lucrem. O espaço público, como um negativo dessa produção baseada na corrida da monetização individualista, se torna inóspito. A proliferação de uma arquitetura que visa sobretudo a obtenção de maiores lucros para investidores particulares bem como de uma estruturação urbana excludente, configuram uma nova imagem urbana da cidade, em constante atualização. “Natal sempre nova”, tem seu junkspace tropical não porque esse segue uma tipologia adequada as características ambientais da cidade, mas porque, querendo se modernizar, deixa à mostra o poder hegemônico que modela o lugar que vivemos, limitando nossas vivências: “A saber, modernizar não significa inovar socialmente com equidade, mas antes entulhar as cidades com obras que as façam parecer modernas, primeiro passo indispensável para as tornar rentáveis”(ARANTES, Otília. 2000, p. 63-64).
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As arquiteturas da especulação imobiliária residencial, dos edifícios comerciais, culturais e de serviço e do planejamento urbano sem visão democrática, portanto, representam uma parte importante da compreensão da cidade de Natal contemporânea, e por conseguinte, também das questões urbanas que permeiam o espaço público e nossas possibilidades de vivência nele. É um espaço-lixo dos trópicos, sub-equatorial, subdesenvolvido e que não é construído com as ou a partir das ferramentas para se chegar ao desenvolvimento. Portanto, depreende-se que existem três categorias principais a se observar, de maneira generalizada, no espaço construído da cidade. A primeira dessas categorias corresponde a uma interpretação dos fenômenos de transformação da ordem urbana a partir do debate do significado de Junkspace, à luz do desenvolvimento do capital em nossa realidade econômica e social: é a arquitetura de mercado, feita por construtoras e investidores, que visa a obtenção de lucro de maneira a subverter noções de saúde social e promover uma maior exclusão e aumento de problemas urbanos. A segunda categoria refere-se aos elementos de estruturação urbana que são produzidos pelo Estado, e que modificam a cidade em um a ordem consonante à um planejamento sem visão de futuro, de medidas realmente democráticas que promovam o crescimento e melhoramento urbano de maneira a incentivar a inclusão e a atender as necessidades básicas de todas as esferas da população. A terceira categoria, por fim, diz respeito aos shopping centers e centros comerciais e de serviços, que substituem o espaço cívico por edifícios financiados pela iniciativa privada e que são acessados por quem também tem o poder financeiro ou social de consumi-los. Essas estruturas existem de maneira a suprir os lugares que, antigamente, ofereciam o aparato para a vida pública ou para a fruição de serviços básicos, os quais deveriam ser assegurados de maneira democrática, como os de saúde. Admite-se, então, que a noção de espaço-lixo adequa-se bem aos empreendimentos próprios da especulação imobiliária e as grandes obras de estruturação urbana construídas recentemente na cidade, assim como as opções de lazer em ambientes controlados e monitorados – todos os três baseados mais na solução temporária e aparente de problemas (sociais, urbanos, pessoais). O junkspace é, para a produção espacial desse século, um fenômeno geral em Natal, o qual eclode nos pontos mais diversos da cidade, para diversas classes sociais.
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c) POSSÍVEIS ARTICULAÇÕES ENTRE IMAGEM E TEXTO Adiante, associam-se imagens de parte da produção espacial junkspace encontradas no universo de estudo desse trabalho, articuladas com trechos do texto original de Rem Koolhaas. Soma-se à isso, nas páginas em papel fosco, críticas específicas às categorias determinadas anteriormente, de maneira a elucidar os motivos de relação entre o conceito apresentado pelo arquiteto holândes e nossa paisagem urbana.
CATEGORI A01-OSNOVOSEDI FÍ CI OSRES I DENCI AI SVERTI CAI S Not a s eumpa dr ã odea r qui t e t ur ar e s i de nc i a l v e r t i c a l queémul t i pl i c a dopr i nc i pa l me nt ena sr e g i õe s pe r i f é r i c a sdac i da de ,e má r e a sdee x pa ns ã odot e c i dour ba no .Es s epa dr ã oc or r e s pondeae di f í c i os c ons t r uí dospa r as upl a nt a raof e r t ademor a di aàumapa r c e l adome r c a doquef oif or t a l e c i dac om o s ur g i me nt odanov ac l a s s e“ C” , eque , me s moe m de c a i me nt oa t ua l me nt e , t a mbé m éc ons e quê nc i ado boom dac ons t r uç ã oc i v i l oc or r i done s s ei ní c i odes é c ul o . Apr oduç ã oe s pa c i a l ba s e a dapr i nc i pa l me nt ee mf a t or e ser e s pos t a se c onômi c a s , e nt ã o, e nc ont r aum l ug a rf é r t i l a os e upr og r e s s onoc r e s c i me nt odeopor t uni da de sa oa c e s s oàmor a di apr ópr i ae , c onc omi t a nt e me nt e , naf a c i l i t a ç ã odode s e nv ol v i me nt odee mpr e s a sdor a modac ons t r uç ã oc i v i l a poi a dape l o Es t a do . Log o, s ur g eum c a mpopr ol íc opa r aapr opa g a ç ã odee s pa ç os l i x o, c a s oa sopor t uni da de snã o be ba m deout r a sf ont e squeul t r a pa s s e ma sne c e s s i da de sev ont a de sv ol t a da sa ol uc r ope l ol uc r odos i nv e s t i dor e see mpr e i t e i r os . Ent e nde rc omooe s t a be l e c i me nt ode s s e se di f í c i osi nt e r f e r enav i daur ba napr omov eumadi s c us s ã o c onj e c t ur a l s obr eose s pa ç ospr oduz i dose mNa t a l , ec omoe s s e si nt e r f e r e me mnos s osmodosdev i da . Porc ons e g ui nt e ,f or a me l e nc a dosc r i t é r i osdeobs e r v a ç ã oba s e a dosnac ompos i ç ã odose mpr e e ndi me nt os ,nas ua sde ns i da de se mr e l a ç ã oa ome i our ba no,na ss ua sf a c ha da s ,nape r mi s s i v i da deepe r me a bi l i da dea oe s pa ç opúbl i c oenae x i s t ê nc i adeí c one s ,t ót e ns ,c omol og ot i posee s c ul t ur a s ,que a c a ba mpora t ua rc ommúl t i pl oss e nt i dosde nt r odoe s pa ç opr oduz i do . Ent ã o, dar e l a ç ã oc omac i da de , t e mos …
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO A partir do debate estabelecido para o entendimento do conceito Junkspace, e da aplicação desse entendimento na realização de uma leitura do espaço construído de nossa cidade, entende-se que, de fato, tanto a produção espacial quanto diversos problemas urbanos estão relacionados a uma dinâmica do capital que é própria do tempo histórico em que vivemos, posterior a modernidade. Ademais, aproximando essa discussão da cidade de Natal atual, tem-se um esclarecimento elementar acerca das forças hegemônicas que guiam as transformações de grande escala, como a urbana, e que em nosso caso é comandada pelas estratégias econômicas do Estado e de empresários do setor imobiliário. A identificação crítica de elementos do Junkspace em Natal através de uma operacionalização que não corresponde à configurações de listagens ou inventários fez-se necessária devido ao caráter ambíguo e amplo do texto original. Então, para lidar de uma mais próxima da pragmática com um material que é conceitual, optou-se pela reprodução de partes do texto e de uma articulação dessas com imagens e análise de questões existentes na cidade. Por conseguinte, procurou-se construir um caminho para o melhor entendimento sobre como a sociedade de consumidores - Natalense - determina nossos desejos, necessidades e medos, e de que maneira isso reverbera para determinar a produção espacial urbana - a qual acaba por estipular novos desejos, necessidades e medos, alimentando a reprodução cada vez mais indireta e espetacular de produtos - como no movimento de consumo que sempre se renova devido à obsolescência programada, conforme citado por Bauman (2007, p.45).
c a pĂ t ul o03
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CAPÍTULO 03 – ESTRATÉGIAS PARA O JUNKSPACE O exame de produções espaciais sob à luz conceitual do Junkspace suscita uma discussão com outras áreas de conhecimento, conforme o debate delienado ao longo deste trabalho. Dessa maneira, quer a interpretação de espaços-lixo seja afirmativa ou não, a discussão promovida é ampla e não é, necessariamente, um problema a ser resolvido; sobretudo, implica em uma maneira de apreender, em linhas gerais, a realidade urbana, a qual deve continuar a ser explorada. Este capítulo explora, com a técnica da fotomontagem, cenários da vida pública e urbana da cidade de Natal, conforme apontados nos capítulos anteriores. Apresentam-se metáforas sobre aspectos de nossa cidade, em relação seu desenvolvimento, de acordo com as categorias apresentadas no capítulo anterior. Essas metáforas são elaboradas para fomentar um debate argumentativo, um esforço de ilustrar e promover outras idéias sobre Natal estabelecida e que se constrói dia-a-dia. Portanto, objetiva-se demonstrar cenários da produção espacial hegemônica da cidade, e, a partir de interferências imaginativas, de que maneiras essa produção influencia em nossas vidas – como os espaços públicos ou privados, residenciais, comerciais, as ruas e estradas - a estrutura funcional urbana - refletem nossos desejos e necessidades, e também de que maneiras estipulam quais são essas ambições e delimitam modos de vivenciar a cidade. Assim, aproximando-se de recursos de interpretação imagéticos demonstrados no capítulo 01 deste trabalho, produz-se uma narrativa articulada entre texto – o Junkspace e suas reverberações - e imagem, com relações de redundância, colaboração e disjunção entre o conceito discutido e recortes fotográficos de elementos do universo de estudo.
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3.1 Táticas de imaginação A partir da apreeensão da produção espacial da cidade discutida ao longo deste estudo, interpretou-se três categorias principais que definem, em uma dimensão geral, a paisagem urbana: centros comerciais, obras de infra-estrutura urbana, e a produção de arquitetura de mercado – todas as três firmemente baseadas em interesses empresariais, do comércio e do setor imobiliário, ou por medidas do governo que revelam “a falta de um planejamento prospectivo com visão de cidade, de conhecimento ecológico, de dinamismo econômico, e que inclua a solidariedade social” (CLEMENTINO; FERREIRA, 2015, p. 20). O Junkspace, enquanto “destruição dos limites das condições de modernização, agora independentes de forma, estrutura, ou história da arquitetura e da cidade” (MASTRIGLI, 2013, [tradução livre]) é incoerente com a geração de soluções sociais duráveis, e por isso, especialmente quando analisado frente à questões urbanas como o sentimento de insegurança e a alta criminalidade, a segregação, a destruição de elementos importantes à história da cidade, entre outros, colabora para amplificar tais problemas – pois se alicerça em representações, não promovendo caminhos para resoluções duráveis, resilientes, e socialmente democráticas. Junkspace, por significar mais que um termo operacional, também possui conotações as quais provocam nossa imaginação sobre desdobramentos de suas ordens. Por conseguinte, propomos neste trabalho três caminhos para construção de propostas que elucidem o conceito debatido, a partir das categorias demonstradas no capítulo anterior. 1) O primeiro caminho refere-se à extrapolação, ao exagero de aspectos do junkspace tropical: o Super junkspace; 2) O segundo caminho diz respeito à construção de cenários urbanos fantasiosos, elaborados a partir da relocalização de elementos da natureza e da produção espacial da cidade - Paisagens deslocadas; 3) O terceiro caminho, por fim, utiliza literalmente da idéia de “vazios urbanos” para abrir caminho à imaginação, permitindo, através de recortes em imagens da paisagem Natalense, perceber como a estrutura que de fato está no local influencia na constituição urbana desse, nas atividades que ali acontecem, e também que outros ambientes poderiam existir se o cenário não estivesse estabelecido da maneira que está: o o Sub junkspace.
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3.1.1 SUPER JUNKSPACE A primeira maneira de elucidar a reflexão sobre o espaço da sociedade de consumidores Natalense consiste em conceber um Super Junkspace. Através do exagero, da replicação de elementos das categorias discutidas no capítulo 02 deste trabalho, fantasia-se sobre a realidade atual: aumenta-se, portanto, as “articulações espaço-sociedade que tem origem na ação dominante” (RIBEIRO, 2012, p.59). Utilizando principalmente estratégias pensadas a partir da redundância e disjunção de elementos da produção espacial de Natal, em uma associação com conceitos encontrados nos textos Junkspace e A cidade genérica - esse último também de autoria de Koolhaas – imaginou-se como extrapolar aspectos da vida urbana da cidade. Têm-se, portanto: o shopping center enquanto área de lazer dos condomínios fechados; a multiplicação de edifícios idênticos nas mais diferentes áreas da cidade (como em uma plantação de agricultura extensiva – transgênica, provavelmente); o horizonte que, uma vez ocupado por dunas e pelo mar, agora está sendo obstruído por prédios verticais. Esses, na maioria das vezes, não são construídos de acordo com uma exploração sustentável do território e meio-ambiente e a partir de um planejamento urbano que ordene a cidade de maneira justa socialmente. A fotomontagem do Super Junkspace procura aumentar não só os edifícios e a produção espacial categorizada ao longo deste trabalho, mas as relações e os desdobramentos sociais que essa produção estimula na cidade. É o excesso do que já é encontrado aqui. A organização exagerada de aspectos da nossa vida urbana: o Midway Mall localizado, de fato, no centro – o ponto para onde todos convergem; a rodovia sem estrutura adequada aos pedestres que nos leva direto à escada rolante, onde queremos nos adequar aos mesmos parâmetros de valor social, celebrando o estético, ou o cosmético, mais exatamente; - supressão de distinções, a replicação. A Barreira do Inferno, símbolo da cidade com o ar mais puro da América Latina, agora lançando um foguete que propulsiona nossas vidas para um mesmo caminho sem nenhuma autenticidade .
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3.1.2 PAISAGENS DESLOCADAS O segundo caminho delimitado para a criação de imagens que revelem discursos sobre o Junkspace tropical constitui-se da relocalização de edifícios existentes em Natal, colocados em ambientes ainda naturais da cidade. As composições fotográficas foram pensadas através de uma aproximação de técnicas empregadas pelos surrealistas, pois justapõem duas famílias de elementos que, quando somadas, geram conflitos. Mistura-se, assim, elementos da natureza com elementos construídos pelo homem – uma junção que, quando realizada de fato, é complexa e requer uma série de cuidados (os quais, apesar de regulamentações, nem sempre são tomados). Justificando-se a partir do junkspace, no entanto, propomos ir mais além, utilizando a insensatez para enfatizar o impacto de nossa sociedade de consumidores e sua produção espacial no meio-ambiente - ainda acreditamos que as colagens não anunciam uma falta de respeito maior de nossos produtores de espaços à nossa cidade Dessa forma, criam-se cenários que sobrepujam ainda mais a exploração e ocupação do território de modo desordenado, desequilibrado, e sem responsabilidade à memória urbana. As formas arquitetônicas, familiares, são colocadas em ambientes que enfatizam os aspectos negativos supracitados. Os resultados ensejam ou a tomada da natureza e da memória pela nossa contemporaneidade que não respeita precedentes, ou a destruição de nossas edificações contemporâneas nada memoráveis.
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Figura 19: Relocalização do Arena das Dunas
A relocalização do Arena das Dunas para a região da Praia do Forte, exatamente onde a Fortaleza dos Reis Magos se encontra atualmente, procura dar andamento ao processo de desmemoriamento iniciado pelo estádio com a demolição do Machadão. O Arena das Dunas, como um grande asteróide ou vírus contra à memória urbana, apagaria mais um dos elementos emblemáticos da história da cidade. Estrategicamente, as rampas e escadas de acesso são conectadas com a passarela atual de acesso à fortaleza. Inserido na praia, colabora ainda mais para o manter a insustentabilidade ambiental de sua estrutura, além de enfatizar sua falta de integração à cidade – ou a um projeto de cidade que nega sua escala “para pessoas”.
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Figura 20: Relocalização de dunas 01
Sous les pavés, la plage4 ou Tudo que é sólido se desmancha no ar (RIBEIRO, 2012, p.58)5: uma Natal soterrada, tomada pela areia. As dunas, identidade natural da cidade, reivindicam seu espaço de direito. Do alto das torres observa-se o movimento da natureza pelo o que é essencial - o junkspace é tomado, esquecido, enterrado.
Os edifícios nada memoráveis, esmorecem. Se dissolvem. Como em um sonho, a areia engole o concreto, as cercas elétricas, o revestimento plástico, as câmeras de vigilância, as grades, as vitrines, as catracas e cancelas – a areia volta para a areia.
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“Sob o pavimento, a praia”. Bordão encontrado em um muro pixado na época do Maio de 1968 em Paris, e que tornou-se jargão da luta de movimentos insurgentes daquela época. 5 Afirmação famosa do Manifesto Comunista, que explica que, sob o domínio da burguesia, o capitalismo constrói e destrói. Retirado de artigo escrito por Ana Clara Torres Ribeiro.
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Figura 21: Relocalização de dunas 02
Figura 22: Relocalização de dunas 03
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3.1.3 SUB JUNKSPACE O terceiro caminho de articulação entre imagem e conceito corresponde a uma estratégia inafirmativa desse conceito, à não-produção, ao vazio. Dessa maneira, apaga-se o espaço produzido, a arquitetura que materializa distinções e problemas sociais de maneira espetacularizada. A partir do recorte de elementos junskpace, abre-se espaço para imaginar questões sobre o porque de um dado edifício ou elemento urbano ter sido concebido da maneira que foi, para o local onde está. Além disso, também se potencializa uma reflexão sobre o debate das estruturas ali utilizadas – como muros, cercas, áreas de lazer confinadas - e a relação dessas na desconstrução de uma vida pública, e das várias consequências disso (como o aumento da violência, por exemplo). Substituir o construído pelo vazio, ou por imagens de espaços que não são arquitetura, como parques, florestas, praias, o céu, provoca questionamentos sobre a produção espacial ser vista como alguma coisa puramente humana, planejada, que necessita de construção – “Quando pensamos sobre espaço, nós só olhamos para seus recipientes. Como se o próprio espaço fosse invisível, toda a teoria da produção espacial é baseada em uma preocupação obsessiva com seu oposto: substâncias e objetos, ou seja, arquitetura” (KOOLHAAS, 2002, p.176 [tradução livre]). Em decorrência de uma perspectiva de que o espaço já existe por si só, pode-se ampliar a visão sobre o nosso papel e nossa interferência no meio-ambiente – ainda que, primordialmente, a arquitetura refira-se à criação de abrigos para o homem. O vazio das imagens negativas, bem como a ocupação desse vazio por espaços livres, geram espaço para falar sobre a vida que poderia ser vivida ali, sobre o espaço natural existente ou que existiu, sobre a nossa ação sobre ele e sobre que outras produções espaciais poderiam ser realizadas naquele ambiente. Principalmente, gera uma reflexão sobre as relações existentes entre a estrutura que foi deletada e o espaço público circundante à ela, as relações e atividades que são limitadas pelo o que está construído. Ademais, a sobreposição de imagens da natureza sobre recortes de condomínios fechados reitera a concepção vendida pelo marketing imobiliário de que, ao adquirir uma propriedade em um desses condomínios, estamos optando por uma vida distante dos perigos urbanos. É contraditório o uso de tantos termos da natureza para nomear
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condomínios fechados e edifícios. “Bosque dos pássaros”, “Cidade verde”, “Jardim dos colibris”, “Corais de cotovelo”, “Praia shopping”, etc, revelam um pouco de uma lógica confusa, que relaciona o ambiente natural à um lugar saudável e desejável - até seguro, pois mesmo com o conforto da natureza suburbana, existe o aparato da vigilância. E, ao mesmo tempo em que a natureza é celebrada como slogan, constróem-se edificações com materiais não-renováveis e, na maioria das vezes, baseados em uma visão sobre o território de que esse é uma tábula rasa, em que se pode destruir o que existia previamente e estabelecer estruturas agressivas ao solo sem ônus ao meio-ambiente. Figura 23: Sub Junkspace Nova Parnamirim
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Figura 24: Sub Junkspace - Av. Senador Salgado Filho 1.1
Figura 25: Sub Junkspace - Av. Senador Salgado Filho 1.2
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Figura 26: Sub Junkspace - Av. Senador Salgado Filho 2.1
Figura 27: Sub Junkspace - Av. Senador Salgado Filho 2.2
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Figura 28: Sub Junkspace - Arredores da Av. Romualdo Galvão
A diminuição da vivência em espaços públicos e o sentimento persistente de insegurança limitam o lazer e recreação externos à casa a ambientes confinados, dispostos entre os edifícios e seus estacionamentos. Junto aos empreendimentos imobiliários residenciais, é comum a enfática propaganda de áreas de lazer, quadra poliesportiva, playground, “espaço kids” – tudo vigiado constantemente não por vizinhos, mas pelas câmeras de segurança. A composição 04 reinvidica o direito ao brincar de forma livre, à espaços adequados que não se resumam às áreas entre edifícios. Espaços com visibilidade, permeabilidade, integração à malha urbana. O brincar sem estar preso, retido às possibilidades controladas de encontro que não se baseiam em valores e interesses comuns, mas grupos sociais uniformes economicamente.
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Figura 29: Sub Junkspace - Natal Shopping
Figura 30: Sub Junkspace - Muro do Natal shopping
Revelar outra possibilidade além da condição atual: ao invés de um extenso muro que limita a permissividade à área de várias quadras, circundado por um passeio linear, sem nenhuma sombra, o qual é ladeado por uma via de intenso trânsito – um parque. E um parque, não só por oferecer humanidade à cidade, mas por representar um espaço mais livre, público - um local para abrir espaço
c o ns i de r a ç þe s f i na i s
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do século XX as cidades passaram por importantes transformações de suas ordens, decorrentes de um intenso processo de urbanização respaldado pela industrialização do século anterior, o qual desencadeou a necessidade de ordenamento urbano e as primeiras teorias de planejamento voltadas à essa esfera. A partir do fim da segunda Guerra Mundial, a consagração das cidades enquanto centros econômicos já era uma realidade, e, em uma dinâmica diferente à da primeira metade do século discutido (a qual era movimentada pelo trabalho), o consumo deixou de ser apenas uma etapa da cadeia de produção para transformar-se na principal força operativa da sociedade que se estabelecia: têm-se, dessa forma, o consumismo (BAUMAN, 2007, p.41). A ordenação das cidades, como não poderia deixar de ser, é subordinada aos principais fatores de funcionamento da sociedade. O consumismo pós-moderno, referente antes à apoteose de fatores de uma sociedade moderna do que ao contraponto dessa, extrapola mecanismos sociais de mediação das relações – os espetáculos. Simultaneamente, o distanciamento de princípios de organização baseados em uma estabilidade e segurança sociais duráveis (características da sociedade precedente à dos consumidores) possibilita a constante renovação e construção das cidades, muitas vezes destruindo ou falseando elementos de sua memória e cultura. O junkspace define, parafraseando Guy Debórd, o cenário do pós-modernismo: a produção espacial urbana cada vez mais sem parâmetros e ainda assim homogênea, o terreno sem história, como uma tábula rasa, livre à circulação do capital: Junkspace é além da medida, além do código… Porque não pode ser apreendido, não pode ser lembrado. É exuberante mas não memorável, como um protetor de tela; sua recusa em congelar garante amnésia instantânea. O Junkspace não pretende criar a perfeição, apenas interesses (KOOLHAAS, 2002, p.177).
Em Natal, vê-se a transformação urbana decursiva não só do crescimento e modificação demográficos, mas de medidas governamentais que exploram ou permitem explorar o solo urbano. A participação de nosso país na rede global técnico-informacional reverbera em decisões econômicas que, por sua vez, relacionam-se com a aplicação e o estabelecimento de valores que não apenas passam pelas cidades, mas inscrevem em nossos territórios, com a produção espacial, a ordem hegemônica de nosso tempo. Estabelece-se,
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dessa forma, mecanismos de ocupação territorial que, conforme a entropia do junkspace, não são fundamentados apropriadamente em princípios democráticos e de resiliência ambiental e social, mas na circulação de capital. Considera-se que o objetivo de discutir o conceito Junkspace em uma problematização abrangente foi atingido, a partir de explicações sobre os significados do conceito e de sua relação entre o ordenamento de nossa cidade com as forças globais de estruturação da sociedade. Por conseguinte, o entendimento de aspectos dessa sociedade a partir de interpretações próximas à filosofia, sociologia e geografia foi realizado, sempre amparado pela reflexão desses temas no campo da produção espacial. A elaboração de um híbrido entre inventário e análise crítica de questões urbanas, apoiado na discussão conceitual sobre o Junkspace, bem como a criação de cenários fictícios a partir da leitura da produção espacial contemporânea de Natal, possibilitou uma apreensão de fenômenos urbanos específicos à realidade do século XXI de uma cidade do Nordeste Brasileiro, ademais de uma leitura generalista dessa produção a partir da lógica global da sociedade de consumidores. Considera-se que foi alcançada a meta de estabelecer um debate sobre a cidade atual fundamentado em tópicos sobre a vida pública, urbana e social captada aqui, sob à ótica abrangente e interdisciplinar do Junkspace. A apresentação concomitante da categorização de junkspaces presentes no universo de estudo e da análise crítica acerca dessas categorias ainda apresenta aspectos confusos, de acordo com nossa avaliação. O caráter amplo e contraditório do texto de Koolhaas configurou-se como um obstáculo para a elaboração de um entendimento conciso e preciso sobre a arquitetura contemporânea da cidade, pois, por remeter aos vários conceitos interdisciplinares debatidos ao longo deste trabalho, não permite a estipulação de classes fixas, fechadas em si, para análise. No entanto, infere-se que a admissão e desenvolvimento dessa categorização de maneira ampla, rica em conotações e por isso também confusa, corresponde exatamente ao significado e alcance do Junkspace. O uso de fotomontagens reiterou o caráter reflexivo e provocativo pretendido pelo estudo, assumindo o distanciamento de uma posição funcional e resoluta à solução de problemas, comumente associada à atividade do arquiteto. Elucidou-se, portanto, um entendimento sobre motivos de nossa cidade se desenvolver da maneira que nós testemunhamos, e de perceber que relações esse desenvolvimento tem com aspectos da esfera pública, como o sentimento de insegurança, a parca mobilidade urbana, o
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esvaziamento e confinamento dos espaços públicos livres, a segregação social. Avalia-se que a estratégia de criar cenários fantasiosos, apresentada no terceiro capítulo, deu elementos para a reflexão sobre a operacionalização de forças hegemônicas na construção da paisagem e das relações existentes na Natal atual, para além de uma leitura descritiva dessa realidade. Considera-se que o junkspace Natalense é o produto espacial das condições sociais específicas de nosso meio urbano, relativas à posição de cidade de médio porte latinoamericana considerada “em desenvolvimento” e subjacentes à redes globais de manutenção da sociedade de consumidores. Enquanto progressão da sociedade moderna, a contemporaneidade consumista constrói-se a partir da elaboração de subjetividades. Para Mastrigli: Na verdade, a elaboração de subjetividades é o espaço em que se mede a expansão e a força das ordens hegemônicas da modernidade. Isso é válido também para a arquitetura, apesar de essa possuir um caráter pragmático irredutível. Ou, melhor ainda, é precisamente essa objetividade a chave para compreender o potencial da arquitetura, e mais em geral da arte. O valor de objeto da arquitetura não limitase ao concreto ou a dados materiais. Em vez disso, o valor realmente toma forma quando a arquitetura torna-se um objeto de especulação, o apoio a uma projeção intelectual que permite uma atribuição de alcance mítico. Compartilhado, e por isso social, esse valor é, no final, histórico. É neste momento que a arquitetura se revela em toda a sua dimensão produtiva como uma "máquina" para a criação de novas subjetividades (MASTRIGLI, 2013 [tradução livre]).
A arquitetura produzida em Natal nesses primeiros anos do século XXI, então, revela valores sociais referentes ao tempo histórico de sua produção – e, por isso, determina e é determinada pelos modos de vida e sentimentos de desejo e necessidade da população. O junkspace, abrangente, contraditório, caótico e aplicável a diferentes estruturas espaciais, demonstra os valores da liquidez e efemeridade contemporâneas. A abordagem de Koolhaas acerca da produção espacial atual questiona e analisa, ao mesmo tempo, essa produção. Estabelece, portanto, uma “análise histórica dos limites que nos são impostos e um experimento com a possibilidade de ir além deles " (MASTRIGLI, 2013 [tradução livre]). A abertura de análise possibilitada pelos questionamentos e provocações, e, no caso deste trabalho, das reflexões baseadas em articulações entre imagem e texto e na criação de paisagens urbanas fictícias, sugere caminhos de apreensão e experimentação da cidade que subvertem a ordem hegemônica de sua produção, promovendo reflexões sobre a atualidade e futuros decorrentes desse tempo presente.
r e f e r ê nc i a s bi bl i ogr á f i c a s
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