ruinogramas

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ruinogramas


A proposta do presente trabalho é especular sobre diferentes definições de ruína, articulando escrita e imagem, segundo diversos autores. Construímos, assim, um verbete que demonstra algumas outras discussões acerca de um tema e conceito tão caros à Arquitetura e Urbanismo. Com isso, buscamos aproximar nossas pesquisas individuais de temas discutidos na disciplina “Entre Margens e Imagens”, ministrada pelas professoras Júnia Cambraia Mortimer e Thaís Troncon Rosa no semestre letivo suplementar 2020 da UFBA.

Ana Luiza Freire Bráulio Romeiro


Na etimologia Ruir tem sua origem da palavra em latim ruere, que significa desabar, colapsar, mas também apressar, correr. Curiosamente há mais similaridade fonética com estes termos em inglês hurry, e rush do que no português. A palavra ruere por sua vez tem sua origem provável na raiz proto-indo-europeia Hrewque pode ser traduzida como rasgar, cavar (The Oxford English Dictionary, online).

Os sentidos do rasgar e cavar ainda permanecem associados ao termo ruína. Algo que foi danificado, derrubado, uma tessitura que se desintegra. Já o sentido da urgência expresso em “correr” e “apressar” se fazem pouco evidentes quando se pensa no termo ruína. Associação possível que podemos fazer é em relação ao tempo. Considerando-se o destino final de tudo como a extinção, como apagamento, a ruína evidenciaria, ou provocaria, uma aceleração deste processo que leva ao destino final.


em Benjamin O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Walter Benjamin, 1940)

A alegoria da ruína - associada ao Anjo da História de Walter Benjamin - diz respeito mais ao processo da História do que a objetos e destroços materiais que sofreram com ação do tempo e alcançaram um estado de matéria desgastado, corroído, e posterior ao seu momento de apogeu estético. Nesse sentido, a própria História é um objeto arruinado: um produto cultural que constitui-se de ações de destruição e apagamento, seja através da manipulação de documentos e fontes, seja na sua escrita, ou seja através de ações políticas que se dão em espaços públicos e coletivos. Museus, memoriais, institutos, nomes de ruas, monumentos, estátuas, estruturas urbanas: todos podem estar envolvidos em uma operação de visibilização de determinadas histórias e ocultamento de outras. Portanto, não é o edifício arruinado que condiz à imagem de ruína, necessariamente. A ruína pode ser o edifício de arquitetura high-tech, sustentável ecologicamente, mas que foi construído em uma área de cidade onde se deu uma violenta remoção de uma comunidade tradicional, destruindo seus espaços mas também laços de sociabilidade e ancestralidade que ali constituiam-se.

em Simmel o singular entre a matéria mecânica, pesada, passivamente resistente à pressão e a espiritualidade enformante, que impele ao alto quebra-se, no entanto, no instante em que o edifício rui, pois isso não significa outra coisa senão que as meras forças da natureza começam a predominar sobre a obra humana: a equação entre natureza e espírito desloca-se em favor da natureza. (SIMMEL, 1998).

Em “A ruína”, um ensaio datado de 1911, Georg Simmel traz a imagem de que estamos submetidos constantemente a um processo, um jogo de forças entre a natureza e a obra humana. Agimos no sentido, material e simbólico, de continuamente refrear as ações da natureza sobre nosso habitat. No momento em que a ruína se instala, a natureza assumiu a dianteira nesse processo.



valor de ruína Em Mein Kampf, Hitler culpa forças do mercado pela transformação das cidades de locais culturais em wastelands urbanas dominadas por interesses comerciais. Os antigos (gregos e romanos) teriam mostrado o melhor caminho para as cidades. “Os poucos colossos ainda imponentes que admiramos nas ruínas e destroços do mundo antigo” (SPOTTS, p. 315). Hitler imaginava que as cidades alemãs do 3o. Reich em ruínas mil anos no futuro seriam visitadas tal como Roma ou Atenas. A ruína aqui tem um valor positivo, de distinção, de algo tão grandioso que permanece como testemunho pelas eras vindouras. Esse valor voltará a aparecer em outros escritos e em conversas com artistas e arquitetos.

Albert Speer, o arquiteto do reich, afirmava ter inventado o conceito de valor de ruína, que teria dotado seus edifícios modernos da capacidade, após o sua obsolescência, de se parecerem com ruínas clássicas. Spotts contesta a afirmação colocando que este “valor de ruína”:

estava longe de ser original; tinha uma longa história e foi moda em toda a Europa do Romantismo. No final do séc. XVIII, Landgraf de Kassel construiu um castelo novo em ruínas. Ao projetar o Banco da Inglaterra, no início do séc. XIX, Sir John Soane apresentou aos governantes três pinturas a óleo do edifício que planejou; em um, foi representado como novo, o segundo, já desgastado, e um terceiro, em ruínas após mil anos (SPOTTS, 322).

ruínas em reverso Em seu famoso trabalho “Um passeio pelos monumentos de Passaic, Nova Jersey”, de 1967, Robert Smithson evoca uma passagem de Nabokov: “O futuro nada mais é do que o obsoleto ao reverso” para cunhar a expressão “ruínas ao reverso” para procurar definir aquilo que observava como característica daquela paisagem suburbana. Construções inacabadas, precárias, que pareciam estar arruinadas, tornadas ruínas sem ter atingido sua completude, seu auge.

O artista discute o contraste com as “ruínas românticas” como um tema que surge no campo artístico no séc. XVIII, que trariam uma “visão prazerosa” e uma evocação do passado. As ruínas ao reverso não são agradáveis de se ver, nem lembram qualquer passado, seja ele glorioso ou não. Elas nos trariam somente o “esquecimento do futuro”.


fora da ordem Aqui tudo parece Que era ainda construção E já é ruína (Caetano Veloso, Fora da ordem, 1991) De maneira similar, Caetano Veloso identifica o mesmo caráter na passagem acima. Fora dos poucos locais protegidos, nossas cidades, em sua maior parte, parecem ruínas ao reverso em um estado perpétuo, que servem de abrigo à milhões de pessoas. Mostram como nossas cidades se produzem, se reproduzem, ligadas a lógica do arruinamento, um devir e porvir que as situa sempre como promessa: seja nas periferias, espaços geralmente auto-construídos que perpetuam-se pela reinvenção constante; seja nos centros urbanos, onde o abandono e a falta de manutenção de estruturas públicas aceleram seus processos de desmantelo.


cidade sem ruínas Claro calar sobre uma cidade sem ruínas (ruinogramas) Em Brasília, admirei. Não a niemeyer lei, a vida das pessoas penetrando nos esquemas como a tinta sangue no mata borrão, crescendo o vermelho gente, entre pedra e pedra, pela terra a dentro. Em Brasília, admirei. O pequeno restaurante clandestino, criminoso por estar fora da quadra permitida. Sim, Brasília. Admirei o tempo que já cobre de anos tuas impecáveis matemáticas. Adeus, Cidade. O erro, claro, não a lei. Muito me admirastes, muito te admirei. In: LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989).

Em 2011 foram descobertas, nas lajes dos prédios do Congresso Nacional, mensagens de candangos que trabalharam na construção de Brasília. Concretadas, as mensagens expressam esperança, sonhos e desejos de um país melhor no futuro: “ “Só temos uma esperança, nos brasileiros de amanhã. 22/4/59”; “Brasília de hoje, Brasil amanhã”; “Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra José Silva Guerra 22/4/59”. Os vestígios deixados pelos candangos nos lembram não somente do sentimento de esperança no futuro que Brasília prometeu àqueles que a construíram, mas também das vidas e histórias que foram enterradas ou deslocadas para que a capital sem ruínas fosse construída.


terrain vague O tema da ruína ganha relevo novamente pelos processo de desindustrialização associada às intervenções de revitalização que se tornam comuns em princípios da década de 1990.. No afã neoliberal que ocorre em Barcelona nos preparativos para os jogos olímpicos de 1992, o mercado imobiliário, e o financeiro, veem a possibilidade de converter ruínas fabris – muitas das quais bem localizadas – em espaços aproveitáveis e com alto retorno. Ignasi de Solà-Morales define a expressão terrain vague no intuito de demonstrar que estes espaços à margem do mercado, pois não representam um capital expressivo, possuem um valor simbólico. O terrain vague, como discorre o autor, tem significados plurais. O vague (vago) pode significar desocupado, mas também impreciso; o termo em catalão também se refere ao português ”vaga”, sinônimo de onda e também do ato de vagar, errar. Estes locais arruinados teriam um valor justamente por isso, por escaparem, mesmo que momentaneamente, da lógica de consumo na qual tudo tem o seu papel definido, o seu lugar próprio, sem espaço para ambiguidade, para a imprecisão, para a incerteza. Tudo isso que nos constitui enquanto seres humanos, e que nos mostra outros caminhos possíveis além daquele que hoje é hegemônico (SOLÀ-MORALES, 1995, p. 186-187).


memento mori

memória e arquivo A ruína não é o emblema evidente de uma filosofia naturalista da história como sucessão catastrófica, mas o local de um relato quebrado, no qual o artista atua como um mediador colocado num espaço intersticial, sempre assinalando a natureza híbrida e indireta da representação da memória, a própria e a alheia. A ruína não é uma figura unívoca da melancolia, nem um objeto de contemplação estética pronto para o consumo; pelo contrário, ela vem ilustrar o trabalho do luto, estimulando o espectador/leitor a juntar as peças soltas do palimpsesto que constrói como uma rede de nexos. (Gabriela Nouzeilles, 2011).

O termo em latim memento mori pode ser traduzido como “lembre-se de que vai morrer” e designa um gênero específico de pinturas que trazem a fragilidade da vida como tema principal. Embora os signos da morte possam ser lidos em motivos da antiguidade egípcia e romana, foi na europa medieval que estes signos encontraram uma estrutura. Às pinturas deste período associam esqueletos e caveiras com instrumentos musicais quebrados e livros desfolhados. Lembretes de que a vida humana tem um fim. A ruína que vemos na cidade também tem este poder. Lembra que as realizações humanas tem seu fim, frequentemente antes do que imaginamos. Edifícios imaginados para durar muitas décadas podem ter sua existência abreviada para poucos anos. Como ocorre com prédios que não são construídos além da ossatura, esperando continuamente por uma completude que não virá. A ossatura dos edifícios é o esqueleto das imagens medievais, lembrando que um dia tudo acabará.



florestas “Agricultores cortam carvalhos para lenha e carvão; carvalhos brotam de seus tocos, tornando-se características estáveis da arquitetura da floresta. A floresta aberta de carvalhos cortados dá lugar a pinheiros [...] O pinheiro, por sua vez, cresce com cogumelos matsutake, que complementam os nutrientes das árvores, pois também se alimentam das raízes. Os seres humanos apreciam os corpos reprodutivos fúngicos como alimento gourmet. Essas coordenações produzem uma floresta [...] [as quais] são moldadas pela industrialização, guerra e urbanização, por um lado, e novas espécies, mudanças climáticas e doenças, por outro. Os humanos são parte da história, mas os humanos não fazem a história”. (Anna Tsing,, 2019, p. 148). Da mesma forma que lemos a cidade como um texto histórico produzido por forças sociais codificadas em forma material - camadas sobre camadas de ruínas formando um tecido social vivo - a floresta deve ser interpretada através da sintaxe de projetos espaciais. No entanto, essas ruínas vivas não são total ou exclusivamente humanas, nem são completamente naturais. Em vez disso, eles são o produto de interações complexas e de longo prazo entre coletivos humanos, forças ambientais e a agência de outras espécies, eles próprios atores no processo histórico de “projetar a floresta”. (Paulo Tavares, 2018).

Diz-se que o cogumelo matsutake, uma iguaria da culinária internacional, foi o primeiro ser vivo a surgir em Hiroshima após a explosão da bomba nuclear em 1945. Para nascer, esse cogumelo necessita de condições ambientais específicas, as quais são encontradas muitas vezes em regiões que foram exploradas e depois abandonadas pelo homem, como florestas industriais. Não é que o matsutake apareça nessas áreas somente porque elas deixaram de ser destruídas e estariam retornando a uma paisagem multiespécies original - ele aparece somente por causa da combinação de elementos dos produtos da destruição da floresta original e da implantação de atividades antrópicas ali, com o tempo de abandono decorrido após a partida humana do local.

O matsutake, então, vive em paisagens arruinadas, que tornaram-se inativas para a produção capitalista. Anna Tsing (2015), com o cogumelo matsutake, demonstra como as florestas não são simplesmente panos de fundo ou cenários para ação humana e histórica, mas constructos também culturais, onde as espécies ali existentes, bem como variantes como o tipo de solo, são restos, ruínas, vestígios arqueológicos de histórias que ali se desenvolveram.


referências BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da história, 1940. Obras escolhidas, v. 1, p. 222-232, 1987. LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989 NOUZEILLES, Gabriela. Os restos do político ou as ruínas do arquivo. Crítica e coleção. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 137, 2011.

SIMMEL, Georg. A ruína. Simmel e a modernidade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2016. SMITHSON, R. (1967), A Tour of the Monuments of Passaic, New Jersey. In: FLAM, J. (ed.) Robert Smithson: The Collected Writings. Los Angeles: University of California Press. 1996. P 68-74

SOLA-MORALES, I. (1995), Terrain Vague, In: __ (2002) Territorios, Editorial Gustavo Gili, SA, Barcelona, p. 181-193. SPOTTS, F. (2009) Hitler and the power of aesthetics. New York: The Overlook Press.

TAVARES, PAULO ROBERTO CARVALHO. In the Forest Ruins. Superhumanity: Design of the Self., 2017.

TSING, Anna Lowenhaupt. The mushroom at the end of the world: On the possibility of life in capitalist ruins. Princeton University Press, 2015. Candangos deixam mensagens escritas nas lajes do prédio do Congresso. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/ candangos-deixam-mensagens-escritas-nas-lajes-do-predio-do-congresso>. Acesso em 06/12/2020.



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