(1851-2008) Hugo Silveira Pereira (ed.)
A LINHA DO TUA (1851-2008)
Hugo Silveira Pereira (ed.)
PROJECTO FOZTUA coordenadores ANNE MCCANTS (MIT, EUA) EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal) JOSÉ MANUEL LOPES CORDEIRO (U. Minho, Portugal) PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal) www.foztua.com
A capa procura sugerir o perfil da linha do Tua de Foz Tua até Bragança. Note-se que o troço entre Mirandela e Bragança passa pelo ponto mais alto da rede ferroviária portuguesa, em Rossas. Agradece-se a colaboração do professor António Vieira, do departamento de geografia da Universidade do Minho, e de Lurdes Martins (também da Universidade do Minho) para a definição deste perfil.
ISBN: 978-151-88937-3-5 Janeiro 2015 Design gráfico, paginação e capa por Ana Prudente Editação por Inovatec (Portugal) Lda. (V. N. Gaia, Portugal) Impressão por Minerva – Artes Gráficas, Lda. (Vila do Conde, Portugal)
PREFÁCIO Anne E. C. McCants Massachussets Institute of Technology
Nenhum outro projecto de obras públicas captura mais eficazmente o espírito das aspirações nacionalistas do século XIX do que a construção de caminhos-de-ferro. Nem houve imagem mais icónica da Revolução Industrial do que uma locomotiva a vapor circulando sobre carris de ferro. Ambos trouxeram velocidade e potência a rotas de transporte já existentes e, de forma ainda mais vincada, abriram novos territórios ao desenvolvimento económico e à ocupação humana. Os metros de via-férrea tornaramse literalmente uma medida fiável de poder político e de desempenho económico de um estado-nação; e por esta mesma medida, na década de 1850, Portugal estava bem atrás do resto da Europa Ocidental. Décadas de instabilidade política e de subserviência às exigências económicas de poderosas companhias comerciais estrangeiras tinham limitado a capacidade do país para investir em projectos de desenvolvimento de infra-estruturas de transporte. Mas em 1851, graças a um conjunto de reformas políticas, o cenário começou a mudar. Um novo discurso de progresso articulou-se continuamente a nível nacional, facilitando a emergência gradual da vontade política e económica necessária para implementar os seus mais básicos ideais. A construção de caminhos-de-ferro, não surpreendentemente, era o mais importante desses ideais. Este estudo em três volumes sobre a construção da linha do Tua, entre a década de 1880 e o primeiro decénio do século XX, atravessando o coração de Trás-os-Montes, conta em minucioso detalhe o modo como a ideia geral de progresso foi efectivamente traduzida numa linha-férrea totalmente operacional. Singularmente, a linha do Tua estava situada na mais remota região do país, caracterizada por um território montanhoso e desnivelado. Se este facto não fosse suficiente para dissuadir a escolha desta
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localização, recordemos que, antes do caminho-de-ferro, Trás-os-Montes tinha um potencial comercial limitado quase totalmente à vitivinicultura no vale do Douro. A forma como a linha do Tua se concretizou, quer como ideia política, quer como realidade de engenharia, é uma história fascinante, contada com grande detalhe histórico nesta obra. Os verdadeiros impactos económicos e humanos desta linha não foram uniformes, como foi demonstrado por muitos dos participantes do projecto FOZTUA e dos workshops Railroads in Historical Context. Mas é indiscutível que, ao longo da segunda metade do século XIX, quando novas vias-férreas eram sucessivamente propostas, ninguém duvidava quão críticas seriam elas para o crescimento económico e para a construção de relações comerciais mais sólidas com o resto da Europa e do mundo. Estes três volumes levam o leitor de volta a esta era de devota crença no progresso, recriando os turbulentos debates políticos, as complexas negociações (e desilusões) financeiras e os verdadeiros obstáculos de engenharia que tiveram que ser ultrapassados de modo a trazer a ‘era do vapor’ a uma terra de vetustos socalcos, conhecida pelo seu vinho do Porto e pouco mais.
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AUTORES Ana Carina Azevedo Doutora em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a tese A Organização Científica do Trabalho em Portugal após a II Guerra Mundial (1945-1974) e investigadora do Instituto de História Contemporânea da mesma faculdade. Eduardo Beira Coordenador do projecto FOZTUA. Engenheiro químico (1974). Professor associado (convidado) da Escola de Engenharia da Universidade do Minho (2001-2012), docente do programa MIT Portugal e Senior Research Fellow do IN+ Center for Innovation, Technology and Public Policy (Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa). Autor de diversos livros e tradutor da obra do filósofo Michael Polanyi. Leonel de Castro Fotógrafo profissional, colabora regularmente com vários títulos da imprensa nacional. Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo, completou também o curso de Fotografia na Escola Superior Artística do Porto e actualmente é doutorando na Universidade do Minho. Docente no Instituto Português de Fotografia e na Escola Superior Artística do Porto. José Manuel Lopes Cordeiro Doutor em História Contemporânea pela Universidade do Minho, onde é professor auxiliar no Instituto de Ciências Sociais. É director do Museu da Indústria Têxtil da Bacia do Ave, assim como representante nacional do The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage, organismo consultor da UNESCO/ICOMOS para o património industrial, e presidente da Associação Portuguesa para o Património Industrial. É também director da revista Arqueologia Industrial. Membro da equipa coordenadora do projecto FOZTUA. Maria Otília Pereira Lage Investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Pós-doutorada em Estudos Sociais e Históricos, doutora em História Moderna e Contemporânea, mestre em História das Populações, pós-graduada em Biblioteconomia, Arquivística e Documentação e Administração Escolar e licenciada em História. Professora reformada do Instituto Politécnico do Porto. Autora de vários livros. Paulo B. Lourenço Professor catedrático do Departamento de Engenharia Civil da Universidade do Minho, diretor do Mestrado em Análise Estrutural de Monumentos e Construções Históricas e director do Instituto para a Sustentabilidade e Inovação de Estruturas de Engenharia. Editor do International Journal of Architectural Heritage: Conservation, Analysis and Restoration. Especialista em conservação e reabilitação de construções, com actividade em mais de cinquenta monumentos espalhados pelo mundo. Membro da equipa coordenadora do projecto FOZTUA. Lurdes Martins Doutoranda na Escola de Engenharia da Universidade do Minho (Departamento de Engenharia Civil). Interesse académico pelas questões de arquitectura vernacular, ensaios in situ em granitos e influência dos ciclos de gelo e degelo sobre os granitos. Hugo Silveira Pereira Doutor em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador doutorado no Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia
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(Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa). Autor de vários livros e artigos sobre história empresarial e história dos caminhos-de-ferro portugueses. Ângela Salgueiro Doutoranda em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, investigadora do Instituto de História Contemporânea e coautora da obra Ciência, Cultura e Língua em Portugal no Século XX. Da Junta de Educação Nacional ao Instituto Camões. Luís Santos Doutor em História Contemporânea pela Faculdade de História e Geografia da Universidade Complutense de Madrid. Ellan F. Spero Doutorou-se no Massachussets Institute of Technology com uma dissertação sobre os inícios da cooperação académica com a indústria entre as grandes guerras mundiais como ponto de entrada para compreender os cenários da inovação, a sua organização e as respostas estratégicas à incerteza. Estudou na Cornell University (BS/MS em Fiber Science and Apparel Design) e no Fashion Institute of Technology (Museum Studies e Textile and Fashion History). Graça Vasconcelos Professora auxiliar do Departamento de Engenharia Civil da Universidade do Minho e membro do Instituto para a Sustentabilidade e Inovação em Engenharia de Estruturas com interesses em alvenaria estrutural e não estrutural, madeira e caracterização experimental. Editora associada da revista Open Construction and Building Technology Journal. Pedro Venceslau Mestre em Arquitectura e Urbanismo pela Escola Superior Gallaecia. Albano Viseu Licenciado em História, mestre em Antropologia Social e Cultural (As Memórias do Estado Novo no espaço rural: estudo antropológico de um tempo histórico na freguesia do Romeu) e doutor em História (Memórias históricas de um espaço rural: três aldeias de Trás-osMontes (Coleja, Cachão e Romeu) ao tempo do Estado Novo). Professor aposentado de História no ensino secundário e superior. Investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Autor de vários livros e artigos.
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ÍNDICE iii v
PREFÁCIO Anne E. C. McCants AUTORES PARTE I — DE FOZ-TUA A MIRANDELA
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1. PORTUGAL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
001 019
1.1. Caminhos-de-ferro em Portugal e no mundo Hugo Silveira Pereira 1.2. O problema das regiões montanhosas e a bitola estreita Hugo Silveira Pereira 1.3. Viajar em Portugal e no interior transmontano Maria Otília Pereira Lage, Albano Viseu e Hugo Silveira Pereira
034 057
2. A ODISSEIA DE UMA NOVA LINHA
057
2.1. O processo de decisão da construção da linha do Tua Hugo Silveira Pereira 2.2. Aspectos contratuais e financeiros Hugo Silveira Pereira 2.3. O projecto da linha Lurdes Martins, Graça Vasconcelos e Paulo B. Lourenço 2.4. A construção e os aspectos laborais Lurdes Martins, Graça Vasconcelos e Paulo B. Lourenço 2.5. Protagonistas: Clemente Meneres e o conde da Foz Albano Viseu e Luís Santos 2.6. Protagonistas: Almeida Pinheiro, José Beça e Dinis Moreira da Mota Hugo Silveira Pereira e José Manuel Lopes Cordeiro 2.7. A inauguração José Manuel Lopes Cordeiro e Hugo Silveira Pereira 2.8. As fotos de Emílio Biel e os desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro Eduardo Beira, José Manuel Lopes Cordeiro, Leonel de Castro e Maria Otília Pereira Lage
071 085 095 115 132 151 167
183
PARTE II — ATÉ BRAGANÇA
185
3. PORTUGAL NA VIRAGEM DO SÉCULO
185 202
3.1. A bancarrota e o fim do fontismo Hugo Silveira Pereira 3.2. A lei de 14 de Julho de 1899 e o relançamento da construção ferroviária Hugo Silveira Pereira vii
215
4. A EXTENSÃO DA LINHA DO TUA A BRAGANÇA
215 228 245
4.1. A acção dos Beças na outorga da linha Hugo Silveira Pereira 4.2. A entrada em cena de João Lopes da Cruz Hugo Silveira Pereira 4.3. Contratos e detalhes financeiros da empreitada Hugo Silveira Pereira 4.4. O assentamento da linha Hugo Silveira Pereira 4.5. A inauguração e o epílogo da história de Abílio Beça e João da Cruz Hugo Silveira Pereira 4.6. A gorada ligação de Foz-Tua a Viseu Ana Carina Azevedo e Ângela Salgueiro
259 273 290 307
PARTE III — EXPLORAÇÃO E IMPACTOS
309
5. 125 ANOS DE EXPLORAÇÃO
309 325 351 365 382
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5.1. Material circulante Hugo Silveira Pereira 5.2. Da Companhia Nacional à CP Eduardo Beira 5.3. Dinâmicas demográficas no vale do Tua |Eduardo Beira 5.4. A linha na literatura Maria Otília Pereira Lage 5.5. O papel estruturador da linha do Tua em Foz-Tua, Cachão e Mirandela Pedro Venceslau 5.6. Alterações na linha do Tua (1895-1920) Albano Viseu 5.7. Evolução do sistema de mobilidade e decadência da linha Ana Carina Azevedo e Ângela Salgueiro 5.8. O encerramento da linha de Bragança na imprensa regional Ana Carina Azevedo e Ângela Salgueiro 5.9. Vale do Tua: Uma paisagem tecnológica Ellan F. Spero
491
6. FONTES E BIBLIOGRAFIA
491 501 520 527 529 532 533
6.1. Fontes 6.2. Bibliografia Índice de figuras Índice de gráficos Índice de mapas Índice de tabelas Timeline
427 458 473
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PARTE I
DE FOZ-TUA A MIRANDELA
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Portugal na segunda metade do século XIX
1. PORTUGAL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
1.1. CAMINHOS-DE-FERRO EM PORTUGAL E NO MUNDO001 Hugo Silveira Pereira002
“A história do século XIX poderia ser escrita à volta dos caminhos de ferro, das polémicas que suscitou, dos interesses que agregou, dos ódios que ateou”003. A centúria de oitocentos foi o século do caminho-de-ferro, da energia a vapor, dos comboios. A locomotiva mudou, sem dúvida nenhuma, a face do mundo e, muito embora outras tecnologias tenham surgido nesta época, “a locomotiva a vapor epilogou a tecnologia do século XIX”004 e assumiu-se como o “o símbolo mais espectacular desta era”005 . Esta nova forma de viajar e de transportar nasceu, como é genericamente sabido, em Inglaterra. Após algumas décadas de experimentação, em 1825 foi inaugurada a primeira linha de caminho-de-ferro com tracção a vapor entre as localidades de Stockton e Darlington. Cinco anos depois, iniciou-se o primeiro serviço regular de comboios. As cidades de Liverpool e de Manchester foram as primeiras a dispor da nova oferta de transporte. O sucesso deste caminho-de-ferro deu o mote para o estabelecimento de uma enorme rede que respondeu às necessidades de transporte dos 001
Este capítulo é baseado no capítulo 2.2. O exemplo estrangeiro da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a: 44-55.
002
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
003
MÓNICA, 1996: 8.
004
CAMERON, 2000: 233.
005
HOBSBAWM, 1979: 63.
1
A linha do Tua (1851-2008)
ingleses. Nas décadas de 1830 e 1840, foram construídos os principais troncos ferroviários, que foram complementados nas décadas seguintes com linhas secundárias, de modo que “the British railway system gradually came to resemble a web connecting all significant centres of population”006. O arranque dos caminhos-de-ferro em Inglaterra e no mundo foi acompanhado de perto por alguns portugueses que se exilaram naquele país durante a contra-revolução miguelista e a subsequente guerra civil entre liberais e absolutistas. Estes homens, quando regressaram a Portugal, vinham plenamente convictos das mais-valias que o caminho-de-ferro representava em Inglaterra e que decerto representaria também em Portugal. Um desses homens era Faustino da Gama, que assegurava, em 1855, que “não ha ninguém (…) que possa apoiar e desejar mais do coração do que eu, que entre nós se façam caminhos de ferro; eu que os vi nascer (…) em Inglaterra, que foi perto da cidade onde eu então residia, fallo do caminho de ferro de Manchester a Liverpool, quantas vezes vi o que havia a esperar d’elles? Muitas. Sei que as vantagens d’elles provenientes são incalculáveis”007. Faustino da Gama esquecia-se, porém, de que a Inglaterra não começou a construir caminhos-de-ferro do nada e possuía condições favoráveis ao seu uso muito anteriores ao início do assentamento das linhas. A percepção que aquele e muitos outros políticos portugueses tinham da realidade económica e ferroviária estrangeira e a representação que faziam da realidade nacional eram, contudo, outras. Essa percepção e essa representação acabariam por “determina[r] o modo de ser da linguagem”008 e também a própria estratégia governamental. É indiferente se a percepção correspondia ou não à verdade ou se as representações da realidade eram fidedignas ou envenenadas pelo erro. As percepções e representações não representam a realidade, da qual são deformações, mas por ela pretendem passar, uma vez que o ideal ou o desejável é muito mais sedutor que o real, permite reduzir o pensamento e orientar a acção009. Ao ver o sucesso de algumas linhas-férreas em Inglaterra e noutros países da Europa do norte e o crescimento das trocas comerciais e dinamismo industrial dessas nações010, era muito mais fascinante e simplista atribuir esses fenómenos somente ao caminho-de-ferro e esquecer como esses países tinham beneficiado de aumentos demográficos, níveis de vida mais elevados, importante consumo de bens industriais, capacidades de mobilização do rendimento nacional para outros sectores além dos 006
HAWKE & HIGGINS, 1983: 181-182
007
Diario da Camara dos Deputados, 2.5.1855: 32
008
FOUCAULT, 1998: 255.
009
FERNANDES, 1998
010
BAIROCH, 1976: 33 e 35-36. LÉON, 1982: 142 e 155-167.
2
Portugal na segunda metade do século XIX
de subsistência imediata, métodos de produção mais avançados a nível agrícola e industrial, entre outros factores específicos de cada economia011. Mapa 1 – Rede ferroviária europeia em 1860 012
A Inglaterra, por exemplo, dispunha já na primeira metade de oitocentos de um dinâmico sistema bancário com capacidade para canalizar capitais para a indústria e para a construção ferroviária. O seu sector agrícola possuía a mais extensa área cultivada e o mais elevado nível técnico da Europa. A aposta nos maquinismos na indústria conduziu a um aumento de produtividade nesta área de actividade. No sector dos transportes, os britânicos beneficiavam também de uma importante rede de canais, rios navegáveis e estradas que complementava o crescimento no sector primário e secundário. O caminho-de-ferro surgiu assim em Inglaterra no final do processo de passagem de uma sociedade pré-industrial para uma economia industrial, para satisfazer uma necessidade e não para criar uma procura013. Entre 1850 e 1870, quando Portugal procurava regenerar-se, a Inglaterra atingia o seu auge. “O êxito da Inglaterra demonstrava aquilo que se podia alcançar através dela, a técnica inglesa podia ser imitada, e a sua experiência e o seu capital importados”014. Em Portugal, 011
LÉON, 1982: 64. BAIROCH, 1976: 15.
012
MARTI-HENNEBERG, 2011: 7.
013
DEANE, 1976: 166 e ss. e 201 e ss. HAWKE & HIGGINS, 1983: 172 e 176-177.
014
HOBSBAWM, 1982: 51.
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A linha do Tua (1851-2008)
à entrada da segunda metade do século XIX, “England was regarded as a model par excellence on an evolutionary path”015. Mapa 2 – Rede férrea inglesa em 1865016
Porém, nem só a Inglaterra servia de modelo de inspiração para os governantes nacionais. Também a Bélgica e a França eram encaradas como exemplos do efeito que o caminho-de-ferro podia exercer em Portugal. Aliás, estas duas nações (sobretudo a França) influenciaram muito mais a gestão do negócio ferroviário nacional do que o Reino Unido (foi naqueles dois países que muitos portugueses obtiveram a sua 015
ALMODÔVAR & CARDOSO, 1998: 65.
016
PERDONNET, 1865.
4
Portugal na segunda metade do século XIX
formação em engenharia017). No parlamento, o economista estrangeiro mais citado era precisamente o francês Michel Chevalier, cujo “‘engineer’s view’ of the economy, and his enthusiasm for banking and railways, fitted the aims established by Fontes Pereira de Melo, the main political architect of the Portuguese Regeneration, like a glove”018. Uma outra autoridade amiúde nomeada nas cortes era o também francês Auguste Perdonnet, um verdadeiro entusiasta politico e económico dos caminhosde-ferro, dos quais esperava o fim das alfândegas; desenvolvimentos diários da agricultura, comércio e indústria; aumentos da produção agrícola e mineira, do consumo de carne e fruta fresca, do movimento das populações, do número de empregos, da velocidade de transporte e das quantidades transportadas; diminuições do custo de transporte; nivelamento dos preços no plano nacional; modificações da estratégia militar a par de uma aproximação pacífica entre países e entre governantes e governados; desenvolvimento científico, de regiões desertas, dos correios, da arte ferroviária e até dos cantos populares!019 Figura 1 – Auguste Perdonnet (à esquerda), Michel Chevalier (ao centro) e Fontes Pereira de Melo (à direita)020
Todavia, a França beneficiara no final do século XVIII de um aumento populacional e de uma quadruplicação do comércio internacional, que lhe garantiu o capital necessário para o take-off. O desenvolvimento da educação e da formação de técnicos era algo que também já vinha de trás. A famosa escola de pontes e calçadas data de 1747. Por fim, o código comercial francês estimulava a formação de empresas desde 017
MACEDO, 2009: 64.
018
BASTIEN & CARDOSO, 2009: 47.
019
PERDONNET, 1865: XLIV.
020
Bibliothéque nationale de France, http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b530656059.r=Auguste+Perdonnet. langPT). Les Annales des Mines, http://www.annales.org/archives/x/chevalier.html. Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/13630.
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A linha do Tua (1851-2008)
1808. Tudo isto permitiu aos gauleses lançarem-se definitivamente no processo de desenvolvimento económico, sobretudo após os conflitos revolucionários e durante o II Império (1852-1870), no qual o caminho-de-ferro desempenhou um papel fulcral. Para François Caron, “le développement du chemin de fer correspond à la période de croissance la plus brillante de l’economie française au XIXe siécle”021. Mapa 3 – Rede ferroviária francesa e belga em 1865022
A Bélgica era também um país com uma longa tradição industrial, baseada numa agricultura próspera, na exploração de recursos minerais próprios, no aproveitamento das capacidades energéticas e de transporte dos rios, na construção de canais e estradas, no fomento da imigração de mão-de-obra qualificada e na facilidade de constituição e financiamento de sociedades anónimas023. No século XIX, a incerteza económica da década de 1830 foi ultrapassada com a construção de caminhos-de021
CARON, 1997-2005, vol. 1: 537.
022
PERDONNET, 1865.
023
DHONDT & BRUWIER, 1976: 330-355. HERTEN et al., 2001: 37.
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Portugal na segunda metade do século XIX
ferro e com o desenvolvimento da banca e da finança. A ferrovia contribuiu significativamente para que a Bélgica fosse na década de 1840 o país mais industrializado da Europa continental024. O juízo de Perdonnet em relação à política belga não podia ser mais abonatório: “grâce à cet acte decisif, la Belgique (…) a gagné au dehors l’admiration, sinon l’amitié de sus plus hautains ennemis”025. Em Portugal não se duvidava também do sucesso da estratégia da Bélgica, “ousado paiz, apenas teve liberdade quiz progressos. E o que fez? Lançou-se na construção dos caminhos de ferro adiante das outras nações que pareciam mais ousadas e ricas. Creou esses meios de producção, e por esses meios cresceram rapidamente os seus rendimentos públicos”026. O melhor exemplo de desenvolvimento provocado pelos caminhos-de-ferro vinha, porém, dos Estados Unidos da América. Se a ferrovia na América do Norte tinha um enorme potencial desenvolvimentista, decerto esse potencial não se perderia num país dezenas de vezes menor em superfície, ou pelo menos era essa a convicção dos políticos portugueses da segunda metade do século XIX. O deputado Dias Ferreira explicava no parlamento em 1865 que “um escriptor que eu li sobre esta materia, avaliava a população dos Estados Unidos em 1857, em 24.000:000 de habitantes, e contava que n’aquella epocha estavam já abertas á circulação 41,900 kilometros de linhas ferreas. Este mesmo escriptor (…) calculava que com o auxilio das linhas ferreas os Estados Unidos haviam de ter no fim d’este seculo 100.000:000 de habitantes. Ali formam-se como por encanto cidades e villas ao pé das estações”027. Contudo, já desde inícios do século XIX se vinha construindo uma rede de estradas que em 1830 atingia uma extensão de 19 mil km, além de que o número de americanos triplicou entre 1860 e 1910. Simultaneamente, uma agricultura produtiva e dinâmica e a criação de um quadro legal favorável basearam o desenvolvimento da sua indústria. Este crescimento não passou despercebido ao velho continente, que fez dos Estados Unidos da América o seu principal parceiro nas trocas extra-europeias. Inversamente, os norte-americanos eram os principais fornecedores de algodão e cereais da Europa028.
024
CAMERON, 1961: 120-125.
025
PERDONNET, 1865: 38.
026
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 6.5.1867: 1415 (Andrade Corvo).
027
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 30.11.1865: 2719.
028
BAIROCH, 1976: 81-82 e 177. FOGEL, 1972.
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A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 4 – Rede férrea norte-americana em 1865029
Todos estes países serviam de exemplo de modelo desenvolvimentista que se pretendia impor em Portugal na segunda metade de oitocentos. Eram paradigmas que aparentemente mostravam como o caminho-de-ferro era uma aposta segura para o crescimento. Em 1860, o deputado Nogueira Soares convictamente afirmava que “o grau de civilisação de cada uma d’ellas [nações modernas] se póde medir pelo desenvolvimento e extensão proporcional das suas linhas férreas”030. Por outro lado, se aquelas eram as nações a quem Portugal se devia aproximar, outras havia de quem Portugal deveria divergir e ganhar lugares na corrida do progresso. Para isso era necessário construir estradas de ferro, tal como países como Espanha ou Itália vinham fazendo desde as décadas de 1830 e 1840. Neste contexto, “o grande perigo é ficarmos onde estamos: a Espanha cresce, aumenta, civiliza-se: se não seguirmos o seu exemplo, morreremos de inanição”, dizia o jornalista e deputado Lopes de Mendonça em 1853031. 029
PERDONNET, 1865.
030
Diario da Camara dos Deputados, 21.3.1860: 237
031
Apud. MÓNICA, 1996: 59.
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Portugal na segunda metade do século XIX
O perigo era real. Espanha era rival por tradição histórica e concorrente na posição de ponto mais ocidental da Europa. Era também semelhante em termos económicos: ressentira-se da perda das suas colónias americanas, não passara por nenhuma revolução demográfica ou agrícola e encontrava-se num estado financeiro deplorável. Contudo, iniciara a construção de caminhos-de-ferro em 1840 e no virar do meio século parecia apostada em redobrar os esforços até então encetados. O primeiro lustro da década de 1860 ofereceu resultados prometedores, mas cedo se verificou que o sistema de transporte ferroviário era inadequado para a realidade espanhola. Em 1865, o Journal des Travaux Publics descrevia como Espanha se esquecera de que os caminhos-de-ferro eram efeito e não causa da riqueza pública. Assim, a capacidade de transporte estava além das necessidades de tráfego; os níveis de produção não tinham aumentado; e a produção siderúrgica era desincentivada pelas isenções fiscais concedidas à importação de material metalúrgico e pelo desvio de capital para os caminhos-de-ferro. Em todo o caso, nem por isso se deixou de investir na ferrovia. Nos últimos anos da década de 1870, a construção ferroviária foi retomada com novo fôlego até que nos finais dos anos 1880 a expansão foi contida por uma crise agrícola comum ao continente europeu032. Mapa 5 – A rede férrea italiana e centro-europeia 033
032
JORDI NADAL, 1976: 537-553, 558-599 e 567-568. TORTELLA CASARES, 1982.
033
PERDONNET, 1865.
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A linha do Tua (1851-2008)
Itália seguiu uma política muito próxima daquilo que viria a ser o fontismo. Procurou atrair capitais e know-how estrangeiros para desenvolver as infra-estruturas de transporte nacionais. Em 1861, a rede férrea italiana atingia uma extensão de 2.400 km. Até 1876 a construção continuou a uma média de 350 km/ano. Apesar de a totalidade das linhas se debater com dificuldades financeiras e de algumas delas se terem revelado empreendimentos de fraco valor económico, o investimento e a construção não pararam, de tal modo que em 1890 a Itália contava com mais de 13.600 km de vias-férreas. O investimento não permitiu, porém, o desenvolvimento da indústria, pois até 1880 todo o material e conhecimento técnico foram importados034. De qualquer modo, e independentemente de os caminhos-de-ferro não atingirem as expectativas criadas, a ideia de que o vizinho se dotava de uma linha-férrea era intolerável e motivava os governos nacionais a antecipar-se aos estrangeiros na dotação de “um grande melhoramento, hoje tão generico que até as mumias do Egypto, esse typo de immobilidade historica, já andam em caminhos de ferro”035. A opção sempre foi construir e construir mais, malgrado a exploração das linhas se revelar sempre aquém das expectativas. O caminho-de-ferro valia por si só, pelo que representava a nível tecnológico e pelo simbolismo que trazia consigo. Em 1860, o engenheiro Belchior Garcês resumia bem este pensamento ao dizer ao parlamento que “se trouxermos a uma estação de caminho de ferro o homem menos civilisado, menos culto, um hottentote, ou um cannibal, e lhe mostrarmos uma locomotiva, emblema da magestade industrial, producto admiravel das artes mechanicas, ser quasi pensante, este homem enthusiasmou-se necessariamente pelos caminhos de ferro, e o seu primeiro desejo é levar esses caminhos para a sua terra”036. Em Portugal, o ideal de progresso dos governos da segunda metade do século XIX passou assim pelo desenvolvimento da circulação e dos transportes, nomeadamente do transporte ferroviário e marítimo037. O desejo de construir caminhosde-ferro acompanhou sensivelmente as grandes vagas de construção ferroviária na Europa da segunda metade do século XIX: a primeira, começada na década de 1850 e terminada em meados da década de 1860; a segunda, decorrida ao longo do primeiro lustro da década de 1870; a terceira, ao longo da década de 1880038. A primeira vaga ficou marcada pelos grandes objectivos de ligar por caminho-deferro Lisboa ao Porto e a Espanha (e daqui ao resto do velho continente, de modo a fazer do porto de Lisboa o cais da Europa). Excepções a estes planos só se verifica034
CAFAGNA, 1976: 287 e ss. CAMERON, 1961: 297. FENOALTEA, 1983: 49-53.
035
Diario da Camara dos Deputados, 17.3.1860: 182 (José Ponte e Horta).
036
Diario da Camara dos Deputados, 23.3.1860: 249.
037
PRATA, 2011. SALGUEIRO, 2008.
038
ALEGRIA, 1990.
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ram quando algum influente ou algum capitalista ou grupo de capitalistas mostrava interesse numa linha que não respondesse àqueles dois objectivos. Foi o caso dos primeiros quilómetros das linhas do Alentejo (entre o Barreiro e Vendas Novas), que serviam os interesses económicos do marquês de Ficalho e de José Maria Eugénio de Almeida (grandes proprietários na região). Foi igualmente o caso da linha de Sintra, concessionada em 1854 a um francês de nome Claranges Lucotte, que prometia assentar carris entre aquela localidade, Cascais e Lisboa sem qualquer ónus para o estado039. Trás-os-Montes parecia assim muito afastado da agenda dos governantes nacionais no que respeitava à construção ferroviária, pois estava muito distante da rota mais directa entre a capital portuguesa e o centro da Europa. Por outro lado, na região norte interior, o interesse económico que mais despertava cobiça entre os capitalistas da época era o vinho do Porto e o vale do Douro. Tudo fazia crer que os transmontanos tivessem que esperar muitos anos até ouvirem o silvo da locomotiva em Mirandela ou Bragança e de facto assim seria. Na década de 1850, os primeiros tentames de construir caminhos-de-ferro em Portugal acabaram por se revelar um fracasso. A companhia contratada para levar a ferrovia da capital até Espanha, a Central Peninsular, foi incapaz de honrar o compromisso assumido, quedando-se pela ligação Lisboa-Carregado. O homem que se lhe seguiu, Sir Samuel Morton Peto, não foi capaz de assentar um metro que fosse de carril entre o Porto e Lisboa, como acordara com o governo. Também o já citado projecto de Lucotte se revelou inexequível do ponto de vista financeiro. A única excepção a esta triste regra foi a Companhia dos Caminhos de Ferro ao Sul do Tejo, que a custo conseguiu ligar o Barreiro a Vendas Novas e a Setúbal. A década de 1850 foi sobretudo um período de muita aprendizagem, muita despesa e poucas realizações práticas. Neste decénio, nem o Porto se ligou a Lisboa, nem Lisboa se ligou a Espanha040. Ambas as ligações teriam que esperar pela década seguinte para verem a luz do dia. Foi por esta altura que chegou a Portugal o marquês de Salamanca, com uma proposta de construção, muita experiência adquirida e aparentemente muito dinheiro nos bolsos. Don José de Salamanca y Mayol era um capitalista de Málaga, dono de uma invejável fortuna e antigo ministro da fazenda de Espanha, que se tornou empresário ferroviário. Em 1850, era considerado um dos maiores do mundo com mais de 3 mil km construídos. Todavia, no país vizinho esteve também ligado ao maior escândalo financeiro do século (concedera como ministro um benefício a uma empresa de que era director). Em Portugal, o marquês de Salamanca formou a Companhia 039
ALEGRIA, 1990.
040
VIEIRA, 1988.
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Real dos Caminhos de Ferro Portugueses e em menos de cinco anos construiu os cerca de 500 km das linhas do norte (Gaia-Lisboa) e do leste (Lisboa-Elvas/Badajoz), conseguindo de uma assentada só realizar os dois principais objectivos da política ferroviária nacional041. Figura 2 – José de Salamanca e a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses042
Ao mesmo, a construção ferroviária prosseguia no Alentejo. Em meados da década de 1860, a Southeastern of Portugal Railway Company levou o caminho-de-ferro a Évora e Beja. Concretizados os dois grandes objectivos da política ferroviária nacional e estando a rede férrea alentejana em grande desenvolvimento, restaria esperar e obter os proveitos do investimento. Puro engano. A Companhia Real, pouco tempo depois de inaugurar as suas linhas, entrava em situação de incumprimento face aos 041
SALGUEIRO, 2008.
042
http://www.magrama.gob.es/es/ministerio/palacio-de-fomento/ministros.aspx; www.cp.pt. 12
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seus obrigacionistas (que tinham financiado em grande parte a construção). De igual modo, a Southeastern of Portugal Railway Company, que comprara a Companhia dos Caminhos de Ferro ao Sul do Tejo e que explorava as linhas entre o Barreiro, Setúbal, Évora e Beja, passava também por graves dificuldades financeiras. A situação destas sociedades acabaria por se propagar às finanças nacionais, que, no segundo lustro da década de 1860, enfrentaram uma crise severa que impediu a continuação do investimento. Em 1867, tinha sido aprovada uma lei que previa a construção directamente pelo estado (até então, seguia-se o modelo de parceria entre o poder público e o interesse privado através da concessão de subsídios) das linhas do Minho e do Douro. Era uma tentativa de avançar com a construção, apesar da crise, e de mostrar aos credores e prestamistas internacionais que Portugal estava disposto a continuar com a aposta nos caminhos-de-ferro. Contudo, a falta de capacidade para financiar a obra e a chegada ao poder de um governo apostado em realizar cortes na despesa falariam mais alto e a execução desta lei seria deixada para mais tarde. Era, em todo o caso, o primeiro diploma legal que aprovava a construção ferroviária em Trás-os-Montes (a linha do Douro deveria chegar às proximidades do Pinhão) e que constituía o primeiro passo para estender a rede àquela província portuguesa. Usualmente, os caminhos-de-ferro seguiam sempre os vales dos rios, de modo a facilitar a construção e o transporte de materiais para a mesma. Dificilmente seria viável uma outra solução que não seguir o vale do Douro e aproveitar depois os seus afluentes para estabelecer um sistema férreo em Trás-os-Montes, como aliás viria a acontecer043. Mapa 6 – A rede ferroviária ibérica em 1870 044
043
ALEGRIA, 1990. PERIRA, 2012a. PINHEIRO, 1986. VIEIRA, 1983.
044
ALEGRIA, 1990. CORDERO & MENENDEZ, 1978: 248.
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A década de 1870 assistiu ao retomar da construção em várias frentes. O assentamento das linhas do Minho e Douro iniciou-se em 1872 (em 1879, o segundo estava na Régua). Um ano depois, começou a abertura do caminho-de-ferro do Porto à Póvoa e Famalicão. Em 1877, a linha do norte foi concluída com a inauguração da ponte Maria Pia. Neste decénio, chegou-se também à conclusão de que a linha do leste não era a solução mais eficaz para ligar Lisboa à Europa e fazer assim do porto da capital o mais movimentado do velho continente. Foi então que se concessionou o ramal de Cáceres, partindo da linha do leste até à fronteira em Marvão (embora outras soluções mais vantajosas pela Beira se aventassem). Todavia, este caminho-de-ferro tinha tão más condições de tracção que “quando se diga que o caminho de ferro de Lisboa a Madrid tem o celebre ramal de Caceres, e que este caminho é internacional, escusamos de encarecer a sabedoria que tem presidido aos estudos e ás concessões das nossas linhas ferreas”045. Foi um empreendimento pelo qual a Companhia Real nada solicitou do estado e que também por isso foi por este aceite. Com o tempo, percebeu-se, todavia, que o ramal de Cáceres também não oferecia a ligação mais directa entre a capital do reino e os Pirenéus. Por esta razão, em 1878, o governo abriu concurso para a adjudicação da linha da Beira Alta entre a estação de Pampilhosa (na linha do norte) e a fronteira perto de Vilar Formoso046. Por esta altura, debatia-se na associação de engenheiros civis portugueses a problemática do futuro da rede ferroviária portuguesa. Reconhecidos os erros da rede existente, construída “para calar as innumeras exigencias com simulacros de satisfação, para conciliar os interesses politicos com as forças do thesouro”047, trabalhavase agora no sentido de evitar esses erros em vias-férreas futuras, concebendo-se e apresentando-se ao governo um mapa geral da rede a construir. A discussão durou cerca de 18 meses, entre a apresentação da primeira proposta pela comissão nomeada para este efeito em Fevereiro de 1876 e a aprovação do parecer final da associação em Agosto de 1877, se bem que mesmo após esta data alguns engenheiros continuaram a publicar as suas propostas. Trás-os-Montes não ficou esquecido da discussão, tendo muitos engenheiros proposto várias linhas para esta província, de modo a quebrar o seu isolamento territorial. No primeiro alvitre da comissão, apenas foi proposto um caminho-de-ferro que ligasse Bragança ao Pocinho e constituísse a primeira secção de uma via paralela à fronteira de Espanha, de norte ao sul do país. No debate, foi também sugerido um caminho-de-ferro pelo vale do Tua desde Foz-Tua a Bragança, que de facto foi incluído no parecer intermédio da comissão. À medida que a discussão avançava, surgiram 045
Diario dos Dignos Pares do Reino, 8.7.1882: 1124 (Aguiar).
046
PEREIRA, 2012a.
047
LARCHER, 1878a: 269.
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propostas mais ou menos elaboradas, aproveitando os vales do Tâmega, Corgo, Tua e Sabor. A rede final sugerida pela comissão e aprovada pela associação de engenheiros dava a uma linha pelo vale do Tua o carácter de internacional, pois prolongava a linha do Douro até à fronteira em direcção a Zamora. Esta proposta seria ainda alterada a nível governamental por João Crisóstomo de Abreu e Sousa e pelo ministro das obras públicas, Lourenço de Carvalho. Ambos retiravam à linha do Tua o carácter internacional atribuído pela associação de engenheiros (a linha do Douro deveria seguir sempre o vale do rio até Barca de Alva, como aliás viria a acontecer) e João Crisóstomo até a retirava do mapa. Na proposta de lei que o ministro apresentou ao parlamento, já a via pelo vale do Tua voltava a constar da rede. No entanto, esta proposta nunca foi discutida e nunca se transformou em lei: do ponto de vista político e prático não era conveniente um diploma que limitasse a acção dos governos no que tocava à concessão de vias-férreas048. Mapa 7 – Propostas de rede da associação de engenheiros civis (à esquerda), de João Crisóstomo (ao centro) e de Lourenço de Carvalho (à direita)049
048
PEREIRA, 2013.
049
ASSOCIAÇÃO…, 1878. Diario da Camara dos Deputados, 7.2.1879: 345-353. Diario do Governo, 1878, n.º 210: 2260-2266. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 9 (1878), est. 1; t. 10 (1879), n.ºs 109-110: 43-57. ALEGRIA, 1990: 287
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A linha do Tua (1851-2008)
O governo preferia ter um maior espaço de manobra para adjudicar linhas. Podia assim aceitar qualquer proposta de construção de um investidor privado e também beneficiar um ou outro grupo na concessão de linhas. De qualquer modo, nada impedia o governo de ordenar estudos generalizados e foi isso que fez em 1878 ao incumbir Sousa Brandão de analisar e propor uma rede férrea a norte do Douro. Sousa Brandão cumpriu a sua função e em 1880 entregou ao governo um mapa onde propunha várias ferrovias de diferentes graus de importância em Trás-os-Montes. As linhas prioritárias eram as que seguiam pelos vales do Tâmega, Tua e Sabor, ficando o caminho-de-ferro do Corgo e um ramal para Vinhais incluídos num conjunto de segunda ordem. Por fim previam-se uma série de vias transversais às citadas. A linha do Tua acabou por ser a preferida em virtude da sua posição mais central em relação à província. A 12 de Fevereiro de 1883, a proposta de lei para a sua construção foi apresentada ao parlamento pelos ministros da fazenda e obras públicas, Fontes Pereira de Melo e Hintze Ribeiro, num pacote que incluía também o caminhode-ferro da Beira Baixa e o ramal de Viseu. Depois de algum debate a propósito das questões de financiamento, o diploma foi aprovado nas duas casas do parlamento e subiu ao rei, que lhe deu a devida sanção. A lei foi publicada a 26 de Abril 1883 e em Setembro seguinte o concurso foi aberto. Infelizmente, ninguém apresentou propostas, em virtude de alguns termos do contrato de adjudicação (nomeadamente a questão da remição da linha pelo estado). Corrigido este detalhe, o conde da Foz apresentou uma proposta para a adjudicação das linhas do Tua e de Viseu. Em Junho de 1884, o contrato definitivo foi assinado e a construção iniciou-se no mesmo ano. Em 1885, o conde da Foz fundava a Companhia Nacional de Caminhos de Ferro a quem trespassou a concessão. Em Setembro de 1887, a linha do Tua foi finalmente inaugurada na presença do rei e da família real. O caminho-de-ferro chegou finalmente ao coração de Trás-os-Montes, muito embora apenas servisse uma vila de pequena dimensão e não ligasse a capital do distrito, Bragança, ao resto da rede050. A abertura da linha do Tua não aconteceu no melhor período da história nacional, pois cinco anos depois o tesouro nacional declarou bancarrota parcial ao não conseguir assumir a totalidade da dívida pública que havia contraído ao longo dos anos para financiar a política de fomento e de melhoramentos materiais. O retorno do investimento tardou e quando a casa bancária que financiava o défice da coroa portuguesa faliu, Portugal não teve outro remédio senão revelar-se incapaz de honrar os compromissos assumidos. Ao reino faltavam as condições que, como se viu nas páginas anteriores, outras nações tinham e que lhes permitiram tirar maior proveito 050
PEREIRA, 2012b. SANTOS, 2014.
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Portugal na segunda metade do século XIX
económico dos caminhos-de-ferro (sem embargo de estes países terem também passado por crises provocadas por bolhas especulativas formadas à volta da ferrovia). Uma dessas lacunas era algo tão simples como a falta de estradas. Numa ferrovia de montanha como a do Tua essa ausência era ainda mais sentida. Praticamente todos os operadores ferroviários nacionais no século XIX se queixaram da inexistência de rodovias de acesso às estações051. Figura 3 – Relatório e contas da Companhia Nacional apresentado em 1887052
De qualquer modo, não se pode negar também os efeitos positivos que o caminhode-ferro trouxe a Portugal. Numa altura em que uma viagem por terra do Porto a Lisboa demorava dias ou que, por exemplo, o correio enviado da capital para o nordeste demorava oito dias a ir e voltar053, a locomotiva introduziu na vida dos portugueses a velocidade, a rapidez, o poder ir e voltar a Lisboa no mesmo dia. Por outro lado, o caminho-de-ferro criou emprego na sua construção e na sua operação criou carreiras; e, mais importante, criou a ideia de progresso e de modernidade em Portugal. 051
PEREIRA, 2012a.
052
Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1887: 1.
053
ALEGRIA, 1990: 127.
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Portugal na segunda metade do século XIX
1.2. O PROBLEMA DAS REGIÕES MONTANHOSAS E A BITOLA ESTREITA054 Hugo Silveira Pereira055 Uma das maiores dificuldades que se levantavam à construção do caminho-de-ferro do Tua era o terreno que a linha devia percorrer, que poderia impor declives muito acentuados e raios de curva muito diminutos. Essa dificuldade era minorada parcialmente pelo facto de a directriz seguir em grande parte pelo vale do Tua. Mesmo assim, previa-se ainda a necessidade de abrir vários túneis em rocha viva, construir viadutos e levantar muros de sustentação numa linha para a qual não se esperava um grande tráfego (e por conseguinte um grande lucro) e ainda que usufruía de uma garantia de rendimento proporcionada pelo estado. Para responder a ambos os problemas – a dificuldade da construção e o alto custo da mesma – optou-se por assentar a via com uma bitola diferente da usada na maior parte da rede em Portugal. Enquanto nos caminhos-de-ferro já construídos a distância entre faces internas dos carris era de 1,67 m, na do Tua empregar-se-ia uma medida de 1 m. O debate sobre o uso de bitolas diferentes na rede, conforme o terreno atravessado e as expectativas de rendimento previstas, iniciara-se algumas décadas antes em Portugal e no estrangeiro.
054
Este capítulo é uma versão revista e aumentada do capítulo 5.7.2. A via de bitola reduzida (ou estreita) da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a: 438-444.
055
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
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A linha do Tua (1851-2008)
Na Bélgica, a primeira concessão de uma linha de via reduzida (1,15 m) data de 1843056. Na vizinha França, já se discutiam e empregavam grandes declives e raios reduzidos em caminhos-de-ferro de bitola menor desde o fim dos anos 1850, como modo de completar a rede com custos menores. Em 1863, uma comissão encarregada da introdução de melhoramentos na malha férrea gaulesa mostrava-se favorável à construção de linhas com condições de tracção mais modestas. Dois anos depois, desenvolvia-se a construção deste tipo de locomoção. Tratavam-se de ferrovias de mero interesse local, que respondiam à ausência de caminhos-de-ferro em determinadas regiões de França. A lei promulgada em 12 de Julho de 1865 concedia ainda um largo campo de acção aos municípios, que passavam a poder adjudicar vias-férreas, embora a declaração de utilidade pública fosse exclusiva do governo. Este diploma abriu um período de instabilidade no sector, pois fomentava a especulação, e contou com a oposição das grandes companhias ferroviárias, que não ficaram agradadas com a eventual concorrência057. Nos Estados Unidos, já desde as décadas de 1840 e 1850 que se generalizara a ideia de que a via estreita era uma maneira de adaptar o caminho-de-ferro ao terreno e fazer baixar os custos do primeiro estabelecimento (na década de 1870 os norte-americanos dispunham já de uma rede de via reduzida de substancial extensão)058. Por fim, em Espanha, em 1866, o governo ordenou a uma comissão o estudo deste tipo de viação para responder às necessidades de transporte que as redes de bitola larga não satisfaziam. Estes caminhos-de-ferro eram vistos como de segunda ordem, dos quais não se podia esperar o mesmo que das linhas de via larga059. Em Portugal, as primeiras referências a ferrovias de montanha com condições de tracção restritivas remontam a 1858. Neste ano o engenheiro Pedro de Alcântara Gomes Fontoura apresentou dois relatórios sobre a linha-férrea de Génova a Turim, caracterizada por grandes declives (até 35 mm/m) e curvas de raio diminuto (100 m), onde circulavam locomotivas duplas com rodas acopladas, que atingiam uma velocidade máxima de 35 km/h060. Alguns anos depois, o marquês de Sá da Bandeira referiu no parlamento o mesmo caminho-de-ferro, como exemplo de um sistema que conseguia vencer grandes declives e adaptar-se com curvas apertadas ao terreno061. Todavia, em termos práticos nada se concretizou. A nível governamental, só na década de 1870 começou o ministério das obras públicas a dar verdadeira atenção à 056
HERTEN et al., 2001: 73.
057
ARNOUX, 1860: 3-9. ARMAND, 1963: 53 e 62-65. CARON, 1997-2005, vol. 1: 430-440.
058
PUFFERT, 1995: 306-308. PUFFERT, 2000: 942-945.
059
COMÍN COMÍN et al., 1998, vol. 1: 242-243. MUÑOZ RUBIO, 2005: 1 e ss. WAIS, 1974: 505 e ss.
060
FONTOURA, 1860a. FONTOURA, 1860b.
061
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos pares de 11.12.1865: 2846-2847.
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questão. Até então, as preocupações estavam centradas e reservadas às vias de primeira ordem. No início daquela década, o governo resolveu reunir mais informação sobre os caminhos-de-ferro de via estreita. Esperava que traçados com esta característica pudessem ser concedidos sem qualquer tipo de subvenção ou apoio financeiro e trouxessem mais tráfego às linhas de primeira ordem que entretanto se haviam construído. Foi assim que o engenheiro Cândido Celestino Xavier Cordeiro foi incumbido de iniciar um périplo pela Europa (Alemanha, Áustria e França) para estudar ferrovias em zonas montanhosas. Figura 4 – Cândido Celestino Xavier Cordeiro062
Entre 1871 e 1872, a associação de engenheiros civis portugueses contribuiu também para este esforço, publicando na sua revista – a Revista de Obras Publicas e Minas – um estudo sobre linhas de via reduzida (provavelmente da autoria de Vitorino Damásio). Confirmando a sua exequibilidade e segurança, Damásio(?) aconselhava o governo a fazer destas vias os afluentes dos caminhos-de-ferro de primeira grandeza, ligando povoações importantes, portos de mar ou rios. Não deviam beneficiar de qualquer tipo de auxílio estatal, devendo ser adjudicadas a companhias privadas e construídas com a maior economia possível e com uma bitola uniforme para toda a rede (1 m). A junta consultiva de obras públicas e minas concordava com esta opinião, mas admitia a concessão de subsídios aos indivíduos que construíssem e ope062
Revista de Obras Publicas e Minas.
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A linha do Tua (1851-2008)
rassem estas vias-férreas, caso contrário o tráfego não seria suficiente para remunerar os capitais investidos063. À opinião favorável dos engenheiros portugueses juntavam-se os exemplos práticos e lucrativos de caminhos-de-ferro de via estreita no estrangeiro, que eram bastante difundidos em Portugal através da Revista de Obras Publicas e Minas. Em 1873, noticiava-se uma linha nas montanhas da América do Norte que atravessava grandes gargantas e precipícios com declives até 30 mm/m e raios de curva até 60 m064. Na Suíça “mais um exemplar dos grandes serviços que as vias de largura reduzida podem prestar nos paizes accidentados, onde o trafego não póde remunerar as despezas de um caminho de ferro ordinario, é a linha entre Appenzell, Herisau e o caminho de ferro de Saint-Gall-Rorschach”, construído com curvas de 90 m e declives de 85 mm/m065. Por toda a Europa contavam-se então milhares de quilómetros de vias reduzidas, com destaque para as redes da Noruega, Suécia, Rússia e França. Entre a classe engenheira nacional concluía-se que “os caminhos de ferro de via estreita parecem-nos pois chamados a resolver na maior parte dos casos a questão tão debatida dos caminhos de interesse local, e desenvolver em todos os districtos de qualquer paiz uma circulação rapida, regular e económica”066. No que não havia unanimidade era na bitola, pois havia-as para todos os gostos e necessidades. Estes alvitres e factos favoráveis à via reduzida, aliados a uma retoma das condições financeiras em Portugal nos primeiros anos da década de 1870, estimularam a apresentação de propostas concretas para a construção de caminhos-de-ferro em bitola reduzida. No primeiro lustro do decénio de 1870 foram dez os projectos apresentados: Simão Gattai (linha de Guimarães), Kessler e Ellicot (linha da Póvoa), Teixeira de Sampaio (linha de Portalegre), Luís Augusto Palmeirim (linha de Santana a São Martinho), Filipe de Carvalho (linha de Cacilhas), Albert Meister (linha do vale do Lima), Damião Pinto (idem), Camille Mangeon e Evaristo Nunes Pinto (linha entre Coimbra e a Figueira), grupo do conde de Penamacor (linha entre Lisboa e Torres Vedras) e uma proposta de lei incumbindo o governo da construção da linha do Corgo067. Destas, oito transformaram-se em concessões definitivas, mas só uma efectivamente se concretizou (a da linha do Porto à Póvoa, inaugurada em 1875 e construída com uma bitola de 90 cm). As demais revestiram-se de um carácter meramente especulativo. O proponente apenas desejava arrebatar a adjudicação para depois a vender a quem oferecesse mais, ficando eventualmente com um cargo confortável na 063
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Liv. 32 (1871): 280-299; liv. 32-A (1871): 1-8v. ASSOCIAÇÃO…, 1871-1872. CORDEIRO, 1870.
064
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 4 (1873), n.º 40: 170-171.
065
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 8 (1877), n.º 88: 176.
066
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 6 (1875), n.º 70: 414.
067
PEREIRA, 2012a: 441.
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direcção da nova companhia. Outra razão para a baixa taxa de sucesso destas iniciativas foi a falta de apoios por parte do estado. Não eram concedidos nem subsídios à construção ou exploração, nem isenções fiscais (algo que só foi mudado com a lei de 9 de Abril de 1874, que isentava de taxas a importação de material de construção e exploração por parte de companhias não-subvencionadas068). Em compensação, o governo não exigia nenhum depósito de garantia nem impunha nenhum prazo de concessão nem condições para remição da linha. Porém, estas contrapartidas não foram suficientes para seduzir os empreendedores069. Na segunda metade da década, o entusiasmo refreou-se em virtude da crise bancária de 1876 e da teima do governo em não conceder subsídios a estes empreendimentos. Surgiram apenas seis novas propostas, duas delas como prolongamento da já existente linha da Póvoa e outras quatro para vias novas. A taxa de sucesso seria maior (dois daqueles projectos seriam realmente realizados – a extensão do caminhode-ferro da Póvoa a Famalicão e a ligação entre Guimarães e a linha do Minho), mas não ainda suficientemente alta070. Por isso os poderes públicos procuraram também atrair novos investimentos, através de instrumentos retóricos e de um alargamento das isenções fiscais. No parlamento, o conde de Valbom (Joaquim Tomás Lobo de Ávila) elogiava as potencialidades da via reduzida no apoio à rede de 1,67 m de bitola071; a junta consultiva de obras públicas aconselhava a construção de uma malha de ordem inferior em via estreita072; e o governo propunha ao legislativo a concessão de isenção da contribuição industrial por dez anos às companhias de caminho-de-ferro de bitola reduzida, em troca dos serviços gratuitos a que normalmente as sociedades subvencionadas estavam obrigadas (a lei de 7 de Abril de 1877 viria a conceder essa isenção, mas limitava-a às empresas já formadas, ou seja unicamente à que explorava a linha da Póvoa)073. Portugal tentava assim acompanhar o que se fazia no resto da Europa (a diversa legislação de França, Bélgica e Espanha saída entre 1875 e 1880), no entanto fazia-o de uma forma muito mais tímida. Em 1878, o ministro das obras públicas encomendou novos estudos a Xavier Cordeiro, que voltava assim aos périplos internacionais. No final da sua comissão, Cordeiro escreveu um verdadeiro tratado sobre este tipo de caminhos-de-ferro, justificando as suas vantagens e limitações e as condições em que deviam ser construídos. 068
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1874: 42-43.
069
PEREIRA, 2012a: 441.
070
PEREIRA, 2012a: 442.
071
Diario da Camara dos Deputados, 14.1.1876, 24.1.1876, 28.3.1876 e 19.3.1877: 21, 111, 820-821 e 701.
072
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. 18, parecer 6418 (7.1.1875); liv. 37-A, parecer de 26.12.1876.
073
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1877: 55.
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Figura 5 – A Memoria ácerca dos caminhos de ferro de via reduzida de Xavier Cordeiro074
Também o engenheiro Sousa Brandão foi enviado à Suíça e a Itália, onde analisou os caminhos-de-ferro entre St. Gallen e Appenzell e o de Righi, ambos de bitola 074
CORDEIRO, 1879.
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Portugal na segunda metade do século XIX
métrica. Na primeira daquelas vias, a inclinação chegava aos 35,8 mm/m com curvas até 120 m de raio. Na linha italiana o declive atingia uns estonteantes 250 mm/m, que só eram vencidos através de um sistema de cremalheira com rodas e carris dentados. Para o engenheiro, estas vias-férreas só deveriam servir de incentivo à sua construção em Portugal, país onde não seriam necessárias condições tão draconianas: 20 mm/m de declive máximo e 150 m de raios de curva mínimos (associados a carris e locomotivas mais leves) eram valores perfeitamente praticáveis. É na sequência destes estudos que Sousa Brandão projectou a já referida rede interna a norte do Douro075. Figura 6 – Francisco Maria de Sousa Brandão
A via reduzida era encarada como uma forma de levar os benefícios da viação acelerada aos locais onde a via larga em teoria não chegava ou deixava de oferecer perspectivas de negócio, designadamente em territórios muito acidentados. Superava os americanos (carril de ferro assente directamente sobre uma estrada) por aplicar exclusivamente a tracção a vapor e poder transportar mais mercadorias e passageiros. Ficava aquém da via larga em termos de velocidade, capacidade de transporte e necessidade de baldeação e de maiores cuidados na exploração e serviço. Estas perdas eram, porém, compensadas com o menor custo de primeiro estabelecimento e com o facto de estes caminhos-de-ferro se destinarem a servir regiões onde as necessidades de transporte e de altas velocidades não fossem tão grandes. Dentro de certos limites, a redução da bitola (até aos 90 ou 100 cm) permitiria a flexibilização de declives e raios de curva (até ao máximo de 30 mm/m e de 120 metros, respectivamente), o uso de material tractor e circulante mais curto e ligeiro e o emprego de um carril mais leve sobre uma infra-estrutura menos profunda, do que resultava uma redução das despesas de instalação (o que levou a apelidar estes caminhos-de-ferro de económicos)076. 075
BRANDÃO, 1879a. BRANDÃO, 1879b. BRANDÃO, 1880.
076
BRANDÃO, 1879a. MACHADO, 1864. ASSENTIZ, 1910. SANTOS, 1889.
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A linha do Tua (1851-2008)
A poupança na sua construção não derivava propriamente da redução da bitola (que implicava em todo o caso travessas, obras de arte, trincheiras e aterros mais curtos), mas sim de se poder adaptar o seu traçado ao terreno sem perda substancial de capacidade de tracção. Entendia-se que “curvas de 300 metros de raio para a largura de via de 1,68 (sic) podem considerar-se equivalentes ás curvas de 260 metros de raio para largura de via de 1,45 (sic) ou ás curvas de ainda menos de 180 metros de raio, para os caminhos de ferro de via reduzida”077. A via estreita permitia a construção de trainéis mais inclinados e curvas mais apertadas e com isto podia levar à diminuição do número de obras de arte (pontes, viadutos, túneis) a edificar. Xavier Cordeiro computava em 36% a poupança em relação à via larga, coeficiente que tendia a aumentar à medida que os terrenos se tornavam mais acidentados078. A economia prolongava-se depois à exploração, graças ao menor peso dos vagões e à diminuição do peso morto (por permitir comboios mais curtos que em via larga). Tudo isto compensava o problema da baldeação, que, de qualquer modo, podia também ser uma necessidade em vias de bitola igual. Em contrapartida, os declives acentuados e os raios de curva reduzidos provocariam um maior consumo de combustível, uma menor velocidade e um maior desgaste do material fixo e circulante. A própria linha ficaria também mais comprida. Tudo ficava pois dependente das necessidades e características das regiões a servir. À partida, a via estreita seria a opção óbvia para linhas desligadas da rede geral ou que a ela se comunicassem somente por uma das suas extremidades; vias que atravessassem um terreno acidentado e servissem um tráfego potencial restrito; caminhos-de-ferro em que as rampas se inclinassem no sentido do principal movimento; situações em que o trânsito de passageiros predominasse; ou ocasiões em que as mercadorias fossem previsivelmente de fácil baldeação. No entanto, mesmo nestas circunstâncias podia ser admissível a escolha da via larga, que também podia ser assente de forma económica. Tudo dependia dos estudos, que, para Xavier Cordeiro, eram a maior economia que se podia fazer079. Na realidade, a montanha não era condição obrigatória para a escolha da via reduzida. As linhas do Douro e da Beira Alta constituem excelentes exemplos desta situação. Ambas se situam em zonas acidentadas, ambas possuem variadíssimas obras de arte, ambas ostentam condições de tracção restritas e ambas foram construídas em bitola larga de 1,67 m. O caminho-de-ferro do Douro segue na maior parte da sua ex077
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Pública. Junta Consultiva das Obras Públicas e Minas. Cx. 18, parecer 6418 (7.1.1875): 26.
078
CORDEIRO, 1879.
079
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Pública. Junta Consultiva das Obras Públicas e Minas. Liv. 32 (1871): 280-299; liv. 32-A (1871): 1-8v. ASSOCIAÇÃO…, 1871-1872. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 6 (1875), n.º 63: 154-156. CORDEIRO, 1879. SANTOS, 1889.
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Portugal na segunda metade do século XIX
tensão o vale do rio (o que não significa facilidades de construção, pois mesmo aqui foi necessário abrir muitos túneis), mas até lá chegar tem que atravessar uma zona desnivelada com muitos túneis e viadutos. O mesmo se pode dizer da linha da Beira Alta que atravessa uma das províncias mais abruptas do país e nem sempre acompanha a passagem deixada pelo Mondego. Contudo, em nenhum dos casos se optou pela bitola estreita (e a construção do caminho-de-ferro da Beira Alta foi iniciada em 1878 quando muito já se sabia sobre via reduzida), uma vez que ambas as linhas eram consideradas de primeira importância na rede, às quais se augurava um volumoso tráfego. A linha da Beira Alta era mesmo considerada na altura da sua construção como o mais importante caminho-de-ferro nacional por ligar Lisboa à fronteira francesa pelo percurso mais curto e directo. Por outro lado, a linha da Póvoa assente no litoral não atravessava uma região que se pudesse considerar demasiadamente acidentada, mas nem por isso foi construída em via larga. Os investidores optaram pela via estreita como forma de diminuir os custos da construção, um factor muito importante para um empreendimento que não contava com qualquer tipo de apoio por parte do estado. Apesar dos esclarecimentos e asseverações de Xavier Cordeiro e Sousa Brandão, a iniciativa privada continuava desinteressada destes investimentos. A especulação em torno de grande parte das concessões adjudicadas, o fraco desempenho económico-financeiro da Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa e Famalicão, os problemas legais enfrentados pela companhia da linha de Guimarães (com o anterior concessionário e empreiteiro desta via-férrea) desincentivavam o investimento nos moldes usados até então (sem subsídios) e nem os bons exemplos vindos do estrangeiro (Espanha, Noruega, Suécia, Brasil, Estados Unidos da América e até Nova Zelândia) inverteram essa situação080. O governo viu-se assim forçado a abrir os cordões à bolsa caso desejasse realmente ter caminhos-de-ferro de via reduzida. O primeiro beneficiado desta nova política seria um grupo de capitalistas ingleses liderado pelo duque de Sutherland que se propunha a construir um caminho-de-ferro de via reduzida em… Goa, na Índia Portuguesa. Tratava-se de uma ferrovia que deveria ligar o porto de Mormugão a Castle Rock na fronteira com a Índia Britânica, sendo obviamente depois continuada até se ligar à rede já existente, e à qual o governo atribuiu em 1880 e 1881 uma garantia de juro 5% sobre 800 mil libras e 6% sobre 550 mil libras. Em teoria todo o sul da península indiana ficaria assim com uma saída de mar mais próxima do que Bombaim, situada mais para norte na costa. Havia dois problemas à prossecução deste projecto: em primeiro lugar o dinheiro que o Stafford House Committeee (o grupo de investidores britânicos) não tinha. Em segundo a vasta e acidentada cadeia montanhosa que 080
ROPM, t. 14 (1883), n.º 157: 25; t. 15 (1884), n.º 169: 65.
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A linha do Tua (1851-2008)
se elevava paralelamente à costa a cerca de 45-80 km de distância de Mormugão – os Ghats Ocidentais (ou cordilheira Sayhadri). Mapa 8 – A linha de Mormugão e a rede da Índia Britânica 081
081
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Mapas e Desenhos, C-1-10-B.
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Portugal na segunda metade do século XIX
Os Ghats não são montanhas muito elevadas (os seus picos situam-se entre os 300 e os 900 metros acima do nível do mar), mas elevam-se muito abruptamente com declives muito acentuados e com poucos desfiladeiros ou pontos de passagem. Ao contrário do que viria a acontecer no Tua e em outras linhas de bitola estreita portuguesas, em Goa não havia nenhuma passagem natural formada por um rio onde os carris pudessem ser colocados. Seria positivamente necessário furar a rocha numa extensão de algumas dezenas de quilómetros. Além do mais a zona dos Ghats era e é uma região subtropical, quente, densamente florestada e povoada por animais selvagens, sujeita às monções e altamente propícia a doenças. Era um extraordinário desafio para os engenheiros que teriam que planificar e dirigir a construção e sobretudo para os operários a quem caberia a abertura do leito e o assentamento dos carris. Seria um desafio que proporcionaria ainda inaugurar uma política de investimentos em caminhos-de-ferro de via reduzida; aplicar os conhecimentos recolhidos por Xavier Cordeiro, que foi mesmo enviado para a Índia como fiscal do governo para supervisionar os estudos no terreno e a construção da via; e obviamente acumular experiência na construção de caminhos-de-ferro de via reduzida em terrenos montanhosos. Figura 7 – Aspecto do porto de Mormugão antes do início da construção082
082
MENDES, 1989, vol. 1: 202-203.
29
A linha do Tua (1851-2008)
Os estudos foram feitos pela companhia concessionária (a West of India Portuguese Guaranteed Railway Company, que contratou o engenheiro Edward Sawyer e a empresa Hawkshaw, Son & Hayter) devidamente acompanhados por Xavier Cordeiro, que, fiel ao seu conselho de não optar pela via reduzida simplesmente por se ter que atravessar uma zona de montanhas, alvitrou que a linha devia ser construída em bitola larga, uma vez que se poderia esperar um volumoso tráfego vindo da Índia Britânica – uma visão excessivamente optimista. Contudo, o governo português não estava disposto a suportar um orçamento muito elevado (sobre o qual recaía a garantia de rendimento oferecida por Portugal à West of India) e acabou por optar pela via reduzida, no que foi secundado pelo governo da Índia Britânica, responsável pela continuação do caminho-de-ferro no seu território. A construção iniciou-se em finais de 1881 e revelou-se um empreendimento extraordinariamente difícil sobretudo na cordilheira dos Ghats: clima febril, acompanhado de péssimas condições sanitárias num cenário de floresta densa. Foi necessário erigir sete pontes e cinco viadutos e abrir 12 túneis nas montanhas, onde os trabalhadores tinham que estar atentos aos tigres que povoavam a região. Dentro dos túneis o ar era normalmente bafiento e doentio, o que ceifava a vida a muitos dos operários. Além disto, nas montanhas só era possível trabalhar durante seis meses em cada ano, por causa das monções. Muitas vezes, quando os construtores regressavam tinham que refazer alguns dos trabalhos, pois as chuvas tinham-nos destruído. Nestas condições era difícil contratar pessoal suficiente para a obra. Figura 8 – Aspecto da linha de Mormugão atravessando as cataratas de Dudhsagar em 1929 (à esquerda) e actualmente (à direita)083
Tudo isto acabou por atrasar a obra e por levar à demissão de Xavier Cordeiro que se sentiu lesado por declarações menos abonatórias do ministro português da marinha e ultramar. Cordeiro regressou a Portugal, sendo empregado pela Companhia 083
DIAS, 1929.
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Portugal na segunda metade do século XIX
Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, e foi substituído em Goa por Fernando Luís Mouzinho de Albuquerque que sempre revelou um excesso de zelo na condução das suas tarefas de fiscalização, acabando também por se envolver em disputas desnecessárias com a companhia e assim atrasar a entrega da obra e a abertura da linha, o que veio a acontecer em Janeiro de 1888. No final, Goa passou a dispor de uma linha com 82 km em que 40% do traçado era em curva e 65% em declive; os comboios circulavam a uma média de 27 km/h fora da secção dos Ghats e a uma média de 13 km/h nos Ghats, onde aliás era necessário usar duas locomotivas (uma à frente e outra atrás no percurso ascendente; duas à frente no percurso descendente). O empreendimento acabou por se revelar um fracasso para Goa e para Portugal, porque poucas eram as mercadorias que buscavam o porto de Mormugão. Já para a West of India foi um sucesso pois tinha um rendimento garantido de 6% sobre a totalidade do capital investido. A responsabilidade desta situação não pode ser atribuída à bitola da via, que contudo limitava seriamente as capacidades de transporte da mesma. Outros factores mais importantes como a falta de ligações directas por navios a vapor entre Mormugão e a Europa ou o desinteresse das companhias britânicas em lidar com um caminho-de-ferro em território estrangeiro (com moeda, língua e procedimentos diferentes) justificam de forma mais completa o fracasso da linha de Mormugão084. Voltando um pouco atrás no tempo, mais precisamente cinco anos, até 1883, no parlamento nacional discutia-se uma proposta de lei destinada a autorizar a construção mediante garantia de juro sobre um capital fixo das linhas da Beira Baixa, Tua e Dão (ramal de Viseu), as duas últimas em bitola estreita. Depois de reconhecer a necessidade de financiamento de vias-férreas no ultramar, o mesmo governo que decretara o auxílio à linha de Mormugão concedia um novo apoio aos primeiros caminhos-de-ferro de montanha em bitola estreita em Portugal: no vale do Tua e no vale do Dão. O processo seguiu os trâmites habituais desde a apresentação da proposta ao legislativo e sua aprovação, abertura de concurso (ganho na parte referente às linhas de via estreita pelo conde da Foz, que brevemente formaria a Companhia Nacional), início da construção e inauguração dos novos serviços (1887 para a linha do Tua, 1890 para o ramal de Viseu)085. Inauguradas estas três ferrovias (Mormugão, Tua e Viseu), seria de esperar que outros se lhes seguissem, porém não foi isso que aconteceu. Chegaram algumas propostas ao ministério das obras públicas para a construção de caminhos-de-ferro de via reduzida sem custos para o estado (designadamente a ligação de Fafe a Guimarães e a linha de Coimbra a Arganil). No parlamento, alguns deputados do vale do 084
Sobre o caminho-de-ferro de Mormugão, ver: KERR & PEREIRA, 2012.
085
PEREIRA, 2012a.
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A linha do Tua (1851-2008)
Corgo procuraram dotar a sua região de caminhos-de-ferro de via estreita. O próprio governo apresentou uma proposta de lei para complementar a rede ao norte do Mondego, mas nenhuma destas iniciativas se concretizaram no curto prazo. Mapa 9 – Proposta governamental de Junho de 1888 para complementar a rede férrea a norte do Mondego086
A construção e inauguração daquelas linhas ocorreram no período final do fontismo, pouco antes da bancarrota de 1892, que abriu as portas a uma década de austeridade e corte na despesa e no investimento público087. As empresas que detinham e operavam vias-férreas de bitola reduzida (e não só) passavam por sérias dificuldades financeiras: no caso da Companhia Nacional, a garantia de rendimento paga pelo estado não chegava para cobrir o prejuízo, uma vez que a construção custara mais do que o orçamentado (e não esqueçamos que a garantia de juro era apenas e só sobre o custo orçamentado). Só a West of India soube precaver-se desta situação ao exigir do estado uma garantia de juro sobre o total do capital gasto no projecto. Tudo isto fazia 086
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Mapas e Desenhos, C-32-7-B.
087
PEREIRA, 2012b.
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Portugal na segunda metade do século XIX
com que a angariação de capital se tornasse cada vez mais difícil: o estado esgotara a sua capacidade de apoio ao investimento e das poucas companhias que aceitavam construir sem a garantia do estado, nenhuma conseguia convencer os prestamistas a abrir os cordões à bolsa e financiar a obra. No final do fontismo, Portugal Continental contava apenas com quatro linhas de via reduzida (Porto – Póvoa – Famalicão, Tua, Guimarães e Viseu), que, desligadas entre si, não constituíam um serviço em rede e só de forma muito frágil complementavam o serviço prestado pela malha de via larga. Mapa 10 – As linhas de via estreita do Porto à Póvoa e Famalicão e de Guimarães e projectos para as suas extensões088
A demora com que a rede de primeira ordem se constituiu, o débil desempenho das companhias que se constituíram até à década de 1880 e a falta de capacidade pública para subvencionar investimentos privados em grande escala nesta área motivaram esta situação, apesar de do estrangeiro chegarem a Portugal, através de diversos periódicos da especialidade, notícias de boas explorações de linhas de via reduzida.
088
Arquivo histórico-diplomático. Ligações por intermédio de pontes.
33
Cx. 38, mç. 8, doc. 281.
A linha do Tua (1851-2008)
1.3. VIAJAR EM PORTUGAL E NO INTERIOR TRANSMONTANO Maria Otília Pereira Lage089 Albano Viseu090 Hugo Silveira Pereira091 O principal problema nacional a solucionar com a estratégia de melhoramentos materiais encetada na segunda metade do século XIX foi o do subdesenvolvimento do sistema de transportes e vias de comunicação, que, até à regeneração, era apodado de africano por Oliveira Marreca092. Em 1748, foi publicado um guia de itinerários terrestres, editado por João Baptista de Castro. Este roteiro foi reeditado e aumentado sucessivamente até 1844, podendo-se afirmar que entre a primeira e a última versão o número de estradas novas é insignificante093. Quase não existiam rodovias e as que existiam eram de má qualidade, inseguras e atacadas amiúde por salteadores, de tal modo que “um companheiro de jornada confessou ter feito testamento e encomendado a alma a Deus, antes de se afoitar àquela arriscada empresa de transmitir os ossos aos eixos da mala-posta e confiar a vida aos prováveis assaltos dos pinhais e despenhadeiros de duas noites entre Lisboa e Porto”094. 089
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
090
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
091
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
092
Apud. MACEDO, 2009: 122.
093
MATOS, 1980: 25. Ver também ABREU, 2011: 81.
094
Apud. GAIO, 1957: 26. Ver também ABRAGÃO, 1955-1960. ALEGRIA, 1990. BETTENCOURT, 1959.
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Portugal na segunda metade do século XIX
Viajar dentro do reino era assim difícil, moroso e perigoso, de tal modo que alguns autores estrangeiros consideravam as diferentes localidades como reinos separados095. No século XVIII, M. Link considerava que “a Portugal, só o que falta são estradas e canais”096. Cem anos depois, em 1882 um escritor franco-polaco – Bronislaw Wolowski – ainda afirmava que Portugal “est un pays aussi inconnu en Europe que la Chine”097 em virtude da falta de vias de comunicação. Para o autor português Cláudio Adriano da Costa, a falta de estradas era mesmo a principal causa para a degradação do sexo feminino, pois à falta de vias onde pudessem circular carros, cabia às mulheres os trabalhos de transporte mais pesados098. A situação não era exclusiva de Portugal, sendo partilhada, grosso modo, pelos países do sul da Europa, sobretudo Espanha. No país vizinho, em meados do século XIX, eram poucos os “arrieros, carreteros o cocheros que al ponerse en camino no se santigüen, murmuren alguna oración, pocos los que no lleven alguna reliquia o escapulario”099,tal era o receio em percorrer os caminhos castelhanos. Em Espanha, a falta de investimento público durante o absolutismo no sector dos transportes terrestres, o relevo acidentado, a instabilidade política no dealbar do regime liberal e a impotência da fazenda pública impediram o desenvolvimento da sua rede viária. As mesmas razões podem ser apontadas para o sector dos transportes português. Apesar disto, Espanha estava mais bem servida de estradas que Portugal, mas ambas as nações estavam ainda muito longe da realidade francesa ou inglesa100. Em Portugal, em 1852, a única via de comunicação com alguma qualidade era a estrada entre Lisboa e Coimbra (iniciada cerca de 1780 e concluída em 1798), mas mesmo assim era preferível tomar o barco do que seguir por essa estrada, que na década de 1840 era frequentemente alagada101. Contudo, quem quisesse ir da capital ao Porto por via marítima teria que esperar que o mar estivesse calmo e que a barra do Douro estivesse aberta. Não podia também ter muita pressa, pois a viagem demorava 20 horas. Por terra podia-se demorar até quatro a cinco dias. Para outros pontos do país a situação era igual: a viagem de Lisboa a Elvas, Algarve ou Bragança ou a subida do Douro desde o Porto até ao Pinhão era jornada para durar vários dias.
PEREIRA, 2010. SOUSA 1941. 095
MATOS, 1980: 29-30.
096
Apud. ABREU, 2011: 90.
097
WOLOWSKI, 1883: 1. Ver também PEREIRA, 2012a.
098
Apud. MATOS, 1980: 30.
099
Apud. GÓMEZ MENDOZA, 1989: 35.
100
COMÍN COMÍN et al., 1998, vol. 1: 2-11. GÓMEZ MENDOZA, 1982: 21-22 e 24-25. GÓMEZ MENDOZA, 1989: 35-36. GÓMEZ MENDOZA, 1991: 104-108. HERTEN et al, 2001: 34.
101
ALEGRIA, 1981: 359-360.
35
A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 11 – Tempo de demora do correio em 1810 (à esquerda) e 1874 (à direita)102
As mercadorias circulavam assim num raio reduzido, excepto em zonas onde houvesse algum interesse imediato a explorar. Era mais viável o transporte fluvial ou de cabotagem do que o transporte terrestre até ao e no interior. Mas mesmo aquele não era desprovido de dificuldades. Os rios tinham um regime irregular, secavam durante o Verão e tornavam-se revoltos durante o Inverno, tinham a foz assoreada e estavam pejados de dificuldades à navegação. Em todo o caso, eram a principal via de comunicação entre o litoral e o interior. A região vinhateira duriense era servida pelo Douro. Uma vasta área que se estendia desde a Figueira da Foz até à Covilhã aproveitava-se do Mondego. O Tejo dava vazão aos produtos de grande parte da Estremadura e do Ribatejo, do Alto Alentejo e da Beira Alta (a sul da Guarda). Pelo Sado, escoavase muito do cereal alentejano. Considerando a insuficiência de estradas e a relativa rapidez, baixo custo e facilidade de deslocação de grandes cargas que proporcionavam, foram os rios que permitiram um maior alargamento do mercado, muito embora 30 a 102
ALEGRIA, 1990: 127. Apud. PACHECO, 2004: 97.
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Portugal na segunda metade do século XIX
40% do território nacional, incluindo áreas de considerável especialização agrícola, não tivesse acesso a cursos fluviais. Na primeira metade do século XIX, procurou-se melhorar e desenvolver a navegabilidade dos rios nacionais. Introduziu-se o barco a vapor no Tejo (1821), iniciou-se a construção do canal da Azambuja (1822), planeou-se a construção de outros canais de ligação entre Sado, Tejo e Guadiana e entre Douro e Vouga e fizeram-se obras em alguns leitos. Contudo, os resultados ficaram muito aquém das necessidades do país e a navegabilidade fluvial manteve-se limitada, sazonal, errática e insegura103. Os portos não se encontravam melhores, apesar de o mar ser a opção preferida para o transporte de mercadorias e passageiros para outros países e mesmo entre cidades nacionais costeiras. As principais barras portugueses encontravam-se em condições deficientes. A falta de investimento tinha levado ao assoreamento de algumas delas (situação agravada pelo aumento do calado dos navios) e a inexistência de faróis dificultava a navegação ao longo da costa. No século XVIII e primeira metade do século XIX, muitas foram as propostas de melhoramento, mas poucas foram as realizações e nem a introdução da carreira a vapor entre Lisboa e Porto mudou sobremaneira a situação. Na segunda metade de oitocentos, a navegação de cabotagem conheceu francas melhorias, graças à realização de obras nos portos e faróis104. Fosse como fosse, as vias de comunicação terrestres eram as que mais necessitavam de investimento. Já durante o regime absolutista se tinham aberto algumas estradas, mas estas não conseguiram suprir as precisões do reino. Os liberais, cônscios desta realidade, que limitava a circulação de pessoas e bens e comprometia a actividade económica, procuraram alterar a situação. Em 1835, foi nomeada uma comissão de melhoramentos da comunicação interna. Devia elaborar um plano geral de estradas, pontes, encanamentos, canais e portos, de acordo com os recursos disponíveis105. Em finais da década de 1830 começaram a gizar-se as bases para uma política de estradas à escala nacional, integrada com a navegação fluvial e costeira. Mouzinho de Albuquerque e a inspecção-geral de obras públicas realizaram vários estudos preparatórios, dentro das limitações com que se confrontavam. No final, aquilo que realmente foi feito ficou aquém do esperado por falta de recursos financeiros e excesso de instabilidade política. Na década de 1840, com Costa Cabral, notou-se um incremento no esforço de desenvolvimento das vias de transporte terrestre. Surgiram as sociedades promotoras das comunicações internas do reino e dos interesses materiais da nação, que deveriam sugerir ao governo os meios para construir estradas. Tentou-se também colocar 103
ALEGRIA, 1990. GASPAR, 1970: 70. JUSTINO, 1988-1989: 189. SERRÃO, 1962: 269. SERRÃO et al., 1999-2000, vol. 6.
104
ALEGRIA, 1990.
105
MATOS, 1980: 39.
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o país na rota dos melhoramentos materiais, fazendo da construção de estradas macadamizadas, quer por acção directa do estado, quer pela contratação de empresas construtoras (o modelo preferido, por se entender mais simples e económico), uma das prioridades políticas para acabar com o atraso económico de Portugal (propostas de lei de 26 de Julho de 1843 e de 9 de Agosto de 1848). Mapa 12 – Estradas propostas pelo governo de Costa Cabral em 1843 (à esquerda) e 1848 (à direita)106
No entanto, os concessionários raramente tinham dinheiro para cumprir o contrato, sendo as concessões canceladas ou abandonadas antes do início dos trabalhos. Demais, não havia em Portugal nem mão-de-obra qualificada nem recursos técnicos suficientes, faltando ainda o levantamento topográfico do terreno. Por outro lado, as companhias promovidas por Costa Cabral não passavam de projectos especuladores, que tinham como fim recompensar os seus apoiantes políticos. O mais flagrante exemplo deste tipo de empresas foi a Companhia de Obras Públicas de Portugal, que chamava a si o exclusivo das iniciativas respeitantes às comunicações internas. Apesar de estatutariamente contar com um capital de 20 mil contos, só 8 mil foram efectivamente angariados. Destes, apenas mil foram disponibilizados para o investimento, que seria aliás caracterizado por uma enorme falta 106
Apud. PACHECO, 2004: 105.
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Portugal na segunda metade do século XIX
de rigor. A primeira queda de Costa Cabral arrastou consigo a companhia, que não conseguiu realizar nada daquilo a que se propusera107. Mapa 13 – Representações cartográficas de Trás-os-Montes e Alto Douro em finais do século XVIII108
A construção sistemática de estradas teve que esperar pelo biénio 1849-1850. A 22 de Julho de 1850 era aprovada uma lei sobre a moderna rede nacional de estra107
FINO, 1876: 18-19, 24-25 e 29-37. MACEDO, 2009: 126. MATA, 1999. PINHEIRO et al., 2011: 41.
108
Biblioteca nacional digital, purl.pt/1380. MATOS, 1980, mapa VIII – Carta topográfica da província de Trásos-Montes, compreendida entre o Douro e o Sabor até Bragança.
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das, que regulamentava e sistematizava a sua construção. A segunda queda de Costa Cabral colocou um entrave a este trabalho, que contudo ainda produziu 200 km de rodovias até ao início da regeneração e “tornou dominante a corrente de opinião que defendia que o essencial era desenvolver os meios de comunicação e possibilitar o investimento de capitais”109. Fontes Pereira de Melo retomou assim o esforço cabralista. Para tal, o governo recorreu ao crédito, mas a falta de meios técnicos e humanos impôs um baixo ritmo à construção. Mapa 14 – Sistemas gerais de comunicação do reino de 1854 (à esquerda) e 1862 (à direita)110
Por outro lado, o caminho-de-ferro sempre reuniu as principais preferências do investimento, muito embora o seu alcance fosse limitado sem estradas. Do ponto de 109
PINHEIRO, 1983: 52.
110
Biblioteca nacional digital, purl.pt/3407; purl.pt/6275.
40
Portugal na segunda metade do século XIX
vista económico, político e sobretudo simbólico, a ferrovia era um investimento muito mais espectacular e imponente que uma mera estrada. A partir de meados da década de 1860, e por pressão das companhias concessionárias de caminhos-de-ferro, investiu-se mais em estradas de acesso às vias-férreas existentes. Contudo, no final do século uma grande parte do país continuava sem cobertura rodoviária, apesar de se terem construído mais de 12 mil km de estradas de macadame111. * Se a nível nacional, em meados do século XIX, o estado dos transportes era mau, em Trás-os-Montes, a situação era péssima. O relevo das regiões a norte do Tejo sempre dificultou as comunicações terrestres para o interior. Trás-os-Montes em particular era composto por “montes mui altos (…) tão altos, que em muitas tem huma legua de subida de mui aspera terra”112. Os obstáculos orográficos fomentaram o isolamento geográfico. Juntamente com a fraca densidade populacional e o baixo dinamismo económico do interior transmontano, aqueles factores serviram de justificação para uma maior ausência de investimento no desenvolvimento vial da região, malgrado as recomendações das autoridades locais113. Em 1790, o corregedor de Torre de Moncorvo, José António de Sá, lamentava-se nos seguintes termos: “achei toda a comarca no estado mais lamentavel a este respeito principalmente as estradas, as quaes não se tendo concertado em tempo algum estavão cheias de fragas, e penedia com descidas precepitadas denegando tranzito às carroagens, e dando o perigozissimo aos viajantes de cavallo, tudo com grave damno da agricultura, e comercio. Igualmente havia falta de pontoens para a passagem de rios, e regatos caudelosos; e pontes notaveis que noutro tempo se construirão a grande custo, se hião arruinando por falta de concerto”114. Em 1796, Columbano Ribeiro de Castro, juiz demarcante da província de Trás-os-Montes fazia “considerações várias sobre a estrada do Marão que julgava a mais áspera da província e talvez do Reino” e sobre a estrada nova que, passando por Mesão Frio, ligava o Porto às terras do Douro e cidade de Lamego. Em vão115. Vinte anos depois, em 1818, no nordeste transmontano, só Bragança e Miranda estavam incluídas no mapa das comunicações postais portuguesas.
111
ALEGRIA, 1990. PINHEIRO, 1983: 53 e ss. VALÉRIO, 2001: 361-363.
112
CASTRO, 1844: 161.
113
MATOS, 1980: 16 e 18.
114
Apud. ABREU, 2011: 98.
115
MENDES, 1981: 104.
41
A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 15 – Comunicações postais em Portugal em 1818116
Tinha-se, contudo, consciência de que era necessário melhorar a rede rodoviária nacional no interior. Em 1781, Miguel Pereira Pinto Teixeira preconizou a construção de várias estradas, uma das quais ligava o Porto a Bragança (passando por Penafiel, Amarante, Vila Real e Mirandela). Contudo, nenhuma estrada deste plano foi efectivamente aberta117. Nos anos seguintes, surgiram mais diplomas legais que visavam o desenvolvimento da rede rodoviária transmontana, debalde118. Nos inícios do século XIX, segundo Adrien Balbi, as comunicações eram mais fáceis e rápidas entre Lisboa, as ilhas da Madeira e dos Açores e alguns portos da Europa do que entre a capital e as cidades transmontanas de Chaves e Bragança119. Em 1846, o governo recomendou à Companhia das Obras Públicas que iniciasse as obras nas províncias do Algarve, Alentejo e Trás-os-Montes (estrada de Vila Real a Amarante)120. No entanto, mais uma vez, nada efectivamente foi feito.
116
Apud. PACHECO, 2004: 98.
117
MATOS, 1980: 32-33.
118
ABREU, 2011: 91-92.
119
Apud. MATOS, 1980: 29.
120
MATOS, 1980: 183.
42
Portugal na segunda metade do século XIX
Mapa 16 – Representações cartográficas de Trás-os-Montes e Alto Douro em inícios do século XIX121
121
Biblioteca nacional digital, purl.pt/1586. MATOS, 1980, mapa I – Carta militar das principais estradas de Portugal.
43
A linha do Tua (1851-2008)
Em termos fluviais, era possível navegar o Douro até Barca de Alva desde inícios do século XIX. Todavia, o normal era não passar de Foz-Tua, limite do principal comércio de vinho da região122. O porto fluvial de Foz-Tua ganhara alguma predominância deste a delimitação pombalina da região do Douro. À foz do Tua chegavam barcos rabelos carregados de produtos necessários a Trás-os-Montes: arroz, peixe fresco e salgado, especiarias, fazendas, calçado, mobiliário e tudo o que a região precisava e não produzia. Do Tua, partiam barcos carregados com cereais, vinho, azeite, seda, madeiras, cânhamo, variadas carnes, peles curtidas, entre outras coisas123. A montante de Foz-Tua, porém, manteve-se um grande subdesenvolvimento económico, social e cultural que tem de ser observado nas suas especificidades próprias, conforme descrição geral da província de Trás-os-Montes, à época124. Em 1876, o visconde de Vila Maior reiterava que “pode dizer-se que nos 35 Kilometros que separam a foz do Agueda das penedias do Cachão da Valleira, o aspecto geral do paiz denuncia um grande atrazo agricola”125. O Douro era assim o principal vector de entrada na província transmontana, apesar de apenas servir a sua orla sul. À medida que se avançava para norte do Douro, as dificuldades de transporte e comunicação cresciam. Entre 1852 e 1880, os distritos de Bragança e Vila Real eram os que menos haviam sido dotados de estradas. Em média, cada distrito nacional naquele período viu crescer a sua rede rodoviária em 437,7 km. Bragança e Vila Real estavam abaixo da média e na cauda nacional, com 226,8 km e 294,3 km, respectivamente. Nenhum outro distrito tinha valores tão baixos. Comparando-se a extensão da rede rodoviária distrital (inclui estradas reais, distritais e municipais) com a superfície dos distritos respectivos, nota-se que Bragança apresentava um coeficiente de 3,4 km/10 mil ha, só se superiorizando a Beja. Vila Real ostentava um valor mais elevado (6,7), mas mesmo assim abaixo da média nacional (8,3). Em termos de população servida pelas estradas, tanto Vila Real como Bragança tinham os valores mais baixos do país (12,7 e 12,9 km/10 mil habitantes), respectivamente, muito abaixo da média geral nacional (17,1)126. No caso particular do vale do Tua, só existiam duas pontes cruzando aquele rio: uma em Mirandela (considerada “excelente”127) e a outra em Abreiro (a antiga ponte do Diabo, obra de grande dimensão em comprimento e em altura, construída na Idade Média e destruída pelas grandes cheias de 1909). Na margem direita, conserva-se 122
MATOS, 1980: 267.
123
MORAIS, 2013. VENCESLAU, 2014. VISEU, 2007: 290.
124
MENDES, 1981.
125
VILA MAIOR, 1876.
126
ABREU, 2011: 84.
127
Apud MENDES, 1981:104
44
Portugal na segunda metade do século XIX
ainda um trecho com cerca de 2 km de uma calçada medieval, que ligava Abreiro à ponte do Diabo, presumivelmente parte da estrada real que fazia a ligação entre Torre de Moncorvo e o Porto, passando por Abreiro, Vila Flor e Murça128. Genericamente, os transmontanos viam-se forçados a servir-se de caminhos “tão mal formados [que] oferecem tantos perigos a cada passo, que nos das montanhas, além de não darem passagem em muitas partes a carruagens, não he raro acharem-se homens mortos, por se terem precipitado em despenhadeiros”129. As acessibilidades baseavam-se em caminhos pedonais que serpenteavam por entre a região. As estradas (na sua maioria, de terra batida) escasseavam e ligavam apenas as povoações mais importantes130. A situação da rede vial no nordeste do reino era assim, nas vésperas da chegada do caminho-de-ferro ao coração de Trás-os-Montes, desesperada, reforçando a ideia de afastamento e isolamento da província. De tal modo assim era que “o maior terror que póde inspirar-se a um funccionario qualquer, civil ou militar, é ameaçal-o com uma transferencia para Bragança. Suppõe-se que Bragança é a Siberia”131. * Falar da evolução das vias de comunicação terrestres e do modo de viajar na província transmontana em específico antes da chegada do caminho-de-ferro não se afigura tarefa fácil, uma vez que as fontes descritivas desta realidade não abundam. As principais obras para este estudo são as teses de doutoramento de Artur Teodoro de Matos e de Carlos d’Abreu, que citam e analisam algumas fontes que descrevem como era viajar até e em Trás-os-Montes. Matos analisou o Roteiro terrestre de Portugal em que se expõem e ensinam por jornadas summarias não só as viagens e as distancias que ha de Lisboa para as principais terras das provincias deste reino, mas as derrotas por travessia de umas e outras povoações d’elle de João Baptista de Castro (1748, reeditado e aumentado sucessivamente até 1844); os itinerários militares levantados em 1845 por Belchior José Garcês; a Memoria sobre a construção de estradas em Trás-os-Montes, offerecida pelo sr. Belchior José Garcez, e apresentada pelo Sr. Deputado Domingos Manoel Pereira de Barros em 1842; e a Memoria Economico-Politica em que, primo se faz ver que o fomento da Agricultura em geral deve occupar as primeiras vistas do Ministerio132. 128
VENCESLAU, 2014.
129
COSTA, 1789: 105 e 396-397.
130
ABREU, 2011: 105.
131
Diario da Camara dos Deputados, 23.2.1880: 542 (Pires Vilar). Ver também CALIXTO, 1965. GAIO, 1957: 24. MACEDO, 2009: 188. MÓNICA, 1996. TEIXEIRA, 1956: 31.
132
MATOS, 1980: 90.
45
A linha do Tua (1851-2008)
Com base neste acervo documental, Artur Teodoro de Matos compilou um conjunto de rotas para e dentro da província de Trás-os-Montes (1750-1850), identificando ainda dados particulares que os viajantes da altura deveriam ter em atenção. Mapa 17 – Percursos terrestres para Trás-os-Montes e dentro da província (itinerários a preto, estalagens representadas com um E, barcas de passagem identificadas com uma bola preta e pontes designadas por | |)133
Assim, de Lisboa a Torre de Moncorvo percorria-se uma distância de 61 léguas, passando-se cerca de 20 ribeiras, quase todas com ponte, sendo que as estalagens neste percurso eram sofríveis134. Dentro da província, quem viandasse de Moncorvo até Bragança atravessava à saída da primeira localidade o rio Sabor através de uma ponte de pedra com sete arcos, 625 palmos de comprimento (cerca de 137,5 m) e 22 (5 m) de largura. Seguiam-se “onze ribeiras, que se passão sem perigo, huma das 133
MATOS, 1980: 85-90; mapa II – Levantamento dos itinerários de Portugal.
134
CASTRO, 1844: 163.
46
Portugal na segunda metade do século XIX
quaes se chama a Villariça, que he quando se vae da Junqueira para S. Comba”135. Neste percurso existiam boas hospedarias. Na Junqueira o viajante dispunha de duas estalagens onde podia comprar vinho e comida. Entre a Trindade e Bornes, existiam também boas estalagens. Se de Bragança, o peregrino pretendesse dirigir-se a Chaves percorria um caminho muito movimentado, mas de trânsito difícil em alguns pontos. O rio Tuela era cruzado em Soeira através de ponte de alvenaria com dois arcos. Em Vale de Armeiro cruzava-se o rio do mesmo nome136 por uma ponte de madeira, assente em pilares de alvenaria. O turista era forçado depois a virar para sudoeste em direcção a Valpaços, onde existiam em 1845 três estalagens. Daqui seguia novamente para norte até Vilartão, virando para oeste em direcção a Chaves, cruzando uma ponte de alvenaria de 16 arcos sobre o Tâmega. Por fim, refira-se um outro roteiro transmontano entre Vila Real e Mirandela, no qual se cruzavam três pontes, todas de cantaria: uma em Alvites; a segunda sobre o Tinhela entre Cadaval e Murça; a terceira, de 20 arcos, em Lamas de Orelhão137. Uma outra fonte datada de 1845 (um reconhecimento militar feito pelo capitão Belchior José Garcês Sobral) confirma as dificuldades de circulação desta feita no eixo entre o Pocinho e Lagoaça, como já em 1844 o mesmo autor o fizera para o itinerário de Mesão Frio a Freixo de Espada à Cinta. O primeiro ponto de passagem relevante era Torre de Moncorvo, que distava cerca de 13,5 km do Pocinho. Esta distância era vencida por um caminho de 12 a 28 palmos (2,6 a 6 m138) de largura em pouco mais de duas horas (média de 6,75 km/h). De Moncorvo o capitão Sobral seguiu para Cabeço de Mula, onde chegou 113 minutos depois, e para Carviçais, após uma marcha de cerca de uma hora. À saída de Carviçais existia uma bifurcação que permitia aos viajantes dirigir-se a Mogadouro ou a Lagoaça e depois seguir para Miranda do Douro. O primeiro caminho, de quatro léguas de extensão, era mau, pelo que era preferível seguir por Lagoaça. Este percurso era percorrido em cerca de 2,5 horas (6 horas desde o início da viagem no Pocinho). Em Lagoaça, existiam várias ramificações para pequenas aldeias e para Mogadouro. Viajando mais para nordeste, chegava-se a Sendim e depois a Miranda, cidade “votada à penúria, não possuindo actualmente senão gloriosas reminiscências da sua antiga grandeza” em virtude da sua “posição (…) fora de estrada alguma seguida; o abandono em que ficou desde a saída da Mitra, Autoridades e tropa para Bragança; os seus poucos capitais e nenhuma indústria”. O tempo total de viagem subia então a 18 horas e 38 minutos ou cerca de 6 km/h em marcha militar139. 135
CASTRO, 1844: 164.
136
Arquivo nacional Torre do Tombo. Memórias Paroquiais de 1758. Barreiras [Barreiros], Monforte de Rio Livre, vol. 6.º, n.º 44a, p. 331-334.
137
MATOS, 1980: 85-90.
138
MATOS, 1980.
139
AFONSO, 2011.
47
A linha do Tua (1851-2008)
A literatura da época é também uma profícua fonte de informação para esta e outras temáticas, se bem que deva ser analisada com muito cuidado e devidamente estudada e considerada, já que se trata de incontornável referência para uma compreensão não-anacrónica dos contextos e processos históricos140. Recentemente, uma tese de doutoramento analisou obras de viagens de autores do século XIX, contemporâneos de vultos do romantismo português. Trata-se de uma plêiade de escritores que colaboraram na imprensa periódica que se encontrava em expansão em Portugal, a partir da segunda metade do século XIX, e que ficaram associados à designada escola do folhetim. “Ricardo Guimarães, Lopes Mendonça, Júlio César Machado, Luciano Cordeiro, Teixeira de Vasconcelos, Francisco Maria Bordalo, Ramalho Ortigão (com excepção para Ramalho Ortigão e Luciano Cordeiro) são escritores que ficaram praticamente esquecidos pela história e crítica literárias mas cuja obra consagrada às viagens, teve em sua época, grande projecção, atraindo muitos leitores aos folhetins que assinavam”141. Poucos são os que falam directamente de Trás-os-Montes, mas da sua leitura e do confronto com outras descrições de outras regiões da periferia nacional e com o conhecimento já existente sobre transportes e viagens no século XIX, é possível pintar sugestivamente alguns traços do que seria viajar em Trás-os-Montes nesta centúria142. Sendo uma das províncias mais acidentadas do país – a par da Beira Alta – Trás -os-Montes era também uma das regiões que mais bloqueios oferecia aos viajantes. Camilo Castelo Branco, em 1855, escrevia que “a província de Trás-os-Montes é um sertão desconhecido, um retalho de Portugal segregado da civilização”143. Raul Brandão, em 1912, (ainda) descrevia que “no fundo, muito no fundo, corre o Douro barrento, entre destroços de ossadas corroídas. Infunde temor. E logo mais montes bravos, outras muralhas disformes”144. Curiosa a descrição dos montes como muralhas que impediam o livre acesso de pessoas, animais e mercadorias, até porque no século XVIII militares estrangeiros consideravam a orografia nacional e a falta de estradas como os principais obstáculos à conquista de Portugal145. As altas montanhas e os vales estreitos e alcantilados da região desincentivavam as viagens de homens e a troca de produtos a longa distância. Isto era tanto mais verdade quanto mais afastados se encontravam os povoados de vias fluviais, como já foi referido. Actualmente, a paisagem transmontana é uma das atracções da província. No 140
ALLENDE PORTILLO, 2009. ALLENDE PORTILLO, 2010. LAGE, 2014 a.
141
CABETE, 2010: 22-23.
142
LAGE, 2014a.
143
Apud. CABETE, 2010: 322 (nota 694).
144
BRANDÃO, 1974: 263-264.
145
MATOS, 1980: 29-30.
48
Portugal na segunda metade do século XIX
século XIX, o potencial turístico era largamente ultrapassado pelas dificuldades que tal paisagem antepunha aos viandantes. Nem as loquazes palavras de Ramalho Ortigão em relação ao Peso da Régua alteravam esta situação: “acordado pela mais alegre alvorada que os melros têm jamais assobiado pela fresca ramaria das veigas, abro a janela. Um deslumbramento! Debaixo da varanda, voltada a Norte, estende-se em doce declive um largo talhão de vinha baixa, cerrada, espessa, em todos os tons de verde, desde o mais vivo ao mais escuro, rajada das tintas maduras do Outono em manchas cor de âmbar e cor de fogo, loiras, vermelhas, calcinadas. Em baixo o rio Douro, espraiado, descreve um enorme S em toda a extensão do vale, reluzindo entre rasgões de olivedos e de pomares, por trás das ramas viçosas dos choupos e dos amieiros. Uma cortina de montanhas fecha o horizonte de todos os lados. No plano mais alto, em frente, ao fundo, alteia-se a cordilheira do Marão, cujos cabeços calvos, de uma cor térrea banhada em sol, parecem pintar sobre a transparência do céu o dorso imenso de um fantástico boi. Por todas as encostas do primeiro plano descem os vinhedos em largos degraus de verdura, desde o alto dos montes salpicados de pinhais até à beira rio. Em todas as quebradas alvejam casas caiadas de branco, cintilantes ao sol nascente…”146. Na viragem do meio século, praticamente não se podia falar em estradas em Trás -os-Montes, mas tão-somente de deficientes caminhos, “feitos a pé, a dorso de animal ou em carro de duas rodas”147, e carreiros quase intransitáveis e de segurança precária – alguns dos quais abertos nos tempos pombalinos para a fiscalização dos produtos vínicos. Eram regularmente transitados por um total de 420 almocreves que então existiam em Trás-os-Montes, com uma distribuição irregular, sendo em número mais elevado nos locais de comércio mais próspero, como nas regiões de Chaves e Vila Real148. Citando uma vez mais o visconde de Vila Maior, bastantes anos mais tarde, “não há uma única estrada regular que ponha em contacto Barca d’Alva com as terras importantes de qualquer das províncias, e estabeleça comunicação fácil com o reino vizinho. São quase intransitáveis os caminhos das montanhas que alli conduzem e o acesso pelo rio não offerece nem mais facilidade nem mais comodidade e segurança”149. Cerca de 35 anos depois, Raul Brandão confirmava esta realidade. Em Trás -os-Montes, “não há estradas: há córregos, leitos secos, torrentes, caminhos a pique cortados na rocha viva. (…). O homem isolado só convive com deus e com a terra”150. Havia algumas excepções a esta regra, como por exemplo a estrada que ligava a 146
ORTIGÃO, 1943-1946.
147
MACEDO, 1963: 139.
148
MENDES, 1981: 104-105.
149
VILA MAIOR, 1876: 65.
150
BRANDÃO, 1974: 263-264.
49
A linha do Tua (1851-2008)
Régua a Vila Real, que proporcionava aos viajantes uma viagem mais rápida e descansada em diligências puxadas por um quarteto de cavalos. De Vila Real partiam outras estradas, tanto para ocidente, em direcção ao Porto, como para oriente, rumo a Murça, Mirandela ou Bragança. De Mirandela saíam ainda outras vias secundárias para Vila Flor, Torre de Moncorvo, Valpaços, Chaves e outras terras transmontanas. Contudo, a rodovia entre Vila Real e o Porto, então designada Estrada do Marão, era “a mais áspera da província e talvez do reino”, cujo estado era deplorável e a precisar de benefícios urgentes que não recebia há muito151. Camilo Castelo Branco deixou-nos uma descrição muito particular sobre a viagem de Vila Real ao Porto. “Há poucos anos que eu jornadeava de Villa Real para o Porto, e cheguei, quebrado de corpo e alma, a uma póvoa escondida nos fraguedos do Marão, chamada Ovelhinha. O rocim, que me alli trouxera, ganhára pulmoeira na subida da serra, de maneira que, na assomada onde chamam as «rodas», os bofes arquejavam-lhe com tal ímpeto, e encavernada tosse, que não há ahi cousa triste que mais diga! Quando descavalguei, na Ovelinha, devolvi o garrano ao proprietário, e procurei quem me alugasse cavalgadura, menos poitrinaria, até Amarante. Voltando à estalagem, achei uma liteira parada que chegára n’aquelle ponto. Perguntei ao liteireiro se ia de retorno. Respondeu-me que levava patrão. Contemplei a liteira com mágoa e inveja, principalmente quando a eguazinha gallega, que eu ajustára, começou a espirrar uma tosse mais que muito significativa de pulmoeira e mormo real”152. O romancista refere ainda que uma viagem por esta estrada de liteira durava perto de 20 horas153. De facto, antes do advento do caminho-de-ferro os meios de transporte eram arcaicos. Além do transporte individual a pé usando bornais, alforges ou varas, os portugueses dos séculos XVIII e XIX recorriam sobretudo à força animal (sobretudo gado bovino e asinino), tanto para carregar no dorso, como para puxar veículos de passageiros (andas, palanquins, liteiras, coches) ou mercadorias (carros de bois). Em 1814, em Trás-os-Montes, existiam 3.447 bestas maiores (9% do total nacional) e 988 bestas menores (7%), números que cresceram para 5.205 (10%) e 2.041 (8%) seis anos depois. Associado aos animais de tiro, estava normalmente o carro de bois. Na província transmontana existiam, em 1814, 4.335 destes veículos (6% do total nacional) e 10.380 em 1820 (10%). Para o transporte de passageiros existia a liteira (maior) ou a cadeirinha (mais pequena), uma cabine de madeira que dispunha de dois varais atrelados a bestas ou a homens. Refira-se ainda os coches, as berlindas, as diligências, as malas-postas ou as seges, veículos de uso eminentemente urbano e/ou
151
Apud PINA, 1999. Ver também PINA, 2003.
152
CASTELO BRANCO, 1864.
153
CASTELO BRANCO, 1864: I-VI.
50
Portugal na segunda metade do século XIX
para pessoas mais abastadas e portanto pouco vistas e usadas em Trás-os-Montes154. Mas mesmo estes veículos eram também antiquados, lentos e desconfortáveis. A mala-posta, por exemplo, constava de uma série de caixas, uma para guardar o correio, outra para guardar as bagagens e outra para guardar os passageiros, mas muitas delas velhas e com pouca segurança155. Camilo Castelo Branco deixou-nos uma particular descrição da liteira, que via o seu futuro ameaçado pelo advento das estradas de macadame e de ferro. “A liteira sacrificada, a liteira dos dous machos pujantes e das cincoenta campainhas estridulas, essa é a que vi de uma assentada, desfeita à serra e enxó para remendos de ignobeis carrinhos e carroções. Esta é que é a liteira das minhas saudades, porque se embalaram n’ella as minhas primeiras peregrinações; porque, dos postigos de uma, vi eu, fóra das cidades, os primeiros prados e bosques e serras empinadas; porque o tilintar das suas campainhas me alegrava o animo, quando a toada festiva me interrompia as cogitações da tarde por essas estradas do Minho e Traz-os-montes”156 . A passagem dos rios era feita através de barcas de passagem ou, se aqueles o permitissem, a vau. Em Trás-os-Montes, os viajantes dispunham de 25 serviços de barcas de passagem em 1849157. Ao todo, entre os séculos XVIII e XIX, o número de barcas ascendeu a 33, sendo, nos finais do século XVIII e só no Douro, em número de 15 e uma de utilização gratuita (a barca de por Deus, no lugar do Moledo). Trás-osMontes contava então com 347 homens – 54 barqueiros e 293 marinheiros – que asseguravam grande parte das relações comerciais entre a região transmontana, a Beira e a cidade do Porto158. No rio Tua, existia também este serviço de barcas de passagem em Foz-Tua, Ribatua, Amieiro, Frechas, Chelas e Miradeses, gerido respectivamente pela confraria de Santo António do Fiolhal, pelos mordomos de São Mamede, pelos mordomos de Santa Luzia, pelos moradores de Frechas e por particulares desconhecidos. Mantiveram-se em operação até à época contemporânea, e mesmo após a abertura da linha do Tua, fazendo o serviço de ligação às estações ferroviárias159 Hospedarias e estalagens eram instalações praticamente inexistentes e as que haviam eram de má qualidade, como a que acolheu Clemente Menéres numa das suas primeiras deslocações ao Romeu160. Trás-os-Montes foi ainda até ao final do século XIX uma região propensa à crimi154
MATOS, 1980: 362-374.
155
MACHADO, 1865: 6-10.
156
CASTELO BRANCO, 1864.
157
MATOS, 1980: 85-90, 252-253 e 430.
158
MENDES, 1981:107.
159
ABREU, 2006b: 60-63 e 71. ABREU, 2011: 232-235. MENDES, 1981: 107.
160
VISEU, 2013.
51
A linha do Tua (1851-2008)
nalidade, que desincentivava as viagens. Ironicamente, era a falta de comunicações eficazes uma das razões para essa alta taxa de criminalidade. “Trás-os-Montes era a terra dos «valentões» (…), homens bravos que habitavam nas partes mais selvagens da região, conhecidos entre si através de certos sinais e pela sua terrível reputação. Caracterizavam-se como justiceiros e alguns eram, de facto, espíritos honrados, embora deturpados, atuando (sic) no desafio da lei, fiéis a um falso e deturpado sistema de direito. Todavia, a maioria degenerara em simples bandidos”161. O velho adágio para lá do Marão, mandam os que lá estão tem a sua origem nesta realidade. Mapa 18 – A localização das barcas de passagem em Trás-os-Montes nos séculos XVIII e XIX162
Por todas estas razões, não espanta assim que o custo do transporte para Trás-osMontes fosse mais elevado. Em 1785, por exemplo, é conhecido que a universidade de Coimbra detinha um serviço de recovagem para várias localidades. O preço do transporte dependia da distância e da dificuldade em percorrer a mesma. Assim, ao passo que uma recovagem até ao Porto custava 160 réis e para Lisboa custava 200, para Trás-os-Montes o preço era de 360 réis163. Nos debates parlamentares, encontram-se também várias referências ao estado de atraso em que se encontravam as estradas e outras vias de comunicação na região. Já foi referido que o deputado brigantino, Pires Vilar, comparava Trás-os-Montes à Sibéria. Pinto Moreira, um outro parlamentar de um círculo do interior – Baião, na fronteira com Trás-os-Montes – lamentava que a sua “gente, espalhada pelos outei161
SOUSA, 2013, vol. 1: 184. Ver também LAGE, 2014b: 222.
162
ABREU, 2006b: 59.
163
MATOS, 1980: 413-414.
52
Portugal na segunda metade do século XIX
ros, vê passar todos os dias repetidas vezes, soltando gritos de alegria, aquella machina immensa do progresso que a sauda e chama [a locomotiva na linha do Douro], e ao mesmo tempo reconhece com pezar o descontentamento, que a condemnaram ao verdadeiro supplicio de Tantalo, pois que não póde aproveitar se d’essa conquista da sciencia e do engenho humano”164, uma vez que não existiam estradas165. Contudo, estes discursos, sobretudo proferidos por parlamentares transmontanos ou do interior, hiperbolizam o subdesenvolvimento das comunicações nas regiões periféricas nacionais, como argumento retórico para convencer os governos a tomar medidas em prol das suas regiões (ou para mostrar aos seus constituintes que tinham tentado obter do executivo os indispensáveis melhoramentos), muito embora tivessem reais razões de queixa da falta de investimentos em estradas por parte dos governos da segunda metade do século XIX. Em 1884, todo o país, mas sobretudo o interior norte, beneficiava de uma rede curta e insuficiente para atender a todas as suas necessidades, pois a dotação financeira para este fim fixada no orçamento do ministério das obras públicas foi sempre diminuta. Notava-se assim uma multiplicidade de pequenos lanços de acesso a estações ferroviárias, nomeadamente no litoral oeste e noroeste (onde se concentrava o maior movimento comercial). O interior estava mal servido. Mapa 19 – Áreas com maior densidade de estradas (1884)166
164
Diario da Camara dos Deputados, 21.5.1890: 345.
165
PINHEIRO, 1986.
166
ALEGRIA, 1990: 161.
53
A linha do Tua (1851-2008)
Os concelhos e distritos podiam ter contribuído para uma melhoria do panorama da rede vial, pois as estradas municipais estavam a seu cargo, de acordo com a lei. Contudo, o fundo municipal dedicado a este tipo de obras era frequentemente delapidado e desviado para outros fins, perante a passividade do parlamento que aprovava quase sempre as necessárias autorizações167. Em 1886, o bispo de Bragança queixava-se de que “não há outras vias de comunicação, a não ser por caminhos feitos pela própria natureza: íngremes, tortuosos e estreitíssimos que, de longe em longe, se encontram por felicidade dos transeuntes”168. As dificuldades financeiras enfrentadas na década de 1890 impediram a alteração da situação. É sintomático que num inquérito feito aos municípios em 1898-1899 muitos eram os concelhos (sobretudo no norte e no interior) que não pediam quaisquer caminhos-de-ferro, mas apenas estradas169. Na última década do século XIX, a província transmontana era claramente deficitária em termos de estradas, como se pode ver na tabela seguinte. Tabela 1 – Extensão da rede rodoviária transmontana em comparação com a rede rodoviária nacional (em km)170 Ano
Bragança
Vila Real
Trás-os-Montes
Total nacional
%
1892
306
404
710
12.494
5,7%
1893
306
422
728
12.932
5,6%
1894
306
429
735
13.287
5,5%
1895
323
429
752
13.497
5,6%
1896
352
430
782
13.797
5,7%
1897
406
434
840
13.953
6,0%
1898
437
434
871
14.186
6,1%
1899
452
452
904
14.448
6,3%
1900
452
458
910
14.750
6,2%
No último decénio de oitocentos, Trás-os-Montes contava com 5-6% das estradas a nível nacional, embora a sua superfície total em percentagem do total da superfície 167
NAVARRO, 1887. PORTUGAL, 1907. ALEGRIA, 1990: 161
168
Apud VISEU, 2007: 127-128.
169
PORTUGAL, 1899a.
170
Annuario Estatistico de Portugal, 1900: 466. SOUSA, 2013, vol. 1: 122. VALÉRIO, 2001: 363.
54
Portugal na segunda metade do século XIX
do país represente cerca do dobro (11,9%). Aliás, no início de novecentos, a situação mantinha-se, havendo “estações no caminho de ferro do Douro, não procuradas por estarem completamente destituidas de communicações”171. A situação mantinha-se já bem entrados no século XX. Ainda na segunda metade de novecentos as acessibilidades eram muito limitadas. Em 1961 considerava-se indispensável construir 11 mil km de estradas e caminhos172. Cerca de um século antes, o fontismo privilegiou a construção de caminhos-deferro e entre estes os que ligassem Lisboa a Espanha e à fronteira com França pelo caminho mais curto e fácil173. Esta política de imediato fez com que a construção ferroviária (e rodoviária) em Trás-os-Montes fosse adiada em muitos anos. A província não só ficava afastada da rota menos extensa entre Lisboa e os Pirenéus, como também era tida como uma região montanhosa e acidentada, com altas montanhas e estreitos vales, onde assentar um caminho-de-ferro (ou abrir uma mera estrada) seria uma tarefa hercúlea. Para além disto, só os deputados locais, alguns estudiosos influentes (como Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, visconde de Vila Maior174) ou casos raros de empreendedores de finais do século (Cândido Sottomayor, Clemente Meneres, João da Cruz, etc.) percepcionavam em Trás-os-Montes riquezas cuja exploração justificava a existência de uma ou mais linhas-férreas ou de novas rodovias. Os governantes nacionais não afinavam pelo mesmo diapasão. À excepção do vinho do Porto e do vale do Douro vinhateiro, Trás-os-Montes era encarado como terra com pouco interesse do ponto de vista económico, agreste e pobre175, percepção genérica que se iria manter por muito tempo.
171
MENEZES, 1900: 4.
172
VISEU, 2007: 127.
173
ALEGRIA, 1990. PEREIRA, 2012a. PINHEIRO, 1986.
174
LAGE, 2013.
175
PEREIRA, 2012b.
55
A odisseia de uma nova linha
2. A ODISSEIA DE UMA NOVA LINHA
2.1. O PROCESSO DE DECISÃO DA CONSTRUÇÃO DA LINHA DO TUA176 Hugo Silveira Pereira177 O processo que desembocou na lei que abriu concurso para adjudicação da linha do Tua desenrolou-se dentro de um quadro político inaugurado em 1851. É certo que já na década anterior tinham surgido algumas propostas para a construção de caminhos-de-ferro em Trás-os-Montes, contudo nenhuma delas pretendia mais que especular com o negócio, procurando obter a concessão e depois vendê-la pela melhor oferta178. Naquele ano um golpe de estado pôs fim ao governo autoritário de Costa Cabral e normalizou a vida parlamentar portuguesa, inaugurando ainda um espírito conciliador que punha de lado a ferocidade do debate ideológico e congregava os diferentes quadrantes políticos num objectivo comum: o progresso material do reino179. A linha do Tua só muito tardiamente foi inserida nesta agenda desenvolvimentista nacional que ficaria conhecida para a posteridade como fontismo, em homenagem ao seu principal propugnador, Fontes Pereira de Melo. Em todo o caso, para se compreender o processo de decisão que levou à sua construção, é necessário voltar um pouco atrás no tempo. O caminho-de-ferro do Tua não se consubstanciou no ar e foi o resultado de uma política ferroviária encetada com objectivos particulares e 176
Este capítulo é baseado no texto introdutório da compilação Debates parlamentares sobre a linha do Tua. PEREIRA, 2012b.
177
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
178
VIEIRA, 1983: 84-88.
179
PINHEIRO, 1983: 53. Ver também BONIFÁCIO, 1992: 96-98.
57
A linha do Tua (1851-2008)
executada dentro de um quadro político-parlamentar específico – uma monarquia constitucional com um parlamento bicameral. O grande objectivo da política ferroviária do fontismo era aproximar Portugal de um “estrangeiro cada vez mais estrangeiro”180, quer em termos de distância e tempo, quer em termos económicos. Na altura entendia-se que a melhor maneira para se concretizar este ensejo era através da construção de caminhos-de-ferro, que aparentemente operavam milagres no estrangeiro e em Portugal podiam modernizar um sistema de transportes ao tempo completamente arcaico181. A curto prazo, porém, os objectivos passavam por ligar por via-férrea Lisboa ao Porto e a Espanha. Isto adiou desde logo qualquer esperança de ver locomotivas em Trás-os-Montes, muito embora se percepcionassem algumas riquezas e interesses a explorar nesta região182. Além disso, o engenheiro francês contratado para estudar a construção ferroviária em Portugal – M. Watier – mostrava-se muito pessimista quanto à possibilidade de levar caminhos-de-ferro ao interior norte de Portugal183. No início da década de 1860, dois deputados transmontanos (Júlio do Carvalhal Sousa Teles e Afonso Botelho) tentaram contrariar no parlamento a opinião de Watier, propondo por três vezes a construção de uma linha do Porto à Régua ou Foz-Tua, que seria “a salvação do Douro, e ao mesmo tempo o engrandecimento e a ventura da provincia de Traz-os-Montes”184. A falta de estudos no terreno desaconselhava a construção imediata, pelo que em 1862 o governo incumbiu o engenheiro Sousa Brandão da realização desses exames. O relatório daquele técnico foi aprovado pelo órgão consultivo do governo, o conselho geral de obras públicas, mas a iniciativa privada parecia mais voltada para uma linha pelo Minho, tendo surgido quatro propostas nesse sentido. A câmara baixa do parlamento chegou mesmo a aprovar um projecto de lei para se abrir concurso para a construção desta via, no entanto a câmara alta nunca seria ouvida e o projecto ficaria sem efeito185. Vendo-se na iminência de ser ultrapassados pelo Minho, vários deputados transmontanos chamariam em 1864 a atenção do governo para a necessidade de uma linha-férrea até Trás-os-Montes. Alguns deles propunham inclusivamente o complemento do futuro caminho-de-ferro do Douro com uma estrada até Abreiro e um americano (caminho-de-ferro assente 180
SERRÃO, 1962: 271
181
GUILLEMOIS, 1995. JUSTINO, 1988-1989: 189-190. MATOS, 1980.
182
ALEGRIA, 1990: 161 e 335.
183
WATIER, 1860.
184
Diario da Camara dos Deputados, 22.5.1860: 234-235. Diario de Lisboa, sessões da câmara dos deputados de 9.3.1861, 17.1.1862, 12.6.1862 e 12.6.1862: 694-695, 182, 1638 e 1775-1776. ALVES, 2000, vol. 9: 224.
185
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Conselho de Obras Públicas e Minas. Liv. n.º 19 (1864): 53-54, 361-364 e 366-370. Diario de Lisboa, sessões da câmara dos deputados de 9.5.1864 e 10.5.1864. PEREIRA, 2012a.
58
A odisseia de uma nova linha
directamente sobre a estrada) até Mirandela, enquanto outros sugeriam levar o caminho-de-ferro até Torre de Moncorvo186. O governo do então presidente de conselho duque de Loulé acabou por tomar uma decisão salomónica, ordenando a Sousa Brandão novos estudos das linhas do Porto a Braga e do Porto à Régua e Salamanca187. A solução de conduzir o caminho-deferro até Salamanca desagradou a alguns militares que temiam uma duplicação de vectores de penetração inimiga, caso a linha da Beira Alta fosse também construída até àquela cidade espanhola188. O marquês de Sá da Bandeira, herói nacional das lutas contra os franceses e contra os absolutistas, partilhava a mesma preocupação e preferia que, atingida a Régua, o caminho-de-ferro visasse Vila Real e depois Mirandela, Bragança e Zamora189. Outros parlamentares sugeriam que Chaves se integrasse neste plano, ligando-se ou por Vila Real ou por Amarante à via-férrea do Douro190. Figura 9 – O duque de Loulé (à esquerda) e o marquês de Sá da Bandeira (à direita)191
As legislaturas iam passando e o desejado caminho-de-ferro até Trás-os-Montes 186
Diario de Lisboa, sessões da câmara dos deputados de 16.2.1864, 12.3.1864, 19.4.1864, 20.4.1864 e 25.4.1864: 436, 779, 1207, 1223-1224 e 1295.
187
Boletim do Ministério das Obras Publicas, Commercio e Industria, 1864, n.º 11: 589.
188
PIMENTEL, 1865
189
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos pares de 23.12.1865: 3004-3005.
190
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 9.5.1864 e 10.5.1867: 1475 e 1467. PEREIRA, 2010.
191
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/6796; http://purl.pt/13761.
59
A linha do Tua (1851-2008)
não saía do campo das intenções. Até que em 1867 o governo propôs ao parlamento a imediata construção por conta do estado dos caminhos-de-ferro que do Porto seguissem até à Galiza e ao Pinhão. Na apreciação que faziam à proposta governamental, as comissões parlamentares de obras públicas e fazenda encaravam uma estrada de ferro pelo vale do Tua como o futuro prolongamento da linha do Douro em direcção a Zamora passando por Bragança. O projecto seria aprovado e a lei entraria em vigor a 2 de Julho de 1867. Todavia, a conjuntura económico-financeira de então não propiciava a realização de grandes investimentos e o início das obras seria adiado por cinco anos192. Em Julho de 1872, começava finalmente a construção a partir do Porto. O assentamento de carris em direcção ao Douro iniciou-se em Julho de 1873 desde Ermesinde e progrediu muito lentamente, de tal modo que só em meados de 1875 chegaria a Caíde. Figura 10 – A estação de Caíde em finais da década de 1870193
Antecipando a conclusão da obra, um grupo de deputados transmontanos solicitou ao governo a realização de estudos para prolongar a linha na direcção do nordeste e servir os recursos agrícolas e minerais de Trás-os-Montes194. Um outro conjunto de parlamentares propunha a construção de um caminho-de-ferro entre a Régua e
192
Diario de Lisboa, sessão da câmara dos deputados de 4.5.1867: 1396-1399. Colecção Oficial de Legislação Portuguesa, 1867: 441 e ss.
193
Centro português de fotografia. Depósito Geral, arm. 3, gav. 7. MACEDO, 2009.
194
Diario da Camara dos Deputados, 6.2.1875: 334.
60
A odisseia de uma nova linha
Chaves. O diploma seria enviado às comissões parlamentares, mas de lá não sairia195. Em resposta, tribunos minhotos sugeriam que a ligação a Trás-os-Montes se fizesse por Braga196. Entretanto, a construção continuava na margem do Douro, tendo a linha finalmente entrado em Trás-os-Montes ao chegar à Régua (Julho de 1879) antes de se deter no Pinhão em meados de 1880197. Figura 11 – Estação da Régua (à esquerda) e do Pinhão (à direita) na década de 1880198
Assente junto ao rio e estacando no Pinhão, a linha do Douro mais não servia do que o extremo sudoeste de Trás-os-Montes, de pouco ou nada valendo ao resto da província. Por esta razão, foram surgindo algumas propostas para alterar a situação, desde um americano entre a Régua e Vila Real199 a uma via pelo vale do Sabor até Miranda200 ou uma ligação pelo Minho desde Famalicão ou Guimarães201. Fora do parlamento, um outro homem fazia pressão para que o caminho-de-ferro chegasse a Trás-os-Montes. Tratava-se de Clemente Menéres, um empresário natural da Vila da Feira que investira avultadas quantias no nordeste transmontano e sentia a necessidade de um transporte eficaz para o Porto. Menéres pressionou os poderes centrais 195
Diario da Camara dos Deputados, 1.3.1875: 568-569.
196
Diario da Camara dos Deputados, 10.3.1875: 772-773 e 831-834.
197
PEREIRA, 2010. TORRES, 1936.
198
Centro português de fotografia. Depósito Geral, arm. 3, gav. 8. MACEDO, 2009.
199
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 20 (1876-1877), parecer n.º 7637.
200
Diario da Camara dos Deputados, 28.3.1877: 823-826.
201
Diario da Camara dos Deputados, 24.3.1879; 24.4.1880 e 28.5.1880: 957-958, 1560 e 2360-2361. Arquivo Histórico-Diplomático. Caminhos-de-ferro. Ligações por Intermédio de Pontes. Cx. n.º 38, mç. n.º 8, doc. n.º 28. Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 22 (1879), parecer n.º 8156. SANTOS, 1884. OLIVEIRA, 1979: 7.
61
A linha do Tua (1851-2008)
no sentido de dotar Trás-os-Montes de um caminho-de-ferro, patrocinando artigos de opinião e lançando boatos sobre alegadas sublevações dos transmontanos em prol desse melhoramento. No parlamento, contava com o interesse de alguns deputados em algumas quintas da região e ainda com o apoio de deputados como Eduardo José Coelho ou o bispo de Bragança, que em algumas ocasiões levavam à ordem do dia a necessidade de introduzir a viação acelerada no nordeste. Numa dessas intervenções, o prelado brigantino chegou mesmo a afirmar que só havia votado a favor da linha da Beira Alta (em 1878) em troca de igual melhoramento ser aprovado em Trás-osMontes202. Como foi referido anteriormente, muitas das propostas para Trás-os-Montes – aventadas dentro e fora do parlamento – foram incluídas nos debates sobre o plano geral de rede que tiveram lugar no segundo lustro da década de 1870 na associação dos engenheiros civis portugueses. Nesta ocasião, às linhas do Tua e do Sabor previa-se um grande futuro, quer como caminhos-de-ferro internacionais, quer como parte da grande via paralela à fronteira de norte a sul do país. O engenheiro Campos e Silva, director de obras públicas em Bragança, asseverava que o terreno só se propiciava à via reduzida e para Veríssimo Guerreiro e Sousa Brandão uma linha pelo vale do Tua seria a melhor solução, mesmo que se ficasse a curto prazo por Mirandela203. No entanto, no relatório final da associação de 1877, apenas a linha do Tua (como continuação da do Douro até Espanha) e o prolongamento da de Guimarães até Chaves pelo vale do Tâmega seriam incluídos204. Com esta proposta não concordava João Crisóstomo de Abreu e Sousa que, incumbido pelo ministro das obras públicas, Lourenço de Carvalho, apresentaria em 1878 uma nova proposta de rede, na qual a ligação a Bragança era feita desde o Pocinho pelo vale do Sabor. Vila Real e Chaves ficariam também servidas de caminhos-de-ferro, mas a linha do Tua desaparecia do mapa. Em 1879, o próprio ministro das obras públicas apresentaria uma proposta ao parlamento (que contudo nunca seria discutida). Além do caminho-de-ferro do Tua (até Bragança e Vinhais), seriam incluídos também três ligações a Vila Real, Chaves e Miranda do Douro e o prolongamento da linha do Douro até Salamanca por Barca de Alva205.
202
Diario da Camara dos Deputados, 18.3.1881: 1065. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.4.1878, 9.2.1881 e 19.4.1882: 277-278, 139-140 e 427-428. ALVES, 2007: 124-125.
203
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 9 (1878), n.º 97: 42-45; t. 10 (1879), n.ºs 109-110: 43-57; n.º 115: 372-378.
204
Revista de Obras Publicas e Minas, t. 9 (1878) n.ºs 97 e 100-104 (1878): 1-8, 181-244, 256-279, 289-304 e 317326.
205
Diario da Camara dos Deputados, 7.2.1879: 345-353.
62
A odisseia de uma nova linha
Figura 12 – Lourenço António de Carvalho, ministro das obras públicas206
Esta opção por Barca de Alva acabaria por reunir a predilecção do governo, o que condenaria o projecto de fazer da linha do Tua uma ferrovia internacional que prolongasse o caminho-de-ferro do Douro até Espanha. É com base nesta certeza que em 1880, um novo relatório era adicionado ao conjunto de estudos sobre caminhos-de-ferro em Trás-os-Montes. Tratava-se de um exame iniciado em Junho de 1878 por Sousa Brandão, Pereira Dias e Barnabé Roxo e que sugeria a construção de quatro grandes vias-férreas pelos vales de quatro afluentes do Douro: pelo Sabor até Zamora, pelo Tua até Mirandela e Bragança, pelo Corgo até Chaves e pelo Tâmega também até Chaves207. Sousa Brandão previa o uso de bitola estreita em cada uma daquelas linhas e, no caso da linha do Tua, estacava-a em Bragança, uma vez que a ligação da linha do Douro a Espanha far-se-ia muito provavelmente por Barca de Alva. Mapa 20 – As propostas de Sousa Brandão208
206
O Occidente, revista illustrada de Portugal e do estrangeiro, 15.2.1878, n.º 4: 28.
207
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Púbicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 25 (1883), parecer n.º 10305. Diario da Camara dos Deputados, 23.2.1880 e 18.3.1881: 541-542, 1065. BRANDÃO, 1880. PEREIRA, 2010. SALES, 1983: 111.
208
BRANDÃO, 1880.
63
A linha do Tua (1851-2008)
Além de tornar a linha do Tua um caminho-de-ferro unicamente nacional, a opção por Barca de Alva acabaria também por adiar a sua execução. O esforço do governo centrar-se-ia na continuação da construção da linha do Douro até à fronteira e nas negociações diplomáticas e financeiras para ligar a fronteira à cidade espanhola de Salamanca. Espanha não facilitou a concretização do projecto e o governo português acabou por atribuir uma garantia de juro a um consórcio de bancos portugueses, apadrinhado pelo capitalista Henri Burnay, que se dispunha a construir as linhas entre dois pontos na fronteira portuguesa e Salamanca. Alguns dos opositores ao governo ainda tentavam impedir a consumação deste negócio, aconselhando que a internacionalização da linha do Douro se fizesse por Bragança e pelo coração de Trás-os-Montes até Zamora209. Surpreendentemente, a câmara de Bragança, pretendendo mostrar a sua lealdade para com o governo do partido regenerador, representou ao rei contra tal solução, invocando razões do foro militar e da defesa nacional210. Este processo – que ficou infamemente conhecido como salamancada – só seria concluído em 1882, com a aprovação do financiamento do governo ao chamado Sindicato Portuense211. Figura 13 – Burnay, o titereiro da salamancada212.
209
Diario da Camara dos Deputados, 1.6.1882: 1764-1766.
210
ALVES, 2000, vol. 9: 225.
211
SOUSA, 1978.
212
O Antonio Maria, n.º 163: 228.
64
A odisseia de uma nova linha
Até esta altura, o governo nada faria para levar o caminho-de-ferro ao coração de Trás-os-Montes, a não ser preparar a estação de Foz-Tua para receber no futuro uma segunda linha para norte213. As reivindicações mantinham-se, mas caíam em saco roto. Em 1882 e 1883, a câmara de Mirandela enviou representações ao rei, pedindo a construção da via-férrea214. No parlamento, um grupo de deputados requereu a realização de estudos para duas ferrovias naquela província: uma desde a Régua por Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Mirandela e Zamora e outro entre Mirandela, Chaves e Bragança215. Em vão. Até que em 1883, o caminho-de-ferro do Douro chegava finalmente a Foz-Tua e foi precisamente neste ano que se tomaram verdadeiros passos para decretar a construção da linha até Mirandela. Figura 14 – Ponte sobre o Tua no caminho-de-ferro do Douro216
213
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Caminhos de Ferro do Estado. Construção. Direcção da construcção dos Caminhos de ferro do Minho e Douro. Linha do Douro. 8.ª Secção. Estação provisória do Tua. Memória descritiva. 29 de Dezembro de 1882. Cx. 130 (1912), proc. 130/10. Parecer da Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. 29 de Janeiro de 1883, cx. 130 (1912), proc. 11.
214
ABREU, 2006a: 6. SALES, 1983: 111.
215
Diario da Camara dos Deputados, 17.2.1883: 372-373.
216
MACEDO, 2009.
65
A linha do Tua (1851-2008)
Em 8 de Janeiro de 1883 a junta consultiva de obras públicas e minas dava parecer positivo ao relatório de Sousa Brandão sobre uma rede de via reduzida a norte do Douro. Das linhas sugeridas por aquele engenheiro, a junta destacava a do Tua por passar por uma das zonas mais produtivas e populosas de Trás-os-Montes e por já ter um projecto definitivo redigido. Sousa Brandão considerara-a também a potencialmente mais lucrativa de todas as linhas propostas no seu plano por atravessar produtivo solo com excesso de produção sobre o consumo e ligar-se a Mirandela, vila central que comunicava com toda a província (Valpaços, Vinhais, Macedo de Cavaleiros) e que pelas suas relações comerciais precisava de um caminho-de-ferro. Na avaliação que faziam ao trabalho do seu colega, os vogais da junta começavam por repetir a lição de Xavier Cordeiro quanto à escolha da bitola: a via larga era preferível por permitir maior velocidade e capacidade de transporte, mas a bitola estreita prestava-se melhor a terrenos mais acidentados e era mais económica, ficando a escolha final dependente das circunstâncias específicas do caminho-de-ferro a construir. No caso particular da linha do Tua, o ideal era manter a mesma distância entre carris que se verificava no caminho-de-ferro do Douro, mas considerando que os níveis de produção e população da área atravessada eram perfeitamente servidos por uma linha de bitola métrica, esta devia ser a medida escolhida. Sousa Brandão tinha dividido a linha em quatro secções (Mirandela a Longra; Longra ao rio Tinhela; rio Tinhela à ribeira da Figueira; e ribeira da Figueira a FozTua), que ao todo mediam 53 km. A sua directriz assentava sempre sobre a margem direita do Tua, só mudando para a margem oposta em Mirandela. Em termos de condições de tracção, não excedia os 15 mm/m que aliás só eram atingidos em 4,5 km da linha. Quanto ao traçado em planta, apresentava 36% do traçado em curva e destas 1/6 tinham um raio inferior a 250 m. A junta não se mostrou incomodada com este projecto provisório, admitindo até que os raios de curva podiam baixar aos 150 m, valor aceitável para comboios com 100 m de extensão e velocidades de 25 km/h. O orçamento era bastante lisonjeiro: ao todo, para Sousa Brandão, a linha do Tua custaria 1.431 contos ou 27 contos/km; a junta mostrava-se, contudo, muito mais optimista, dando como exemplos caminhos-de-ferro de via reduzida estrangeiros onde o custo quilométrico variava entre os 5 e os 21 contos. Apesar de não conhecerem o terreno como Sousa Brandão, os vogais da junta estimavam um custo provável de 20 contos/km, mas concederam aproximar este valor do orçado por aquele engenheiro: o parecer final previa um custo de 25 contos/km (1336 contos ao todo). Um dos vogais da junta consultiva discordava da opinião dos seus colegas: João Crisóstomo de Abreu e Sousa era um dos mais antigos e ilustres engenheiros portugueses, não se lhe conhecendo qualquer ligação afectiva, política ou económica a Trás-os-Montes. Contava à altura 72 anos, estando ligado aos caminhos-de-ferro desde a década de 1840 quando trabalhou na Companhia das Obras Públicas de Por-
66
A odisseia de uma nova linha
tugal. Na década seguinte estaria ligado à Companhia Central Peninsular, cujo trabalho prosseguiu depois de esta companhia ter rescindido o seu contrato para a construção da linha de Lisboa a Santarém. Mais tarde, foi enviado ao estrangeiro para estudar os caminhos-de-ferro de outras nações, examinou o traçado da linha do sul e esteve envolvido em várias comissões de inquérito à Companhia Real. Seria também o homem que tomaria o leme da governação após o ultimato inglês de 1890217. Figura 15 – João Crisóstomo de Abreu e Sousa218
Para João Crisóstomo, devia-se em primeiro lugar estabelecer a rede geral a construir, qual a bitola de cada uma das linhas e depois estabelecer uma prioridade entre elas. Para o engenheiro, as linhas da Régua a Chaves, de Foz-Tua até Bragança e do Pocinho até Espanha (Zamora) eram as que melhor serviam os interesses dos transmontanos nas suas relações internas e externas com o Porto a Beira e o Minho. O seu concessionário tanto podia ser o estado como uma só companhia privada, tendo em consideração que seria inconveniente fraccionar em demasia as concessões, tanto do ponto de vista da operacionalidade das vias como do ponto de vista financeiro. Porém, para João Crisóstomo, a linha do Tua não deveria ser a prioritária, uma vez que corria na maior parte da sua extensão por um vale estreito e alcantilado, cruzado somente por duas estradas abaixo de Mirandela. Mais importantes seriam as ferrovias entre Régua e Chaves e entre o Pocinho e Bragança. Serviriam cidades importantes da província, já dotadas de estradas e a sua construção não seria mais difícil nem mais cara que a do caminho-de-ferro do Tua. Porém, convencido pela força da maioria na junta de que a linha do Tua seria a escolhida, João Crisóstomo partilhava também as suas opiniões em relação a este caminho-de-ferro. A linha do Tua deveria ir desde já a Bragança (tendo também um 217
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Processos individuais. MÓNICA, 2005-2006, vol. 3.
218
Exército Português, http://www.exercito.pt/sites/EPE/Historial/Paginas/default.aspx.
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A linha do Tua (1851-2008)
ramal para Vinhais) e ser assente em bitola larga, pois o tráfego decerto cresceria muito rapidamente (acima dos níveis ostentados pelas linhas alentejanas e do leste) e a bitola estreita não daria vazão a todas essas mercadorias e bens. A sua construção ficaria certamente mais cara, mas um aumento do custo quilométrico para 32 a 34 contos era perfeitamente aceitável para João Crisóstomo – gastava-se mais no presente, mas obtinha-se um serviço e um retorno maior no futuro219. De posse deste parecer da junta consultiva (e do voto em separado de João Crisóstomo), o governo pôde com mais propriedade preparar uma proposta para o legislativo. A 19 de Janeiro de 1883, os ministros das obras públicas e fazenda, Hintze Ribeiro e Fontes Pereira de Melo, apresentavam ao parlamento uma proposta de lei para adjudicar em concurso três linhas férreas – linha da Beira Baixa (bitola larga), linha do Tua e ramal de Viseu (bitola estreita) – às quais era ainda atribuída uma garantia de juro. A discussão iniciava-se a 12 de Fevereiro 1883, depois de as comissões parlamentares de obras públicas e fazenda darem parecer positivo à iniciativa do governo. O debate foi relativamente curto, durando apenas quatro dias. Durante a discussão, ninguém falou abertamente contra o projecto, já que levava o caminho-de-ferro a zonas órfãs e necessitadas deste melhoramento, muito embora alguns duvidassem da sua exequibilidade e por tal acusassem o governo de demagogia e eleitoralismo. Alguns deputados ainda tentaram corrigir aquilo que entendiam ser dois erros na proposta: a escolha da bitola estreita e o facto de a linha do Tua se ficar por Mirandela. Os apoiantes do governo reiteravam as vantagens da proposta, da escolha da bitola estreita e do facto de a linha chegar a Bragança numa segunda fase de construção. Outros argumentos semelhantes foram trocados em relação às outras duas linhas envolvidas neste pacote legal, mas no final a maioria presente na câmara dos deputados favorável ao governo acabaria por aprovar o diploma (17 de Fevereiro de 1883). A discussão transferiu-se então para a câmara dos pares, onde o debate se iniciou a 9 de Março de 1883. A contenda foi aqui ainda mais rápida que na câmara baixa, como aliás era habitual, durando apenas duas sessões. No entanto, o resultado final seria ligeiramente diferente. Os argumentos repetiram-se de parte a parte e a 10 de Março de 1883 os pares achavam por bem aprovar algumas alterações à proposta original do governo (em relação à forma do juízo arbitral e à garantia de juro que passava de 5% para 5,5% sobre o rendimento líquido), o que forçou à descida do diploma novamente à câmara dos deputados. Estes podiam recusar as sugestões dos pares, o que obrigaria à formação de uma comissão mista de pares e deputados para se chegar a um acordo e portanto a um longo processo burocrático220. Pelo contrário, os deputados acataram as alterações dos pares (sessão de 2 de Abril de 1883). Para 219
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 25 (1883), parecer n.º 10305. 8 janeiro 1883
220
SANTOS, 1986.
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A odisseia de uma nova linha
todos os efeitos, o parlamento havia dado o seu beneplácito à iniciativa governamental e o diploma podia subir ao poder moderador – o rei – que, como era costume, o ratificou sem grandes problemas. A 26 de Abril de 1883, era publicada a carta de lei que autorizava o governo a abrir concurso para atribuição de uma garantia de juro (entre outros apoios) à construção das linhas da Beira Baixa, Tua e Viseu221. Figura 16 – Bases da adjudicação das linhas222
A praça foi aberta por decreto de 28 de Setembro de 1883, mas não apareceram quaisquer candidatos, uma vez que as condições de resgate da linha por parte do estado afastaram os interessados223. Clemente Menéres procurou então cativar o banqueiro Henry Burnay e os capitalistas franceses Pereire, mas como não conseguisse, propôsse ele próprio a levar a efeito a obra. O espírito de iniciativa de Menéres acabou por não ser necessário, pois o governo aceitaria alterar as condições de remição da linha (decreto de 22 de Novembro de 1883), o que foi de encontro às pretensões do conde da Foz, um poderoso capitalista de Lisboa, que a breve trecho se tornaria o homem forte da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, a principal empresa ferroviária do reino224. O contrato provisório entre o conde da Foz e o governo foi assinado a 24 de Dezembro de 1883 e chegou ao parlamento a 13 de Fevereiro de 1884, novamente atado à linha da Beira Baixa e ao ramal de Viseu. A necessidade de ouvir novamente o legislativo em relação a esta matéria ficou-se a dever ao facto de as condições aprovadas anteriormente pelo parlamento terem sido alteradas durante procedimento concursal (a questão da remição da linha). A discussão iniciou-se a 13 de Maio de 1884 nos deputados e três dias depois nos pares e uma vez mais versou sobre elementos paralelos àquilo que estava em debate. Contestava-se ainda as directrizes das diversas linhas e sugeria-se que as companhias concessionárias fossem obrigadas a ter uma maioria de cidadãos nacionais nas suas direcções, sob pena de a adjudicação não ser feita e o estado assumir a construção dessas linhas. As rotas dos caminhos-de-ferro em discussão 221
PEREIRA, 2012a: anexos 23 e 25.
222
Arquivo histórico parlamentar. Secção I/II, cx. 521.
223
Colecção Oficial Legislação Portuguesa, 1883: 97-98 e 285-292. FINO, 1883-1903, vol. 1: 562-564.
224
GOMES, 2009: 5.
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não foram alteradas no parlamento, mas a proposta para obrigar as concessionárias a ter direcções maioritariamente nacionais foi aceite, o que viria a dar um imbróglio com a Companhia Real, concessionária provisória da linha da Beira Baixa, e com Henry Burnay, adjudicatário do ramal de Viseu. Ambos os casos seriam resolvidos em favor do conde da Foz que acabaria por tomar conta da direcção da Companhia Real e juntar a concessão do ramal de Viseu à da linha do Tua. O rei D. Luís promulgaria novamente as decisões dos corpos legislativos e a 26 de Maio de 1884 era publicada a lei que oficializava a adjudicação da linha do Tua ao conde da Foz. O contrato definitivo seria assinado um mês depois, a 30 de Junho de 1884225. O concessionário empenhou-se na obra e em 9 de Agosto de 1884 e 30 de Junho de 1885 apresentava dois projectos pela margem esquerda do Tua. Isto contrariava os estudos de Sousa Brandão, mas ia de encontro ao projecto de Almeida Pinheiro, incumbido de estudar a margem esquerda do rio por portaria de 12 de Janeiro de 1883. Este projecto fora também aprovado pela junta consultiva, que elogiava o trabalho e boas condições de tracção em tão acidentado terreno: o traçado contava com mais de 60% de rectas e quase 50% de patamares, nunca se atingindo o declive máximo imposto por lei e contrato226. Esta questão invadiu ainda o parlamento, motivando inflamadas intervenções de Teixeira de Sampaio, deputado nascido e eleito em Alijó, que exigia que a directriz se estabelecesse na margem direita e chegou mesmo a criticar os projectos pela orla oposta apesar de não ter formação para tal227. No entanto os seus intentos não seriam coroados de sucesso e o governo seguiria a opinião do concessionário (pela margem esquerda). Depois de aprovado o plano de construção e de iniciada a obra (em 16 de Outubro de 1884 em Mirandela), o conde da Foz trespassou a concessão à Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro, por ele fundada (portaria de 29 de Setembro de 1884 e decreto de 1 de Outubro de 1885)228. A empreitada foi tudo menos fácil e rápida, em virtude das características orográficas da região que determinaram que “o comboio, aberto na rocha viva da montanha a pique, serpeja[sse], cá no alto, acompanhando as curvas duras do contorcido rio no fundo de um vale estrangulado, feito de altas serras de penedos a despenharem-se”229. Por estes motivos, o prolongamento da linha até Bragança foi adiado.
225
Colecção Oficial Legislação Portuguesa, 1883: 359-367 e 406 e ss.; 1884: 190-210 e 307-313.
226
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. n.º 27 (1884), parecer n.º 11627; cx. n.º 29 (1885), parecer n.º 12791. Diario da Camara dos Deputados, 6.3.1884: 515.
227
Diario da Camara dos Deputados, 29.12.1883, 6.3.1884, 18.3.1884, 13.5.1884, 7.1.1885, 16.1.1885, 24.1.1885, e 8.2.1886: 1892-1893, 512-519, 732-734, 1534-1567, 8 e 11, 117-118, 236, 397 e 403.
228
ALVES, 2000, vol. 9: 225. BARATA, 1945. CORDEIRO, 2011. SALES, 1983: 111. SILVA, 2004. TORRES, 1936.
229
Apud. ABRAGÃO, 1956: 228. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 26 (1895), n.ºs 303-304: 191-194;
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A odisseia de uma nova linha
2.2. ASPECTOS CONTRATUAIS E FINANCEIROS Hugo Silveira Pereira230 O contrato definitivo assinado entre o conde da Foz e o governo a 30 de Junho de 1884 era o acordo típico para a concessão de caminhos-de-ferro com garantia de juro que por esta época se assinava em Portugal. A forma de adjudicação de linhas-férreas em Portugal só foi verdadeiramente regulamentada em 31 de Dezembro de 1864, quando o então ministro João Crisóstomo de Abreu e Sousa, autorizado por lei de 25 de Junho de 1864, publicou um decreto geral sobre caminhos-de-ferro. Até então as concessões eram reguladas latamente pela carta constitucional de 1826 (que determinava a necessidade de ouvir o parlamento sobre qualquer medida que envolvesse aumento de despesa, emissão de dívida ou contracção de empréstimos) e pelo código comercial231. Havia ainda o decreto de 18 de Outubro de 1845, que definia as regalias de que tais iniciativas poderiam beneficiar (prazo de concessão até 99 anos, entrega dos terrenos e materiais que pertencessem ao estado, isenção de direitos alfandegários sobre a importação do material necessário à construção e exploração e isenção de impostos gerais e locais), bem como as contrapartidas (necessidade de os traçados serem aprovados pelo governo, transporte gratuito de correio oficial e a preço reduzido de material e pessoal militar, sujeição à fiscalização governamental, sujeição às leis do reino, possibilidade de remição, obrigatoriedade de constituição de companhias previamente à concessão). Ficavam apenas por concretizar os detalhes relativos à vigilância, segurança, uso e conservação da via, a definir em regulamentos ulteriores. 230
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
231
CAETANO, 1981. MIRANDA, 1992.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 17 – Parte inicial do decreto de 18 de Outubro de 1845232
Até 1864, o estado andou a reboque das circunstâncias. Concretamente para cada linha era aprovada uma lei ad hoc que determinava os direitos e deveres de governo e concessionário (prazos de concessão e construção, apoio financeiro, isenções fiscais, condições da obra, juízo arbitral, conservação da obra, serviços mínimos, etc.). A aprovação destes contratos era acompanhada da ratificação de outros diplomas sobre aspectos gerais da construção (expropriações, fiscalização da obra, administração de obras públicas, polícia e exploração de caminhos-de-ferro)233. Foi assim que se estabeleceram os acordos para a construção das linhas do norte, do leste, do sul e do sueste. O decreto de 31 de Dezembro de 1864 era inspirado na legislação francesa de 1845 e marcaria a política ferroviária nacional nas décadas seguintes. Só seria fundamentalmente alterado em 1927, ano em que era ainda considerado “o código fundamental da nossa legislação ferroviária”234. Não se debruçava apenas sobre a fiscalização da construção e exploração, abarcando também aspectos ligados à concessão e aos direitos e obrigações de estado e companhias. Decretava muito explicitamente que todas as ferrovias e instalações fixas associadas faziam parte do domínio público (aos concessionários pertencia apenas o material circulante e respectivo combustível, mas estes não podiam ser alienados a não ser para serem substituídos). Os governos estavam apenas autorizados a ceder temporariamente este domínio a entidades privadas que o exerceriam em substituição do 232
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1845: 753.
233
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1856: 282-283 e 444-448. FINO, 1874: 7.
234
ALMEIDA & CAMBEZES, 19--: 36 (decreto 14330 de 25.8.1927, rectificado a 20.10.1927). SOUSA, 1915: 353. Ver também ARMAND, 1963: 30-33. CARON, 1997-2005, vol. 1: 95-96. MELO, 1939. SANTOS, 1934. SOUSA, 1918.
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A odisseia de uma nova linha
estado e em proveito próprio, tendo forçosamente que obedecer a determinadas obrigações e beneficiando de certos direitos. Esta cedência temporária carecia também de aprovação parlamentar, excepto se se tratassem de ramais de linhas já contratadas ou vias-férreas de extensão inferior ou igual a 20 km, que tivessem por fim ligar minas ou estabelecimentos industriais com algum rio navegável, porto de mar ou caminho-de-ferro. Em ambos estes casos, era também obrigatório não incorrer o erário público em qualquer encargo financeiro. Porém, o decreto não definia exactamente o que era um ramal, o que originou algumas polémicas com o ramal de Cáceres, a linha do oeste ou a linha da Beira Alta235. Mesmo as linhas que não entroncavam noutras geraram alguma controvérsia, porque houve casos em que caminhos-de-ferro com mais de 20 km foram concedidos sem aprovação parlamentar (a linha do Porto à Póvoa e Famalicão ou de Guimarães, por exemplo). Por outro lado, estas linhas não tinham prazo de concessão predeterminado nem possibilidade de remição por parte do estado, pressupondo-se que a concessão era perpétua, o que contrariava o carácter de bem de domínio público atribuído aos caminhos-de-ferro. Figura 18 – Articulado inicial do decreto de 31 de Dezembro de 1864236
Não era obrigatório o concurso. O governo podia negociar directamente com uma empresa, mas tal acordo seria provisório até que o parlamento o sancionasse. A lei da contabilidade pública de 1881 alterou esta prescrição e tornou compulsiva a abertura de concurso para contratos apresentados às cortes237. Suspeições de favorecimento em adjudicações directas (na linha do oeste com Burnay e a Companhia Real) 235
PEREIRA, 2012a: 330-331.
236
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1864: 1032.
237
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1881: 117
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A linha do Tua (1851-2008)
levariam à inserção desta obrigatoriedade na lei. Foi uma vitória de Pirro para os defensores desta medida, pois era sempre possível ao governo fazer uma adjudicação directa mascarada de concurso. Em todo o caso, foi em virtude desta moldura legal que a linha do Tua foi colocada em hasta pública. Além disto, o decreto de 31 de Dezembro de 1864 contemplava ainda outros aspectos ligados à ferrovia: fiscalização da construção e exploração, fiscalização tributária das empresas, segurança de passageiros e ferroviários, direitos e deveres dos concessionários face ao estado, aos utentes e aos proprietários dos terrenos confinantes ao caminho-de-ferro, direitos e deveres de passageiros e vizinhos das linhas e foros de cada tipo de infracção ficavam desde já determinados na lei, se bem que pendentes de regulamentação posterior (regulamento de 11 de Abril de 1868 sobre a fiscalização da exploração e manutenção, segurança e direitos dos passageiros, procedimentos em caso de acidentes, salubridade e segurança públicas e polícia geral das linhas-férreas238; regulamento de 15 de Março de 1888 sobre fiscalização da construção de caminhos-de-ferro239; decreto de 21 de Fevereiro de 1891 e portaria de 31 de Março de 1891 alterando a organização da hierarquia e organização fiscal sobre as companhias privadas240). Para lá de todos estes diplomas gerais, a lei de 5 de Maio de 1860, que aprovava o contrato com o duque de Salamanca para a construção dos caminhos-de-ferro do norte e do leste, foi também importante para a história da legislação ferroviária nacional. Em termos legais só se aplicava aos referidos caminhos-de-ferro, no entanto o seu articulado serviria de inspiração a todos os outros contratos e leis que concediam linhas com apoios públicos, fossem eles a garantia de juro (ou rendimento) ou a subvenção quilométrica241. Figura 19 – Artigo 1.º da lei de 5 de Maio de 1860242
238
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1868: 125-132. AGUILAR, 1945.
239
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1888: 106-109. EÇA et al., 1888. AGUILAR, 1945. SOUSA, 1918.
240
FINO, 1883-1903, vol. 3: 71-103. AGUILAR, 1945a. BARATA, 1945. SANTOS, 1934. SOUSA, 1926.
241
PEREIRA, 2012a: 324-334.
242
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1860: 160.
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A odisseia de uma nova linha
Estes eram os principais auxílios financeiros concedidos aos operadores ferroviários e ambos foram concedidos pelos diversos governos nacionais na segunda metade do século XIX. Além destes, havia uma panóplia de outros apoios desde a isenção de determinados impostos, à abolição de direitos alfandegários sobre material para a construção e exploração da linha, passando pela declaração de utilidade pública nos processos de expropriação, pela cedência gratuita de terrenos pertencentes ao estado ou pela concessão de uma zona de protecção contra linhas paralelas. Era aliás o que normalmente se fazia noutros países da Europa Continental. Em contrapartida, a concessionária comprometia-se a prestar serviços mínimos e também alguns serviços gratuitos ao estado (como o transporte de correio) e a devolver o domínio efectivo do caminho-de-ferro ao governo passado um determinado prazo, normalmente 99 anos, que poderia ser encurtado através da remição da linha, mediante o pagamento de uma anuidade até ao fim do prazo da concessão. A principal diferença entre a garantia de rendimento e a subvenção quilométrica estava na extensão de tempo durante a qual esse auxílio era devido pelo governo. Pela garantia de juro, o estado assegurava à concessionária uma verba anual líquida predefinida ou correspondente a uma percentagem do capital investido ou orçado na construção da linha durante um prazo fixo. Tinha a vantagem de adiar os encargos do tesouro para quando a linha já estivesse em exploração, de os dividir por um largo período de tempo e de os tornar mais leves ou até mesmo nulos, tudo dependendo do comportamento da exploração: se o rendimento atingisse os 2% e a garantia fosse de 6%, o governo só entraria com 4%; se o rendimento ultrapassasse os 6%, tudo dependia do acordado, mas normalmente o que se estipulava era dividir o excesso em partes iguais por estado e companhia. Nada ficava previsto no caso de o rendimento líquido ser negativo, mas à partida esse défice não seria coberto pelo erário público. De todo o modo, e partindo do princípio que o rendimento da linha seria sempre positivo, a saúde financeira da companhia ficava acautelada. A desvantagem deste método era desincentivar a concessionária a executar uma construção e uma exploração competentes, pois tinha assegurado um rendimento atractivo. A forma de cálculo da verba garantida sofreu alterações ao longo do tempo. Inicialmente era uma percentagem calculada sobre o capital orçado por lei. Na década de 1860, tentou-se garantir uma verba bruta fixa, mantendo-se dependente da concessionária a gestão da despesa e consequentemente do rendimento líquido. Embora a companhia fosse obrigada a manter um certo número de viagens por dia, era-lhe possível reduzir a oferta ao mínimo, diminuindo a sua despesa em prejuízo do serviço público e aumentando assim o seu lucro. Esta opção não vingou e voltou-se a usar o capital orçado como base de cálculo nas propostas que iam sendo discutidas
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A linha do Tua (1851-2008)
no parlamento. A partir de 1880 a despesa passou a ser uma variável a ter em conta no cômputo do rendimento líquido garantido. Normalmente era fixada num mínimo de 40% do rendimento bruto, garantindo-se assim que a empresa não pouparia na exploração com prejuízo do serviço, em virtude de ter certificada uma verba dos cofres públicos. Se a empresa gastasse mais, em teoria, poderia oferecer um serviço melhor sem risco. No entanto, não era certo que essa despesa redundasse numa melhoria ou aumento da oferta. Por isso e para impedir que a concessionária abusasse desta regalia estabelecendo despesas sem justificação (cobertas pela garantia de rendimento), resolveu-se limitar também o valor máximo da despesa. Surgiu assim mais uma cláusula no sistema de garantias de rendimento que limitava o desembolso efectivo a uma percentagem menor do capital. Se, por exemplo, a garantia fosse de 6% e o rendimento atingisse os 2,5%, o estado mantinha a obrigação de entregar uma determinada quantia à empresa, mas essa quantia era limitada ao estabelecido contratualmente (usualmente 2% ou 3% do capital investido). Era uma forma de incentivar a empresa a realizar um melhor serviço. A subvenção quilométrica consistia na entrega por cada quilómetro construído de uma quantia durante a construção, que normalmente montava a metade do orçamento. Podia ser encarado como uma forma de entrada no capital da companhia, que viria assim os seus encargos reduzidos e o seu lucro futuro favorecido. Tinha a vantagem de obrigar a concessionária a uma boa construção para que a exploração fosse a mais regular possível. Além disso constituía uma despesa certa e fixa para o estado, embora castigasse o orçamento de forma mais severa e num prazo mais curto. Na década de 1850, chegou-se também a tentar uma combinação destes dois subsídios: o governo entregava uma determinada quantia de dinheiro por cada quilómetro assente e garantia ainda um rendimento durante a exploração. Foi um sistema que não seduziu os responsáveis nacionais e que nunca mais foi proposto. A escolha de um sistema em detrimento do outro dependia das expectativas de rendimento e da aceitação do negócio por parte da iniciativa privada. Do lado do estado, em linhas das quais se esperava um alto rendimento, por servirem um movimento já existente, o ideal seria a garantia de juro. Nas que se destinavam a criar movimento, o ideal seria conceder subsídio quilométrico. Do lado dos investidores, em teoria a garantia de juro seria sempre mais sedutora, embora obrigasse a uma maior angariação de capital no início da empreitada. No entanto, era difícil, para não dizer impossível, fazer cálculos certeiros em relação aos rendimentos previsíveis das linhas. Os governos foram-se movendo neste campo por convicções e percepções possíveis da realidade, de acordo com as circunstâncias de momento. As primeiras experiências na década de 1850 com garantias de juro não foram agradáveis. As próprias expectativas em relação ao retorno do investimento foram esmorecendo e como
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A odisseia de uma nova linha
tal a subvenção quilométrica acabou por ser o auxílio ao investimento preferido dos governos até finais da década de 1870243. Contudo, se antes tinha sido o governo a ficar descontente com a garantia de juro, desta vez passaram a ser as companhias ferroviárias as insatisfeitas com a subvenção quilométrica. A Companhia Real, que tinha construído as linhas do norte e do leste com um subsídio de 50 contos/km, tinha entrado em falência pouco depois de inauguradas as suas ferrovias (em meados da década de 1860) e necessitou de mais ajudas do estado (designadamente uma isenção do imposto de trânsito) para se manter à tona. A Companhia do Caminho de Ferro da Beira Alta passaria pelo mesmo a partir de 1882 – apesar de a linha explorada ser encarada como o verdadeiro caminho-deferro internacional que mais depressa colocaria Lisboa em comunicação com França, a verdade é que o tráfico era extremamente diminuto e a companhia via-se com sérias dificuldades financeiras. Aquelas que eram consideradas as principais linhas nacionais tinham-se revelado um desastre financeiro, pelo que os investidores começaram a exigir garantias de rendimento ao estado para aceitarem novas concessões244. Por outro lado, os subsídios quilométricos concedidos pelos governos regeneradores tinham pesado sobre o orçamento. A oposição – o partido progressista – sempre foi muito crítica em relação ao despesismo regenerador. A garantia de juro foi uma forma de continuar a construir caminhos-de-ferro sem onerar muito o tesouro, pois, como vimos, os encargos seriam adiados para o início da exploração e espaçados no tempo. Foi neste contexto que se realizou a adjudicação da linha do Tua com garantia de juro em 1883. Como vimos, no capítulo anterior, o concurso foi aberto em 28 de Setembro de 1883 e reaberto cerca de dois meses depois, após alteração das condições de resgate das linhas. Para licitar, o conde da Foz teve que depositar 40 contos em títulos de dívida ou metal sonante no Banco de Portugal, quantia que mais tarde teve que dobrar para oficializar a adjudicação (e que serviria de caução até que as obras realizadas valessem outro tanto). A licitação versava sobre o custo quilométrico a partir do qual se calculava a garantia de juro. O máximo permitido era 23 contos e venceria o concurso quem fizesse o lanço menor. O conde da Foz superiorizou-se a dois outros candidatos com uma oferta de 19,692 contos e ficou com a adjudicação provisória245. Era um valor relativamente baixo para uma linha que se mostraria muito difícil de abrir, razão pela qual a exploração deste caminho-de-ferro se mostrou nos primeiros anos deficitária, como veremos. O contrato assinado pelo conde da Foz foi redigido em sete páginas e contava com 243
Para tudo isto, ver: PEREIRA, 2012a: 366-370.
244
ALEGRIA, 1990.
245
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 206. SANTOS, 2014: 62.
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81 artigos divididos por quatro capítulos. O conde ou companhia a quem ele passasse a concessão (mediante autorização e aprovação governamental dos seus estatutos) assumia o compromisso de construir “um caminho de ferro, que, partindo da linha do Douro e seguindo pelo Valle do Tua, termine em Mirandella, sendo o dito caminho de ferro completo em todas as suas partes, com todas as expropriações, aterros e desaterros, obras de arte, assentamento de vias, estações e officinas de pequena e grande reparação, e todos os edificios acessorios, casas de guarda, barreiras, passagens de nivel, muros de sustentação, muros de vedação ou sebes para separar a via ferrea das propriedades contiguas e em geral as obras de construcção previstas ou imprevistas, sem excepção ou distincção, que foram necessarias para o completo acabamento da linha ferrea”246. Figura 20 – Primeiro artigo do contrato assinado pelo conde da Foz 247
Obrigava-se ainda a adquirir todo o material fixo e circulante necessário à exploração, escolhendo os melhores modelos conhecidos. O material de passageiros devia ter três classes: a primeira classe teria assentos estofados, a segunda classe assentos de estofo mais ordinário e a terceira classe assentos de madeira. Comprometia-se também a estabelecer um telégrafo ao longo de toda a linha e ainda a fazer a demarcação quilométrica e o levantamento da planta cadastral do caminho-de-ferro. 246
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 204.
247
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 204.
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A odisseia de uma nova linha
A construção deveria ser feita de acordo com os projectos definitivos apresentados pelo concessionário e aprovados pelo ministério das obras públicas e pelo ministério da guerra (deveriam incluir um plano geral da obra, um perfil longitudinal, um perfil transversal, as obras de arte e uma memória descritiva e justificativa de todo o traçado). Os estudos poderiam ser fiscalizados por fiscais do ministério e o concessionário tinha direito a consultar todos os planos anteriores na posse do governo. Estes projectos deviam ser apresentados até um ano após a data do contrato definitivo. Se fossem rejeitados, seria estipulado um novo prazo para apresentação de novos planos. Se estes, mesmo assim, fossem rejeitados, o concessionário era obrigado a aceitar os projectos apresentados pelo governo. Em qualquer um dos casos antecedentes, o concessionário tinha depois 60 dias para iniciar a obra. Qualquer alteração aos projectos teria que ser aprovada pelo governo. O concessionário poderia emitir obrigações para financiar a construção, mas o seu produto líquido deveria ser colocado à ordem do governo, que o desbloquearia à medida que os trabalhos avançassem. A construção deveria estar acabada num prazo de dois anos a contar da data da aprovação dos projectos pelo governo e nela o concessionário deveria usar materiais de boa qualidade, no entanto não se definia o que era boa qualidade. Se o concessionário não conseguisse cumprir aquele prazo, pagaria uma multa por cada mês de atraso, que não poderia ser superior a 2 contos. A linha-férrea devia ser assente com uma só via de bitola métrica, excepto nas estações onde seriam construídas as necessárias vias de resguardo e de serviço. Os declives não deveriam ultrapassar os 18 mm/m e os raios das curvas não poderiam ser inferiores a 150 m e nos casos em que o fossem deviam ser assentes em plano horizontal. Em caso algum as rectas entre duas curvas de sentido contrário podiam ter menos que 50 m de extensão. Os carris deviam ser de aço com um peso mínimo de 20 kg/m e as travessas deviam ser todas creosotadas. As obras de arte deviam ser em pedra, ferro ou tijolo e nas passagens de nível o concessionário deveria montar uma barreira e uma guarda. Nenhuma secção do caminho-de-ferro poderia ser aberta sem expressa autorização do governo, ouvidos os seus fiscais. Qualquer falha no cumprimento deste articulado ou recusa por parte do concessionário em acatar os julgamentos dos árbitros competentes no que respeitasse à construção daria ao governo o direito de rescindir o contrato e colocar a concessão em hasta pública. O preço da arrematação seria entregue ao concessionário deduzidas as verbas eventualmente gastas com garantia de juro ou fiscalização. Se porém não aparecessem concorrentes ao leilão, todo o material construído ou adquirido passaria para a fazenda pública sem qualquer pagamento de indemnização ao concessionário original. O governo não tinha também que responder por qualquer dívida do concessionário fosse de que natureza fosse (esta ressalva destinava-se a evitar querelas jurídicas e indemnizações injustas como aquelas por que o governo passara na década
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A linha do Tua (1851-2008)
de 1860 com a companhia inglesa que assumiu a concessão da linha do sueste248). Durante a exploração, o concessionário podia aprovar os regulamentos próprios que entendesse, mas estes deveriam ser previamente aprovados pelo governo. Podia ainda oferecer os serviços que desejasse, mas estava obrigado a prestar os seguintes serviços ao estado: transporte de militares e material de guerra em serviço por metade do preço (uma regalia comum a todas as linhas nacionais e que se manteve até bem recentemente); transporte gratuito de fiscais do governo em funções de fiscalização; transporte gratuito de correio e dos seus empregados e material (em ambulâncias postais ou carruagens de segunda classe caso as primeiras não estejam disponíveis); uso gratuito do telégrafo para despachos oficiais do governo; autorização para colocar linhas telegráficas do estado nos seus postes. O número de viagens diárias seria também determinado por acordo entre o estado e o concessionário, de acordo com as necessidades da circulação. A própria velocidade dos comboios deveria ser fixada de acordo com o governo e com os regulamentos de polícia e segurança do caminhode-ferro. Durante o período da concessão, o concessionário deveria manter todo o material em boas condições, ficando toda e qualquer reparação a seu cargo, excepto no caso de guerra em que o custo das reparações seria assegurado pelo orçamento de estado. Terminado o período de concessão, o governo deveria receber a linha e seu material fixo em boas condições. O material circulante e combustível teria que ser adquirido ao concessionário e serviria ainda de garantia durante os cinco anos seguintes para qualquer reparação que o governo tivesse que fazer na linha. Se o concessionário não conservasse a linha e material em boas condições ou fosse remissa em satisfazer as requisições nesse sentido feitas pelo governo, podia este proceder às necessárias reparações, apropriando-se depois de igual valor das receitas da empresa acrescido de 20% à laia de multa. Em caso de suspensão da exploração, o estado podia tomá-la sob a sua responsabilidade e deveria intimar o concessionário a retomá-la o mais brevemente possível. Caso o concessionário no prazo de três meses não o conseguisse fazer, veria o contrato rescindido e perderia direito a qualquer indemnização. Em troca de todos estes deveres e responsabilidades, o concessionário poderia usufruir da exploração da linha por um prazo de 99 anos a contar da data da assinatura do contrato definitivo, sendo-lhe ainda garantido um rendimento anual líquido de 5,5% em relação ao valor quilométrico por que foi feita a concessão (os 19,6923 contos) ao longo daquele mesmo período de tempo. Para este cálculo, fixavam-se as despesas de exploração em 50% do rendimento bruto, com um máximo de 1,2 e um mínimo de 0,7 contos. Na eventualidade de o produto líquido exceder 5,5%, metade do excesso pertencia ao estado até ao completo reembolso das somas adiantadas pelo governo ao concessionário. O governo poderia resgatar o caminho-de-ferro antes do 248
PEREIRA, 2011.
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A odisseia de uma nova linha
término dos 99 anos e após o 15.º ano de concessão, ressarcindo o concessionário através do pagamento de uma anuidade até ao fim do prazo de concessão original. Essa anuidade seria igual à média do rendimento anual líquido de exploração dos melhores cinco dos sete anos anteriores e em caso algum esse valor poderia ser inferior a 5,5% do capital do valor quilométrico da adjudicação (neste caso 19,9623 contos). Figura 21 – As concessões que o governo fazia à companhia249
Eram-lhe ainda concedidas várias isenções fiscais (a nível geral ou municipal) durante vinte anos a contar da data do início das obras, bem como dispensa durante cinco anos a contar da data do contrato definitivo de taxas alfandegárias sobre a importação de material necessário à construção e exploração. Esta liberdade não era contudo ilimitada, porque no contrato indicavam-se precisamente que materiais e em que quantidade estavam isentos de taxas alfandegárias. Por fim, a nível fiscal, era ainda garantido que nenhum imposto especial seria lançado durante a concessão. O concessionário só pagaria o imposto de trânsito sobre o preço de passageiros e mercadorias, que contudo não poderia ser superior a 5%. As tarifas ainda eram fixadas pelo governo enquanto durasse a garantia de juro; assim que esta tivesse sido totalmente reembolsada, as pautas passavam a ser estabelecidas por comum acordo entre governo e concessionário. Este tinha ainda direito de preferência sobre qualquer ramal que viesse a entroncar na linha do Tua, no entanto não tinha direito a qualquer zona de protecção em relação a linhas paralelas nem a qualquer indemnização pela construção de prolongamentos do seu caminho-de-ferro. Ademais, qualquer outra companhia detentora de uma linha que entroncasse no caminho-de-ferro de Mirandela tinha direito de fazer circular o seu próprio material nesta via, pagando para tal uma portagem. O concessionário ou companhia a quem ele trespassasse a concessão eram considerados portugueses para todos os efeitos jurídicos e legais. Qualquer disputa entre o governo e o concessionário deveria ser julgada por um tribunal arbitral composto 249
Colleccção Official de Legislação Portugueza, 1884: 206.
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A linha do Tua (1851-2008)
por quatro juízes, dois nomeados pelo governo, dois pelo concessionário. Em caso de empate seria nomeado um quinto louvado escolhido por comum acordo entre ambas as partes ou pelo supremo tribunal de justiça em caso de desacordo. Excluíam-se da jurisdição deste juízo arbitral todas as questões ligadas aos projectos de construção, que ficavam dependentes única e exclusivamente do governo. Ao assinar o contrato, o conde da Foz tornou-se o concessionário da linha do Tua (a qual juntaria ao ramal de Viseu), no entanto para poder levar a empreitada a bom termo era necessário criar uma companhia. Foz foi adjudicatário e construtor da linha até 1 de Outubro de 1885, data em que passou a concessão à Companhia Nacional, formada por escritura pública em Lisboa três dias antes (28 de Setembro de 1885). O governo, por decreto daquela data, aprovava os estatutos da nova companhia e autorizava também o trespasse250. A estrutura da empresa, funções e quadros de pessoal foram definidos por regulamentos internos, geralmente designados de ordens de serviço. A Organização geral dos serviços da linha do Tua definia em traços gerais o organograma da companhia: o conselho de administração ficava em Lisboa com a parte administrativa da empresa; a direcção de exploração sedeava-se em Mirandela com a componente técnica da operação (assim que esta fosse iniciada). A direcção de exploração tinha também pessoal eminentemente administrativo (contabilidade, fiscalização e estatística; secretaria; armazéns e serviços de saúde), mas empregava a maioria dos seus empregados em três grandes serviços mais directamente ligados ao caminho-de-ferro: movimento e tráfego (organizava e geria o serviço de comboios e estações); material e tracção (tinha a seu cargo a condução, conservação e reparação do material circulante); e o serviço de via e obras (encarregado da conservação da via, edifícios, instalações, túneis, aquedutos e estruturas metálicas). Com o início da exploração, a companhia publicou também um conjunto de regimentos que geriam o serviço ferroviário nas suas múltiplas vertentes. O serviço era feito por composições de comboios mistos (passageiros e mercadorias), correios e mercadorias. Os horários previam a realização de comboios suplementares. A estação do Tua na linha Douro era de uso comum com a do caminho-de-ferro do Tua. Os serviços de transmissão eram objecto de uma contabilidade própria, que as administrações acertavam com regularidade251. O capital inicial da Companhia Nacional era de 600 contos, um valor insuficiente para levar a cabo a construção das linhas do Tua e de Viseu. Por esta razão foi necessário emitir obrigações. Esta era uma situação comum nas companhias ferroviárias ibéricas. Inicialmente constituía-se o capital acionista e depois recorria-se a empréstimos obrigacionistas, cujo valor superava muitas vezes o capital em acções. Isto era uma for250
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1885: 556 e ss.
251
Para tudo isto e para uma lista dos regulamentos e ordens de serviço da Companhia Nacional, ver GOMES, 2014.
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A odisseia de uma nova linha
ma de garantir financiamento sem pôr em causa ou em risco o controlo da companhia, uma vez que as obrigações não concediam direito de voto nas assembleias-gerais252. Tanto as acções como as obrigações foram subscritas maioritariamente em Portugal. O investimento em caminhos-de-ferro secundários seria teoricamente mais acessível a grupos portugueses e por outro lado não interessava aos capitais estrangeiros, que estavam também prevenidos com o fraco rendimento das linhas nacionais de primeira ordem. Além do mais, as tentativas de colocação de obrigações em França revelaram-se infrutíferas253. Subscrito o capital, a obra podia ser concluída (havia sido começada pelo conde da Foz ainda antes da constituição da companhia). No entanto, este capital revelarse-ia insuficiente para cobrir os 19,7 contos/km orçados e que constituíam a base para o cálculo da garantia de juro. A solução para este problema passou por desviar parte do orçamento da linha de Viseu para o Tua. Este buraco teve que depois ser tapado com nova emissão de títulos de dívida254. Por tudo isto, os primeiros anos da exploração ameaçavam tornar-se um problema para a Companhia Nacional. A construção havia custado muito mais que 19,7 contos/ km, mas a garantia de rendimento líquido era apenas calculada sobre esse valor, pelo que nunca daria à companhia um rendimento real de 5,5% do capital investido, como estipulado na lei. Para piorar a situação, o tráfego era extremamente reduzido. O estado, sem dúvida, pagava a sua parte entregando todos os semestres o complemento do rendimento líquido da exploração à companhia até um máximo de 5,5% sobre 19,7 contos. Nos primeiros dez anos, o erário pagou quase sempre o valor máximo dessa garantia, mas isto não era suficiente para que a companhia honrasse os seus compromissos com os detentores de obrigações255. Figura 22 – Pagamento da garantia de juro256
252
ARTOLA, 1978: 371-381 e 521. CARON, 1997-2005, vol. 2: 37. CASARES ALONSO, 1973: 109. COMÍN COMÍN et al., 1998, vol. 1: 88-92. JORDI NADAL, 1982: 39-41. MORAL RUIZ, 1979: 113. TEDDE DE LORCA, 1978: 29.
253
SANTOS, 2014: 65-66.
254
SANTOS, 2014: 68.
255
PEREIRA, 2012b: XXXVII.
256
FINO, 1883-1903, vol. 3: 59.
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A linha do Tua (1851-2008)
O problema da Companhia Nacional foi o baixo custo orçamentado para a construção da linha que se reflectiu nas bases do concurso para a adjudicação da linha do Tua: 23 contos/km era manifestamente pouco para uma das linhas de mais difícil construção na história dos caminhos-de-ferro em Portugal. Este problema tinha sido antecipado em 1880-1881 pelos investidores ingleses que apostaram na concessão do porto e caminho-de-ferro de Mormugão em Goa. Talvez pouco crentes nas capacidades de previsão de custos dos engenheiros nacionais, aqueles capitalistas só aceitaram tomar conta da obra depois de o governo português lhes oferecer uma garantia de juro de 5% sobre 800 mil libras (cerca de 3.600 contos, custo estimado da empreitada) e ainda uma outra garantia de 6% sobre qualquer capital adicional acima daquele valor (seria de 550 mil libras ou 2.500 contos). Deste modo a West of India Portuguese Guaranteed Railway Company (assim seria chamada a companhia fundada por aqueles homens) não corria qualquer tipo de risco com a exploração ou com erros de orçamentação de custos e teria uma vida bastante desafogada. O mesmo não fez a Companhia Nacional do conde da Foz, que se veria sem recursos para honrar as suas dívidas. A companhia suspendeu o pagamento aos obrigacionistas em 1 de Julho de 1891. Neste ano, o serviço das obrigações montava a 133 contos/ano. A dívida a outros credores era de cerca de 800 contos. O rendimento anual proporcionado pela linha e pela garantia de juro era de cerca de 60 contos. Nestas condições, a direcção da Companhia Nacional resolveu encetar um plano à revelia da assembleia-geral e dos credores, que passava por pagar um quarto do cupão das obrigações e uma parte do débito aos outros credores e alargar o prazo da amortização das cargas financeiras para o limite do prazo de concessão das suas linhas. Foi um projecto imposto sob ameaça aos credores: se estes o não aceitassem, a companhia não poderia cumprir os deveres impostos pela lei da concessão e o governo tomaria conta das linhas, não se responsabilizando, como estava previsto na lei, por nenhuma dívida anterior da empresa. Os credores aceitaram, mas mais tarde os obrigacionistas veriam os seus débitos transformados em acções, acabando por ficar com o controlo da companhia257.
257
SANTOS, 2014: 136-139.
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A odisseia de uma nova linha
2.3. O PROJECTO DA LINHA Lurdes Martins258 Graça Vasconcelos259 Paulo B. Lourenço260 A região do Tua apresenta aspectos paisagísticos e geotécnicos peculiares que dotam este local de uma beleza natural única, com apreciáveis encostas, desfiladeiros, precipícios e cascatas de água que rompem ao longo de penhascos nas montanhas. As margens do rio Tua são premiadas com a sombra de amieiros e salgueiros. O difícil acesso, a inclinação, extensão e esforço físico, impediu a agricultura em muitos locais, permanecendo a flora selvagem, principalmente os zimbros e arbustos de grande porte. O ar limpo dada a pouca indústria local e a ausência de pessoas permite a muitas espécies de líquenes crescerem luxuriantemente. Castanheiros, pinheiros e sobreiros cobrem as vertentes sobranceiras ao longo do rio Tua numa floresta densa e verdejante dada a ausência de incêndios. A fauna neste local também é muito variada e contempla várias populações de morcegos, esquilos, aves, assim como, outras espécies que só podem ser encontradas nesta região. A diferença de altitude é tão extrema que em Foz-Tua pode estar nublado, aos 300 m um nevoeiro denso com 5 m de visibilidade e aos 650 m um sol radiante. O relevo é constituído por inúmeros vales onde se encaixam linhas de água que se ramificam 258
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
259
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
260
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
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A linha do Tua (1851-2008)
conferindo uma morfologia peculiar representada por uma série de maciços rochosos e de vales apertados. O troço de Foz-Tua a Brunheda, aproximadamente 20 km de extensão, apresenta-se como um vale encaixado, de aspecto agreste, ladeado por escarpas que chegam aos 676 m. A Brunheda representa a transição entre um relevo íngreme para um relevo menos acidentado e mais suave. Figura 23 – Troço da linha-férrea de Foz-Tua a Mirandela nos 21 km iniciais
Após os primeiros 20-30 km as características morfológicas alteram-se e o terreno passa a ser mais rectilíneo e plano até Mirandela e posteriormente Bragança. Figura 24 – Características da linha-férrea de Foz-Tua a Mirandela: nos primeiros 30 km (esquerda) e após os primeiros 30 km (direita)
Em termos geológicos e do ponto de vista litológico, a região do Tua é caracterizada por rochas graníticas e formações metassedimentares (essencialmente xisto). 86
A odisseia de uma nova linha
Efectivamente, foram estes maciços rochosos que constituíram um desafio construtivo aos engenheiros da altura. A região das Fragas Más pelas suas características geomorfológicas particulares merece um local de destaque neste capítulo, por tratar-se de um local emblemático da linha do Tua, com obras de arte dignas de registo, que só podem ser facilmente entendidas, após uma análise das suas características geomorfológicas. Este local situa-se entre o km 5 e 6 e é uma zona com maciços rochosos de elevada envergadura, escarpas íngremes e o precipício mais sério da linha, sem base de suporte para a construção da ferrovia, o que motivou a construção de um viaduto. Esta condição, aliada às dificuldades existentes no terreno, conduziu a alguns dissabores construtivos, devido à quase inexistência de estudos relativos ao traçado neste local. O viaduto das Fragas Más fica encaixado entre dois túneis e só após a abertura dos mesmos é que foi possível o acesso ao local. Portanto, quando se procedeu aos estudos, não se pôde definir o traçado neste ponto. Figura 25 – Viaduto das Fragas Más (esquerda) e túnel e viaduto das Presas (direita)
Foram apresentados dois projectos para a construção da ferrovia entre Foz-Tua e Mirandela: o primeiro, pela margem direita do Tua, foi apresentado pelo engenheiro João José Pereira Dias e pelo condutor Barnabé Roxo, sob a direção de Sousa Brandão; o segundo, pela margem esquerda, foi apresentado por António Xavier Almeida Pinheiro. Nestes projectos, os engenheiros seguiram os parâmetros previamente estabelecidos na lei. Contudo, qualquer omissão relativamente a determinado parâmetro nas especificações técnicas publicadas pelo governo conduzia à adopção por parte dos projectistas da mesma metodologia de outros projectos aplicados noutros países, citando-os ao longo da memória justificativa. Figura 26 – Projectos do caminho-de-ferro do Tua
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A linha do Tua (1851-2008)
A escolha final recaiu sobre o projecto de Almeida Pinheiro, uma vez que, em primeiro lugar, era mais barato. A escolha da margem direita do Tua exigiria a construção de uma ponte com extensão considerável para atravessar o Tua, quando a linha-férrea se estendesse até Bragança; por outro lado, a proposta de Sousa Brandão implicava a construção de dez túneis com a extensão total de 1307 m, ao passo que o projecto de Almeida Pinheiro previa nove túneis numa extensão global de apenas 510 m. Na solução pela margem esquerda do Tua, existiria mais um viaduto e o volume de alvenaria previsto para os muros de suporte era superior (em 6903 m3), no entanto isto não fazia com que este projecto fosse mais caro que o de Sousa Brandão. Em segundo lugar, a análise da carta orográfica evidenciou que a margem direita era muito mais cortada por profundas ravinas, presumindo-se que fosse muito mais irregular e acidentada; por outro lado, o projecto de Sousa Brandão obrigaria à construção da estação de Foz-Tua em terreno acidentado, o que limitaria as suas dimensões e exigiria consideráveis trabalhos de terraplanagens (a alternativa seria prolongar a linha do Tua paralelamente à do Douro na procura de um local mais razoável para a construção da referida estação); por fim, em termos de condições de tracção a solução de Almeida Pinheiro era melhor e mais conforme com o estipulado na lei (a percentagem de traçado horizontal era substancialmente mais elevada pela margem esquerda; e o traçado com declive descendente era quatro vezes superior pela margem direita, o que para inclinações próximas dos 18 mm/m exigia uma capacidade de frenagem do comboio considerável). Em 1883 foi publicado o anteprojecto para a linha do Tua e em 1884 o projecto definitivo. No entanto, em 1885, um novo plano foi publicado com algumas alterações ao definitivo, sendo designado como projecto definitivo rectificado. Figura 27 – Representação esquemática do anteprojecto (esquerda) e projecto definitivo da linha do Tua
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A odisseia de uma nova linha
O traçado da linha-férrea não foi fácil de estabelecer, dadas as circunstâncias próprias do percurso, caracterizado por desfiladeiros íngremes com desníveis, com necessidade de atravessamento de maciços rochosos de montanha através de túneis e falta de acesso aos locais de construção. Alguns locais de acesso constituíam um autêntico terreno de vegetação densa com necessidade de desbastação. Como consequência da dificuldade das condições de relevo e acessos, o projecto de construção foi marcado por inúmeras alterações ao anteprojecto e ao projecto. O anteprojecto resultante dos estudos prévios incluiu mais túneis do que aqueles que efectivamente foram construídos e também subestimou o caudal de alguns rios e ribeiros, não prevendo a construção de pontes, como a da Cabreira, de Meireles e da Carvalha. O anteprojecto não incluiu também o segundo túnel das Fragas Más. Estas rectificações ao anteprojecto foram o resultado do baixo nível de conhecimento das reais condições existentes no terreno. Quando estudos adicionais foram realizados para a definição do projecto em 1884, ainda não foi possível definir com rigor os perfis transversais, em parte devido a problemas de expropriações não resolvidos e ausência de permissão por parte dos proprietários para averiguação das condições reais do terreno. Esta situação também conduziu à necessidade de modificar algumas obras de arte concebidas no projecto e considerar outras que não estavam previstas. Figura 28 – Traçado em planta e perfil longitudinal da linha (nas Fragas Más) no anteprojecto e no projecto261
Perfil Longitudinal
Projecto (1884.8.4)
Anteprojecto (1883.8.29)
Traçado em Planta
261
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
A primeira alteração está localizada ao km 5 nas Fragas Más e refere-se ao perfil longitudinal definido no anteprojecto e no projecto. Como já foi mencionado, o local das Fragas Más é caracterizado por um relevo muito acidentado, com vales e desfiladeiros estreitos. O acesso ao local dos trabalhos também era escasso ou mesmo inexistente. Portanto, quando os estudos foram realizados, não foi possível obter um perfil correcto, resultando na diferença encontrada entre os dois projectos. O projecto apresentado para a linha do Tua eliminou erroneamente o viaduto das Fragas Más, mas introduziu um segundo túnel neste local (túnel das Fragas Más II). Este túnel de 45 m de extensão permitiu um aumento da secção horizontal (de 196 m para 735 m). Outro exemplo é referente ao local da Armadilha (km 12). Os dois túneis previstos neste local no anteprojecto foram eliminados, por se tratar de uma solução altamente dispendiosa, quer em termos de recursos humanos e materiais, quer em termos de tempo necessário para a execução dos mesmos. Por outro lado, a realização destes túneis em nada aliviava o traçado em perfil, visto que estes dois túneis seriam atravessados por um troço ascendente de 18‰ durante 1 km (limite máximo previsto no projecto). Este declive descendente de 18‰ estendia-se por um curto percurso de 320 m, mas tendo em consideração o peso próprio da locomotiva e da sobrecarga (passageiros e mercadorias), poderia causar descarrilamentos caso o sistema de travagem não estivesse operacional. Esta situação ocorreu pelas mesmas razões apontadas anteriormente, relacionadas com o levantamento incorrecto dos perfis. Os maciços rochosos neste local têm centenas de metros de diâmetro, o que levou a muitas mudanças ao anteprojecto. O grau de dificuldade expectável dos trabalhos, essencialmente resultante do trabalho manual para o desmantelamento destes maciços através de equipamento rudimentar, tal como, martelo e cinzel, e a ausência de uma estrada de acesso ao local foram as principais razões para a discrepância. Embora a construção da linha do Tua tenha tido início em 1884, após aprovação do projecto definitivo, em 1885 foi apresentada uma retificação, resultante de um conhecimento adicional das condições locais, devido ao contacto directo dos engenheiros com o local dos trabalhos. O projecto rectificado foi visto como uma actualização do projecto final com a introdução de alterações não abrangidas nos projectos anteriores. O projecto rectificado considerava a possibilidade de eliminar o viaduto das Presas e substituí-lo por um aqueduto e um muro de suporte. Esta situação ocorreu, porque no projecto definitivo de 1884 foi incluída uma trincheira ao km 1,2 de acordo com os perfis transversais obtidos nos estudos iniciais. No entanto, após um rigoroso levantamento no local foi verificado que a montante do km 1,2 haveria uma trincheira com 28 a 30 m de cota e a jusante a necessidade de construção de um muro de suporte com origem no rio Tua. O conhecimento desta condição determinou a necessidade de internar o traçado na montanha para que fosse possível atravessar aquele local em túnel, razão pela qual foi introduzido o túnel n.º 1 das Presas no projecto rectificado. Desta altera-
90
A odisseia de uma nova linha
ção na diretriz pareceu erroneamente ser possível a eliminação do viaduto das Presas no projecto rectificado, sendo que no projecto este foi concebido não devido ao grau de importância do curso de água nesse local que é insignificante, mas sim para evitar um aterro com cota máxima de 21,5 m que exigiria um muro de suporte considerável. Figura 29 – Representação esquemática do projecto definitivo (1884) e do projecto rectificado (1885) da linha do Tua
Figura 30 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local das Presas segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado262 Perfil Longitudinal
Projecto Rectificado (1885.6.30)
Projecto (1884.8.4)
Traçado em Planta
262
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
Outra das alterações registadas diz respeito à região das Fragas Más, com a introdução do viaduto encaixado entre dois túneis. Este viaduto foi construído para evitar um muro de suporte com mais de 30 m de altura e com fundações no rio Tua. No projecto rectificado ambos os túneis das Fragas Más sofreram uma redução na sua extensão. No entanto, ambos os projectos adoptam para estes túneis um raio mínimo de 150 m, visto tratar-se de um contraforte considerável, o que diminuiu os trabalhos de movimentação de terras e de escavações integrais do maciço. No projecto rectificado, embora fossem eliminados os troços horizontais neste local, foram excluídos os declives ascendentes de 10‰ (previstos no anteprojecto e projecto e que exigiriam à locomotiva um maior esforço de tração), que passaram a declives de 4‰ em 1199 m. Figura 31 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local das Fragas Más segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado263 Perfil Longitudinal
Projecto (1884.8.4)
Anteprojecto (1883.8.29)
Traçado em Planta
O túnel de Paradela foi também eliminado no projecto rectificado, pois os perfis transversais e longitudinais demonstraram não ser necessária a sua construção, agravando no entanto o troço com inclinação ascendente que passou de 7,3‰ para 11‰.
263
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
92
A odisseia de uma nova linha
Figura 32 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local da Paradela segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado264 Perfil Longitudinal
Projecto Rectificado (1885.6.30)
Projecto (1884.8.4)
Traçado em Planta
Por fim, verifica-se que o túnel do Amieiro II, após o km 13,9 foi eliminado no projecto rectificado, porque não havia espessura suficiente no terreno. Além disso, este era relativamente inclinado a montante, ao contrário do que fora anteriormente previsto. Figura 33 – Traçado em planta e perfil longitudinal no local do Amieiro segundo o projecto definitivo e o projecto rectificado265 Perfil Longitudinal
Projecto Rectificado (1885.6.30)
Projecto (1884.8.4)
Traçado em Planta
264
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
265
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua. 93
A linha do Tua (1851-2008)
As principais diferenças entre os três projectos são apresentadas na seguinte tabela. Tabela 2 – Comparação entre o anteprojecto, o projecto e o projecto rectificado266 Anteprojecto (1883)
Projecto (1884)
Rectificado (1885)
18%o
17,5%o
17,5%o
30 km (56%)
31,6 km (59%)
25,5 km (47%)
221m
225m
243m
Traçado curvilíneo
17,1 km (32%)
17,4 km (32%)
19,4 km (36%)
Traçado retilíneo
36,9 km (68%)
36,5 km (68%)
34,5 km (64%)
53.953m
53.940m
53.917m
Declive máximo Extensão com declive Raio médio
Extensão
Com o projecto definitivo e rectificado, a inclinação máxima do traçado diminuiu, reduzindo o esforço de tracção ferroviária. O valor do raio médio aumentou no projecto rectificado, o que melhorou a segurança ferroviária e permitiu a circulação de locomotivas a velocidades superiores. Os restantes parâmetros eram semelhantes para todos os projectos. Em conclusão, devido às complexas condições geomorfológicas do vale do Tua, os trabalhos construtivos da linha foram precedidos por vários estudos, cujo objectivo era definir alguns detalhes do traçado em planta e dos perfis longitudinais. Os primeiros estudos remontam a 1880 e os últimos são de 1883. O projecto para a construção da linha do Tua data de Agosto de 1884, no entanto, devido às mudanças impostas pelas condições geomorfológicas in-situ, novas alterações ao projecto foram apresentadas em 1885. A este respeito o local das Fragas Más é um exemplo real das condições geomorfológicas adversas que engenheiros e trabalhadores tiveram que enfrentar. Em geral, a elaboração do projecto da linha do Tua entre Foz-Tua e Mirandela foi um processo difícil, com inúmeras mudanças identificadas entre o anteprojecto (1883), o projecto (1884) e o projecto rectificado (1885), resultantes de um levantamento anterior impreciso das condições do terreno (devido a falta de equipamento adequado e dificuldade de acesso aos locais). Somente após o contacto com a realidade algumas mudanças importantes relacionadas com as estruturas especiais de engenharia foram consideradas ou actualizadas267. 266
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
267
MARTINS et al., 2013.
94
A odisseia de uma nova linha
2.4. A CONSTRUÇÃO E OS ASPECTOS LABORAIS Lurdes Martins268 Graça Vasconcelos269 Paulo B. Lourenço270 A linha do Tua foi construída entre 1884 e 1887. Numa primeira fase, ligou as povoações de Foz-Tua e Mirandela, numa extensão de aproximadamente 54 km. O seu traçado tem origem ao km 131,42 da linha do Douro, correndo paralelamente a este caminho-de-ferro por aproximadamente 650 m. Afasta-se depois da ferrovia do Douro e segue sempre a margem esquerda do Tua até alcançar Mirandela. É composta por sucessivos alinhamentos rectos, concordados por curvas circulares. Já existiam exemplos de aplicação de curvas de transição do tipo clotóide em algumas ferrovias muito antes da construção da linha do Tua. A grande vantagem destas curvas é a promoção de uma mudança gradual ao longo do raio da curva, reduzindo o desconforto sentido pelos passageiros e promovendo a segurança ao impedir o aparecimento repentino da força centrífuga271. Em todo o caso, as curvas definidas no projecto da linha do Tua foram principalmente circulares, sem curvas de transição.
268
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
269
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
270
Instituto de Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (Escola de Engenharia da Universidade do Minho).
271
DER/SP, 2006.
95
A linha do Tua (1851-2008)
Figura 34 – Traçado em planta entre os kms 5,45 e 5,72 km na região das Fragas Más272
Em geral, o raio mínimo de 150 m foi aplicado nos contrafortes para diminuir os trabalhos de terraplenagem, que são muito limitados em locais onde existem grandes maciços rochosos, tal como no interior dos túneis. Outra consideração técnica na execução de um projecto ferroviário é a determinação da sua Escala (Dt), que em linguagem ferroviária designa o desnível, normalmente expresso em milímetros, entre os eixos das duas filas de carris, numa secção transversal. Tal como acontece nos projectos rodoviários, existe a necessidade de sobre-elevar o extradorso da curva para que ocorra um equilíbrio de forças em curva, com o intuito de aproximar o movimento circulante em curva às condições de circulação em recta. O projecto ferroviário da linha do Tua adoptou a aplicação da Escala ao longo do traçado em curva. Figura 35 – Forças actuantes devido à curvatura273
A linha ferroviária do Tua é caracterizada por um vasto número de obras de arte (túneis para atravessamento de maciços rochosos, viadutos para superar íngremes encostas, muros de suporte, aquedutos, pontes e pontões), sobretudo nos seus primeiros 21 km. Este troço da linha conta com cinco túneis, dois viadutos e 118 muros de suporte (em alvenaria de pedra de junta seca perfazendo um volume total de 170 mil m3) – ao todo existe na linha um total de seis túneis, dois viadutos e 161 muros de suporte. 272
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
273
FARELO, 2010.
96
A odisseia de uma nova linha
Nestes 21 km iniciais, as dificuldades foram inimagináveis, como bem descreve Eduardo Coelho num número do Diario de Noticias de 1887. “A abertura dos primeiros vinte quilómetros do primeiro troço constituiu uma tarefa de engenharia e de execução difícil e arrojada, tão selvática e aparentemente inaproveitável se apresentava a pedregosa e alcantiladíssima garganta que o rio Tua escavou para alcançar o gigantesco desfiladeiro do Douro. No parecer dos melhores técnicos, essa obra não é inferior, em responsabilidade, a algumas vias helvéticas ou francesas das cercanias dos Alpes. É particularmente impressionante o trecho das chamadas Fragas Más. A construção da linha nesse despenhadeiro exigiu vigoroso ânimo aos engenheiros e trabalhadores que aí formigaram por algum tempo, a romper rochedos e esporões, muitas vezes dependurados por cordas e empoleirados em pranchas rapidamente guindadas quando se acendiam os rastilhos”274. Foi necessário transpor desfiladeiros e escarpas íngremes, aos quais os trabalhadores tinham muitas dificuldades em chegar, uma vez que “existia apenas (…) um único caminho, o que descia de Castanheiro do Norte a Barca do Tua. Este caminho que era para peões e cavaleiros foi necessário arranjá-lo para carros: ainda assim os declives mais suaves que se logrou obter foram os de 0,50 metros por metro! Os ferros para os viadutos das Prezas, Fragas Más e Paradela, pesando cerca de 260 toneladas, havendo peças que pesavam mais de uma tonelada, foram conduzidos por esta vereda que desemboca hoje no quilómetro 9 da linha, onde há uma casa de guarda. Para que os carros pudessem descer à linha por esta ladeira sem se despenharem no Tua, era necessário irem atrás deles sustentando uma forte espia 20 a 30 trabalhadores, um dos quais o que servia de carreiro, ficou numa dessas descensões num estado miserável, ficando também feridos os engenheiros que pessoalmente dirigiam este trabalho penosíssimo, tão rude quanto inglório. As margens do Tua apresentam-se nos primeiros 30 quilómetros da linha sob um aspecto imponente como vista panorâmica, mas de uma dificuldade extraordinária para a construção de uma estrada férrea, embora de via reduzida. Não faz ideia dessas dificuldades extraordinárias quem for de comboio, senão olhando para a margem direita do Tua semeada de anfractuosidades, cortadas por abruptas ravinas que gemelha gargantas de monstros, ou formada por extensas rochas graníticas levemente inclinadas para o monte e perfeitamente lisas, chamadas vulgarmente lisos, atestando à evidência que nunca foram pisadas pelo pé do homem”275 . O trabalho, quer em planta quer em perfil, foi extraordinariamente difícil. O desenvolvimento do traçado em curva atingia nesta parte da linha metade da extensão do caminho-de-ferro, ou seja 10.500 m. O restante é composto por alinhamentos rectos, no entanto, o maior deles não atinge 500 m de comprimento. 274
Diario de Noticias, 27.9.1887: 1.
275
Diario de Notícias, 27.9.1887: 1.
97
A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 21 – Representação em planta de Castanheiro do Norte em relação ao rio Tua e à linha-férrea
A linha do Tua foi dividida em duas secções: a primeira secção correspondia ao início da linha em Foz-Tua até ao km 15,451 (perto de S. Lourenço) e a segunda secção ia desde o km 15,451 até ao km 53,917 (fim da linha na estação de Mirandela). Figura 36 – Secções de construção da linha do Tua: primeira à esquerda e segunda à direita
As obras iniciaram-se na primeira secção a 4 de Junho de 1885 e na segunda secção (em Mirandela) a 16 de Outubro de 1884. Cada secção estava subdividida em três lanços. Os trabalhadores foram distribuídos pelos seis lanços e os trabalhos desenvolveram-se em simultâneo na primeira e na segunda secção. Tabela 3 – Lanços da primeira e da segunda secção da linha do Tua Primeira Secção (0-15,451 km)
Segunda Secção (15,451-53,917 km)
Lanços
km
Lanços
km
1.º lanço
0-5
4º lanço
15,451 - 25,592
2.º lanço
5 - 9,965
5 lanço
25,592 - 36
3.º lanço
9,965 - 15,451
6 lanço
36 - 53,917
º º
98
A odisseia de uma nova linha
Durante a construção, os túneis, viadutos, aquedutos, pontões e muros de suporte foram construídos juntamente com o resto da linha. Em média mensal, estavam presentes no local da obra 833 trabalhadores para a primeira secção e 875 trabalhadores para a segunda. Contudo, o grosso da mão-de-obra concentrou-se na primeira secção, onde chegaram a laborar para cima de 1.000 homens por mês. Este valor é bastante elevado tendo em conta que esta secção tinha apenas 15,451 km. Esta concentração justifica-se pelas dificuldades construtivas dos primeiros 15 km. A segunda secção, embora mais extensa (38,4 km), apresentava condições geomorfológicas mais favoráveis, pelo que o número de trabalhadores empregados no local era inferior. Todas as pontes e viadutos (com excepção da ponte de Frechas que é em alvenaria) são estruturas metálicas com encontros em cantaria. A ponte com menor vão é a ponte de Meireles ou Cachão e o viaduto de maior vão é o das Presas. Todas as pontes e viadutos metálicos foram dimensionados pelo mesmo método simplificado com recurso apenas à consideração de um modelo de viga simplesmente apoiado, sendo este muito diferente dos métodos actualmente adoptados. No caso da ponte de Frechas o seu dimensionamento foi elaborado através de um conhecimento empírico, adquirido com a massificação da construção destas estruturas e baseado em princípios mecânicos simplificados. Destaca-se também que grande parte desses projectos foi realizada pela Sociedade Anónima Internacional de Construção e Negócios Braine-Le-Conte (Bélgica). Mapa 22 – Mapa das pontes e viadutos da linha do Tua276
O tipo de ponte presente ao longo do traçado revela que o material de construção adoptado foi o granito e o xisto (alvenaria de pedra), característico da região. Por outro lado, foi tida particular atenção com a não-construção de pilares no leito do rio Tua, devido à possibilidade de existência de terreno pouco coeso. Quando as margens do rio apresentavam um aspecto rochoso esta questão já não se colocava. A opção por 276
Google Maps Engine.
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A linha do Tua (1851-2008)
pontes e viadutos metálicos, embora revestida de alguns inconvenientes (quanto à sua conservação, elevado custo económico comparativamente à alvenaria de pedra e dificuldade de transporte dos perfis de aço pelos difíceis acessos à linha), foi a solução adoptada para todos os viadutos. Tabela 4 – Cadastro das pontes, viadutos e pontões da linha do Tua Pk Tipo de Designação (meio Obra vão)
Tipo N.º de obra vãos
Vãos teóricos (m)
Compr. Elementos Ano Observação (m) em arquivo Peças desenhadas (1886)
Presas
1+409
Metálica
2
42,53
42,53
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros e Conte – 1886 86,0 1887 Pilar central Expediente em cantaria referente à consolidação do talude (1989) Elementos de campo (1989)
Viaduto Metálica
2
22,5
22,50
Peças desenhadas Encontros e (1886) 50,7 1887 Pilar central Cálculos em cantaria Justificativos – Braine-LeConte – 1886
3,0 2,77
2,81
2,75 2,80
Expediente 1953 a 1956
2,78 3,87
3,87
2,76 2,79
Elementos de campo
Fragas Más 5+800
49,0 1962 2,80 2,78
Ponte
Paradela
11+358 Metálica
2,78
1
25,02
100
2,75 3,40
Trabalhos de substituição da ponte 1962 Peças desenhada do projecto de 1962
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros Conte – 1886 27,0 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
A odisseia de uma nova linha
Pk Tipo de Designação (meio Obra vão)
Tipo N.º de obra vãos
Vãos teóricos (m)
Compr. Elementos Ano Observação (m) em arquivo
Leiras
17+064 Alvenaria
1
3,00
3,0
1887
Abóbodas em cantaria
Ferrada
17+311 Alvenaria
1
4,00
4,0
1887
Abóbodas em cantaria
Freixo
20+371 Alvenaria
1
2,00
6,0
1887
Abóbodas em cantaria
-
23+715 Alvenaria
1
2,00
10,0 1887
Abóbodas em cantaria
20,00
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros Conte – 1886 21,0 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
1
35,02
Cálculos Justificativos – Braine-LeEncontros Conte – 1886 36,0 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
2,00
3,0
Pontão
Cabreira
26+642 Metálica
1
Ponte
Abreiro 29+200 Metálica ou Vieiro
Pontão
-
32+583 Alvenaria
1
Pontão
-
35+552 Alvenaria
2
Ponte
Pontão
Meireles ou 41+741 Alvenaria Cachão
-
42+028 Alvenaria
1,5
1,5
11,0
1887
Abóbodas em cantaria
1887
Abóbodas em cantaria
1
15,20
Cálculos Justificativos – Braine-LeAbóbodas Conte – 1886 15,4 1887 em cantaria Peças Desenhadas – 1886
1
2,00
8,0
1887
Abóbodas em cantaria
Ribeira da Ponte Carvalha ou 45+778 Alvenaria Frechas
1
12,00
Peças Desenhadas Abóbodas – 1885 12,5 1887 em cantaria Medições e cálculos – 1885
Pontão
1
2,00
3,2
-
47+696 Alvenaria
101
1887
Abóbodas em cantaria
A linha do Tua (1851-2008)
Figura 37 – Pontes metálicas: Paradela, Pk 11+358; Cabreira, Pk 26+600; Vieiro, Pk 29+200; Meireles/Cachão, Pk 41+741277
Um dos viadutos emblemáticos desta linha era o das Presas. Os textos da época descreviam-no (e também ao das Fragas Más) nos seguintes termos: “logo à saída de Foz-Tua, e a um quilómetro, temos o viaduto das Prezas, cuja situação é em extremo curiosa, não é um curso de água nem um vale que se atravessa: é uma forte depressão, toda ela no sentido vertical, que tem a margem do Tua naquele ponto, e que só por meio de um tabuleiro de ferro se podia saltar. Parece mais uma varanda do que um viaduto, assim como o das Fragas Más, outro precipício dos mais sérios que teve a linha. Os operários desciam para o trabalho ligados por fortes cordas, sustentadas superiormente; esta precaução durava até terem recortado na rocha um caminho, ou antes um carreiro de formigas, cuja passagem era sempre evitada pelos menos destros. Alguns desgraçados operários foram vítimas, pela sua temeridade, tendo a maior parte dos acidentes sido motivados pela natureza do terreno: uma vez um rebanho de ovelhas que pascia pela parte superior da linha fez mover uma pedra que veio a rolar pela margem abaixo; um operário, procurando fugir-lhe, fê-lo precipitadamente e caiu no abismo. Como este, outros desgraçados pagaram com a vida os benefícios que hoje gozamos, permitindo-nos fazer comodamente uma viagem que ainda ontem era das mais penosas do país — a do Pinhão a Mirandela”278. Como já vimos, a região das Fragas Más é uma área com muitos maciços rochosos, íngremes escarpas e com os mais graves precipícios do vale, sem base de apoio para o assentamento da linha, o que motivou a construção de um viaduto. O viaduto original das Fragas Más era uma estrutura mista formada por duas secções metálicas com 22,50 m de vão cada uma e um pilar de alvenaria no centro.
277
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua. LOPES, 2011. SILVA, 2008.
278
Diario de Notícias, 27.9.1887: 1.
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A odisseia de uma nova linha
Figura 38 – Viaduto das Fragas Más: original (esquerda); danos causados pela queda de rochas em 1962 (direita)279
Em 1962, o viaduto foi parcialmente destruído pela queda de um bloco rochoso de grandes dimensões. A estabilidade do talude ficou comprometida pela existência de um sistema de diaclasamento. A solução passou pela construção de um viaduto em betão armado que ao mesmo tempo fizesse a contenção do maciço rochoso da encosta. A remoção da ponte executou-se com grande dificuldade e parte da estrutura acabou mesmo por cair ao rio, sendo possível ainda hoje avistar alguns destroços do tabuleiro metálico quando o nível do rio está baixo. Devido à presença do sistema de diaclasamento do maciço não foi possível efectuar um corte no maciço para diminuir a inclinação do talude, pois o risco de desabamento era elevado. Assim, procedeu-se apenas à demolição de todos os blocos rochosos que se encontravam soltos. Do lado de Mirandela, para a reconstituição da plataforma da via, foi criado um maciço de betão ciclópico de fundação e procedeu-se ao recalçamento e estabilização dos maciços rochosos também com betão. No tramo do lado de Foz-Tua criaram-se contrafortes de betão armado com vãos a rondar os 3,4 m. As cabeças dos contrafortes foram ligadas entre si por uma laje que envolveu também superiormente as cristas das massas rochosas existentes, criando um plano horizontal em que se apoiou a estrutura celular que, num tramo e noutro, forma a plataforma de assentamento das travessas.
279
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
103
A linha do Tua (1851-2008)
Figura 39 – Viaduto das Fragas Más: betão ciclópico no tramo do lado de Mirandela (esquerda); cofragem da laje de travação e apoio da estrutura celular no tramo de Foz-Tua. Armaduras dos contrafortes (direita)280
Figura 40 – Viaduto das Fragas Más: contrafortes contraventados no tramo do lado de Foz-Tua281
280
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
281
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
104
A odisseia de uma nova linha
Figura 41 – Viaduto das Fragas Más: cofragem e armaduras prontas a receber betão na estrutura celular no tramo do lado de Foz-Tua (esquerda); cofragem da estrutura celular – segunda betonagem de 1,2 m no tramo do lado de Foz-Tua (direita)282
Os encontros existentes e o pilar central, que davam antes apoio ao viaduto metálico, foram reconstruidos em betão, perfeitamente ligado às alvenarias ainda existentes, por meio de armaduras travadas entre si por pregagens. Figura 42 – Viaduto das Fragas Más: betonagem do pilar central; cofragem e armaduras da laje de travação e apoio da estrutura celular no tramo do lado de Foz-Tua283
282
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
283
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
105
A linha do Tua (1851-2008)
Os túneis são um meio para ultrapassar os obstáculos naturais e simultaneamente manter o alinhamento da via-férrea. São a opção escolhida para atravessar montanhas, nas situações em que a sua construção seja mais económica do que o movimento de terras. Em termos de método construtivo destacam-se dois tipos de túneis: o mineiro (ou verdadeiro) e o falso túnel (cut and cover). Designa-se por falso túnel o que é construído a céu aberto e que, depois de concluído, é aterrado sobre a abóbada. O túnel de Frechas ao km 46,2 é um exemplo de um falso túnel. O túnel mineiro envolve a execução de uma abertura totalmente envolvida pelo maciço rochoso ou terroso. À excepção do túnel de Frechas, todos os túneis no Tua são deste tipo. Para escavar a rocha recorreu-se ao uso de explosivos (devido à inexistência de uma tuneladora na altura da construção) e de ferramentas básicas auxiliares na escavação, como cinzéis e picaretas. Além disto, foi necessário recorrer a uma grande força de trabalho humana e animal para o transporte dos detritos resultantes da escavação. Figura 43 – Falso Túnel: túnel de Frechas ao km 46,2
Dos seis túneis da linha-férrea do Tua, três foram revestidos no seu interior: o de Tralhariz, o das Fragas Más II e o de Frechas. O revestimento das paredes foi executado em alvenaria de pedra e o revestimento da abóbada em blocos de cimento. O revestimento para além de conferir maior estabilidade ao maciço evita infiltrações de água para o interior do túnel. As possíveis razões para o revestimento interior dos túneis citados são as seguintes: para o túnel de Tralhariz o revestimento poderá estar associado à reduzida altura do maciço que este atravessa, conferindo-lhe assim uma maior estabilidade interior; relativamente ao túnel de Frechas, o revestimento interior foi realizado por se tratar de um falso túnel; em relação ao túnel das Fragas Más II, o revestimento terá sido executado devido à fractura existente no maciço rochoso e que só foi identificada pela fiscalização em ofícios de 1919.
106
A odisseia de uma nova linha
Figura 44 – Túnel da Falcoeira: túnel sem revestimento interior (esquerda); túnel com acabamento interior (centro); fractura do maciço granítico superior do túnel das Fragas Más II (direita)
Ofícios de 1919 relatam alguns danos e erros construtivos detectados ao longo do traçado. Um desses ofícios referia-se aos túneis das Fragas Más. Para o túnel das Fragas Más I foi identificado numa extensão de cerca de 20 m (num total de 99 m) um desaprumo dos pés direitos; na testa do túnel no lado de Bragança, foram identificadas algumas fendas. A fiscalização também apontou para o desenvolvimento crescente de fendas na boca do túnel das Fragas Más I (lado de Bragança) no intradorso da abóboda, bem como a deformação da abóboda. No túnel das Fragas Más II foram identificadas fendas justificadas pelo excesso de pressão (carga de rocha ou maciço de alvenaria superiormente ao túnel), especialmente na ausência de muros de ala a consolidar a testa dos túneis, ou por infiltrações quando o extradorso da abóboda não é correctamente projectada. As figuras seguintes representam as peças desenhadas de um projecto referente a um túnel tipo. Salientam-se os muros de ala adjacentes às faces laterais do túnel, que são muros de retenção que fazem parte do encontro de uma ponte ou túnel destinado a suportar, lateralmente, o aterro de acesso quando não estabelecida paralelamente ao eixo da via. Figura 45 – Túnel tipo: alçado e corte transversal (esquerda); corte longitudinal (direita)284
284
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
No que diz respeito aos muros, existem dois tipos ao longo do traçado: muros de suporte e muros de espera. Na época atribuía-se o nome de muro de suporte aos que suportavam directamente a linha, isto é, àqueles imediatamente sobre os quais a linha era assente. O muro de espera era designado quando sobre aquele era criado um talude onde a linha era assente. Figura 46 – Perfil transversal dos muros: muro de suporte (esquerda); muro de espera (direita)285
A principal diferença estrutural entre estes dois tipos de muro está na largura dos degraus, a qual é maior no muro de espera. Figura 47 – Muros de suporte nos primeiros 21 km da linha do Tua
Na documentação consultada não existe um registo do cadastro dos muros existentes ao longo da linha. No entanto, foi possível apurar que foram construídos 10.049,41 m lineares de muros e que nos primeiros 21 km foram construídos 118 muros, com um total de 170 mil m3 de alvenaria em pedra. A contabilização dos muros de espera e de suporte foi efectuada com base nos perfis em planta e longitudinais do traçado da linha entre Foz-Tua e Mirandela. Assim, contam-se 161 muros ao longo do caminho-de-ferro. Este número é extremamente elevado comparativamente com o número inicialmente apontado pelos estudos (1883), que era de apenas 30 muros.
285
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
108
A odisseia de uma nova linha
Figura 48 – Tipos de muro: de suporte (esquerda); de espera (direita)286
Ao longo da construção, foram contabilizadas as baixas médicas dos trabalhadores, bem como o número de fatalidades em acidentes de trabalho e por doença, pelo menos para a primeira e a segunda secção durante o mês de Maio, Junho e Julho de 1886. Para este trimestre é possível verificar que as baixas estavam relacionadas com febres intermitentes e com alguns casos de varíola. O mês de Julho foi aquele no qual se registaram mais ocorrências de febres (30 trabalhadores). Registaram-se apenas quatro casos de varíola, sendo que em um desses casos um dos trabalhadores acabou por falecer. De qualquer modo, é de realçar a reduzida percentagem de trabalhadores que ficaram doentes durante o trimestre analisado, em comparação com o número total de trabalhadores.
1ª secção Nº trabalhadores de baixa médica
Gráfico 1 – Baixa por doença dos trabalhadores da primeira e segunda secção da construção da linha do Tua em 1886287
14 12 10 8 6 4 2 0
Maio % de absentismo 13/1356=0.96%
Junho 13/1353=0.96%
286
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
287
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
109
Julho 10/1115=0.90%
1ª secção Nº trabalhadores de baixa médica
A linha do Tua (1851-2008)
30 25 20 15 10 5 0
Maio % de absentismo 13/1356=0.96% Febre
Junho 13/1353=0.96%
Julho 10/1115=0.90%
Varíola
O primeiro acidente mortal ocorreu em Outubro de 1885, na primeira secção da linha. No total, foram contabilizadas 19 mortes, 16 para a primeira secção e três para a segunda secção, o que facilmente se explica pela maior dificuldade e perigo oferecido pelos primeiros 20 km do vale do Tua. Considerando-se uma média diária de 1.470 trabalhadores, o número total de mortes é significativamente baixo: apenas 1,3% dos trabalhadores envolvidos na construção da linha perderam a vida. A principal causa de morte dos trabalhadores foi ferimentos provocados por pedras decorrentes de explosões de tiros de fogo. Outra causa frequente de morte foi as quedas em altura. Apenas um trabalhador faleceu por doença (varíola)
Número de trabalhadores mortos
Gráfico 2 – Causas de morte dos trabalhadores envolvidos na construção da linha288
7 6 5 4 3 2 1 0
Tiros de fogo
Quedas
Quedas
Esmagamento
6
5
1
6
Não determinada 1
Na primeira secção, o maior número de mortes foi registado no primeiro (0-5 km) 288
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
110
A odisseia de uma nova linha
e terceiro (9,9-15,4 km) lanços da ferrovia, ou seja, no viaduto das Presas e ao longo das várias trincheiras para a realização de muros de suporte, bem como no local das Fragas Más. Para a segunda secção todas as mortes ocorreram no quarto lanço (excepto o trabalhador que morreu de varíola cujo lanço é desconhecido). O gráfico 3 expõe a distribuição do número de trabalhadores mortos para cada secção da linha.
Nº trabalhadores mortos 2ª Secção
Nº trabalhadores mortos 1ª Secção
Gráfico 3 – Número de trabalhadores mortos nas duas secções da linha do Tua289
16 14 12 10 8 6 4 2 0
3,0 2,5 2,0 1,5 1,0 0,5 0
1º lanço (0- 5km) 7
2º lanço (5- 9,9km) 1
3º lanço (9,9- 15,4) 8
Total
4º lanço (15,4-25,6) 2
5º lanço (25,6-36) 0
6º lanço (36-53,9) 0
Total
16
3
Em relação aos acidentes de trabalho ocorridos ao longo da construção contaramse 58 acidentes, 36 na primeira secção e 22 na segunda. Os trabalhos em ravinas e falésias levaram à queda de muitos trabalhadores, assim como a utilização de explosivos para a abertura de túneis causou graves lesões nos operários, tais como cegueira, amputações e queimaduras graves. Os acidentes ocorreram na sequência de tiros explosão, uma manipulação incorrecta dos mesmos e atingimento por pedras projec289
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A linha do Tua (1851-2008)
tadas pela explosão. Algumas destas situações foram causadas por um sobrecálculo da quantidade de dinamite e pólvora a usar. Num desses casos, “ocorreu tiros na trincheira nº 76 e uma pedra atingiu o pedreiro que trabalhava no muro de suporte nº 68. A distância do muro até à trincheira era de 70m. O pedreiro ficou ferido sem gravidade na mão esquerda”290. Além de acidentes com explosivos, também se assinalou um número significativo de quedas e deslizamentos em trincheiras e muros de suporte.
Nº trabalhadores acidentados 2ª secção
Nº trabalhadores acidentados 1ª secção
Gráfico 4 – Número de trabalhadores acidentados durante a construção291
40 35 30 25 20 15 10 05 00
25 20 15 10 05 00
1º lanço (0- 5km) 16
2º lanço (5- 9,9km) 6
3º lanço (9,9- 15,4) 14
Total
4º lanço (15,4-25,6) 6
5º lanço (25,6-36) 11
6º lanço (36-53,9) 5
Total
36
22
A maior frequência de acidentes verificados na primeira secção coincide com os locais onde ocorreu um maior número de mortes (primeiro e terceiro lanços da linha). O registo de acidentes tem particular incidência no local das Presas (túnel 290
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
291
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
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A odisseia de uma nova linha
e viaduto), na região das Fragas Más (muros de suporte, trincheiras e viaduto) e na estação de Santa Luzia (fundações e muros de suporte). Em relação à segunda secção, o registo dos acidentes concentra-se no quinto lanço, ou seja, na ponte do Vieiro (Abreiro) e ao longo das trincheiras e muros de suporte. Os acidentes em muros de suporte e trincheiras estão relacionados com o deslizamento de rochas e de terra. O trabalho era sem dúvida perigoso, mas, a ter em conta as descrições dos acidentes, alguns destes ficaram também a dever-se a uma completa imprudência por parte dos operários: “o trabalhador estava a deitar pólvora a um tiro servindo-se de um atacador de pau. Recorreu com as mãos a um ferro de aço para atacar o tiro. Ficou com a cara queimada. Foi para o hospital de Mirandela”. Noutro caso, “o trabalhador atacou fogo ao rastilho para explodir 5 tiros e foi vítima da explosão, quando se aproximava para verificar os tiros que não tinham rebentado”. E ainda outra situação relativa ao manuseamento de explosivos: “Explosão de tiros nos cavoucos do muro. O trabalhador procurou abrigo debaixo de uma fraga deixando uma mão a descoberto, a qual foi colhida por uma pedra fraturando-a. Ferido em tratamento no Amieiro, onde se encontra com febres intermitentes”. Noutra situação, “o servente colocou-se à frente da boca do aqueduto que estava a ser revestido, para amparar uma pedra. Ficou com o braço esquerdo e a cabeça debaixo da pedra. Fraturou o braço e ficou com a mão esmagada. Tinha sido repreendido pelo encarregado para se desviar da frente da pedra, mas ignorou o aviso”. Casos como este, de não prestar atenção aos avisos de segurança repetiam-se: “o trabalhador ignorou o som de aviso de fogo. Ficou gravemente ferido na cabeça por uma pedra projetada. Foi conduzido para uma casa no Castanheiro. Operado no hospital de S. António em 24/08/86. Está em fase de recuperação mas apresenta alteração das faculdades mentais”. Mesmo os períodos de descanso podiam ser perigosos: “Desabamento na trincheira soterrando um homem que estava a dormir a sesta”292. Em resumo, o número de trabalhadores mortos durante a construção da linha do Tua foi de apenas 18. Houve também 59 feridos. Os dados oficiais indicam 21 mortos e 61 feridos (dados publicados no Diario de Noticias da época)293. São valores relativamente baixos quando comparados com a tradição oral sobre a construção desta ferrovia, que fala em muitos mais desastres e falecimentos. Se se comparar estes valores com o de outras ferrovias, chegamos à mesma conclusão: a construção do caminho-de-ferro de Foz-Tua a Mirandela originou a morte de um número reduzido de trabalhadores. A construção da linha-férrea do Tua entre Foz-Tua e Mirandela foi realizada dividindo o traçado em duas secções. A primeira secção compreendeu o km 0 até ao 292
Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Projectos da linha do Tua.
293
Diario de Noticias, 27.9.1887, n.º 7796: 1.
113
A linha do Tua (1851-2008)
km 15,451 (perto de S. Lourenço) e a segunda secção estava compreendida entre o km 15,451 e o km 53,917 (fim da linha em Mirandela). De acordo com os arquivos consultados a construção iniciou-se na primeira secção a 4 de Junho de 1885; e na segunda seção a 16 de Outubro de 1884. É possível concluir que a construção da ferrovia começou em Mirandela (segunda secção-fim da linha) e, basicamente, ao mesmo tempo em Foz-Tua (início da linha), encontrando-se perto do km 15 em S. Lourenço. Os trabalhadores foram distribuídos ao longo das duas secções. Também é impressionante o número de trabalhadores envolvidos na sua construção com uma média diária de 1.470 operários (soma da primeira e segunda secção). A linha do Tua regista um total de dois viadutos, cinco pontes, oito pontões, seis túneis, 207 aquedutos e 161 muros de suporte. Assim, para o início da linha (primeiros 21 km) foram construídos a maioria dos túneis, muros de suporte e todos os viadutos da linha. A este respeito a região das Fragas Más é um exemplo real de condições geomorfológicas extremas e difíceis a que os engenheiros e trabalhadores tiveram que enfrentar. Todas as pontes e viadutos da linha na secção entre Foz-Tua e Mirandela, com a excepção da ponte das Frechas, que é de alvenaria, são estruturas metálicas com encontros de alvenaria. A ponte com menor vão é a ponte do Cachão (ou Meireles) e o viaduto metálico com o maior vão é o das Presas. Todas as pontes e viadutos metálicos foram dimensionados pelo método simplificado usando apenas a consideração de um modelo de viga simplesmente apoiada. As principais causas de morte e acidentes dos trabalhadores na construção da linha do Tua foram as seguintes: (1) tiros de explosão, (2) quedas e deslizamentos de terra e (3) esmagamento por pedras. As quedas ao rio Tua nos primeiros 15 km da ferrovia são descritos em relatórios oficiais e foi sempre fatal para o trabalhador, que caía de uma altura de 40 m. Há alguns locais que pelas suas características (desfiladeiros, falésias, terreno irregular) têm uma maior incidência de acidentes e mortes. É o caso dos primeiros 5 km (viaduto e túnel de Presas e de Tralhariz), no lugar das Fragas Más (viaduto e muros de suporte) e entre os 10 e 15 km (nas trincheiras e muros de suporte). Realça-se que alguns acidentes e mortes relatados ocorreram devido ao descuido dos trabalhadores, que desrespeitaram as advertências do capataz. A linha do Tua comparativamente com outras linhas férreas construídas na mesma época não resultou numa perda significativa de vidas humanas.
114
A odisseia de uma nova linha
2.5. PROTAGONISTAS: CLEMENTE MENERES E O CONDE DA FOZ Albano Viseu294 Luís Santos295 Na história do caminho-de-ferro do vale do Tua entre Foz-Tua e Mirandela, vários homens desempenharam papéis de relevo e foram de alguma forma importantes para a construção e abertura da linha. Personagens como Eduardo José Coelho ou o bispo de Bragança, que no parlamento lutaram pelo assentamento de carris no vale do Tua; ministros como Fontes Pereira de Melo ou Hintze Ribeiro, que a decretaram; e, claro, engenheiros, maquinistas, operários que abriram o leito do caminho-de-ferro e contribuíram para a exploração da linha. Contudo, dois homens se destacam nesta história, sobretudo no que respeita aos anos imediatamente anteriores à abertura de concurso para a construção desta ferrovia e nos primeiros tempos da exploração da linha do Tua. Esses homens foram Clemente Menéres e o conde da Foz. * Clemente Menéres nasceu a 19 de Novembro de 1843 em Santa Maria da Feira,
294
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
295
Historiador.
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A linha do Tua (1851-2008)
filho de uma família humilde296. Começou a trabalhar na serralharia do pai, antes de emigrar em 1859, com apenas 16 anos, para o Brasil, onde trabalhou num negócio de um tio. À semelhança do que acontecia com a maior parte dos emigrantes portugueses no Brasil, Clemente Menéres não fez lá fortuna e regressou a Portugal em 1863. Figura 49 – Clemente Menéres297
Nesta altura, constituiu com João Joaquim de Paes a sociedade Paes e Menéres, destinada à exportação de produtos portugueses e coloniais. E, para tentar angariar mais clientes, viajou por vários países da Europa, da América do Sul e do norte de África. Nestas viagens, adquiriu uma enorme experiência comercial e ideias para novos negócios, que depressa implementou em Portugal: criou uma fábrica de conservas (a primeira no norte do país), estabeleceu uma moagem e investiu fortemente na exportação de vinho, azeite e cortiça. Em 1874, Clemente Menéres esforçou-se por assegurar as matérias-primas de que necessitava para os seus negócios a preços mais vantajosos. Neste ano, dirigiu-se a Trás-os-Montes, onde comprou no lugar de Romeu várias propriedades de sobreiros, uma árvore desvalorizada nesta região e que era usada sobretudo para lenha.
296
Este texto é baseado em VISEU, 2013.
297
VISEU, 2013: 1.
116
A odisseia de uma nova linha
Figura 50 – Placa evocativa da chegada de Clemente Menéres ao Romeu298
Renovou também plantações de vinha (destruída pela filoxera, desde a década de 1860) e iniciou uma cultura intensiva de oliveiras. Investiu igualmente no arroteamento, desbravamento e cultivo de grandes faixas de terreno inculto, no sentido de aumentar a produtividade e a produção das suas terras299. Implementou, por fim, métodos de trabalho novos naquelas paragens que rentabilizaram a exploração da sua propriedade (ao nível da irrigação, extracção de azeite, fabrico de vinho e cultivo e apanha de fruta). No que se pode considerar parte de um processo de concentração vertical, Clemente Menéres conseguiu deste modo assegurar o fornecimento das matérias-primas para os seus negócios. A sua Quinta do Romeu estava também provida de instalações para a transformação destas matérias-primas em produtos transformados: adegas para o vinho (de mesa e do Porto), lagares para o azeite, silos, palheiros e uma fábrica para a cortiça (que pretendia exportar para os mercados da Europa e da América do Sul)300. Figura 51 – Vista panorâmica dos vinhedos e do olival da Quinta do Romeu301
Clemente Menéres dotou também a sua propriedade de escritórios e outras infra-estruturas para a sua gestão e deu ainda aos seus funcionários, residências, uma 298
VISEU, 2013: 21.
299
VISEU, 2013: 22.
300
VISEU, 2013: 24.
301
VISEU, 2013: 23.
117
A linha do Tua (1851-2008)
escola (para a qual contratou também professores no sentido de aumentar a formação dos seus empregados) e uma cantina. A propriedade de Clemente Menéres no Romeu foi também um foco de emprego em Trás-os-Montes. Menéres dava trabalho a muitos operários das regiões mais próximas. Em épocas de maior necessidade de trabalho, e para tarefas mais específicas, a Quinta do Romeu empregou também trabalhadores de outras zonas do país (Alentejo, Guimarães, Porto, Douro, Mirandela, etc.). Para a constituição do grande domínio e respectiva sustentação, Clemente Menéres investiu avultadas somas de dinheiro, tendo mesmo contraído em 1885 um empréstimo bancário, dando como garantia hipotecária a própria propriedade. Com o passar dos anos, a cortiça rapidamente se tornou o produto de excelência da Casa Menéres, muito embora a sua exploração se debatesse com várias dificuldades, desde a subdivisão excessiva das florestas ao desconhecimento dos processos de cultivo silvícola, passando por secas, incêndios e períodos de clima adverso. No entanto, o maior problema enfrentado pela Casa Menéres era a incipiência do sistema de transportes e comunicações da região, que lhe custavam muito tempo e avultados capitais. A cortiça era extraída em locais de difícil acesso e transportada depois através de estradas fracas e carreiros em cavalgaduras e carros de bois. A sua expedição para o Porto e outras regiões do país era também de extrema dificuldade pelas mesmas razões302. Figura 52 – Transporte de cortiça303
Por esta altura, o Romeu só tinha a estrada real n.º 6 para se ligar ao litoral do reino (era por esta via de comunicação que circulava a mala-posta, cujo serviço foi inaugurado também em 1874). Isto trazia problemas à própria preparação da cortiça que não podia ser expedida em prancha (formato preferido dos mercados compradores), uma vez que as fracas condições de transporte e comunicações entre o Romeu e o Pinhão o não permitiam. A maior parte da cortiça tinha que ser transformada 302
VISEU, 2013: 24.
303
VISEU, 2013: 25.
118
A odisseia de uma nova linha
em rolhas na fábrica do Romeu, o que diminuía o seu valor de mercado. Pela década de 1880, o caminho-de-ferro era já uma realidade em Portugal e Clemente Menéres gizou o projecto de levar uma linha-férrea até Trás-os-Montes e às suas propriedades em que tanto dinheiro investira para poder escoar de forma mais eficaz a sua produção de vinho, azeita, frutas e cortiça. Por esta altura, a linha do Douro aproximava-se da foz do Tua (chegara ao Pinhão em 1880) e entre os engenheiros e políticos portugueses debatia-se o sentido a dar àquela via-férrea, no intuito de a conduzir à fronteira com Espanha. Existiam duas possibilidades: ou continuar a ferrovia pelo vale do Douro até Barca de Alva; ou flecti-la na direcção norte pelo vale do Tua até Mirandela e Bragança. A estas discussões assistia com muita atenção Clemente Menéres, que via na segunda possibilidade um excelente meio de dotar as suas propriedades com o mais avançado e eficaz meio de transporte à disposição das pessoas na época. Estas linhas não eram exclusivas: uma não excluía a outra, mas a internacionalização da linha do Douro pelo nordeste serviria de forma muito mais eficaz os interesses de Clemente Menéres. E então Menéres lutou para que a linha subisse o vale do Tua e se internasse em Trás-os-Montes, servindo as suas terras e o seu investimento, em vez de continuar pelo vale do Douro até se ligar a Espanha por Barca de Alva. Nessa luta, Menéres contou com o apoio no parlamento do deputado brigantino Pires Vilar e com o auxílio da câmara municipal de Mirandela. Em 1880, Pires Vilar defendia na câmara dos deputados a necessidade de se levar a linha do Douro, desde Foz-Tua até Mirandela, Bragança e fronteira, em vez de a continuar junto ao rio até Barca de Alva. Em 1882 e 1883, a câmara de Mirandela pedia ao governo que não esquecesse a linha de FozTua a Bragança no seu plano ferroviário. Aquela autarquia enviou ainda representações à associação comercial do Porto, da qual Clemente Menéres era sócio e a qual teria decerto interesse na construção de uma via-férrea pelo vale do Tua, que provavelmente estimularia a actividade comercial na Invicta. Não será demais supor que tenha sido o próprio empresário a acicatar os ânimos daquele deputado e daquela edilidade, motivando-os para a prossecução de um objectivo comum que beneficiava a todos. O próprio Clemente Menéres também não ficou parado, tendo iniciado várias diligências para convencer os poderes centrais a dotar Trás-os-Montes de tão grande melhoramento. Este espírito de iniciativa contrastava, porém, com o fleuma, tranquilidade e passividade dos transmontanos, que não moviam uma palha para convencer Lisboa a investir na província. Por isso, Menéres começou a escrever telegramas onde inventava sublevações por parte dos pacatos transmontanos contra a contumácia dos governos em não lhes conceder um caminho-de-ferro, o símbolo
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A linha do Tua (1851-2008)
do progresso304. Muitos desses telegramas foram difundidos por jornais do Porto e de Lisboa, que se juntavam, assim, conscientemente ou não à campanha movida por Clemente Menéres. O seu objectivo era colocar a reduzida opinião pública nacional do lado dos transmontanos e da sua própria aspiração de ter um caminhode-ferro por onde escoar as suas produções. Num país onde o analfabetismo grassava, esta mensagem transmitida pelos jornais não chegaria à maioria da população. No entanto, chegaria a quem interessava: o governo e os ministros das obras públicas e fazenda, por quem normalmente passava a decisão de construir novos caminhos-de-ferro. Clemente Menéres tinha também consciência de que a realização deste sonho de levar a ferrovia a Trás-os-Montes não passava apenas pelo uso de retórica e pela apresentação de argumentos de justiça e equidade para com aquela província no parlamento. Era preciso invocar argumentos de índole económica e apelar à cobiça dos homens por quem passava a decisão. Nesse sentido, Menéres serviu de intermediário na aquisição de quintas/propriedades agrícolas na região do Tua por parte de alguns deputados. Influentes como Eduardo Pinto da Silva, Martins de Azevedo e José Nogueira Pinto, através da acção do empresário do Romeu, tornaram-se proprietários na região e, como tal, passaram a engrossar a lista dos interessados na construção da via-férrea, funcionando como grupo de pressão junto do governo. A acção de Clemente Menéres não foi bem-sucedida no imediato. O executivo regenerador preferiu em primeiro lugar levar o caminho-de-ferro a Barca de Alva e fazer a ligação até Espanha pela fronteira leste e não pelo nordeste. Todavia, o empresário não desistiria da sua pretensão e, em 1883, veria os seus esforços recompensados, quando os ministros das obras públicas e fazenda apresentaram ao parlamento uma proposta de lei onde se incluía a colocação em concurso da adjudicação do assentamento e exploração da linha de Foz-Tua a Mirandela. Era uma meia-vitória para Menéres: em primeiro lugar, porque o caminho-de-ferro se ficaria por Mirandela e não chegaria, assim, às suas propriedades do Romeu; em segundo lugar, porque a bitola a empregar na construção da via era diferente da usada na linha do Douro (esta era de 1,67 m; aquela de 1 m), o que levantaria alguns problemas. Fosse como fosse, não deixava de ser um grande melhoramento para Trás-os-Montes e uma enorme melhoria no processo de escoamento dos produtos da quinta do Romeu e da região transmontana. Como vimos em capítulos anteriores, as bases do concurso não seduziram nenhum investidor, sobretudo nas cláusulas que respeitavam à garantia de juro e ao resgate da linha por parte do estado. A tarefa de Clemente Menéres não estava ain304
VISEU, 2013:56.
120
A odisseia de uma nova linha
da terminada. A lei estava aprovada, o concurso aberto, mas ninguém se mostrava interessado na construção do caminho-de-ferro. Menéres não desistiu e procurou cativar o seu amigo Henri Burnay para o negócio. Burnay, contudo, não se mostrou interessado nem disponível para tal empreendimento. Nada que fizesse esmorecer a vontade de Menéres de dotar Trás-os-Montes de um caminho-de-ferro. Contando com o apoio de mais 44 signatários, Menéres apresenta uma exposição ao rei, pedindo a clarificação do artigo do contrato posto em concurso, sobre a compensação a pagar ao concessionário em caso de resgate antecipado. Era intenção de Clemente Menéres apresentar uma proposta ao governo para a construção da linha do Tua; ele próprio reconhecia que o contrato, tal como estava redigido, não era atractivo em termos de negócio. A praça original foi encerrada e novo prazo para apresentação de propostas foi estipulado, desta feita com os artigos sobre o resgate da linha redigidos de modo a atrair a atenção dos investidores. Clemente Menéres desta vez não quis arriscar e o seu espírito de iniciativa e desejo de levar o caminho-de-ferro a Trás-os-Montes levaram-no a apresentar candidatura ao concurso. Era uma proposta feita no limite do estipulado pelo governo. A licitação máxima seria de 23 contos/km e o grupo liderado por Clemente Menéres fazia um lanço de 22,999 contos/km. Não seria o objectivo principal de Menéres ficar com a linha, mas que ela se construísse. Era, de facto, um negócio no qual ele não tinha qualquer experiência. Menéres era um comerciante, comprava e vendia os mais diversos produtos e pouco ou nada saberia de construção e exploração de vias-férreas. Daí que o lanço oferecido fosse tão próximo do limite máximo imposto nas bases do concurso. A construção ficava garantida – não se verificaria o que acontecera no concurso anterior – e a linha do Tua seria no curto prazo uma realidade. No entanto, o grupo de Menéres deixava aberto um amplo espaço para que outros capitalistas, mais experimentados nestas andanças, pudessem apresentar propostas mais baixas e, portanto, mais favoráveis para o governo. E foi isso que aconteceu. O conde da Foz, Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, comunicaria a Clemente Menéres e ao seu grupo que iria apresentar uma proposta mais baixa. Este tipo de acordos pré-concursais não eram completamente incomuns e destinavam-se a evitar que uma concorrência exacerbada fizesse baixar em muito o preço quilométrico da linha e colocar assim em causa a viabilidade económico-financeira do caminho-de-ferro. Ao tomar conhecimento da existência de um outro interessado no concurso para a linha do Tua, Clemente Menéres desistiria do concurso. O seu objectivo estava atingido. O caminho-de-ferro pelo vale do Tua ia ser adjudicado, estaria pronto em poucos anos e a quinta do Romeu ganhava um corredor ferroviário que a colocava mais próxima do Porto, dos mercados internacionais, e, consequentemente, a tornava mais valiosa.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 53 – Descarga de cortiça e de outros produtos na estação de Mirandela305
Clemente Menéres faleceria no dia 27 de Abril de 1916, com 73 anos. Por esta altura, já tinha sido constituída a Sociedade Clemente Menéres, uma companhia por quotas que formara com outros membros da sua própria família. Na direcção da sociedade sucederam-lhe os dois filhos José e Manuel. Mas, o seu nome ficaria indelevelmente marcado na história de Trás-os-Montes, pelos esforços estrategicamente utilizados para a construção de um caminho-de-ferro de Foz-Tua a Mirandela e pelo investimento que fez na sua quinta do Romeu306. * Se Clemente Menéres teve o sonho, a concretização do mesmo coube ao conde da Foz. Foz teve um percurso inverso ao de Clemente Menéres. Enquanto este nasceu numa família humilde e subiu na vida ao ponto de deixar um importante legado à 305
VISEU, 2013: 39.
306
VISEU, 2013: 45.
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A odisseia de uma nova linha
sua família, Foz foi criado numa das famílias mais ricas de Lisboa e acabou os seus dias perto da ruína. Em todo o caso, o seu papel na realização da linha do Tua foi tão determinante como o desempenhado por Clemente Menéres307. Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, conde da Foz, nasceu em Lisboa a 9 de Maio de 1849, filho do general Gil Guedes Correia de Queiroz e de Maria Georgina Palha de Faria Lacerda. Os seus pais eram abastados proprietários no Alentejo e Ribatejo. Quando em 1870 perdeu o seu pai, Tristão herdou um legado avaliado em 30 mil contos308. Esta verdadeira fortuna seria usada pelo conde da Foz ao longo de cerca de 20 anos nos mais diversificados investimentos e também em luxos com que o cidadão mais comum apenas poderia sonhar (a sua colecção de arte e as festas que dava na sua casa localizada nos Restauradores em Lisboa tornaram-se famosas)309. Figura 54 – O palácio Foz nos Restauradores em Lisboa310
307
O texto seguinte é baseado em SANTOS, 2014.
308
SANTOS, 2014: 18-19.
309
SANTOS, 2014: 20
310
SANTOS, 2014: 85.
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O investimento do conde da Foz na linha do Tua insere-se num conjunto de iniciativas financeiras empreendidas por si no sector ferroviário nacional, que por sua vez se inseriam no plano geral de negócio que desenhou sobretudo na década de 1880. O conde da Foz tomou proveito de um modelo de desenvolvimento, que vinha sendo empreendido desde a década de 1850 e que passava pela aposta na construção de obras públicas e sobretudo infra-estruturas de comunicação e transporte. Este modelo assentava numa relação de reciprocidade entre o estado e certos interesses privados. O estado necessitava da intermediação de determinados agentes, que abriam as portas do crédito internacional às suas actividades. Em troca, favorecia-os como parceiros privilegiados na atribuição das correspondentes operações financeiras e de concessões (caminhos-de-ferro, obras públicas, portos, tabacos, etc.), além de negócios e privilégios diversos, os quais podia auxiliar com subsídios e apoios de diferentes tipos. Neste sentido, uma rede de influência política era fulcral. O conde da Foz cedo se apercebeu de que para constituir relações privilegiadas com o estado necessitava de aliados no governo. A integração de Foz no partido progressista está na génese da aproximação às suas figuras-chave e aos benefícios a alcançar. Um dos seus grandes aliados e figura-chave na sua rede de influências foi Mariano de Carvalho, membro do partido progressista que chegou tão alto como ministro da fazenda. Era também um dos mais influentes ideólogos e publicistas do partido progressista, para o que contribuiu a sua carreira de jornalista e invulgar talento político, reconhecido pelo próprio Fontes, que certa vez ao ir para o parlamento exclamou: “Está lá o Mariano de Carvalho e só esse, é um exército!” Figura 55 – Mariano Cirilo de Carvalho311
311
FERNANDES, 2007.
124
A odisseia de uma nova linha
Neste contexto, o conde da Foz tornou-se um dos principais capitalistas portugueses, líder de um grupo – sindicato no dizer da época –, que disputou os negócios que se estabeleciam em torno do estado e não só. Investiu em caminhos-de-ferro em Portugal e em Espanha e tentou alargar esses investimentos à Turquia312 e China313; foi director e accionista do Banco de Portugal314, ligou-se ao Banco Lusitano e fundou uma pequena casa de crédito em Paris315; apostou na agricultura, participando na Companhia Real Promotora da Agricultura Portuguesa e explorando as suas vastas propriedades no Alentejo e Ribatejo (cereais, vinho, azeite, cortiça e produtos pecuários)316; fundou companhias mineiras em Portugal e Espanha317; investiu no canal do Panamá318 e interessou-se por diversas actividades no Brasil319 e Venezuela320. A linha do Tua acabou assim por ser uma parte pouco importante na carteira de investimentos do conde da Foz, cuja pedra angular era sem dúvida a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. Em 1884, com a ajuda do então deputado Mariano de Carvalho, Foz implementou um corte decisivo no modelo de gestão desta companhia, substituindo, através de um artifício legal, a maioria francesa da direcção por uma maioria de administradores portugueses. Tudo começou com a lei que aprovava as adjudicações das linhas da Beira Baixa, do Tua e de Viseu aos respectivos concessionários. Na discussão parlamentar, Mariano de Carvalho propôs e viu aprovado um aditamento que estipulava que as companhias que detivessem ou para quem fossem trespassadas as adjudicações deveriam ter uma maioria de administradores portugueses nas suas direcções. As concessões das linhas do Tua e do ramal de Viseu tinham sido feitas a dois indivíduos, mas a linha da Beira Baixa tinha sido adjudicada a uma firma já constituída, precisamente a Companhia Real321. A aceitação da obrigatoriedade de uma maioria portuguesa no conselho de ad312
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 82, pasta Companhia Nacional; listagem de accionistas, dig. 28-30.
313
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 15, pasta Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 51.
314
REIS, 2011: 107
315
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 334, pasta Cartas com bancos, Marchand e Lusitano, dig. 105-106.
316
SANTOS, 2014: 14.
317
SANTOS, 2014: 131-133.
318
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 133, pasta Cartas comerciais, dig. 114.
319
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 15, pasta Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchy, fl. 24.
320
Centro nacional de documentação ferroviária. Arquivo da CP, caixa 15, pasta Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, dig. 24.
321
SALGUEIRO, 2008: 57-58
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ministração implicava uma mudança dos estatutos e uma interferência que a maioria dos accionistas (de origem francesa) não queria aceitar. Em assembleia-geral, a direcção em funções propôs que a companhia não aceitasse a imposição do governo e prescindisse da concessão da linha da Beira Baixa. O que normalmente deveria acontecer seria uma aprovação da proposta da direcção pela maioria dos accionistas franceses, que usualmente se faziam representar por procurações. Contudo, desta vez a mesa da assembleia-geral, presidida por um dos aliados de Foz, declarou que as procurações apresentadas pelos representantes dos accionistas franceses eram inválidas à luz da lei portuguesa por se tratar de documentos particulares escritos em língua estrangeira. Deste modo, foi retirado o direito de voto aos representantes dos accionistas franceses e, pela primeira vez na história da companhia, os sócios portugueses detinham maioria em assembleia-geral. Naturalmente, a proposta da direcção foi rejeitada e por unanimidade decidiu-se demitir a direcção e aceitar a imposição do governo, alterando-se para tal os estatutos322. Esta assembleia-geral selvagem (nas palavras da imprensa da época) colocou o conde da Foz à frente dos destinos da Companhia Real. O seu domínio sobre esta sociedade prolongou-se até à crise de 1891-1892. Durante este período, o conde da Foz aumentou substancialmente as concessões da empresa e acentuou inclusivamente o investimento em caminhos-de-ferro espanhóis. A Companhia Real já investia em caminhos-de-ferro no país vizinho, se bem que através de contratos pouco lucrativos. Foz tentou pôr fim a alguns desses acordos e renegociar outros, procurando ainda melhorar as receitas da companhia com a ampliação da rede. A sua política acabou por não alterar o rumo da empresa em direcção ao desastre financeiro, que se revelaria em 1891-1892. Foz foi assim um dos homens mais ricos e influentes de Portugal, com domínio sobre a mais importante companhia ferroviária nacional. Em 1883-1884, o então conde conquistou a adjudicação da linha do Tua e do ramal de Viseu. Como já foi referido, Foz só apresentou candidatura ao segundo concurso aberto em Novembro de 1883, uma vez que as bases para a remição da linha incluídas no primeiro não agradaram aos potenciais interessados. Nesta praça, quatro investidores mostraram interesse, no entanto, como já foi visto, Clemente Menéres retirou-se da corrida quando soube que Foz estava disposto a ficar com a adjudicação. No final, Foz bateu os outros dois concorrentes com um lanço de 19,7 contos. Como já vimos, o contrato definitivo de concessão para a linha de Mirandela foi assinado a 30 de Junho de 1884 (previa uma garantia de juro calculada sobre um preço quilométrico de 19,7 contos). O acordo para a adjudicação do ramal de Viseu seria firmado cerca de um ano depois a 29 de Junho de 1885 entre o governo e qua322
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tro membros do grupo de Foz (preço por quilómetro de 23 contos), depois de Henry Burnay também não ter aceitado a imposição de formar uma companhia com uma maioria de administradores portugueses. O conde da Foz deu início à construção da linha do Tua, contratando para tal os empreiteiros Lliort e Vilageliu. O empreendimento fez-se em coordenação com contactos internacionais: procurou-se em vão obter financiamento no estrangeiro (as obrigações acabaram por ser colocadas em Portugal) e o material fixo e circulante foi adquirido na Alemanha (em Esslingen e Bochum, provavelmente por intermediação do francês Ellicot)323. Alguns meses depois do início da construção, Foz fundou a Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, a quem seriam trespassadas as concessões da linha do Tua e do ramal de Viseu. Figura 56 – Acção da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro
A direcção-geral da companhia seria confiada a Almeida Pinheiro, um engenheiro próximo de Foz a quem este frequentemente recorria para questões ferroviárias. Nos órgãos sociais da Companhia Nacional, encontramos de novo membros de confiança do grupo Foz. O presidente era o próprio conde e o vice-presidente o visconde de Mo323
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reira de Rei, António Augusto Ferreira de Melo e Carvalho. Este homem era na altura destes acontecimentos um membro da câmara dos pares, onde normalmente defendia as posições do partido regenerador, o que demonstra bem que mais fortes que as lealdades partidárias eram as lealdades financeiras. De facto, até as lealdades financeiras se aliavam à concorrência se isso as beneficiasse. Por exemplo, apesar da divergência surgida na disputa da Companhia Real, o banqueiro e industrial francês Camondo não hesitou em recorrer a Foz para introduzir em Portugal os cimentos Portland ou lhe propor o fornecimento de travessas para as novas linhas. Entre os restantes membros da direcção tínhamos Alfredo Ribeiro, Eduardo Segurado, Henrique Mateus dos Santos (outro regenerador), Júlio Marques de Vilhena (mais um regenerador), António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado (sobrinho de Fontes Pereira de Melo e simultaneamente administrador da Companhia Real) e Arnaldo Navarro. O conselho fiscal era composto por António Francisco da Costa Lima e Adrião de Seixas, este último um dos juristas que haviam defendido a posição do grupo Foz na Companhia Real324. Na mente do conde da Foz (marquês, desde 1886325) esteve sempre presente o objectivo de prolongar a rede da Companhia Nacional, nomeadamente a linha do Tua desde Mirandela a Bragança. Esta ligação seria realizada, mas não durante a sua administração, que foi aliás bastante conturbada. Desde o início que os custos de construção superaram em muito os 19,7 contos sobre os quais recaía a garantia de juro o que colocou a companhia em sérias dificuldades financeiras. Como vimos, a solução mais imediata foi desviar verbas do orçamento do ramal de Viseu para a linha do Tua. No próprio ramal de Viseu foi necessário introduzir alterações ao projecto inicial, que incluíram novas obras de arte e consequentemente aumentaram também o preço de construção. O capital inicialmente angariado através de obrigações tornou-se insuficiente e foi necessário proceder a nova emissão de títulos de dívida. A exploração da linha do Tua também não foi muito rendosa (em virtude da fraca densidade populacional da região, que ademais tinha sido atingida pela filoxera, e da falta de estradas que comunicassem com as estações), o que agravou os problemas financeiros da companhia, que se viu assim numa espiral de incumprimentos326. O director-geral Almeida Pinheiro revelava algum pânico em correspondência mantida com o marquês da Foz. Anteviam-se como soluções para este problema a construção de estradas e a concessão da extensão da linha de Mirandela até Bragança, com um rendimento garantido pelo estado (o que permitiria angariar mais capital através de obrigações e pelo menos no curto prazo da construção minorar os problemas da companhia). Todavia, a construção de estradas 324
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era extremamente morosa e por outro lado o governo não apresentava condições para financiar novas obras ferroviárias. A direcção da companhia ainda tentou obter do estado o compromisso de incluir no cômputo da garantia de rendimento as despesas de exploração, sempre que as receitas brutas não fossem capazes de as suportar, mas o problema arrastou-se sem solução imediata à vista. Entretanto, o ramal de Viseu era inaugurado em 1890, mas o início da sua exploração não melhorou a situação financeira da empresa327. Por outro lado, a crise financeira do estado colocou a descoberto todas as incipiências dos investimentos de Foz, que ao longo dos anos vinham acumulando prejuízos. A falência aproximava-se a passos largos. Foram tomadas medidas de corte na despesa (onde se incluía uma simbólica suspensão do pagamento dos honorários da direcção), mas o seu alcance seria limitado. Em meados de 1891 a Companhia Nacional suspendeu mesmo os pagamentos aos obrigacionistas e a outros fornecedores e empreiteiros. Unilateralmente, sem aprovação dos credores nem da assembleia-geral, a direcção de Foz na Companhia Nacional elaborou um plano de pagamentos aos credores insatisfeitos. O marquês argumentou que caso estes não aceitassem o plano, a companhia caía nas mãos do estado e qualquer tentativa de ressarcimento da dívida seria muito mais espinhosa. Naturalmente, os obrigacionistas não ficaram agradados com esta solução e conseguiriam impor outra: a direcção demitir-se-ia e os obrigacionistas conseguiriam uma parte da representação social da companhia trocando os seus títulos por acções328. O fracasso da Companhia Nacional seria porém um dos mais pequenos problemas com que Foz se debateria neste período e que acabariam por o levar à ruína. Maior dificuldade seria levantada pela Companhia Real, a maior empresa nacional na altura e que, tal como a Companhia Nacional, estava também perto da bancarrota, depois de um intenso período de construções e investimentos ferroviários (linha do oeste, ramal de Cascais, linha de Sintra, túnel e estação do Rossio além de outras obras de engenharia financeira em Espanha) cujo retorno tardava em aparecer. À Companhia Real estava intimamente ligado, desde os tempos do conde da Foz, o Banco Lusitano. Este banco debatera-se com problemas financeiros já antes de 1884. Com Foz, o Lusitano entrou no negócio da Companhia Real, com o objectivo de drenar capital da empresa em seu benefício, através das lucrativas operações financeiras que proporcionava, como, por exemplo, a colocação de títulos. No início da década de 1890, o banco sentiu a crise e viu-se inclusivamente forçado a suspender a troca das suas notas por metálico. Numa tentativa de o salvar, Foz, em 1891, autorizou a transferência de obrigações do fundo de pensões da Companhia Real, no valor de 205 contos, para o Banco Lusitano. Esta proeza levaria Foz à cadeia. Seria liber327
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tado sob fiança de 250 contos, mas o seu prestígio ficaria manchado para sempre329. Figura 57 – A questão do caminho-de-ferro e a dança dos títulos
A partir daqui a carreira de Tristão Castelo Branco como capitalista entrou numa espiral descendente. Foi afastado das companhias ferroviárias que dominara (Real e Nacional), do Banco de Portugal e do Banco Lusitano. Após a morte da mãe e da sua segunda esposa, retirou-se para um exílio bucólico em Torres Novas, onde se dedicou à agricultura. O seu palácio nos Restauradores foi inicialmente arrendado e depois vendido, assim como o seu faustoso recheio. Figura 58 – Casa da Torre de Santo António, na quinta de Santo António em Torres Novas330
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O marquês da Foz, um dos homens que animaram o capitalismo da segunda metade da década de 1880 e que tornou realidade o sonho de Clemente Menéres, viria a falecer em 1917 na sua quinta de Torres Novas331.
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2.6. PROTAGONISTAS: ALMEIDA PINHEIRO, JOSÉ BEÇA E DINIS MOREIRA DA MOTA Hugo Silveira Pereira332 José Manuel Lopes Cordeiro333 No capítulo anterior destacámos os homens que procuraram criar as condições económicas e financeiras para que a linha do Tua fosse uma realidade. Neste falaremos dos que efectivamente contribuíram para a sua concretização no terreno, no vale do Tua. Obviamente que uma obra da envergadura do caminho-de-ferro de Foz-Tua a Mirandela empregou milhares de operários, dos quais é impossível dar conta por falta de fontes. Assim, nos parágrafos seguintes, enfatizaremos o papel dos engenheiros-directores da empreitada: António de Xavier Almeida Pinheiro, José António Ferro de Madureira Beça e Dinis Moreira da Mota. * António Xavier de Almeida Pinheiro nasceu a 4 de Fevereiro de 1845 em Estremoz, filho de António Xavier Pinheiro, tenente-coronel de lanceiros, condecorado com as ordens de São Bento de Avis e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Em 1862, com 17 anos, assentou praça na armada como aspirante de terceira classe na companhia dos guardas-marinhas em 1862. Frequentou em seguida a escola 332
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
333
Centro de Investigação em Ciências Sociais (Universidade do Minho).
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politécnica de Lisboa e mais tarde a escola do exército, depois de se desvincular do exército nacional. Em 1871, concluiu o curso de engenharia ministrado por aquela instituição de ensino, tendo obtido o primeiro prémio pecuniário em ambos os anos da formação. Entrou para o serviço do ministério das obras públicas no dia 30 de Janeiro de 1872, como engenheiro subalterno da repartição distrital de Angra do Heroísmo. A 21 de Julho daquele ano, tornou-se engenheiro chefe de secção na mesma direcção de obras públicas. No mesmo ano tornou-se sócio da associação de engenheiros civis portugueses. Deixou o arquipélago dos Açores em 30 de Março de 1873, depois de obter a necessária autorização do seu superior hierárquico. No dia 26 de Abril, passou a trabalhar sob as ordens de Francisco Maria de Sousa Brandão nos estudos do caminho-de-ferro de Abrantes a Monfortinho (linha da Beira Baixa). Por esta altura, o ministério das obras públicas e a classe engenheira nacional pretendiam fazer deste caminho-de-ferro a verdadeira ligação internacional entre Lisboa, Espanha e França, verificado que fora o erro da directriz da linha de leste (que fazia aquela ligação mas por um percurso muito maior). No início da década de 1870, o governo encomendou estudos sobre esta ferrovia a Sousa Brandão, que viria a demonstrar que a conexão férrea internacional pela Beira Baixa era, de facto, a melhor e mais rápida solução para ligar Lisboa à fronteira espanhola (e francesa)334. Almeida Pinheiro participou assim nestes estudos, trabalhando com um técnico com uma enorme experiência e uma enorme autoridade335. Contudo, em Novembro de 1873, transitou para a linha do Douro, a pedido do director da construção deste caminho-de-ferro, Lourenço de Carvalho. Sousa Brandão não se opôs à solicitação e dispensou Almeida Pinheiro, que se apresentou ao novo serviço a 5 de Novembro de 1873. Começou por trabalhar nos estudos da secção da linha do Douro da Régua ao Pinhão, tendo como ajudante o engenheiro Poppe. O director da construção tinha-o “na conta de um dos seus mais intelligentes colaboradores [e] perdoava-lhe de boa vontade a quasi autonomia que elle se arrogava na Regua”336. A 28 de Janeiro de 1874, foi considerado oficialmente chefe de secção. Terminados os estudos da secção da Régua ao Pinhão, Almeida Pinheiro foi encarregado do exame da secção anterior, de Porto de Rei à Régua, no que contou com o apoio do seu colega engenheiro Aguilar. Em seguida, foi incumbido da construção da sexta secção do mesmo caminho-de-ferro do Douro, tarefa que manteve até 1879. A 2 de Agosto deste ano foi-lhe ordenado que se apresentasse no ministério das 334
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obras públicas em Lisboa, que o encarregou (15 de Novembro) novamente da análise da directriz de um novo caminho-de-ferro, desta feita o de Lisboa a São Martinho do Porto e Pombal. Estes estudos faziam parte dos planos do governo do partido progressista para adjudicar uma linha-férrea paralela à linha do norte (Porto-Lisboa) à Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. Contudo, a discussão política desta via trouxe à colação o argumento militar (no entroncamento em Pombal e no atravessamento das linhas de Torres), que invalidou os esforços do governo (e de Almeida Pinheiro) que não conseguiu assim aprovar o contrato no parlamento337. Antes (desde 24 de Janeiro de 1880), o engenheiro acumulou o estudo daquela via-férrea com o da directriz de um caminho-de-ferro que partindo da linha de leste seguisse até Castelo Branco e se prolongasse até entroncar na linha da Beira Alta. Por esta altura, o caminho-de-ferro da Beira Baixa (por Castelo Branco) fora despojado do seu carácter internacional, em virtude da construção do ramal de Cáceres pela Companhia Real e da oposição desta empresa àquele empreendimento. A linha da Beira Baixa passou a ser encarada como uma solução interna que constituía uma secção de uma ferrovia paralela à fronteira com Espanha, uma forma de ligar os caminhos-de-ferro de Leste e da Beira Alta e um meio para ligar a Covilhã à rede férrea portuguesa. Almeida Pinheiro foi um dos primeiros engenheiros a estudar esta solução. Dos seus exames resultaria a publicação de uma memória descritiva e justificativa da linha da Beira Baixa na Revista de Obras Publicas e Minas em 1884 (Caminho de ferro da fronteira. Memoria descriptiva e justificativa), onde defendia a sua construção por conta do estado338. Em 12 de Novembro de 1881, foi-lhe confiada nova comissão para encontrar solução para uma outra necessidade da rede férrea nacional: a ligação entre as linhas do Douro e da Beira Alta. Almeida Pinheiro realizou dois estudos (pelo vale do Côa e pelo vale do Teja) que permitiam o assentamento de uma via entre o Douro e Vila Franca das Naves/Vila Fernando. Este caminho-de-ferro esteve durante muitos anos na mente dos governantes nacionais, chegando mesmo a constar do plano ferroviário de finais da década de 1920, mas nunca foi construído339. A perícia de Almeida Pinheiro valer-lhe-ia um novo trabalho em 1883. A 11 de Janeiro, o governo solicita-lhe a realização de um novo estudo da linha de Foz-Tua a Mirandela. Como já vimos anteriormente, Sousa Brandão fizera uma análise pela margem direita do rio e o governo pretendia então obter uma segunda opinião pela margem esquerda (que viria efectivamente a ser implementada, malgrado a oposição do deputado de Alijó, Teixeira de Sampaio). O ministério abriria concurso para adju337
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PINHEIRO, 1884.
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dicar esta linha (juntamente com as da Beira Baixa e de Viseu) ainda em 1883 e Almeida Pinheiro seria uma vez mais chamado pelo ministro para fazer parte da comissão que presidiu ao concurso para a concessão do caminho-de-ferro da Beira Baixa340. Terminada esta tarefa, o engenheiro foi enviado para o sul do país (a 18 de Outubro de 1883), para fiscalizar directamente os trabalhos de construção da linha-férrea do Algarve (entre Beja e Faro). Contudo o seu futuro mais imediato passaria efectivamente por Trás-os-Montes e pelo vale do Tua ao serviço do adjudicatário da linha de Mirandela, o conde da Foz. O início da sua ligação com este empreendimento data pelo menos de Setembro de 1884, já que neste mês uma carta enviada ao conde da Foz identifica Almeida Pinheiro como engenheiro ao serviço do concessionário341. Oficialmente, porém, o engenheiro só a 28 de Novembro de 1884 obteve exoneração do serviço do ministério das obras públicas para poder passar ao serviço “da Companhia que se está organizando para construir e explorar a linha ferrea de Foz-Tua a Mirandela”342. Foz e Almeida Pinheiro não eram desconhecidos um do outro. Na verdade, o conde recorria amiúde aos serviços do engenheiro para questões ferroviárias. Aliás, Foz fora empreiteiro de algumas obras na linha do Algarve, que Almeida Pinheiro fiscalizara343. O projecto da Companhia Nacional era mais à medida do perfil profissional do engenheiro. Segundo o elogio publicado na Revista de Obras Publicas e Minas quando da sua morte, “tinha a propensão para o commando apparatoso (…), comprazendo-se em operar por conta propria, e em ponto grande, até onde chegavam os seus recursos bafejados pela fortuna”344. Entre 1884 e 1890, o técnico dirigiu a realização de estudos e a construção do caminho-de-ferro do Tua e do ramal de Viseu, ao serviço da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. No dia da inauguração da linha do Tua, evidenciou o seu carácter rigoroso e disciplinado que sempre imprimiu ao assentamento de ambas as vias: podia-se “vêr todo o pessoal da linha, uniformisado, como elle proprio, segundo a sua phantasia, obedecer ao seu nuto, adoptar as suas maneiras, imitar os seus processos”345. Após a conclusão de ambos os trabalhos, foi agraciado com a comenda da ordem militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e tornou-se ainda directorgeral da Companhia Nacional346. Foi assim responsável pela organização e direcção 340
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Arquivo histórico do ministério das obras públicas. Processos individuais. António Xavier de Almeida Pinheiro.
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da exploração das duas ferrovias. Deste modo, Almeida Pinheiro reforçou a sua confiança junto do conde da Foz, que voltou a contar com a sua perícia na construção da linha da Beira Baixa (adjudicada à Companhia Real, de que Foz era presidente). Figura 59 – Almeida Pinheiro e o seu staff347
Como foi referido atrás, os investimentos do conde da Foz acabariam por se revelar ruinosos e Almeida Pinheiro presenciou na primeira pessoa à derrocada do capitalista. Em 1889, quando a Companhia Nacional já se encontrava em incumprimento, o engenheiro escreveu uma missiva alarmante ao conde, informando não ter dinheiro para fazer face às despesas da construção do ramal de Viseu e da linha da Beira Baixa. De facto, Almeida Pinheiro chegou mesmo a adiantar “sem garantia e do seu bolso, quantiosas sommas para a conclusão dos trabalhos, e tomou individualmente e para o mesmo fim responsabilidades de certa monta em alguns bancos de Lisboa, soffrendo prejuizos consideraveis n’estas operações, que em caso algum podiam ser lucrativas, mas a linha foi aberta á exploração, e estava satisfeito o seu amor proprio de engenheiro”348. Foi aliás, por esta razão que Almeida Pinheiro se demitiu do cargo que ocupava na empresa construtora da linha da Beira Baixa, quando a obra estava perto do seu fim349. 347
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 324.
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O técnico deu mostras de se querer também desligar da Companhia Nacional desde 1889350, contudo só abandonaria efectivamente aquela firma em 11 de Março de 1892, altura em que passou à disponibilidade no ministério das obras públicas. Almeida Pinheiro foi assim um engenheiro que se especializou sobretudo em caminhos-de-ferro. Contudo, isto não quer dizer que não se tenha dedicado a outros campos na arte da engenharia. Por exemplo, em 24 de Maio de 1881, foi encarregado de proceder a vários trabalhos topográficos auxiliares da exposição científica que a sociedade de geografa de Lisboa resolvera fazer à serra da Estrela. Ainda neste ano (9 de Julho), foi nomeado vogal do júri especial para os exames de empregados civis da escola do exército, cargo que ocupou ainda em 1882 (7 de Julho) e 1883 (5 de Julho). Perseguiu também carreira política, nas fileiras do partido constituinte (uma pequena agremiação que orbitava em torno das figuras de Dias Ferreira, Pinheiro Chagas e Vaz Preto351), pelo qual foi eleito deputado em Mogadouro para a legislatura de 1884-1887. No parlamento, fez parte, como não podia deixar de ser, da comissão de obras públicas, tomando parte no debate do projecto de lei sobre melhoramentos a introduzir no porto de Lisboa (orando contra). Interveio também em discussões que iam para lá dos meros interesses da engenharia e das obras públicas (contrato com o Comptoir d’Escompte, publicação de documentos da Santa Sé sem beneplácito régio e reforma da carta constitucional). O fim da sua ligação à Companhia Nacional marcaria também o ocaso da sua dedicação aos caminhos-de-ferro. Depois de se demitir daquela firma, foi nomeado director de obras públicas da Horta (24 de Março de 1892), todavia nunca tomou posse daquele cargo. Foi exonerado a 30 de Setembro e colocado na disponibilidade a 1 de Dezembro do mesmo ano. A partir daqui, as fontes calam-se, só voltando a falar em 1898 para dar conta da sua morte com apenas 53 anos de idade352. * José António Ferro de Madureira Beça nasceu a 10 ou 11 de Março de 1859 em Vinhais, mas foi criado em Bragança. Em 1877 rumou a Coimbra onde estudou matemática. Obtido o diploma universitário em 1881, inscreveu-se na escola do exército no curso de engenharia, tendo, enquanto aluno, projectado uma praça em Torre de Moncorvo (1882)353. 350
SANTOS, 2014: 69.
351
SOUSA & MARQUES, 2004.
352
Para tudo isto, ver: arquivo histórico do ministério das obras públicas. Processos individuais. António Xavier de Almeida Pinheiro. Revista de Obras Publicas e Minas, t. 30 (1899), n.ºs 349-350: 19-20. MÓNICA, 2005, vol. 3: 300-301.
353
ANDRADE, 1990.
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Figura 60 – José António Ferro de Madureira Beça354
No final do curso de engenharia, foi contratado pela Companhia Nacional de Caminhos de Ferro para dirigir as obras da construção da linha do Tua. O projecto da estação de Mirandela foi também da sua autoria355. Trabalhou nesta empresa entre 1884 e 1886, mas desconhecem-se mais detalhes desta ligação laboral. Sabemos que em 1886 deixou o serviço da Companhia Nacional, mas desconhece-se o mês em que efectivamente se desvinculou da empresa. Certo é que em Outubro deste ano tornou-se engenheiro condutor de primeira classe no ministério das obras públicas356. É assim possível que tenha também trabalhado com Dinis da Mota, que dirigiu a obra a partir de Janeiro daquele ano. A ser correcta esta afirmação, ambos tiveram que lidar com um motim ocorrido nas imediações de Foz-Tua em Março de 1886. De acordo com um ofício da Companhia Nacional, “a povoação de Foz-Tua foi durante algumas noites o theatro das scenas mais vergonhosas e barbaras que jamais se tem produzido n’esta região. Correrias continuas, gritos afflictivos, tiroteios com cartuchos de dinamite trouxeram esta povoação sobressaltada por algum tempo e puseram em risco a vida dos seus habitantes”. A revolta acabaria por ser resolvida graças à acção de um irmão de José Beça, Celestino Beça, alferes de caçadores, estacionado em Bragança. 354
ARAGÃO, 1967: 10.
355
SOUSA, 2013, vol. 2: 670.
356
Arquivo nacional torre do Tombo. Registo Geral de Mercês de D. Luís I, liv. 49, f. 229. Collecção Official de Legislação Portugueza, 1886: 428-440. Gazeta de Bragança, 28.12.1902, n.º 554. O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1. LEITÃO-BANDEIRA, 2010: 436-437.
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Figura 61 – O motim, segundo a Companhia Nacional357
Como funcionário público, José Beça fez parte da equipa que estudou os caminhos-de-ferro a norte do Mondego, cabendo-lhe o exame das linhas de Arganil à Covilhã e de Mirandela a Bragança358. Terminados os estudos daquelas vias-férreas, foi nomeado chefe da repartição técnica da direcção de obras públicas de Lisboa. Em finais de 1886 e inícios de 1887, transitou para o corpo de engenheiros de obras públicas, tendo colaborado com os projectistas da rede de esgotos de Coimbra (Cecílio da Costa e Costa Couraça). Algures entre 1887 e 1893 trabalhou também na construção da linha da Beira Baixa. Em 1890, era colocado pela Gazeta de Bragança nos jazigos de mármore e alabastro de Santo Adrião em Trás-os-Montes, embora não saibamos específicos da tarefa que ali desempenhou359. Ainda naquele ano elaborou o projecto da casa da Assembleia Brigantina, enquanto trabalhava no nivelamento dos arruamentos de Bragança e da reconstrução da canalização de águas da cidade360. Por portaria de 9 de Março de 1893, foi nomeado para uma comissão incumbida de organizar os regulamentos para o regime, polícia e serviço das bolsas de trabalho. A comissão foi dissolvida por por357
Arquivo histórico militar. Processo individual de Celestino Jacinto Madureira Beça. Ofício da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro datado de 12.6.1886 dirigido a Celestino Beça.
358
Gazeta de Bragança, 21.6.1903, n.º 579. PEREIRA, 2012a: 142.
359
Gazeta de Bragança, 8.7.1890, n.º 99.
360
SOUSA, 2013, vol. 2: 670 e 704.
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taria de 30 de Junho seguinte após cumprimento dos seus objectivos, sendo os seus vogais louvados361. No âmbito desta tarefa, conheceria o director-geral do comércio e estatística, Ernesto Madeira Pinto, que provavelmente o levou para os quadros da direcção-geral de estatística e dos próprios nacionais. Aqui foi chefe-engenheiro da primeira secção da repartição central e chefe da repartição do serviço de recenseamento geral da população, tendo dirigido os trabalhos do censo populacional de 1900. Neste âmbito, foi nomeado representante de Portugal no encontro da direcçãogeral de estatística demográfica que se realizou em Paris em Agosto daquele ano, tendo também representado o reino em Bruxelas362. José Beça coordenou ainda a elaboração do mapa corográfico de Portugal, onde dispunha os dados recolhidos durante o censo juntamente com a rede rodoviária e ferroviária de Portugal e a divisão administrativa do reino. Mapa 23 – Mapa corográfico de Portugal, coordenado por José Beça363
361
MACHADO, 1893: 211 e 224.
362
Gazeta de Bragança, 24.6.1900, n.º 425; 20.10.1901, n.º 492; 28.12.1902, n.º 554; 21.6.1903, n.º 579.
363
Biblioteca nacional digital, purl.pt/22847.
140
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Ao longo da sua carreira montou uma rica biblioteca pessoal com mais de 120 volumes de diversas obras científicas. José Beça era tido como um homem culto e inteligente a quem muitos colegas engenheiros recorriam para assuntos da arte e não só364. Em termos políticos, era militante do partido regenerador desde 1892365. Tornou-se deputado pela primeira vez (por Bragança) em 1900, altura em que tinha já um considerável currículo a nível académico e de experiência profissional. A sessão legislativa foi iniciada em 1901 e José Beça foi nomeado para as comissões de obras públicas, petições e estatística. A sua acção foi bastante discreta, só tendo tomada a palavra em poucas ocasiões. De resto, limitou-se a assinar pareceres que iam parar às comissões das quais era vogal (para aprovação do regulamento do porto de Ponta Delgada; para modificação da organização especial dos distritos dos Açores; ou para autorizar a câmara de Ponta Delgada a celebrar um contrato para a construção de um caminho-de-ferro na cidade366). Fora do parlamento, publicitou a necessidade de estender a linha do Tua a Bragança em jornais, centros de conversa e discussão, meios de negócio e em todas as estações oficiais367. Em Maio, apresentou ao governo uma proposta de Fortunato Zagury, requerendo a concessão daquela linha em troca de uma garantia de juro de 4,5%. O governo optaria por abrir concurso e José Beça trabalhou no sentido de angariar concorrentes. Procurou cativar a Companhia Nacional e vários bancos para a obra, em vão. Conseguiu porém interessar um empreiteiro de estradas, chamado João Lopes da Cruz, que se tornou concessionário da linha. Foi José Beça quem no parlamento redigiu o parecer que aprovava a adjudicação. No seu parecer mostrava que o caminho-de-ferro de Bragança estava incluído nos pressupostos da lei de 14 de Julho de 1899 e que seria um melhoramento improtelável para Trás-os-Montes368. A adjudicação acabaria por ser aprovada (lei de 24 de Maio de 1902)369 e a acção de José Beça continuaria desta feita na tentativa de auxiliar o concessionário a angariar o capital necessário para a obra, uma vez que este não tinha capacidade financeira individual para arcar com a empreitada. José Beça aconselhou-o a concorrer à adjudicação da linha do Corgo, no sentido de tornar as suas concessões mais atractivas do ponto de vista financeiro, e procurou ele próprio em Portugal e no es-
364
Arquivo contemporâneo do ministério das finanças. Direcção-geral dos Impostos. José António Ferro Madureira Beça. LIS/LIS3/IS/02732. Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1-2.
365
Gazeta de Bragança, 15.9.1901, n.º 487
366
Diario da Camara dos Deputados, 7.1.1901: 2; 25.2.1901: 3; 2.4.1901: 27; 22.4.1901: 2; 3.5.1901: 19; 11.5.1901: 23 e 29-30. MÓNICA, 2005, vol. 1: 359-360.
367
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1.
368
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1902: 5-7.
369
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1902: 252-259. Gazeta dos Caminhos de Ferro, 16.5.1902, n.º 346: 154.
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trangeiro (Londres e Paris) desbloquear o capital necessário à obra370. No entanto, estes esforços seriam afectados por uma doença grave que o começou a afligir desde finais de 1902. A enfermidade, de início, não prostrou Beça, que continuou a trabalhar na questão financeira da linha de Bragança e em meados de Dezembro José dava sinais de melhoras aos irmãos. Todavia as últimas semanas do ano registariam um agravamento do estado de saúde do engenheiro, que viria a falecer na madrugada de 26 de Dezembro, vítima de um aneurisma, com apenas 43 anos371. O funeral realizou-se em Lisboa, onde José foi sepultado, e foi muito concorrido. Às duas da tarde foi descido o féretro da câmara ardente para um carro preto puxado por quatro cavalos; sobre o caixão foi colocado um pano de veludo com bordados de outo e prata e as coroas de flores enviadas pelos irmãos do defunto, pelos seus empregados da repartição de estatística e também por João Lopes da Cruz, que assim prestava homenagem ao homem que o auxiliara na tarefa de desbloquear financeiramente a questão do caminho-de-ferro de Bragança. Atrás do carro fúnebre seguia uma sege dourada com o prior dos mártires e cerca de 80 carruagens372. Postumamente, a câmara de Bragança fez uma homenagem ao seu conterrâneo, renomeando a antiga rua da Alfândega para rua engenheiro José Beça. Tinha sido nesta artéria que o engenheiro vivera antes de partir para a universidade de Coimbra373. Figura 62 – Rua Engenheiro José Beça na actualidade374
370
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1. PEREIRA, 2012c: XLIII. SOUSA, 1903: 66.
371
Gazeta de Bragança, 4.1.903, n.º 555: 1(?). Revista de Obras Públicas e Minas, t. 34 (1903), n.ºs 397-399: 13.
372
Gazeta de Bragança, 9.11.1902, n.º 547; 16.11.1902, n.º 548; 14.12.1902, n.º 552; 28.12.1902, n.º 554; 4.1.903, n.º 555.
373
Gazeta de Bragança, 2.8.1903, n.º 585; 27.12.1903, n.º 606.
374
Fotografia de Hugo Silveira Pereira.
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* Dinis Moreira da Mota nasceu a 2 de Março de 1860 no arquipélago dos Açores, mais precisamente na Ribeira Grande, ilha de São Miguel. Frequentou e concluiu o curso de matemática na universidade de Coimbra entre 1877 e 1881. Ingressou depois na escola do exército onde estudou engenharia civil, curso que completou em 1883. Iniciou a sua carreira como engenheiro civil na direcção de obras públicas do distrito de Lisboa. Figura 63 – Dinis Moreira da Mota, c. 1886375
A sua ligação à linha do Tua começou em 1884, quando foi convidado pelos fundadores da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro para participar no estudo técnico da linha cuja construção se preparava. Em Outubro desse ano, foi nomeado engenheiro civil do ministério das obras públicas, comércio e indústria e em Novembro seguinte foi enviado para o Alentejo para substituir António José Arroio na direcção da construção do caminho-de-ferro do Algarve, uma linha que pertencia ao estado. Nesta ta375
CORDEIRO, 2012: 282.
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refa, Dinis Moreira da Mota lidou com condições de trabalho pouco hospitaleiras (algo que viria a encontrar também mais tarde no Tua): uma terra pobre, desértica e isolada, sem estradas e com casas de fraca qualidade. Estes obstáculos foram enfrentados pelo engenheiro com a máxima determinação que mais tarde aplicaria no vale do Tua. Em 1885, como vimos, formava-se a Companhia Nacional que tempos depois ficaria com as concessões da linha do Tua e do ramal de Viseu. Dinis Moreira da Mota, que entretanto havia completado e entregue os seus estudos sobre o traçado da primeira daquelas vias-férreas, estava esperançado de poder continuar a sua carreira na nova empresa. As suas expectativas foram concretizadas em Novembro de 1885, quando firmou um contrato com a Companhia Nacional como engenheiro-chefe da construção. Contudo, teve que esperar cerca de dois meses (até Janeiro de 1886) para entrar em funções, até que a necessária autorização governamental para se desvincular do ministério das obras públicas fosse aprovada. Como vimos, é possível que tenha trabalhado juntamente com José Beça na direcção da obra. As primeiras dificuldades enfrentadas por Dinis da Mota no Tua não se ligaram a detalhes técnicos ou de construção, mas sim a obstáculos levantados pelos próprios accionistas da companhia, que desconfiavam da sua reduzida experiência na construção de caminhos-de-ferro para levar a cabo uma obra de tamanha dificuldade. Contudo, o director-geral da companhia, António Xavier de Almeida Pinheiro, conhecia a perícia de Dinis da Mota, desde os tempos em que este participara nos estudos prévios do caminho-de-ferro do Tua. Graças a esta confiança, o ilhéu manteve-se no seu posto e continuou a dirigir os trabalhos de construção. Estes revelaram-se de uma extrema dificuldade, não só em termos técnicos como em termos de gestão de homens. Os trabalhos desenrolaram-se no interior mais profundo de Portugal, num vale escarpado, apertado entre abruptas montanhas. Por outro lado, a disciplina entre os homens nem sempre era fácil de manter. A aglomeração de alguns milhares de operários num só local favorecia o aparecimento de focos de violência, além de que a própria região, uma das zonas mais inóspitas e isoladas de Portugal, era propensa a acção de bandos de criminosos, alguns dos quais se encontravam entre as próprias equipas de trabalho. Finalmente, os donos dos terrenos a expropriar para o assentamento dos carris levantaram também obstáculos à boa prossecução da obra. Estas difíceis condições não desencorajaram, contudo, o jovem engenheiro, que ainda foi capaz de introduzir numerosas mudanças aos planos de construção, que asseguraram a sua viabilidade. Quanto à falta de disciplina e ameaças dos criminosos, Dinis da Mota muniu-se de um revólver… De acordo com o testemunho de um dos seus descendentes, o técnico levantava-se de madrugada, percorria quilómetros, balançava-se em cordas pelos penhascos do vale, comia quando e se era possível e recolhia a sua casa tarde e completamente extenuado. Os seus esforços não se limitaram à construção da linha, uma vez que sobre Di-
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nis da Mota recaiu também a responsabilidade de escolher o material circulante a utilizar na exploração. Em 1886, deslocou-se a França, Bélgica e Alemanha, onde, além de ter tido a oportunidade de avaliar a oferta de material circulante, adquiriu também conhecimentos sobre a forma de se construírem caminhos-de-ferro noutras paragens376. Na Alemanha, visitou as instalações da Maschinenfabrik Esslingen de Emil Kessler, perto de Estugarda. Como veremos em mais pormenor noutro capítulo, foi esta a casa escolhida pela Companhia Nacional para fornecer o material circulante para a linha do Tua e para o ramal de Viseu. Dinis da Mota foi quem negociou os contratos respectivos. O seu momento de glória sucederia no dia da inauguração, a 27 de Outubro de 1887, na presença do rei D. Luís I e da família real. O seu trabalho seria muito elogiado pela imprensa, que via nele um dos engenheiros com maior futuro em Portugal. Pelos serviços desenvolvidos no Tua, foi condecorado com uma medalha, que, contudo, recusou. Mais valiosa era a experiência adquirida nesta empreitada de quase dois anos, que lhe valeu novas oportunidades de carreira dentro e fora da Companhia Nacional. Figura 64 – Dinis da Mota, segundo os traços de Rafael Bordalo Pinheiro377
Ainda em 1887, Dinis da Mota foi nomeado chefe de exploração do caminhode-ferro do Tua, um cargo que acumulou com o de engenheiro-chefe da construção 376
O Brigantino, 18.11.1886, n.º 4: 3.
377
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 324.
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do ramal de Viseu. Em 1889, voltou à Alemanha para novamente adquirir material circulante, desta feita para a exploração do ramal de Viseu. Nesta viagem, aproveitou para visitar a exposição universal de Paris, organizada entre 6 de Março e 31 de Outubro daquele ano, e durante a qual foi inaugurada a torre Eiffel. Dinis Moreira da Mota recorreu uma vez mais aos serviços da fábrica de Estugarda a quem encomendara as primeiras locomotivas da Companhia Nacional, onde deixou uma imagem extremamente positiva. A sua perícia técnica levou a Maschinenfabrik de Kessler a escrever uma carta à direcção da Companhia Nacional, recomendando que a montagem e experimentação das máquinas fossem feitas em Portugal, nas oficinas da companhia, sob direcção do engenheiro português. Durante este período, Dinis da Mota desenvolveu uma intensa actividade profissional e aprofundou a sua experiência. Acumulou as suas funções na Companhia Nacional com outra na Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses – a de construir as estações e apeadeiros na secção entre Abrantes e Covilhã da linha da Beira Baixa. O engenheiro desempenhou esta função até Setembro de 1891, tendo depois assumido o cargo de director da construção em Alpedrinha (Fundão). Esta empreitada constituiu também um grande desafio para a engenharia da época, sobretudo pelo elevado número de túneis e pontes que exigiu. Terminada esta comissão, regressou ao serviço do ministério das obras públicas em Lisboa, onde passou a viver. Ainda ponderou avançar para uma posição de professorado no curso de engenharia da escola do exército, mas este seria um projecto que nunca concretizaria. Regressaria à sua terra natal, a ilha de São Miguel, em Julho de 1892. Esta decisão foi motivada por um conjunto de factores a nível pessoal e conjuntural. A nível profissional, o seu novo emprego no ministério não se coadunava com o seu espírito empreendedor; em termos familiares, perdera no curto espaço de tempo que mediou Janeiro e Abril de 1892 o seu filho, o seu irmão e o seu pai; o seu casamento passava também por um período turbulento, em virtude da sua carreira profissional que absorvera maior parte do seu tempo; a situação política e económica do país (bancarrota, quebra generalizada de várias companhias, ultimato inglês, revolta republicana no Porto) pode também ter pesado na decisão do engenheiro de deixar o continente e regressar à sua ilha natal. Nos Açores, Dinis da Mota dividiu a sua actividade entre a engenharia, a agricultura – uma das suas paixões – e a política. Como agricultor, montou uma pequena exploração agrícola em Lagoa, onde se dedicava não só ao cultivo de vinha, mas também à pecuária, entre outras actividades. Nesta actividade, procurou munir-se de melhores conhecimentos, contactando lavradores com mais experiência e constituindo uma notável biblioteca agrícola, inclusive com livros encomendados do estrangeiro. Como resultado do estabelecimento dessa rede de contactos com outros agricultores e do conhecimento que adquiria através de bibliografia estrangeira, conheceu António de
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Andrade Albuquerque Bettencourt, com o qual (e juntamente com outros agricultores) formou o primeiro sindicato agrícola português: o sindicato agrícola de Lagoa. Esta foi uma das questões que Dinis Moreira da Mota também defendeu enquanto deputado às cortes, para as quais foi eleito em Outubro de 1892 nas listas do partido regenerador. Em Julho de 1893, apresentou, juntamente com António Barjona Almeida de Freitas (o fundador do primeiro sindicato agrícola no continente), um projecto de lei para regulamentar e estimular a formação de sindicatos agrícolas. A sua proposta mereceu o apoio do governo, mas não seria aprovada, pois o parlamento seria dissolvido entretanto. Dinis da Mota foi também um propugnador da autonomia açoriana em Lisboa, agindo em aliança com o seu irmão Aristides Moreira da Mota. Em 1892, apresentou uma proposta de lei sobre a autonomia dos Açores preparada pela comissão autónoma do distrito de Ponta Delgada, liderada pelo seu próprio irmão. Uma vez mais, este diploma não seria aprovado, por causa da dissolução do parlamento, todavia viria a dar origem ao decreto de 2 de Março de 1895 que deu início ao primeiro período de autonomia do arquipélago dos Açores. Além disto, o engenheiro ilhéu enquanto deputado defendeu os interesses do seu círculo eleitoral em muitas outras questões: produção e taxação de álcool, rotas marítimas entre os arquipélagos e o continente ou o estabelecimento de um cabo telegráfico submarino. Como engenheiro, Dinis da Mota começou por ser inspector da quinta circunscrição industrial em Ponta Delgada, cargo que manteve até 1894, quando passou para a direcção de obras públicas daquele distrito. Três anos depois, era nomeado adjunto do engenheiro director das obras do porto artificial de Ponta Delgada, José Maria Cordeiro de Sousa. Figura 65 – Aspectos dos trabalhos no porto de Ponta Delgada378
378
CORDEIRO, 2012: 290.
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As obras deste embarcadouro haviam começado na década de 1860 e tinham sido aparentemente terminadas em 1894, tendo sido consideradas as mais complexas alguma vez feitas num porto português. No entanto, um conjunto de violentas tempestades ocorrido naquele ano acabaria por destruir uma grande parte do trabalho, que teve naturalmente que ser recomeçado. Esta foi a primeira grande obra empreendida por Dinis da Mota nos Açores, uma empreitada cuja conclusão era de vital importância para a vida económica do arquipélago, uma vez que este não possuía qualquer porto natural. O técnico introduziu mudanças nos planos de (re)construção do porto, que mereceram relutância por parte dos seus colegas engenheiros. Apesar disto, estes planos seriam adoptados a partir de 1901 e de facto venceriam as dificuldades colocadas pela violência do mar e pelas condições climáticas específicas dos Açores. Muito embora as obras só tenham sido verdadeiramente terminadas em 1942, o contributo de Dinis Moreira da Mota para que o porto de Ponta Delgada fosse uma realidade foi determinante. Figura 66 – Extracção de pedra na pedreira de Santa Clara para a construção do quebra-mar379
No mesmo ano em que começou a trabalhar no porto, 1897, Dinis da Mota apresentou um projecto para a construção de um caminho-de-ferro em São Miguel, entre Ponta Delgada, Ribeira Grande, Povoação, Vila Franca do Campo e Lagoa. Para levar a cabo o plano, foi constituída uma comissão promotora do caminho-de-ferro, na qual se incluíam várias personalidades insulares. Entre elas figurava o engenheiro. Esta comissão realizou estudos, cujas conclusões obviamente eram favoráveis à concretização do projecto. O caminho-de-ferro apresentaria maiores dificuldades no 379
CORDEIRO, 2012: 292.
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seu traçado até Ribeira Grande por atravessar regiões montanhosas. Para a ultrapassagem destes obstáculos a experiência de Dinis da Mota no Tua seria decerto muito valiosa. Em 26 de Julho de 1899 o governo autorizou a abertura de concurso para a construção do caminho-de-ferro, mas devido à falta de fundos para organizar uma companhia a construção nunca avançou. Figura 67 – O caminho-de-ferro na Revista Michaelense380
Além destas obras Dinis Moreira da Mota encetou diversas reparações e melhoramentos nas pequenas docas de pesca micaelense; construiu estradas; estabeleceu o primeiro sismógrafo do arquipélago; e reconstruiu o corpo da biblioteca de Ponta Delgada. Nestas obras, revelou sempre um pioneiro sentido de estética paisagística, procurando embelezar os terrenos eventualmente destruídos durante a construção. Foi o caso das pedreiras que forneceram as pedras para o porto, nas quais foram plantadas várias árvores que viriam a dar origem ao parque Dinis Moreira da Mota, entretanto destruído pelas obras do aeroporto de São Miguel. A nível sociocultural, este engenheiro desenvolveu também uma importante actividade, fundando instituições de caridade e promovendo a realização de exposições de artes e indústrias. Foi também professor de ciências no liceu de Ponta Delgada. 380
CORDEIRO, 2012: 296.
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Figura 68 – Dinis Moreira da Mota, c. 1912381
Até à sua morte, desempenhou ainda os cargos de director de obras públicas (desde 1910) e de presidente da câmara de Ponta Delgada (até 1914). Seria no exercício destas funções que viria a morrer em 1914 de uma angina de peito. O seu legado ficaria contudo perpetuado no vale do Tua e na ilha de São Miguel382.
381
CORDEIRO, 2012: 298.
382
CORDEIRO, 2012.
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2.7. A INAUGURAÇÃO383 José Manuel Lopes Cordeiro384 Hugo Silveira Pereira385 Depois de um complicado processo burocrático e de uma construção extraordinariamente difícil, a linha do Tua podia ser finalmente inaugurada e os comboios podiam por fim trazer o progresso e a civilização até ao coração da província transmontana. Os exames preliminares à obra tinham sido feitos entre os dias 22 e 25 de Setembro de 1887. Embora muitas obras ainda estivessem por acabar, a comissão fiscal responsável pela vistoria à linha autorizava a sua abertura provisória ao tráfego de passageiros386. Em todo o caso, a ocasião era de festa e deveria ser celebrada ao mais alto nível, muito embora se tratasse da abertura de uma linha relativamente pouco importante no panorama ferroviário nacional. Na verdade, o próprio rei D. Luís e sua família (rainha D. Maria Pia, príncipe real D. Carlos e infante D. Afonso) deslocaram-se ao extremo nordeste do reino para assistir e apadrinhar o evento e ao mesmo tempo visitar e saudar os seus súbditos do norte do país. Era a primeira vez em muitos anos que o monarca visitava uma das províncias mais pobres e subdesenvolvidas do país, pelo que só a expedição régia era já motivo para celebrar. Além disto, inaugurava-se um caminho-de-ferro, o mais avançado 383
Este texto é baseado no texto dos autores sobre o mesmo assunto publicado no terceiro volume de actas do workshop Railroads in Historical Context: construction, costs and consequences. CORDEIRO & PEREIRA, 2014.
384
Centro de Investigação em Ciências Sociais (Universidade do Minho).
385
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
386
O Seculo, 1.9.1887: 1. PEREIRA, 2012b: XXXIV
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meio de comunicação da época, que prometia enriquecer regiões pobres como Trás -os-Montes, e – no caso da linha do Tua – cujo arrojo da construção estimulava a curiosidade nacional: se a visita real constituía por si só uma razão para comemorar, o destaque ia completamente para a festa da inauguração do caminho-de-ferro do Tua: “entre todos os festejos que constituem o programa que está subordinado à visita da família real ao norte do país, o que mais prendia a atenção de todos (…) era sem dúvida «a inauguração do caminho de ferro de Foz-Tua a Mirandela» (…). A curiosidade de todos estava incitada por quanto se tem dito já a respeito do arrojo de tal empreendimento”387. Em todo o caso, “A presença da família real portuguesa veio (…) dar àquela festa de progresso novas e brilhantes cintilações, ruidosos e entusiásticos sinais de alegria”388 Figura 69 – Pormenor do quadro O Rei D. Luís e a Rainha D. Maria Pia visitando o Porto de Leonel Marques Pereira (palácio nacional da Ajuda)389
387
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
388
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1.
389
RAMOS, 1994: 95.
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Quer a visita do rei, quer a inauguração do caminho-de-ferro foram aproveitados politicamente pelo regime monárquico. Por esta altura, o republicanismo medrava. Em 1878, o Porto havia elegido pela primeira vez um deputado daquela facção política – Rodrigues de Freitas – para o parlamento da monarquia, muito embora para este resultado muito tenha contribuído o partido progressista ao não apresentar nenhum candidato na Invicta. No início da década de 1880 a ameaça fortalecera-se. Aproveitando as polémicas com o tratado luso-britânico de Lourenço Marques ratificado pelos progressistas e os contratos de obras públicas assinados entre os regeneradores e sindicatos financeiros, financiados através do crédito e dos aumentos de impostos, o partido republicano consolidava-se e a sua imprensa tornava-se mais acutilante. Em resposta, a monarquia revia a sua política de tolerância e tomava medidas repressivas contra os hereges e a revolução390. Simultaneamente, procurava popularizar a figura do rei junto dos seus súbditos, pondo-o circular pelas províncias nacionais no sentido de contrariar a propaganda republicana. Uma das melhores formas de atingir este objectivo era tirando partido das inaugurações de caminhos-de-ferro que na década de 1880 se sucederam, designadamente da linha da Beira Alta (1882) e da linha do Tua. Contudo, e ao contrário do que aconteceu com a primeira daquelas linhas, não se notou um aproveitamento partidário do evento. Em 1882, a abertura do caminho-deferro da Beira Alta motivou ásperos ataques entre republicanos e monárquicos e mesmo entre os próprios partidos fiéis ao regime (progressista e regenerador)391. Cinco anos depois, a festa no Tua não serviu de pretexto para a troca de invectivas entre os protagonistas do regime. Tal como acontecera anos antes, durante a sua discussão no parlamento, a linha do Tua gerou algum consenso, ou pelo menos ausência de combate, entre os militantes dos partidos monárquicos rivais. Os jornais da época acabam por reflectir esta situação. A maior parte deles descreve a inauguração em tons de tal forma frenéticos que o investigador actual suspeita até que ponto essas descrições não são exageradas e não tinham como objectivo convencer os leitores coevos de que não havia oposição ou descontentamento face à monarquia. O Século era o único que dava a entender que isto não correspondia bem à verdade: que o rei não era assim tão querido entre a população e que não nutria também profundos sentimentos pelos seus súbditos – “ao que vemos, eles [os Braganças] nem aproveitam as boas ocasiões para sorrir ao povo” –, que o povo dava muito mais importância à inauguração que ao monarca, enfim que os restantes jornais – “patético[s] na bajulice”392 – noticiavam acontecimentos que não tinham acontecido: “«mais um dia de júbilo para o 390
TORGAL & ROQUE, 1993: 137-141.
391
PEREIRA, 2012c.
392
O Século, 30.9.1887: 1.
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honrado e bondoso povo português, que vê na família real penhor da independência e da liberdade pública». Penhor lembra casa de penhores. E a liberdade e a independência estão bem empenhadas na casa de penhores da ajuda”. Mais: os festejos estavam longe de ser espontâneos, tendo sido induzidos pelo governo: “Oh! Entusiasmo! Oh! Delírio! Como ambos brotais espontâneos dos peitos dos portugueses! O sr. Presidente do conselho concedeu feriado em todas as repartições da alfândega, para que os empregados possam ir à recepção do paço. Espontâneo! Espontâneo! Espontâneo!”393. Em todo o caso, da comparação entre as notícias de alguns jornais da época, podemos ter uma razoavelmente acertada visão daquilo que foi a inauguração da linha do Tua no dia 29 de Setembro de 1887. Como seria de esperar, o acontecimento não passou despercebido à imprensa nacional e pelo menos a um jornal estrangeiro, o Figaro, representado pelo visconde de Claverie. Muitos dos jornais nacionais enviaram os seus correspondentes a Trás-os-Montes para cobrir os eventos (a visita do rei e a inauguração do caminho-de-ferro do Tua). Outros periódicos preferiram confiar no que estes correspondentes enviavam para as suas redacções e limitaram-se a transcrever o que era publicado nos demais jornais. Assim, o Jornal do Comercio enviou Higino de Mendonça; do Correio da Manhã vieram Jaime Vítor e Augusto Lobato; representando o Diario de Noticias estava Baptista Borges; pelo Diario Popular, Eduardo Schwalback; pel’O Seculo, Alves Correia; João Chagas do Primeiro de Janeiro; Acácio Pereira d’O Comercio do Porto; o Economista confiara a cobertura do acontecimento a António Castilho; o Jornal da Noite à dupla Marques da Costa e Ortigão Sampaio; pelo Época, Pinto Coelho; pelo Ilustrado, Luís da Costa; Sárrea Prado do Nação; Lapa Valente do Correio Portuguez; o seu colega Borges de Avelar escrevia para o Comercio Portuguez; para o Folha Nova escrevia Ricardo Costa; José Abranches era o correspondente do Notícias da Noite; Fontoura de Carvalho, do Novidades; e Francisco Carrelhas do Actualidade; a Revolução de Setembro e o Jornal do Porto estavam também representados, mas não foi possível determinar os nomes dos correspondentes; por fim, destaque também para Mendonça e Costa, da Gazeta dos Caminhos de Ferro e para o ilustre desenhista português Bordalo Pinheiro que escrevia e desenhava para o Pontos nos ii394.
393
O Seculo, 1.10.1887: 1.
394
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
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Figura 70 – Rafael Bordalo Pinheiro395
Aliás, é graças a Bordalo Pinheiro que hoje dispomos de algumas descrições pictóricas dos festejos e da envolvência dos mesmos. Não se conhecem quaisquer fotografias tiradas na ocasião. Os únicos registos que possuímos são os desenhos saídos do punho de Bordalo Pinheiro e publicados no Pontos nos ii. A prosa deste periódico deixou também uma descrição das horas passadas pelo rei em viagem e em Mirandela. Contudo, os textos de Bordalo Pinheiro eram normalmente carregados de muita ironia e sarcasmo, pelo que para os detalhes do evento recorreremos a outros 395
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/5856.
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periódicos, designadamente O Comércio do Porto, o Correio da Manhã, o Diário Ilustrado, o Diário Popular, o Jornal do Comércio e O Século. A jornada do rei começou quatro dias antes da festa da inauguração, no dia 25 de Setembro de 1887. D. Luís e o seu séquito tinham à sua frente uma viagem de mais de 500 km entre a capital Lisboa e o vale do Tua, o que era algo que dificilmente poderia ser feito num só dia. Na década de 1880 já era possível ir de Lisboa ao Porto e voltar (uma distância de pouco mais de 600 km) em menos de 16 horas, no entanto, não nos esqueçamos de que estamos a falar do rei, sua família e sua corte, de que esta era uma jornada festiva e de que o rei pretendia aproveitar a inauguração da linha do Tua para visitar os seus súbditos do norte do reino. A viagem não podia nem devia ser apressada. Assim, o rei embarcou no comboio em Lisboa na estação de Santa Apolónia e tomou a direcção norte por volta das 8h00 do dia 25 de Setembro. As estações da linha do norte decoraram-se para a ocasião. Os influentes locais faziam fila para ver e cumprimentar o soberano e a sua família. Em Coimbra, o rei foi saudado pelos professores da universidade. O resto do povo reunia-se nas gares e nos átrios das estações para ver o rei e sua esposa, o anjo da caridade, expressão pela qual ficou conhecida D. Maria Pia. “Algumas mulheres ajoelhavam-se. O príncipe da Beira, a uma janela da carruagem, ria e batia palminhas”396. A família real chegou à estação de Campanhã, no Porto, oito horas depois para pernoitar na cidade. A viagem fora longa, pelo que os jornais elogiavam o rei pelo “árduo sacrifício (…) de fazer uma viagem tão fatigante como a que ontem realizou” e também pelo seu “muito desejo de tomar parte nas festas de progresso”397. A alta sociedade da Invicta esperava o comboio régio. As ruas da cidade estavam brilhantemente iluminadas, assim como o edifício da câmara municipal398. Como já foi referido, o rei aproveitou o ensejo proporcionado pela inauguração da linha do Tua para visitar os povos do norte. Na manhã do dia 26, embarcou novamente no comboio em Campanhã em direcção à província do Minho. Uma vez mais, as elites sociais do Porto esperaram o rei e desejaram-lhe uma agradável viagem. Algumas horas depois o rei desembarcava em Braga, cidade que se engalanou para receber o monarca. Os jornais destacavam sobretudo as iluminações do Bom Jesus, para onde tinham ido “mais de 20.000 copinhos de várias cores”399. A 29 de Setembro, os viajantes estavam novamente no Porto. Na madrugada desse dia, sob chuva ligeira, estavam novamente em Campanhã, onde os esperavam dois comboios. O primeiro, com os convidados da Companhia Nacional, partiu as 4:30; o 396
Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1.
397
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1.
398
Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1.
399
Diario Popular, 25.9.1887, n.° 7357: 1. Diario Popular, 26.9.1887, n.° 7358: 1.
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segundo, conduzido pelo maquinista Nicolau Tolentino400 e transportando D. Luís e seus convidados (onde se incluíam, por especial favor do rei, os jornalistas), deixou Campanhã pelas 5:30 da manhã401. Acompanhando o monarca, encontramos também parte da elite sociopolítica do país: o presidente do conselho, Luciano de Castro, e o ministro das obras públicas, Emídio Navarro; os condes de Ficalho, Tarouca e Moçâmedes; os viscondes de Moreira de Rei, Vilarinho de S. Romão e Trindade; os engenheiros Francisco de Almeida, João Joaquim de Matos, Luciano Simões de Carvalho e Justino Teixeira; os parlamentares Eduardo José Coelho e João Lobo Santiago Gouveia; os convivas Oliveira Martins, Duval Teles, Benjamim Pinto, Albino Montenegro, José Borges de Faria, Malaquias de Lemos, Alberto de Oliveira, Sá Vargas, Simões Ferreira, Abreu Nunes, João Diogo de Barros, Casimiro Mena, António de Albuquerque, José Celestino de Paula e Mello, Almeida e Brito, Pereira Moitas, Leal de Faria, Luís da Terra Viana, Carlos de Moser, João Pinto Bartol e Ricardo Pinto Bartol, entre outros402. Figura 71 – Alguns convidados em Campanhã, segundo Rafael Bordalo Pinheiro403
Figura 72 – Detalhes da carruagem da imprensa, segundo o mesmo artista404
400
Diario Popular, 2.10.1887, n.º 7364: 1.
401
Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 25.9.1887, n.° 7357: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
402
Correio da Manhã, 30.9.1887: 1. O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
403
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 323.
404
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 323.
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O comboio real passou por Valongo (5:50), Paredes (6:20), Penafiel (6:30), Marco de Canaveses (7:20), Mosteirô (7:35), Ermida (7:45), Rede (8:00), Régua (8:20), Covelinhas (8:45) e Pinhão (9:00), antes de parar em Foz-Tua pelas 9:45, mais de quarto horas depois da partida no Porto. Nas estações em que a composição parou, o rei era invariavelmente cumprimentado pelo presidente da câmara local e pelas restantes autoridades civis e militares, ao mesmo tempo que era brindado com o som de música e de foguetes405, como Bordalo bem descreve num dos seus desenhos. Figura 73 – Um presidente de câmara dirige-se ao rei durante uma paragem406
A maioria daquelas estações estava decorada com bandeiras e flores e magotes de gente acotovelavam-se para assistir à mera passagem do comboio. De acordo com O Século, algumas daquelas gares estavam completamente desertas407. Em Foz-Tua, a estação estava decorada com bandeiras, tapetes e até com um troféu feito com as ferramentas que os operários haviam usado na construção da linha. Muitas pessoas aguardavam a chegada do monarca, tanto na gare como em barcos no rio. A família real foi recebida pelo bispo de Bragança, José Alves de Mariz, e pelas autoridades locais. O presidente da câmara de Carrazeda de Ansiães leu um discurso em homenagem ao rei, o qual foi seguido de foguetes e de peças musicais, como era costume nas festividades portuguesas. Dentro de um elegante pavilhão erigido para a ocasião e coberto de tecidos azuis e brancos (as cores da monarquia nacional e da casa reinante de Bragança), foi montado um dossel, onde a família real recebeu os 405
Correio da Manhã, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1. O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1..
406
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 323.
407
O Seculo, 1.9.1887: 1.
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cumprimentos das sumidades presentes na cerimónia. No entanto, uma pessoa conseguiu quebrar a regra protocolar deste momento: “uma pobre mulher velha, esfarrapada, conseguiu chegar até junto de S.M. a rainha, aos pés da qual ajoelhou. Depois, erguendo-se a pedido da soberana, disse que era viúva inválida, e que seu único filho tinha ido para soldado, ficando desamparada. S. M. a rainha deu-lhe uma esmola de 2 libras e S.M. el-rei igual quantia”408. Figura 74 – Gravuras de um músico e de pessoas esperando o rei... para lhe pedir dinheiro, de acordo com Bordalo Pinheiro409
Depois de esta recepção calorosa, os convivas tomaram outro comboio na direcção norte até Mirandela, onde a grande cerimónia de inauguração se deveria realizar. Era um dia ventoso, mas solarengo, o que permitiu aos viajantes apreciar a fantástica paisagem proporcionada pelo vale do Tua. O comboio real deixou a estação às 10:20, sendo celebrado em cada estação da nova linha do Tua, embora não tenha parado para retribuir todos os cumprimentos. Na estação de Brunheda, mais de mil pessoas esperavam o comboio, de acordo com a contabilidade do Diario Popular. Muitos dos espectadores tentaram chegar, tocar e beijar as mãos do casal régio. A rainha viu-se mesmo em dificuldades para não ser levada da sua carruagem. O Jornal do Comercio refere outro episódio pitoresco: uma mulher “voltando-se para el-rei fez lhe a seguinte pergunta, apontando para o príncipe D. Carlos: Oh! senhor, senhor, este que é o seu filho? El-rei respondeu-Ihe afirmativamente e indicou à mulher o infante D. Afonso como seu segundo filho; a mulher retorquiu então: «São duas perfeições, Deus os conserve.»”410. O Século tinha uma versão diferente dos factos. Segundo este jornal “Uma mulher do povo gritou: - Viva também o menino! A duquesa de Bragança riuse e replicou-lhe em português: - Mas olhe que ele não vem aqui. - Que pena! - tornou a 408
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1.
409
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326.
410
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1-2.
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mulher, mas é o mesmo: viva o menino!”411. A cena d’O Século pode mostrar alguma simplicidade e ingenuidade das gentes de Trás-os-Montes, mas não consegue esconder que havia ainda de facto uma grande admiração pela família real. Ainda em Brunheda, “foi mostrado a el-rei um curioso tipo humano. É nada mais nada menos que um exemplar antropológico, que se pode considerar intermediário entre homem e macaco. Chama-se Domingos Cathrino; é pobre, vive de esmolas e ignora a idade que tem. É baixo, pouco mais alto que um chimpanzé. E ele é-o a valer. El-rei examinou com ávido interesse este homem, digno de ser objeto de estudos de um antropologista”412. Em Codeçais, nova paragem por volta das 11:05. Esta pausa não estava prevista no programa e foi imposta pelos habitantes da região. Um homem chamado Belchior Joaquim Azevedo, “abusando com a mais extraordinária sem cerimónia da paciência de el-rei”413, subiu a uma plataforma e leu uma petição dos povos de Codeçais e Pereiros, pedindo que sua majestade influenciasse a companhia concessionária para construir uma estação naquele lugar. O homem garantia que tal melhoramento beneficiaria em muito o comércio e a indústria local, uma afirmação curiosa tendo em conta que a maior parte da população local vivia da agricultura. Recitou depois dois poemas ao rei. As versões deste poema divergem de jornal para jornal, no entanto uma das quadras declamava-se assim: “Uma coisa o contrista, ó monarca Uma coisa lhe incute aflição É não ter neste sítio ridente O conforto d’alguma estação!” O talento do poeta foi de seguida festejado entusiasticamente pelos seus conterrâneos. O enviado do Jornal do Comercio não partilhava deste entusiasmo e arengava: “oh! infeliz poeta Belchior, se o rei teve paciência para te ouvir, eu é que não posso deixar de me vingar da maçada que indiretamente me deste”414.
411
O Século, 30.9.1887: 1.
412
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1-2.
413
Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1-2.
414
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 30.9.1887: 1; 2.10.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
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Figura 75 – Belchior Azevedo lendo o seu poema ao rei415
O comboio régio continuou a sua jornada pouco passava das 11:30. Parou em Abreiro e por volta das 12:10 chegava a Vilarinho. Às 12:50, o rei chegava finalmente a Mirandela, estação terminal da linha do Tua e onde a grande festa de inauguração iria ter lugar416. Na cidade, o soberano e os seus convidados foram recebidos ao som do hino real, de foguetes e de bombos por milhares de pessoas de Mirandela e das povoações vizinhas. Os reis foram depois saudados pelas autoridades locais, designadamente pelos presidentes das vereações de Vila Flor e Mirandela. A decoração da estação de Mirandela (desenhada por um tal José Moreira de Matos) era extraordinária, pelo menos para os conceitos da época: tecidos coloridos pendiam das janelas; bandeiras, galhardetes e coroas de flores estavam colocados um pouco por todo o lado. O vestuário da rainha condizia: quando chegou, usava um casaco de veludo negro que depois trocou por um vestido de caxemira cor de mel. No local foi montado um elegante pavilhão, pintado por Manini e decorado pelo arquitecto Marques da Silva. Ainda na estação foi erigido um altar, para que o bispo de Bragança pudesse abençoar duas locomotivas da Companhia Nacional: a máquina n.º 1, chamada de Traz os Montes, e a n.º 2, Bragança417. Figura 76 – Uma locomotiva preparando-se para a bênção418
415
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326.
416
Diario Popular, 30.9.1887: 1.
417
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1; 1.10.1887: 1.
418
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326.
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O povo assistindo na estação e arredores festejou cada momento da cerimónia. As forças militares que acompanhavam a família real em todo o percurso da sua viagem viram-se e desejaram-se para conter o entusiasmo popular e manter a ordem419. Depois da cerimónia de bênção e da celebração de um Te Deum na igreja de Mirandela, um almoço foi oferecido aos convidados. Foi servido num pavilhão decorado pelos já citados Manini e Marques da Silva. O tecto e as paredes estavam decorados com tecidos brancos. No tecto, foram colocados três medalhões hexagonais: o central fora pintado em tons de azul claro e os outros dois emolduravam o escudo de armas da casa de Bragança. Ao longo das paredes foram pendurados vários logotipos da Companhia Nacional. Uma barra de madeira com essa mesma marca percorria também toda a extensão do pavilhão. As portas de entrada estavam decoradas com cortinas e tapeçarias. No fundo do pavilhão, um grande armário expunha peças de prata. À frente do armário, uma mesa semi-circular fora montada. Os seus lugares foram ocupados pela família real, pelos membros do governo, pelas autoridades locais e por alguns membros da imprensa. À frente da mesa, foi colocado um retrato do rei. O almoço contou com entre 200 e 250 convidados, servidos por 40 ou 50 criados vestidos a rigor. Alguns jornais adiantavam o custo desta refeição: 5 contos, uma pequena fortuna para a época420. Figura 77 – O almoço, segundo Bordalo Pinheiro421
419
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
420
Correio da Manhã, 30.9.1887: 1. O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
421
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 327.
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A ementa era extremamente elaborada. Fora preparada pela casa Ferrari de Lisboa, que a preparou numa cozinha de campanha montada in loco propositadamente para este almoço. O menu era o seguinte: Chauds: Consommé printanier à la Royale, Quenelles de volaille au Ponson, Bâtons à l’italienne, Orly de soles à la Choiseul, Filet de bœuf à la diplomate, Blancs de poulardes au suprême. Froids: Escalopes de veau à la St. Petersburg, Galantines de chapons marbrées, Jambon de York à l’aspic, Bordures de homard à la provençale, Chaud-froid de perdreaux à la favorite, Rocher de foie-gras à la gelée. Roti: Dindonneaux truffés à la Périgueux. Entremets: Asperges en branches sauce mousseline, pouding à la Reine, pains de ananas au chartreuse, glaces panachés aux fruits. Grosses pièces: Arbres de nougat aux pistachés, biscuits de Turin à la crème. Pâtisseries divers. Dessert. Vins nationaux et étrangers, café, liqueur422. O rei não pôde estar presente durante todo o almoço, uma vez que as suas funções oficiais exigiram a sua presença na câmara de Mirandela, onde assinou o livro
422
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1.
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de honra423. Foi seguido pelo presidente da câmara da cidade, que, segundo Bordalo Pinheiro, estava num dilema, pois não sabia se havia de acompanhar o monarca ou ficar para trás e apreciar a boa comida dos Ferrari… Figura 78 – O dilema do presidente da câmara de Mirandela424
Já com o rei na câmara, no almoço lançaram-se vários brindes: à Companhia Nacional (a concessionária), à engenharia portuguesa (pela sua audácia e conhecimento), à imprensa nacional e a outras entidades (estes últimos brindes apelidados de aborrecidos pelo repórter do Jornal do Comercio…)425. Entretanto, na vereação, apropriadamente decorada para a situação, o presidente da câmara fez o discurso da praxe, agradecendo ao rei a sua presença na cidade. O procurador-geral tomou também a palavra, perorando sobre as expectativas que se criavam com a abertura do caminho-de-ferro. Findas as celebrações e as cerimónias protocolares, o rei pôs-se a caminho para Lisboa. Às 15:21 o comboio deixava a estação de Mirandela percorrendo novamente as escarpas do vale do Tua até à estação de entroncamento na linha do Douro. Aqui chegou a família real às 17:35, onde um outro comboio os aguardava. Às 19:00 chegavam à Régua onde os convidados jantaram. A refeição foi oferecida pela câmara local e pelo bispo de Lamego. O jantar nada ficava a dever à refeição de Mirandela. Era o seguinte: Menu Commé au riz
423
O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1; 1.10.1887: 1.
424
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 327.
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O Comercio do Porto, 30.9.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
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Froid Petits pâtés aux huitres Filets de bœuf à la demi-glace Langue à 1’écarlate Galantins de volaille aux truffes Mayonnaise de homard Foie-gras à la brillante Dindon farci aux truffes Entremets sucrés Pudding diplomatique Glace à l’ananas à la pyramide Gâteaux montés Biscuits assortis Fruits divers et fromage Vins Bordeaux, Sauterne, Xérès, Porto, Madère, Champagne - Moët et Chandon. Café et liqueurs À sobremesa, “o presidente da câmara levantou este brinde: «A câmara municipal da Régua agradece a Vossa Majestade a honra de visitar esta terra e de presidir a esta festa, que é toda do povo. Viva el-rei e a família de Vossa Majestade». Ao que o soberano respondeu: «Não posso agradecer este brinde de outra maneira senão bebendo aos melhoramentos materiais da província de Trás-os-Montes»”426. Pouco tempo depois, D. Luís, a sua família e os seus convidados deixaram a Régua. Chegaram ao Porto algumas horas depois por volta das 23:30. Durante a viagem de regresso, o rei testemunhou o mesmo entusiasmo que havia sentido da parte da manhã quando percorreu a linha do Douro no sentido inverso427. No final do dia, a inauguração estava feita e pode-se dizer que foi um sucesso e uma enorme festa. Independentemente dos sentimentos que o povo sentia ou não sentia pelo rei e independentemente das críticas que se faziam ou não faziam ao regime monárquico, a verdade era que no dia 29 de Setembro de 1887 se inaugurava um caminho-de-ferro e isto era só por si uma descomunal razão para as populações 426
Diario Ilustrado, 1.10.1887: 1. Diario Popular, 1.10.1887, n.º 7363: 1; 2.10.1887: 1. Jornal do Comercio, 30.9.1887: 1.
427
Diario Ilustrado, 30.9.1887: 1. Jornal do Comercio, 1.10.1887: 1.
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se sentiram orgulhosas, alegre e sobretudo esperançadas no futuro. No Portugal da década de 1880, um caminho-de-ferro ainda era visto como um fim em si e não como um instrumento para induzir o progresso…
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2.8. AS FOTOS DE EMÍLIO BIEL E OS DESENHOS DE RAFAEL BORDALO PINHEIRO428 Eduardo Beira429 José Manuel Lopes Cordeiro430 Leonel de Castro431 Maria Otília Pereira Lage432 Para celebrar a abertura da linha do Tua, em 1887, a Companhia Nacional editou um álbum de capas vermelhas e em “in-fólio oblongo com frontispício e 23 fotografias” do caminho-de-ferro e da paisagem envolvente433. Trata-se de um dos raros documentos com imagens coevas da linha. Este álbum é pouco conhecido. Existe um exemplar na biblioteca Sarmento Pimentel, em Mirandela (coleção doada por Nuno Cadavez), cuja condição física, porém, não é das melhores. O seu autor foi Emílio Biel. * Carl Emil Biel nasceu em Annaberg, na Alemanha, a 18 de Setembro de 1838. Em 1857, veio para Portugal, como representante da empresa de botões de metal 428
Este texto é baseado nos estudos publicados pelos autores em BEIRA, 2014.
429
IN+ Center for Innovation, Technology and Policy Research (Instituto Superior Técnico).
430
Centro de Investigação em Ciências Sociais (Universidade do Minho).
431
Fotojornalista
432
Centro Interdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
433
CADAVEZ, 1998: 42-43.
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Schalk434, tendo-se estabelecido em Lisboa. Decidido a permanecer em Portugal, terá sido por esta altura que aportuguesou o seu nome para Emílio Biel, pelo qual ficou conhecido. Não permaneceu muito tempo na capital, já que em 1860 se encontrava no Porto, como representante da Schalk. Na Invicta, Emílio Biel decidiu-se a singrar por conta própria. Em 1864, estabeleceu-se como negociante e no ano seguinte fundou uma fábrica de botões na rua do Moreira, n.º 5 (Bonfim). Passados cerca de dois anos a fábrica foi transferida para novas instalações na rua da Alegria, 373435 Figura 79 – Carl Emil Biel436
Simultaneamente, Biel estabeleceu-se como representante de diversas firmas alemãs, desenvolvendo também contactos junto dos meios comerciais da cidade (associação comercial e centro comercial do Porto). Em 1866, estava ligado ao estabelecimento de fotografia de Joachim Friedrich Martin Fritz, a Photographia Fritz, um dos primeiros ateliers fotográficos do Porto, fundado em 1854. A partir de então, Emílio Biel iniciou aquele que foi considerado o mais impor434
HEITLINGER, 2013: 15.
435
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 2.º cartório notarial do Porto, liv. 503, f. 122v, apud. FARIA & CASTELO-BRANCO, 2007.
436
Apud. BEIRA, 2014: 37.
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tante trabalho de levantamento fotográfico do país durante o século XIX. A sua atenção concentrou-se inteiramente na actividade que desenvolvia no estúdio fotográfico. Em 1871, abandonou a fábrica de botões437 e em 1876, juntamente com Fernando Joan Martin Niels Brütt, um alemão de origem dinamarquesa, estabeleceu a sociedade Emílio Biel & C.ª. Inicialmente, a sociedade ocupou as instalações da Photographia Fritz, que Biel havia adquirido (cerca de 1873) na rua do Almada, 122438. Por esta altura (finais de 1879), foi criado o centro artístico portuense, em que participaram, além de Emílio Biel, outros grandes vultos da fotografia, como Aurélio da Paz dos Reis e Carlos Relvas. Em 1880, em virtude do seu talento e do bom relacionamento que mantinha, desde a sua passagem por Lisboa, com o rei consorte D. Fernando, foi-lhe atribuído o título de Photographo da Casa Real. Quatro anos mais tarde, iniciou uma colaboração com a revista Illustração Portugueza. Figura 80 – Emílio Biel, fotógrafo da casa real439
A sua actividade de estúdio granjeou-lhe um enorme prestígio, pela qualidade dos retratos que efectuava. Porém, Emílio Biel dedicou-se também à edição fotográfica com base na técnica da fototipia, a qual terá aprendido com Carlos Relvas, o seu introdutor em Portugal. Tratava-se de um processo de impressão fotomecânica feita por contacto com o negativo fotográfico, que permitia realizar um amplo conjunto 437
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 6.º cartório notarial do Porto, liv. 4363, f. 101.
438
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 2.º cartório notarial do Porto, liv. 518, fs. 41v-43v, apud. FARIA & CASTELO-BRANCO, 2007.
439
Apud. BEIRA, 2014: 39.
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de cópias (até cerca de 500). A sua actuação no domínio da fototipia iniciou-se com a edição crítica d’Os Lusíadas, em 1880, por ocasião das comemorações do tricentenário da morte de Camões. Para este trabalho, nomeadamente para a produção das respectivas ilustrações, Emílio Biel constituiu, em 22 de Maio de 1880, uma sociedade específica440. Emílio Biel devotou ainda o seu tempo à fotografia paisagística e das grandes obras de engenharia que estavam então em curso em Portugal. Em 1876-1877, retratou as diferentes fases da construção da ponte D. Maria Pia, sobre o Douro. Em 1882, com o apoio e influência do engenheiro Cândido Celestino Xavier Cordeiro, inspector de obras públicas e consultor da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, Biel iniciou um importante e pioneiro trabalho de documentação fotográfica das várias fases de construção de obras públicas nacionais. Acompanhou o levantamento da ponte Luís I (1883-1886), a construção do porto de Leixões (188492) e o assentamento das linhas do Minho e Douro, de Salamanca à fronteira de Portugal, do Tua (décadas de 1870 e 1880) e do Vouga (esta última já no século XX). Figura 81 – Túnel da Valeira, fotografado por Emílio Biel441
440
Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 8.º cartório notarial do Porto, liv. 573, f. 5v.
441
Apud. MACEDO, 2009: 365.
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O seu talento foi também reconhecido além-fronteiras. Foi premiado nas exposições internacionais de Filadélfia (1876), Paris (1878) e Rio de Janeiro (1879) e nas exposições de fotografia do Porto (1886), Viena (1888) e Berlim (1888). A década final do século XIX marcou o início de nova etapa na actividade empresarial de Emílio Biel. A 4 de Outubro de 1890 inaugurou as novas instalações da sua companhia no palacete do conde do Bolhão, à rua Formosa n.º 342442. Procedeu ainda a uma divisão das áreas de actividade da empresa, criando duas grandes secções: a Emílio Biel & C.ª – Editores (em sociedade com José Augusto da Cunha Morais, considerado o maior fotógrafo da África portuguesa), consagrada às indústrias gráficas (fotografia, fototipia e litografia); e a secção fotográfica da direcção-geral dos trabalhos geodésicos. Por esta altura, a actividade da sua oficina litográfica e fotográfica encontrava-se em plena ascensão. Empregava 60 operários e chegava a produzir uma média diária de 50 a 80 clichés. Ele próprio passou a colaborar com a revista Branco e Negro (1896-1898). A Emílio Biel & C.ª – Editores, por seu lado, lançou-se num ambicioso projecto de levantamento fotográfico dos principais motivos artísticos, etnográficos e paisagísticos de Portugal continental. A partir de 1900, a revista O Ocidente deu à estampa as primeiras gravuras deste trabalho, que viriam mais tarde a ser agrupadas na obra A Arte e a Natureza em Portugal: album de photografias com descripções, clichés originaes, copias em phototypia, monumentos, obras d’arte, costumes e paisagens. No que respeita à fotografia paisagística, Biel editou obras notáveis, como o Album phototypico de vistas da cidade do Porto (1889), o Album phototypico de vistas e costumes do Norte de Portugal (c. 1900), O Douro: principaes quintas, navegação, culturas, paisagens e costumes (1911), ou a Arte Religiosa em Portugal (1914). Para além de tudo isto, o fotógrafo consagrou-se ainda à edição de bilhetes-postais ilustrados, uma área que vivia então a sua época de ouro em Portugal. Produziu cerca de 500 postais diferentes, dos quais sensivelmente metade registava motivos e paisagens da cidade do Porto. Paralelamente à sua actividade como fotógrafo e editor, Emílio Biel investiu igualmente nas áreas da produção de electricidade e dos transportes urbanos (além de se manter como representante de várias empresas industriais em Portugal). Destaque-se a sua acção na instalação da central hidreléctrica para fornecimento de luz a Vila Real (1894)443, a sua intervenção na construção do caminho-de-ferro americano da ponte Luís I à estação de Gaia444 ou o desempenho do cargo de administrador da 442
O Primeiro de Janeiro, 5.10.1890, n.º 275
443
8 Arquivo Distrital do Porto. Registos notariais. 8.º Cartório notarial do Porto, liv. 677, f. 20v.
444
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto, ofício de 25 de Setembro de 1894; escritura de cessão de direitos, em Março de 1900; contrato de arrendamento entre a Companhia Carris de Ferro do Porto e Emílio Biel, em 19 de Janeiro de 1901; escritura de cedência de direitos de Emílio Biel a
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empresa Águas do Gerês. O empresário interessou-se também pela aplicação dos raios X em medicina, por entomologia, pela cinematografia ou pelo automobilismo (foi dele o primeiro carro a circular no Porto). Emílio Biel faleceu a 14 de Setembro de 1915. Em Março do ano seguinte, com a declaração de guerra entre Portugal e a Alemanha, o estado português decretou providências relativamente às pessoas e bens dos súbditos inimigos residentes em Portugal. Os bens de Emílio Biel, então na posse dos seus herdeiros, foram confiscados e vendidos em hasta pública. O seu espólio foi dividido por várias entidades, contudo foi possível salvaguardar uma pequena parte, que se encontra actualmente no arquivo histórico municipal do Porto e no centro português de fotografia. * Nas fotografias que registou, Biel combinou a promoção do progresso oitocentista com uma indelével admiração pela natureza. Biel gosta de sublinhar a grandeza dos acidentes naturais e da acção do homem ao explorá-la. Nos dois casos, é o conceito de sublime kantiano que parece orientá-lo. A fotografia de Biel surge, na sua característica mais marcante, como representativa do século de Prometeu, o demiurgo grego que roubou o fogo aos deuses para o ceder ao homem, iniciando o progresso da civilização. É uma homenagem aos grandes empresários e engenheiros da revolução industrial, figuras carismáticas e virtuosas desse progresso técnico de que o caminho-de-ferro é um dos símbolos mais marcantes. Nas 23 fototipias de Emílio Biel sobre a construção do primeiro troço da linha do Tua (Foz-Tua a Mirandela), o autor oferece-nos composições impressionantes e uma abordagem fotográfica inovadora, com imagens que revelam um domínio técnico (captação e laboratório a avaliar pela riqueza tonal) e enquadramentos já de carácter cinematográfico. A panorâmica ajuda a traduzir toda a beleza rude e inóspita do vale e do leito do rio cavado pela força da natureza, ambos depois sujeitos à intervenção do homem. Os planos são bastante ricos pela informação que oferecem ao leitor, dentro da perspetiva do olhar de Deus, permitindo revelar os locais de maior dificuldade da obra.
Clemente Joaquim da Fonseca Guimarães Meneres, em 19 de Janeiro de 1901. Registos notariais. 6.º cartório notarial do Porto, liv. 4421, f. 49; 7.º cartório notarial do Porto, liv. 765, f. 37v.
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Figura 82 – Comboio saindo do túnel das Presas445
Nas composições em análise, verificamos sempre uma relação entre a natureza e a técnica. Os ideais do fontismo, a expansão do progresso técnico estão bem vincados nas 23 imagens que o autor nos apresenta: no ferro usado nas pontes e viadutos; nos túneis que atravessam montanhas; nas estações da linha; e, claro, no grande símbolo da revolução industrial, a locomotiva a vapor, que contracena com o leito do rio e toda a vegetação circundante. Nos primórdios da fotografia, toda a técnica necessária para obter uma imagem, desde os equipamentos de captação aos processos de revelação, não era propriamente simples. Tudo era bastante dispendioso e complexo e havia necessidade de um grande poder de síntese na preparação das tomadas de vista. A quantidade de imagens produzidas era pequena, daí termos apenas 23 fotografias, embora acreditemos que mais tenham sido excluídas da edição. 445
Apud. BEIRA, 2014: 13.
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A narrativa construída pelo autor dá-nos a ilusão de estarmos a acompanhar uma viagem de comboio pelo caminho-de-ferro do Tua. Este comboio conduz o leitor numa visita às obras criadas pelo homem, às penedias destruídas pelos operários entre paisagens naturais recheadas de flora e fauna. Biel foca e enquadra nas paisagens agrestes de montanha ou planas do vale, imbuídas de grande expressividade e beleza estética, personagens masculinas do mundo do trabalho técnico ou rural. Capta o pormenor dos trajes locais e certas posturas, como colocar o casaco por cima do ombro. Quando falamos da presença humana nas fotografias, não falamos apenas de pessoas que por ali passavam ou viviam, mas de trabalhadores da obra ou então operadores que acompanhavam Biel no levantamento fotográfico encomendado. Os figurantes retratados permitem ao fotógrafo, através da linguagem de composição, colocar o ser humano no enquadramento para melhor percepcionar a dimensão da obra e a sua relação com a enormidade das montanhas. Assim se obtém a noção de escala. Por vezes, só um olhar muito atento percebe a presença humana na imagem, assim como o comboio perdido na imensidão das montanhas. Nestas fotografias, é denunciada a quase incongruência do esforço humano para dominar os elementos, sem nunca esquecer a veneração pelo extraordinário da paisagem. Em segundo ou terceiro plano aparecem, também, por vezes, imagens de casas rurais, enquanto, em primeiro plano, as árvores e encostas servem de moldura ou enquadramento estético das fotografias. Ao longo do álbum, todas as fototipias estão identificadas com uma legenda em que podemos ler o local e a referência à obra. Ao contrário dos álbuns Douro Ilustrado (1876) e Caminhos de Ferro no Norte Ilustrado (1878 e 1899), as tomadas de vista não são apresentadas, uma vez que o fotógrafo fez toda a captação das imagens ao longo da via férrea, à excepção da imagem que abre o álbum – a tomada de vista é feita na margem oeste do rio Tua – e da que o encerra – uma panorâmica da cidade de Mirandela. Estas aparentes excepções acentuam o cunho monográfico do álbum. Há composições muito cuidadas, linhas fortes e geometrizantes, picados e contra picados realçando a sinuosidade das escarpas que acompanham o leito do rio. A utilização de planos gerais no enquadramento destas fototipias é constante. O fotógrafo mostra a obra por inteiro, em toda a sua plenitude. Torna-se até interessante pensar sobre o local onde estaria Biel colocado para conseguir obter algumas tomadas de vista, nomeadamente em planos picados. Tudo nos leva a crer que o equipamento e o seu operador estariam suspensos em guindastes, para obterem uma perspetiva vista do céu sobre a terra (estação e caldas de S. Lourenço). Esta observação pressupõe uma reflexão e preparação prévia, pelo que não se trata de um registo mecânico, desprovido de sensibilidade artística. Os padrões oferecidos pela natureza são marcados pela diversidade de flora que brota entre os penhascos. Criam-se sucessivos planos em que se acentua a perspectiva e se aumenta a volumetria entre os elementos apresentados nos quadros ao longo da narrativa.
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Figura 83 – Composição saindo do túnel das Fragas Más446
A profundidade também é marcada em algumas imagens pelos leitos do rio Tua ou pela linha do comboio. Em primeiro plano, temos os carris em paralelo, vão afunilando, criando uma diagonal numa linguagem ocidental, quase sempre da esquerda para a direita. À época, a espontaneidade não era muito vincada, se tivermos em conta que se trata de uma altura em que o equipamento não era fácil de manusear ou transportar, como foi referido anteriormente. As composições valem pela sensibilidade e pelo know-how de Emílio Biel. Apesar de as composições nos parecerem estáticas, o que de alguma forma provoca conforto no leitor, todas elas não deixam de ser bastante ritmadas, graças aos vários elementos distribuídos ao longo da tela nos sucessivos planos, com um formato rectangular e sempre na horizontal447.
446
Apud. BEIRA, 2014.
447
Para tudo isto cf. AMAR, 2001. AUMONT, 1995. BARRETO, 1993. BAURET, 1992. BENJAMIN, 1983. DUBOIS, 1981. FIGUEIREDO, 2000. FREUND, 1974. JOLY, 1994a. JOLY, 1994b. LEDO, 1998. MEDEIROS, 2008. ROSEIRA, 1992. ROUILLÉ, 2009. SENA, 1998a. SENA, 1998b. SERÉN, 2002. SERÉN, 2008. SERÉN, 2009. SIZA, 1995. SONTAG, 1981. SOUSA, 1994.
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* Pela mesma altura em que a Companhia Nacional editava o álbum com as fotografias de Emílio Biel sobre a construção da linha do Tua, eram também publicadas no jornal Pontos nos ii alguns desenhos, da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro, sobre a inauguração daquele caminho-de-ferro. Algumas destas gravuras mostram grandes semelhanças com algumas das fotos de Biel, o que sugere que estas serviram de inspiração ao caricaturista português. Emílio Biel e Rafael Bordalo Pinheiro tiveram percursos pessoais e sociais diferentes. Os contextos das suas produções, as condicionantes de representação, as técnicas utilizadas, a sensibilidade artística, a cultura, tendências e leituras iconográficas foram também díspares e influenciaram de diferentes formas os registos valorativos dos seus trabalhos. No entanto, ambos os artistas têm também características comuns, que os aproximam em vertentes de rigor e apreço da técnica, forte sentido de empreendedorismo industrial, intensa actividade ligada à edição e ambivalência social enquanto patrões e operários de um certo modo de capitalismo industrial em Portugal. No caso particular de Bordalo Pinheiro, a sua visão progressista, espírito aberto e participação activa da então moderna civilização, dominada pela imagem tecnológica, concorreu para a implosão de cânones estéticos, sociais e comportamentais antigos. “Rafael Bordalo Pinheiro deve ser considerado um dos primeiros e mais radicais artistas modernos portugueses (…). Artista por temperamento que, na juventude auto-didacta, abordou a pintura e o teatro, ele optaria por uma prática cultural particularmente moderna: o jornalismo e, no seu vasto espectro, o jornalismo ilustrado em que o texto é apenas uma das componentes da mensagem, mais imediatamente proposta e apreendida através da ilustração que, nos jornais de Bordalo, foi sempre humorística e caricatural”448. Numa altura em que os jornais e revistas cresciam exponencialmente, Bordalo Pinheiro foi determinante na história do jornalismo nacional. No último quartel do século XIX, a ilustração – principalmente o retrato – invadiu a imprensa, por intermédio de artistas como Rafael Bordalo Pinheiro, que iniciara, ainda jovem, o gosto e o estudo do desenho e das artes em geral. Pioneiro da banda desenhada em Portugal e seu mentor também no Brasil, destacou-se a nível mundial449 como mestre da caricatura e da sátira social e política. Dedicou-se à criação de cartoons em jornais e revistas nacionais e estrangeiras (El Mundo Comico, Ilustración Espanõla y Americana, Ilustrated London News, El Bazar, O Mosquito, O Psit e O Besouro). Em Portugal, 448
SILVA, 2007. Ver também sobre FRANÇA, 1980. COTRIM, 2005.
449
PINHEIRO, 1996.
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fundou também alguns periódicos pautados por uma grande liberdade intelectual e de crítica descomprometida ao poder (A Parodia, O Antonio Maria, A Lanterna Magica, Pontos nos ii, além de outros de existência efémera). “Rafael Bordalo Pinheiro, conhecido de todos os portugueses por ser o criador do ‘Zé Povinho’, foi um caricaturista exímio, com um tipo de traço que o distinguiu de todos os caricaturistas nacionais e internacionais”450. No domínio das artes foi membro do Grupo de Leão, associação lisboeta de pintores e artistas dirigida por Silva Porto, em que se envolviam também a literatura, a filosofia, a música e a arquitectura. Artista por vocação, Bordalo Pinheiro, com sua sátira humorística e caricatural de forte empenhamento ético, soube aliar, de modo inovador, arte e técnica, sendo considerado, em seu apego à modernidade, excepção no ambiente pessimista de crítica da sociedade portuguesa protagonizado pelo grupo de intelectuais da Geração de 70 conhecidos, mais tarde, por Vencidos da Vida. A sua reportagem em banda desenhada da inauguração da linha do Tua e o álbum fotográfico de Emílio Biel são dois notáveis exemplares de fotodocumentalismo, então, nos seus primórdios em Portugal. Vão muito para além dos interesses específicos do transporte ferroviário, por toda a informação que encerram ao nível das paisagens, de tipos humanos, obras de engenharia, arquitectura interior decorativa, trajes, objectos e costumes. Ambos os trabalhos, ainda que exemplares de géneros artísticos diferentes, sugerem fortemente um claro e impressivo espirito da época, captado de modo objectivo e crítico, e evidenciam alguma semelhança ao nível de traços formais e estéticos. Reproduzem imagens diferenciadas da construção e inauguração do caminho-de-ferro, com enorme inventividade técnica e revolucionariamente deslocalizada da arte da academia. A beleza das imagens, os percursos ao longo do rio, pela linha em construção ou já no comboio inaugural, os aspectos históricos e etnográficos, o carácter da região e o impacto causado pela construção ferroviária fazem destas obras dois documentos únicos sobre a história da linha do Tua. Na reportagem em cartoon de Bordalo Pinheiro, começa-se por observar os personagens que se deslocam a par do comboio inaugural da linha do Tua. Percebe-se de imediato os seus semblantes e fisionomias de grande expressividade. O autor revela aqui uma enorme “capacidade de captação ou flagrante, termos que não podiam ser mais contemporâneos e devedores da linguagem fotográfica”451, o que sugere a presença da ideia fotográfica de Emílio Biel nas pessoas caricaturadas e na paisagem retratada, não pela câmara, mas pela mão de Rafael Bordalo Pinheiro, com idêntica verosimilhança e fidelidade ao real. Exemplo evidente dessa semelhança pode obser450
ROCHA, 2011.
451
TAVARES, 2010: 80
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var-se nas figuras seguintes, uma fotografia e uma gravura das encostas abruptas do vale do Tua. Figura 84 – Fotografia e gravura do vale do Tua452
Esta similitude, que sugere que Bordalo Pinheiro teve um conhecimento directo do álbum de Biel, continua nos desenhos do centro da composição alegórica da inauguração, os quais parecem reproduzir uma fotografia do fotógrafo alemão. O mesmo se pode dizer da panorâmica da cidade de Mirandela, se bem que o fotógrafo e o caricaturista a tenham retratado de ângulos ligeiramente diferentes. Em todo o caso, podemo-nos perguntar se se trata de um efeito de época ou de inspiração que o desenho artístico vai buscar à fotografia? Mas no trabalho de Bordalo Pinheiro, onde as imagens se combinam com as palavras, ao contrário do que sucede nas fotografias de Biel, são as figuras humanas de vários tipos sociais, sempre em grupos que surgem em primeiro plano. Na alegoria maior (figura anterior), destacam-se claramente as figuras da equipa de engenheiros da obra. 452
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 326. Apud. BEIRA, 2014: 14.
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Todas as figuras de Bordalo Pinheiro são atravessadas por uma explícita narratividade dos momentos mais simbólicos da efeméride. Os desenhos, de linhas minuciosamente descritivas, espelham bem a os numerosos populares que aderiram às comemorações, a classe profissional ligada à construção da linha e ainda as elites privilegiadas convidadas para a inauguração. Por condensação, Bordalo Pinheiro retratou e caricaturou o conjunto da sociedade da época no seu melhor e no seu pior, como sempre foi seu traço peculiar. Assomam nesta interessantíssima banda desenhada elementos de sátira, riso e liberdade descomprometida com o poder. Contudo, nem por isso o cartoonista deixou de procurar uma representação implícita de reportagem fidedigna. O desenhador é também repórter e tem gosto por ir directamente à fonte, ao acontecimento para divulgar mais um avanço tecnológico em Portugal. Bordalo Pinheiro viveu sempre entre esta pulsão do desenho453, os desafios do jornalismo e da crónica diarística e a curiosidade pela indústria e pela tecnologia. Figura 85 – Fotografia do túnel das Fragas Más, panorâmica de Mirandela e gravura da inauguração454
453
SILVA, 2007: 242.
454
Pontos nos ii, 14.10.1887, n.º 127: 324-325. Apud. BEIRA, 2014: 12 e 34.
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Em suma, tanto as fotos de Biel como as gravuras de Bordalo Pinheiro são documentos valiosíssimos para se reconstruir toda uma memória visual e histórica da linha do Tua e da sua inauguração oficial. São imagens que se estruturaram, no seu conjunto, na utilização da óptica, perspectiva e articulação de sucessivos planos, no uso expressivo da tonalidade claro-escuro e na procura do pormenor, do detalhe e da nitidez. A dimensão criativa enquanto intenção documental e/ou artística encontrase bem presente quer no acto de fotografar de Emílio Biel, quer no acto de desenhar de Rafael Bordalo Pinheiro, duas figuras pioneiras em Portugal de finais do século XIX. * Replicar, mais de 100 anos depois, as fotografias de Emílio Biel para o álbum da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro é um exercício de imaginação. O tempo passou, o ambiente modificou-se, a urbanização alargou-se, a vegetação e a arborização cresceram, e hoje a paisagem é substancialmente diferente. No entanto, ainda é igual em alguns aspectos. É igual na rudeza das fragas e das encostas rochosas, no rio lá no fundo entre fragas e rochedos, nos declives alucinantes das encostas na zona de Foz-Tua a Brunheda e nos extraordinários socalcos de altitude. Tentar reproduzir as fotografias centenárias de Biel é reviver as emoções que o viajante desse tempo, e em particular o próprio fotógrafo, experimentaram perante a novidade que o progresso lhes oferecia. Essa novidade era por um lado a supremacia do homem sobre a natureza hostil, mas também a força de uma natureza capaz de impressionar o mais positivista dos fotógrafos. Reproduzir as fotografias originais é, em alguns casos, impraticável. As diferenças de objetivas, profundidades de campo, aberturas focais, e outros detalhes técnicos tornam o exercício inútil. Mas é nas emoções que os locais retratados despertam no viajante que se mantém o essencial do fascínio que Biel conheceu há mais de 100 anos atrás.
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PARTE II
ATÉ BRAGANÇA
Portugal na viragem do século
3. PORTUGAL NA VIRAGEM DO SÉCULO
3.1. A BANCARROTA E O FIM DO FONTISMO001 Hugo Silveira Pereira002
O assentamento e a abertura da linha de Foz-Tua a Mirandela ocorreram num período de intensa construção ferroviária em Portugal. Na década de 1880, além do caminhode-ferro do Tua, foram inaugurados os troços finais das linhas do Douro, do sueste e do Porto a Famalicão, a ferrovia da Beira Alta, o caminho-de-ferro de Guimarães, a linha de Lisboa a Torres e Figueira da Foz (oeste) e o ramal de Viseu. Mapa 24 – A evolução da rede ferroviária ibérica entre 1880 e 1890003
001
Este texto é baseado nos capítulos 3.4.10 e 3.5 da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a: 140-150.
002
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
003
ALEGRIA, 1990. CORDERO & MENENDEZ, 1978: 250-252.
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O esforço financeiro necessário acabou por ser demasiado pesado para os cofres públicos nacionais. Se em meados da década de 1880 se vivia uma verdadeira euforia ferroviária (ainda para mais com a abertura da linha da Beira Alta, tida como a verdadeira ligação internacional que haveria de fazer de Lisboa o cais da Europa), a década de 1890 assistiu ao descalabro da política do fontismo. A bancarrota de 1892 – e a 186
Portugal na viragem do século
morte do homem que deu o nome a este período da história nacional cinco anos antes – marcaram historicamente o fim da regeneração e do programa de melhoramentos materiais que lhe estava associado. No entanto, entre 1887, ano da conclusão da linha do Tua, e 1892, os últimos governos da regeneração não sentiram a necessidade de (re)equilibrar as contas públicas e diminuir o investimento, apesar de alguns discursos e relatórios oficiais revelarem precisamente o contrário. Em 1887, o executivo presidido por Luciano de Castro, líder do partido progressista, anunciava ao parlamento as suas principais preocupações: levantar o crédito público e atingir o equilíbrio orçamental pela mais rigorosa economia, redução ou adiamento de despesas; não admitir nenhum novo encargo sem lhe criar a respectiva receita; proceder a uma melhor fiscalização na cobrança de impostos; e criar uma nova pauta alfandegária. Só esgotados estes recursos, se recorreria ao imposto. Quanto ao sector dos transportes, o rumo passava pela continuação dos estudos ferroviários e das construções dos caminhos-de-ferro já iniciadas e pela abertura de mais estradas. Ainda a nível ferroviário, foi nomeada uma comissão para reorganizar os serviços de exploração e fiscalização dos caminhos-de-ferro em Portugal (portaria de 26 de Outubro de 1886) e regulamentou-se o regime de cobrança do imposto de trânsito (decreto de 20 de Setembro de 1888)004. O governo prometia também virar a sua atenção para o sistema de informação estatística, através da criação do ministério da agricultura, comércio e indústria, pois “quando se discute uma questão de caminhos de ferro, nunca se póde saber qual o rendimento provavel d’este melhoramento, porque não ha estatistica agricola, nem industrial, nem nenhum dos elementos indispensaveis que nos outros paizes se encontram”005. Deste modo “caminharemos com passos seguros, sendo certo que a definitiva regularisação da situação financeira será o meio mais energico para rapidamente adiantarmos a obra civilsadora há trinta e cinco annos encetada, sem repetirmos erros ou sermos arrastados por imprevidencias que ao paiz têem custado e custam dolorosos sacrifícios”006. A oposição regeneradora, pela voz de João Franco e Santos Viegas, via no novo ministério da agricultura um esvaziamento de funções do das obras públicas e acusava o governo de não querer mais caminhos-de-ferro007. Três dias de debate sobre a mudança ministerial não augurava nada de bom ao 004
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Processos individuais. Augusto César Justino Teixeira; Jacinto Heliodoro da Veiga. Collecção Official de Legislação Portugueza, 1888: 106-109. FINO, 1883-1903, vol. 2: 231-241 e 247-251.
005
Diario da Camara dos Deputados, 22.2.1886: 482 (Mariano de Carvalho).
006
Diario da Camara dos Deputados, 15.4.1887: 94 (relatório do estado da fazenda).
007
Diario da Camara dos Deputados, 22.2.1886: 482-484 e 490-491.
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novo executivo, que acabou por rever as suas prioridades e dar andamento ao negócio ferroviário. Repetiu assim a retórica típica do partido progressista desta época. Iniciou a governação com um discurso retraído para depois avançar com medidas mais incisivas para o alargamento da rede ferroviária. Em 1886 e 1887, o ministério das obras públicas concedeu cinco novas vias-férreas: as linhas de Cascais e de cintura de Lisboa (alvarás de 7 de Julho de 1886 e 9 de Abril de 1887), o caminho-de-ferro do litoral do Algarve (alvará de 2 de Dezembro de 1887), a ferrovia de Coimbra a Lousã por Arganil (alvará de 10 de Setembro de 1887) e o troço de Vendas Novas a Santarém (decreto de 2 de Setembro de 1887). Além disto, o governo legislou também no sentido de se poder substituir estradas por caminhos-de-ferro na rede rodoviária (lei de 21 de Julho de 1887)008. Circularam ainda rumores sobre um alegado arrendamento das linhas do Minho e Douro à Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, o principal operador ferroviário da época. O objectivo era criar os meios para romper a cintura de ferro espanhola, um conjunto de vias-férreas que alegadamente circundariam Portugal no sentido de desviar o tráfego dos portos portugueses para os portos espanhóis. O arrendamento não se chegou a realizar e aliás criou anticorpos entre os membros do próprio governo009. À excepção da medida sobre o assentamento de caminhos-de-ferro nas estradas, todas as outras foram tomadas por decreto e sem audição do parlamento. O governo era acusado de favorecer a Companhia Real, pois o ministro da fazenda, Mariano de Carvalho, era considerado muito próximo da direcção daquela sociedade. As críticas não se ficaram, porém, por aqui. Ao adjudicar a um concessionário privado a linha do litoral do Algarve, o governo era acusado de não proteger os caminhos-de-ferro públicos, uma vez que parte dessa linha estava incluída numa lei de 1883 que autorizava a sua construção pelo estado. Nas concessões de Cascais e de Santarém a Vendas Novas, o executivo era censurado por alegadamente não ter tido em conta o impacto militar de ambas as ferrovias (malgrado a sua curta extensão). Em suma, para a oposição, o governo infringia a “legislação em vigor e escandalisa[va] os homens sérios, os que ainda não chafurdaram n’este pelago de negociatas, em que a politica portugueza ameaça submergir-se”010. Nem os parlamentares regeneradores do Algarve (Luís de Bivar, visconde de Bivar ou Coelho de Carvalho) se deixavam convencer, tornando-se os principais contestatários da concessão da linha do litoral algarvio011. Apesar das críticas, em todo o caso naturais, o partido progressista manteve-se 008
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1886: 347-349; 1887: 179-182, 309-310 e 629-631.
009
CORDEIRO, 1999: 59-63.
010
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 23.4.1888: 624 (Vaz Preto).
011
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.4.1888, 10.4.1888, 11.4.1888 e 16.4.1888: 504, 536-539, 551552 e 573-574.
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firme no governo e em 1888 tomou duas grandes iniciativas em relação ao sector ferroviário. Em Janeiro propôs o arrendamento e alargamento e da rede alentejana (propriedade do estado) num projecto geral de colonização da província. Em Junho, apresentou uma proposta de lei para concluir a rede a norte do Mondego, mediante a concessão de uma garantia de juro. Este projecto incluía as linhas em via reduzida do Tâmega (até Chaves), de Braga a Cavez, de Mangualde a Recarei (na linha do Douro) e de Vidago a Vila Franca das Naves. A extensão do caminho-de-ferro do Tua de Mirandela a Bragança constava também dos planos do governo. Os objectivos desta medida eram dar independência económica à linha do Douro, colmatar o défice de exploração da ferrovia de Barca de Alva a Salamanca, desenvolver a agricultura transmontana e centrar no Porto o tráfego de todo o norte e parte do centro de Portugal012. Os estudos preliminares destas ferrovias (a cargo dos engenheiros Perfeito de Magalhães, Justino Teixeira e provavelmente Afonso de Espregueira) já vinham sendo feitos desde 1886013. Apesar de aprovados pelas comissões parlamentares de fazenda e obras públicas, nenhum destes projectos de lei chegou à discussão, provavelmente pelas críticas que parte da oposição e da imprensa lhes fizeram014. A proposta para o complemento da rede a norte do Mondego acabou por ser remodelada e dividida no ano seguinte. Questões ligadas ao procedimento concursal e ao facto de as linhas previstas serem ou não prolongamentos de vias existentes levaram àquela remodelação. Assim, numa primeira parte foi incluído o caminho-de-ferro de Coimbra à Covilhã (extensão da linha de Coimbra a Arganil adjudicada à Companhia do Caminho de Ferro do Mondego) e a via-férrea de Bragança (prolongamento da linha do Tua da Companhia Nacional). Num segundo diploma, foram encaixados os restantes015. Estas propostas do governo e a sua confirmação da profissão de fé nos caminhosde-ferro foram recebidas com entusiasmo pelos deputados progressistas e também pelos parlamentares regeneradores que viam as suas zonas de influência agraciadas com uma linha: Firmino João Lopes e Ferreira de Almeida em relação à linha do Tua; António Baptista de Sousa, Azevedo Castelo Branco, Fernandes Vaz e José de Alpoim pela de Vidago até Vila Franca das Naves. No entanto notava-se uma certa descrença 012
Diario da Camara dos Deputados, 16.1.1888 e 1.6.1888: 130-132 e 1813-1819. MONTENEGRO, 1889. PEREIRA, 2012b.
013
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Processos individuais. Augusto César Justino Teixeira; Francisco Perfeito de Magalhães; Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 1, n.º 16 (1.11.1888): 234 e 245-246; n.º 17 (16.11.1888): 262-264; n.º 18 (1.12.1888): 278. ESPREGUEIRA, 1890. SOUSA, 1932.
014
SANTOS, 1884, [Parecer das comissões de obras públicas e fazenda sobre o complemento da rede ao norte do Mondego] e [Parecer das comissões de obras públicas e fazenda sobre o arrendamento das linhas do sul e sueste]. SOUSA, 1907: 210.
015
Diario da Camara dos Deputados, 29.5.1889: 927-929.
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na exequibilidade da totalidade do projecto, o que levou aqueles deputados a pugnarem pela construção das suas linhas em detrimento das adversárias016. Entretanto, atrasos e irregularidades nas construções das linhas da Beira Baixa (o túnel da Gardunha), oeste (adiamento da construção da ligação directa de Alfarelos à Figueira), Algarve, Tua (atritos quanto ao serviço comum da estação de Foz-Tua), Viseu e urbana do Porto catalisaram as críticas da oposição e até do progressista Ferreira de Almeida (que na legislatura seguinte seria mesmo eleito pelos regeneradores)017. Cumulativamente, a salamancada explodia nas mãos do governo quando o cartel bancário do Porto que financiara a construção das linhas de Salamanca a Barca de Alva e Vilar Formoso revelou a sua preocupante situação financeira à conta do negócio. O subsídio governamental concedido não impedia a existência de défice na exploração, pelo que o Sindicato Portuense viu-se forçado a pedir nova ajuda ao estado. A comissão nomeada por portaria de 23 de Novembro de 1887 (composta por António de Serpa, Augusto Fuschini, João Joaquim de Matos, Tomás Nunes da Serra e Moura e Manuel Raimundo Valadas) confirmou um ano depois (29 de Dezembro de 1888) o estado caótico da exploração: os 135 contos de subsídio só cobriam 1,5% do custo total da exploração, que ultrapassava largamente a receita; a companhia não conseguia colocar no mercado nem acções nem obrigações; a ruína dos bancos seria uma calamidade para o Porto; por fim, auxiliar o sindicato seria do interesse da cidade, do país e das linhas da Beira Alta e do Douro. O governo aproveitou então um parecer existente sobre a apropriação do porto de Leixões para fins comerciais e remodelou-o no sentido de auxiliar o Sindicato Portuense (projecto de lei de 14 de Junho de 1889). A garantia de rendimento era dobrada para 270 contos e a transformação do porto de Leixões num porto comercial era também adjudicada aos bancos portuenses (lei de 29 de Agosto de 1889). O Sindicato Portuense formou então a Companhia das Docas do Porto e Caminhos de Ferro Peninsulares a quem encarregou de realizar a obra018. Como seria de esperar, a duplicação de um subsídio a um negócio que já tinha dado prejuízo à fazenda pública foi altamente criticada pela oposição. Muitos exigiam um inquérito com efeitos suspensivos à questão sem o qual o processo mais não seria que uma “verdadeira parodia do expediente, usado ha annos, n’um pais nosso vizinho, de fuzilar interinamente e mandar depois formar processo ao fuzilado”019. As sessões 016
Diario da Camara dos Deputados, 9.5.1888, 11.5.1888, 29.5.1889, 3.6.1889, 12.6.1889, 15.6.1889: 1498-1499, 1548-1549, 926-927, 997-998, 1183-1186, 1248.
017
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1888: 405. Diario da Camara dos Deputados, 14.4.1888 e 23.4.1889: 1060 e 405-406. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 13.5.1889 e 19.6.1889: 238-239 e 541.
018
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1889: 376-378. CORDEIRO, 1999: 62-63. ESPREGUEIRA et al., 1889. SOUSA, 1978.
019
Diario da Camara dos Deputados, 22.6.1889: 1350-F (Dias Ferreira).
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Portugal na viragem do século
parlamentares por diversas vezes tornaram-se especialmente violentas, mas, no final, o projecto foi aprovado, bem como a nomeação de uma comissão de inquérito mas sem efeitos suspensivos. Na câmara dos pares, o regenerador Hintze Ribeiro historiou a questão de modo a isentar o seu partido de responsabilidades e colocá-las em cima do antigo líder progressista, Anselmo Braamcamp (que decretara que a linha tinha que ir a Salamanca), e do engenheiro também regenerador, Lourenço de Carvalho (que a incluíra no seu plano geral). Por seu lado, os progressistas culpavam os adversários pelo descalabro da questão, o qual tentavam agora corrigir. O projecto acabou por ser aprovado com muitas críticas ao governo, que por sua vez apontava o despesismo regenerador com as linhas do Minho, Douro e Algarve e com os portos de Lisboa e Leixões como a causa da persistência do défice020. Figura 86 – Anselmo Braamcamp (à esquerda) e Hintze Ribeiro (à direita)021
Apesar do desgaste a que foi submetido com esta questão, o governo não caiu. Mais tarde, o executivo viu-se fragilizado pela demissão dos ministros das obras públicas e fazenda, alegadamente por desinteligências internas: Mariano de Carvalho por se achar desautorizado na implementação do seu plano financeiro; Emídio Navarro por um negócio com companhias vinícolas. Contudo, só o diferendo com Inglaterra a propósito do mapa cor-de-rosa pôs fim ao governo progressista (13 de Janeiro de 1890). O rei D. Carlos chamou ao poder o chefe dos regeneradores, António de Serpa, para minorar as sequelas do conflito022. 020
Diario da Camara dos Deputados, 12.1.1889: 60 e ss. (relatório do estado da fazenda). Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 27.6.1889: 617-624.
021
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/6201. RAMOS, 2007, figura 28 (pormenor).
022
SOUSA & MARQUES, 2004.
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Figura 87 – António de Serpa Pimentel023
O discurso de apresentação do novo ministério, a resposta à coroa e o relatório da fazenda de 19 de Maio de 1890 pareciam indicar que a questão ferroviária estava encerrada, pelo menos temporariamente. Não foram propostos novos caminhos-de-ferro, reforçando assim a ideia de que este tipo de investimento estava suspenso024. Só melhoramentos ao nível da exploração, tanto ao nível público como privado, como alargamento de estações (linha do Algarve, ramal de Setúbal, linha do leste, linha de cintura), aumento das vias de resguardo (estação de Coimbra) ou duplicação da via foram realizados025. Os deputados das zonas que ainda não tinham caminhos-de-ferro indispuseram-se contra esta agenda do governo e apressaram-se a propor novas ferrovias ao parlamento: Alfredo Brandão e Elvino de Brito defenderam a linha de Arganil à Covilhã; António Baptista de Sousa e Eduardo José Coelho ressuscitaram a rede a norte do Mondego (projecto naturalmente defendido pela classe engenheira026); Fialho Machado lembrou o caminho-de-ferro de Pias a Barrancos; Alves Passos propôs a conclusão da rede do Minho; Matoso Corte Real evocou o ramal de Alfarelos; Jerónimo Pimentel e Francisco Machado pugnaram pela continuação da linha de Guimarães por Trás-os-Montes; Tomás Ribeiro (nos pares) advogou a ligação entre as linhas da Beira Alta e do Douro por Viseu. A estas propostas, o ministro das obras públicas, Frederico Arouca, respondia com a promessa da apresentação de um plano de rede027. Multiplicavam-se também as queixas sobre obras e estações na linha da Beira Bai023
Occidente, revista illustrada de Portugal e do estrangeiro, 15.2.1878, n.º 4: 28.
024
Diario da Camara dos Deputados, 15.1.1890, 12.5.1890 e 19.5.1890: 57-58, 185-186 e 271 e ss.
025
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas. Cx. 36 (1891), pareceres 20447 (11.6.1891), 20475 (18.6.1891), 20534 (9.7.1891), 20537 (9.7.1891), 20557 (13.7.1891) e 20947 (26.10.1891).
026
VILLAS-BOAS, 1890.
027
Diario da Camara dos Deputados, 7.5.1890, 10.5.1890, 26.6.1890, 4.7.1890, 11.7.1890, 21.7.1890 e 23.7.1890: 137, 158-159, 883-888, 1016, 1152-1153, 1413 e 1464-1466. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 23.7.1890 e 6.8.1890: 715-716 e 800-801.
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Portugal na viragem do século
xa (Ruivo Godinho, Vaz Preto), sobre o plano da Companhia Real de centralizar toda a circulação no Rossio (Margiochi), sobre irregularidades na linha de Arganil (Monteiro Cancela), sobre a transferência das linhas de norte e leste e as do estado para as mãos de um grande sindicato (conde de Bertiandos), sobre acidentes nas linhas (Costa Lobo) e sobre a falta de estradas. Os reparos vinham de todo o parlamento, sobretudo na questão da linha urbana de Lisboa. As tarifas passaram também a ser usadas como arma de arremesso contra o governo. Esperava-se delas a resolução da crise agrícola que afectava Portugal. Tanto se sugeria a sua redução, como uma alteração no seu sistema (fazendo-as depender do peso da mercadoria e não da distância percorrida) de modo a proteger os produtos portugueses face aos estrangeiros028. Os dois grandes partidos preferiram entrar num ciclo vicioso de culpabilização mútua, vendo que a situação financeira do país cada vez se degradava mais: “o illustre deputado quando lhe convinha mostrar que as responsabilidades eram do partido regenerador, dizia «tanto de annuidades; tanto de garantia para o caminho de ferro de Ambaca; tanto de garantia para o caminho de ferro de Torres Vedras; tanto de garantia para obras que foram votadas pelas camaras regeneradoras»; mas, quando depois precisava mostrar que o partido progressista havia feito alguma cousa, já sabia então dizer: «construímos em quatro annos tantos kilometros de caminhos de ferro». (Riso. – Apoiados.) Construimos?! Mas isto é absolutamente falso. (Apoiados.)”029. Entretanto, o diferendo com Londres por causa do ultimato fomentou a agitação social com manifestações no próprio parlamento e na rua, forçando o governo a pedir a demissão a 16 de Setembro de 1890030. Figura 88 – Manifestações populares contra o ultimato inglês031
028
Diario da Camara dos Deputados, 17.5.1890, 11.7.1890 e 5.8.1890: 253-254, 1153 e 1683-1685. Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 9.5.1890, 21.5.1890 e 23.6.1890: 136, 191-195 e 338-339.
029
Diario da Camara dos Deputados, 19.6.1890: 787 (João Franco).
030
RAMOS, 1994: 181-185. SOUSA & MARQUES, 2004.
031
Occidente, revista illustrada de Portugal e do estrangeiro, 21.1.1890, n.º 399: 20-21.
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Depois de um mês de crise política, o rei nomeou um ministério apartidário liderado por João Crisóstomo de Abreu e Sousa que suspendeu definitivamente a política de fomento: “a questão dos trabalhos publicos em Portugal está em grande parte terminada, porque os poucos que há vão findar em breve”032. O essencial então era gerir o que estava construído, reformar os regulamentos de fiscalização (decreto de 21 de Fevereiro de 1891) e na melhor das hipóteses conceder linhas sem qualquer encargo para o estado (caso do prolongamento da linha de Guimarães a Fafe)033. Num projecto de lei apresentado pelo regenerador João de Paiva para atender ao estado do tesouro público, propunha-se claramente que nenhum caminho-de-ferro fosse construído enquanto houvesse défice nas contas públicas. No mesmo diploma, as preocupações do parlamentar passavam pela agricultura, colónias, economias, ensino, proteccionismo e estradas034. Numa altura em que Portugal sofria os primeiros sintomas de crise, as últimas grandes questões no sector ferroviário ocorreram com a Companhia Real, que desde 1889 se debatia com dificuldades de tesouraria. A queda dos seus rendimentos, o esforço financeiro para construir dezenas de quilómetros de linhas em Portugal sem garantia de juro, vários negócios ruinosos em Espanha e a impossibilidade de recapitalizar a empresa nos mercados externos forçaram a Companhia Real a declarar a suspensão de pagamentos em 1892. Igual medida foi tomada pela Companhia Nacional, que se debatia com problemas financeiros semelhantes035. Em 13 de Janeiro de 1892, o governo nomeou uma comissão (composta por António de Serpa, Ernesto Madeira Pinto, Perfeito de Magalhães, Manuel Francisco de Vargas e Augusto César Guimarães da Silva) para realizar uma sindicância à Companhia Real, que, no parlamento, era acusada de prejudicar o crédito nacional por associar as suas obrigações ao estado036. Dias depois, o presidente do conselho, João Crisóstomo, confessou aos deputados que o seu ministro da fazenda, Mariano de Carvalho, entregara ilegalmente à Companhia Real 2.600 contos, pedindo por isso a demissão. O ministro da fazenda admitiu não só essa entrega, mas muitas mais, no valor total de 15.700 contos. Argumentava que o fizera não para salvar a companhia mas sim o crédito nacional, que se afundaria com a empresa se esta falisse037. 032
Diario da Camara dos Deputados, 17.3.1891: 4 (Tomás Ribeiro).
033
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1891: 50 e ss. e 113 e ss.
034
Diario da Camara dos Deputados, 17.6.1891: 2-19.
035
PINHEIRO, 1986: 501. PINHEIRO, 1997: 154. SALGUEIRO, 2008: 92-102. SANTOS, 2014. TORRES, 1985: 96 e ss.
036
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 3. Diario da Camara dos Deputados, 11.1.1892: 3-6. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 11.1.1892: 2-9.
037
Diario da Camara dos Deputados, 14.1.1892: 2-4. FERNANDES, 2007: 615-621.
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Portugal na viragem do século
O rei chamou Dias Ferreira, que constituiu um governo de independentes. Os republicanos aproveitavam o caso da Companhia Real e o relatório da sindicância à mesma para denegrir o regime, ao passo que os monárquicos se digladiavam em torno da habilidade de Mariano de Carvalho, do alegado desaparecimento de 4 mil contos dos cofres da companhia à custa do túnel do Rossio e das queixas contra as companhias privadas e os seus dirigentes038. Entretanto, o conde da Foz, fundador da Companhia Nacional e homem-forte da Companhia Real era detido por suspeita de fraude financeira039. A norte, a Companhia das Docas revelava-se incapaz de continuar a exploração das linhas até Salamanca, o que poderia levar à perda da concessão para Espanha. Para o evitar, o estado ordenou à direcção dos caminhos-de-ferro do Minho e Douro que tomasse conta das linhas, cuja exploração era deficitária (decreto de 1 de Abril de 1892)040. A Companhia Real via-se também em perigo de suspender a exploração, o que levou o governo a nomear uma comissão de administração (composta por Barros Gomes, Teles de Vasconcelos, conde de Magalhães, Manuel de Castro Guimarães, Vitorino Vaz Júnior, Danican Philidor, Armand Ferré, Kergall e Heinrich Hohenemser) para gerir as linhas por conta da companhia. Legislou também no sentido de impedir que as receitas operacionais fossem arrestadas ou embargadas (decreto de 21 de Abril de 1892). Este diploma indispôs os comités de obrigacionistas, que queriam reaver o seu dinheiro, levando à necessidade de se chegar a um acordo041. Das medidas entretanto propostas pelo executivo para enfrentar a crise, nenhuma incluía caminhos-de-ferro. As palavras de ordem eram redução de despesa e desenvolvimento da agricultura e indústria. O decreto de 1 de Dezembro de 1892 é um bom exemplo desta política ao tentar reduzir a despesa na exploração das linhas do estado e na fiscalização das linhas privadas042. Em Fevereiro de 1892, Oliveira Martins, ministro da fazenda, propôs e viu aprovado pelo parlamento um convénio unilateral com os credores externos para atenuar o serviço da dívida (lei de 26 de Fevereiro de 1892, art.º 8.º, aplicada por decreto de 13 de Junho de 1892), que, na realidade, representava uma bancarrota parcial do estado português043.
038
Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.2.1892: 1-2 e 10. SOUSA & MARQUES, 2004.
039
SANTOS, 2014.
040
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 94.
041
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 205-206. BARATA, 1945. SOUSA, 1941.
042
FINO, 1883, vol. 3: 158-175.
043
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1892: 38 e 427-428.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 89 – Joaquim Pedro de Oliveira Martins044
Oliveira Martins pretendia implementar um paradigma económico diferente, assente na colonização do sul do reino, no proteccionismo e substituição de importações, na aposta na instrução, no fomento do cooperativismo financeiro, no investimento nas colónias e na marinha mercante e sobretudo na paralisação do programa de obras públicas e na nacionalização dos caminhos-de-ferro, para evitar que a riqueza por eles realizada saísse do país045. Contudo, as suas medidas desagradaram aos monárquicos e mesmo a colegas seus no governo, que recusaram aplicar o convénio com os credores externos046. Rapidamente foi o executivo remodelado (a 27 de Maio de 1892), com a saída de Oliveira Martins da fazenda (substituído pelo próprio presidente do conselho, Dias Ferreira) e do visconde de Chanceleiros das obras públicas (rendido pelo engenheiro Pedro Vítor). De início, o novo governo contou com o apoio dos regeneradores de Hintze Ribeiro, mantendo-se “impreterivel e fatal destruir o desequilibrio orçamental, por meio de diminuição de despezas, e de augmento de receitas”047. Com o passar do tempo, porém, o parlamento e os próprios apoiantes regeneradores começaram a 044
Biblioteca nacional digital, http://purl.pt/93/1/iconografia/geracao70.html.
045
MARTINS, 1987: 12-15 e 320-324.
046
RAMOS, 1994: 207-208.
047
Diario da Camara dos Deputados, 16.1.1893: 12.
196
Portugal na viragem do século
levantar obstáculos à governação. O estado da Companhia Real e da Companhia das Docas eram assuntos recorrentes nas câmaras, sobretudo na dos pares. A sindicância à primeira foi publicada em finais de Setembro de 1892 e concluiu que a sociedade havia esgotado o seu capital accionista e obrigacionista e estava sobrecarregada com uma divida flutuante avultada. Faltavam-lhe os recursos necessários para saldar essa dívida, para pagar a conclusão das obras em execução e para fazer face aos encargos permanentes de capital. O relatório final revelava também a existência de muitas irregularidades na gestão da companhia048. A 20 de Fevereiro de 1893, Dias Ferreira pediu a demissão, sendo sucedido por um governo regenerador liderado por Hintze Ribeiro, que mantinha o objectivo de reduzir a despesa049. Em termos de caminhos-de-ferro, só se concluíram os contratados. Quando em Fevereiro de 1893, o deputado Miguel Dantas propôs à câmara electiva um auxílio à companhia de que era principal accionista (Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa e Famalicão), advertiu antecipadamente: “tranquilisem-se os animos, que não é do actual projecto que advirá aggravamento ás condições do thesouro, nem é do que tão parca e baldadamente se pede que podem arreceiar-se os medrosos e desconfiados”050. Ainda nesse ano, a proposta para a construção da linha de Messines a Lagos só foi apresentada depois de os deputados algarvios Sárrea Prado e Francisco Machado provarem que o subsídio que se pagava à companhia de navegação da carreira entre Lisboa e o Algarve (que seria suspenso, caso aquela obra fosse realizada) era suficiente para pagar a prestação anual da empreitada051. Já o transmontano Eduardo José Coelho queixava-se da falta de viação acelerada na sua província, mas não se atrevia a apresentar uma proposta de despesa052. Nos anos seguintes, os caminhos-de-ferro estiveram arredados dos discursos da coroa e respectivas respostas (prédicas que abriam oficialmente as sessões parlamentares). Em termos ferroviários, apenas questiúnculas e pequenas queixas eram trazidas ao parlamento053. A resolução da questão com os credores externos (intentada, debalde, através de lei de 20 de Maio de 1893) tornara-se uma necessidade premente054. A afectação de fundos para o fomento diminuiu drasticamente. O equilíbrio das contas públicas e a questão ultramarina passaram a marcar a agenda dos governos na década 048
Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 3.1.1893, 13.1.1893 e 28.1.1893: 3-5, 15-16 e 42. PORTUGAL, 1892.
049
Diario da Camara dos Deputados, 23.2.1893: 3-4 e 8-9. SOUSA & MARQUES, 2004: 512-513.
050
Diario da Camara dos Deputados, 17.2.1893: 2.
051
Diario da Camara dos Deputados, 21.6.1893: 42 e 46.
052
Diario da Camara dos Deputados, 22.6.1893: 15.
053
Diario da Camara dos Deputados, 31.5.1893: 7-8.
054
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1893: 114-117. PINHEIRO, 1986: 506-507. SERRÃO, 1986: 54. SOUSA & MARQUES, 2004: 132.
197
A linha do Tua (1851-2008)
de 1890. O fontismo falia apesar de ter proporcionado ao país um crescimento, que permitiu manter desde 1850 a política de obras públicas, e ter criado condições para que nas décadas seguintes se saboreassem os resultados do investimento realizado055. O ministério das obras públicas não foi extinto, embora tal parecesse ser o desejo do republicano Jacinto Nunes, que se “fosse um dia dictador (...), a primeira coisa que faria era cortar, fazer desapparecer, por completo, o ministerio das obras publicas (...), porque é por intermedio d’este ministerio, que estamos constantemente distribuindo dinheiro por alguns á custa de todos (...), dando á custa do compadre povo grossas fatias aos afilhados. Alem d’isto, é por este ministerio que se faz a grande corrupção eleitoral, que se vicia na sua origem o regimen representativo, se depravam os caracteres, e se desmoralizam os costumes”056. Tal, todavia, não era a opinião geral. A importância dos caminhos-de-ferro construídos era reconhecida nos diplomas aprovados pelo governo, cuja principal preocupação era manter em exploração as linhas pertencentes a empresas em falência. Fora do ministério, havia ainda construções a fiscalizar (linha da Beira Baixa, ramal de Viseu) e garantias de juro a contabilizar. Ao mesmo tempo, trabalhava-se no sentido de melhorar a qualidade e corrigir os defeitos na exploração das linhas públicas e privadas. A Companhia Real, a Companhia do Caminho de Ferro da Beira Alta, a Companhia do Porto à Póvoa e Famalicão e as direcções do Minho e Douro não deixaram de fazer melhorias nas suas instalações, fosse o alargamento de estações, a construção de apeadeiros, a renovação de material circulante, o prolongamento de vias de resguardo, a duplicação da via, a substituição de tabuleiros nas pontes, obras que normalmente eram aprovadas pelo conselho superior de obras públicas e minas. Surgiam também propostas para a construção de linhas em via reduzida ou alternativas aos caminhos-de-ferro em leito próprio057. Entretanto, era necessário regular a situação financeira da Companhia Real, à qual se encontrava ligada a situação financeira da nação, pois os credores externos do estado tinham investido também na companhia, da qual o tesouro era igualmente credor. É neste contexto que o ministro das obras públicas, Bernardino Machado, pediu ao parlamento (10 de Julho de 1893) autorização para tomar as medidas necessárias 055
LAINS & SILVA, 2005. MATA, 1988. MATA & VALÉRIO, 1993. PINHEIRO, 1992: 179.
056
Diario da Camara dos Deputados, 22.6.1893: 7 (sessão nocturna).
057
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Conselho Superior de Obras Públicas e Minas. Cx. 39 (1892-1893), pareceres 22423 (12.1.1893), 22500 (6.2.1893), 22513 (9.2.1893), 22527 (16.2.1893), 22572 (2.3.1893), 22729 (24.4.1893) e 22855 (2.6.1893); cx. 40 (1894), pareceres 23691 (12.3.1894) e 23718 (19.3.1894); cx 41 (1894), pareceres 23786 (12.4.1894), 23911 (14.5.1894), 24025 (21.6.1894) e 24132 (26.7.1894); cx. 42 (1894-1895), pareceres 24406 (29.10.1894), 24691 (24.1.1895) e 24887 (11.3.1895); cx. 43 (1895), pareceres 25031 (18.4.1895) e 25374 (25.7.1895); cx. 44 (1895), pareceres 25359 (22.7.1895) e 25478 (29.8.1895); cx. 45 (1895), pareceres 25715 (7.11.1895) e 25758 (14.11.1895). Diario da Camara dos Deputados, 22.7.1899: 730-731.
198
Portugal na viragem do século
para assegurar o reembolso das quantias que o estado tinha a haver da companhia e regularizar a sua situação financeira, sem incorrer com isso em maiores despesas. Dois dias após, o diploma foi discutido e na mesma sessão foi aprovado pelos deputados. O mesmo aconteceu dias depois nos pares. A premência da questão motivou esta pressa, mas não impediu o criticismo da oposição058. Nos pares, ao lado do governo, votava o conde de Magalhães, que militava na oposição – era um chamado amigo de Vaz Preto –, mas ao mesmo tempo – e mais importante na hora da decisão – era também administrador da Companhia Real059. Figura 90 – Bernardino Machado060
A subsequente lei de 27 de Julho de 1893 e o decreto de 9 de Novembro de 1893 estabeleciam que uma cessação de pagamentos requerida pelo estado seria imediatamente declarada pelo poder judicial sem qualquer formalidade e ficavam suspensas todas as execuções sobre as companhias, que eram obrigadas a acordar uma convenção com os seus credores. Em caso de ausência de concordata, a companhia entrava em falência e as suas concessões eram colocadas em hasta pública, podendo ser adjudicadas a outra companhia, entregues a uma comissão de credores (não se verificando o primeiro ponto) ou entregues ao estado (não se ve058
Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 6.6.1893 e 7.6.1893: 164 e 174.
059
Diario da Camara dos Deputados, 10.7.1893 e 12.7.1893: 6-7 e 18-32. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 14.7.1893: 502-516.
060
Museu da presidência da república, http://www.museu.presidencia.pt/presidentes_bio.php?id=23.
199
A linha do Tua (1851-2008)
rificando as duas últimas situações). Em todo o caso, a exploração mantinha-se061. Na posse desta nova moldura legal, o governo não perdeu tempo a pedir a declaração de cessação de pagamentos da Companhia Real (emitida pelo tribunal do comércio de Lisboa em 13 de Novembro 1893). Seguidamente, nomeou uma comissão onde se reuniam os interesses do estado (Frederico de Arouca, João Arroio e Ernesto Madeira Pinto), da companhia (António Carrilho, Manuel Pais Vilas Boas e Manuel de Castro Guimarães) e dos credores portugueses (Vitorino Vaz Júnior), franceses (Albert Lechat) e alemães (Heinrich Hohenemser). Foi esta equipa que em 4 de Maio de 1894 estabeleceu em Paris um acordo, aprovado pela assembleia-geral da companhia a 8, ratificado a 10 pela direcção e no dia seguinte pelo tribunal do comércio de Lisboa e pelo governo. O acordo previa uma reconversão do capital obrigacionista com a emissão de novos títulos. Por seu lado, a Companhia Real aprovava novos estatutos (30 de Novembro de 1894) e preparava-se para enfrentar o futuro com uma administração composta na sua maioria por representantes dos obrigacionistas e de portugueses062. Se o estado financeiro da Companhia Real foi relativamente regularizado, o do estado português ainda estava muito longe do equilíbrio desejado. Nos anos seguintes do governo regenerador, até 1897, os novos ministros das obras públicas (Carlos Lobo de Ávila e Campos Henriques) e fazenda (Hintze Ribeiro) não encontraram condições para propor novos investimentos em caminhos-de-ferro (no orçamento de 1896, por exemplo, só se permitiam melhoramentos nas linhas públicas até à quantia de 70 contos063). O silêncio dos discursos de abertura da sessão em relação à construção de novas ferrovias era ensurdecedor. Isto não significou que não se fizessem trabalhos de bastidores nem se analisassem outras obras públicas de menor envergadura (estradas, americanos, edifícios). Contudo, dominavam a ordem do dia a pacificação política do país, a questão financeira (a que se ligava o convénio da Companhia Real e ainda os estragos deixados pela salamancada064), a questão ultramarina e as lutas entre regeneradores e progressistas065. Os interesses das pequenas companhias e caminhos-de-ferro (ramal de Portimão, prolongamento de Cacilhas, linhas do Tua, Corgo, Guimarães e Famalicão) eram evocados pelos deputados locais, mas dificilmente seriam atendidos, pois “o governo não 061
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1893: 482-483 e 813-816.
062
FINO, 1883-1903, vol. 3: 195-197, 216-225, 228-229, 235-236 e 259. Gazeta dos Caminhos de Ferro, a. 60, n.º 1449 (1.5.1948): 293; n.º 1459 (1.10.1948): 524. Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 7, n.º 154 (16.5.1894): 160 e supl.; n.º 167 (1.12.1894): 373-374. AGUILAR, 1945. AGUILAR, 1949. BARATA, 1945. CORREIA, 1939. REIS, 1940. SOUSA, 1941.
063
Diario da Camara dos Deputados, 18.1.1896: 56-57.
064
Diario da Camara dos Deputados, 26.10.1894, 6.11.1894 e 17.11.1894: 174, 177, 335, 478 e 482-483. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 23.1.1897 e 26.1.1897: 50-51, 74.
065
RAMOS, 1994: 135-178. SERRÃO, 1986: 57-77. SOUSA & MARQUES, 2004: 513-514.
200
Portugal na viragem do século
projecta construir caminhos de ferro, porque não os póde fazer nas actuaes circumstancias”066. Assim, a proposta de E. Bartissol para construir e entregar ao estado cinco ramais das linhas públicas ao sul do Tejo, mediante uma anuidade por 99 anos só podia ser recusada. Segundo, os cálculos do conselho superior de obras públicas e minas, a anuidade, equivalente a uma percentagem da receita bruta da rede do sul e sueste, garantia ao empreiteiro um lucro de 6 ou 7% do investimento e ao estado um encargo anual de 80 contos. Na negativa, pesou ainda o facto de o conjunto de linhas propostas não ser o mais indicado067. Nesta época, apenas se atendeu à pretensão da Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa e Famalicão de ver anuladas as obrigações que contraíra em troca de uma isenção fiscal (lei de 21 de Maio de 1896). Ordenou-se ainda a construção do ramal de Portimão que faria cessar o pagamento do subsídio à carreira de navegação do Algarve068. As grandes discussões na capital votavam por completo ao esquecimento a já esquecida província de Trás-os-Montes. Os transmontanos cada vez ficavam mais descrentes de verem alargado na região o serviço ferroviário, que se resumia, à época, à linha do Tua e ao troço final da linha do Douro. Em 1886, o jornal O Brigantino lamentara-se: “Mirandella caminha! E Bragança?... Não haverá uma alma christã que se condoa de nós?”069. No final do século XIX, o lamento tinha ainda mais razão de ser.
066
Diario da Camara dos Deputados, 17.4.1896: 1037. Ver também Diario da Camara dos Deputados, 20.11.1894, 22.11.1894, 5.2.1896, 7.2.1896, 18.1.1897 e 29.1.1897: 520, 539, 205-206, 220 e ss., 381 e ss., 64-70 e 170-171.
067
Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas. Conselho Superior de Obras Públicas e Minas. Cx. 42 (1894-1895), parecer 24862 (28.2.1895). Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 7, n.º 168 (16.12.1894): 389-390.
068
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1896: 400.
069
O Brigantino, 18.11.1886, n.º 4: 3.
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A linha do Tua (1851-2008)
3.2. A LEI DE 14 DE JULHO DE 1899 E O RELANÇAMENTO DA CONSTRUÇÃO FERROVIÁRIA070 Hugo Silveira Pereira071
Nos inícios de Fevereiro de 1897, o partido progressista regressava ao poder, substituindo o executivo regenerador de Hintze Ribeiro. Luciano de Castro presidia a nova equipa ministerial, que contava com Ressano Garcia na fazenda e Augusto José da Cunha nas obras públicas. Aparentemente, os objectivos governamentais não se alteraram. Mantinha-se a preocupação com o ultramar, face à cobiça das potências europeias sobre às colónias portuguesas, e o equilíbrio das contas públicas. Contudo, este governo deixaria o seu nome ligado a importantes medidas sobre caminhos-de-ferro que dariam novo ânimo à política do fomento material. Inicialmente, o governo, de forma alguma tímida, começou por adjudicar provisoriamente por decreto de 1 de Abril de 1897 a linha pelo vale do Corgo desde a Régua à fronteira espanhola por Vila Real e Chaves. Desta medida não resultava qualquer aumento de despesa para o estado, uma vez que os adjudicatários apenas solicitavam isenções fiscais sobre um rendimento que no momento não existia. De qualquer modo, era necessário ouvir o parlamento, mas o assunto nunca foi apresentado em ordem do dia072. 070
Este texto é baseado nos capítulos 3.6, 5.4.1, 5.4.2, 5.4.4.2 e 5.5.3 da tese de doutoramento do autor. PEREIRA, 2012a.
071
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
072
FINO, 1883-1903, vol. 3: 349-360. Diario da Camara dos Deputados, 22.7.1897: 348-352.
202
Portugal na viragem do século
Meses depois, porém, o gabinete atacou com força a questão ferroviária. A 12 de Julho, apresentou uma proposta (baseada no acordo de 1 de Junho de 1897 com o marquês de Guadalmina, credor da Companhia Real) para arrendar toda a rede do estado (Minho, Douro, sul e sueste) e adjudicar várias linhas complementares àqueles caminhos-de-ferro073. A polémica que tal proposta levantou (mesmo entre os progressistas, mas sobretudo junto do conde de Burnay, que era também parte interessada no negócio), aliada à recusa do Crédit Lyonnais e do Comptoir d’Escompte em participar no projecto, esmoreceu a vontade do governo em a discutir. De facto, o diploma nunca foi apresentado em ordem do dia, apesar de contar com o parecer positivo das comissões de obras públicas e fazenda, que ainda acrescentavam algumas linhas ao conjunto de ferrovias a construir074. No ano seguinte, e malgrado os avisos de prudência financeira constantes do discurso e resposta à coroa, o governo tomaria medidas ainda mais incisivas no sentido de desenvolver um ambicioso plano de construção ferroviária. Antes, veria as suas intenções secundadas por várias reclamações de deputados e pares (regeneradores, inclusive) a favor de linhas no norte (Tua, Corgo, S. Pedro da Cova ao Porto), centro (ramal de Merceana) e sul do país (ramal de Portimão). Na câmara baixa, o governo conseguiu ainda aprovar a concessão de isenções fiscais aos adjudicatários das linhas do Corgo e Lima (lei de 14 de Julho de 1898). Até ao fim da sessão legislativa, apenas uma operação realizada com as obrigações da Companhia Real de que o estado dispunha animou a oposição e o debate político075. Seria após o encerramento das cortes que o governo encetaria um conjunto de medidas para retomar a construção de caminhos-de-ferro em Portugal, sobretudo após a substituição em Agosto de Augusto José da Cunha por Elvino de Brito na pasta das obras públicas. Elvino José de Sousa Brito era um engenheiro e político português nascido na Índia em 1851. Tirou o curso de engenharia na prestigiada escola de pontes e calçadas de Paris e, em Portugal, participou na construção das linhas do Minho e Douro. Dirigiu ainda a repartição de estatística do ministério das obras públicas, sendo responsável pela publicação do Anuário Estatístico de Portugal e Colónias. Politicamente, estava vinculado ao partido progressista que o elegeu pela primeira vez para o parlamento em 073
Diario da Camara dos Deputados, 12.7.1897: 211-224. FINO, 1883-1903, vol. 3: 364-373. PORTUGAL, 1892: 194.
074
Diario da Camara dos Deputados, 27.7.1897: 408-409 e 412. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 15.6.1897 e 23.8.1897: 12 e 233-235. Gazeta dos Caminhos de Ferro, a. 11, n.º 244 (16.2.1898): 53. Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, a. 10, n.º 229 (1.7.1897): 193-194.
075
Diario da Camara dos Deputados, 18.1.1898, 7.2.1898, 12.2.1898, 15.2.1898, 16.2.1898, 22.3.1898 e 6.5.1898 a 30.5.1898: 69-71, 240-242, 289-290, 313-314, 332, 677 e 1043 a 1310. Diário da Camara dos Dignos Pares do Reino, 10.2.1898, 11.3.1898, 26.4.1898, 28.5.1898 e 1.6.1898: 77, 127-128, 245-246, 320 e 371-O. FINO, 18831903, vol. 3: 403.
203
A linha do Tua (1851-2008)
1880 pelo círculo de São João da Pesqueira. Voltou a São Bento em 1884, tendo sido sucessivamente eleito nos plebiscitos até 1894. Depois de um interregno de três anos assumiu novamente as funções de deputado em 1897. Em 1898, ascendeu ao pariato e foi nomeado ministro das obras públicas076. Figura 91 – Elvino José de Sousa Brito, ministro das obras públicas077
Dois meses apenas após a sua nomeação, o novo ministro apresentou em decreto (6 de Outubro de 1898) um ambicioso plano de melhoramento (material e administrativo) e alargamento das linhas do estado. Apesar das dificuldades financeiras por que Portugal passava (o convénio para a dívida externa só seria definitivamente selado em 1902, após duas tentativas falhadas em 1898 e 1900078), Elvino de Brito não tinha dúvidas em não se associar “á opinião d’aquelles que julgam absolutamente impossivel, nas actuaes circumstancias do thesouro, a construcção de novas linhas ferreas pelo estado”079. As propostas de Elvino de Brito pretendiam atingir vários objectivos. Desde logo, esperava-se não só aumentar a receita dos caminhos-de-ferro do estado, mas também levar os benefícios da viação acelerada às regiões nacionais que deles ainda não usufruíam. Ademais, o decreto de 6 de Outubro de 1898 dotaria finalmente Portugal de um plano geral de rede, aprovado por lei e gizado sobre bases sólidas e científicas. A elaboração de um plano para a malha ferroviária nacional foi um assunto sempre presente no debate político e técnico da segunda metade do século XIX. Na década de 1870, a discussão foi particularmente profícua entre a classe engenheira reunida na as076
MÓNICA, 2005, vol. 1.
077
MATOS & MARTINS, [s. d.]: 1.
078
SOUSA & MARQUES, 2004: 133.
079
PORTUGAL, 1898: 5.
204
Portugal na viragem do século
sociação de engenheiros civis portugueses. Várias propostas foram aventadas e depois de cerca de dois anos de discussão um relatório final foi elaborado e provavelmente entregue ao governo. Em 1879, o ministro das obras públicas, o também engenheiro Lourenço de Carvalho, apresentou ao parlamento uma proposta ligeiramente diferente da da associação a que pertencia para fixar de uma vez as linhas a construir e a sua prioridade. O projecto nunca foi discutido. Determinar sobre papel os caminhos-de-ferro a assentar não era tarefa fácil, desde logo pela deficiência da informação estatística e cartográfica ao dispor dos governantes. Por outro lado, a fixação rígida das linhas a construir não era uma ideia atractiva do ponto de vista político. Ao longo dos anos, prevaleceu a ideia de que um caminhode-ferro que não representasse um encargo para o estado era um bem em si mesmo. Ora, isto não se coadunava com a existência de uma lei que determinasse explicitamente quais os caminhos-de-ferro que deviam ser construídos (e por exclusão de partes quais os que não eram necessários). Por outro lado, sem um plano de rede, a acção dos governos tornava-se muito mais livre. Sem lei, não havia desrespeitos, nem havia contestação parlamentar. Por fim, os executivos podiam adaptar-se mais facilmente às necessidades, à informação do momento, à vontade da iniciativa privada, aos interesses políticos e aos caprichos de Espanha (no caso das ligações internacionais) e decidir assim em conformidade080. Em 1898, Elvino de Brito propôs-se a fazer o que não tivera sido feito até então: construir de forma pensada e planeada. Para o ministro, “a falta de um plano bem definido de viação accelerada tem deixado ao criterio do governo, subordinado a circumstancias politicas de occasião, a escolha das linhas a construir, quer pelo estado, quer por emprezas concessionarias, sem se attender, muitas vezes, aos verdadeiros interesses do paiz”081. Elvino de Brito repetia a mensagem deixada pela associação de engenheiros 25 anos antes: até então a rede fora construída não para desenvolver o país, mas sim satisfazer interesses políticos. O impacto dos planos do ministro estava irremediavelmente condenado a ser pequeno, uma vez que Portugal por esta altura contava já com mais de 2 mil km de caminhos-de-ferro. Em todo o caso, Elvino de Brito nomeou em 1898 duas comissões para analisar a questão e propor os caminhos-de-ferro a serem construídos a norte do Mondego e a sul do Tejo (pelo já citado decreto de 6 de Outubro de 1898). Uma grande parte da província da Beira Alta e a totalidade das províncias da Beira Baixa e da Beira Litoral não entravam nos planos do ministro. Como já vimos, um dos seus objectivos era incrementar a receita das linhas do estado, aumentando-lhes o tráfego através da construção de vias afluentes. Entre o Mondego e o Tejo, o estado 080
Sobre a discussão do plano de rede ver PEREIRA, 2012a: 308-322. PEREIRA, 2013.
081
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 13
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não possuía quaisquer caminhos-de-ferro, pelo que estas regiões não foram tidas em consideração neste programa. As comissões foram encarregues de elaborar uma lista hierarquizada de linhas que atendessem a quatro critérios distintos: serem úteis à defesa do país; ligarem as redes públicas com outras nacionais ou estrangeiras; colocarem centros importantes de produção e consumo em comunicação com o sistema geral de vias-férreas do reino; e facilitarem as ligações regionais. Os vogais das comissões deviam ainda ter em conta as condições topográficas das regiões e as suas necessidades económicas e administrativas. Cumpria-lhes também indicar a largura de via, as condições técnicas, a extensão e o custo provável de cada uma das vias propostas, especificando quais as que convinham ficar sob alçada do estado e quais as que podiam ser entregues ao sector privado082. A brusca oposição que se levantara ao contrato Guadalmina, que, no fundo, previa uma privatização do sector ferroviário público, podia ter motivado o novo titular das obras públicas a marchar no sentido oposto da nacionalização ou pelo menos reforço do papel do estado como operador ferroviário. Elvino de Brito não caminhou nesse sentido nem fechou completamente a porta à iniciativa privada no que dizia respeito às novas linhas a assentar, embora tenha afastado por completo o fantasma do arrendamento das linhas do estado a privados. No relatório que introduzia o seu decreto, o ministro não quis nem sobrepor a mais-valia da exploração pelo estado àquela realizada por companhias nem o contrário. Na verdade, tudo estava dependente das circunstâncias do local e do momento. Traçada a malha, devia ser esta apresentada aos poderes e associações locais e a grupos cuja autoridade fosse manifestamente relevante (nomeadamente a associação de engenheiros e o conselho superior de guerra). Os conselhos ou pedidos que resultassem destes inquéritos seriam analisados e podiam ser incluídos ou não no plano final. Assim que este estivesse concluído, devia ser submetido ao conselho de superior de obras públicas para uma apreciação final. A palavra final era dada ao governo, que ficava desde logo autorizado a decretar com força de lei as redes propostas. Qualquer caminho-de-ferro que não fosse incluído no lote não podia ser construído sem ser previamente alvo de um minucioso processo de inquérito administrativo de utilidade pública. Elvino de Brito não queria deixar nada ao acaso e pretendia evitar que a continuação da rede fosse feita sem critério083. A acção reformista do ministro não se ficou por aqui. Elvino de Brito nomeou uma outra comissão “para elaborar um plano de reorganisação dos serviços dos caminhos de ferro explorados pelo estado” (conde de S. Januário, Pinto Basto, Simões de Almeida e Sousa, Leopoldo Mourão, António Francisco da Costa Lima, Paiva Cabral 082
PORTUGAL, 1898.
083
PORTUGAL, 1898: 5.
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Portugal na viragem do século
Couceiro, Justino Teixeira, Inácio Lopes, Gualberto Póvoas, Perfeito de Magalhães e Fernando de Sousa). Esta reorganização devia ter em mente a fusão das direcções do Minho e Douro e do sul e sueste sob a égide de um conselho administrativo sedeado em Lisboa, que reunisse “as classes e corporações mais directamente interessadas na boa gerencia das linhas”084. A centralização da gestão ferroviária do norte e do sul era contrabalançada pela concessão de um maior grau de autonomia ao conselho administrativo indicado, que “exercerá em relação ás linhas do estado funcções analogas ás das companhias”085. Elvino de Brito pretendia reunir nesta nova entidade o melhor dos dois mundos: público e privado. Na introdução ao seu decreto, o ministro elogiava a exploração ferroviária pública, mas propunha-se a eliminar alguns dos seus defeitos (decorrentes de uma excessiva centralização e burocratização) através da aplicação dos métodos de trabalho mais descentralizados das companhias privadas. Pretendia-se designadamente evitar as dificuldades que uma excessiva centralização, acompanhada de uma limitada liberdade de acção concedida aos directores das linhas públicas (alguns dos quais constavam da comissão e sabiam por experiência própria como era difícil assinar simples contratos de fornecimento de material), levantavam a uma eficaz e económica gestão. Assim, a entidade a criar teria teoricamente mais independência para gerir os seus recursos financeiros e para resolver os seus problemas operacionais mais rápida e eficazmente. Resultaria de uma teórica combinação das vantagens da exploração por companhias com as vantagens oferecidas pela exploração pública086. A publicação do decreto de Elvino de Brito deu o mote para a discussão parlamentar após a abertura da sessão de 1899. A primeira invectiva incidiu sobre a contradição entre o espírito do decreto e a proposta antecedente de Ressano Garcia para arrendar e privatizar as linhas públicas. Por outro lado, o diploma parecia chocar também contra as ideias do novo ministro da fazenda, Manuel Afonso de Espregueira, um estrénuo opositor à contracção de empréstimos externos e um activo defensor da contenção de despesas. O timing do programa de Elvino de Brito levantou também críticas e censuras. Havia o natural receio do aumento da despesa quando ainda era necessário resolver a questão financeira com os credores externos. Os deputados mais suspeitosos desconfiavam ainda de que o projecto do ministro progressista estava secretamente colado a um acordo com os prestamistas estrangeiros, que envolvia os caminhos-deferro públicos. Tudo isto motivou vários ataques ao governo, com João Franco como ponta-de-lança nessas ofensivas087. 084
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1898: 712.
085
Colecção Official de Legislação Portugueza, 1898: 712.
086
Para o decreto, ver Colecção Official de Legislação Portugueza, 1898: 711 e ss.
087
Diario da Camara dos Deputados, 30.1.1899: 7-9.
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A linha do Tua (1851-2008)
A discussão foi continuada com a apresentação ao parlamento da proposta de lei de 27 de Fevereiro de 1899, que consubstanciava o espírito do decreto de 6 de Outubro de 1898. Se dúvidas restassem no que tocava à crença nos caminhos-de-ferro, Elvino de Brito tratava de as dissipar, declarando que “na obra complexa e difficil, mas inadiavel e promettedora do fomento, occupam logar primacial o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das vias de communicação, de entre as quaes sobressaem, em importancia e valor, os caminhos de ferro”088. O aperfeiçoamento e o desenvolvimento das vias-férreas nacionais passavam por um duplo esforço de melhoria técnico-administrativa dos caminhos-de-ferro existentes e de construção de novas ferrovias. No introito ao projecto de lei apresentado em Fevereiro, Elvino de Brito recordava a necessidade de desburocratizar a administração da operação ferroviária e acrescentava também que “em muitas estações faltam ainda as linhas de serviço, caes cobertos e descobertos, basculas, baterias de placas rotatorias, habitações para o pessoal e dependências necessarias para o reguardo e conservação das mercadorias. É escasso o material circulante. Não existem, emfim, os elementos indispensaveis a uma boa exploração technica”089. Em termos retóricos, Elvino de Brito não sentia dificuldades. Contudo, em termos financeiros, o ministro tinha que ultrapassar grandes obstáculos para levar avante os seus projectos. Portugal estava numa difícil e complicada situação financeira que, aparentemente, não se harmonizava com o largo investimento que estava na mente do titular das obras públicas. Era necessária uma solução e Elvino de Brito tinha-a. De facto, “anima-me a convicção de que, sem novos encargos para o thesouro, se poderá melhorar consideravelmente a exploração das linhas ferreas do estado, e construir a parte complementar das nossas actuaes redes ferroviarias”090. No entanto, o recurso ao crédito através da emissão de títulos de dívida estava completamente posto de parte, como o próprio autor do relatório confessava: “deve, acaso, o estado ir engrossar a sua divida e complicar as questões que o regimen d’ella suscita, recorrendo ao credito, nas condições habituaes, para effectuar essas construcções? Seguramente, não”091. As verbas para estes planos seriam angariadas de forma diferente. O ministro propunha que o capital para o melhoramento e ampliação da rede fosse composto pela verba anualmente inscrita no orçamento e pelas receitas ligadas à operação ferroviária. Para a realização deste pensamento surgiu o fundo especial dos caminhos-de-ferro do estado, que seria composto pelos aumentos da receita dos impostos de trânsito e selo cobrados em toda a rede e da receita líquida da exploração das linhas públicas (em 088
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 11.
089
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 12.
090
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 12.
091
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 13.
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Portugal na viragem do século
relação aos valores de 350 e 750 contos, respectivamente). O fundo seria também engordado pelo aumento das receitas e diminuição das despesas proporcionados pelas novas linhas propostas, ou seja, pelo incremento da colecta do imposto de trânsito e pela redução das garantias de juro concedidas a companhias (em relação a valores-base de, respectivamente, 220 e 672,5 contos). Receitas extraordinárias ligadas à ferrovia, como juros de depósitos das receitas de exploração, o valor do subsídio à navegação para o Algarve que deixaria de ser pago após a construção do ramal de Portimão, doações de corporações locais e depósitos de garantia de concessões que revertessem para o estado seriam também canalizadas para o fundo especial. Em suma, “nada mais rasoavel do que applicar á despeza altamente productiva da construcção de novas linhas, que tão salutar influencia exercerão no desenvolvimento da riqueza publica, o excesso de receitas que dos proprios caminhos de ferro provenha”092. O ministro estimava que ao fim de um ano, o fundo contaria com cerca de 200 contos e ao fim de 15 anos com perto de 800 contos. Estas verbas deveriam depois ser consagradas aos encargos de empréstimos sucessivos para a construção de novas linhas, à renovação do material circulante e à realização de obras complementares. Com uma capacidade de cobrir encargos de empréstimos até 1.200 contos, o ministro contava abrir em média 50 a 60 km de novos caminhos-de-ferro por ano. O ministro não arrogava para o estado o direito exclusivo de construir estas novas linhas, nem fechava a porta à iniciativa privada. Em termos administrativos, Elvino de Brito propunha ainda a criação de uma nova entidade denominada caminhos-de-ferro do estado, gerida através de um conselho de administração sediado em Lisboa, numa tentativa de descentralizar e desburocratizar a gestão das linhas operadas pelo governo. “Descentralisação de serviços; expedição rapida de negocios; acquisições de materiaes, realisadas legal e opportunamente; fornecimentos em commum, sem encargos duplicados ou superfluos; admissão e destituição do pessoal, conforme as regras previamente definidas e subordinadas ás conveniencias e necessidades occorrentes; orçamentos seguros e rigorosamente proporcionados ás exigencias da administração; receitas arrecadadas e applicadas em condições legaes e compativeis com a indole especial dos respectivos serviços; pagamentos pontualmente realisados e rigorosamente fiscalisados, sem as delongas que sempre prejudicam e muitas vezes desacreditam a exploração: – taes são, em summa, as vantagens que desejo realisar nos serviços dos caminhos de ferro explorados pelo estado, confiando-os á superintendencia do conselho de administração, ao qual ficarão immediatamente subordinados os directores dos caminhos de ferro do Minho o Douro e de Sul e Sueste”093. 092
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 14.
093
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 13.
209
A linha do Tua (1851-2008)
Em relação às linhas prioritárias a assentar, o ministro antecipava-se aos trabalhos das comissões nomeadas anteriormente por si (só entregariam os seus relatórios em Maio e Julho de 1899) e indicava-as ao parlamento. Eram elas os prolongamentos das vias do Algarve (de Faro a Vila Real de Sto. António) e do Tua (de Mirandela a Bragança) e ainda os ramais de Portimão e de Pias a Moura. Estes eram caminhos-deferro que seriam incluídos mais tarde nas redes propostas pelas comissões, sendo por isso provável que o ministro tenha conferenciado com os engenheiros antes de propor a lei ao legislativo. Representavam ainda, segundo o ministro, a satisfação de justas reclamações dos povos algarvios, alentejanos e transmontanos. No caso particular da linha de Bragança, “alem de representar o pagamento de uma divida sagrada ao districto mais desfavorecido do paiz, tem a vantagem de reduzir consideravelmente com o seu trafego a garantia de juro na de Mirandella a Foz-Tua, augmentando, ao mesmo tempo, as receitas do caminho de ferro do Douro”094. A proposta passou despercebida na resposta à coroa discutida dias depois, mas até à sua apresentação sob a forma de projecto de lei em 22 de Abril de 1899, após apreciação das comissões parlamentares de fazenda e obras públicas, vários deputados procuraram incluir as suas regiões nas intenções do governo. Assim o fizeram Oliveira Matos em favor da linha de Arganil, António Cabral em defesa das linhas de Braga a Monção e Chaves ou Teixeira de Sousa em relação à linha do Corgo095. Alguns destes parlamentares militavam na oposição ao governo nas fileiras do partido regenerador. Seria pois de esperar que o diploma pudesse agregar regeneradores e progressistas na sua aprovação. Além do mais, apostava naquilo que aqueles sempre apostaram: os caminhos-de-ferro. No entanto, em ambas as casas do parlamento, os regeneradores, quando não viam no projecto “um verdadeiro poisson d’avril para entreter a camara nos seus ocios e illudir o paiz nas suas esperanças”096, temiam o impacto do projecto de lei sobre as finanças públicas. Por outro lado, afirmavam preferir a realização de melhoramentos nas vias-férreas já existentes e a construção de estradas de acesso às estações. A própria comissão de obras públicas fermentou a acção da oposição ao antepor no texto do seu parecer a melhoria dos caminhos-de-ferro já em operação à construção de novas ferrovias. A oposição relevou o facto de a comissão ter aumentado em 500 contos as verbas do fundo especial dos caminhos-de-ferro e de ter adicionado duas outras linhas ao rol inicialmente proposto pelo ministro097. Uma vez mais, foi o espírito de oposição que imperou, que, aliás, ficou bem demonstrado numa das intervenções de Teixeira de Sousa, deputado regenerador na094
Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 17. Para a proposta de lei, ver Diario da Camara dos Deputados, 27.2.1899: 11-19.
095
Diario da Camara dos Deputados, 7.3.1899, 9.3.1899 e 18.4.1899: 5-6, 3-4 e 4.
096
Diario da Camara dos Deputados, 26.4.1899: 7 (Teixeira de Vasconcelos).
097
Arquivo histórico parlamentar. Secção VI, cx. 215, projecto de lei n.º 147.
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Portugal na viragem do século
tural do distrito de Vila Real (Sabrosa). Depois de muito criticar o projecto, acabou por propor à mesa que na lista de caminhos-de-ferro constante do texto do diploma se incluísse também a sua linha do Corgo098. Por outro lado, os regeneradores tanto davam a entender que temiam que a proposta governamental tivesse como objectivo escondido a alienação das linhas-férreas do estado, como, logo a seguir, sugeriam que a construção das linhas aventadas fosse feita exclusivamente por capital privado ao qual se concederiam isenções fiscais alargadas. Fosse como fosse, a verdade é que muitos deputados – inclusivamente alguns regeneradores – acreditavam na possibilidade de os planos de Elvino de Brito serem exequíveis, de tal modo que procuraram incluir no arrolamento de linhas previsto a priori na lei caminhos-de-ferro que servissem as suas regiões de influência, eleição ou naturalidade. Parlamentares tipicamente de campanário, ou seja, que apenas advogavam os interesses locais no parlamento, como Joaquim Veiga, Henrique Kendall, Eduardo José Coelho, Tomás Ribeiro, Oliveira Matos, Gonçalves Braga, Chaves Mazzioti, o visconde de Serra da Tourega, Vieira de Castro ou Eusébio Nunes099 pediram a palavra durante e depois da discussão para convencer o ministro a abranger mais ferrovias nos seus planos. Estas solicitações vinham particularmente de parlamentares das regiões entre o Tejo e o Mondego, área esquecida pelo ministro no projecto de lei que gizara. No fundo, esses deputados exigiam equidade, “porque nós, os da provincia da Beira, também somos gente”100. Após cerca de duas semanas de discussão, o projecto foi aprovado. Apesar da resistência movida pelos regeneradores (por puro espírito de oposição, mas também aproveitando a mudança de opinião do governo e os fantasmas do aumento da despesa), o governo conseguiu passar o diploma nas duas casas do parlamento e promulgá -lo como lei de 14 de Julho de 1899101. O trabalho continuava agora nas mãos dos engenheiros das duas comissões criadas pelo ministro, que nomearia uma terceira, por decreto de 27 de Setembro de 1899 para levar a cabo a mesma missão que as suas congéneres, mas para o tracto de terreno nacional entre o Mondego e o Tejo102. As comissões nomeadas para a análise das redes a norte do Mondego e sul do Tejo rapidamente estabeleceram contactos com os concelhos de todo o reino. Enviaram um questionário tipo no qual genericamente pediam informações sobre o potencial económico dos concelhos, ferrovias cuja construção aconselhavam e se estavam ou não dis098
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1899: 5-12.
099
Diario da Camara dos Deputados, 15.5.1899, 19.5.1899, 25.5.1899, 10.6.1899, 8.7.1899: 3, 5-6, 3, 2-3, 3.
100
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 18.5.1899: 357 (Luís Bandeira Coelho).
101
FINO, 1883-1903, vol. 3: 488-495. Para mais detalhes sobre o decreto de 6 de Outubro de 1898, a lei de 14 de Julho de 1899 e os planos de Elvino de Brito, ver: ALEGRIA, 1990. SANTOS, 2011.
102
PORTUGAL, 1905.
211
A linha do Tua (1851-2008)
poníveis para contribuir financeiramente para as obras. A generalidade dos concelhos pediu vários caminhos-de-ferro, outros contentavam-se meramente com estradas, mas a maioria esmagadora revelava-se sem capacidade ou sem vontade para dar dinheiro ao governo para estes melhoramentos. Respostas idênticas obteve a comissão do estudo da malha férrea entre o Mondego e o Tejo, que iniciou e concluiu a sua tarefa mais tarde que as suas congéneres. No distrito de Bragança, responderam ao inquérito, solicitando o caminho-de-ferro de Mirandela a Espanha pela capital de distrito, as câmaras de Bragança, Vinhais e Vimioso. Todas esperavam deste investimento um desenvolvimento da sua agricultura, pecuária e mineração. Nenhuma, porém, se mostrava disponível para auxiliar financeiramente a construção103… A prioridade dada às regiões de influência das linhas do estado fica aqui mais uma vez bem patente. Ao passo que as duas comissões criadas em Outubro de 1898 terminaram os seus afazeres em meados de 1899, a equipa nomeada para o exame da região entre o Mondego e o Tejo só entregou o seu relatório final em 1901104. Analisando o trabalho das duas primeiras comissões, as redes que propunham tinham como principal objectivo ligar as diversas regiões do norte e sul do país a Porto e Lisboa, respectivamente, criando ainda dois grandes núcleos ferroviários em Chaves e Évora. As linhas até Espanha eram completamente desvalorizadas, “haja vista a experiencia das outras ligações internacionaes, cujos resultados não corresponderam ás esperanças que n’ellas se tinha depositado”105. O processo de aprovação das tramas sugeridas foi, porém, emperrado pelo ministério da guerra, que devia dar a sua opinião sobre as implicações militares das novas linhas sobre a defesa nacional106. Deste modo, o decreto que aprovava a rede a norte do Mondego só foi publicado a 15 de Fevereiro de 1900. Seguiu-se o diploma que ratificava com força de lei os caminhos-de-ferro a construir a sul do Tejo (publicado em folha oficial a 27 de Novembro de 1902). Por fim, o édito que fixava a malha ferroviária das Beiras, entre o Mondego e o Tejo só foi assinado pelo rei a 19 de Agosto de 1907. No total, projectavam-se mais de 3 mil km de vias-férreas (perto de 1.300 a norte de Mondego, cerca de 800 entre este rio e o Tejo e pouco mais de mil nas províncias do sul do reino). As linhas foram hierarquizadas em cinco classes, que tanto incluíam caminhos-de-ferro de bitola estreita, como de bitola normal107.
103
PORTUGAL, 1899a. PORTUGAL, 1899b. PORTUGAL, 1905. Ver também PINHEIRO et al., 2011.
104
PORTUGAL, 1899a. PORTUGAL, 1899b. PORTUGAL, 1901. PORTUGAL, 1905.
105
PORTUGAL, 1899b.
106
PEREIRA, 2012a: 322.
107
ALEGRIA, 1990. SANTOS, 2011: 159.
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Portugal na viragem do século
Mapa 25 – Proposta de rede das comissões nomeadas por Elvino de Brito108
108
PORTUGAL, 1899a. PORTUGAL, 1899b. PORTUGAL, 1901. PORTUGAL 1905. Ver também ALEGRIA, 1990.
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A linha do Tua (1851-2008)
A extensão das redes a assentar a norte e sul do país e a sua hierarquização comprovam que o plano projectado pretendia beneficiar claramente as zonas de influência económica das linhas públicas e em particular o norte interior do país. Se esta malha passasse do papel para o terreno, Trás-os-Montes ficaria tão bem servido de caminhosde-ferro como as demais regiões nacionais. Por outro lado, Portugal dotava-se finalmente de uma lei que predeterminava quais os caminhos-de-ferro a construir, quase 50 anos após o início da construção ferroviária no país. Também Bragança, sede da casa reinante, à qual dava o nome, se via enfim englobado nos planos ferroviários do governo de Lisboa.
214
A extensão da linha do Tua a Bragança
4. A EXTENSÃO DA LINHA DO TUA A BRAGANÇA
4.1. A ACÇÃO DOS BEÇAS NA OUTORGA DA LINHA Hugo Silveira Pereira109
De entre os influentes que pugnaram em finais do século XIX e inícios do século XX pela construção da extensão da linha do Tua até Bragança, o destaque vai inteiramente para Abílio Beça e para o seu irmão José Beça. Abílio José Augusto Ferro de Madureira Beça nasceu a 20 de Agosto de 1856 em Vinhais, filho de José António Ferro de Madureira Beça e Maria Augusta de Morais Beça110. Terá frequentado o liceu de Bragança, após o que ingressou no curso de direito da universidade de Coimbra (Outubro de 1875). Em Maio de 1879, recebeu o grau de bacharel e um ano depois concluiu os estudos superiores111. Habilitado com o curso de direito, Abílio Beça passou a exercer advocacia em Bragança, onde abriu uma banca, na rua de Trás112. A posse de um grau universitário fortaleceu a sua posição na elite local e tornou-o elegível para o parlamento113. O curso de direito “além de facultar a aprendizagem dos assuntos legais e administrativos, adestrava os estudantes na eloquência retórica, era
109
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa). Os capítulos 4.1 a 4.5 são baseados em PEREIRA, 2015.
110
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. MÓNICA, 2005, vol. 1: 357.
111
Arquivo da universidade de Coimbra. Universidade de Coimbra. Cartas de curso. Direito (1880), 3.ª série, cx. 76 (AUC-IV-2.ªD-13-3-6). MÓNICA, 2005, vol. 1: 357.
112
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358.
113
ALMEIDA, 1991: 39-42. ALMEIDA & MORENO LUZÓN, 2012: 24. CRUZ, 2009: 94-95. SOUSA, 2013, vol. 1: 185. 215
A linha do Tua (1851-2008)
o viveiro natural dos homens políticos e, em particular, dos futuros parlamentares”114. Por volta de 1880, Abílio Beça tornou-se também professor de história e geografia no liceu de Bragança, cargo que acumulava com o de docente de francês no seminário diocesano115. A partir de 1886, assumiu as funções de director de jornal, primeiro n’O Brigantino e depois na Gazeta de Bragança116. Figura 92 – Abílio José Augusto Ferro de Madureira Beça117
Casou a 17 de Maio de 1882 em Macedo de Cavaleiros com Ana Clotilde de Sá Machado Leitão Bandeira, filha única de João Carlos Leitão Bandeira e de Leopoldina Carolina de Sá Machado Pavão. O casal teve seis filhos, mas cinco deles faleceram precocemente. Os Leitões Bandeira eram uma família com uma grande história e tradição. As suas origens remontam a finais do século XVII, mas as raízes dos seus dois ramos (Leitão e Bandeira) vão até à Idade Média. Na década de 1720, radicaram-se no distrito de Bragança, onde cimentaram a sua influência com a implantação do regime liberal. O sogro de Abílio Beça era um dos quarenta maiores contribuintes do concelho e, como tal, foi político. Entre 1870 e 1892, desempenhou diversos cargos administrativos autárquicos, inicialmente sob a égide do partido progressista (o qual ajudou a estabelecer em Bragança), mas depois como militante do partido regenerador118. A carreira política de Abílio Beça começou em 1884, ano em que foi nomeado vogal da comissão executiva da junta geral do distrito, provavelmente sob os auspícios 114
ALMEIDA & MORENO LUZÓN, 2012: 41.
115 Arquivo nacional Torre do Tombo. Registo Geral de Mercês de D. Luís I, liv. 43, f. 258v-259v. ALVES, 2000, vol. 3: 417-420. MÓNICA, 2005, vol. 1: 357. 116
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. MÓNICA, 2005, vol. 1: 357.
117
Illustracão Portugueza, 1910, n.º 222: 26.
118
LEITÃO-BANDEIRA, 2010: 252. MÓNICA, 2005, vol. 3: 357.
216
A extensão da linha do Tua a Bragança
do sogro no seio do partido progressista. É também possível que a sua luta pela linha de Bragança se tenha iniciado neste ano, já que por esta mesma altura a junta geral enviou uma representação à câmara dos deputados, solicitando que o caminho-deferro que então se construía no Tua não se ficasse por Mirandela e alcançasse também Bragança119. Segundo O Brigantino, Abílio Beça escreveu ainda alguns artigos n’O Primeiro de Janeiro, defendendo que a linha do Tua deveria ser feita pela margem esquerda do rio para facilitar a sua futura continuação até Bragança120. Anos mais tarde, O Seculo confirmava que “o sr. Abilio Beça encetou na imprensa uma larga propaganda a favor do prolongamento d’esta linha até Bragança, fazendo estabelecer uma forte corrente de opinião no alto districto”121. Entretanto, em finais da década de 1880, Abílio Beça abandonou o partido progressista e aproximou-se da ala mais à esquerda dos regeneradores, a chamada esquerda dinástica, movimento político formado por Augusto César Barjona de Freitas. Concorreu com o patrocínio deste partido às eleições para o parlamento de 1889, mas não conseguiu ser eleito122. Figura 93 – Eduardo José Coelho123
Por esta altura, o seu principal rival político em Bragança era o progressista Eduardo José Coelho, que na altura era ministro das obras públicas. Quando Coelho tentou retrazer o projecto de 1888 de Emídio Navarro às câmaras, juntou numa só proposta de lei as linhas do Tua e de Arganil, não conseguindo fazer aprovar nenhuma delas. De 119
SOUSA, 2013, vol. 1: 255.
120
O Brigantino, n.º de Dezembro de 1889: 2.
121
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
122
O Brigantino, 29.3.1889: 158. Gazeta de Bragança, 11.5.1902, n.º 521. SOUSA & MARQUES, 2004: 243.
123
Illustracão Portugueza, 1904, n.º 51: 808-809.
217
A linha do Tua (1851-2008)
imediato O Brigantino aconselhou os seus leitores a “entoar um doloroso de profundis e derramar sentidas lagrimas sobre o projecto do prolongamento do caminho de ferro do Tua até Bragança”124. A carreira política de Abílio Beça sofreu uma reviravolta com a extinção da esquerda dinástica, após o seu líder e fundador ter sido enviado para Inglaterra como ministro extraordinário em 1890 no âmbito do processo diplomático espoletado pelo ultimato inglês125. Foi então que Abílio Beça ingressou no partido regenerador e chegou ao parlamento126. Foi eleito pela primeira vez para São Bento em 1894, mas a sua acção em prol da linha de Bragança foi nula, pois a legislatura foi abruptamente terminada pouco mais de um mês depois da sua abertura127. O executivo regenerador governou em ditadura até 1896, pelo que o parlamento só reabriu novamente as suas portas neste ano. Nas eleições realizadas a 17 de Novembro de 1895, o partido regenerador concorreu praticamente sozinho às urnas, em virtude da desistência dos progressistas que assim protestavam contra a lei eleitoral entretanto decretada128. Abílio Beça apresentou candidatura pelo círculo de Bragança e foi naturalmente eleito para um parlamento quase totalmente regenerador, o qual os adversário apelidaram de Solar dos Barrigas129. Figura 94 – O Solar dos Barrigas130
124
Cf. O Brigantino, 28.2.1889, n.º 152: 1. 14.3.1889, n.º 156; 29.3.1889, n.º 158; 20.6.1889, n.º 170; n.º de Dezembro de 1889: 2.
125
SOUSA & MARQUES, 2004: 243.
126
Gazeta de Bragança, 14.10.1906, n.º 751. Norte Transmontano, 8.10.1896, n.º 82: 1.
127
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358.
128
ALMEIDA & MORENO LUZÓN, 2012: 21-22.
129
Arquivo histórico parlamentar. Caixa 1924. Tribunal de verificação de poderes. Auto da eleição do círculo n.º 4 (Bragança).
130
O António Maria, 7.3.1896, n.º 433: 4.
218
A extensão da linha do Tua a Bragança
Foi nesta sessão legislativa que Abílio Beça iniciou a sua luta parlamentar que levaria à abertura de concurso para a construção da continuação da linha do Tua até Bragança. Num longo discurso proferido em 7 de Fevereiro de 1896, Abílio Beça começou por “chamar á attenção do governo e em especial do sr. ministro das obras publicas para a situação em extremo precaria e, a certos respeitos, quasi alarmante em que se encontram alguns concelhos do districto de Bragança”. No seu entender, a solução passava pela continuação da política de obras públicas, da qual “o districto de Bragança tem sido sempre (…) o mais esquecido, o mais desprezado pelos governos d’este paiz”. A falta de meios de transportes fazia de Trás-os-Montes a província mais desconhecida do reino, apesar das riquezas que – asseverava – o seu solo e subsolo continham. Por exemplo, as grutas de alabastro com “caprichosos rendilhados de stalactites e stalagmites” eram tão belas e curiosas que “se houvesse próximo uma estação de caminho de ferro, formar-se-ía para ali uma constante romaria de nacionaes e estrangeiros, para as visitar”. Por isso o deputado brigantino solicitava ao ministro das obras públicas, Campos Henriques, que decretasse a construção de mais estradas em Bragança e sobretudo abrisse concurso para a extensão da linha do Tua. Apesar de Portugal estar a passar por uma grave crise financeira, Abílio Beça não tinha receio em falar de investimento em caminhos-de-ferro e sobretudo na extensão de Bragança, uma vez que sua urgência e o alegado retorno seguro do investimento eram razões mais que ponderosas. Por outro lado, aumentava-se o tráfego na linha do Tua (a cuja companhia o estado pagava uma garantia de juro) e na linha do Douro (propriedade pública)131. Campos Henriques prometeu a Beça uma resposta, mas esta tardava, pelo que o deputado voltou à carga a 29 de Fevereiro seguinte, lançando “alvitres sobre a maneira pratica de se construir um caminho de ferro para Bragança” com o qual “lucraremos todos, lucrará a nação inteira”. Abílio Beça apresentava quatro soluções. Em primeiro lugar, falou da construção de uma linha pelo sistema decauville (ferrovia com bitola de 60 cm, que admitia curvas até 25 m de raio e inclinações de 8%132). Contudo, este sistema tinha várias limitações a não mais pequena das quais a diferença de bitola em relação à linha do Tua. O ideal era assim prolongar em bitola métrica o caminho-de-ferro até Bragança, num investimento que o orador calculava ser de cerca de 1.000 contos de reis. O montante podia ser adquirido por empréstimo, usando-se a diminuição da garantia de juro paga à Companhia Nacional e o aumento de rendimento da linha do Douro para pagar o juro e a amortização do mesmo. “Parece-me ser este um alvitre que com vantagem se póde adoptar. Mas quando não queira acceitar este, posso indicar um outro”. Considerando que a Companhia Nacional era a grande interessada na linha, mas estava em graves dificuldades financeiras, o estado podia aceitar 131
Diario da Camara dos Deputados, 7.2.1896: 220-224.
132
PEREIRA, 2012a: 436.
219
A linha do Tua (1851-2008)
reembolsá-la dos custos da construção em seis anos e com esta garantia a empresa angariava os capitais necessários à obra. “Mas para que não falte onde se escolha, e para que o governo não possa allegar desculpa de nada fazer sobre o assumpto, ainda posso indicar uma outra fórma pratica de se realisar o emprehendimento, a favor do qual propugno”. Essa forma era utilizar os milhares de operários empregados em Lisboa em “obras de utilidade muito contestável” na construção da linha, em vez de se andar a “inventar obras” na capital. Se com tantos alvitres o governo nada fizesse, “é porque realmente não tem boa vontade em attender às fundadas e legitimas reclamações do districto de Bragança, de que a minha voz e apenas um fraco echo”133. Na resposta, Abílio Beça obteve do ministro as promessas e banalidades próprias de um momento em que não se podia decidir nem positiva nem negativamente. Nas correntes circunstâncias da fazenda, o governo só podia acudir às despesas “tambem importantes e impreteriveis, como são, por exemplo, as que dizem respeito á renovação do material de guerra e á compra de navios, o que obsta a que esta obra se possa fazer imediatamente134. Figura 95 – Artur Alberto de Campos Henriques135
Segundo o abade de Baçal, a acção de Abílio Beça não se limitou ao parlamento. Depois de os seus discursos não terem tido o efeito pretendido, “Abílio Beça não 133
Diario da Camara dos Deputados, 29.2.1896: 381-384.
134
Diario da Camara dos Deputados, 29.2.1896: 384-385:
135
Library of congress. Prints and photographs reading room, http://loc.gov/pictures/resource/ggbain.00739.
220
A extensão da linha do Tua a Bragança
esmorece na propaganda escrita e verbal; procura adeptos por toda a parte entre os homens de valor que podem auxiliá-lo; mete-se, insinua-se, teima, importuna, calcula, combina, aplana, reclama, impõe-se numa persistência de fanático regionalista, e mais a mais consegue criar atmosfera propícia”136. Documentalmente, só se conhece uma tentativa de realizar um comício em Bragança em Abril de 1896 para discutir uma representação a enviar ao rei, pedindo-lhe a construção do caminho-de-ferro. No entanto, a assembleia acabou por não se realizar, alegadamente por pressão do governo137. A sessão de 1896 terminou a 9 de Maio e Abílio Beça regressou a Bragança, onde reocupou o seu lugar na política autárquica local. Os trabalhos parlamentares foram retomados a 2 de Janeiro de 1897 para a segunda sessão da legislatura. Esta, contudo, esteve em funções apenas por mais um mês, pois o governo foi demitido e parlamento foi dissolvido a 8 de Fevereiro. Para o lugar do regenerador Hintze Ribeiro era escolhido o líder progressista Luciano de Castro. Estes eventos provocaram uma interrupção na carreira e no lobbying parlamentar de Abílio Beça. As novas eleições foram marcadas para o dia 2 de Maio de 1897138. Como seria de esperar, os progressistas conseguiram uma larga maioria a nível nacional e, em Bragança, Abílio Beça não conseguiu a eleição139. Como vimos em capítulo anterior, o governo de Luciano de Castro tomou medidas decisivas para relançar a construção ferroviária em Portugal, designadamente o decreto de 6 de Outubro de 1898 e a lei de 14 de Julho de 1899. Os progressistas de Bragança exultaram com a decisão do governo progressista140. Em relação à posição do partido regenerador local, não foi possível encontrar os números da Gazeta de Bragança para este período em particular, que permitissem analisá-la. Contudo, Abílio Beça sempre defendeu a necessidade da construção da linha e nunca negou os apoios à sua realização, mesmo se viessem do partido adversário. Assim, o mais provável é que tivesse acolhido com entusiasmo os planos de Elvino de Brito. De facto, um número de 1905 da Gazeta de Bragança relata que em 1899 Abílio Beça e outros regeneradores se dirigiram a Foz-Tua para se encontrarem com Elvino de Brito e lhe agradecerem o favor de ter inserido a linha de Bragança na lista de caminhos-de-ferro prioritários141. Tempos depois, o governo convocou novas eleições para 26 de Novembro de 1899. Obteve uma maioria absoluta, mas Abílio Beça, desta vez, conseguiu também 136
ALVES, 2000, vol. 9: 227.
137
O Nordeste, 21.4.1896, n.º 358. Norte Transmontano, 9.4.1896, n.º 56: 2; 14.5.1896, n.º 61: 2; 16.4.1897, n.º 11: 1.
138
SOUSA & MARQUES, 2004: 516-517.
139
Norte Transmontano, 7.5.1897, n.º 14: 1.
140
O Nordeste, 1.3.1899, n.º 505
141
Gazeta de Bragança, 15.1.1905, n.º 661. O Nordeste, 19.7.1906, n.º 996: 2.
221
A linha do Tua (1851-2008)
a eleição. Contudo a sua acção parlamentar foi bastante discreta. Lutou por outros interesses bragançanos que não o caminho-de-ferro. O governo progressista manteve-se em funções até 24 de Junho de 1900, quando foi substituído por um executivo regenerador. Como era usual nestas situações, o rei dissolveu o parlamento e convocou novas eleições (para Novembro)142. Abílio Beça não concorreu ao sufrágio, pois foi nomeado governador civil de Bragança (a 6 de Julho de 1900) pelo novo ministro do reino e também presidente do conselho e líder do partido regenerador, Hintze Ribeiro143. Na condição de governador civil, o antigo deputado retomou os contactos com os “altos poderes do Estado” no sentido de dotar Bragança de um caminho-de-ferro. Ao longo de 1900, dirigiu-se por várias vezes à capital, sendo recebido pelos reis e pelo presidente do conselho144. Contudo, para exercer uma pressão constante sobre o governo era necessária uma presença mais constante em Lisboa e no parlamento. Abílio Beça escolheu o seu irmão José para a tarefa. Os progressistas consideravam “o mano Zé (…) um passarinho blanc-bec [homem jovem e sem experiência] (…) absolutamente inutil no parlamento”145. A apreciação do jornal ao candidato regenerador era manifestamente injusta. José Beça tinha já um considerável currículo quando se candidatou a São Bento. Tinha conhecimentos académicos (era engenheiro) e experiência profissional (trabalhara na construção da linha de Mirandela e nos estudos do caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança) suficientes para defender eficazmente a extensão da via-férrea do Tua em Lisboa. Tinha, ademais, a motivação de pugnar pelos interesses da sua região, de reforçar a influência regeneradora no distrito, de garantir o futuro político da sua família e de abrir novos horizontes para o seu próprio porvir profissional (como engenheiro e conhecedor da região seria decerto convidado a participar ou até dirigir a obra). José Beça foi eleito pelo círculo de Bragança nas eleições realizadas a 25 de Novembro de 1900 para a sessão legislativa iniciada em 2 de Janeiro de 1901146. A sua acção nesta sessão foi bastante discreta. No hemiciclo, interveio por poucas vezes e apenas para apresentar documentos à mesa ou para manifestar a sua intenção de voto. Desenvolveu uma actividade bem mais relevante nas comissões parlamentares a que pertencia147. 142
MARQUES, 1991: 681.
143
ALVES, 2000, vol. 1: 357-358 e 417-420. SOUSA et al., 2005: 131-134.
144
Gazeta de Bragança, 8.4.1900, n.º 414; 14.10.1900, n.º 440; 18.11.1900, n.º 445: 1; 3.3.1901, n.º 459. O Nordeste, 25.7.1900: n.º 685. O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
145
O Nordeste, 31.10.1900, n.º 699.
146
Boletim Parlamentar do Districto de Bragança, 17.2.1901, n.º 1: 2.
147
Para a acção parlamentar de Beça neste período, ver: Boletim Parlamentar do Districto de Bragança, 14.5.1901, n.º 4: 4. Diario da Camara Dos Deputados, 7.1.1901: 2; 25.2.1901: 3; 2.4.1901: 27; 22.4.1901: 2;
222
A extensão da linha do Tua a Bragança
A falta de intervenções sobre o caminho-de-ferro de Bragança pode parecer estranha. No entanto, nesta altura, José Beça pouco ou nada podia dizer no parlamento para realizar o ensejo dos brigantinos. O governo dispunha de autorização legal para iniciar a construção da linha, mas faltavam-lhe os capitais necessários148. Os Beças sabiam que aquela não era a hora de falar, mas sim de agir. Por isso, José Beça – segundo a sua biografia escrita pelo seu irmão Abílio – iniciou uma campanha de sensibilização a favor da linha de Bragança em jornais, centros de discussão, meios de negócio e em todas as estações oficiais149. Os periódicos da época (Gazeta de Bragança e Gazeta dos Caminhos de Ferro) confirmam que José Beça negociou com alguns potenciais capitalistas e com o ministro das obras públicas, Manuel Francisco Vargas, pelo menos desde Março de 1901. Um desses investidores foi a casa Zagury & C.ª de Londres, que – segundo o próprio José Beça – em Maio apresentou ao governo uma proposta, requerendo a concessão da linha e uma garantia de juro de 4,5%150. A oferta foi aceite pelo ministro, na condição de a adjudicação ser feita por concurso público. A exigência não contentou o proponente, que pretendia uma adjudicação directa para evitar as demoras burocráticas. Contudo, o ministro não abdicou da sua pretensãoe decidiu abrir concurso151. Abílio Beça encontrava-se na capital desde finais de Maio para assistir ao juramento do príncipe real e para participar no conselho de estado152. É pois provável que tenha tido alguma influência na decisão do ministro das obras públicas. Contudo, na ausência de fontes, só se pode especular sobre a acção dos Beças neste processo. A ida do governador civil a Lisboa pode ter tido outro fito: impedir que a autoridade do ministro da marinha Teixeira de Sousa colocasse a linha do Corgo à frente da linha de Bragança. Teixeira de Sousa era natural de Sabrosa no distrito de Vila Real e portanto tinha todo o interesse em aproveitar a oportunidade para beneficiar a sua zona de naturalidade e influência. Apesar de ser correligionário de Abílio Beça, pretendia furtar-lhe a liderança política regeneradora em Bragança. Neste distrito, aliás, contava com apoiantes próprios que faziam uma oposição surda ao próprio governador civil153. 3.5.1901: 19; 11.5.1901: 23 e 29-30. MÓNICA, 2005, vol. 1: 359-360. 148
PEREIRA, 2012b: xliii.
149
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1.
150
Gazeta de Bragança, 10.3.1901, n.º 460: 1.
151
Gazeta de Bragança, 10.3.1901, n.º 460; 2.6.1901, n.º 472; 16.6.1901, n.º 474; 15.9.1901, n.º 487; 20.10.1901, n.º 492: 1. Gazeta dos Caminhos de Ferro, 16.3.1901, n.º 318: 91; 16.5.1901, n.º 322: 156; 16.6.1901, n.º 324: 179-180; 16.10.1901, n.º 332: 342. ALVES, 2000, vol. 9: 227. PEREIRA, 2012b: xlii. SOUSA, 1903: 66. SOUSA, 1905.
152
Gazeta de Bragança, 26.5.1901, n.º 471; 2.6.1901, n.º 472. O Nordeste, 29.5.1901, n.º 729.
153
COELHO, 1901: x. ALVES, 2000, vol. 7: 690-691. MÓNICA, 2005, vol. 3: 803
223
A linha do Tua (1851-2008)
O jornal progressista de Bragança, O Nordeste, confirmava precisamente as diligências do ministro da marinha para sabotar a linha do Tua em benefício da linha da Régua a Vila Real. Segundo aquele jornal, em conselho de ministros, Teixeira de Sousa mostrara-se manifestamente contra a extensão do caminho-de-ferro do Tua154. Assim, tudo leva a crer que a luta entre os Beças e o ministro da marinha foi real e que os primeiros saíram vencedores da disputa com a abertura de concurso para a continuação do caminho-de-ferro de Mirandela até Bragança. Mesmo sem a certeza de aparecerem candidatos à concessão, a mera colocação do caminho-de-ferro em hasta pública era já uma enorme vitória para Abílio Beça. Os agradecimentos que endereçou no paço das Necessidades ao rei e à rainha e em Algés a Hintze Ribeiro eram mais que justificados155. Na capital do distrito, a Gazeta exultava com “a perspectiva que agora se nos antolha mais segura e fagueira do advento da viação acelerada até esta cidade” e não se esquecia de “victoriar os nomes sympathicos e queridos dos leaes campeões e propugnadores das regalias brigantinas, os srs. dr. Abilio Beça e José Ferro de Beça”, juntamente com o do “sempre amigo de Bragança”, Emídio Navarro156. O Nordeste não estava tão optimista quanto a Gazeta, nem a emulava nos elogios aos Beças. O jornal progressista via na declaração do ministro um mero estratagema eleitoral, tendo em vista as eleições de Outubro seguinte157. Na verdade, o o acto do ministro não foi apenas um acto eleitoralista, uma vez que veio acompanhado de outros diplomas que o efectivavam. Por portaria de 25 de Setembro de 1901, o ministro, ouvido o conselho técnico de obras públicas, aprovou o projecto para o caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança e a elevação do orçamento do mesmo de 1.447 para 1.558 contos. O troço final da ferrovia ficava em suspenso, de acordo com a portaria de 10 de Junho de 1887, que determinava que a estação terminal fosse construída de modo tal que permitisse o eventual prolongamento da via até Espanha e Miranda do Douro. De qualquer modo, aprovado o grosso do projecto, o ministro determinou, por decreto de 10 de Outubro de 1901, o objecto e as bases do concurso: construção e exploração durante 99 anos da linha de Mirandela a Bragança; atribuição de uma garantia de juro de 4,5%; e licitação sobre o custo quilométrico, reservando-se o executivo o direito de não escolher a proposta mais baixa. O contrato a assinar com o vencedor do concurso seria provisório, até ser aprovado pelas cortes158. O expediente do ministro foi apenas o primeiro passo de um longo percurso para 154
O Nordeste, 26.6.1901, n.º 733: 3.
155
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474: 3. O Nordeste, 21.8.1901, n.º 741; 23.10.1901, n.º 750; 30.10.1901, n.º 751: 1.
156
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474: 1 e 3; 28.7.1901, n.º 480: 1.
157
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474; 28.7.1901, n.º 480: 1.
158
FINO, 1883-1903, vol. 3: 748-752. PEREIRA, 2012b: xlii.
224
A extensão da linha do Tua a Bragança
a realização da linha. Faltava ainda encontrar quem levasse a tarefa a cabo. Zagury, o único empresário que tinha mostrado interesse na obra, continuava em jogo, mas não tinha assinado qualquer contrato. Exagerava – para não dizer mentia –, pois, a Gazeta ao noticiar que a sua companhia já tinha conseguido todo o capital necessário à obra. O Nordeste acompanhava a hipérbole da Gazeta, mas em sentido oposto, ao considerar a mesma empresa e o mesmo empresário instituições falidas e sem qualquer tipo de seriedade159. A verdade situava-se provavelmente algures entre o preto da opinião d’O Nordeste e o branco da notícia da Gazeta. Nem Zagury estava falido, nem estava já preparado para iniciar a construção. O capitalista mostrara apenas interesse, o que já conseguira convencer o ministro a aceitar abrir concurso. No entanto, não era certo que aquele interesse se transmutasse num acordo oficial, assinado com o governo. Por esta razão, os Beças continuaram a sua acção de angariação de novos interessados. Em Junho de 1901, o engenheiro Manuel Afonso de Espregueira dirigiu-se a Bragança para fiscalizar as obras da estrada da cidade à fronteira com Espanha. Abílio Beça recebeu-o e acompanhou-o na sua visita. Espregueira era um reconhecido engenheiro civil e um insigne membro do partido progressista, ex-ministro da fazenda e ex-director da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses (aliás, o primeiro português a assumir o cargo)160. Era com toda a certeza um homem com autoridade suficiente para influenciar a decisão de investir na linha de Bragança. Figura 96 – Manuel Afonso de Espregueira161
Beça sabia disto e estava também consciente de que acima das rivalidades políticas estavam os interesses da região. Por isso, assistiu-o na sua visita e ao mesmo tempo 159
Gazeta de Bragança, 16.6.1901, n.º 474. O Nordeste, 21.8.1901, n.º 741.
160
MÓNICA, 2005, vol. 2. SALGUEIRO, 2008.
161
Illustracão Portugueza, 1904, n.º 51: 808-809.
225
A linha do Tua (1851-2008)
usou a Gazeta para difundir o alegado potencial económico do alto distrito. Durante a estadia de Espregueira em Bragança, era possível ler-se na Gazeta que a principal riqueza da província estava a norte de Mirandela, pelo que o projectado e desejado caminho-de-ferro haveria de atingir um alto rendimento a muito breve trecho162. Quanto a José Beça, reuniu-se com a Companhia Nacional, a principal beneficiada e à partida a principal interessada na continuação da linha do Tua, e procurou verificar a sua disponibilidade para construir o caminho-de-ferro. Em Julho de 1901, a administração informou-se dos custos da obra (cerca de 1.600 contos) e tentou levantar o capital necessário junto do Banco Comercial de Lisboa e do Banco de Portugal. José Beça, por seu lado, bateu à porta da casa Torlades (uma sociedade comercial fundada no século XVIII em Setúbal pelo hamburguês com o mesmo nome) e o Montepio Geral, debalde. Todas as instituições contactadas exigiam um juro considerado demasiado elevado pelas obrigações que a Companhia Nacional estava disposta a emitir. Simultaneamente, Abílio Beça viajou por várias vezes até Lisboa, tentando decerto usar a sua notoriedade e a sua rede de contactos partidários para encontrar outras soluções de financiamento. Segundo O Nordeste, também o Banco Nacional Ultramarino foi contactado, mas recusou igualmente financiar o investimento da Companhia Nacional. A notícia em si é um pouco estranha, já que esta instituição estava mais vocacionada para investimentos nas colónias163. De forma pessimista, o periódico progressista concluía que “o caminho de ferro foi-se”164… A abertura oficial do concurso por portaria de 14 de Novembro de 1901 (por 90 dias, até 14 de Fevereiro de 1902)165 marcou o princípio de uma nova etapa no processo. A publicação da portaria em Diario do Governo foi saudada com uma alegria imensa na redacção da Gazeta, que escrevia sem receios que “o mais vital melhoramento de Bragança (…) é, emfim, uma realidade”. Este optimismo exacerbado baseava-se num pretenso interesse de vários capitalistas no negócio: um tal marquês de Lune, um outro Cachapuz e também um “engenheiro italiano, representante de uma companhia poderosa” que só a Gazeta conhecia, já que é a única fonte que menciona estes homens166. Uma vez mais, O Nordeste destoava deste optimismo e via nas notícias lançadas pelo rival mera areia que Abílio Beça atirava para os olhos dos bragançanos167. Apesar da confiança ilimitada da Gazeta, a abertura da praça não significava con162
Gazeta de Bragança, 30.6.1901, n.º 476.
163
FIGUEIRA & MENDES, 2013: 312-318.
164
Gazeta de Bragança, 28.7.1901, n.º 480; 15.9.1901, n.º 487; 6.10.1901, n.º 490; 24.11.1901, n.º 497; 1.12.1901, n.º 335: 391; 16.12.1901, n.º 336: 399; 16.3.1902, n.º 342: 91; 12.4.1903, n.º 569; 19.4.1903, n.º 570. O Nordeste, 11.9.1901, n.º 744. PEREIRA, 2012b: xliii.
165
FINO, 1883-1903, vol. 3: 766-781.
166
Gazeta de Bragança, 3.11.1901, n.º 494.
167
O Nordeste, 21.8.1901, n.º 741.
226
A extensão da linha do Tua a Bragança
sequentemente a construção do caminho-de-ferro. Para tal, era preciso que pelo menos um empreendedor apresentasse uma proposta. Todavia, Zagury não se queria sujeitar aos aborrecimentos de um concurso público; a Companhia Nacional, principal interessada no negócio, não conseguia encontrar parceiros nem soluções financeiras para submeter uma oferta realista. A questão aparentemente estava bloqueada. Até que, a poucos dias do fim do prazo para a submissão de propostas e vindo praticamente do nada, surge um novo interessado na obra: um tal de João Lopes da Cruz.
227
A linha do Tua (1851-2008)
4.2. A ENTRADA EM CENA DE JOÃO LOPES DA CRUZ Hugo Silveira Pereira168
João Lopes da Cruz nasceu a 4 de Agosto de 1851 em Linhares (Carrazeda de Ansiães). Era um dos cinco filhos de Manuel Lopes da Cruz e de Felicidade de Sousa169. Em Outubro de 1870, emigrou para o Brasil170. Uma fotografia da época, preservada por um dos seus descendentes, indica que o seu destino foi mais precisamente o Rio de Janeiro. Na década de 1870, eram poucos os transmontanos que emigravam (a grande vaga emigratória só se verificaria na década seguinte). João Lopes da Cruz foi um desses pioneiros. Não se conhecem as razões que o levaram a sair de Portugal. O frequente era os emigrantes saírem na peugada de familiares que haviam saído do reino e se estabelecido no estrangeiro como negociantes ou empregados de comércio171. Outros factores que expliquem a decisão de João da Cruz poderão ser o seu espírito de aventura e de iniciativa e a sua ambição de conseguir ser ou ter algo que Trás-os-Montes não lhe podia proporcionar. Esta é uma hipótese que combina perfeitamente com o seu percurso de vida e que vai também de encontro à memória que foi transmitida entre os seus descendentes. Ao seu neto, João Sampaio, foi contado que o seu avô “foi um homem que nunca teve medo do futuro”172. 168
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
169
Arquivo distrital de Bragança. Registos paroquiais. Paróquia de Linhares. Registo de baptismos, caixa 1, livro 1 (1851). MORAIS, 2014: 293-294.
170
Arquivo distrital de Bragança. Passaportes. Registo de passaportes deferidos (1868-1878), registo 24, f. 28v.
171
ALVES, 1994: 94.
172
Entrevista a João Sampaio: 7.
228
A extensão da linha do Tua a Bragança
Figura 97 – João Lopes da Cruz “auzentou-se da sua Patria no dia 12 de Outubro de 1870 para o Rio de Janeiro”173
Quando saiu de Portugal, João da Cruz era solteiro e caixeiro de profissão. Media 1,56 m e tinha cor trigueira. A sua cara era redonda com cabelo e olhos castanhos. O nariz e a boca eram regulares e não possuía quaisquer sinais particulares. Sabia ler, escrever e contar174, o que na altura era “condição necessária ao sucesso na emigração”175. Não se conhecem os detalhes da actividade que João da Cruz em terras brasileiras. Presumivelmente, terá prosseguido a sua carreira como comerciante, uma vez que “o mais natural será que as profissões de origem tendam a manter-se e até a evoluir”176. Certo é que João da Cruz foi muito bem-sucedido no Brasil, pois em 1873, três anos apenas após a sua ida, regressou a Linhares e comprou uma casa a Maria da Graça Sousa. Um ano depois, começou a emprestar a juros verbas avultadas de dinheiro 173
Arquivo pessoal de João Sampaio. LAGE, 2013: 112.
174
Arquivo distrital de Bragança. Passaportes. Registo de passaportes deferidos (1868-1878), registo 24, f. 28v.
175
ALVES, 1994: 249.
176
ALVES, 1994: 232.
229
A linha do Tua (1851-2008)
a alguns habitantes de Campelos, com hipoteca dos seus bens. Em 1875, adquiriu em Linhares várias propriedades de António Joaquim Ferreira Pontes, que se encontravam penhoradas ao Crédito Predial Português. Dois anos passados, foi de novo para o Brasil, de onde regressou em 1878 e para onde retornou em Outubro deste ano. Em 1880, voltou a Portugal e às suas actividades de prestamista em Carrazeda. Neste ano, emprestou 2,5 contos a Francisco António de Frias Menezes Vasconcelos e Carolina Augusta Adelaide de Mesquita Pimentel, com hipoteca de vários bens na freguesia de Selores (moradia e quinta da Senhora do Prado) no valor de 3,7 contos. Em 1884, o casal reconhecia a existência de uma dívida de 1,75 contos, a qual devia ser paga em seis meses com juros de 10% e hipoteca de metade do solar de Selores e da quinta do Comparado177. Ao longo da primeira metade da década de 1880, João da Cruz continuou a fazer empréstimos a juros a vários moradores de Carrazeda. Alguns dos seus clientes não conseguiram, porém, devolver-lhe o dinheiro e perderam as suas propriedades para o brasileiro. Foi deste modo que em 1885 João da Cruz se tornou proprietário de várias fazendas em Campelos. No mesmo ano, juntou 19 prédios rústicos, uma casa de habitação e seis prazos ao seu património178. A aquisição de propriedades por confisco por parte dos brasileiros que emprestavam dinheiro a juros era um fenómeno frequente no norte de Portugal, que Alves Redol descreveu magnificamente, se bem que para um período ligeiramente posterior, no seu romance Porto Manso. Por esta altura, era solteiro, embora provavelmente vivesse amancebado com Maria da Natividade Lopes, com quem teve sete filhos entre 1879 e 1899 (Jaime, Felicidade Amélia, José António, João, Cândida, António Júlio e Manuel). João Lopes da Cruz deixou ainda descendência com outras duas mulheres na década de 1880: Angélica Lucinda Botelho (com quem concebeu João) e Maria do Carmo (de quem teve Maria Cândida e Luís Carlos)179. João Lopes da Cruz regressou definitivamente à sua pátria na década de 1880. Além de continuar a dedicar-se aos negócios financeiros, passou também a investir em empreitadas de estradas no distrito de Bragança180. Por vezes misturava as duas actividades. Em 1882, venceu o concurso para a execução de algumas tarefas na secção entre Foz-Tua a Castanheiro da estrada real n.º 39. Um dos fiscais da obra, António Ferreira Rodrigues, era também seu cliente no trato dos empréstimos a juros. A situação era obviamente suspeita e foi denunciada pelo engenheiro responsável, que duvidava da probidade do fiscal por ter “como certo por me ser assegurado por pessoa 177
MORAIS, 2014: 294-295.
178
MORAIS, 2014: 294-295.
179
MORAIS, 2014: 293-294.
180
MORAIS, 2014: 295.
230
A extensão da linha do Tua a Bragança
digna de crédito, que algumas compras de prédios que o mesmo empregado ultimamente tem feito, têm sido com dinheiro do empreiteiro cujo trabalho fiscaliza, João Lopes da Cruz, a quem deve proximamente 380$000 réis”. Dias depois, João da Cruz queixava-se do fiscal ao engenheiro, libertando-se assim de qualquer suspeita que lhe pudesse ser imputada181. O empreiteiro continuou a trabalhar noutros lanços da estrada real n.º 39 até 1893182. Antes, em 1888, assumiu uma boa parte das empreitadas decretadas pelo governo para a abertura de rodovias em Trás-os-Montes. Cruz trabalhou assim nas vias de Bragança à Torre de D. Chama e à fronteira de Espanha em Portelo/Calabor183. A crise financeira de 1891-1892 levou à suspensão destes e de outros projectos, tendo o empreiteiro obtido a rescisão do contrato e o pagamento das tarefas já realizadas184. No entanto, não abandonou por completo esta actividade pelo menos até 1902, ano em que ainda se encontra o seu nome ligado à abertura de estradas nos pareceres do conselho superior de obras públicas185. Segundo a Gazeta de Bragança, era “habilissimo n’essa ordem de trabalhos; e com os lucros que d’elles tem auferido, ha ja feito uma fortuna”186. De facto, com o capital angariado no Brasil, nos empréstimos a juros e nas obras públicas, João da Cruz continuou a acumular propriedades (tomando partido da diminuição do preço da terra, após a invasão da filoxera do vale do Tua na década de 1880)187 e a partir de certa altura dedicou-se também à vitivinicultura. O empreiteiro procedeu à construção de socalcos e à plantação de novas vinhas nas suas terras, dando nova vida à vinicultura da zona. No início do século XX, anunciava na Gazeta de Bragança a venda dos seus vinhos, que assegurava serem de superior qualidade188. João da Cruz era assim um verdadeiro empreendedor, com um talento nato para o 181
Arquivo distrital de Bragança. Fundo da antiga junta autónoma das estradas. Estrada real 39. Foz Tua a Vila Flor. Correspondência, 1882, ofícios n.º 1 (24 de Fevereiro), 2 (2 de Março), 15 (1 de Dezembro) e 17 (6 de Dezembro).
182
Arquivo distrital de Bragança. Fundo da antiga junta autónoma das estradas. Estrada real 39. Foz Tua a Vila Flor. Correspondência, 1884, ofícios n.º 2 (28 de Janeiro), 6 (12 de Fevereiro), 10 (20 de Fevereiro), 60 (18 de Outubro) e 67 (10 de Novembro); 1887, ofício n.º 21 (16 de Abril); 1888, ofícios n.º 7 (24 de Fevereiro), 9 (15 de Março), 12 (28 de Março) e 13 (9 de Abril).
183
Gazeta de Bragança, 16.2.1902, n.º 509; 28.6.1903, n.º 580.
184
Arquivo distrital de Bragança. Fundo da antiga junta autónoma das estradas. Estrada real 39. Foz Tua a Vila Flor. Correspondência, 1892, ofícios n.º 1 (5 de Janeiro) e 35 (9 de Setembro); 1893, ofício n.º 23 (18 de Outubro).
185
Arquivo histórico do ministério das obras públicas. Conselho superior de obras públicas e minas. Cx. n.º 50 (1901), pareceres n.º 30546 e 30687; cx. 51 (1901-1902), parecer n.º 31007. MESQUITA, 2012: 73.
186
Gazeta de Bragança, 16.2.1902, n.º 509; 28.6.1903, n.º 580.
187
MORAIS, 2014: 295.
188
Gazeta de Bragança, 1.7.1905, n.º 684: 1; 1.10.1905, n.º 697: 2.
231
A linha do Tua (1851-2008)
negócio e que não tinha medo de arriscar. Estes traços da sua personalidade ficam uma vez mais evidenciados numa transacção que fez em 1895. Neste ano, pediu 20 contos emprestados a José Ribeiro Vieira de Castro e João Baptista de Lima Júnior, dando como garantia a hipoteca “de todos os seus bens em geral” e de alguns créditos que possuía sobre o estado como empreiteiro de estradas189. Neste sentido, o seu interesse e envolvimento no negócio ferroviário não é de todo surpreendente. É altamente provável que, no desempenho da sua actividade como empreiteiro de estradas, João Lopes da Cruz tenha conhecido Miguel Augusto Ferro de Beça (tio de Abílio e José Beça), que era condutor de obras públicas em Bragança. Datará assim desta altura o início da sua relação com aquela família. Como já foi dito em capítulo anterior, na década de 1880, Abílio Beça tornou-se membro da junta geral de distrito, uma instituição com recursos financeiros próprios e poderes executivos para os aplicar190. Não será, pois, completamente descabido supor que, quando precisasse de um empreiteiro, Abílio Beça tenha conferenciado com o seu tio e este lhe tenha recomendado João da Cruz. Documentalmente confirmado é que em 1889 o empreiteiro contratou Abílio Beça como seu advogado para o defender num processo de embargo que lhe fora movido por diversos proprietários de terrenos adjacentes à estrada em construção entre Bragança e Espanha191. Não é de estranhar que esta relação jurídica se tenha mantido e aprofundado nos anos seguintes, até pela própria natureza da actividade profissional de João da Cruz. Aliás, na tradição oral dos seus descendentes ficou a ideia de que o empreiteiro e o advogado eram bons amigos192. A confirmação da existência de uma relação prévia entre João da Cruz e os Beças é fulcral para perceber o desenrolar do processo que levou à abertura do caminho-deferro de Bragança. Fica assim explicada a razão pela qual um empreiteiro de estradas, sem capitais próprios suficientes, sem crédito conhecido no mercado financeiro nacional e sem qualquer tipo de experiência conhecida na construção ferroviária, se tenha lançado num empreendimento da envergadura da linha de Mirandela a Bragança, “questão magna e à qual [Abílio Beça] tem ligada a sua palavra e com ella o seu futuro político”193 e para cuja realização não havia interessados em condições de se apresentar a concurso. Em Fevereiro de 1902, o prazo do concurso estava prestes a terminar sem a apresentação de propostas. O encerramento da praça sem o aparecimento de candidatos 189
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto. Secretaria geral. Processos e questões diversas. Rescisão de contrato, PT/ADPRT/EMP/CCFP/SG/013/13.084. B/6/1/4 - 14.8.
190
SERRA, 1988: 1045-1047 e 1050-1055. SOUSA & MARQUES, 2004: 196-197
191
Arquivo distrital de Bragança. Juízo de direito da comarca de Bragança. Auto de embargo que contra João Lopes da Cruz movem vários proprietários de Bragança.
192
Entrevista a João Sampaio: 7.
193
Gazeta de Bragança, 16.3.1902, n.º 513: 1.
232
A extensão da linha do Tua a Bragança
seria uma derrota política para Abílio Beça e demonstraria que a linha de Bragança não era atractiva ao investimento privado. Era o pretexto necessário para avançar com outras ferrovias (como a do Corgo) e adiar indefinidamente o assentamento da extensão da linha de Mirandela. Tudo isto foi evitado temporariamente com o lanço de 26,88 contos/km apresentado por João da Cruz194. Figura 98 – João Lopes da Cruz195
A Gazeta de Bragança exultava com o aparecimento de um homem com o “espirito emprehendedor d’um norte-americano (…), tão emprehendedor, inteligente e activo, e ao mesmo tempo com aptidões praticas n’esta especie de negocios e conhecedor das condições topographicas da região e das condições economicas em que n’ella se realisam os trabalhos d’esta natureza”. Se não se pode duvidar dos conhecimentos topográficos regionais de João da Cruz, as suas aptidões técnicas e sobretudo financeiras na construção de caminhos-de-ferro podiam levantar algumas suspeitas. Porém, a Gazeta assegurava que o empreiteiro tinha já estabele194
ALVES, 2000, vol. 9: 227. PEREIRA, 2012b: xliii.
195
Arquivo pessoal de João Sampaio.
233
A linha do Tua (1851-2008)
cido parcerias com capitalistas brasileiros do Porto, o que era claramente falso196. Em todo o caso, do concurso nada resultou, pois a firma Zagury protestou, alegando que a proposta que tinha apresentado por intermédio de José Beça não fora tida em consideração. Obviamente, a empresa não tinha razão, pois a sua oferta tinha sido feita de forma oficiosa e antes da abertura da praça. Porém, se o governo optasse por esgrimir argumentos jurídicos com a Zagury, a adjudicação e o início da construção seriam adiados por muitos meses197. De imediato, Abílio Beça viajou até Lisboa para pressionar o ministro das obras públicas no sentido de desembaraçar a questão. A Gazeta de Bragança, por seu lado, garantia que brevemente a concessão seria entregue ao “nosso amigo e primeiro emprehendedor do districto, sr. João da Cruz”. O jornal confiava em absoluto na influência de Hintze Ribeiro, Abílio Beça e Emídio Navarro198. A solução mais rápida passava por anular o primeiro concurso e abrir um novo e foi precisamente isso que o governo fez. Por portaria de 24 de Março de 1902, a praça era reaberta por 20 dias, tendo como base de licitação os 26,88 contos/km oferecidos por João da Cruz199. Quando o prazo para apresentação de propostas chegou ao seu fim (a 15 de Abril), tinham sido recebidas duas propostas: a companhia Zagury fez um lanço de 26,34 contos/km (25,34 para algumas fontes200) enquanto João Lopes da Cruz apresentou uma licitação de 25,99 contos/km201. O governo não estava obrigado a aceitar a oferta mais baixa, podendo fazer uma avaliação qualitativa das propostas. Em todo o caso, foi ao brasileiro que o ministro das obras públicas fez a concessão. O acordo provisório entre o governo e João da Cruz foi assinado a 19 de Abril de 1902202. Para o tornar definitivo, era necessário aprovação parlamentar. Contudo, a sessão legislativa daquele ano estava prestes a terminar. Se o parlamento encerrasse os trabalhos sem validar o contrato, o concessionário teria que esperar até à reabertura das cortes em Janeiro do ano seguinte203. Considerando a volatilidade política da época, nada garantia que nessa altura o governo fosse o mesmo e que o novo executivo estaria disposto a levar e aprovar no legislativo esta despesa. Por tudo isto, José Beça (que tinha sido reeleito para São Bento pelo círculo de Bragança, nas eleições de 6 de Outubro de 1901, e fazia parte da comissão parlamentar de obras públicas204) iniciou 196
Gazeta de Bragança, 16.2.1902, n.º 509. ALVES, 2000, vol. 9: 227.
197
Districto de Bragança, 28.3.1902, n.º 3: 2. Gazeta de Bragança, 9.3.1902, n.º 512; 6.4.1902, n.º 516. PEREIRA, 2012b: xliii.
198
Gazeta de Bragança, 16.3.1902, n.º 513.
199
FINO, 1883-1903, vol. 3: 816-817. ALVES, 2000, vol. 9: 227. PEREIRA, 2012b: xliii.
200
Cf. PEREIRA, 2012b: xliii.
201
Gazeta de Bragança, 20.4.1902, n.º 518. O Nordeste, 16.4.1902, n.º 775. PAÇÔ-VIEIRA, 1905: 217.
202
FINO, 1883-1903, vol. 3: 823-836.
203
SANTOS, 1986.
204
MÓNICA, 2005, vol. 1.
234
A extensão da linha do Tua a Bragança
uma corrida contra o tempo no sentido de aprovar o contrato com João da Cruz. A responsabilidade deste processo caía agora sobre os seus ombros. Nas palavras de Trindade Coelho, “«noblesse oblige»; e a tauto (sic) obriga o sr. José Beça uma dupla nobresa: a do seu mandato, e a do seu diploma de engenheiro”205. A 22 de Abril, três dias depois de assinado o acordo provisório, José Beça e Alberto Charula (outro deputado do distrito) pediram para interpelar com urgência o ministro acerca do contrato com João da Cruz. O parlamento, porém, não considerou a interpelação urgente206. A dúvida começou a ensombrar os espíritos dos Beças e dos brigantinos. Contudo, estes tinham um aliado de peso na capital: Emídio Navarro. No jornal que dirigia – o Novidades –, Navarro publicou um editorial, que fundamentava a aprovação do contrato e que sugestionava que manobras de bastidores impediam a sua discussão no parlamento: “n’isso parece que se empenham os que a todo o transe querem ligar a sorte d’este caminho de ferro ao do valle do Corgo” – escrevia. Emídio Navarro apelava a que não se entrasse “no capitulo das rivalidades mesquinhas” e lembrava igualmente que o concessionário tinha já assumido compromissos por causa da adjudicação. Além do mais, o caminho-de-ferro de Bragança não “está rigorosamente comprehendido nos projectos, que importam aumento de despeza. Este é dos que augmentam as receitas”207. O artigo em questão foi devidamente transcrito na Gazeta de Bragança e alegadamente deixou a cidade em polvorosa. Em Lisboa, Hintze Ribeiro recebeu um telegrama, informando que “leitura artigos publicados nos jornais novidades (…) cauzaram sensação extraordinaria fazendo augmentar consideravelmente movimento de protesto contra ideia (…) de que proposta de lei não passara na actual sessão legislativa”208. O centro regenerador de Bragança pressionou também o presidente do conselho, insinuando que “o addiamento d’este assumpto será objecto de grandes desgostos para o partido regenerador e quiçá daraa logar a profundas modificações no partido”209. Por telegrama e presencialmente, Abílio Beça tentou também influenciar Hintze Ribeiro, “resolvido a conseguir o caminho de ferro ou a deixar alli [no gabinete do presidente do conselho] o seu diploma de chefe do districto” – escrevia a Gazeta de Bragança210. De Bragança partiram ainda telegramas tendo como destinatários o rei e a rainha, 205
Boletim Parlamentar do Districto de Bragança, 17.2.1901, n.º 1: 3
206
Diario da Camara dos Deputados, 22.4.1902: 2.
207
Novidades, 21.4.1902, n.º 5536: 1.
208
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro. Bragança. Chaves. Telegrama 11.4.17.18: 2.
209
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro. Bragança. Chaves. Telegrama 11.4.17.23: 1.
210
Gazeta de Bragança, 11.5.1902, n.º 521: 1. ALVES, 2000, vol. 9: 228.
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A linha do Tua (1851-2008)
o governo, os presidentes da câmara dos pares e dos deputados, vários parlamentares, os jornais da capital e figuras de estado como Eduardo José Coelho ou Emídio Navarro211. Outros concelhos do distrito manifestaram ao governo a sua apreensão em relação a este assunto. Vimioso mostrava “o seu grande desgosto e indignação por lhes constar que [o caminho-de-ferro] não é posto á discussão na referida sessão e achar-se já adjudicado ao respectivo arrematante”. Vinhais lembrava que era de “necessidade inadiavel a construcção do caminho de ferro de Bragança”. Em Macedo era “extrema a anciedade com que (…) os povos do concelho seguem o andamento da questão”. Mogadouro ia ainda mais longe: a linha “é questão de vida ou de morte”212. Figura 99 – Telegrama enviado pela câmara de Mogadouro
No parlamento, José Beça e Alberto Charula trouxeram a questão novamente à ordem do dia. O segundo lembrou o atraso e olvido a que Trás-os-Montes sempre fora votado e a utilidade e necessidade do caminho-de-ferro para a região. José Beça descreveu aos deputados a “grande excitação na cidade de Bragança” e “como não é conveniente deixar progredir a agitação dos povos do districto de Bragança, sobretudo no momento actual, eu peço ao nobre Ministro das Obras Publicas que, em nome 211
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro de Chaves e Bragança. Telegrama 11.4.17.9: 3; telegrama 11.4.17.11: 2; telegrama 11.4.17.20: 3; telegrama 11.4.17.24; telegrama 11.4.17.26; telegrama 11.4.17.28; telegrama 11.4.17.33. Gazeta de Bragança, 27.4.1902, n.º 519. O Nordeste, 25.4.1902, n.º 777 (suplemento); 30.4.1902, n.º 777. ALVES, 2000, vol. 9: 227-228.
212
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Caminhos-de-ferro. Bragança. Chaves. Telegrama 11.4.17.4: 2; telegrama 11.4.17.5: 1-2; telegrama 11.4.17.6: 2; telegrama 11.4.17.7: 1.
236
A extensão da linha do Tua a Bragança
do Governo, faça qualquer declaração que leve a tranquillidade a todos os espiritos”. O ministro, Manuel Francisco Vargas, não entrou em “largas esplanações, acêrca do assunto por S. Exa. tratado, porquanto a melhor resposta que posso dar-lhe, aquella que seguramente mais o satisfará, tenho-a eu aqui”. Essa resposta era a proposta de lei, que autorizava o executivo a aplicar o fundo especial de caminhos-de-ferro ao contrato com João da Cruz e à construção da linha da Régua à fronteira por Vila Real e Chaves213. Figura 100 – Francisco Manuel Vargas, ministro das obras públicas214
A proposta foi enviada à comissão de obras públicas, que nomeou José Beça para relator do parecer final, que dava origem ao projecto de lei a discutir. No dia imediatamente a seguir, o documento estava na mesa da câmara dos deputados. Não sendo completamente inédito, era um projecto de lei escrito em tempo recorde215. No diploma, o relator demonstrou que ambos os caminhos-de-ferro estavam previstos na lei de 14 de Julho de 1899. Todavia, os capitais disponíveis no fundo especial de caminhos-de-ferro não eram ainda suficientes para suportar a realização dos dois melhoramentos “que a formosa, fertil e laboriosa provincia de Trás-os-Montes, com tanta instancia e persistencia reclama, e que não pode por mais tempo ser protelada sem grave damno dos seus interesses economicos”. Por não se entender que a contracção de um empréstimo fosse a solução mais vantajosa, o governo resolveu atribuir uma garantia de juro a ambas as linhas. José Beça evocou ainda como uma década de paragem na construção de vias-férreas tinha feito com que Portugal “ficasse num dos infimos logares entre os paises que, pela sua pequena população ou pelo reduzido do seu territorio, melhor se comparam com o nosso”. O engenheiro argumentou por fim 213
Diario da Camara dos Deputados, 24.4.1902: 2. BEÇA, 1902. ALVES, 2000, vol. 9: 228.
214
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
215
Diario da Camara dos Deputados, 25.4.1902: 15. Cf. PEREIRA, 2012a, anexo 25.
237
A linha do Tua (1851-2008)
que ambas as linhas iriam explorar zonas com potencial económico e iriam aumentar o rendimento do caminho-de-ferro do Douro. Por todas estas razões, o parecer da comissão de obras públicas não podia deixar de ser favorável (como aliás o seria também o da comissão de fazenda)216. A discussão na câmara dos deputados foi relativamente rápida. Apesar da má situação financeira do país, quase todos foram unânimes em concordar com a justiça política e económica da medida. Apenas o deputado Oliveira Matos quebrou o consenso, por ver no projecto de lei um encargo anual de 200 contos e por não ver contemplada a sua zona de influência (Arganil)217. Este discurso motivou respostas de vários deputados, alargando o período de debate. José Beça assistia à troca de argumentos com um olho no relógio. O seu parecer deveria ter sido discutido brevemente, mas a discussão prolongava-se. Quando chegou a sua vez de falar, desistiu da palavra, apesar de ser o relator. Depois de mais algumas breves intervenções, o projecto de lei foi finalmente aprovado218. O diploma seguiu para a câmara dos pares, onde contava com o apoio de Eduardo José Coelho e do bispo de Bragança, que se deslocara propositadamente a Lisboa para votar o projecto219. Este foi posto em debate a 2 de Maio. As comissões reunidas de fazenda e obras públicas repetiram os argumentos de José Beça em favor da medida. Os pares que entraram no debate revelaram algumas dúvidas quanto ao valor quilométrico da concessão e ao uso da garantia de juro, mas aprovaram a proposta220. A boa notícia foi recebida em Bragança com entusiasmo. A celebração durou horas “no meio dos parabens de um, dos vivas e abraços d’outros, um completo delírio”. A multidão “mal podia caminhar pelas ruas”, não havendo “rua na cidade, aonde o povo não manifestasse o jubilo que lhe vae na alma”. Pela madrugada fora “reina delirante contentamento. Os brigantinos felicitam-se abraçando-se mutuamente”221. O conselho de estado e o rei sancionaram o diploma a 14 de Maio e a lei saiu em Diario do Governo dez dias depois. No final, “tudo acabou bem, como nos romances” – escrevia O Seculo222. O contrato definitivo foi assinado a 24 de Outubro de 1902223. Apesar da excitação causada pela ultrapassagem dos obstáculos burocráticos atrás 216
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1902: 5-7.
217
MÓNICA, 2005, vol. 2: 804-805.
218
Diario da Camara dos Deputados, 28.4.1902: 16-21.
219
Gazeta de Bragança, 4.5.1902, n.º 520.
220
Diario da Camara dos Dignos Pares do Reino, 2.5.1902: 548-551.
221
Districto de Bragança, 9.5.1902, n.º 9: 1-2; 16.5.1902, n.º 10: 2. Gazeta de Bragança, 4.5.1902, n.º 520; 11.5.1902, n.º 521; 18.5.1902, n.º 522. O Nordeste, 30.4.1902, n.º 777; 7.5.1902, n.º 778; 14.5.1902, n.º 779. ALVES, 2000, vol. 9: 228.
222
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
223
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 359, caixa 72, f. 2. PEREIRA, 2012b: xliii.
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A extensão da linha do Tua a Bragança
descritos, ainda faltava percorrer um longo caminho até à inauguração da linha. João Lopes da Cruz não tinha capacidade financeira individual para arcar com a empreitada e precisava de angariar o capital necessário noutras fontes. Logo após obter a concessão, o empreiteiro procurou a Companhia Nacional para obter um acordo que permitisse o início dos trabalhos no prazo mais curto possível. A direcção prometeu ajudar, desde que o concessionário obtivesse primeiramente os fundos necessários224. Uma das dificuldades enfrentadas por João da Cruz derivava da pequenez do empreendimento, que o tornava desde logo pouco apelativo aos investidores (a própria Companhia Nacional, ainda no tempo do conde da Foz, sentira o mesmo problema, como já foi referido noutro capitulo225). Para tornar o negócio mais interessante, João Lopes da Cruz tentou adicionar a linha do Corgo à sua concessão, no que terá sido aconselhado por José Beça (segundo o seu irmão Abílio)226. O concurso para atribuição daquele caminho-de-ferro foi aberto a 2 de Agosto de 1902227. Quando encerrou, a 5 de Novembro, tinham sido recebidas quatro propostas, sendo a de Cruz a mais baixa. Contudo, o ministro das obras públicas optou por não aceitar nenhuma228, o que se terá ficado a dever ao facto de o governo pretender adjudicar a linha à Fonsecas, Santos & Viana, cujo director, Francisco Isidoro Viana, era amigo próximo do ministro da marinha, Teixeira de Sousa229. Porém, existindo uma proposta mais favorável – a de Cruz – a adjudicação àquela casa não podia ser feita sem escândalo. Na nova praça, aberta a 15 de Novembro230, as especificações técnicas eram uma cópia das condições propostas anteriormente pela Fonsecas, Santos & Viana231. Em todo o caso, do novo concurso nada resultaria e a linha do Corgo acabaria por ser construída directamente pelo estado232. João Lopes da Cruz teve assim que buscar outras soluções para a linha de Bragança. Em Setembro de 1902, o Districto de Bragança noticiava que o concessionário se encontrava em Lisboa para formar duas companhias, uma para a instalação da infra -estrutura e outra para a superestrutura. Em Dezembro do mesmo ano, o empreiteiro negociava com a casa Burnay, que lhe propusera o trespasse da concessão para a Companhia Nacional, ficando como empreiteiro-geral da obra (pela qual receberia 224
Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1903: 4.
225
SANTOS, 2014.
226
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606.
227
FINO, 1883-1903, vol. 3: 844-859.
228
Gazeta dos Caminhos de Ferro, 16.11.1902, n.º 358: 346-347.
229
MÓNICA, 2005, vol. 3: 803-804.
230
FINO, 1883-1903, vol. 3: 914-916.
231
Diario da Camara dos Deputados, 11.2.1903: 11-18
232
FINO, 1883-1903, vol. 3: 965-966. SOUSA, 1903: 66.
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A linha do Tua (1851-2008)
17,5 contos/km construído). Segundo a Gazeta, João da Cruz aceitou a proposta. Pela mesma altura José Beça recomendou-lhe Costa Serrão para engenheiro-director da obra233. Infelizmente, a curto prazo, nada resultaria destes contactos. Cruz não trabalhou sozinho nesta tarefa, pois contou com a preciosa ajuda de José Beça, que, em Portugal e no estrangeiro (Londres e Paris), procurou desbloquear o capital necessário à obra. O papel do engenheiro foi confirmado e realçado pela Gazeta de Bragança e também por personalidades coevas, designadamente o engenheiro Fernando de Sousa e o conde de Paçô-Vieira, ao tempo ministro das obras públicas234. Os esforços de José Beça foram limitados por uma grave enfermidade que se começou a manifestar em finais de 1902 e que o viria a vitimar na madrugada de 26 de Dezembro235. Pouco antes de se finar, terá dito – ou os jornais tê-lo-ão feito dizer – ter “pena e muita pena morrer sem ver concluida a obra para que tanto trabalhou”, mas “morria contente com a esperança de atravessar a linha ferrea de Mirandela a Bragança, ao menos morto”236... O falecimento de José Beça foi um duro golpe para João da Cruz. A situação do concessionário agravava-se, pois o prazo imposto no contrato de adjudicação para o início das obras aproximava-se e o seu incumprimento autorizava o governo a rescindir o acordo. Para obstar a que isto acontecesse, o ministro das obras públicas concedeu ao concessionário uma prorrogação de prazo de três meses para início das obras (portaria de 7 de Janeiro de 1903)237. João da Cruz aproveitou o adiamento para intensificar contactos com potenciais investidores. A Gazeta de Bragança noticiava negociações com a casa francesa Sterné & Grosselin e com a firma britânica Tyje. Porém, nenhuma destas negociações chegou a bom porto. Os franceses afastaram-se perante o mau crédito que os negócios ferroviários tinham em Portugal; os britânicos chegaram a um acordo com Cruz, que, segundo a Gazeta, terá esbarrado na impossibilidade de colocar obrigações no mercado nacional. Foi então que o empreiteiro recebeu uma oferta das casas bancárias Burnay e Fonsecas, Santos & Viana para lhes passar a concessão e ficar com a empreitada-geral da obra. A proposta teria o suporte financeiro da firma belga Thys e estaria envolvida com a adjudicação da linha do Corgo. No entanto, a decisão do governo de construir por si esta ferrovia derribou a viabilidade do negócio238. 233
Districto de Bragança, 26.9.1902, n.º 29: 2. Gazeta de Bragança, 7.12.1902, n.º 551; 14.12.1902, n.º 552; 19.4.1903, n.º 570. O Nordeste, 3.12.1902, n.º 808; 27.12.1903, n.º 606.
234
Gazeta de Bragança, 27.12.1903, n.º 606: 1. ALVES, 2000, vol. 9: 228-229. PAÇÔ-VIEIRA, 1905. PEREIRA, 2012b: xliii. SOUSA, 1903: 66.
235
ALVES, 2000, vol. 1: 359-360; vol. 6: 727-728; vol. 7: 50-51.
236
Gazeta de Bragança, 4.1.903, n.º 555: 1(?). Revista de Obras Públicas e Minas, t. 34 (1903), n.ºs 397-399: 13.
237
PEREIRA, 2012b: xliii.
238
Gazeta de Bragança, 23.3.1903, n.º 566: 1.
240
A extensão da linha do Tua a Bragança
Entretanto, o prazo da prorrogação concedida anteriormente aproximava-se do seu fim. Em Bragança, levantavam-se nuvens de dúvida sobre as reais capacidades de João da Cruz. “À proporção que se avisinha o ultimo dia [da prorrogação], mais e mais nos sentimos desanimados, quasi descrentes de que se dê começo aos trabalhos (…). Diz-se que o sr. João Lopes da Cruz, não podendo vencer as graves difficuldades que tem surgido para obter capitaes, pensa em pedir nova prorogação de praso. Não acreditamos em tal boato, porque, se assim fosse, poder-se-ia dizer… o que, por emquanto, não ha absoluto direito de dizer”239. De acordo com a Gazeta de Bragança, o empreiteiro pensou em construir qualquer coisa para contornar os termos do contrato. Tal subterfúgio não foi necessário, pois o ministro concedeu-lhe novo adiamento (despacho de 20 de Março de 1903)240. A solução desagradou a alguns brigantinos, para quem “o sr. João da Cruz (…) prejudicou em nosso entender a real effectivação d’este melhoramento: pois que, compromettendo-se desde logo (…) a tomar a concessão nos precisos termos do respectivo programma do concurso, sem se preocupar com a falta de capitaes, que, dizia ao tempo, ter de sobejo, impediu que alguem aventasse outra solução ao problema”241. Fazer caducar a adjudicação, rescindir o contrato e colocar a obra sob a alçada do estado (como acontecera com a linha do Corgo) era uma solução que cada vez ganhava mais adeptos. No entanto, em finais de Março de 1903, o empreiteiro foi contactado por John Edwards, um sócio de Henry Burnay242, que retomou a proposta de trespasse da concessão e prometeu facilitar a colocação das obrigações no mercado londrino, se Cruz baixasse em 2% o valor a receber como empreiteiro-geral. A proposta foi aceite pelo brasileiro243. Dias depois, a Gazeta noticiava que em Londres, a 31 de Março, tinha sido firmado o acordo para a colocação das obrigações para a construção da linha de Bragança. João da Cruz aceitava trespassar a concessão a uma companhia nomeada por Burnay e pela Fonsecas, Santos & Viana e tornava-se empreiteiro-geral da construção, pela qual receberia 17,15 contos/km assente244. A empresa por trás do negócio era naturalmente a Companhia Nacional, que era também a emissora das 23 mil obrigações colocadas (90 mil réis cada e juro de 4,5%). A operação foi autorizada em assembleia-geral de accionistas a 16 de Maio. A 27 de Junho, os estatutos da Companhia Nacional eram alterados de acordo com as decisões 239
Districto de Bragança, 20.2.1903, n.º 50: 1.
240
Gazeta de Bragança, 23.3.1903, n.º 566. ALVES, 2000, vol. 9: 229. PEREIRA, 2012b: xliii.
241
Districto de Bragança, 20.3.1903, n.º 54: 1.
242
LIMA, 2009.
243
Districto de Bragança, 3.4.1903, n.º 56: 1. Gazeta de Bragança, 19.4.1903, n.º 570: 2
244
Gazeta de Bragança, 5.4.1903, n.º 568: 1.
241
A linha do Tua (1851-2008)
da assembleia-geral. No mesmo dia, o governo aprovava-os e a 2 de Julho autorizava a companhia a emitir a nova série de obrigações245. Obtidos os fundos, João Lopes da Cruz e a Companhia Nacional negociaram a transferência da concessão, após autorização do governo por portaria de 30 de Junho de 1903246. A 6 de Julho, o brasileiro e a empresa assinavam dois contratos em Lisboa: pelo primeiro, a Companhia Nacional tornava-se a nova concessionária da linha de Bragança; pelo segundo, João da Cruz era contratado como empreiteiro-geral da construção247. Figura 101 – A autorização do trespasse248
O resultado final (o trespasse) foi o desejado desde o início pelos intervenientes deste processo. A Companhia Nacional era a escolha óbvia para ficar com o caminho245
FINO, 1883-1903, vol. 3: 1028-1035 e 1039-1041.
246
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1903: 342. FINO, 1883-1903, vol. 3: 1035-1036. Companhia, 1903: 25-26. PEREIRA, 2012c: xliv.
247
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 359, caixa 72, fs. 2-4v. Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1904: 11. ALVES, 2000, vol. 9: 229.
248
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1903: 842.
242
A extensão da linha do Tua a Bragança
de-ferro de Bragança, que era a extensão natural da sua linha de Foz-Tua a Mirandela. Por outro lado, desde 1900 que se falava na hipótese de ligar por via-férrea Foz-Tua a Viseu, estabelecendo-se assim uma conexão directa entre a Beira Alta e o nordeste transmontano. Não faria, pois, sentido dividir a exploração por vários operadores. Foi por isso que o primeiro contacto dos Beças neste processo foi precisamente com a Companhia Nacional. Quanto à firma Zagury, serviu bem os interesses da linha, ao convencer o ministro das obras públicas da existência de interessados no negócio e de que a abertura de concurso não seria sem consequências. Porém, a Companhia Nacional, em virtude do seu processo de reestruturação financeira249, não estava em condições de apresentar qualquer proposta e corria-se o risco de a praça ficar deserta. É nestas circunstâncias que aparece João da Cruz a licitar sozinho. Ao fazer um lanço de 26,88 contos (e depois 25,99), impede que o concurso feche sem propostas e passa a servir de testa-de-ferro da Companhia Nacional, a quem cederia mais tarde os direitos da adjudicação, através do traspasse. Aliás, a própria Gazeta de Bragança refere que foi José Beça quem recomendou João da Cruz para assumir o encargo da construção da segunda parte da linha do Tua, depois de falhadas todas as diligências com a Companhia Nacional250. O trespasse foi um acto administrativo muito comum ao longo de toda a segunda metade do século XIX, que concedeu bastos lucros a muitos especuladores, com pouco ou nenhum benefício para a nação. Em plena crise de finais do século XIX, o traspasse era considerado “um dos processos do corso que a moderna civilização nobilitou”251. Através deste procedimento, o concessionário original entregava os seus direitos a outra companhia, recebendo em troca uma soma avultada ou um cargo confortável e bem remunerado nessa firma. João Lopes da Cruz ficou com a parte do negócio que historicamente dava mais lucro: a construção. As negociações entre a dupla Cruz e Beça e os potenciais investidores não visavam assim financiar o concessionário original, mas sim a Companhia Nacional. Por esta altura, Portugal sofria ainda as consequências da bancarrota de 1892, encontrando-se em negociações com os seus credores externos. Investir em Portugal era um negócio de alto risco. Deste modo, nenhum investidor aceitaria obrigações de um desconhecido ou de uma companhia formada por um desconhecido, como João Lopes da Cruz. A Companhia Nacional oferecia outras garantias, não obstante poder ser também considerada uma aposta de investimento arriscada. Isto é comprovado pelo facto de as negociações para o financiamento só terem terminado oito meses após a adjudicação e depois de duas prorrogações de prazo para o começo da construção. Os títulos de 249
SANTOS, 2014.
250
Gazeta de Bragança, 29.3.1903, n.º 567; 19.4.1903, n.º 570.
251
CORDEIRO, 1999: 53.
243
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dívida da companhia tinham outro valor, sobretudo depois de a firma concluir com sucesso o seu processo de reestruturação financeira252. Quando João da Cruz passou a adjudicação à Companhia Nacional, o círculo ficou completo. O capital estava disponível e o empreiteiro preparado. A construção podia começar.
252
SANTOS, 2014.
244
A extensão da linha do Tua a Bragança
4.3. CONTRATOS E DETALHES FINANCEIROS DA EMPREITADA Hugo Silveira Pereira253
Em termos jurídico-legais foram assinados dois contratos distintos para a construção da linha de Mirandela a Bragança: o contrato de concessão e o contrato de empreitada (com respectivos adicionais). Em termos gerais, o primeiro seguia grosso modo a estrutura e as características de outros acordos de adjudicação de caminhos-de-ferro firmados anteriormente, designadamente o de Foz-Tua a Mirandela. As bases para a sua redacção começaram por ser determinadas por decreto de 10 de Outubro de 1901, estando genericamente subordinadas “ás condições annexas ao decreto de 28 de Setembro de 1883, para a construcção e exploração do caminho de ferro de Foz-Tua a Mirandella”. O mesmo decreto abria concurso durante 90 dias para a adjudicação da construção do caminhode-ferro de Mirandela a Bragança, passando por Macedo de Cavaleiros, de acordo com o projecto aprovado por portaria de 25 de Setembro de 1901. Obrigava os candidatos a fazer um depósito prévio de 4 contos de réis para submeter a sua proposta (que seria elevado a 8 contos caso vencessem o concurso ou devolvido caso não fossem os escolhidos), estipulava que a base de licitação era o custo quilométrico e reservava ao governo o direito de não escolher o proponente que oferecesse o lanço mais baixo254.
253
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
254
FINO, 1883-1903, vol. 3: 749-752.
245
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Figura 102 – Portaria aprovando o projecto (à esquerda) e base primeira do programa e caderno de encargos da linha de Bragança (à direita)255
Do estipulado neste decreto foi elaborado o caderno de encargos da construção e exploração da linha de Bragança, aprovado por portaria de 14 de Novembro de 1901, que também estabelecia as regras administrativas para o procedimento concursal. O caderno de encargos fazia parte do concurso, ficando implícito que os indivíduos ou entidades que apresentassem propostas o aceitavam na sua totalidade256. Como já foi referido, foi necessário realizar dois concursos e o vencedor de ambos foi João Lopes da Cruz, que assinou a 19 de Abril de 1902 um contrato provisório com o governo para a adjudicação da construção e exploração do caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança. O acordo replicava exactamente o caderno de encargos, adicionando apenas um artigo (77.º) que obrigava à audição parlamentar para transformar o contrato provisório em definitivo. Pelo acordo firmado com o governo, João Lopes da Cruz obrigava-se a assentar e operar um caminho-de-ferro de via única (excepto nas estações), bitola métrica, inclinação máxima de 18 mm/m e curvas de raio mínimo de 150 m (sendo que as rectas entre curvas de sentido contrário deviam ter no mínimo 50 m). Os carris deviam ser da melhor qualidade, de aço e de peso não-inferior a 20 kg/m e deviam ser assentes sobre travessas de madeira ou metal. Esta via-férrea continuava a que terminava em Mirandela, seguia por Macedo de Cavaleiros até Bragança, e devia incluir “aterros e desaterros, obras de arte, assentamento de vias, estações e officinas de pequena e grande reparação, e todos os edificios accessorios, casas de guarda, barreiras, pas255
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1901: 740.
256
FINO, 1883-1903, vol. 3: 766-781.
246
A extensão da linha do Tua a Bragança
sagens de nivel, muros de sustentação, muros de vedação ou sebes para separar a via ferrea das propriedades contiguas, e em geral as obras (…) que forem necessarias para o completo acabamento da linha ferrea” (art.º 1.º, n.º 1). As obras de arte (viadutos, pontes, pontões, aquedutos, etc.) tinham obrigatoriamente de ser construídas em pedra, ferro ou tijolo. O trabalho devia começar dois meses após a assinatura do contrato e devia estar pronto em dois e três anos, conforme se tratasse da primeira (Mirandela – Valdez) ou da segunda secção da linha (Valdrez – Bragança), respectivamente. Por cada mês de atraso, o concessionário pagaria uma multa até 2 contos/mês. A obra devia seguir o projecto aprovado pelo governo em 25 de Setembro de 1901, que podia ser alterado pelo adjudicatário, mediante autorização do ministério. João Lopes da Cruz obrigavase também a submeter à aprovação do governo uma nova variante para o troço final de aproximação a Bragança. Comprometia-se ainda a fazer os melhoramentos e ampliações na estação de Mirandela “que forem reclamados pelo maior desenvolvimento que ao serviço resultar da exploração da nova linha”; e ainda a construir uma estação principal “com as accommodações necessarias para passageiros, mercadorias e empregados; officinas, machinas e apparelhos para a feitura e concerto do material de exploração, armazens, telheiros e depositos para arrecadação e pintura de locomotivas, tenders, carruagens e vagons; fossos para picar o fogo; apparelhos e reservatorios para a alimentação das machinas” (art.º 1.º, n.º 1, § 5.º). O fornecimento, conservação e renovação de material circulante (dos melhores modelos existentes) durante o período de concessão era também da responsabilidade do empreiteiro, bem como a instalação do telégrafo, a demarcação quilométrica e o levantamento da planta cadastral. Em compensação por estas obrigações, João Lopes da Cruz ou a companhia por ele formada tinha direito a explorar o caminho-de-ferro durante 99 anos. Era-lhe garantido um complemento do rendimento líquido de 4,5% sobre um custo quilométrico de 25,99 contos. Para este cálculo, pressupunha-se que as despesas de exploração seriam de 50% do produto bruto (excluindo imposto de selo e de trânsito), fixando-se um mínimo de 0,7 contos e um máximo de 1,2 contos/km. Se o rendimento líquido da exploração excedesse os 4,5%, metade do excesso seria para o estado até ao completo reembolso das quantias adiantadas ao concessionário. Este era ainda isento de qualquer contribuição geral ou municipal durante 20 anos (à excepção do imposto de selo e de trânsito que seriam cobrados desde o início da exploração) e de direitos de importação sobre o material necessário à obra por um quinquénio. O material seria também transportado gratuitamente pela linha do Douro (salvo despesas acessórias e impostos de selo). O estado comprometia-se igualmente a ceder de forma gratuita todos os terrenos que lhe pertencessem e que fossem necessários para a construção. João Lopes da Cruz tinha ainda o direito de construir, sem qualquer subsídio, todos os
247
A linha do Tua (1851-2008)
ramais afluentes da sua linha, mas não lhe era reconhecida qualquer zona de protecção face a caminhos-de-ferro paralelos. O governo tinha o direito de resgatar a linha em qualquer altura, comprometendose, porém, a pagar uma anuidade ao concessionário até ao fim do prazo da concessão. Essa anuidade seria equivalente à média dos cinco anos mais produtivos dos últimos sete anos de exploração e não poderia ser inferior ao produto líquido do último ano de exploração nem a 4,5% do custo da linha. O procedimento seria o mesmo, caso o resgate fosse feito antes de estarem decorridos sete anos. Feito ou resgate ou decorrido o prazo da concessão, o adjudicatário devolveria ao estado a propriedade de todo o material fixo e circulante, só recebendo uma compensação por este último. As tarifas seriam fixadas unilateralmente pelo governo enquanto este pagasse o complemento do rendimento líquido. Assim que fosse completamente reembolsado desta despesa, os preços de transporte seriam estabelecidas por acordo entre ambas as partes (na falta de acordo, adoptar-se-iam como máximos os valores das tarifas cobradas nas linhas do estado ou, não as havendo, a média das tarifas cobradas pelas companhias existentes). Serviços ligados ao estado beneficiavam de redução ou mesmo isenção tarifas: militares em serviço pagariam apenas metade do bilhete, fiscais do governo em trabalho viajariam gratuitamente e material de guerra seria transportado a metade do preço normal. A isto acrescia o dever da empresa de transportar gratuitamente o correio e pessoal ligado a este serviço e de emitir via telégrafo sem custos os despachos oficiais do governo. Se o concessionário não cumprisse algum destes quesitos ou se se recusasse a pagar as multas impostas pelos fiscais nos termos da lei, ficava o governo autorizado a rescindir o contrato. A concessão seria colocada em hasta pública e o valor da arrematação seria entregue ao antigo adjudicatário, deduzidas as despesas feitas pelo estado à laia de garantia de juro ou fiscalização. No caso de não aparecerem interessados em nova adjudicação, o estado ficaria com toda a obra feita, sem que fosse obrigado a pagar qualquer indemnização ao antigo concessionário. Na situação específica de este não conseguir manter a exploração, o estado assumi-la-ia; se passados três meses o adjudicatário ainda não conseguisse reunir as condições para retomar a exploração, ficava o contrato ipso facto rescindido. Em caso de desacordo entre as duas partes, estabelecia-se desde logo que a litigância seria decidida por um tribunal arbitral composto por quatro juízes, dois nomeados pelo concessionário e dois pelo governo. Em caso de empate nomear-se-ia um quinto juiz a contento de ambos os litigantes. Se não houvesse acordo quanto à escolha do quinto árbitro, seria este eleito pelo supremo tribunal de justiça257.
257
FINO, 1883-1903, vol. 3: 823-836.
248
A extensão da linha do Tua a Bragança
Figura 103 – A lei de 24 de Maio de 1902, que aprovou o contrato com João da Cruz258
Era um acordo que, como já foi dito, não fugia ao contrato tipo que foi estabelecido com diversas entidades ao longo do século XIX, desde a concessão das linhas do norte e do leste a D. José de Salamanca em 1859259. Como também já foi referido, João Lopes da Cruz acabou por se desvincular de todas estas obrigações contratuais, quando fez o trespasse da concessão para a Companhia Nacional e se tornou empreiteiro-geral da construção. A 30 de Junho de 1903, o ministro das obras públicas autorizou a cessão de direitos e a 6 de Julho seguinte o empreiteiro e a direcção assinaram em Lisboa a escritura de trespasse. No mesmo dia e no mesmo cartório, as duas partes assinaram também o contrato de empreitada. Estes acordos eram extremamente vantajosos para a Companhia Nacional ao passo que eram potencial e altamente lesivos dos interesses de João Lopes da Cruz. Desde logo, ao trespassar a concessão, o empreiteiro perdeu o direito ao depósito de garantia feito no âmbito do concurso, que revertia para a companhia260. Além do mais, esta podia isentar-se do pagamento da empreitada “se se der a hypothese improvavel” de os financiadores Fonseca, Santos & Viana e Burnay não lhe abonarem os fundos necessários à obra. Neste caso, João da Cruz apenas podia reclamar daquelas entidades e nunca da então concessionária. O contrato de empreitada era ainda mais draconiano. O empreiteiro-geral com258
Collecção Official de Legislação Portugueza, 1902: 252.
259
PEREIRA, 2012a.
260
Companhia, 1903: 27.
249
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prometia-se a executar “todos os trabalhos e fornecimentos (incluindo-se n’estes o pagamento de todas as expropriações e respectivas despezas commerciaes e de procuradoria que haja) previstos ou imprevistos sem excepção ou distincção que forem necessarias para a completa construcção da linha ferrea de Mirandella a Bragança” por 17,15 contos/km (art.º 1.º). Apenas o fornecimento do material circulante não estava incluído nas obrigações de João da Cruz. O pagamento seria feito mensalmente, por quilómetros de “terraplanagens completamente executados e por obras completas”, desde que o empreiteiro provasse que tinha em dia os créditos devidos aos seus empregados e fornecedores. Àquele valor seria deduzido 10% do total, que ficava a servir como garantia de boa construção durante um período de meio ano. Decorrido este prazo, e ainda na condição de o empreiteiro fazer prova de não de ter valores em dívida para com os seus operários e fornecedores, a companhia procederia à entrega dos décimos em falta. Caso João Lopes da Cruz entrasse em incumprimento para com os seus operários e abastecedores, a companhia podia rescindir o contrato (art.ºs 37.º, 38.º, 39.º, 42.º e 43.º). Os imprevistos atrás referidos incluíam, por exemplo, uma avaliação negativa dos terrenos das fundações para obra de arte ou edifício por parte dos fiscais do governo ou da Companhia Nacional. Neste caso, o empreiteiro teria que executar as escavações como lhe fosse indicado, “sem direito a indemnização ou reclamação alguma” (art. ºs 9.º e 25.º). Demais, o plano de trabalhos (da responsabilidade de João da Cruz) podia ser recusado pela companhia, que podia também impor-lhe o seu próprio projecto, “não me podendo eu [Cruz] recusar à execução d’elles e sem que isso modifique por qualquer forma a minha responsabilidade para com a Companhia” (art.º 19.º). Ao empreiteiro era possível elaborar e apresentar à sua custa qualquer alteração ao projecto original do governo, mas estas teriam que ser validadas previamente pela concessionária e posteriormente pelo ministério das obras públicas (art.ºs 7.º, 10.º, 12.º e 15.º). A recusa das mudanças sugeridas não dava a Cruz direito a qualquer tipo de compensação e da delonga na sentença sobre as novas variantes não resultaria qualquer prolongamento do prazo final para entrega da obra (art.º 11.º). Por outro lado, se as modificações ao projecto tivessem como consequência a necessidade de fazer expropriações ou obras de arte não previstas no plano original, o custo adicional que estas representavam seria suportado pelo empreiteiro, sem qualquer aumento do preço do seu trabalho; mas, se pelo contrário daquelas mesmas alterações resultasse a supressão de obras de arte ou a desnecessidade de expropriações, o preço da empreitada diminuiria proporcionalmente (art.ºs23.º e 24.º). A obra tinha que ser começada até ao dia 1 de Julho de 1903, se o prazo fixado pelo ministério se conformasse com esta data. Caso contrário, a data para início dos trabalhos seria antecipada para o dia indicado pelo governo (art.º 14.º). O prazo para
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A extensão da linha do Tua a Bragança
conclusão da empreitada era, como estava previsto no caderno de encargos, de dois anos para a secção Mirandela-Valdrez e de três para o troço Valdrez-Bragança, ambos a contar do dia do início das obras (art.º 28.º). Por cada dia de atraso – sem prejuízo do direito de rescisão que assistia à companhia – João da Cruz teria que pagar 120 mil réis e 100 mil réis, conforme se tratasse da primeira ou da segunda secção, respectivamente. A multa imposta à concessionária pelo estado – recorde-se – era bastante mais leve, não podendo ser superior a 2 contos de réis/mês. Por outras palavras, enquanto João Lopes da Cruz pudesse pagar a multa, a Companhia Nacional até lucrava com os atrasos. Inversamente, em caso de cumprimento antecipado de objectivos, o empreiteiro receberia uma recompensa de 40 mil e 33 mil réis em cada uma daquelas secções (art. ºs 33.º e 34.º). Este bónus podia ser acrescido de mil réis/km por cada troço contínuo de pelo menos 10 km desde Mirandela, mas apenas na condição de o governo pagar ao empreiteiro a respectiva garantia de juro (art.º 35.º). Em suma, este prémio nunca seria pago, uma vez que o complemento do rendimento líquido seria entregue à concessionária e nunca ao empreiteiro da linha. Após a conclusão da obra, esta seria inspeccionada pela companhia e depois pelos fiscais de obras públicas. Se estes não a aprovassem, cabia ao empreiteiro executar à sua custa e sem aumento de remuneração as correcções indicadas pelos agentes do ministério. O mesmo se verificaria em caso de estragos provocados dentro do prazo de garantia de seis meses (art.ºs 44.º e 46.º)261. Figura 104 – Preâmbulo do contrato assinado por João da Cruz
Pelo disposto neste contrato a Companhia Nacional tinha quase tudo a ganhar, enquanto João Lopes da Cruz tinha quase tudo a perder. O teor leonino das condições impostas ao empreiteiro tornaria este acordo ilegal à luz do actual enquadramento jurídico. Todavia, no início do século XX – e para infelicidade do contratado – não era isto 261
Para tudo isto, ver: arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Documentos dos livros de notas. Maço 62, caixa 37 (6/39/6/4), Julho a Setembro de 1903, documento B034642.
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A linha do Tua (1851-2008)
que acontecia. Cruz assinou um pacto que protegia em praticamente toda a extensão a concessionária e só em casos excepcionais garantia os seus interesses. Ou o empreiteiro detinha uma enorme confiança nas suas capacidades e enfrentava uma obra potencialmente ruinosa para si com um optimismo exacerbado ou não foi capaz de se impor aos endinheirados e distintos capitalistas de Lisboa. Provavelmente, verificou-se um pouco de ambos. A idiossincrasia dos transmontanos, “cujo orgulho consistia em levar a cabo qualquer façanha, mesmo que arriscada”262, explica em parte o arrojo de Cruz de tomar a si o compromisso de construir a linha. Por outro lado, João da Cruz era apenas um mero brasileiro, ex-empreiteiro de estradas e com interesses ligados ao vinho algures no distrito de Bragança. Tinha decerto muito traquejo negocial e comercial adquirido durante a sua carreira e a sua vida. Contudo, possivelmente nunca havia lidado de perto com pessoas do garbo de Henry Burnay ou dos directores da Companhia Nacional. Amedrontado pela elegância dos seus parceiros de negócio e deslumbrado pela hipótese de deixar o seu nome ligado ao mais importante melhoramento de Bragança da sua história recente, João da Cruz assinou o fatídico contrato de 6 de Julho de 1903… A sua ingenuidade em todo este negócio fica ainda bem patente no facto de não ter criado uma sociedade de responsabilidade limitada para assumir a empreitada. As fontes (jornais da época e até o próprio papel timbrado com que João da Cruz se correspondia com Clemente Meneres, como se verá em breve) referem-se por vezes à Empresa Lopes da Cruz. No entanto, esta era apenas uma firma aparatosa que o empreiteiro se apropriou para si próprio e não tinha qualquer existência jurídica. João da Cruz assinou o acordo como indivíduo, assumindo os compromissos descritos como tal e associando automática e ingenuamente ao contrato todo seu próprio património. No caso de incumprimento, era o cidadão João Lopes da Cruz e os seus bens que se responsabilizavam por todas as penalidades estipulados no trato. Figura 105 – A empresa Lopes da Cruz263
262
SOUSA, 2013, vol. 1: 184.
263
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
252
A extensão da linha do Tua a Bragança
De facto, João Lopes da Cruz rapidamente se apercebeu de que o contrato que assinara muito dificilmente seria cumprido. Assim, no final de 1903, cinco meses apenas após o início oficial das obras, o empreiteiro começou a debater-se com sérias dificuldades financeiras. Depois de investir 42 contos do seu próprio bolso, viu-se “com o credito cerceado em toda a parte” e “perante a necessidade de empatar enorme capital, que não estava ao meu alcance”264. Por isso, em Dezembro, declarou à direcção da Companhia Nacional “não poder manter nem sustentar o seu contracto por falta de recursos”265. Um caminho-de-ferro era construído em várias frentes simultaneamente e não continuamente desde o ponto inicial até ao ponto final. Contudo, o empreiteiro só receberia o seu pagamento por quilómetro completo ou obra completa. Obviamente, isto exigia uma grande soma de capital que João da Cruz não dispunha. Para solucionar o problema, a companhia e o empreiteiro-geral assinaram, em 7 de Dezembro de 1903, em Lisboa, um adicional ao contrato. Era reconhecido por ambos os outorgantes que os preços e modalidades de pagamento acordados previamente obrigavam João da Cruz “a empregar na execução da empreitada quantia superior áquela de que lhe convem dispôr para tal fim”. Cruz solicitava por isso “que lhe sejam feitos pagamentos parciaes por conta de certos materiaes postos junto ás obras e a ella destinadas [carris, agulhas, placas giratórias, travessas, etc.], e por conta das unidades de trabalho executadas, que não constituam as obras completas ou os kilometros completos”. A direcção da Companhia Nacional aceitou o pedido e dispôs-se a pagar até 90% do valor dos materiais indicados e até 90% das unidades de trabalho concluídas, à laia de adiantamento do pagamento ao empreiteiro. Em troca, aplicavase o coeficiente de redução indicado no art.º 4.º do contrato original às séries de preços aprovadas pelo governo e Cruz aceitava pagar 1% de comissão e 6,5% de juro sobre as importâncias que recebesse266. Contudo, em Junho de 1904, o empreiteiro confessava já não ter meios para continuar a obra. O seu engenheiro-director conferenciou então com a direcção da Companhia Nacional, mostrando-lhe “que não devia ser attribuida á falta de recursos pecuniarios a difficil situação em que me achava, mas sim ao inexequivel contracto que tinha assinado”267. Os directores da companhia discordaram e sugeriram a Cruz nomes de entidades que lhe podiam emprestar o dinheiro necessário. O empreiteirogeral não as refere senão por abreviaturas: S., T. e F. Segundo João Lopes da Cruz, os empréstimos contraídos estabeleciam juros altíssimos e eram feitos contra garantia dos décimos que ele tinha a receber da concessionária. “Assim dei o primeiro passo 264
CRUZ, 1906: 6.
265
COMPANHIA, 1907: 7.
266
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 364, caixa 73, fs. 81v-83v.
267
CRUZ, 1906: 16-17.
253
A linha do Tua (1851-2008)
para cahir nas apertadas malhas da agiotagem, devido á falta d’auxilio que moralmente me devia ser dado pela Companhia”268. A partir desta altura, as relações entre o empreiteiro e a companhia tornaram-se mais conflituosas. Em Dezembro de 1904, o Districto de Bragança insinuava que “é ella [a empreitada] fertil em intriguinha lá entre os seus, segundo o que se diz, embora extra-officialmente”269. Em Fevereiro de 1905, Costa Serrão expunha novamente à Companhia Nacional as dificuldades por que passava a empreitada e solicitava novo adiantamento de pagamento, sob pena de suspensão dos trabalhos270. A companhia acedeu e a 15 de Fevereiro e 31 de Maio seguintes assinou novos adicionais ao contrato com João da Cruz (relativos respectivamente à primeira e à segunda secção). O preço do metro cúbico das terraplanagens era aumentado, mas, em contrapartida, o juro a pagar pelo empreiteiro por estes adiantamentos era também alteado para 7%271. A magnanimidade da Companhia Nacional não melhorou de todo a situação de João da Cruz. Os abonos concedidos funcionavam como um empréstimo camuflado, de modo que “a conta dos abonos foi subindo sempre” e o valor real dos pagamentos feitos ao empreiteiro diminuíam sucessivamente272. Figura 106 – Outorgantes e testemunhas do adicional de 31 de Maio de 1905273
Porém, as notícias divulgadas pelos jornais bragançanos apontavam precisamente no sentido oposto. Após a assinatura do adicional de 15 de Fevereiro, a Gazeta de Bragança escrevia que os obstáculos financeiros que se haviam levantado à empreitada haviam sido vencidos não sem dificuldades pela “intelligencia, a perseverança, 268
CRUZ, 1906: 16-17.
269
Districto de Bragança, 16.12.1904, n.º 145: 3.
270
COMPANHIA, 1907: 9.
271
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 385, caixa 78, fs. 3132v; livro 390, caixa 78, fs. 48-49.
272
CRUZ, 1906: 16-18.
273
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Livro 390, caixa 78, fs. 48-49.
254
A extensão da linha do Tua a Bragança
a actividade incançavel do primeiro [João da Cruz], e a competencia, auctoridade, o credito do segundo [Costa Serrão] junto das estações technicas officiaes e dos potentados financeiros da capital”274. O Districto de Bragança anunciava também “como certo que o sr. Lopes da Cruz conseguiu resolver todas as difficuldades financeiras, estando habilitado com os capitaes necessários para dar ás obras de construcção do caminho de ferro de Mirandela a Bragança todo o desenvolvimento preciso”275. Na verdade, João da Cruz viu-se forçado “a pedir auxilios financeiros a todos os meus amigos, para poder cumprir e respeitar o contracto que firmara”276. Em Junho de 1905, O Nordeste incluiu Abílio Beça entre esses amigos, numa notícia que pretendia atacar o antigo governador civil277. Contudo, anos mais tarde, no parlamento, no rescaldo da morte de Beça, o deputado Pereira Lima confirmou que ele “dispôs de parte dos seus haveres, ao mesmo tempo que solicitava dos seus amigos que concorressem tambem com dinheiro para as empreitadas, visto que as obras eram dispendiosas, e os orçamentos inferiores ao que ellas custavam”278 . Pela mesma altura, O Nordeste reconfirmava – desta feita numa toada mais apaziguadora e laudatória – que Abílio Beça “chegou a mendigar capitaes e (sic) firma de valor, a fim de aplanar dificuldades financeiras para a realização da suprema aspiração de Bragança – o caminho de ferro”279. Figura 107 – Abílio Beça, segundo gravura d’O Seculo280
274
Gazeta de Bragança, 26.2.1905, n.º 666.
275
Districto de Bragança, 24.2.1905, n.º 155: 2.
276
CRUZ, 1906.
277
O Nordeste, 28.6.1905, n.º 942: 1.
278
Diario da Camara dos Deputados, 6.6.1910: 5.
279
O Nordeste, 29.4.1910, n.º 1178: 1.
280
O Seculo, 7.5.1902, n.º 7308: 1.
255
A linha do Tua (1851-2008)
De qualquer modo, e apesar destes auxílios, houve, de facto, salários em atraso e despedimentos em massa281. O próprio empreiteiro admitiu mais tarde que “houve partidos de operarios a produzir uma insignificancia de trabalho, durante semanas, por não ter dinheiro para lhes pagar”282. Todavia – segundo o acórdão do supremo tribunal de justiça referente ao processo movido por César Azevedo à Companhia Nacional –, a concessionária nunca exigiu ao empreiteiro “como lhe cumpria a prova autenticada de que estavam em dia todos os pagamentos do pessoal empregado”283. Enquanto João da Cruz fosse capaz de continuar a obra, a invocação de tal argumento para rescindir o contrato era algo que não lhe interessava. A origem dos problemas financeiros de João da Cruz residia no facto de a Companhia Nacional só desbloquear pagamentos mediante a encomenda de materiais e por unidades de trabalho completas. Além do mais, o empreiteiro via retirado a estes embolsos 1% de comissão e ficava ainda com uma dívida equivalente a 6,5% (e depois 7%) dessas transferências, à laia de juros. João Lopes da Cruz previra que com um capital inicial de 90 a 100 contos “poderia levar a cabo sem maiores dificuldades a construcção do caminho de ferro de Mirandella a Bragança”284. Estas previsões seriam porventura demasiado optimistas, de qualquer modo, para cumprir o prazo de entrega e poder dar desenvolvimento suficiente aos trabalhos (para não dar azo a uma rescisão contratual e eventual indemnização por incumprimento), o empreiteiro foi forçado a atacar a construção em vários pontos, o que o obrigou a um investimento inicial maior do que as suas capacidades. Além disso, não contou com o facto de a companhia levar ao extremo as prerrogativas que lhe advinham do contrato original. Como confessou mais tarde, Cruz contava com a boa vontade dos directores da companhia para não se cingirem ao contrato ou até alterá -lo de forma razoável, algo que para ele não era “nada mais natural e justo”285. Um outro detalhe ligado ao saldo dos créditos de João Lopes da Cruz prendeu-se com o facto de a Companhia Nacional não aceitar a entrega de qualquer quilómetro de via sem que as valetas estivessem abertas e regularizadas. Para ultrapassar a situação, o empreiteiro propôs que a companhia tomasse conta desta tarefa, proposta que foi aceite, naturalmente por um preço exorbitado. Para piorar a situação, o serviço não foi realizado a tempo, o que causou que algumas trincheiras fossem inundadas e tivessem que se refeitas à custa do empreiteiro. A Companhia Nacional não foi subcontratada por João da Cruz apenas para esta tarefa. Já em 1904, o assentamento da via e o reforço dos aterros foram subadjudicados à própria concessionária, pois o empreiteiro não 281
Districto de Bragança, 16.12.1904, n.º 145: 3.
282
CRUZ, 1906: 6 e 39.
283
Arquivo do supremo tribunal de justiça. Registo de acórdãos comerciais da primeira secção, livro n.º 5, acórdão 35676, fs. 201v.
284
CRUZ, 1906: 6-7 e 13-15.
285
CRUZ, 1906: 11.
256
A extensão da linha do Tua a Bragança
dispunha de locomotivas e vagões para este serviço. Algumas obras nas estações ficaram igualmente a cargo da empresa. Naturalmente, o transporte de material e pessoal para a obra ficou ainda a cargo da Companhia Nacional, que obviamente, cobrava este serviço a João da Cruz. Na secção de Foz-Tua a Mirandela, por cada tonelada transportada por quilómetro a companhia cobrava 4 réis. Nos novos troços abertos à exploração, o preço dobrava. Quanto ao transporte dos operários, foi inicialmente objecto de um bónus, que, todavia, foi cancelado quando o movimento se tornou demasiado grande286. Em todas estas situações, a companhia aproveitou-se da situação de necessidade do empreiteiro e prestou os serviços requisitados por um preço inflacionado. Assim, ao mesmo tempo que o empreiteiro via “tudo encaminhado de fórma a chegar a um bom resultado (…), via de repente surgir-me debaixo dos pés a ruina e approximar-se a passos agigantados o negro phantasma da miseria para mim e minha família!!”287. Num último fôlego, o empreiteiro dirigiu-se a 14 de Julho de 1906 ao oitavo cartório notarial do Porto para hipotecar a um tal de António Manuel Teixeira uma boa parte das suas propriedades (incluindo 55 mil l de vinho armazenados em Mirandela) em troca de um empréstimo de 22,5 contos288. O dinheiro, porém, esgotou-se rapidamente, provavelmente em salários em atraso e pagamentos a fornecedores. Duas semanas depois, João da Cruz intentou junto dos directores da Companhia Nacional obter uma nova forma de adiantamento do seu pagamento, alegando as dificuldades financeiras que enfrentava. “D’esta vez porém a Companhia não se commoveu, e não acedeu”289. Figura 108 – Letra aceite por João Lopes da Cruz para financiar a construção290
286
Companhia Nacional. Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1904: 1011. CRUZ, 1906: 26-27 e 36. COMPANHIA, 1907: 35-44.
287
CRUZ, 1906: 20.
288
Sobre os detalhes da hipoteca, ver: arquivo distrital do Porto. Registos notariais. 8.º cartório notarial do Porto, PT/ADPRT/NOT/CNPRT08/001/0822, fs. 77-81v. I/34/1 - 138.
289
COMPANHIA, 1907: 9.
290
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto. Secretaria geral. Processos e questões diversas. Rescisão de contrato, PT/ADPRT/EMP/CCFP/SG/013/13.084. B/6/1/4 - 14.8.
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O fecho da porta da Companhia Nacional ao empreiteiro foi para este um duro golpe. Com os adicionais entretanto assinados e com a angariação de capitais juntos de conhecidos seus, João da Cruz conseguiu manter a construção activa durante mais algumas semanas. No entanto, chegou o dia em que o seu crédito se exauriu. Esse dia foi o 30 de Julho de 1906. Nesta data, o empreiteiro comunicou à concessionária que não podia continuar a obra por fata de fundos. A Companhia Nacional não se comocionou e dois dias depois rescindiu o acordo de empreitada, alegando justa causa291, que, de facto, tinha. Segundo o art.º 31.º do contrato, “se a Companhia reconhecer que os trabalhos não seguem com o conveniente desenvolvimento para que possam ser concluídos nos prazos fixados, terá o direito de rescindir o contracto e de tomar posse das obras, materiaes, ferramentas e utensilios, barracões, officinas e estaleiros, direitos estes que poderá exercer independentes da decisão judicial e administrativa”. Pelo parágrafo único do mesmo artigo “a Companhia poderá continuar com a construcção das obras por sua administração directa, ou poderá contractal-as com novo empreiteiro, sem que me [a Cruz] reste direito algum de reclamação ou indemnisação”. Mais ainda, de acordo com o art.º 32.º, João Lopes da Cruz perdia também “direito ás sommas que a Companhia me dever, ao deposito de garantia em poder do Governo, a quaesquer quantias retidas em poder da Companhia e a todos os objectos e valores de que a Companhia tomar posse nos termos do art.º 31.º sem que por isto me seja devida indemnisação e ficando eu ainda responsavel por todas as perdas e damnos que para a Companhia advier da minha falta”292. As consequências da denúncia do contrato nestes termos eram implacáveis para o empreiteiro. Perdia todo o trabalho que fizera e abdicava de todos os créditos sobre a Companhia Nacional, podendo ainda ser responsabilizado pelas perdas e danos sofridos pela concessionária. No entanto, e apesar de tudo isto, João da Cruz endividara-se pessoalmente para levar a cabo a empreitada. Necessitava agora saldar essas dívidas, mas não tinha como, pois o dinheiro que contava receber da companhia esfumara-se. Em suma, no dia 1 de Agosto de 1906, João Lopes da Cruz estava arruinado.
291
CRUZ, 1906: 37.
292
Arquivo distrital de Lisboa. Registos notariais. 9.º cartório notarial de Lisboa. Documentos dos livros de notas. Maço 62, caixa 37 (6/39/6/4), Julho a Setembro de 1903, documento B034642.
258
A extensão da linha do Tua a Bragança
4.4. O ASSENTAMENTO DA LINHA Hugo Silveira Pereira293
João Lopes da Cruz não tinha prática nem conhecimentos técnicos para levar a cabo uma obra como um caminho-de-ferro, pelo que necessitava de um engenheiro praticado. A escolha recaiu sobre Manuel Francisco da Costa Serrão, um técnico formado na escola do exército. Com 48 anos de idade e 22 anos de experiência (topografia, estudos ferroviários, hidráulica, direcção de obras públicas) em Portugal e nas colónias, Costa Serrão era uma enorme mais-valia para o empreendimento294. Iniciou os seus trabalhos na linha ainda antes do trespasse da concessão e da assinatura do contrato de empreitada. Em 11 de Maio de 1903, deslocou-se aos Cortiços para proceder aos trabalhos preliminares de reconhecimento do terreno295. Depois das primeiras inspecções, Costa Serrão chegou à conclusão de que o projecto original do governo podia “ser classificado de construção bastante difficil e dispendiosa”, podendo e devendo ser melhorado, até porque o custo quilométrico sobre o qual seria calculada a garantia de juro era inferior ao custo do projecto original (de 1888). Por outro lado, os preços da mão-de-obra e dos materiais eram muito mais elevados do que os de 1888. Para o engenheiro, ficava “bem á evidencia demonstrada a necessida293
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
294
Arquivo histórico do ministério das obras públicas. Processo individual de Manuel Francisco da Costa Serrão. Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça s/n (8). Gazeta de Bragança, 23.3.1903, n.º 566. O Nordeste, 12.11.1902, n.º 805. GALVÃO, 1929. GALVÃO, 1940.
295
CRUZ, 1906: 5.
259
A linha do Tua (1851-2008)
de impreterivel de procurar, por meio de variantes ao projecto, a reducção do custo d’algumas partes da obra”296. Figura 109 – Manuel Francisco da Costa Serrão297
Deste modo, nos meses seguintes, Costa Serrão esforçou-se por rectificar a directriz da via-férrea na secção entre Mirandela e o Romeu, para suprimir obras de arte e conseguir um projecto mais fácil, barato e rápido de construir. Na época, o técnico estimava que a obra estaria pronta em 30 meses, bem dentro do prazo imposto no contrato, portanto298. No âmbito destes estudos, João da Cruz procurou vender ramais ferroviários que servissem as vastas propriedades de Clemente Menéres. Em 22 de Dezembro de 1903, redigiu e enviou a minuta de um contrato onde se comprometia “a construir todos os desvios de caminho-de-ferro, de que durante a construção deste, o primeiro outorgante venha a obter da Companhia Nacional de Caminho de Ferro a concessão para serventia das suas propriedades”. O empreiteiro aceitava ainda construir cada desvio “pelo preço total que resultar de se aplicar ao respectivo projecto a (…) série de preços que é a do custo restrito, ou sem lucros, dos trabalhos da empreitada que o segundo outorgante está executando”. Na mesma missiva foi enviado o projecto para a construção de um ramal de 200 m de extensão entre a via-férrea e a fábrica de cortiça dos Menéres (junto à estação de Mirandela). João da Cruz informava Menéres que “está prompto o projecto de desvio do caminho-de-ferro para serventia da sua fábrica do qual, aqui incluso, remeto o orçamento [1,5 contos], por enquanto apenas aproximado, visto não poder ser ainda conhecido o preço d’alguns materiaes, e ser dependente o custo definitivo d’alguns trabalhos da qualidade do terreno que se encontrar ao ser executada a obra”299. 296
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, proc. 46. Variante ao primeiro lanço da primeira secção do caminho de ferro de Mirandela a Bragança.
297
Arquivo histórico do ministério das obras públicas. Processos individuais. Manuel Francisco da Costa Serrão.
298
Gazeta de Bragança, 14.6.1903, n.º 578. O Nordeste, 27.5.1903, n.º 833.
299
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz. Agradeço especialmente ao Dr.
260
A extensão da linha do Tua a Bragança
Contudo, os dois empresários não chegaram a acordo. Menéres antevia dificuldades da parte da Companhia Nacional a esta iniciativa, exigia a construção de várias vedações e passagens de nível e queria que Cruz se responsabilizasse pelos danos provocados pelas faúlhas das locomotivas nos seus arvoredos. Por fim, discordava também de uma cláusula, pela qual o empreiteiro pretendia ser pago por um lameiro seu por um preço equivalente ao da expropriação de uma propriedade de Meneres. Em carta de 29 de Dezembro de 1903, este entendia que “V. Ex.ª dá uma interpretação errada ao valor de uma cortinha cheia de vinha em bardos na sua maior pujança, tendo pomar, etc., que pretende equiparar ao valor do lameiro de sua propriedade (…). Nesta persuasão resolvi desistir, não só do desvio da linha para a fábrica de cortiça em Mirandela, como de quaisquer outros nas minhas propriedades no Quadraçal”300. Figura 110 – Clemente Menéres entre dois sobreiros (1908)301
A partir daqui, a relação entre os dois homens azedou. Na resposta à carta anterior (datada de 7 de Janeiro de 1904), Cruz argumentava “que era aquela proposta absolutamente leal e desinteressada” e expunha a sua indignação perante a atitude de Clemente Menéres: “depois das facilidades, da franqueza e da bizarria que V. Ex.ª me deu sobejas provas, eu não ficaria satisfeito comigo mesmo Albano Viseu o acesso à transcrição da correspondência mantida entre João Lopes da Cruz, Costa Serrão e a Sociedade Menéres. 300
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
301
VISEU, 2013: 52.
261
A linha do Tua (1851-2008)
se não lhe provasse que sei corresponder condignamente a estes favores”302. As negociações seriam, porém, retomadas, mas novamente em vão. Clemente Menéres oferecia 2 contos pela construção de três desvios ferroviários (em Mirandela e no Quadraçal). Em carta de 12 de Fevereiro de 1904, Costa Serrão considerava o preço “em absoluto, inaceitável (…), por isso que, custando o de Mirandela quantia muito aproximada de 1:500$000, segundo orçamento por mim cuidadosamente organizado, resta para os dois no Quadraçal apenas a quantia de 500$000 réis que nem chega para a parte metálica”303. Entretanto, o engenheiro prosseguia com os estudos de novas variantes, tendo conseguido, na secção entre Mirandela e Cortiços, suprimir seis túneis, reduzir o movimento de terras em 500 mil m3 e eliminar quase por completo os muros de espera e de suporte. A contrapartida era o aumento da extensão da linha em cerca de 2 km. De qualquer modo, a poupança atingida era na ordem dos 20 contos e segundo o engenheiro, a nova directriz proporcionaria “um rendimento proprio muito superior áquelle que teria, seguindo o projecto do governo; ao mesmo tempo que satisfará muito melhor do que este ás conveniencias do publico”304. Na secção seguinte, de Cortiços a Sendas, Serrão eliminou obras de arte importantes, anulou muros de espera e atenuou o movimento de terras, numa economia de mais de 400 contos305. As alterações foram uma excelente notícia para João Lopes da Cruz. Segundo o próprio, “foram estes resultados tão satisfatorios e a boa vontade da maior parte dos meus auxiliares, que tornaram viavel a construcção do caminho de ferro de Mirandella a Bragança”306. Os trabalhos foram oficialmente inaugurados a 20 de Julho de 1903, quando Abílio Beça, Costa Serrão, João da Cruz, o bispo, a vereação municipal e outros se deslocaram ao local onde se ergueria a estação, no largo do Toural. Então, o bispo de Bragança arrancou com um alvião dourado um pouco de terra, que o vice-presidente da câmara lançou com uma pá prateada numa carreta decorada com fitas, a qual foi transportada e despejada por Abílio Beça. Naquele momento, foram lançados foguetes, a banda dos bombeiros tocou o hino real e os sinos repicaram. Depois dos discursos da praxe, os convivas dirigiram-se à sé, onde se entoou um Te Deum. À noite a cidade e o céu de Bragança foram iluminados com marchas aux flambeux e com inúmeros foguetes307. 302
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
303
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
304
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, proc. 46. Variante ao primeiro lanço da primeira secção do caminho de ferro de Mirandela a Bragança.
305
Districto de Bragança, 29.5.1903, n.º 64: 1.
306
CRUZ, 1906: 5.
307
Districto de Bragança, 24.7.1903, n.º 72: 2. Gazeta de Bragança, 26.7.1903, n.º 584. ALVES, 2000, vol.7: 618619; vol. 9: 229.
262
A extensão da linha do Tua a Bragança
A construção propriamente dita começou no primeiro lanço da primeira secção (de Mirandela aos Cortiços) com apenas oito dezenas de operários, seguindo o projecto modificado de Costa Serrão (entretanto aprovado por portaria de 16 de Julho e mais tarde de 2 de Dezembro de 1903)308. Os fornecimentos de material foram contratados às sociedades John Cockerill (carris, e éclisses), Boulonneries de la Croyère (parafusos e tirefonds), Meneses & Irmão (travessas) e M. Hermann de Lisboa (instalação do telégrafo)309. Figura 111 – Carril Cockerill (secção museológica de Bragança)310
Em Outubro de 1903, a trincheira à saída de Mirandela (que exigiu 9 mil m3 de escavação em xisto duro311) estava cortada. Em Lisboa, Costa Serrão entregava o novo projecto do segundo lanço da primeira secção. Este enfrentou dificuldades no ministério, que só foram definitivamente vencidas em Dezembro de 1903 por intervenção directa do ministro das obras públicas312. Em Janeiro de 1904, Costa Serrão estava em Bragança a examinar a alternativa ao projecto original de aproximação à cidade, imposta pelo
308
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2; proc.46. Variante ao primeiro lanço da primeira secção do caminho de ferro de Mirandela a Bragança. Gazeta de Bragança, 2.8.1903, n.º 585. FINO, 1883-1903, vol. 3: 1053-1054 e 1100-1101.
309
COMPANHIA, 1907: 44-46.
310
Fotografia de Eduardo Beira.
311
CRUZ, 1906: 8.
312
Districto de Bragança, 13.5.1904, n.º 114: 2. Gazeta de Bragança, 4.10.1903, n.º 594; 11.10.1903, n.º 595; 29.11.1903, n.º 602; 6.12.1903, n.º 603; 28.2.1904, n.º 615; 6.3.1904, n.º 616; 13.3.1904, n.º 617; 27.3.1904, n.º 619; 10.4.1904, n.º 621; 26.6.1904, n.º 632; 12.6.1904, n.º 630. O Nordeste, 26.8.1903, n.º 846.
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contrato de concessão. Seria aprovado dois meses depois em 26 de Março de 1904313. Por esta altura, os trabalhos tomaram um maior desenvolvimento com cerca de 1.500 a 2 mil operários na linha314. O túnel à saída de Mirandela estava perfurado, uma façanha muito festejada pelos trabalhadores e pelos locais, considerando as dificuldades que colocou (túnel de 126 m de extensão atacável por uma só boca315). Faltava ainda revesti-lo e assentar os carris316. A chegada do tempo mais quente teve sempre como consequência o abrandamento do ritmo dos trabalhos, pois “não havia operarios que resistissem a trabalhar (…), devido ás sezões, havendo dias de cahirem doentes, partidos completos d’operarios”. A época das colheitas e o assentamento do caminho-de-ferro do Corgo (que então se fazia) roubavam também mão-de-obra ao estaleiro da linha de Bragança. Tudo isto tinha o condão de elevar o custo do trabalho: “mandei durante a epocha das ceifas, emissarios por toda a parte, contractar pessoal, chegando a pagar o jornal de 550 réis a trabalhadores, para não paralisarem por completo os trabalhos”317. Em suma, “a escassez de operarios foi enorme, embora se pagassem salarios extraordinariamente elevados, e, aquelles que appareciam, eram da peor especie, produzindo uma quantidade de trabalho insignificante”318, sendo ainda propensos ao “conflicto ou á associação”319. Em Maio de 1904, Costa Serrão relatava dificuldades para manter a disciplina na obra. Numa carta datada de 16 daquele mês, o engenheiro dava conta de “symptomas de rebellião que importa denunciar immediatamente, e para que urge procurar prompto remedio”. Aos estaleiros da construção afluíam “trabalhadores que são, provavelmente, foragidos da justiça”, que perturbavam o bom andamento dos trabalhos e alteravam a ordem pública nas povoações vizinhas. Em Macedo, por exemplo, deu-se o levantamento “d’um grande partido de trabalhadores para virem, em massa, exigir o augmento do salario”. Costa Serrão solicitava um reforço da força armada320. Por 313
Districto de Bragança, 13.5.1904, n.º 114: 2. Gazeta de Bragança, 4.10.1903, n.º 594; 11.10.1903, n.º 595; 29.11.1903, n.º 602; 6.12.1903, n.º 603; 28.2.1904, n.º 615; 6.3.1904, n.º 616; 13.3.1904, n.º 617; 27.3.1904, n.º 619; 10.4.1904, n.º 621; 26.6.1904, n.º 632; 12.6.1904, n.º 630. O Nordeste, 26.8.1903, n.º 846.
314
Districto de Bragança, 25.3.1904, n.º 107: 2. Gazeta de Bragança, 17.1.1904, n.º 609; 20.3.1904, n.º 618; 3.4.1904, n.º 620. Companha Nacional. Relatorio do conselho de administração apresentado à assembleiageral em 1904: 10-11.
315
CRUZ, 1906: 8.
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Districto de Bragança, 13.5.1904, n.º 114: 2. Gazeta de Bragança, 4.10.1903, n.º 594; 11.10.1903, n.º 595; 29.11.1903, n.º 602; 6.12.1903, n.º 603; 28.2.1904, n.º 615; 6.3.1904, n.º 616; 13.3.1904, n.º 617; 27.3.1904, n.º 619; 10.4.1904, n.º 621; 26.6.1904, n.º 632; 12.6.1904, n.º 630. O Nordeste, 26.8.1903, n.º 846.
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CRUZ, 1906: 35.
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CRUZ, 1906: 35.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
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intermédio do governador civil, Abílio Beça, os reforços chegaram a Macedo em meados de Maio321. Apesar destas dificuldades, a construção e os estudos do traçado avançavam. Em Junho de 1904, o projecto desde a ponte da Coxa até Bragança estava concluído322. A indefinição em relação à directriz final da linha era aproveitada pelas populações locais para solicitar passagens superiores e inferiores, estações ou uma rota mais próxima ao centro das mesmas. O requerimento de Rebordãos, por exemplo, assinado pelo seu pároco, João Inácio Costa, era singularmente eloquente: havia 200 fogos na freguesia, “cuja população, extremamente laboriosa, se applica em grande parte na feitura de cal”. Além disso, a paróquia era “extremamente abundante na producção de diversos productos agricolas”, sobretudo cereais, batata, castanha e feno. Aliás, “pode-se affirmar que d’entre aquellas freguesias as mais proximas do caminho de ferro (…) é sem duvida Rebordãos a mais importante (…) Acontece que pelo projecto do (…) caminho de ferro existem apenas estações (…) à distancia de 5 kilometros tanto para o norte como para o sul”, um enorme inconveniente para a localidade, que seria ultrapassado pela construção de um apeadeiro ou estação. Além de Rebordãos, também os habitantes de Moredo e Freixeda requeriam a construção de passagens superiores e inferiores323. Noutras situações, ocorreram desentendimentos judiciais com proprietários de terrenos confinantes à via. Pelo menos entre Março e Agosto de 1904, João Lopes da Cruz viu trechos da sua obra serem embargados pela câmara municipal de Mirandela, pelos condes de Vinhais e por alguns habitantes da rua das Pedras em Bragança324. A expropriação de terrenos pertencentes aos Menéres foi também um processo bastante complicado e que embaraçou o avanço das obras. Em Dezembro de 1903, Clemente Menéres exigiu 22 contos pelas suas propriedades. O empreiteiro, em carta de 7 de Janeiro de 1904, considerou a “proposta de preço de expropriação, exageradíssima (…). Inaceitável, digo, e V. Ex.ª não me pode levar a mal que eu assim o afirme, pois que a sua proposta excede em muitas vezes o preço a que se chegaria se às Districto de Bragança, 20.5.1904, n.º 115: 3. 321
Arquivo regional de Ponta Delgada. Fundo Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Bragança (impostos municipais). Telegrama 8.7.7.5: 3. Districto de Bragança, 27.5.1904, n.º 116: 3.
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Districto de Bragança, 13.5.1904, n.º 114: 2. Gazeta de Bragança, 4.10.1903, n.º 594; 11.10.1903, n.º 595; 29.11.1903, n.º 602; 6.12.1903, n.º 603; 28.2.1904, n.º 615; 6.3.1904, n.º 616; 13.3.1904, n.º 617; 27.3.1904, n.º 619; 10.4.1904, n.º 621; 26.6.1904, n.º 632; 12.6.1904, n.º 630. O Nordeste, 26.8.1903, n.º 846.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
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Arquivo distrital de Bragança. Juízo de direito da comarca de Mirandela. Auto de embargo que os condes de Vinhais movem contra João Lopes da Cruz; Processo de ratificação de embargo de obra nova movido pela câmara municipal de Mirandela contra João Lopes da Cruz. Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2. Gazeta de Bragança, 21.5.1905, n.º 678. O Nordeste, 24.8.1904, n.º 898; 12.10.1904, n.º 905.
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superfícies de cada espécie de terreno a expropriar se aplicassem os preços unitários, correspondentes, do projecto do governo”. Mais tarde, o empresário aceitou baixar o preço para 15 contos de réis, valor ainda inadmissível para o empreiteiro, que, em carta de 20 de Janeiro de 1904, confessava-se obrigado a’“o grande desgosto de consentir num processo de expropriação judicial com quem, tanto desejava considerar e lhe queria evitar qualquer enfado”. Num último fôlego, João da Cruz apelava “para a boa razão [de Menéres] e lhe peço o favor de me dizer a última palavra, a fim de ver se posso evitar a maldita expropriação judicial, que sendo com V. Ex.ª, até parece mal”325. A previsão de que um acordo não seria alcançado levou o empreiteiro-geral a ordenar ao seu engenheiro-director que iniciasse o processo de expropriação judicial. Clemente Menéres considerou tal atitude uma afronta pessoal, embora se tratasse apenas de uma medida preventiva. Em missiva de 26 de Fevereiro de 1904, Costa Serrão explicava que “de existir um decreto declarando urgente a expropriação, o qual é indispensável para fundamentar o requerimento a apresentar ao juiz, não se conclui que tenhamos necessariamente de fazer uso dele; se chegarmos a acordo, o decreto deixa ipso facto de servir para qualquer fim, se não chegarmos tê-lo-emos para evitarmos delongas”326. O empresário não se deixou convencer. Em 2 de Março de 1904, cortava relações com João Lopes da Cruz. Além do mais, “para todos os effeitos lhe [a Cruz] retiro desde hoje as licenças que eu lhe havia dado não só para proceder aos trabalhos d’aquella construcção dentro d’esses terrenos, mas tambem para explorar pedra dentro d’ellas, como para conservar o barracão que eu lhe permitti construir na curtinha de Mirandella, e a cuja destruição deve essa empreza proceder immediatamente”327. A comunicação entre a empreitada e a sociedade Menéres passou a ser feita exclusivamente por intermédio de Costa Serrão. O imbróglio foi finalmente desbloqueado pelo governo. Em Março de 1904, o ministério das obras públicas concedeu o carácter de utilidade pública às expropriações. Os Menéres tiveram que se contentar com a percepção de 9 contos de réis e de outras compensações variáveis (passagens de nível e serventias de pé e de canos, vedações de pedra e entrega das oliveiras cortadas e da cortiça dos sobreiros expropriados)328 Em Junho de 1904, estavam também concluídos todos os processos de expropriação em Bragança329. Um mês depois, na cidade, inauguraram-se os trabalhos da esta325
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
326
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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Districto de Bragança, 24.6.1904, n.º 120: 2. Gazeta de Bragança, 21.7.1907, n.º 791. O Nordeste, 14.6.1905, n.º 940: 2; 19.7.1906, n.º 996: 2; 1.8.1907: 2.
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ção principal. Na eira do Toural, onde se reuniram as autoridades civis, eclesiásticas e militares, além de muito povo, João Lopes da Cruz e o condutor César Azevedo perfilaram-se defronte de umas dezenas de operários. O empreiteiro-geral lançou vivas às autoridades locais, no que foi correspondido com aclamações ao rei, ao governador civil, ao povo, à Companhia Nacional e a ele próprio. Seguidamente, os operários iniciaram os trabalhos de terraplanagem, ao som de muitos foguetes e da música da banda de infantaria 10330. Entretanto, os trabalhos prosseguiam. Em 22 de Julho, uma variante do segundo lanço da primeira secção foi aprovada331. No troço entre a quinta da Coxa e Bragança, labutavam 200 operários (metade dos quais na estação). Ao todo, por esta altura, João da Cruz empregava 3 a 4 mil homens. Em Novembro, o empreiteiro contratava a sociedade Willebroek de Bruxelas para fornecer o material para a ponte de Carvalhais e para o viaduto da Assureira. Os projectos para a primeira daquelas pontes e também para a do Azibo foram aprovados dias depois332. No fim do ano de 1904, Costa Serrão procurava um melhor traçado para o trecho entre Rossas e Sortes. “Para dar conta do recado antes da chuva, me foi necessário trabalhar todos os dias, do nascer ao por do sol, sucedendo muitas vezes terminar o serviço a 8 quilómetros do quartel que percorria a pé antes do jantar”, confessava o engenheiro333. Durante o resto da construção, verificaram-se novos atritos com os Menéres, em virtude de a linha passar por várias propriedades da família, cujos acessos e abastecimentos de água era obrigatório manter. Em 31 de Maio de 1905, Clemente Menéres não se conformava “por modo algum, com a maneira como Vossa Empresa fez na cortinha de Mirandela o caminho de comunicação entre as duas parcelas em que a linha férrea dividiu a referida propriedade”. Em relação a uma mina cortada pela linha, na quinta do Romeu, “peço a V. Ex.ª a fineza de pôr em comunicação as duas partes dessa mina por meio de um cano de alvenaria subjacente à linha”. Os prejuízos causados nas manchas de sobreiros eram também questão recorrente. Costa Serrão chegou a pôr em causa os cálculos apresentados pelos Menéres (carta de 22 de Março de 1905): “quanto ao preço de 80 réis por quilograma que serviu de base ao cálculo, V. Ex.ª me permitirá, a mim que já vendi bastante cortiça, de qualidade não inferior à do Quadraçal, e que sei que o preço de tal produto não é agora mais alto, que observe que me parece tal preço muito elevado”. Clemente Menéres, puxando dos seus galões 330
Gazeta de Bragança, 10.7.1904, n.º 634; 17.7.1904, n.º 635. O Nordeste, 13.7.1904, n.º 892.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
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Districto de Bragança, 4.11.1904, n.º 139: 2. Gazeta de Bragança, 31.7.1904, n.º 637; 7.8.1904, n.º 638; 4.9.1904, n.º 642; 13.11.1904, n.º 652; 27.11.1904, n.º 654; 11.12.1904, n.º 656. O Nordeste, 17.8.1904, n.º 897; 2.11.1904, n.º 908.
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Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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de produtor de cortiça, retorquia que “sem querer contestar a competência especial que ao assunto V. Ex.ª tem, direi, todavia, que o preço de 80 réis por mim adoptado é o que eu tenho pago a diversos produtores de cortiça334. Nem sempre Costa Serrão se mostrou disposto a respeitar as exigências dos Menéres. Em Maio de 1905 (cartas de 22 e 31), o engenheiro negou-se a pagar pelos prejuízos causados na vegetação das árvores “por virtude da cláusula dos contractos de expropriação, na qual se estabelece «que no preço da expropriação se incluam todos os prejuízos causados na propriedade pela ocupação dos terrenos para a construção da linha»”. Clemente Menéres retrucava “que nunca entendi que o preço da expropriação no Quadraçal se incluísse o considerável prejuízo que o corte da linha há-de causar à vegetação dos sobreiros que dela ficaram mais próximos. Poderá ser que a interpretação por V.Ex.ª deduzida do respectivo contrato quanto ao assunto seja boa. Se o for – e isso deve dizer aí em breve o meu advogado – acatá-la-ei, como me cumpre; se o não for, tem de fazer perante essa Empresa a competente reclamação”. Em 10 de Julho seguinte, o feitor dos Menéres, Francisco Lopes Seixas, reportava aos seus superiores a oposição dos empregados da empreitada à instalação de um cano para conduzir água. O funcionário mostrava-se preocupado com o processo: “não me parece que tudo isto finde em bem” – avisava335. Muitas destas negociações eram feitas verbalmente, o que fomentava a discussão entre ambas as partes. Em carta de 15 de Agosto de 1905, Clemente Menéres não se recordava “absolutamente nada do que, segundo V. Ex.ª [Costa Serrão] diz (…), se passou entre mim e o senhor César de Azevedo [a propósito do revestimento de um talude]. Não haveria qualquer mal-entendido da parte dele? Por força que sim”. Noutra ocasião, o empresário registava “com muito pesar de que V. Ex.ª [Costa Serrão] se não lembre, em absoluto, da promessa que a esse respeito me fez. Não insisto, é claro, em que V. Ex.ª lhe dê satisfação, mas lamento-me por não a haver provocado por escrito”336. Independentemente destas questiúnculas, os trabalhos prosseguiam. Em Fevereiro de 1905, o túnel de Mirandela estava totalmente revestido e dotado de carris, ao passo que os trabalhos de terraplanagem na primeira secção estavam quase completos. Trabalhava-se com especial afinco no Quadraçal, zona granítica ultrapassada apenas com dinamite. Na memória familiar transmitida entre os descendentes de João da Cruz, ficou a lembrança de que esta área foi a que levantou maiores dificuldades ao construtor, que não esperava encontrar granito na abertura da trincheira337. A perigo334
Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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Arquivo Menéres. Arquivador da correspondência, empresa Lopes da Cruz.
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Entrevista a Maria João Alves Martins: 04:45 -05:00.
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sidade do trabalho provocava acidentes. Ficaram documentalmente registados o caso “d’um trabalhador que perdeu a vista e a mão direita com a explusão d’um tiro”338 e um outro de uma criança atingida na sequência de uma detonação339. Muitos outros decerto ocorreram. Na segunda secção, os esforços concentraram-se no rompimento e terraplanagem do lanço entre Valdrez e Fermentãos. Para estas tarefas e para outras semelhantes entre Fermentãos e Salsas e entre Mosca e Remisquedo, procuraram-se sub-empreiteiros, o que, aliás, foi usual em toda a obra. Homens e firmas como Ipiña, Silva & C.ª, Teixeira Ribeiro, Joaquim Goitia, Gelásio Simões, Lopez & Maurice, Rogério Moreira, Joaquim Teixeira Rivera, Eduardo Bouças, António Rodrigues, Miguel Seixas, Joaquim António Lopes, a Empresa Industrial Portuguesa e os próprios funcionários da Companhia Nacional trabalharam na construção da linha340. Entretanto, o traçado de Salsas a Rossas era aprovado superiormente pelo ministério das obras públicas (portarias de 16 e 25 de Fevereiro de 1905). A directriz entre Salsas e Remisquedo estava ainda a ser analisada por Costa Serrão341. Em relação às obras de arte, o trabalho de alvenaria do viaduto da Assureira e das pontes de Carvalhais e do Azibo estava concluído, faltando montar a superestrutura metálica. Quanto a construção das estações de Carvalhais, Romeu, Grijó e Vale da Porca (Azibo) estava praticamente concluída. A de Cortiços estava atrasada e a edificação das restantes estava prestes a iniciar-se. O projecto da gare terminal de Bragança foi aprovado pelo conselho superior de obras públicas em 16 de Fevereiro 1905 (portaria de 1 de Março)342. Em Maio, o caminho-de-ferro plenamente funcional chegou a Vilar de Lerda. As máquinas em trabalhos percorriam diariamente os 7 km que separavam esta localidade de Mirandela. No extremo oposto da linha, começava-se a abertura da trincheira e dos túneis de Remisquedo e Arufe. Entre Rossas e Mosca, iniciava-se o assentamento dos carris343. Os projectos do viaduto do Remisquedo e das pontes de Fervença e Rebordãos foram aprovados também pela mesma altura (27 de Maio)344. Em Julho de 1905, o troço até ao Romeu estava pronto, salvo a vistoria final. A
338
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2. Districto de Bragança, 1.1.1904, n.º 95: 2.
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O Nordeste, 5.10.1905, n.º 956: 3.
340
COMPANHIA, 1907: 24-31.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
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Collecção Official de Legislação Portugueza, 1905: 233.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2. Districto de Bragança, 9.6.1905, n.º 170: 2.
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2 de Agosto, foi aberto à exploração345. Em Setembro, a via-férrea começou a ser assente entre o Romeu e Macedo346. A 15 de Outubro, este último troço foi inaugurado. O comboio inaugural foi recebido em festa, com a música e os foguetes da praxe. Na cerimónia participaram cerca de 150 pessoas, incluindo representantes da Companhia Nacional e da Companhia Real, o engenheiro Costa Serrão e muito povo. Notou-se a ausência de figuras de estado. O ministro das obras públicas, Eduardo José Coelho, foi convidado, mas rejeitou por incompatibilidade de agenda347. Outra ausência notada foi a do próprio João Lopes da Cruz. De acordo com os jornais, o empreiteiro estava em Lisboa a tratar de negócios financeiros da empreitada. Não foi, porém, esquecido nos brindes que se fizeram com taças de champagne. A partir deste dia, quatro comboios ascendentes e descendentes passaram a fazer serviço combinado com a linha de Mirandela. O comboio não era directo desde Macedo até Foz-Tua, pois havia uma paragem de cerca de 30 minutos em Mirandela. Ao todo, a viagem demorava cerca de 4,5 horas. Os brigantinos ficavam assim a apenas 6 horas de distância do caminho-deferro, contra as “dez ou doze que se gastavam n’aquella tortura até Mirandella”348. Na manhã seguinte, a construção continuou, pois muito havia ainda a fazer e o tempo escasseava. A 18 ou 19 de Dezembro de 1905, com algum atraso em relação ao previsto devido ao mau tempo, era inaugurada a exploração ferroviária até Sendas, já no concelho brigantino349. Na fase final da construção, o jornal católico do Porto A Palavra fez estalar nova polémica na sua edição de 23 de Março de 1906. O diário chamava a atenção “para a forma pouco segura como tem sido construida a linha ferrea de Mirandella a Bragança (…) especialmente as obras de arte [que] não offerecem as condições indispensaveis de segurança para serem abertas á exploração publica”. O jornal acusava o empreiteiro de desleixar a construção para diminuir os seus custos e aumentar o seu lucro, tendo contado com a cumplicidade de Costa Serrão, que descurara os seus deveres como engenheiro-director em troca de uma participação na empreitada. Aliás, “cremos que todos os fiscaes das obras que por alli fazem paragem, são tambem empreiteiros…”. O escritor concluía, exigindo ao ministro das obras públicas um “inquerito por technicos de toda a autoridade, visto que as informações dos fiscaes do governo (…) não podem deixar de ser tidas como suspeitas, porque elles são accusados de ter interesses ligados á construção das referidas obras”350. 345
PEREIRA, 2012b: xlv.
346
Gazeta de Bragança, 26.2.1905, n.º 666; 26.3.1905, n.º 670; 21.5.1905, n.º 678; 18.6.1905, n.º 682; 9.7.1905, n.º 685; 17.9.1905, n.º 695; 29.10.1905, n.º 701.
347
O Nordeste, 28.9.1905, n.º 955: 2.
348
Gazeta de Bragança, 15.10.1905, n.º 699; 22.10.1905, n.º 700; 29.10.1905, n.º 701.
349
Gazeta de Bragança, 24.12.1905, n.º 709. CRUZ, 1906: 39. PEREIRA, 2012b: xlv.
350
A Palavra, 23.3.1906, n.º 233: 1.
270
A extensão da linha do Tua a Bragança
A resposta dos acusados foi rápida. Os fiscais do governo, Francisco António Rodrigues Praça e Amador José Fernandes, colocavam-se à disposição para uma sindicância ao seu trabalho351. César de Azevedo pedia para saber quem era “o auctor da referida noticia, pois sendo ella falsa no todo, e demonstrando o cumulo da maldade e imbecilidade, tenho o maximo interesse em conhecer o individuo, para vêr se, perante mim, é capaz de tomar a responsabilidade das calumnias que escreveu”. Costa Serrão assegurava que a obra estava a ser conduzida com todos os regulamentos de segurança e segundo os projectos aprovados pelo governo. Em todo o caso, seria revistada pelos fiscais do ministério antes de ser inaugurada. Em relação à sua alegada participação financeira na empreitada, garantia não ser sócio de João da Cruz, nem ter direito a qualquer parte do lucro da empreitada (recebendo apenas os seus honorários). É, porém, possível que Costa Serrão tenha empatado algum dinheiro próprio para manter a obra em andamento. De acordo com O Seculo, o engenheiro entrou “com algum capital com que procurou valer-lhe [a João da Cruz] em horas afflictivas”352. De qualquer modo, em Abril, os directores da companhia fizeram uma vistoria ao caminho-de-ferro (em sequência das suspeitas levantadas) e ficaram inteiramente convencidos da solidez do mesmo353. Para lá destas polémicas, a obra continuava. Em Maio-Julho de 1906, na secção entre Sendas e Remisquedo, as trincheiras de Fermentãos (a maior da linha), Salsas e Moredo estavam praticamente cortadas. Os túneis estavam igualmente bastante adiantados, bem como a ponte de Remisquedo. Em alguns troços, os carris já estavam a ser fixados ao leito. Em Sortes, os trabalhos de terraplanagens e de abertura do túnel estavam atrasados “por causa da opposição da povoação [a] os trabalhos [que] estiveram demorados cerca de um mês”354. Entre Remisquedo e Mosca, os trabalhos de terraplanagem estavam adiantados, embora alguns aterros e trincheiras importantes ainda estivessem por fazer. Nos lanços seguintes até Bragança, verificava-se um maior atraso no de Mosca a São Lourenço. Na parte final da linha, faltava uma trincheira e montar a ponte sobre o Fervença. À estação terminal faleciam ainda as obras de carpintaria e trolha, o cais descoberto e as cocheiras para locomotivas e carruagens. No dia 14 de Agosto de 1906, já com João da Cruz afastado da empreitada-geral da obra, a exploração era aberta até Rossas355. No dia 26 de Outubro seguinte, o povo brigantino pôde ensaiar a festa que se previa com a inauguração oficial do caminho-de-ferro. Naquele dia, cerca de 4 mil 351
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
352
O Seculo, 2.12.1906, n.º 8959: 2.
353
Para esta polémica, ver: Gazeta de Bragança, 18.3.1906, n.º 721; 1.4.1906, n.º 723; 22.4.1906, n.º 726. Nordeste, 29.3.1906, n.º 981: 1.
354
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
355
Gazeta de Bragança, 10.6.1906, n.º 733. PEREIRA, 2012c: xlv.
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A linha do Tua (1851-2008)
pessoas juntaram-se na estação ainda em construção e imediações para assistir à chegada da máquina balastreira. Na tarde daquela “sexta-feira, dia explendido, claro e de sol rutilante, dardejando seus raios creadores e alegres sobre a cidade que desperta do lethargo em que tem jazido, ouviu-se n’ella pela primeira vez o silvo agudo da locomotiva”. O povo exultava, pois aquela máquina a vapor havia de “abrir novos horisontes ao commercio, á industria e á agricultura”. Como era costume nestas ocasiões, não faltaram música, foguetes e muitos vivas aos Beças, a João da Cruz e à Companhia Nacional356. Embora as obras na estação estivessem bastante atrasadas357, o ensaio geral correu bem. Figura 112 – A chegada da locomotiva a Bragança358
Cerca de um mês depois, a 29 de Novembro, iniciou-se a vistoria à linha pelos engenheiros Tomás da Costa, Pinheiro Borges e Estêvão Torres. Os agentes do governo foram escoltados por elementos da direcção dos caminhos-de-ferro do estado e da Companhia Nacional. Dois dias depois, no dia 1 de Dezembro de 1906, dia da restauração da independência, encenava-se a grande festa de inauguração.
356
Gazeta de Bragança, 28.10.1906, n.º 753.
357
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
358
CP, 2006: 51.
272
A extensão da linha do Tua a Bragança
4.5. A INAUGURAÇÃO E O EPÍLOGO DA HISTÓRIA DE ABÍLIO BEÇA E JOÃO DA CRUZ Hugo Silveira Pereira359
A inauguração do caminho-de-ferro de Bragança foi marcada para o primeiro de Dezembro de 1906, um sábado, dia da restauração da independência. “Quizeram os brigantinos fazer coincidir as suas festas com o aniversario da emancipação nacional do jugo hespanhol para assim lhes imprimir maior valor histórico, e para que o primeiro de dezembro marcasse para nós, no futuro, não só a independencia patria, mas o resurgimento da nossa querida Bragança”360. A data fora divulgada dias antes. Os comerciantes da cidade tomaram a iniciativa de formar uma comissão para os festejos, presidida pelo comandante do regimento de infantaria da cidade, coronel António Augusto Lopes Mendes Saldanha, e composta por “progressistas, franquistas, regeneradores e republicanos, agora irmanados por uma unica condição (…), qual é a de serem brigantinos”. Os adversários políticos punham de lado as suas divergências partidárias para celebrar o maior evento da história recente de Bragança, “que chama esta outrora isolada terra ao convivio das grandes cidades”361. A comissão empenhou-se na tarefa e procurou lustrar ao máximo os festejos. Convidou o rei e sua família e o ministro das obras públicas, Malheiro Reimão, para o 359
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
360
Districto de Bragança, 7.12.1906, n.º 249: 1.
361
O Nordeste, 15.11.1906, n.º 1012: 1.
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A linha do Tua (1851-2008)
evento. Contudo, nenhuma figura de estado aceitou o convite. Oficialmente, foi invocada a agenda parlamentar, que impedia os membros do governo de escoltar o soberano numa visita à cidade que dava nome à casa reinante. Na verdade, a contestação popular ao governo e à própria monarquia foi a verdadeira causa para a recusa do governo em ir a Bragança. Pouco tempo antes, o presidente do conselho João Franco cometera o erro de confessar ao parlamento que o rei devia centenares de contos ao tesouro público, devido aos adiantamentos de que a casa real usufruía há décadas. A confissão desencadeou violentos ataques por parte dos republicanos ao monarca, que era acusado de lograr a fazenda pública. Por todo o país, multiplicaram-se comícios, meetings e manifestações de protesto enquanto simultaneamente a imprensa republicana catalisava os ataques ao governo e ao regime362. Neste contexto, não era assim prudente nem seguro que o rei e a sua família se aventurassem num longa viagem até ao nordeste transmontano. Os brigantinos tiveram pois que se contentar com os eternos notáveis locais e com o pirotécnico de Viana do Castelo, José António de Castro, considerado pelos jornais de Bragança o melhor do país na sua arte. Oito meses mais tarde, porém, D. Carlos compareceu à inauguração do caminho-de-ferro entre a Régua e Pedras Salgadas (primeira secção da linha do Corgo). A atitude não foi bem vista em Bragança, cujos habitantes se sentiram uma vez mais como filhos enjeitados da nação363. De qualquer modo, em finais de 1906, a festa era de Bragança. A celebração começou na véspera da data oficial, a 30 de Novembro de 1906, com a distribuição de esmolas pelos pobres das freguesias da cidade. De tarde, a banda de Izeda animou as ruas de Bragança, entre o que os jornais locais classificavam de entusiasmo indescritível. No sábado, quatro bandas (de infantaria 9 de Lamego e de infantaria 10 de Bragança, de Izeda e a dos bombeiros) tocaram sucessivamente a alvorada, o hino nacional e o hino da restauração. Seguiu-se uma salva de fogo-de-artifício lançada pelo fogueteiro de Viana do Castelo. Pelas 10 da manhã, uma comitiva, composta pelos elementos da comissão de festas, pelos edis do distrito, pelas autoridades militares e religiosas, pelos docentes do liceu e do seminário, pelas associações e corporações locais, pelos funcionários públicos e pessoal da Companhia Nacional, por muitos populares e pelas bandas musicais indicadas, dirigiu-se à estação principal de Bragança. As ruas da cidade estavam enfeitadas com bandeiras e arcos triunfais. Na estação – à qual faltavam ainda algumas obras364 –, o cortejo juntou-se aos seminaristas, ao reitor do seminário, ao bispo e a outros populares da cidade e dos arredores que já ali se achavam. Os jornais locais calculavam, com algum exagero, 362
MARQUES, 1991: 690.
363
Districto de Bragança, 30.11.1906, n.º 248: 1. Gazeta de Bragança, 14.7.1907, n.º 790. O Nordeste, 18.7.1907, n.º 1046: 2; 8.8.1907, n.º 1049: 1.
364
Centro nacional de documentação ferroviária. Fiscalização. Linha de Foz-Tua a Bragança, caixa 150, peça 2.
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A extensão da linha do Tua a Bragança
que entre 15 a 20 mil almas esperavam a chegada do comboio na gare e nos terrenos adjacentes. À uma da tarde, a locomotiva n.º 2 da Companhia Nacional, chamada apropriadamente Bragança365, silvou enfim na cidade. E “desappareceu o cáhos. O fiat genesíaco da evolução social já se fez ouvir”. A máquina “vinha bellamente ornamentada com corôas de flôres naturais e bandeiras envolvendo uma corôa real. Lia-se na parte posterior «salve Bragança» e nas partes lateraes da machina «a tracção sauda Bragança»”366. O bispo tomou então a palavra e, à medida que a locomotiva se aproximava, abençoou-a e ao caminho-de-ferro. “Electrisados pela admiração aquelles doze a quinze mil assistentes, levantaram-se um instante como um só homem, agitando as mãos, victoriando e dando vivas, em meio d’um enthusiasmo louco, delirante”. Lavrou-se em seguida um auto assinado pelas autoridades locais para registar para a posteridade a memória do acontecimento. A turba dirigiu-se em seguida à catedral para o Te Deum da praxe. Em seguida, o cortejo rumou ao governo civil, onde o governador recebeu os membros da comissão de festas. O dia era de festejo e sobretudo de esperança num futuro melhor. “Eis ahi a ferrovia, pronunciando um futuro ruidoso, mas prometedor. Soturno silvo irrompe das ígneas fauces da férrea locomotiva. E esse assobio agudo e prolongado povôa de susto e maravilha os vastos plainos dos desertos ares”. Pelas seis da tarde, milhares de luzes foram acesas, de modo que à noite, “o aspecto de Bragança então era extraordinariamente admiravel: torre de menagem, forte, ruas e mais ruas, casario, tudo tremulava, fluctuando, qual imagem seductora de cidade oriental. Até o céo fingia arquear-se por sobre tão romantico quadro, recamando-se de myriades de estrellas scintillantes”. Pelas oito da noite, iniciou-se na eira adjacente à estação o espectáculo de fogo-de-artifício, preparado pelo fogueteiro vianense e assistido por milhares de pessoas. O espectáculo deslumbrou a cidade. Aliás, “em Londres, onde esta arte está muito desenvolvida, e onde os certames de pyrotechnia sam frequentes, não se apresentam mais surprehendentes effeitos de luz e côres”. A celebração não se resumiu à capital do distrito. Em Lisboa, no Café Suíço, por volta do meio-dia, reuniram-se alguns transmontanos, que aclamaram entusiasticamente a inauguração da linha. Em telegrama enviado ao presidente da comissão de festejos, estes filhos de Trás-os-Montes escreviam que “reunidos alguns socios do Club Transmontano, pela inauguração official da linha ferrea em terras de Bragança, hoje levantamos uma taça de Champagne em honra da solemnidade e pela luz e progresso material dos povos do districto. Hurrah!”367. 365
O Seculo, 2.12.1906, n.º 8959: 2.
366
O Seculo, 2.12.1906, n.º 8959: 2.
367
O Seculo, 2.12.1906, n.º 8959: 2.
275
A linha do Tua (1851-2008)
Em Bragança, no dia seguinte ao da inauguração, pelas 11 da manhã, o cónego Nóvoa celebrou uma missa no campo em frente à estação, “suffragando as almas dos illustres campeões já fallecidos do caminho de ferro de Bragança”: Emídio Navarro, Elvino de Brito e José Beça. Ao longo do dia, muitos telegramas de felicitação foram enviados à cidade. De entre eles, destaque-se o enviado por Fernando de Sousa, felicitando os brigantinos e pedindo-lhes para não esquecer o nome do engenheiro Costa Serrão, “a quem se deve em grande parte construção e que uzura monstruosa victimou forçando-o a separar-se n’este momento dos seus e partir Lourenço Marques”. Figura 113 – Costa Serrão368
De facto, Costa Serrão ficou com 12 contos de salários em atraso e terá perdido também o dinheiro que alegadamente emprestou a João da Cruz369. E assim foi que voltou a África, “arrastado pela necessidade de compensar o seu desastre financeiro”370. Até à data da sua morte, em 1929, com 77 anos de idade, o engenheiro da linha de Bragança dedicou-se à questão magna do fomento colonial, quer como prático, quer como teórico371. Quanto a João da Cruz, não assistiu igualmente à celebração. A comissão de festas preferiu enviar-lhe apenas uma mensagem de saudação, “attendendo a que, tendo o 368
GALVAO, 1940.
369
CRUZ, 1906: 40. O Seculo, 2.12.1906, n.º 8959: 2.
370
O Seculo, 2.12.1906, n.º 8959: 2. SALES, 1978, vol. 2: 116.
371
Arquivo histórico do ministério das obras públicas. Processo individual de Manuel Francisco da Costa Serrão. GALVÃO, 1940.
276
A extensão da linha do Tua a Bragança
mesmo perdido a sua propria fortuna pessoal na empreza a que se abalançara, não poderia no momento actual o seu estado de espirito permittir-lhe a comparencia em festejos como os que se projectavam”372. De facto, quando Bragança se achava enlevada pelo caminho-de-ferro, tanto Costa Serrão como João da Cruz tinham poucos motivos para festejar. Como foi referido em capítulo anterior, no dia 1 de Agosto de 1906, a Companhia Nacional rescindiu o contrato com o seu empreiteiro-geral, depois de este confessar não dispor de mais meios financeiros para continuar a obra. A denúncia do contrato acarretava a ruína de João da Cruz, que perdia os créditos que mantinha sobre a companhia e com os quais esperava saldar as suas dívidas. No rescaldo do processo, o ex-empreiteiro-geral editou um pequeno livro, onde descrevia as suas acções, considerava o contrato imoral e leonino e acusava os directores da Companhia Nacional de serem “homens de nenhuma consciencia e extraordinariamente vaidosos”373. A companhia respondeu rapidamente pelo mesmo modo, qualificando como “falsas, insidiosas e gratuitas as accusações que nos faz” e devolvendo a Cruz acusações de desvio de fundos e de má-fé na questão das expropriações. Para os gerentes da companhia, o empreiteiro tinha parado os trabalhos de também má-fé, uma vez que da sua continuação não auferiria qualquer lucro, pois os custos de construção e os montantes que ainda tinha a receber equivaliam-se. Aliás, alegavam que Cruz tinha lucrado e muito com a empreitada à custa da sua lisura e da dos prestamistas que lhe haviam concedido crédito. Aliás, para a companhia, a hipoteca feita a António Manuel Teixeira era uma forma de Cruz se esquivar aos seus credores, pois o credor hipotecário era nem mais nem menos que o feitor das propriedades do empreiteiro. Por fim, deixavam também críticas veladas a Costa Serrão, insinuando que “não é ao empreiteiro que cabe o maior quinhão de responsabilidade no modo como resolveu proceder. Alguem que n’esta empreitada desempenhou papel importante, devia impedir, pelos meios de que dispunha, que se tornasse realidade o plano concebido e executado pelo empreiteiro em 30 de Julho”374. Quanto às queixas de João da Cruz sobre o acordo, retorquiam que “firmado o contracto, ainda então não julgado leonino pelo empreiteiro, tudo vogava em mar de rosas (…). João da Cruz, dando-se ares de grande capitalista, fazia acreditar ao mundo que o seu ilimitado credito era capaz de levantar todos os milhões da provincia de Traz os Montes”. A alegada sobranceria do empreiteiro é confirmada pelos jornais da altura do início da construção. Como já foi referido, este tipo de ufania é uma ca-
372
Para todos estes detalhes da inauguração, ver: Districto de Bragança, 7.12.1906, n.º 249: 1. Gazeta de Bragança, 28.10.1906, n.º 753; 11.11.1906, n.º 755; 25.11.1906, n.º 757; 2.12.1906, n.º 758. O Nordeste, 22.11.1906, n.º 1013: 1; 29.11.1906, n.º 1014: 2; 6.12.1906, n.º 1015: 1-2. ALVES, 2000, vol. 9: 229.
373
CRUZ, 1906: 6.
374
COMPANHIA, 1907: 6-7, 10 e 62. 277
A linha do Tua (1851-2008)
racterística típica dos transmontanos375. No caso particular de Cruz, esta sua atitude vai de encontro ao seu percurso pessoal. O carrazedense era um homem que subira a pulso até se tornar um rico proprietário na região. Ganhara na maior parte das vezes que apostara. Assim que tomou conta da empreitada do caminho-de-ferro, estava sem dúvida excessivamente confiante de a poder levar a cabo. Figura 114 – Aspecto da capa da brochura de João da Cruz
O carácter leonino do contrato, de que João da Cruz se queixou após a denúncia do mesmo, terá sido reconhecido pelo empreiteiro desde o início, no entanto o carrazedense ter-se-á fiado na palavra dos directores da companhia nacional: “quando se procedia á leitura da minuta do contracto (…), manifestando eu hesitação em acceitar tão duras condições, e ponderando o sr. engenheiro Costa Serrão (…) a impossibilidade de serem cumpridas, pelos srs. Directores da Companhia Nacional foi expontaneamente affirmado que o contracto era assim apertado para se dar satisfação aos accionistas da Companhia (…); mas que nunca seriam applicadas as condições de maior dureza afóra do usual desde que eu provasse estar disposto a bem cumprir e demonstrasse boa fé”. Por outro lado, João da Cruz estava acostumado a ser “empreiteiro do Estado e portanto habituado a attenderem-me todas as justas reclamações”376. De facto, por norma, o estado era um cliente mais permissivo do que uma companhia privada377. De qualquer modo, o projecto era manifestamente superior às capacidades técnicas e financeiras de João Lopes da Cruz. A empreitada seria sem dúvida o negócio da sua vida, que perpetuaria o seu nome em Trás-os-Montes. O risco não o amedrontava, 375
SOUSA, 2013, vol. 1: 184.
376
CRUZ, 1906: 20-22.
377
PEREIRA, 2012a: 370-387.
278
A extensão da linha do Tua a Bragança
como o demonstra a sua história de vida, e o homem que nascera um mero camponês numa aldeia perdida em Carrazeda acabou por ter mais olhos que barriga. A Companhia Nacional tinha consciência que João da Cruz e Costa Serrão tinham ou conseguiam arranjar crédito suficiente para obter as verbas necessárias à empreitada. Quando isto não se verificou, aceitou auxiliar o empreiteiro mas apenas com o mínimo necessário para que este continuasse a obra – os adicionais ao contrato. De adicional em adicional, João da Cruz endividou-se cada vez mais. Figura 115 – A resposta da Companhia Nacional ao empreiteiro
Neste processo, Abílio Beça poderá ter influenciado João da Cruz a assinar o contrato de que resultaria a sua mais alta aspiração política: a construção do caminhode-ferro de Bragança. No entanto, nunca João da Cruz culpabilizou Beça pela sua desgraça. Aliás, como já foi referido noutra parte desta monografia, na memória dos descendentes do empreiteiro ficou a percepção de que ele e o advogado eram de facto bons amigos. Na realidade, tudo indica que o brasileiro “encontrou a sua ruina mercê das clausulas a que se sujeitou”378 e que lhe foram impostas pela Companhia Nacional. A argumentação que esta apresenta na tentativa de responsabilização do empreiteiro apresenta algumas falhas e não se harmoniza com alguns factos. O primeiro deles é a alegada premeditação de João da Cruz de parar as obras quando percebeu que da sua continuação não auferiria mais vantagem financeira. Se o fizesse, incorreria – como 378
O Seculo, 2.12.1906, n.º 8959: 2.
279
A linha do Tua (1851-2008)
incorreu – em todas as draconianas penalidades estabelecidas no contrato. Por outro lado, temos o negócio com o feitor. A companhia arguia que aquele era um subterfúgio para Cruz fugir aos credores, no entanto, a verdade é que o tal feitor António Manuel Teixeira foi um dos mandantes de um processo de execução hipotecária movido contra o empreiteiro (juntamente com outros dois credores representados pelo Crédito Predial Português)379. Ademais, se João da Cruz se tinha locupletado à custa da empresa, o normal seria esta vir a público denunciar o empreiteiro, que depois se defenderia. Mas o que aconteceu foi precisamente o contrário. Além do mais, se a companhia tinha razões de queixa de Cruz, porque não exigiu em tribunal uma indemnização pelas perdas sofridas em virtude do incumprimento, como lhe permitia o contrato? Nenhuma queixa ou intenção de processar o empreiteiro é referido nos relatórios anuais da companhia. Aliás, o que estes denotam é que a empresa apresentou enormes rendimentos líquidos extra-tráfego precisamente nos anos da construção do caminho-de-ferro, como se pode ver no gráfico seguinte380. Gráfico 5 – Evolução da garantia de juro e dos resultados líquidos (receitas – despesas) da exploração das linhas do Tua e do Dão e extra-tráfego, a preços constantes de 1914 (1892-1910)381
1800
Resultado líquido extra-tráfego Garantia de juro Resultado líquido da exploração
Contos de réis
1350
900
379
1910
1909
1908
1907
1906
1905
1904
1903
1902
1901
1900
1899
1898
1897
1896
1895
1894
1893
0
1892
450
Arquivo distrital de Lisboa. Fundos judiciais. Tribunal judicial da comarca de Lisboa. Processo de execução hipotecária movido pela Companhia Geral do Crédito Predial Português a João Lopes da Cruz.
380
Relatorios do conselho de administração apresentados à assembleia-geral em 1893-1911.
381
Agradeço ao engenheiro Eduardo Beira o fornecimento e explicação destes dados.
280
A extensão da linha do Tua a Bragança
Por fim, restam os factos incontestáveis de que o contrato colocava toda a responsabilidade sobre o empreiteiro-geral, que enfrentou a ruína financeira após a rescisão do mesmo. Existem pelo menos dois processos de execução hipotecária movidos contra João da Cruz (um em Lisboa e outro no Porto, pela Companhia Carris de Ferro do Porto382), mas é possível que existam mais. Na memória familiar dos seus descendentes, conta-se que após a rescisão, o empreiteiro foi processado por Afonso Costa383. Provavelmente tratou-se de mais um processo de execução de bens. Pelos processos analisados em Lisboa e Porto, sabe-se que as propriedades de João da Cruz em Carrazeda foram avaliadas por louvados e depois expropriadas num processo que foi tudo menos rápido, já que em 1913 o débito ainda não estava saldado. Segundo Cristiano Morais, neste ano, Cruz continuava a residir em Carrazeda. Por esta altura, o seu património era composto por casas em Linhares, Castanheiro e Ribalonga, pela Quinta Nova em Castanheiro e pela Quinta do Zimbro384. Em Julho, seguia uma carta do juízo de direito de Carrazeda de Ansiães para a Carris do Porto, convidando o seu administrador a assistir à arrematação no inventário orfanológico “a que se procedeu por obito de João Lopes da Cruz, que foi morador na quinta de Zimbro de Cima, freguesia de Ribalonga”385. Segundo a tradição popular, o seu corpo foi sepultado no cemitério de Selores386. A linha do Tua, que desgraçou financeiramente os seus construtores, estaria também na origem da morte dos seus lobbyists. Como foi referido anteriormente, José Beça, no estabelecimento de contactos com potenciais financiadores da obra, desenvolveu a doença que o haveria de matar. O seu irmão, Abílio Beça, soçobraria também nos carris do caminho-de-ferro. No dia 27 de Abril de 1910, Abílio Beça dirigia-se a Bragança para reassumir as funções de presidente da câmara local. Regressava de Lisboa, onde desempenhava a função de deputado. Tinha, naturalmente, tomado o comboio da linha do Tua, que chegou à estação de Salsas por volta das 18:30 horas. Enquanto a máquina tomava água, Beça saiu da sua carruagem para cumprimentar o juiz de paz de Vale de Nogueira, José Penedos. Quando o chefe da estação deu o sinal de partida, Beça começou a caminhar para o comboio, mas uma vez que ainda estava a cerca de 50 m do mesmo, começou a correr. O deputado alcançou a composição já em grande andamento. Lançou mão ao puxador da frente de uma das carruagens, mas, não o alcançando, tentou agarrar o da 382
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto. Secretaria Geral. Processos e questões diversas. Rescisão de contrato, PT/ADPRT/EMP/CCFP/SG/013/13.084. B/6/1/4 - 14.8.
383
Entrevista a Maria João Alves Martins: 05:40-06:05. FONTE, 2001. MESQUITA, 2012: 74.
384
MORAIS, 2014: 296.
385
Arquivo distrital do Porto. Empresas. Companhia Carris de Ferro do Porto. Secretaria Geral. Processos e questões diversas. Rescisão de contrato, PT/ADPRT/EMP/CCFP/SG/013/13.084. B/6/1/4 - 14.8.
386
Entrevista a João Sampaio: 8. MESQUITA, 2012: 73.
281
A linha do Tua (1851-2008)
retaguarda. Um dos empregados da estação, João António Teixeira, tentou “segural-o para não embarcar, [mas] já me foi impossivel por já estar mettido no desatre”387. Abílio Beça conseguiu segurar-se ao puxador e colocar o pé no degrau, mas escorregou, caindo de costas no espaço entre a carruagem e um vagão de mercadorias. Vários populares dirigiram-se de imediato à via para auxiliar o sinistrado. Segundo testemunhas, ele estava ainda consciente, mas já não falava. Abílio Beça foi conduzido a um furgão, que o transportou de emergência para Bragança, no mesmo comboio que o havia colhido. Temia-se o pior, que foi, de facto, confirmado pelo chefe de estação de Bragança. “Hoje no comboio ascendente das 7h,30 da tarde, chegou a esta estação, já cadaver, o Ex.mo Snr. Conselheiro Abilio Madureira Bessa”388. Após a confirmação da morte, os restos mortais foram transportados para a casa de Beça na rua da Costa Pequena, para onde “corriam quasi todos os habitantes da cidade, e as senhoras, sem preoccupação de toiletes, procuravam apressadamente a esposa confrangida e os filhinhos que elle adorava”389. No exame pericial feito pelos médicos locais Francisco José Matos Morgado e António José Gonçalves Rapazote390, na sequência do inquérito aberto ao acidente, notou-se que o cadáver apresentava uma ferida por esmagamento da mão direita, que ficou sem os dedos indicador e médio e a região metacarpiana, deixando os ossos perfeitamente a descoberto na face palmar. O terço superior da perna esquerda e a sua face anterior exibiam uma ferida contusa dirigida segundo o comprimento do membro. Esta ferida cortara todas as partes moles da perna e deixava o osso a descoberto. O troço médio da perna direita e a sua face anterior apresentavam outra ferida contusa de forma irregular, rompendo apenas a pele. O corpo tinha ainda pequenas escoriações na face e membros inferiores. Reparavam-se também contusões com edema do tecido subjacente na face anterior e lado direito do tórax para a base do mesmo. A causa da morte foi o violento choque traumático sofrido (de que a contusão da região torácica era um sinal) e a consequente hemorragia interna provocada pela ruptura de vasos arteriais391. O acidente foi investigado judicialmente para se determinar se a morte se devera “somente a desastre ou a intenção malévola”. O inquérito foi conduzido pelo procurador régio, Artur Matos Camacho Lopes Cardoso, que interrogou as diversas teste387
Arquivo distrital de Bragança. Processo da morte do conselheiro Abílio Beça. ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. SALES, 1978, vol. 2: 116.
388
Arquivo distrital de Bragança. Processo da morte do conselheiro Abílio Beça. ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. SALES, 1978, vol. 2: 116.
389
O Nordeste, 29.4.1910, n.º 1178: 1.
390
O Nordeste, 29.4.1910, n.º 1178: 1.
391
Arquivo distrital de Bragança. Processo da morte do conselheiro Abílio Beça. ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. SALES, 1978, vol. 2: 116.
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munhas de Salsas e os médicos que confirmaram o óbito. Em face dos depoimentos colhidos, o juiz de direito de Bragança, Jacinto João Joaquim Pereira da Mota, concluiu que “não tendo havido crime mas unicamente um desastre a lamentar (…) este processo se archiva” (a 12 de Junho de 1911)392. Figura 116 – O funeral de Abílio Beça393
A morte de Abílio Beça foi muito sentida em Bragança. Na sessão camarária imediatamente a seguir ao acidente, o novo presidente, Olímpio Dias, preiteou a figura de Abílio Beça, “victima do mais horrivel dos desastres”, propondo que se lavrasse em acta “um voto de profundo sentimento por tão doloroso acontecimento e que em sinal de luto seja encerrada a sessão”394. A proposta foi aprovada por unanimidade. Igualmente por iniciativa da autarquia, a rua de Trás (entre a praça da sé e a igreja de São Vicente395) foi renomeada para rua Abílio Beça. A homenagem repetia e continuava a que fora dedicada a José Beça, quando da sua morte em 1902. Em Agosto do ano seguinte, a câmara renomeou a antiga rua da Alfândega para rua engenheiro José Beça396. A rua engenheiro José Beça era e é a continuação da rua Abílio Beça. Os dois irmãos, sempre tão unos na luta pelos interesses de Bragança, mantinham a sua ligação, agora no mapa da cidade. Os edis brigantinos convidaram todas as câmaras do distrito a fazerem o mesmo, “como testemunho de consideração e estima por tão preclaro cidadão”. No entanto, além da freguesia de 392
Arquivo distrital de Bragança. Processo da morte do conselheiro Abílio Beça. ALVES, 2000, vol. 1: 357-358. SALES, 1978, vol. 2: 116.
393
Illustração Portugueza, 1910, n.º 222: 26.
394
Arquivo municipal de Bragança. Actas das sessões da câmara municipal de Bragança, sessão de 6.5.1910: 6.
395
ALVES, 2000, vol. 7: 653.
396
Gazeta de Bragança, 2.8.1903, n.º 585; 27.12.1903, n.º 606.
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Salsas, só Mirandela o fez. Por sugestão do vereador Manuel da Nóvoa foi criado o prémio Abílio Beça, a atribuir ao aluno que concluísse o curso da escola de habilitação ao magistério primário com melhor classificação e comportamento. Foi também aprovado o alvitre do vereador Augusto Moreno de que o retrato do ex-governador civil fosse colocado na sala das sessões da câmara, “como testemunho evidente de estima e saudade pelo prestimoso presidente”, e fosse também inserido no livro do abade de Baçal sobre documentos históricos da cidade a ser editado pela autarquia. Por fim, e por proposta do edil João Dias, deliberou-se erigir um busto à memória de Beça397. Figura 117 – Aspecto actual da rua Abílio Beça398
Na cidade e na província, as manifestações de dor sucederam-se. Além da câmara, 397
Arquivo municipal de Bragança. Actas das sessões da câmara municipal de Bragança, sessão de 6.5.1910: 5v-6. Gazeta de Bragança, 3.7.1910, n.º 944; 24.7.1910, n.º 947. BERENGUEL et al., 2004: 113 e 115. LEITÃOBANDEIRA, 2010: 253.254. SOUSA, 2013, vol. 2: 681.
398
Fotografia do autor.
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o governo civil, a comissão distrital, o seminário da cidade, o conselho da escola de habilitação ao magistério primário e diversas cooperativas civis emitiram votos de sentimento pela morte de Abílio Beça. Várias missas foram celebradas a pedido de familiares e de indivíduos e organizações particulares. A família enlutada agradecia399. Nos periódicos de Bragança, a morte de Beça foi mais vincada na Gazeta local, órgão que o finado dirigiu até à sua morte. Em praticamente todos os números após o acidente e até ao encerramento do jornal com a república, a figura de Abílio Beça foi evocada. Na edição de 22 de Maio, por exemplo, podia-se ler que “o sr. conselheiro Abilio Beça foi um perfeito e lidimo caracter em todas as diversas manifestações da vida. Todos os seus actos quer publicos, como advogado, como professor e como politico; quer particulares como chefe de família e como amigo são exuberantes de intelligencia e de bondade”400. O Nordeste foi bem mais lacónico, limitando-se a divulgar na edição após o acidente que a “tristissima noticia passou logo de boca em boca, transmitida e colhida com um tão geral e emocionantíssimo sentimento que perante a fatalidade de tão lutuoso acontecimento só a tristeza e a lamentação se apossavam de todos os corações (…). Adversarios por força das circumstancias implacaveis mais que ferozes da politica do nosso tempo, aqui lhe deixamos exarado o mais sincero preito de saudade e sentimento. Paz á sua alma”401. Figura 118 – Jazigo dos Beças em Bragança402
Na câmara dos deputados, a má-nova foi comunicada na reabertura da sessão legislativa em Junho de 1910 pelo seu presidente. Todas as forças políticas então representadas no parlamento prestaram, mais ou menos emotivamente, os seus votos de 399
Gazeta de Bragança, 5.6.1910, n.º 941; 12.6.1910, n.º 942; 26.6.1910, n.º 943; 3.7.1910, n.º 944; 17.7.1910, n.º 946.
400
Gazeta de Bragança, 22.5.1910, n.º 939: 2.
401
O Nordeste, 29.4.1910, n.º 1178: 1.
402
Fotografia do autor.
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pesar. O presidente da câmara dos deputados lembrou que “Abilio Beça tinha, pelas qualidades do seu caracter e pela delicadeza do seu trato, em cada um de nós um amigo”. O presidente do conselho, Veiga Beirão, foi mais sucinto e formal, associando-se “em nome do Governo [do partido progressista], ao voto de sentimento que V. Exa., Sr. Presidente, acaba de propor pelo fallecimento de tres antigos membros d’esta Camara, o Sr. Abilio Beça, o Sr. Peixoto Correia e o Sr. Conde de Macedo”. Outro progressista, António Cabral, recordava como “Abilio Beça ainda ha poucos dias se assentava aqui, no meio de nós, e era estimado e respeitado por todos, não só pela affabilidade do seu trato, como pela inteireza do seu caracter (…). Muitas vezes se assinalou como representante da nação, e é para lastimar que aquelle melhoramento, o caminho de ferro de Bragança, pelo qual elle tanto trabalhou, fosse justamente esse que lhe deu a morte tão desastrosa”. Um outro parlamentar, Pereira Lima, colega de universidade e de partido do falecido, relembrou os tempos de Coimbra, altura em que “o Sr. Madureira Beça já (…) apresentava o caracter tão bondoso e de tal maneira altivo que desenhava a silhouette que havia de ter na nossa vida social, onde tantas sympathias conquistou. Merecia-lhe attenção tudo quanto importava ao movimento económico da sua provincia de Trás os Montes. Ininterruptamente, com uma persistencia que não parecia muito moldada ao seu modo de ser placido e frio, poude conseguir da inercia de alguns dos Ministros que teem presidido ao Governo do país arrancar pouco a pouco a concessão e depois a exploração do caminho de ferro, que era para elle o ideal, na sua villa natal. Bem via elle a grande importancia que teria, para uma provincia que tinha sido até então abandonada de melhoramentos uteis, a abertura duma linha ferrea que a pusesse em communicação rápida com o resto do pais, e com a qual a riqueza daquella admiravel provincia viria a ter um devéloppement para os mercados externos. (…) Todos estes sacrificios realizou, para que o caminho de ferro chegasse até ali. E foi nesse caminho de ferro que, como muito bem disse o Sr. António Cabral, elle encontrou o seu tumulo. (…) O Dr. Abilio Beça, perante os seus amigos, perante mesmo aquelles que não foram seus amigos, mas que o conheceram como uma creatura digna, ha de ser lembrado por todos os que, em vida, o admiraram como sendo o verdadeiro prototypo da honradez e da modestia”. O republicano Afonso Costa também se associou aos votos de pesar pelos deputados falecidos no intervalo da sessão, mas de “entre elles destaco Abilio Beça, nosso collega de ha pouco e já meu collega na Camara de 1900. Posso dizê-lo desassom-
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bradamente e, em toda a extensão da palavra, que foi um grande homem de bem. Na advocacia foi elle um nobre representante da sua classe. E, numa recente visita que fiz a Bragança, tive occasiao de ver quanto Abilio Beça era estimado por toda a população, desde os mais humildes aos mais elevados. Todos lhe prestavam a sua homenagem”403. No final da década 1920, Bragança perpetuou condignamente a memória do ex-governador civil e do antigo empreiteiro-geral da linha em duas homenagens assistidas por muito povo. No dia 1 de Dezembro de 1929, o presidente da câmara de então, Salvador Nunes Teixeira, e o governador civil, Tomás Augusto Salgueiro Fragoso, descerraram o busto de Abílio Beça (esculpido por José Fernandes de Sousa Caldas404), justamente posicionado na avenida em frente da estação. No mesmo dia, foi colocada uma placa de mármore em Salsas, evocando o trágico desastre. Na mesma ocasião, foi também reconhecido o mérito e esforço de João Lopes da Cruz, ao se descerrar uma placa em mármore com o seu retrato em baixo-relevo em bronze (também da autoria de Sousa Caldas)405. A obra escultórica foi simbolicamente colocada na nova artéria da cidade, que ligava o seu centro à estação, e que foi baptizada de avenida João da Cruz406. Injustiçado e arruinado pelo caminho-de-ferro de Bragança, o carrazedense via então e finalmente a sua memória honrada pelo povo que servira. Figura 119 – As homenagens em bronze a Abílio Beça e João da Cruz407
403
Para estes discursos parlamentares, ver: Diario da Camara dos Deputados, 6.6.1910: 4.
404
ALVES, 2000, vol. 7: 616. LEITÃO-BANDEIRA, 2010: 254-255 e 436-437. SOUSA et al., 2005: 503. SOUSA, 2013, vol. 2: 743
405
ALVES, 2000, vol. 7: 794-795; vol. 9: 230.
406
BERENGUEL et al., 2004: 105 e 108. FONTE, 2001: 69-70. LEITÃO-BANDEIRA, 2010: 254-255. MESQUITA, 2012: 74.
407
Fotografias de José da Silva Pereira e do autor.
287
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4.6. A GORADA LIGAÇÃO DE FOZ-TUA A VISEU Ana Carina Azevedo408 Ângela Salgueiro409
A história da ligação ferroviária entre Viseu e Foz-Tua iniciou-se ainda no século XIX com os primeiros projectos de construção de um ramal de ligação entre as linhas do Dão e do Douro, no âmbito de uma concepção então difundida no seio das elites administrativas, centrais e locais, que tinha por base a construção de ramais de utilidade pública para servir regiões e populações mais isoladas e, simultaneamente, apertar a malha ferroviária nacional. Na proposta de lei de 1 de Junho de 1888, projectava-se a construção de uma linha entre Mangualde, na linha da Beira Alta – passando por Viseu e S. Pedro do Sul – e Recarei, na linha do Douro, para colocar a Beira Alta na zona de influência económica do Porto e do seu hinterland portuário: “as linhas projectadas estão traçadas de modo a fazerem convergir sobre a cidade do Porto, como centro comercial, e sobre as linhas do Minho e Douro, como principal artéria de circulação, o seu movimento de tráfego”410. No início do século XX, a Beira Alta foi novamente contemplada com diferentes projectos para construção de linhas e ramais ferroviários, destinados a favorecer a 408
Instituto de História Contemporânea (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa).
409
Instituto de História Contemporânea (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa).
410
Diario da Camara dos Deputados, 1.6.1888: 1817.
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expansão da viação acelerada na região. Como vimos anteriormente, o plano geral de rede nascido das medidas de Elvino de Brito previa a construção de um conjunto alargado de vias estreitas. Nele se incluíam a edificação de uma linha entre a Régua e Vila Franca das Naves e a construção de uma via entre a cidade de Viseu e a estação de Foz-Tua, a qual permitiria a interligação entre os caminhos-de-ferro do Dão, do Douro, do Tua e da Régua a Vila Franca das Naves. Em virtude do adiamento sucessivo destes projectos, em 1910, o ministro das obras públicas do governo de Veiga Simão, o médico Manuel António de Moreira Júnior, retomou a questão. A 6 de Junho, apresentou na câmara dos deputados um plano para organização de uma rede ferroviária nacional, que contemplava 700 km de novas linhas, afirmando que “largas e lamentáveis lacunas há ainda na nossa rede ferroviária (…) É certo que a necessidade imperiosa de reorganizar as finanças e assegurar o equilíbrio orçamental não se compadece com a criação de encargos a que não correspondam novas receitas equivalentes. Sem deixar, porém, de manter essa regra salutar, pode-se e deve-se activar o desenvolvimento da viação acelerada, sem confiança temerária no futuro, nem pusilanimidade que entorpeça o progresso económico do país”411. O ministro sugeriu a manutenção de um sistema misto e ecléctico, como se havia desenvolvido no país durante a segunda metade do século XIX, onde coexistiam redes exploradas pelo estado e pelas diferentes companhias ferroviárias, mediante a concessão de alguns benefícios: “é preciso ver nas empresas concessionárias o que elas de facto são úteis auxiliares do Estado, cooperando com ele no progresso económico do País pela criação de meios de transporte fácil, rápido e barato. Os subsídios que receberam não seriam suficientes, na maior parte dos casos, para os encargos contraídos. A continuação dessa cooperação por concessões bem estudadas, vantajosas para ambas as partes, é perfeitamente admissível, sem prejuízo do direito de resgate que ao Estado pertence e que pode exercer, quando o julgar conveniente”412. A proposta contemplava uma verba de 7 mil contos para a construção de novas vias e aquisição de material circulante moderno. Previa ainda a organização de um fundo especial dos caminhos de ferro do centro, incumbido do estudo e financiamento das linhas ferroviárias na região centro. Dos vários eixos previstos destacavam-se a ligação entre a Covilhã e Viseu, através de um tramway, e a de Viseu ao Pocinho e Vila Franca das Naves413. De grande interesse teórico, mas com pouca aplicabilidade prática, o projecto não foi discutido nem aprovado pela câmara. Meses depois, a necessidade de conten411
Diario da Camara dos Deputados, 6.6.1910: 59-60.
412
Diario da Camara dos Deputados, 6.6.1910: 67.
413
Diario da Camara dos Deputados, 6.6.1910: 63-72.
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ção orçamental e de redução do deficit ganhou uma nova centralidade na realidade política nacional, com a implantação da primeira república. Os republicanos pretendiam colocar em ordem as finanças públicas do país, objectivo que não se coadunava com os avultados investimentos necessários para a criação de uma verdadeira rede ferroviária nacional. De facto, no início da segunda década do século XX, Portugal não possuía uma rede férrea nacional mas sim várias malhas ferroviárias, heterogéneas e pouco maleáveis, exploradas por entidades distintas, que dificultavam a circulação interna de passageiros e mercadorias414. No entanto, e apesar dos constrangimentos enfrentados, a ligação ferroviária entre Viseu e Foz-Tua não foi esquecida durante o regime republicano. Localmente, a discussão em torno da necessidade de construção do troço manteve-se através da organização de reuniões por instituições comerciais, agrícolas, industriais e cívicas, pela representação individual e colectiva aos decisores políticos e por acções de propaganda junto da imprensa periódica regional. Por outro lado, muitos deputados aproveitaram a sua posição privilegiada junto dos órgãos de poder para chamar a atenção para o assunto no parlamento, nunca o deixando cair em esquecimento. Figura 120 – Brito Camacho415
Logo em 1911, durante uma visita do ministro do fomento do governo provisório, Brito Camacho416, à Beira, uma comissão constituída pelo governador civil do 414
SALGUEIRO, 2013: 511-517.
415
Casa Comum, http://casacomum.net/cc/visualizador?pasta=09022.001.149.
416
AMARO & MARQUES, 2010: 27.
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distrito de Viseu, Ricardo Pais Gomes, e pelos presidentes da associação comercial e industrial da cidade, António Simões de Oliveira Martins, e da liga dos agricultores da beira, Pedro Ferreira dos Santos, entregou-lhe uma representação na qual apelavam para a importância da construção das vias projectadas, pois “um dos preponderantes económicos de influência decisiva para o desenvolvimento progressivo de uma região, que em si contém valiosos elementos de riqueza, é sem dúvida a abertura de saídas fáceis dos seus produtos para os seus mercados naturais”417. Em Fevereiro de 1913, na câmara dos deputados, Pereira Vitorino retomou a questão das ligações ferroviárias na região beirã, chamando a atenção do ministro do fomento, Aquiles Gonçalves Fernandes, para a necessidade de avançar com os estudos da linha de Viseu a Foz-Tua418. Um ano depois, em Janeiro de 1914, foi apresentado um novo projecto para a edificação da mesma linha, pela concretização do plano ferroviário ao norte do Mondego419. Depois de uma alargada discussão sobre a modalidade de exploração, definiramse as bases para o concurso público: período de três anos para a conclusão das obras; concessão da linha por 75 anos; possibilidade de resgate pelo estado; necessidade de a empresa concessionária ser portuguesa ou ter a sua sede social no país420. Nos meses de Maio e Junho a questão voltou à câmara dos deputados pela mão da câmara municipal de Lamego421 e do governo civil de Viseu422 e pela intervenção dos deputados José Vale de Matos Cid e Pereira Vitorino. Na sessão de 24 de Junho de 1914 afirmava-se que “não só as razões económicas, não só a cultura dessa região impõem a construção de tais linhas. Há mais: em face do espírito de equidade que deve presidir na aplicação dos dinheiros públicos ao fomento nacional, há uma dívida em aberto, desde 26 de Fevereiro de 1913, para com o distrito de Viseu”423. A estas considerações podem acrescentar-se as palavras de Carlos Richter, que lembrava a importância das obras públicas como instrumento de bloqueio à grande vaga emigratória que se sentia na região424. No entanto, o ministro do fomento, na sessão de 25 de Junho de 1914, fez notar que “o ponto de vista do Governo nem sempre é o ponto de vista regional, pois tem de
417
O Commercio de Viseu, 7.5.1911 (Apud. AMARO & MARQUES, 2010: 27).
418
Diario da Camara dos Deputados, 26.2.1913: 32.
419
Diario da Camara dos Deputados, 8.1.1914: 12.
420
Diario da Camara dos Deputados, 12.1.1914: 5.
421
Diario da Camara dos Deputados, 7.5.1914: 5.
422
Diario do Senado, 26.5.1914: 2.
423
Diario da Camara dos Deputados, 24.6.1914: 11-12.
424
Diario do Senado, 22.4.1914: 10. Ver também AMARO, 2006.
292
A extensão da linha do Tua a Bragança
atender primeiro ao interesse do país e em segundo lugar ao interesse das regiões”425. A população e as forças vivas da região manifestaram o seu descontentamento sobre o posicionamento governamental, organizando uma manifestação em 31 de Maio do mesmo ano, na qual procuraram pressionar as autoridades oficiais a cumprir os projectos ferroviários previstos426. Dias depois, numa reunião no governo civil de Viseu, na qual participaram representantes da comissão de viticultura do Dão, da liga de agricultores da Beira, da associação comercial de Viseu e dos sindicatos agrícolas de Nelas, Vila Nova de Tazem e Oliveira do Hospital, aprovou-se o envio de uma representação ao governo com dois pontos principais: a protecção dos vinhos do Dão e a execução das linhas ferroviárias projectadas427. Esporadicamente, a questão voltava a ser tratada no parlamento. Em 1919, num projecto de lei apresentado por José Júlio César ao senado, alertava-se, mais uma vez, para as gravosas condições de circulação na região: “o distrito de Viseu tem vinte e quatro concelhos. Destes, pouco mais ou menos, um terço é servido por caminhosde-ferro. Os dois terços restantes não têm comunicações por vias férreas, dando-se o caso de quem queira vir de qualquer dos concelhos do norte, como, por exemplo, Pesqueira, Penedono, Tabuaço, Armamar, para só falar destes, à sede do distrito, ter de tomar o comboio em qualquer estação da linha do Douro para, vindo pelo Porto e Pampilhosa, entrar pelo sul do distrito, concelhos de Mortágua e Santa Comba Dão, para chegar a Viseu. (…). Portanto, a construção do troço que vai de Viseu a Foz Tua impõe-se por maneira extraordinária, como uma necessidade urgente”428. “Teríamos assim uma importante artéria, atravessando o País por regiões muito férteis e ricas, a que faz enormíssima falta um caminho-de-ferro para a exportação dos produtos e importação fácil de mercadorias. Tem também vantagens estratégicas enormes, porque ficando resguardada pela cordilheira das Serras de Lousã e Estrela, ficaria sob um abrigo natural, verdadeiramente inacessível, dando-nos a facilidade de podermos transportar tropas da Beira Alta e Trás-os-Montes para o sul e vice-versa, com a maior facilidade. E essa vantagem, mais se reconhece, admitindo a hipótese, aliás muito natural, de a linha do Porto a Lisboa poder ficar inutilizada por qualquer golpe de mão”429 Em Abril de 1922 foi apresentada nova proposta, desta vez por iniciativa de Roberto da Cunha Baptista e Godinho do Amaral430. Foi seguida por uma intervenção do 425
Diario da Camara dos Deputados, 25.6.1914: 19.
426
AMARO & MARQUES, 2010: 28.
427
Diario do Senado, 3.6.1914: 3. Diario da Camara dos Deputados, 2.6.1914: 4.
428
Diario do Senado, 12.2.1919: 5.
429
Diario do Senado, 19.4.1919: 4.
430
Diario do Senado, 24.4.1922: 13-14.
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deputado Afonso de Melo, o qual denunciava o abandono a que a região beirã estava sujeita por parte dos órgãos de poder central431. Já em Fevereiro deste ano o mesmo deputado havia já publicado um artigo no Notícias de Viseu, no qual denunciava o pouco interesse do governo para com a região da Beira Alta e as desigualdades existentes na distribuição dos recursos e das riquezas nacionais432. O debate nas câmaras foi intenso, sujeito a longas discussões e a contrapropostas, podendo destacar-se, sobretudo, um sentimento de urgência e uma necessidade imperiosa de execução dos planos há tanto tempo prometidos. Para Marques Loureiro, “todas as razões, de ordem económica, como estratégica, aconselham e impõem a construção dessas linhas, como ainda se evidenciou por ocasião da chamada «Traulitânia», em que os movimentos de tropas foram difíceis, exigindo enormes sacrifícios de vária natureza”433. Só em Agosto se chegaria a um consenso, pela aprovação de uma proposta de Afonso de Melo, Bartolomeu Severino, Paiva Gomes, Marques Loureiro, Carvalho dos Santos, Amadeu de Vasconcelos, Alfredo de Sousa e Vitorino Mealha434, plasmada em Diário do Governo, pela lei n.º 1.327 de 25 de Agosto de 1922 (art.º 6.º), que autorizava a concessão da linha de Viseu a Foz-Tua à Companhia Nacional, com garantia de juro não superior a 6%435. Não obstante, a instabilidade política, económica, financeira e social da primeira república acabaria por impedir uma actividade mais resoluta por parte das autoridades administrativas na resolução dos problemas do sector. Seria só com a ditadura militar que se verificaram as primeiras alterações estruturais no sector ferroviário em Portugal. Assim, logo em 1926, foi publicado o decreto n.º 11.898, de 12 de Julho, que criou a direcção-geral de caminhos-de-ferro, responsável pela fiscalização das redes nacionais e pelo estudo de novos eixos, através da secção de estudos técnicos e económicos436. Seguiu-se-lhe a uniformização do novo regime de caminhos-de-ferro, promulgada pelo decreto n.º 13.829 de 17 de Junho de 1927. Com este diploma pretendia-se definir um plano para o sector, tendo em atenção a sua importância estratégica e económica. Notava-se a influência de um novo ideário e práxis, corolário quer da nova ideologia política nacional, quer do novo entendimento internacional sobre o transporte ferroviário, construído na conjuntura do pós-guerra. Assim, no preâmbulo do decreto pode ler-se que “as vicissitudes por que tem passado a economia mundial, após a guerra, tiveram entre nós a sua repercussão (…). Dessas complexas circunstâncias deriva a 431
Diario da Camara dos Deputados, 7.7.1922: 6.
432
Noticias de Viseu, 5.2.1922.
433
Diario da Camara dos Deputados, 12.7.1922: 7.
434
Diario da Camara dos Deputados, 8.8.1922: 6.
435
Diario do Govêrno, I série, 25.8.1922, n.º 174: 878.
436
Diario do Govêrno, I série, 17.7.1926, n.º 154: 804.
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A extensão da linha do Tua a Bragança
necessidade de uma revisão geral dos planos decretados, em que se tenham na devida conta as condições geográficas e económicas das diversas regiões do País e as relações que importa facilitar. Esse plano, depois de submetido ao exame das corporações consultivas competentes, deve constituir a base de acção futura”437. Ficavam, assim, enunciadas as grandes linhas de acção para o sector: aprovação de um plano único, embrião de uma futura política ferroviária; criação de uma rede ferroviária nacional, pela densificação da malha de caminhos-de-ferro; concentração empresarial; e financiamento estatal, pelo carácter de utilidade pública do transporte em causa (art.º 1.º). O diploma previa ainda a organização das vias férreas em duas tipologias – linhas de interesse geral e linhas de interesse particular (art.º 2.º) –; a criação de um fundo especial de caminhos-de-ferro (em substituição do fundo de caminhos-de-ferro do estado), entregue à gestão da direcção-geral de caminhos-de-ferro (art.º 12.º); a obrigatoriedade das novas empresas concessionárias serem portuguesas ou terem a sua sede social no país (art.º 28.º); e a revisão dos projectos das redes complementares, a cargo de engenheiros do conselho superior de caminhos-de-ferro, das administrações gerais de estradas e turismo e dos serviços hidráulicos, da direcção-geral de minas e serviços geológicos, da comissão superior de caminhos-de-ferro do ministério da guerra e da secção de estudos da divisão central da direcção-geral de caminhos-deferro (art.º 5.º)438. Os resultados do trabalho desta comissão, integrada por homens como Adolfo César de Pina, Jaime de Oliveira, António Byrne Pereira, Júlio Santos e Fernando de Sousa439, foram conhecidos em 1930, com a publicação do plano da rede ferroviária do continente. As comissões especializadas dos ministérios da guerra e do comércio e comunicações avaliaram-no depois positivamente (decreto n.º 18.190 de 28 de Março de 1930)440. Previa a construção, numa primeira fase, de 312 km em via larga e de 460 km em via estreita, aos quais se somariam, numa segunda fase, mais 407 km e 817 km naquelas duas bitolas, respectivamente, totalizando uma extensão de 1.996 km. “A exemplo da política seguida com os portos, interessa ao Governo a execução de um programa ferroviário susceptível de ser integrado na primeira fase do seu plano de fomento (…) para que à intensificação da produção agrícola, industrial e mineira corresponda uma rede completa de transportes, capaz de garantir o abastecimento de matérias-primas e o escoamento dos produtos da terra e das oficinas. Se do automobilismo muito há a esperar, nem por isso seria admissível, que Portugal se 437
Diario do Govêrno, I série, 25.6.1927, n.º 132: 1138-1139. Ver também SANTOS, 2011: 291-292.
438
Diario do Govêrno, I série, 25.6.1927, n.º 132: 1138-1139. Ver também SANTOS, 2011: 291-292.
439
AMARO & MARQUES, 2010: 30. SANTOS, 2011: 336 e ss.
440
Diario do Govêrno, I série, 10.4.1930, n.º 83.
295
A linha do Tua (1851-2008)
limitasse à sua actual rede ferroviária, manifestamente incompleta e insuficiente”441. Apesar de o plano ter contemplado a construção de uma linha entre Viseu e FozTua, não aprovava o projecto da Companhia Nacional (previsto na lei n.º 1.327). Ao invés, e em virtude de contestações regionalistas, colocava em equação um traçado alternativo – por Viseu, Paiva e Moimenta –, adiando a decisão oficial até à realização de novos estudos. Isto provocou uma onda de grande contestação em concelhos abertamente favoráveis ao traçado da companhia, como o de Aguiar da Beira, Trancoso, Penedono e Sernancelhe. Estas autarquias publicaram mesmo um panfleto intitulado À nobre cidade de Viseu, no qual escreviam: “está para ser publicado, se a esta hora não foi já, o decreto sobre o plano da rede ferroviária, que, tendo definido situações e marcado linhas por toda a parte, deixou essa cidade e estas regiões da Beira em condições piores e mais confusas do que as dantes (…). Em lugar de se aproveitar o ensejo para se arrumar de vez um assunto de tanta magnitude e importância para essa cidade e para esta grande zona da Beira, adiou-se, sine die, a solução do caso! (…) Temos todos de actuar de forma que seja modificado o decreto, em harmonia com os pareceres dos técnicos e das referidas comissões, e de modo que a linha Viseu-Tua possa ser construída já pelo projecto da Companhia Nacional”442 Em 12 de Dezembro do mesmo ano, dando resposta a estas reivindicações, plasmou-se a directriz da linha no decreto n.º 19.138, seguindo o projecto da Companhia Nacional (Viseu, Aguiar da Beira, Vila da Ponte, Riodades, Espinhosa, Vale do Rio Torto, Ventozelo, Foz-Tua), pois “a resolução deste problema ferroviário, se interessa a uma vasta zona onde os benefícios da viação acelerada ainda não chegaram, também permite conjugar, para mútua valorização, interligando as linhas do Tua, Corgo, Sabor e Dão, proporcionando melhor aproveitamento do respectivo pessoal, bem como de máquinas, vagões e outros elementos”443. O regime de caminhos-de-ferro de 1927 (art.ºs 33.º a 45.º) concedia um conjunto de vantagens apreciável às empresas que pretendessem construir um ramal ou linha de utilidade pública, como era o caso da ferrovia de Viseu a Foz-Tua: isenção de direitos alfandegários na importação de material fixo e circulante; cedência gratuita de terrenos do estado; realização das expropriações por conta das câmaras municipais; emissão de obrigações sem sujeição ao artigo 196.º do Código Comercial444. Estes benefícios contribuíram para uma movimentação célere da Companhia Nacional, após a publicação da directriz. 441
Para a identificação das linhas a construir, ver: Diario do Govêrno, I serie, 10.4.1930, n.º 83: 659 e ss. Ver também SANTOS, 2011: 339-344.
442
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, documentos 36-37, À nobre cidade de Viseu, 12.4.1930.
443
Diario do Govêrno, I série, 18.12.1930, n.º 294: 2485.
444
Diario do Govêrno, I série, 25.6.1927, n.º 132.
296
A extensão da linha do Tua a Bragança
Em 1932, na memória descritiva e justificativa da linha de Viseu a Foz-Tua, a Companhia Nacional apresentava o trajecto oficial, dividido em dois lanços principais: (1) entre Viseu e Vila da Ponte e (2) entre Vila da Ponte e Foz-Tua. Com início na estação de caminhos-de-ferro de Viseu, a linha seguia por Mundão, Cavernães, Passos, Quinta do Pereiro, Contige, Mixós, Vila de Igreja, Tojal, Mioma, Lages, Avelal, Decermilo, Romãs, Soito de Golfar, Quinta dos Matos, Coja, Aguiar da Beira, Fonte de Arcadinha, Sequeiros, Quinta de Açores, Gradiz, Granjal, Sernancelhe, Vila da Ponte, Freixinho, Fonte Arcada, Escurquela, Riodades, Vila de Penela, Paredes da Beira, Espinhosa, Várzeas, Soalheira, Ervedosa, Ventozelo, Quinta de Floriz, Caedo e Foz-Tua445. Era um projecto bastante complexo, pela irregularidade do terreno e pela densa rede hidrográfica da região (rios e ribeiras de Pintor, Pavia, Nespereira, Sátão, Coja, Távora, Torto, Pontes, Trevões e Douro), que impunha a construção de muitas obras de arte. Contemplava também as seguintes especificações para a linha-férrea: raios de curva não inferiores a 150 m; pendentes não superiores a 18 mm/m; curvas de sentido contrário separadas por alinhamentos rectos, nunca inferiores a 50 m446. O primeiro lanço incluía oito estações, dois apeadeiros e quatro paragens. Foi prevista a construção de 278 obras de arte corrente e quatro obras de arte especiais – um túnel e três pontes, uma em alvenaria, uma em cimento e uma em metal – e a aquisição de quatro carruagens de primeira classe, quatro de segunda, seis mistas, oito de terceira classe, oito furgões e oito locomotivas447. A construção da estação de Vila da Ponte ocupou uma posição de destaque no projecto, pela sua posição no percurso e pelas condições favoráveis do terreno. De facto, a Companhia Nacional desejava transformar Vila da Ponte num ponto central da sua futura rede, na qual seriam criadas as infra-estruturas básicas de um entreposto ferroviário: “o local (…) é amplo e sem acidentações de importância, permitindo a construção, com a largueza que se torna necessária pela sua situação especial, aproximadamente a meio do percurso entre Viseu e Tua, e no cruzamento previsto desta linha com a da Régua a Vila Franca das Naves, sendo a mais importante do 1.º lanço da linha de Viseu a Tua e seu términus; Pelo que nela se projectou a construção de cocheiras para máquinas e para carruagens, dormitórios para pessoal, toma de água, e outras dependências”448. 445
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 122, Linha de Vizeu a Tua, n.º 1 – Plantas Gerais, A – Planta Geral Vizeu a Tua”, s.d.
446
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 125, Memória descritiva e justificativa elaborada pela Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro, 20.6.1932, p. 2.
447
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 125, Memória descritiva e justificativa elaborada pela Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro, 20.6.1932, p. 12.
448
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 125, Memória descritiva e justificativa elaborada pela Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro, 20.6.1932, p. 4.
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A linha do Tua (1851-2008)
Quanto ao segundo lanço, apenas foram identificadas as estações de Fonte de Arcada, Escurquela, Riodades e Foz-Tua, não sendo mencionados quaisquer apeadeiros ou paragens. A justificação para o atraso na projecção deste lanço encontrava-se na irregularidade do terreno: “no vale do Rio Torto o terreno é de extraordinária acidentação. Os inúmeros contrafortes das duas vertentes endentam-se uns nos outros e são muito estreitos e alongados, separados por vales também muito estreitos e profundos, não sendo possível contorná-los nem transpô-los sem obras de arte dispendiosas”449. A segunda parte do trajecto levantava muitas dúvidas, principalmente às comissões de revisão do mesmo, que acabaram por apresentar uma proposta alternativa para o troço entre Espinhosa e Foz-Tua, seguindo por Trevões, Valongo, Pesqueira, Ervedosa, Soutelo e Nagozelo450. Mapa 26 – Variantes do troço entre Espinhosa e Foz-Tua451
A memória descritiva e justificativa da linha foi acompanhada de um inquérito comercial e económico, elaborado pelo inspector comercial Henrique de Albuquerque Ramos. Este documento, bastante pormenorizado, analisou os dados económicos de 449
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 125, Memória descritiva e justificativa elaborada pela Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro, 20.6.1932, p. 5.
450
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 125, Linha de Vizeu a Foz-Tua. Reconhecimento sobre a carta. Planta e perfis, s.d. cx. 128.
451
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Linha de Vizeu a Foz-Tua. Reconhecimento sobre a carta. Planta e perfis, s.d.
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A extensão da linha do Tua a Bragança
nove concelhos localizados na área de influência da linha (Viseu, Sátão, Vila Nova de Paiva, Aguiar da Beira, Trancoso, Sernancelhe, Penedono, Moimenta da Beira e Tabuaço) e de mais de oito dezenas de freguesias da região. Executado para comparar os benefícios e os constrangimentos das propostas apresentadas pela Companhia Nacional e pelo movimento regionalista (encabeçado pelos municípios de Moimenta da Beira e de Vila Nova de Paiva), o inquérito é uma fonte inestimável para o conhecimento desta região e da sua composição económica e social no início da década de 1930. A análise permite verificar que a actividade local tinha por base a produção agrícola e a criação de gado – bovino, muar, suíno e lanígero –, no qual ainda predominavam práticas de transumância e se verificava a deslocação de rebanhos a pé. Os principais produtos produzidos localmente eram o vinho, os cereais, os legumes secos, a batata, a castanha, a resina, as lãs e a madeira (pinho e castanho). As principais necessidades da região eram adubos, sulfatos e enxofres, produtos essenciais para a actividade agrícola e vitivinícola. O inspector comercial fez ainda algumas considerações interessantes sobre o concelho de Vila Nova de Paiva, o qual teria mais vantagem na adopção do traçado regional, local onde haviam sido recentemente identificadas minas de estanho e volfrâmio452. A análise permitiu ao inspector comercial concluir que, pela centralidade do concelho, Viseu contribuiria para cerca de 50% do tráfego de passageiros e mercadorias; que em alguns circuitos (caso do eixo Viseu – Satão), o transporte rodoviário começava a ganhar importância, pelo que caminho-de-ferro teria dificuldade em se impor; que sempre que os concelhos ou freguesias estivessem relativamente próximos de uma linha de via larga, a iriam preferir em detrimento da de via estreita; e, finalmente, que o traçado da Companhia Nacional tinha mais vantagens por atravessar zonas mais dinâmicas em termos económicos453. No entanto, nem o projecto nem o inquérito foram recebidos sem contestação. As dissensões locais e regionais que se haviam iniciado na segunda metade da década de 1920 acentuaram-se. Alguns autarcas apressaram-se a definir a sua posição oficial sobre o assunto. Foi o caso de Almeida Coelho, presidente da câmara de Aguiar da Beira, que, em Dezembro de 1929, manifestou concordância com o traçado definido pela comissão de directrizes, posição secundada pelas comissões administrativas dos concelhos de Trancoso, Sernancelhe e Penedono, através de telegramas enviados, respectivamente, pelos seus presidentes, Castro Lopes, Joaquim dos Santos e Luís Fonseca454. 452
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Inquérito Comercial e Económico. Linha de Vizeu a Foz-Tua, p. 12.
453
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Inquérito Comercial e Económico. Linha de Vizeu a Foz-Tua, p. 3-4
454
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, doc. 16, telegrama de Almeida
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A linha do Tua (1851-2008)
As posições entre os apoiantes dos principais projectos em discussão, conhecidos genericamente como traçado da companhia e traçado regional, extremaram-se bastante, com impactos evidentes na imprensa e nas publicações de âmbito regional e nacional e até nas relações institucionais entre concelhos. Mapa 27 – Concelhos favoráveis ao traçado regional (cinzento-escuro) e favoráveis ao traçado da companhia (preto)455.
Conhecidas as especificações do traçado da companhia importa agora conhecer o trajecto e os objectivos dos defensores do traçado regional. Definida em meados da década de 1920, esta variante incluía o percurso seguinte: Viseu, Rio de Loba, Povolide, Pindo, Rio de Moinhos, Silvã, Lousadela, Duas Igrejas, Soito, Quinta da Serra, Segões, Forles, Caria, Moimenta da Beira, Arcozelo, Baldos, Peneireiro, Boiço e Riodades456. Contava com um apoio concelhio alargado que incluía os municípios de Mangualde, Penalva do Castelo, Vila Nova de Paiva, Moimenta da Beira, Tarouca, Lamego, Coelho, 11.12.1929; doc. 16, telegrama de Castro Lopes, 12.12.1929; doc. 17, telegrama de Joaquim dos Santos, 12.12.1929; doc. 18, telegrama de Luís Fonseca, 13.12.1929. 455
Historical Atlas, http://atlas.fcsh.unl.pt.
456
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Linha de Vizeu a Foz-Tua. Reconhecimento sobre a carta. Planta e perfis, s.d.
300
A extensão da linha do Tua a Bragança
Armamar, Tabuaço e S. João da Pesqueira, para além de algumas freguesias dos concelhos de Viseu e Sátão. Integravam as suas hostes algumas das personalidades mais destacadas da região, como o jornalista, natural de Vila Nova de Paiva, Fausto de Sá Marques, e o monárquico Júlio Girão de Faria Morais Sarmento, visconde do Banho. Entre os seus objectivos destacava-se o de “completar a penetração do distrito de Viseu, ligando os seus concelhos de Norte, Nordeste e Leste com a sede do distrito, e ligando-a entre si”457. Fulcral seria também servir a “zona importantíssima da região dos vinhos do Dão, zona fértil, rica e populosa, que não aproveitaria os benefícios desta linha férrea, nem poderia, na sua maior parte, esperar nenhum outro semelhante, visto como, no plano já aprovado, nenhuma outra linha existe que possa, em futuro mais ou menos remoto, aproveitar-lhe”458. Como vantagens económicas, os defensores do traçado regional referiam-se ainda ao facto de o seu trajecto servir uma zona mais populosa, de poder usufruir de um troço ferroviário comum (entre Viseu e Mangualde, evitando, deste modo, despesas de construção), e de aproveitar o potencial turístico da região (caldas de Alcafache, Viseu; capela de Nossa Senhora da Esperança, Sátão; quinta da Ínsua, Penalva do Castelo; convento dos Templários, Sátão; santuário de Nosso Senhor dos Caminhos, Sátão; ruínas do paço dos duques de Cadaval, Sátão; convento de S. Bento, Sátão; convento da Fraga, Sátão; santuário de Nossa Senhora da Lapa, Sernancelhe; e convento de S. Francisco, Moimenta da Beira)459. O concelho de Moimenta da Beira ocupava, neste projecto, uma posição central enquanto futuro entreposto ferroviário. Caso fosse escolhido o traçado regional, acabaria por funcionar como intersecção entre as linhas de Viseu a Foz-Tua e de Lamego a Vila Franca das Naves, substituindo-se a Vila da Ponte. Ganharia ainda uma nova dimensão no posicionamento político distrital, enquanto intermediário entre Viseu e os concelhos a norte. Em termos técnicos, foram indicadas especificações distintas das adoptadas nas linhas de Santa Comba Dão a Viseu e nas de Foz-Tua a Bragança, para além de se relegar esta questão para segundo plano: “as elevações do terreno entre os rios Vouga e Paiva e as diferenças de altitude que assinalam esta parte do percurso, não constituem de forma alguma obstáculo invencível nem difícil de vencer, mormente 457
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Memoria sobre o traçado da linha férrea de Viseu a Foz-Tua organisada pela Comissão Central do Movimento Regional (Viseu: Tipografia Jornal da Beira, 1925), p. 5.
458
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Memoria sobre o traçado da linha férrea de Viseu a Foz-Tua organisada pela Comissão Central do Movimento Regional (Viseu: Tipografia Jornal da Beira, 1925), p. 12.
459
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Memoria sobre o traçado da linha férrea de Viseu a Foz-Tua organisada pela Comissão Central do Movimento Regional (Viseu: Tipografia Jornal da Beira, 1925), p. 36-37.
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A linha do Tua (1851-2008)
se se adoptarem as características técnica preconizadas pelo distinto profissional Sr. Fernando de Sousa – isto é –, os limites, máximo de 25 mm para rampas e mínimo de 100m para os ralos das curvas. Isto porém é problema que só aos técnicos pertence, e por isso limitamo-nos a afirmar que – quaisquer que sejam as características técnicas adoptadas, o desenvolvimento não alonga excessivamente o percurso, nem torna mais dispendiosa a construção”460. O final da década de 1920 ficou assim marcado por uma verdadeira luta regional entre os apoiantes de cada um dos traçados, cujos ecos chegaram frequentemente a Lisboa e aos principais órgãos de poder. Em Janeiro de 1925, o deputado Amaral Reis pedia ao ministro do comércio e comunicações que não se alterasse o projecto da Companhia Nacional, uma vez que “foi estudado por engenheiros dos mais distintos, e os interesses da Companhia são, naturalmente, os interesses do Estado e os interesses colectivos. Os interesses da Companhia consistem, naturalmente, em fazer um traçado mais económico, que atravessa ao mesmo tempo regiões que lhe possam trazer maior tráfego. Os interesses que estão em luta são os interesses das regiões, e eu estou convencido, e para isso é que eu chamo a atenção do Sr. Ministro do Comércio, de que esse projecto de traçado não será alterado, a não ser que os interesses gerais do Estado fossem considerados de uma melhor maneira do que o são pelo projecto que se conhece”461. O ministro Plínio Octávio de Santana e Silva respondia que “se for eu, porventura, a pessoa que, em última instância, tiver de se pronunciar sobre o projecto, o farei (…) de harmonia com as necessidade das regiões que o traçado abrange e que o traçado a adoptar será aquele que mais convenha ao desenvolvimento das regiões servidas, sem atender a quaisquer sugestões de ordem política”462. A propaganda que envolveu a discussão dos projectos foi extremamente activa e bastante violenta, sendo dinamizada por todo o tipo de pessoas e instituições, desde as políticas, às económicas e às organizações de classe. Um aspecto interessante desta propaganda relacionou-se com a interpelação directa à cidade de Viseu, feita pelos diferentes manifestos. Isto é bem representativo da luta surda que existia pela obtenção do apoio político da sede de distrito, cuja influência seria decisiva para a aprovação de qualquer um dos traçados, luta essa potenciada pela posição dúbia que Viseu foi tendo ao longo do tempo.
460
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Memoria sobre o traçado da linha férrea de Viseu a Foz-Tua organisada pela Comissão Central do Movimento Regional (Viseu: Tipografia Jornal da Beira, 1925), p. 16.
461
Diario da Camara dos Deputados, 21.1.1925: 6.
462
Diario da Camara dos Deputados, 21.1.1925: 6-7.
302
A extensão da linha do Tua a Bragança
Figura 121 – Títulos dos manifestos dirigidos à cidade de Viseu (c. 1930) a favor do traçado da companhia (à esquerda) e do traçado regional (à direita)463.
Os defensores do traçado regional baseavam a sua propaganda em três aspectos principais: (1) demonstrar a superioridade económica dos concelhos e freguesias contemplados no seu projecto, quer no domínio agrícola, quer a nível comercial (evocavam a realização de importantes mercados locais como o de Barrelas, o de Lamas de Ferreira e o de Peva), quer pela existência de inúmeras jazidas minerais (de mispíquel, galena, chumbo, estanho, grafite, volfrâmio, entre outros) com grande potencial mineiro464; (2) denunciar o mau serviço prestado pela Companhia Nacional nas suas linhas, quer no transporte de passageiros, quer no de mercadorias; e (3) criticar o inquérito comercial e económico realizado, considerado parcial e fraudulento, exigindo a realização de um novo inquérito465 Por sua vez, os apoiantes do traçado da companhia retorquiam com argumentos de natureza económica, técnica e política. Desde logo, denunciavam a inexistência de um estudo no terreno por parte dos regionalistas, enquanto o seu plano era “coisa certa, exacta, rigorosa e tecnicamente estudada, com planta e projectos prontos”466. Destacavam a vantagem em seguir o curso do rio Távora, pela configuração geodésica da região, e por permitir a travessia do rio em Aguiar, com uma cota de 750 m, bastante inferior às cotas apresentadas pelo traçado concorrente. Outros aspectos referidos diziam respeito aos pareceres favoráveis das comissões revisora, superior de caminhos-de-ferro do ministério da guerra e do conselho superior de caminhos-de-ferro e das conclusões do próprio inquérito comercial. Aliás os apoiantes deste traçado não receavam a realização de qualquer inquérito comparativo: 463
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128.
464
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, Linha férrea – Viseu-Tua, s.d., docs. 3-4.
465
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, A Viseu. À progressiva e linda capital do nosso distrito, docs. 32-33; À cidade de Viseu e ao nosso distrito, 14.4.1930, docs. 34-35.
466
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, A Linha Viseu-Tua. À nobre cidade de Viseu e para todos lerem, p. 11.
303
A linha do Tua (1851-2008)
“não se julgue, porém, que Aguiar da Beira e os que com ela defendem e querem o traçado da C.N. tremem, e receiam qualquer inquérito ou estudo comparativo conscienciosa e imparcialmente feitos. Não! Têm tanto a certeza da Justiça que lhes assiste que já em Novembro de 1928, a Câmara de Aguiar da Beira, na resposta que enviou à Comissão Revisora, acerca do plano provisório da rede ferroviária, afirmou o seguinte: «Qualquer inquérito consciencioso imparcialmente feito, e o exame e o estudo atento das duas regiões, não só pela carta, mas sobre o terreno, mostrarão a verdade do exposto e as vantagens do projecto da C.N. sobre qualquer traçado por V.N. de Paiva»”467. Faziam ainda alusão a alegados interesses encobertos, quer de determinadas autarquias sem tanto interesse directo na questão como queriam fazer crer (“não têm, portanto, interesse directo no caso. Andam no grupo por solidariedade distrital, para fazerem número”468), quer de algumas personalidades envolvidas nas discussões. Era o caso do próprio engenheiro Fernando de Sousa, ligado à Companhia do Caminho de Ferro do Vale do Vouga, que, segundo os apoiantes deste traçado tinha ela própria potencial interesse na concessão. Entretanto, a conjuntura nacional alterou-se e o plano que se tentara aplicar no início da década de 30 acabou por sair gorado. A crise de 1929 fez-se sentir principalmente na diminuição dos capitais invisíveis no país, o que teve grande impacto na saúde financeira das companhias ferroviárias. O próprio processo de institucionalização do estado novo e a sua política de contenção de despesas no sector dos caminhosde-ferro contribuiriam para a inviabilização do plano ferroviário nacional, no qual o financiamento estatal desempenhava um papel central. Este foi materializado no decreto n.º 22.379 de 28 de Março de 1933, que determinava a suspensão da construção de novas linhas com garantia de juro, com a justificação da insuficiência de receitas do fundo especial de caminhos-de-ferro469. Na prática, este diploma impedia a execução dos projectos em curso. Limitadas, como ficaram, nos projectos de expansão das suas redes, as companhias ferroviárias enfrentaram então uma grave crise, caracterizada pela dificuldade em modernizar o material circulante e a superstrutura da via, pelo endividamento junto da banca e pela concorrência automóvel, no transporte de passageiros e mercadorias, que começou a disputar importantes áreas de interesse económico ao caminho-de-ferro. Neste contexto, a Companhia Nacional que, em 1928 subarrendou as antigas li-
467
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, A Linha Viseu-Tua. À nobre cidade de Viseu e para todos lerem, p. 6.
468
Centro nacional de documentação ferroviária. Companhia Nacional, cx. 128, A Linha Viseu-Tua. À nobre cidade de Viseu e para todos lerem, p. 8.
469
Diario do Govêrno, I série, 31.3.1933, n.º 74. SANTOS, 2011: 511-521.
304
A extensão da linha do Tua a Bragança
nhas de via reduzida do estado à Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses470, acabou por ficar numa situação financeira delicada, impossibilitada de concretizar o projecto da linha de Viseu a Foz-Tua, enquanto não fosse assegurado o apoio governamental, que acabou por nunca chegar. A linha não dava garantias de se suster a si própria, do ponto de vista económico, só sendo exequível se o estado lhe concedesse um forte apoio financeiro, algo que o governo de então não estava disposto a fazer471. Localmente, o desejo de concretização da linha entre Viseu e Foz-Tua mantevese. Em 1936, ainda se encontra notícia de uma representação oficial ao ministério do comércio e indústria para tentar desbloquear os constrangimentos que a envolviam, assegurando a sua construção472. Não obstante, as prioridades nacionais e regionais começavam a mudar, como se pode verificar no relatório do governador civil de Viseu de 1937. Primeiro “continuar com a pavimentação das estradas de grande circulação; conclusão de outras; [depois a] construção do caminho-de-ferro de Viseu a Foz Tua e a Lamego; conclusão da rede telefónica (…); construção de escolas; construção do Liceu de Viseu; construção de algumas estações telégrafos-postais”473.
470
Diario do Govêrno, II série, 9.2.1928, n.º 32. Para mais detalhes ver SANTOS, 2011: 21.
471
SANTOS, 2011: 428-429.
472
ASSOCIAÇÃO…, 1936: 100.
473
Apud. AMARO & MARQUES, 2010: 32.
305
PARTE III
EXPLORAÇÃO E IMPACTOS
125 anos de exploração
5. 125 ANOS DE EXPLORAÇÃO
5.1. MATERIAL CIRCULANTE Hugo Silveira Pereira001
Ao longo da história mais que centenária da linha do Tua, o material circulante usado sobre os seus carris sofreu várias alterações, desde os tempos do vapor até aos anos mais recentes do diesel. As primeiras máquinas locomotivas chegaram ao Tua em 1887, provenientes das oficinas da Maschinenfabrik Esslingen de Emil Kessler perto de Estugarda na Alemanha. Eram seis locomotivas-tanque (transportavam elas próprias o carvão e a água de que necessitavam e portanto não tinham tênder) do tipo 2-6-0T (duas rodas dianteiras não-motrizes num eixo, seis rodas motrizes em três eixos e sem rodas traseiras, de acordo com a notação hyte). Chegadas a Portugal foram numeradas de CN1 a CN6 e baptizadas com nomes alusivos a Trás-os-Montes, respectivamente: Traz os Montes, Bragança, Mirandella, Villa Flor, Carrazeda e Foz Tua002. Estas máquinas vieram acompanhadas de um conjunto de material rebocado de eixos, composto por: um salão, três carruagens de primeira classe (série A), duas mistas de primeira e segunda (AB), oito de segunda (B), dez de terceira (C), seis furgões (D), 14 furgões de bordas baixas (L, um deles preservado na secção museológica de Bragança), 14 vagões de bordas altas (O) e 38 vagões cobertos (J)003. Este material foi entregue entre 1886 e 1890, produzido por quatro fábricas distintas: a Compagnie 001
Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa).
002
DAVIES, 1998: 91-93
003
Gazeta de Obras Publicas, n.º 4 (15.1.1888): 2.
309
A linha do Tua (1851-2008)
Internationale Braine-le-Comte, a Nicaise et Delcuve, a La Métallurgique Nivelles e a Bristol agon orks004. Figura 122 – Locomotiva CN5, Carrazeda005
Foi com este elenco que a Companhia Nacional se lançou na exploração da linha de Foz Tua até Mirandela, servindo as suas necessidades até aos primeiros anos do século XX e à abertura da secção entre Mirandela e Bragança. Por esta altura, a Companhia Nacional adquiriu ainda à Kessler outras seis locomotivas para o outro caminho-de-ferro que explorava: o ramal de Viseu. Eram muito semelhantes ao lote do Tua, embora fossem máquinas 0-6-0T. Foram também numeradas de CN1 a CN6 e nomeadas respectivamente Beira Alta, Vizeu, Santa Comba, Tondella, Dão e Viriato. Era aliás este detalhe que as distinguia das máquinas do Tua006. A partir de 1904, alguns trechos da linha de Bragança foram sendo sucessivamente 004
DAVIES, 1998: 101, 108, 109 e 110.
005
Boletim da CP, n.º 116 (1939).
006
DAVIES, 1998: 95.
310
125 anos de exploração
abertos e a Companhia Nacional viu-se na obrigação de adquirir mais duas locomotivas, tendo confiado novamente na perícia da casa Kessler007. Naquele ano, duas novas máquinas-tanque 2-6-0T chegaram ao Tua para trabalhar nas novas secções da linha. Foram numeradas CN7 e CN8 e denominadas de Vilalva e Macedo. Eram versões melhoradas, mais pesadas e mais potentes do lote anterior008. Custaram 26 contos, numa operação que envolveu ainda 30 vagões e que foi financiada pela casa Burnay com 40 contos de réis009. Segundo o relatório e contas da companhia, esta, dois anos antes, tinha também começado a reforçar o seu stock de material rebocado com a construção de alguns vagões010. Figura 123 – As locomotivas CN7 e CN9, aqui com os seus números no período da CP011
Em 1907, duas novas locomotivas-tanque 2-6-0T de Emil Kessler fechavam o conjunto de material a vapor comprado pela Companhia Nacional para a linha do Tua. Custaram 19,5 contos e foram destinadas especificamente para o serviço entre Mirandela e Bragança. Chegaram em Novembro e foram numeradas CN9 e CN10, sendo provável que tivessem sido chamadas de Sabor e Vinhaes012. Eram vistas como as estrelas da companhia e ainda na década de 1980 eram gabadas “pela sua enorme potência, esforço de tracção e capacidade de produzir vapor”013. Eram 007
Arquivo histórico da CP. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Divisão de Material e Tracção. 1.ª Zona. Locomotivas de vapor de via estreita. Esquemas e principais características. [S. l.]: [s. n.], [s. d.].
008
PEDREIRA, 1991: 7.
009
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1904: 18. Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1905: 10.
010
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1903: 15.
011
DAVIES, 1998: 90 e 95.
012
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1908: 10-12. Gazeta de Bragança, n.º 873 (14.2.1909): 2. NUNES, 2007: 54.
013
PEDREIRA, 1991: 5.
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A linha do Tua (1851-2008)
similares às máquinas CN7 e CN8, mas ligeiramente maiores e mais pesadas014. Naturalmente, a frota de material rebocado foi também reforçada com novas carruagens e vagões de bogies e ainda com remodelações do material preexistente015. Foi adquirido um novo salão (actualmente preservado na secção museológica de Arco de Baúlhe), três carruagens mistas de primeira e segunda classe (todos à Carl eyer Dusseldorf Eisenbahn), sete vagões de bordas baixas, 24 vagões de bordas altas e 12 vagões cobertos (à Compagnie Centrale de Construction de Haine St. Pierre e à Hurst Nelson de Mother ell)016. Em 1910, a companhia passou também a dispor de veículos próprios para o transporte específico de malas de correio017. Na década de 1920 a Companhia Nacional procurou reforçar a sua frota circulante, aproveitando o programa de reparações de guerra imposto à Alemanha. Neste sentido, apresentou ao governo dois contratos para compra de duas locomotivas à Maschinenfabrik Esslingen e de 20 carruagens e 60 vagões à Linke-Hofmann. Segundo o relatório da direcção de 1923, só o último contrato foi aceite, apesar de as locomotivas terem sido efectivamente fabricadas pela fábrica de Emil Kessler. No entanto, a Alemanha tinha por esta altura suspenso o programa de reparações e a entrega dos vagões foi suspensa018. É provável que dos 60 vagões, só cinco tenham chegado a Portugal e ao Tua019. Em 1927, a ditadura militar decidiu reformular a gestão ferroviária e arrendar as linhas pertencentes ao estado (Minho, Douro, sul e sueste, Tâmega, Corgo e Sabor) à Companhia dos Caminhos de Fero Portugueses (CP), que por sua vez subarrendou os caminhos-de-ferro de via estreita às companhias que já exploravam este tipo de ferrovia. À Companhia Nacional couberam as linhas do Corgo e do Sabor e o seu material circulante. É de crer que nenhum deste material tenha vindo para o Tua; no percurso inverso caminharam as máquinas CN9 e CN10, que foram colocadas no Sabor. Outra mudança verificar-se-ia ao nível das suas designações. Para evitar confusões com o conjunto do Dão, as locomotivas CN1-CN6 passaram a CN11-CN16, enquanto as máquinas CN7-CN10 foram renumeradas para CN21-CN24020. Na década seguinte, mais precisamente em 1938, a Companhia Nacional adqui014
DAVIES, 1998: 95-96.
015
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1908: 10-12.
016
DAVIES, 1998: 110.
017
Gazeta de Bragança, 17.4.1910, n.º 934.
018
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1924: 4. Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1927: 4.
019
DAVIES, 1998.
020
PEDREIRA, 1991: 13.
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125 anos de exploração
riu um novo item para o seu activo: uma locomotiva diesel 2-6-2 novinha em folha, comprada à firma Keutz de Colónia. Foi identificada com o n.º 31 e carinhosamente baptizada de Lydia. Chegou a Portugal literalmente em pedaços, sendo montada nas oficinas de Mirandela. Foi a primeira locomotiva diesel de via estreita a operar em Portugal, mas teve uma carreira bastante curta, em virtude do deflagrar da segunda guerra mundial. Ainda existia em 1957, acabando por ser desmantelada provavelmente antes de 1960021. Figura 124 – Locomotiva Lydya022
Quanto ao material rebocado, por volta de 1930 a Companhia Nacional detinha uma frota de 54 carruagens de passageiros: dois salões (AS1-2), sete carruagens de primeira classe (A11-17), dez carruagens mistas de primeira e segunda (AB51-57 e AB61-63), 11 carruagens de segunda (B81-91) e 24 carruagens de terceira (C121-144). Em 1951, todas as linhas que compunham a rede à excepção da linha de Cascais foram colocadas sob domínio da CP. Esta mudança de gestão traria alterações substanciais à composição do material circulante no Tua. Desde logo todo o conjunto original foi renumerado e incorporado na série E: as máquinas CN1 a CN16 passaram a E81 a E86 e as CN1 a CN24 tornaram-se E111 a 021
DAVIES, 1998: 76 e 97.
022
DAVIES, 1998: 96.
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A linha do Tua (1851-2008)
E114 (e depois de 1974 a UIC 3-069081 a 086 e 3-089 111 a 114, respectivamente). Além disto, algumas destas máquinas que nunca tinham visto outras paisagens que não as do Tua, foram dispersadas pela rede: as locomotivas E83, E84, E85, E86, E111 e E114 foram colocadas nas linhas de via estreita do litoral (em torno do Porto e de Aveiro). Para substituir aquelas quatro máquinas, a CP transferiu do Dão para o Tua as locomotivas E51, E52, E55 e E56 (antigas CN1, CN2, CN5 e CN6 e futuras 3-059051 a 056023). Circularam sobretudo no troço entre Foz Tua e Mirandela, puxando comboios de serviço e mistos ou servindo como máquinas de manobras, tendo mais tarde circulado nas vias-férreas de bitola estreita do Corgo, Sabor e Porto024. Também uma das máquinas da linha de Guimarães (E71 ou E72, antigas n.º 4 e 5 da companhia de Guimarães) veio para Tua na década de 1950, tendo aqui ficado até 1963. Era uma 2-6-0T, construída em 1884 pela Societé Suisse pour la Construction de Locomotives et de Machines de interthur025. Em 1979, já não constavam do inventário da CP, pelo que terão sido abatidas entre 1963 e aquela data026. Figura 125 – Locomotiva E52, antiga CN2, Vizeu027
023
Arquivo CP. CP. Direcção Industrial. Serviço de Programação e Controlo. Inventário do material circulante. Situação referida a 31/12/1985. [S. l.]: CP, 1985.
024
PEDREIRA, 1991: 10.
025
DAVIES, 1998: 35-36.
026
Arquivo CP. CP. Direcção Industrial. Função Material. Inventário de Material Circulante. Situação referida a 31/12/1979. [S. l.]: CP, 1979.
027
INK ORTH, 2006: 38.
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125 anos de exploração
A CP transferiu também diverso material rebocado entre as linhas de bitola estreita, o qual juntou ao que encontrou no Tua em 1951. Até 1980 e sobretudo na década de 1970, das linhas da Póvoa e de Guimarães vieram para o Tua duas carruagem de primeira classe, quatro carruagens mistas de primeira e terceira, nove carruagens de terceira, uma carruagem de bagagens e três carruagens mistas de terceira e bagagens/correio (as famosas napolitanas ou italianas assim chamadas por terem sido fabricadas em 1931 pela Oficine Meridionale SA de Nápoles). Das antigas linhas do estado, chegaram três carruagens de primeira classe, uma de terceira e três de bagagens. Por fim, desde a linha do Vouga arribaram ao Tua, cinco carruagens mistas de primeira e terceira classe, quatro de terceira, uma mista de terceira e bagagens e duas de bagagens. Em 1953, a CP desmantelou ainda os vagões-correio originais da CN, substituindo-os por novos veículos comprados à Linke-Hofmann. Todos estes veículos sofreram várias alterações ao longo dos anos e alguns deles operaram até à década de 1990, enquanto outros foram sendo desmantelados, vendidos ou transferidos para outras paragens. Uns poucos encontram-se preservados nos museus da CP028. Quanto a material de mercadorias, a CP manteve uma grande parte dos veículos que recebeu quando da Concessão nica, ao qual adicionou material do Vouga, do Dão e do caminho-de-ferro mineiro do Lena. Quase todo o material de dois eixos da CN foi usado até meados da década de 1980, altura em que foi sendo substituído por veículos de bogies provindos do Sabor. Segundo Davies, a CP geriu no Tua 50 vagões cobertos, 35 vagões de bordas baixas e 58 vagões de taipais altos, alguns deles reminiscências do tempo da CN, outros provindos de outras linhas. Os vagões cobertos incluíam três veículos especiais e 47 vagões ventilados com ligeiras diferenças entre si. A CP ficou ainda com os veículos especiais da CN: o guindaste móvel T1001 (renumerado para GE1381) e duas oficinas itinerantes. A empresa introduziu ainda 15 vagões cobertos JEy1-15, construídos por si em 1962. Eram grandes furgões com estrutura em aço e grandes portas deslizantes. Ficaram no Tua, até aos anos 1990 quando foram desmantelados à excepção de um que aparentemente foi reservado para museu029. A década de 1950 assistiu também à introdução do diesel no Tua, depois daquela tentativa fugaz na década de 1930 com a Lydya, e a algumas experiências com automotoras de dois eixos a gasolina. Estas eram veículos construídos em 1948 nas oficinas de Lisboa com peças de automóvel e motores Chevrolet. No Tua foram experimentadas as automotoras MEf2, MEf3 e MEf6 (depois de 1974, 9 0 94 6 019002, 3 e 6), no entanto os resultados das experiências não foram animadores e o uso destes 028
DAVIES, 1998: 55-62, 108-109, 151-152 e 205-212.
029
DAVIES, 1998: 113 e 169.
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A linha do Tua (1851-2008)
railcars foi aqui descontinuado. O veículo MEf3 foi preservado em azul no museu de Macinhata do Vouga030. Figura 126 – Automotora a gasolina no vale do Tua031
Um muito maior sucesso seria alcançado pelas Allan, automotoras diesel-eléctricas de bogie dupla, compradas para as linhas de via estreita nacionais em 1955 à empresa com o mesmo nome, sedeada em Roterdão. Inicialmente, foi-lhes dado o identificador MEY 301 a MEY 310, que foi mais tarde alterado para 90 94 8 039301-9310 ou mais simplesmente, série 9300. Vieram acompanhadas de oito atrelados, originalmente, série REY 301-308 e depois série 50 94 28-29 301-308032. Chegaram numa altura em que os caminhos-de-ferro portugueses “viviam uma época de grande modernização e desenvolvimento devido à aposta na tracção diesel”, 030
Arquivo histórico da CP. CP. Direcção Industrial. Função Material. Inventário do Material Circulante. Situação referida a 31/12/79. [S. l.]: CP, 1979. Bastão-Piloto, n. 169 (Janeiro 1995): 13. DAVIES, 1998.
031
Agradeço ao dr. Albano Viseu por me ter cedido esta imagem.
032
Arquivo histórico da CP. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Divisão de Material e Tracção. Servicços Técnicos e Eléctricos. Material Motorizado. Esquemas. [S. l.]: [s. n.]. CP. Direcção Industrial. Função Material. Inventário de Material Circulante. Situação referida a 31/12/1979. [S. l.]: CP, 1979. Trainspotter, n. 17 (2011): 11. GRILO, 1988: 56. GRILO, 1988-1989: 15
316
125 anos de exploração
com o propósito de melhorar a qualidade do serviço na rede de via estreita (que era à data considerado ineficiente em virtude da falta de material circulante e da antiguidade do mesmo) e de reduzir os custos com o dispendioso parque de locomotivas a vapor033. As Allan eram máquinas bastante modernas para a época, a nível de design, de parte mecânica, de caixa, de bogies e de freios (eléctrico combinado com pneumático), sendo consideradas mais rápidas, mais eficazes em termos de consumo e mais confortáveis para os passageiros034. A direcção da CP acreditava que elas podiam vir a ser uma maisvalia nas linhas de via estreita com alto tráfego ou com importante valor turístico035. Das dez automotoras que chegaram a Portugal, cinco foram colocadas nas linhas em torno do Porto e outras cinco no Tua036. Aqui os testes começaram nos primeiros meses de 1955 e foram bastante positivos, muito embora as Allan não fossem apropriadas para linhas tão curvilíneas – as experiências realizadas pela mesma altura no Corgo comprovaram isso mesmo: as Allan descarrilavam sempre entre Régua e Vila Real037. No dia 5 de Outubro de 1955 era realizada a primeira viagem oficial de uma Allan no Tua. A automotora, conduzida pelo maquinista Júlio dos Prazeres Pereira transportou altos membros da direcção da CP e alguns engenheiros holandeses da firma construtora desde o Tua até Bragança em boas condições técnicas e sem incidentes a registar038. O serviço propriamente dito iniciar-se-ia dez dias depois. Figura 127 – Automotora Allan em Mirandela039
033
OLIVEIRA, 1991: 17.
034
GRILO, 1988-1989: 15.
035
Boletim da CP, n. 321 (1956): 12.
EEL & OLIVEIRA, 1991.
036
GRILO, 1988-1989: 15.
037
CASTRO, 1996: 27. GRILO, 1988-1989: 36. OLIVEIRA, 1991: 29. VAZ, 1988: 44.
038
Boletim da CP, n. 317 (1955): 9.
039
Boletim da CP, n. 317 (1955): 9.
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A linha do Tua (1851-2008)
Originalmente, foram pintadas de azul acinzentado claro com faixas horizontais vermelhas e numeradas com letras de bronze. No início da década de 1960 passaram a azul-escuro com faixa vermelha e tecto prateado. Algures nas décadas de 1960/1970, algumas perderam a lista vermelha. Na década de 1970, começaram por ostentar um vermelho e branco, com tecto e bogies castanhos e avental às riscas, mas mais tarde (1973 ) o avental foi pintado unicamente de vermelho e tempos depois a frente foi remodelada às riscas diagonais vermelhas e brancas (para a tornar mais visível, uma preocupação pertinente em linhas com muitas passagens de nível, como era o caso das vias de bitola estreita portuguesas)040. O seu grau de sucesso foi bastante alto. Introduziram velocidades mais altas e tempos de viagem mais curtos, embora fossem obrigadas a fazer as curvas muito devagar e fossem algo propensas a incêndios, em virtude de os seus motores com sobrealimentação estarem instalados num espaço reduzido e não se adaptarem ao clima português. A sua robustez tornou-se lendária e qualquer avaria podia ser resolvida com as ferramentas mais simples041. A chegada das Allan teve impacto sobre o stock de carruagens de passageiros, pois também prestavam este serviço. Chegou, contudo, a verificar-se uma coexistência pacífica entre ambas: em alguns anos e em algumas viagens as automotoras holandesas chegaram a puxar carruagens de transporte de passageiros042. As Allan não mataram o vapor no Tua, que ainda foi usado na linha nas duas décadas seguintes, após melhoramentos introduzidos ao nível do consumo de carvão nas máquinas043. Depois da introdução das holandesas – como também eram chamadas – várias locomotivas a vapor foram colocadas ainda no Tua nas décadas de 1960 e 1970. Foi o caso do grupo que daqui foi transferido para o litoral nos anos 1950. As vias-férreas no litoral em torno do Porto ou de Aveiro eram naturalmente consideradas mais valiosas e como tal mais propensas à inovação. Nestas ferrovias, máquinas a vapor do século XIX ou de inícios do século XX tornavam-se obsoletas mais rapidamente e eram recambiadas para linhas de menor tráfego, como o Tua. Um bom exemplo desta política é a locomotiva E95, originária da linha do Vouga que veio para o Tua em 1976. Era uma locomotiva-tanque 2-6-0T construída em 1910 em França pela Decauville044.
040
GRILO, 1988-1989: 20. GRILO, 1996a: 8. OLIVEIRA, 1991: 21.
041
OLIVEIRA, 1991: 21. VICENTE, 2010: 93.
042
GRILO, 1988-1989: 36. OLIVEIRA, 1991: 29.
043
OLIVEIRA, 2010: 71-72.
044
Arquivo histórico da CP. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Divisão de Material e Tracção. 1.ª Zona. Locomotivas de vapor de via estreita. Esquemas e principais características. [S. l.]: [s. n.], [s. d.]. DAVIES, 1998: 199-200. OLIVEIRA & MARQUES, 1988: 34. PEDREIRA, 1991: 15.
318
125 anos de exploração
Figura 128 – Locomotiva E95, antiga VV2 do vale do Vouga045
Também algumas Mallet 0-4-0T, provenientes das antigas linhas do estado do Tâmega, Corgo e Sabor vieram para o Tua em 1975/1976. As Mallet eram locomotivas com rodados agrupados em dois bogies, um fixo e o outro articulado, o que, aliado à maior potência dos seus motores de dupla expansão, permitia uma melhor adaptação a vias mais curvilíneas046. Pelo menos as máquinas E163, E165, E166, E167, E169 e E170 (antigas MD403, MD405, MD406, MD407, MD409 e MD410 e futuras 3-069163-170) arribaram ao Tua, onde trabalharam até ao fim do vapor nesta linha. Faziam parte de uma série de locomotivas comprada à Henschel & Sohn entre 1905 e 1909047. O fim do vapor no Tua só seria precipitado em meados da década de 1970 pela introdução de locomotivas diesel-eléctricas na linha. Em 1974-1975, a CP adquiriu seis locomotivas usadas Alsthom (construídas em 1959) à empresa que geria o caminho-de-ferro de Tajuña, perto de Madrid, razão pela qual estas máquinas ficaram conhecidas como espanholas048. Eram máquinas Bo-Bo, com quatro eixos em dois 045
DAVIES, 1998: 190.
046
LUNA, 2003: 6. OLIVEIRA, 2010: 59.
047
Arquivo histórico da CP. Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Divisão de Material e Tracção. 1.ª Zona. Locomotivas de vapor de via estreita. Esquemas e principais características. [S. l.]: [s. n.], [s. d.]. Trainspotter, n. 15 (2011): 29. CATALO, 1990: 15. DAVIES, 1998: 144-145.
048
Arquivo histórico da CP. CP. Direcção Industrial. Serviço de Programação e Controlo. Inventário do material circulante. Situação referida a 31/12/1985. [S. l.]: CP, 1985. GRILO, 1997: 18. MU OZ RUBIO, 2005, vol. 1:
319
A linha do Tua (1851-2008)
bogies individuais, todos ligados aos seus próprios motores de tracção049. Chegaram a Portugal pintadas de azul, branco e cinzento050, mas foram redecoradas com o tradicional laranja escuro com riscas brancas diagonais na frente, castanho na cabine e o logotipo da CP em preto nos flancos. Foram também renumeradas com os n.ºs 9001 a 9006. Inicialmente cinco destas máquinas foram colocadas nas linhas do Tua e do Corgo, sendo depois reescalonadas para as linhas do Tâmega, Vouga e Porto051. Figura 129 – Locomotiva E166 na estação do Tua052
A CP ficou tão satisfeita com o desempenho destas máquinas que decidiu encomendar 11 novas locomotivas à Alsthom em 1976. Este lote tornou-se a série 9020/9030, com uma numeração entre o 9021 e 9031053. Funcionaram algum tempo na linha do Porto à Póvoa, tendo algumas delas vindo para o Tua054. As Alsthom trabalharam na rede nacional até meados da década de 1990/inícios do século XXI, sendo depois vendidas a diversos operadores africanos055. Trabalhavam sobretudo com as carruagens 445-449. 049
Maquetren, n. 42: 15-18. ALMEIDA, 2000: 17-18. DAVIES, 1998: 213.GOMES & GOMES, 2006: 159.
050
MARQUES, 1986: 22. PATULEIA, 1998: 21.
051
VAZ, 1988: 44. VICENTE, 2010: 95.
052
INK ORTH, 2006: 35.
053
DAVIES, 1998: 213.
054
DIOGO, 1993: 22. GRILO, 1997: 19. MARQUES, 1992: 19.
055
GRILO, 1996b: 4. GRILO, 1997: 18. VICENTE, 2010: 95.
320
125 anos de exploração
napolitanas vindas das linhas do litoral para o Tua em meados da década de 1970. Figura 130 – Duas locomotivas da série 9000 e 9020/30056
A chegada destas máquinas nos anos 1970 levou à progressiva obsolescência dos seus antepassados a vapor. Em 1979, somente seis destas máquinas permaneciam no Tua: a E52, a E55, a E81, a E82, a E95 e a E114. Seis anos depois, em 1985, só quatro locomotivas se encontravam ainda ao serviço057. Em 1989, pelo menos a E114 ainda estava operacional, tendo realizado no mínimo uma viagem turística pelo vale do Tua058. O destino final das locomotivas que operaram no Tua foi diverso: ao passo que a E51, E53, E84 e E85 foram demolidas entre 1979 e 1985 e a E56 e a E112 alhures depois de 1986, a E52, E55, E83, E86, E111, E114, E163 e E167 foram preservadas em museus após a sua retirada de serviço: a E52 em Bragança e depois em Macinhata, a E55 também em Bragança, a E83 em Lousado, a E86 em Macinhata, a E111 primeiro em Bragança e depois em Macinhata, a E114 em Bragança, a E163 primeiro em Estremoz e depois no Entroncamento e a E167 em Lousado e mais tarde Arco de Baúlhe. A E53 foi colocada num pedestal na quinta do Santoinho, a E95 foi vendida para Espanha em 1979 para serviços turísticos, a E113 foi reparada em Guifões e armazenada em Sernada do Vouga, a E165 foi guardada em Livração, a E169 foi colocada num pedestal em Vila Real, enquanto a sua irmã E170 está a apodrecer na estação do Tua. O paradeiro da E166 é desconhecido, se bem que se saiba que estava a enferrujar no Tua em 1988/1992. Quanto à E81 e E82, foram usadas como fornecedoras de peças, mas a E82 acabou no museu de Bragança, onde ostenta orgulhosamente o N1059. 056
DAVIES, 1998: 284. Trainspotter, n.º 18: 17.
057
Arquivo histórico da CP. CP. Direcção Industrial. Função Material. Inventário do Material Circulante. Situação referida a 31/12/79. [S. l.]: CP, 1979. CP. Direcção Industrial. Serviço de Programação e Controlo. Inventário do material circulante. Situação referida a 31/12/1985. [S. l.]: CP, 1985.
058
Bastão-Piloto, n.º 103 (Julho 1989): 12; n.ºs 113-114 (Maio-Junho 1990): 24. DIOGO, 1993: 22.
059
Arquivo histórico da CP. CP. Direcção Industrial. Serviço de Programação e Controlo. Inventário do material
321
A linha do Tua (1851-2008)
Com a chegada das Alsthom, as Allan começaram também a ser transferidas para outras linhas designadamente para o Vouga060. Por volta de 1985, a CP só contava com quatro exemplares desta série 9300: 9301, 9303, 9308 e 9310. A automotora 9302 e a 9304 foram abatidas devido a incêndio em 1980 e 1984, respectivamente; as 9305 e 9307 foram guardadas em Sernada do Vouga; a 9306 foi transformada em comboiosocorro (embora alguns autores digam que ela foi destruída num incêndio em 1988061); e a 9309 foi destruída num incêndio em 1972 no Tua após colisão com a locomotiva E112062. As quatro sobreviventes foram renovadas com motores Volvo (1987), novos exteriores e novos interiores063. Foram mantidas em operação até 2001 quando foram armazenadas em Sernada do Vouga. Mais tarde, a 9301 foi vendida ao museu ferroviário do País Basco, a 9308 foi destruída num incêndio e a 9310 foi restaurada em Guifões, encontrando-se actualmente em exposição no Museu Nacional Ferroviário no Entroncamento064. Em 1980, a CP empreendeu novo processo de modernização do seu material circulante, adquirindo dez conjuntos usados de unidades quádruplas motorizadas a diesel aos caminhos-de-ferro jugoslavos. Eram unidades fabricadas entre 1963 e 1969 em Brod pela Duro Dakovic para efectuar serviço nas linhas de via estreita (760 mm) da Herzegovina, Sérvia e Dalmácia. Tinham sido bastante bem sucedidas, conseguindo melhorar (e substituir) o serviço prestado pelo vapor e diminuir os tempos de viagem com as suas velocidades máximas de 60 km/h em linhas com rampas até 25 mm/m. Apesar disto, as autoridades jugoslavas decidiram encerrar algumas destas linhas de via estreita e as Duro Dakovic passaram a ter como destino a sucata ou a reconversão para bitola de 1,44 m até que a CP apareceu com uma proposta de compra065. Chegaram a Portugal em 1980, tornando-se na série 9700 ou jugoslavas. Foram pintadas de vermelho e branco com tecto castanho e (mal) adaptadas à bitola métrica. Depois de alguns testes na rede centrada no Porto, foram enviadas para as linhas do
circulante. Situação referida a 31/12/1985. [S. l.]: CP, 1985. Bastão-Piloto, n.º 92 (Agosto 1988): 41. BastãoPiloto, n.s 113-114 (Maio-Junho 1990): 24; n. 169 (Janeiro 1995): 13 e 20. Trainspotter, n. 15 (2011): 29. BONIF CIO, 1993: 15. DAVIES, 1984: 2, 23 e 24. DAVIES, 1998: 91-95. DIOGO, 1993: 22. FERREIRA, 1988: 27-28. GRILO, 1997: 19. MARQUES, 1989: 24 e 36. MARQUES, 1992: 13. PEDREIRA, 1991:8, 10, 13 e 16. 060
Trainspotter, n. 17 (2011): 11. GRILO, 1988-1989: 16 e 36. GRILO, 1988: 56.
061
GRILO, 1988-1989. OLIVEIRA, 1991: 29.
062
GRILO, 1988-1989: 15-16. OLIVEIRA, 1991: 29.
063
GRILO, 1988: 56. GRILO, 1988-1989: 18. OLIVEIRA, 1991: 27.
064
Arquivo histórico da CP. CP. Direcção Industrial. Serviço de Programação e Controlo. Inventário do material circulante. Situação referida a 31/12/1985. [S. l.]: CP, 1985. CP. Direcção de Material. Gabinete Técnico. Automotoras, autocarros e barcos. Lisboa: CP, [s. n.]. Trainspotter, n. 17 (2011): 11. NUNES et al., 2008.
065
GRILO, 1988-1989: 17. GRILO, 1989: 6. GRILO, 1996a: 6.
322
125 anos de exploração
Vouga, Tua (pelo menos as automotoras 9721, 9727, 9729, 9731, 9732 e 9737066), Corgo e Tâmega. Infelizmente, os motores FIAT davam muitos problemas, bem como a transmissão, a suspensão, as portas automáticas e as tubagens dos sistemas hidráulicos067. Os conjuntos foram alterados para unidades triplas e unidades duplas, mas nada disto resolveu aqueles problemas. Por tudo isto as Duro Dakovic foram alcunhadas de Xepas, em homenagem a Dona Xepa, uma personagem coxa de uma telenovela brasileira com o mesmo nome068. No Tua, as Xepas foram sucessivamente remendadas com peças das unidades encostadas no sentido de lhes prolongar a vida útil e melhorar as condições de utilização069. Apesar disto, o seu desempenho não melhorou sobremaneira, pelo que foram paulatinamente encostadas em favor das locomotivas das séries 9000 e 9020-9030. Em 1990, no Tua, já só circulava este material, tendo as Xepas sido transferidas para o Vouga070. Figura 131 – Esquema das automotoras da série 9500071
066
DIOGO, 1993: 22.
067
GRILO, 1989: 7-11 e 15.
068
GRILO, 1988-1989: 17. GRILO, 1989: 7-8. GRILO, 1996a: 6. NUNES et al., 2008.
069
GRILO, 1989: 11-15.
070
DAVIES, 1998: 280. GRILO, 1988-1989: 17. GRILO, 1996a: 7. NUNES et al., 2008. MARQUES, 1992: 14.
071
GRILO, 1996b: 5.
323
A linha do Tua (1851-2008)
Algumas das Xepas deram origem à série 9400, que por sua vez serviu de corpo em 1995 à criação dos LRV2000 ou série 9500072. Foram construídos nove veículos desta série na EMEF. As carroçarias tornaram-se mais altas e mais modernas, com grandes superfícies vidradas, assemelhando-se a um autocarro de passageiros. Podiam circular isoladamente ou em unidades duplas073. Depois de alguns testes nas linhas da Póvoa e de Guimarães, foram espalhados pelas linhas do Tâmega, Corgo e Tua, ao serviço do metro de superfície de Mirandela (veículos 9503 a 9506, respectivamente Lisboa, Bruxelas, Paris e Estrasburgo). Especificamente para o Tua, foram pintados em verdeclaro e bege074. A principal consequência da sua chegada foi a retirada das carruagens napolitanas. Já no século XXI, os LRV passaram a fazer serviço em toda a linha do Tua (até Mirandela), sendo em duas destas viagens que o Lisboa e o Bruxelas se envolveram em acidentes em 2007 e 2008, algo que levaria ao encerramento da linha entre FozTua e Cachão. Actualmente, somente o Paris e o Estrasburgo operam no serviço de metro ligeiro de Mirandela.
072
GOMES & GOMES, 2006: 195-196. GRILO, 1996b: 4 e 9. NUNES et al., 2008.
073
GRILO, 1996b: 5.
074
FERREIRA, 2013: 13-14.
324
125 anos de exploração
5.2. DA COMPANHIA NACIONAL À CP Eduardo Beira075
Os primeiros anos do século XX foram marcados por um aumento da procura e consequentemente do tráfego ferroviário. Entre 1895 e 1913 a distância anual percorrida por comboios em Portugal mais do que duplicou, de pouco mais de 3 milhões de km naquele primeiro ano para pouco menos de 7 milhões no segundo076. Em 1902, pela primeira vez, o caminho-de-ferro em Portugal ultrapassou a fasquia dos 3 milhões t de mercadorias transportadas (mais precisamente 3.445.000 t). Até 1916, os volumes transportados cresceram para lá da 6.500.000 t077. A linha do Tua reflectiu parcialmente este comportamento, como se pode ver nos gráficos seguintes. No Tua, o crescimento no transporte de passageiros e mercadorias foi paulatino desde finais da década de 1890 (com maior flutuação no caso das mercadorias). No entanto, a quebra no transporte de mercadorias (a partir de 1910) foi mais precoce do que no transporte de pessoas (em 1915). Em termos de receita bruta real (a preços constantes), a Companhia Nacional conheceu um período áureo no segundo lustro da primeira década do século XX (graças sobretudo ao transporte de mercadorias, na secção até Mirandela e aos serviços de bens e passageiros na secção de Bragança). A abertura da linha de Bragança contribuiu para este bem-estar económico, no entanto a própria via original de Foz-Tua a Mirandela registou também ela um significativo aumento da receita bruta. 075
IN Center for Innovation, Technology and Policy Research (Instituto Superior Técnico).
076
SANTOS, 2010: 149. SANTOS, 2011: 172.
077
VALÉRIO, 2001: 373.
325
A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 6 – Evolução do número de passageiros/ano nas linhas de Mirandela e Bragança078
Gráfico 7 – Evolução do volume de mercadorias transportadas nas linhas de Mirandela e Bragança079
078
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
079
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
326
125 anos de exploração
Gráfico 8 – Receita bruta do transporte de passageiros e mercadorias nas linhas de Mirandela e Bragança a preços correntes080
Gráfico 9 – Receita bruta do transporte de passageiros e mercadorias nas linhas de Mirandela e Bragança a preços constantes de 1914081.
080
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
081
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
327
A linha do Tua (1851-2008)
Em virtude do aumento de procura verificado, foram realizados alguns melhoramentos nas linhas. Nas vias-férreas do estado, os troços de tráfego mais intenso (entre o Barreiro e Vendas Novas e entre Porto e Ermesinde) foram renovados e duplicados. Compraram-se também novas locomotivas e fabricaram-se novas carruagens e vagões. A CP conseguiu duplicar troços, instalar novos sistemas de sinalização, melhorar estações e obras de arte e adquirir material circulante. Nos caminhos-de-ferro das demais companhias também se realizaram alguns investimentos, sobretudo ao nível dos edifícios das estações e da renovação da via082. A implantação da república em 1910 levantou alguns obstáculos à exploração ferroviária em Portugal. Da mudança de regime resultou um aumento significativo da inflação, que veio acompanhada pelas reivindicações dos ferroviários nacionais, que encontraram no poder um apoio que nunca antes haviam usufruído. As greves sucederam-se até 1911, paralisando toda a rede. Da luta resultou um aumento dos benefícios dos trabalhadores083. Coincidentemente, foi a partir daquele ano que a receita bruta da Companhia Nacional passou a decrescer continuamente. Contudo, o maior desafio enfrentado pelos caminhos-de-ferro portugueses e europeus foi trazido pela primeira guerra mundial. O conflito pôs fim ao período de prosperidade verificado na primeira década de novecentos e impôs mudanças profundas nos sistemas de mobilidade e transporte. Se por um lado a procura do serviço aumentou (inclusivamente para lá das capacidades de transporte dos caminhos-de-ferro nacionais), os preços dos combustíveis e materiais necessários à exploração também subiram e mais que proporcionalmente. O crescimento da receita não foi capaz de cobrir o incremento das despesas de exploração, o que fez com que as operações ferroviárias entrassem em desequilíbrio económico. As principais companhias viram-se impossibilitadas de suportar integralmente as suas cargas financeiras, enquanto os operadores mais pequenos, como a Companhia Nacional, se viram forçados a suspender a distribuição de dividendos084. No caso da linha do Tua, a guerra afectou minimamente o serviço de passageiros. De facto é em plena guerra que a taxa de ocupação das carruagens da Companhia Nacional na secção de Mirandela ultrapassa os 50% (na linha de Bragança isto já acontecia desde 1911), como se pode observar no gráfico seguinte.
082
SANTOS, 2010: 149. SANTOS, 2011: 173-174.
083
SANTOS, 2011: 174.
084
SANTOS, 2010: 150. SANTOS, 2011: 185-188.
328
125 anos de exploração
Gráfico 10 – Taxa de ocupação dos passageiros nas linhas de Mirandela e Bragança085
Muito maior impacto foi sentido no serviço de mercadorias, que continuou a registar um contínuo e acentuado declínio (que já se fazia sentir desde 1909) até ao fim do conflito. Em termos de receita nominal, esta manteve-se, mas os efeitos da inflação fizeram-se sentir e a receita em termos reais entrou em queda livre (ver gráficos 8 e 9). A percepção deste problema por parte das autoridades portuguesas não foi imediata, sendo encarada como um sintoma de uma crise conjuntural ligada à situação de guerra que então se vivia. Os concessionários acreditavam que um aumento de tarifas podia restabelecer o equilíbrio económico perdido e fazer retornar a exploração ferroviária à prosperidade de início do século. No entanto, em virtude da inexistência de alternativas de transporte credíveis ao caminho-de-ferro, um aumento das tarifas reflectir-se-ia negativamente no nível de vida das populações e na economia em geral, além de ser impopular do ponto de vista político. Por outro lado, a falência das companhias e a paralisação do movimento ferroviário faria colapsar a economia pela mesma razão da falta de alternativas de viação acelerada086. Os governos acabariam por ceder aos argumentos das concessionárias e permitir aumentos sucessivos das tarifas. Estes incrementos eram considerados temporários, 085
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
086
SANTOS, 2010: 150. SANTOS, 2011: 188-189.
329
A linha do Tua (1851-2008)
mas acabaram por ser prorrogados indefinidamente087. A nível social, estes agravamentos estimularam os protestos das populações, que se viam a pagar mais por um serviço que, dias após dia, apresentava menor qualidade. Na tabela e nos gráficos seguintes, pode-se perceber que os anos mais próximos do conflito registaram um maior número de incidentes (acidentes, mortos e feridos) nas linhas nacionais. Nos primeiros anos da década de 1920, o número destes incidentes reduziu-se para aumentar novamente a partir do segundo lustro deste decénio. Tabela 5 – Evolução do número de acidentes, feridos e mortos nos caminhos-de-ferro nacionais e na linha do Tua (1917-1928)088 Ano
1917
1918
1919
1920
Linha de Mirandela
Linha de Bragança
Total linha do Tua
% linha do Tua
Evento
Total da rede
Acidentes
2.038
8
5
13
0,64%
Feridos
1.698
4
3
7
0,41%
Mortos
47
0
0
0
0,00%
Acidentes
2.504
9
8
17
0,68%
Feridos
1.704
4
5
9
0,53%
Mortos
84
1
0
1
1,19%
Acidentes
2.020
2
5
7
0,35%
Feridos
1.355
0
1
1
0,07%
Mortos
97
0
1
1
1,03%
Acidentes
1.261
0
1
1
0,08%
Feridos
1.085
1
1
2
0,18%
Mortos
122
1
1
0,82%
087
SANTOS, 2010: 150.
088
Anuario Estatistico de Portugal, 1917: 128; 1919:110-111; 1921: 276-277; 1923: 184-185; 1924:178-179; 1925: 206-207; 1926: 240-241; 1927: 312-313; 1928: 334-335. Não encontramos mais dados sobre este assunto nos anuários dos anos seguintes.
330
125 anos de exploração
Ano
1921
1922
1923
1924
1925
1926
1927
1928
Linha de Mirandela
Linha de Bragança
Total da rede
Acidentes
1.380
0
1
1
0,07%
Feridos
1.285
1
2
3
0,23%
Mortos
101
1
0
1
0,99%
Acidentes
350
s/d
s/d
s/d
s/d
Feridos
296
s/d
s/d
s/d
s/d
Mortos
71
s/d
s/d
s/d
s/d
Acidentes
664
1
1
2
0,30%
Feridos
406
0
1
1
0,25%
Mortos
90
0
0
0
0,00%
Acidentes
709
1
0
1
0,14%
Feridos
497
1
0
1
0,20%
Mortos
94
0
0
0
0,00%
Acidentes
1.975
2
7
9
0,46%
Feridos
1.952
1
5
6
0,31%
Mortos
92
0
0
0
0,00%
Acidentes
2.544
0
0
0
0,00%
Feridos
2.418
0
0
0
0,00%
Mortos
75
0
0
0
0,00%
Acidentes
774
0
0
0
0,00%
Feridos
2.876
0
1
1
0,03%
Mortos
134
0
0
0
0,00%
Acidentes
920
0
0
0
0,00%
Feridos
2.389
1
8
9
0,38%
Mortos
146
0
2
2
1,37%
331
Total linha do Tua
% linha do Tua
Evento
A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 11 – Acidentes registados na rede geral e na linha do Tua089
Gráfico 12 – Feridos registados na rede geral e na linha do Tua090
089
Anuario Estatistico de Portugal, 1917: 128; 1919:110-111; 1921: 276-277; 1923: 184-185; 1924:178-179; 1925: 206-207; 1926: 240-241; 1927: 312-313; 1928: 334-335. Não encontramos mais dados sobre este assunto nos anuários dos anos seguintes.
090
Anuario Estatistico de Portugal, 1917: 128; 1919:110-111; 1921: 276-277; 1923: 184-185; 1924:178-179; 1925: 206-207; 1926: 240-241; 1927: 312-313; 1928: 334-335. Não encontramos mais dados sobre este assunto nos anuários dos anos seguintes.
332
125 anos de exploração
Gráfico 13 – Mortos registados na rede geral e na linha do Tua091
Contudo, os aumentos das tarifas não impediram que várias empresas, entre as quais a Companhia Real e a Companhia Nacional, decretassem a suspensão de pagamento de dividendos. Rapidamente se entendeu que a medida não era uma solução praticável. Pensou-se então em diminuir o peso dos obrigacionistas estrangeiros na gestão da ferrovia em Portugal, designadamente na gestão da CP. Em 1918, o parlamento aprovou uma lei que permitia ao estado reforçar a sua posição accionista na CP e tornar-se o principal detentor de ações da companhia092. Entretanto, o fim da guerra não trouxe o desejado regresso ao período de vacas gordas de inícios do século XX. As dificuldades resultavam agora da depreciação do escudo. Uma vez que o combustível e demais materiais para a operação ferroviária eram comprados no estrangeiro, a desvalorização do escudo traduziu-se num aumento dos custos operacionais (uma tonelada de carvão que custava 5 escudos antes da guerra, valia 270 escudos depois do fim do conflito). Simultaneamente, o sindicalismo ferroviário tinha acumulado suficiente poder para impor as suas reivindicações, agravando o estado financeiro das concessionárias. Até 1926 e o advento da ditadura, as greves sucederam-se, algumas das quais com excepcional duração e violência. O serviço prestado deteriorava-se e os governos tomaram consciência de que a sua regularização (e ainda o aumento da rede) não passaria pela iniciativa privada, mas sim pelo estado. As principais companhias ferroviárias (Companhia Real e Companhia da Beira Alta) 091
Anuario Estatistico de Portugal, 1917: 128; 1919:110-111; 1921: 276-277; 1923: 184-185; 1924:178-179; 1925: 206-207; 1926: 240-241; 1927: 312-313; 1928: 334-335. Não encontramos mais dados sobre este assunto nos anuários dos anos seguintes.
092
SANTOS, 2011: 190-195.
333
A linha do Tua (1851-2008)
viviam em regime de convénio e nem podiam pensar em distribuir dividendos aos accionistas, quanto mais melhorar o serviço ou alargar as suas concessões. Empresas mais pequenas como a Companhia Nacional também se encontravam sob os efeitos de concordatas com os credores e nem sempre conseguiam remunerar os detentores das suas acções. Além do mais os valores reais dos subsídios garantidos pelo estado afundaram-se pelo efeito da inflação. A preocupação dos executivos centrou-se então em chegar a um novo ordenamento do sector, que unificasse a malha férrea sob menos entidades, no sentido de diminuir os custos de exploração, uma medida preceituada também em outros países europeus093. Apesar do aumento da receita real experimentado pela Companhia Nacional no pós-guerra, o aumento mais que proporcional dos custos de exploração colocaram-na numa situação financeiramente difícil. Como se pode ver nos gráficos seguinte, o lucro operacional após 1918 atingiu valores de finais do século XIX. Mas ao passo que neste período, a garantia de juro complementava robustamente o lucro operacional da empresa, na década de 1920, o valor real do subsídio era irrisório em virtude de este não acompanhar a evolução da inflação. Se a isto juntarmos os custos financeiros da companhia, compreendemos que a sua situação financeira estava longe de ser saudável. Gráfico 14 – Lucro operacional e garantia de juro das linhas próprias (Tua e Viseu/Dão) e das linhas arrendadas (Corgo e Sabor) da Companhia Nacional, a preços constantes de 1914094
093
SANTOS, 2011: 203-206, 213, 221 e 231.
094
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
334
125 anos de exploração
Gráfico 15 – Lucro líquido da Companhia Nacional, a preços constantes de 1914095
Em finais de 1919, o governo nomeou uma comissão para analisar o problema ferroviário. O plano delineado consistia em resgatar todos os caminhos-de-ferro e agrupá-los juntamente com os do estado sob a tutela de uma entidade única, que se encarregaria da exploração integral da rede. Com a redução dos custos permitida por esta medida, seria teoricamente possível melhorar o serviço e ampliar a quilometragem de ferrovias em Portugal. Porém, este plano enfrentava sérias dificuldades ligadas aos aspectos burocráticos dos resgates e ao volumoso capital que o estado teria que despender para os levar a cabo. A própria redução de custos preconizada poderia esbarrar na uniformização salarial dos funcionários das diversas companhias, que teria que ser feita pelos valores salariais mais altos096. A solução passou assim pela continuação da aplicação de sobretaxas sobre as tarifas, feita em moldes legais que não agravasse financeiramente o futuro resgate das linhas. O produto destes incrementos tarifários não seria tomado em conta na altura de calcular a anuidade a pagar em consequência do resgate e deveria ser aplicado à cobertura do défice de exploração e dos encargos financeiros, ficando o remanescente para o estado. Obviamente, as concessionárias não viram esta medida com bons olhos e até 1926 desenvolveram uma relação algo conflituosa com o estado. Em suma, começou-se a perceber que o plano de concentração da exploração tal como visionado até então não era praticável. Iniciou-se também o desenho de outra estratégia que passava pelo resgate das companhias mais pequenas e da linha da Beira 095
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
096
SANTOS, 2010: 153. SANTOS, 2011: 208-212.
335
A linha do Tua (1851-2008)
Alta e pela sua entrega, juntamente com os caminhos-de-ferro do estado, à CP097. Inicialmente, porém, acordou-se a manutenção das concessões e das companhias privadas, as quais seriam auxiliadas pelo estado através da aquisição de mais material circulante. As indemnizações devidas pela Alemanha a Portugal na sequência da sua derrota na primeira guerra mundial, que podiam ser pagas em material ferroviário, constituíram uma excelente oportunidade para pôr este plano em prática. Em troca, as companhias reconheciam a existência de um capital público, que podia ser remunerado e que podia ser descontado em caso de resgate antecipado da concessão098. Isto não afastou da ordem do dia o projecto de concentração da rede ferroviária nacional. Aliás, o congresso económico de Coimbra, realizado em 1922, confirmou que essa ideia não tinha sido excluída do debate, mas tinha sido depurada da necessidade de resgate das concessões por parte do estado. Era substituída por uma hipotética cooperação entre os poderes públicos e as companhias privadas e uma fusão voluntária destas numa só entidade, a quem seriam entregues as ferrovias públicas e privadas. Ademais, preconizava-se uma fusão selectiva conforme os caminhos-de-ferro fossem de via larga ou estreita099. Entretanto, os deficits das linhas nacionais agudizavam-se sem que os sucessivos aumentos das tarifas tivessem consequências reais. No início da década de 1920, o estado gastava 25 mil contos com as suas linhas: 12 mil para salários e 13 mil para cobrir o deficit de exploração. Só em 1921, a CP computava um deficit de 11.865 contos, aos quais se juntavam 6.953 dos exercícios anteriores100. Até finais de 1923, Portugal não conseguiu implementar mais que medidas circunstanciais para resolver o problema ferroviário. Estas medidas permitiram manter o serviço, se bem que com várias deficiências, mas ao mesmo tempo iam desgastando a fazenda pública, não se constituindo por isso como uma solução viável a médio e longo prazo. Só a partir de 1924 se começaram a estudar medidas destinadas a suprir as falhas estruturais do sector ferroviário nacional. Neste ano, foi nomeada uma comissão encarregada de determinar as melhorias a introduzir-se nos caminhos-de-ferro do estado no sentido de aumentar a qualidade do serviço. A comissão concluiu que a melhor solução era arrendar as linhas públicas a privados, algo que, porém, só seria possível se se alcançassem níveis de reorganização mínimos. Para os alcançar foi encarregado o engenheiro Pinto Teixeira, nomeado administrador geral dos caminhosde-ferro do estado101. 097
SANTOS, 2010: 150. SANTOS, 2011: 214 e 216-217.
098
SANTOS, 2011: 223-224
099
SANTOS, 2011: 226-230.
100
SANTOS, 2011: 231 e 234.
101
SANTOS, 2011: 235 e 278.
336
125 anos de exploração
Neste ano e nos seguintes, a moeda nacional conheceu uma valorização, o que teve como consequência uma diminuição do preço do carvão e dos materiais para a exploração. Simultaneamente, o volume de tráfego aumentou e as próprias companhias começaram a produzir internamente aquilo que usualmente importavam. Em 1925, inaugurou-se também a linha do Sado, que encurtou sobremaneira a viagem entre Lisboa e o Algarve. Com a chegada de novo material circulante alemão (à laia de compensação de guerra), o serviço prestado aumentou de qualidade. Tudo isto permitiu aos caminhos-de-ferro portugueses passar por um período de alguma recuperação económica102. Com o golpe de estado de 28 de Maio de 1926, que instaurou uma ditadura militar em Portugal, foram retomados os esforços de agrupamento das diferentes vias-férreas numa só entidade, que no fundo punham em prática a principal conclusão do relatório elaborado em 1924 (arrendamento das linhas do estado). O primeiro passo foi tomado no sentido de fundir as companhias de Guimarães e do Porto à Póvoa e Famalicão na recém-criada Companhia dos Caminhos de Ferro do Norte de Portugal. Ao mesmo tempo, o governo ditatorial negociava secretamente com a CP (de quem aliás era o principal accionista), tendo em vista entregar-lhe a gestão de toda a rede nacional, e fazia aprovar leis amplamente favoráveis às empresas ferroviárias. Por seu lado, a CP adquiriu a Companhia do Mondego (do ramal da Lousã) e a Companhia dos Caminhos de Ferro Meridionais (que detinha o ramal de Setil), as quais já dominava financeiramente desde a sua matriz103. Em 1926-1927, o estado colocou em hasta pública o arrendamento das linhas sob sua tutela (Minho, Douro, sul e sueste, de via larga, e Tâmega, Sabor e Corgo, de via estreita). Concorreram sete entidades, mas o contrato foi assinado com a CP (a 11 de Março de 1927). Contudo, perante a alegada falta de vocação da CP para a exploração de caminhos-de-ferro de bitola reduzida, a companhia decidiu subarrendar as linhas do Tâmega, do Corgo e do Sabor. A primeira ficou sob tutela da Companhia do Norte, ao passo que as restantes foram entregues à Companhia Nacional. Ambas as empresas estavam extremamente optimistas com o negócio, no entanto este optimismo era completamente descabido. A CP tinha consciência de que a exploração daqueles caminhos-de-ferro nunca seria remuneradora, pelo que criou a justificação da falta de vocação para os entregar a outrem104. A nível geral, a CP (cujo principal accionista era o estado) ficava com o domínio dos eixos mais importantes da rede, à excepção da linha da Beira Alta105. 102
SANTOS, 2011: 274, 276-277.
103
SANTOS, 2010: 155. SANTOS, 2011: 278-280
104
SANTOS, 2011: 443.
105
SANTOS, 2010: 155. SANTOS, 2011: 282, 284-285 e 288.
337
A linha do Tua (1851-2008)
As medidas da ditadura militar reflectiram-se modestamente no panorama do sector, não se construindo novos caminhos-de-ferro, não se introduzindo melhorias significativas nos já existentes (uma vez que a CP estava ainda sob os efeitos do convénio não podia fazer investimentos nas suas linhas), nem se reduzindo os custos de exploração (pois as explorações das vias da CP e das antigas ferrovias do estado se mantiveram separadas). A única grande conquista desta medida foi a severa repressão dos movimentos sindicais associados à ferrovia. Tudo isto fez com que se começasse a criticar a forma como o arrendamento das linhas públicas fora feito106. Do lado das companhias subarrendatárias das linhas de via estreita do estado, cedo se percebeu o erro que o negócio fora. Na Companhia Nacional, como se pode ver nos gráficos 14 e 15, a exploração dos caminhos-de-ferro do Corgo e do Sabor foi sempre deficitária até 1945, anulando por completo o lucro operacional que a empresa retirava da rede própria. Em consequência os prejuízos acumularam-se até 1945 (à excepção do biénio 1935-1936). Chegadas à década de 1930, as empresas ferroviárias nacionais e europeias tiveram que enfrentar uma dupla ameaça: a crise da economia ocidental e o advento da concorrência automóvel. Em Portugal, a gestão do sector dos transportes foi ainda marcada pela criação da junta autónoma de estradas (em 1927) e por uma maior aposta no desenvolvimento da rede viária, sobretudo a partir de 1930107. Em todo o caso, uma comissão técnica nomeada pelo governo ditatorial tinha uma interpretação diferente da relação entre caminho-de-ferro e estrada. Para estes técnicos, os automóveis destinavam-se a servir percursos curtos e a transportar cargas mais reduzidas, enquanto os comboios estavam vocacionados para distâncias mais longas e para o transporte de grandes volumes. Além do mais, em zonas de baixa densidade populacional, a estrada teria supremacia face à ferrovia. Em suma, o relatório final considerava que o automóvel não era concorrente, mas sim complementar ao caminho-de-ferro. A comissão era composta por homens prestigiados, mas cuja formação era tipicamente do século XIX. Gerações de técnicos mais novas preferiam que o investimento se direcionasse para os principais eixos ferroviários já existentes e para a construção de estradas em vez de novos caminhos-de-ferro. Fosse como fosse, a verdade é que em 1930 foi aprovado um novo plano ferroviário que praticamente duplicava a rede ferroviária nacional e que incluía linhas cuja racionalidade do investimento era muito duvidosa em face do desenvolvimento da tecnologia automóvel108.
106
SANTOS, 2010: 155. SANTOS, 2011: 302, 305 e 385.
107
SANTOS, 2011: 367, 383 e 408.
108
SANTOS, 2011: 336-341.
338
125 anos de exploração
Mapa 28 – O plano ferroviário de 1930109
De facto, a este plano ferroviário respondia o engenheiro Jales de Guimarães que “aconselhar a construção de 1.726 quilómetros de via larga e 2.077 de via reduzida num momento em que o tráfego automóvel está tomando um extraordinário desenvolvimento e provocando quebras importantes nas receitas das linhas férreas existentes
109
Gazeta dos Caminhos de Ferro, n.º 1167, 1.8.1936: 405.
339
A linha do Tua (1851-2008)
não me parece o melhor processo de servir o interesse colectivo”110. O governo da ditadura concordava. Na verdade, os efeitos do plano de 1930 foram nulos e as prioridades do investimento do estado incidiram sobre portos e estradas. As linhas construídas até 1950 tinham sido decretadas muito antes do advento da ditadura. Paralelamente, a rede viária nacional – de custos fixos e variáveis mais baixos – crescia robustamente. Entre 1925 e 1950 a extensão das estradas nacionais (não se incluem estradas distritais, nem municipais, nem de serviço) aumentou mais de 3 mil km, de 13.388 km no primeiro ano para 16.746 km no segundo, o que corresponde a um aumento de cerca de 25%. No mesmo período, a rede ferroviária cresceu apenas 200 km111. Nos distritos de Trás-os-Montes (Vila Real e Bragança), havia 806 km de estradas nacionais em 1917; em 1925, esse valor subira apenas 33 km para 839 km; em 1930 nota-se já um incremento substantivo na extensão da rede rodoviária nacional na província para 1.289 km (estradas nacionais de primeira e segunda classe); por fim em 1950, a soma da extensão das estradas nacionais em Bragança e Vila Real era de 1.718 km, valor mais que duplo do de 1925112. Através da análise do número de veículos automóveis registados anualmente em Portugal, em especial a partir de 1927, tem-se também uma clara percepção das palavras de Jales Guimarães e da profunda alteração que se iria sentir no quadro da mobilidade nacional. Em 1920, estavam registados em Portugal 5 a 7 mil veículos automóveis, mas em 1930 esse valor ascendia a 34-37 mil113. Só os veículos de transporte público rodoviário, combinados com as estradas, serviam uma extensão de 7.963 km em 1930. Em 1950, 1.876 veículos serviam pouco menos de 13 mil km. Isto contra os cerca de 3.500 km de linhas-férreas em operação no mesmo período. Em 1935, nos transportes rodoviários viajaram cerca de 11 milhões de passageiros. A ferrovia no mesmo ano transportou 25 milhões de pessoas. Em 1950, a diferença no transporte de passageiros entre estrada e caminho-de-ferro diminuiu: 31 e 44 milhões, respectivamente. Quanto ao valor do transporte de mercadorias, em 1930, os comboios nacionais transportaram mais de 8 milhões t de bens. Era o valor mais alto de sempre (que só seria superado na década de 1990). No entanto, até ao deflagrar da segunda guerra mundial o valor flutuou entre as 4 e as 7 milhões t. Depois do conflito o transporte de mercadorias por caminho-de-ferro entrou em declínio só superando a fasquia dos 4 milhões t por uma vez (em 1956) até à década de 1970114. Já os camiões conheceram 110
Apud. SANTOS, 2011: 342.
111
SANTOS, 2011: 418. VALÉRIO, 2001: 363-364 e 374-375.
112
Anuario Estatístico de Portugal, 1917: 112; 1925: 196; 1950: 211.
113
GOMES, 2014. VALÉRIO, 2001: 366.
114
VALÉRIO, 2001: 369 e 374-375.
340
125 anos de exploração
um extraordinário desenvolvimento da sua actividade: se em 1934 carregaram apenas 550 t de mercadorias, seis anos depois transportaram mais de 4 mil t115. Ademais, os novos serviços de transporte rodoviário não procuraram as áreas não servidas de caminhos-de-ferro, mas sim as regiões de maior densidade populacional e procura, entrando assim em concorrência directa com a ferrovia. O sector rodoviário era ferozmente concorrencial (sobretudo após a introdução dos motores diesel116) por estar assente em pequenas empresas mais pequenas, requerendo menor investimento, e por não estar onerado com custos fixos muito elevados. Não tinha a seu cargo a responsabilidade da infra-estrutura, nem tinha as obrigações que o estado impunha ao transporte por caminho-de-ferro. Este facto, derivado da falta de regulamentação legal sobre o sector das rodoviárias, comprova também que o caminho-de-ferro não conseguiu satisfazer integralmente a procura de transporte, ou por falta de capacidade ou por falta de qualidade do serviço prestado. Em consequência, as receitas flutuavam no sentido descendente e eram acompanhadas de agravamentos sucessivos dos deficits na contabilidade das companhias ferroviárias nacionais (sobretudo a partir de 1930 e por causa da concorrência automóvel). A CP, por exemplo, entrou nesta década em situação deficitária, vivendo desde então com as ajudas do estado, que se intensificaram sucessivamente ao longo dos anos. As concessionárias queixavam-se ao governo desta situação, solicitando medidas no sentido de transformação da relação estrada-caminho-de-ferro numa relação de cooperação, mas o governo só as auxiliava no mínimo do possível para evitar a suspensão do serviço117. Na região servida pela linha do Tua, podemos analisar os dados de Mirandela e freguesias circundantes. A partir da década de 1920, detecta-se no tecido empresarial deste concelho uma variedade de novas companhias e de novos serviços que preanunciavam o futuro. Em 1920, Mirandela já era servida por uma praça de táxis (automóveis de aluguer de Augusto César Ribeiro, Clemente de Sá Pinto e José Maria Teixeira), que faziam concorrência às carreiras diárias de diligência que partiam da princesa do Tua para Chaves, Valpaços e Torre de D. Chama. No resto da região, muitas das ligações eram ainda feitas por diligência118. Porém, em 1930, já existiam carreiras diárias de automóveis para Chaves, Valpaços e Torre de D. Chama, tendo crescido o contingente da praça de carros de aluguer. Naquele ano, a praça era composta por um total de sete alvarás (concedidos a António Joaquim Mota, António Pereira, Artur Pereira, Clemente de Sá Pinto, Empresa de Transportes Mecânicos, João Alves e lvaro Moreno & C.ª). No dealbar da década de 115
SANTOS, 2011: 370.
116
SANTOS, 2011: 519.
117
GOMES, 2014. SANTOS, 2011: 370-371, 375-379, 408-409 e 539-540.
118
GOMES, 2014.
341
A linha do Tua (1851-2008)
1930, a cidade dotara-se de um estabelecimento de venda e reparações de automóveis (a sociedade lvaro Moreno & C.ª acumulava a venda e a reparação de carros com o seu aluguer) e dois postos fixos de venda de gasolina das duas empresas do sector: a Shell (agenciada pela firma Simão Costa & Filho) e a Vacuum Oil (cujo revendedor era a sociedade Rocha & Almeida). Na freguesia de Torre de D. Chama, operava também uma empresa de transportes (a Auto Viação com gerência de António Gonçalves). Pouco menos de dez anos depois, novas companhias de camionagem foram inauguradas em Avidagos (camioneta de aluguer de João Pedro Rafael & Irmão), Lamas de Orelhão (camionetas de passageiros de Agostinho Rafael, Herdeiros) e Torre de D. Chama (garagens de automóveis de Alberto Piloto e da Auto Viação Transmontana, Limitada e transportadoras de mercadorias de Alberto Piloto, António C. Pinheiro, Francisco A. Pinheiro, João B. Miranda e Júlio C. Miranda). Por fim, em 1938, já se tinham estabelecido carreiras regulares entre Mirandela, Murça (e daqui a Vila Real e Alijó), Torre de D. Chama e Chaves e entre o Cachão e a estação do Tua. Neste ano, Mirandela contava com 38 automóveis e 28 veículos pesados119. A nível nacional, a malha de transportes rodoviários (de passageiros, mistos, independentes ou afluentes do caminho-de-ferro, o chamado serviço combinado) cresceu exponencialmente, apresentando novas soluções de transporte, mais rápidas e mais cómodas. Na tabela seguinte podemos observar a evolução da oferta de serviços de transporte rodoviário em Portugal. Observa-se simultaneamente uma diminuição do número de empresas em serviço acompanhada de um aumento do número de rotas efectuadas, o que induz uma forte política de agrupamento no sector120 Tabela 6 – Evolução da organização dos transportes rodoviários em Portugal121 Anos
119
Número de empresas em serviço
Número de carreiras Passageiros
Mercadorias
Total
1933
406
575
03
578
1934
393
581
23
604 689
1935
359
645
44
1936
335
675
44
719
1937
313
689
44
733
1938
300
726
44
770
1939
280
757
41
798
1940
261
760
41
801
Para todos estes dados, ver GOMES, 2014.
120
SANTOS, 2011: 370-371.
121
VIEIRA, 1980.
342
125 anos de exploração
As velocidades comerciais dos comboios rapidamente foram ultrapassadas a partir do momento que a junta autónoma de estradas começou a construir vias adequadas aos novos veículos, preparadas para cargas mais pesadas e com o recurso a soluções de pavimentação mais durável. A infra-estrutura ferroviária só foi modernizada pela ditadura em pequenos troços dos principais eixos de circulação e o material circulante usado nas linhas nacionais na década de 1940 era, na sua maioria, inadequado, pouco cómodo e pouco fiável. No Tua, a maior parte das carruagens eram em madeira e as locomotivas eram as originais a vapor compradas entre as décadas de 1880 e 1910. A camionagem, além de proporcionar a enorme vantagem de ir ao centro das povoações, não tinha classes, nem tinha que lidar com tantos obstáculos burocráticos no transporte de mercadorias como o caminho-de-ferro. A este propósito escrevia Hermínio Soares ainda em 1929: “os prazos de transporte em Caminhos-de-Ferro, não são já tolerados nos tempos actuais. Para a pequena velocidade, estabelece a TG [tarifa geral], que, para os primeiros 125 kms. ou fracção, se contarão 48 horas e 24 para cada 125 kms. mais ou fracção, não se contando os dias da entrega e o da chegada, e se houver transmissões, contar-se-á mais 24 horas para cada uma ou 72 horas se for para linha de bitola diferente! Assim uma mercadoria em pequena velocidade que tenha de percorrer 150 kms. e que tenha uma transmissão, precisa: 1 dia, o da entrega, mais 3 dias para o trajecto, mais 1 dia para a chegada. Ao todo 6 dias! N’um camião faz-se o trajecto, no máximo, em 5 horas!”122. Se juntarmos a estes predicados as tarifas praticadas, percebese a paulatina preferência dos consumidores pelo transporte rodoviário e o consequente agravamento da condição financeira das companhias ferroviárias. Mesmo assim, convém reter, que a Companhia Nacional detinha uma relativa vantagem comparativa por operar num território com uma baixa densidade de infra-estruturas rodoviárias. Na realidade, os transportes rodoviários acumularam-se em torno dos eixos de maior densidade populacional, ou seja Porto e Lisboa123. Assim, feiras, mercados e romarias transmontanas eram o pretexto para a oferta de transportes de passageiros e mercadorias por parte da companhia em concorrência com as empresas de camionagem. Tanto os horários dos comboios como os das empresas de camionagem anunciavam serviços para as feiras de gado de Mirandela de 3, 14 e 25 de cada mês, para os mercados às quartas e domingos e para a grande romaria de Nossa Senhora do Amparo no primeiro domingo de Agosto. A oferta destes serviços repercutia-se ao nível das freguesias do concelho124. Os gráficos 6 e 7 mostram que a quebra sentida pela Companhia Nacional no transporte de passageiros e mercadorias na viragem da década de 1920 para a década de 1930 foi real, mas muito ligeira. 122
Apud. SANTOS, 2011: 382.
123
SANTOS, 2011: 372-374.
124
GOMES, 2014.
343
A linha do Tua (1851-2008)
De qualquer modo, em meados da década de 1930, a Companhia Nacional apresentava uma situação “pouco satisfatória... diremos mesmo um tanto crítica”125. Em 1931, a empresa solicitava ao governo autorização para aumentar as tarifas, argumentando que, graças à concorrência rodoviária, perdera 351 contos entre Janeiro e Outubro de 1931 e contava perder um total de 470 contos até final do ano126. A situação, que o conselho de administração atribuía também ao nefasto contrato de subarrendamento das linhas do estado em 1928 (cujos custos eram quatro a nove vezes superiores às receitas127), levava a empresa a acumular deficits, malgrado a aplicação de sobretaxas nas tarifas. A companhia procurou imputar os prejuízos ao estado, alegando que as perdas resultavam de causas de força maior alheias à vontade da direcção (o automóvel) e ameaçando com a suspensão da exploração. Em 1932, o tribunal arbitral condenou o estado a pagar 70% das perdas sofridas entre 1929 e 1931, mas esta sentença não foi aplicada para lá deste último ano128. No entanto, o problema não se limitava apenas aos antigos caminhos-de-ferro do estado, pois a partir de 1937 a rede própria (linhas de Viseu/Dão e Tua) começou também a apresentar deficits de exploração. Nesta época, perante a panóplia de adversidades proporcionada pela concorrência da camionagem e pela alta dos preços do carvão e dos materiais subsidiários (e até pelo desenvolvimento da rede telefónica, que fazia com que muitas viagens fossem substituídas por meros telefonemas129), a Companhia Nacional, à semelhança de outros operadores ferroviários130, ensaiou as primeiras medidas de exploração económica. Este modelo de gestão foi uma solução praticada em linhas de baixo trânsito, que incluía decisões como a simplificação dos regulamentos, a alteração da gestão do tráfego (o avanço do comboio era dado pelo condutor em vez de pelo chefe da estação), a supressão de comboios mistos, a introdução de automotoras, o desguarnecimento de estações, os despedimentos, as baixas salariais e os cortes na despesa de manutenção131. A partir de 1935, fizeram-se cortes no pessoal dos partidos da conservação, o que na prática levou a que a manutenção fosse feita parcialmente. Em situações de reparações imprevistas, recorria-se à contratação de tarefeiros. O desinvestimento na manutenção da linha trouxe problemas acrescidos até pela própria natureza do caminho-de-ferro. Com o sistema de balastragem adoptado (em 125
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1935: 5.
126
SANTOS, 2011: 414.
127
SANTOS, 2011: 444.
128
SANTOS, 2011: 441-443.
129
SANTOS, 2011: 442.
130
SANTOS, 2011: 409.
131
GOMES, 2014.
344
125 anos de exploração
banqueta, rasando a cabeça do carril), acentuava-se o ataque do balastro (terra e saibro) aos materiais metálicos da via, incluindo carris, material de ligação (eclisses), tirefonds e os respectivos parafusos de fixação132. Outra lacuna na manutenção relacionava-se com a necessidade não completamente suprida de substituir periodicamente as travessas (chulipas). Em termos gerais as chulipas de pinho eram utilizadas nos alinhamentos rectos, ao passo que as travessas de carvalho e eucalipto eram usadas nas curvas, cruzamentos e pontes. Todas elas tinham que ser creosotadas, ou seja, colocadas em estufas e impregnadas de creosote para resistirem por mais tempo às intempéries. Em 1946, existia uma instalação de creosotagem em Mirandela, ainda que deteriorada133. Ao nível dos carris, desde os anos 40 que os relatórios da via e obra referiam invariavelmente a necessidade de os substituir pelo menos nas curvas, nos cruzamentos e nos resguardos das estações. Contudo, até final da década, e contando desde a inauguração do caminho-de-ferro (em 1887 e 1906), nunca a linha de Foz-Tua a Bragança foi alvo de trabalhos de renovação sistemática do material fixo. Era perfeitamente normal que os carris (de 20 kg/m com um comprimento de 6 m na secção até Mirandela, fornecidos pela B. . Bochum; e de 20 kg/m com extensão de 8 m no troço até Bragança, adquiridos à empresa J. Cockerill) apresentassem um desgaste apreciável depois de seis décadas de utilização134. Os trabalhos de conservação da via eram na generalidade executados apenas duas vezes por ano. Em especial, procedia-se a pregação dos carris às travessas, tarefa que era no início do tempo quente e com as primeiras chuvas, de modo a anular os problemas das dilatações. No período do Inverno, a atenção do departamento de via e obras concentrava-se na vigilância das trincheiras, na consolidação dos muros de suporte e na instabilidade das grandes massas de pedra que ladeavam a linha (em especial nos seus primeiros quilómetros). Os frequentes desabamentos tornavam necessária a existência em depósito de dinamite para acorrer a acções preventivas de desmonte e à movimentação das rochas nos desabamentos. A Companhia Nacional edificou junto à linha um paiol para guardar dinamite, mechas e rastilhos para estas operações de emergência135. Foi neste contexto de redução da actividade económica e de intensa concorrência por parte de inúmeras e minúsculas empresas rodoviárias (associadas no grémio dos industriais de transportes em automóveis) que as companhias ferroviárias tiveram que arranjar soluções para os graves problemas que afectavam o sector. A já referida con132
GOMES, 2014.
133
GOMES, 2014.
134
GOMES, 2014.
135
GOMES, 2014.
345
A linha do Tua (1851-2008)
tenção de custos amenizou os números nos balancetes, mas levou à degradação das condições de exploração e, a médio prazo, agravou os custos de conservação, tanto na via e obras como na tracção. Em suma, a redução das despesas acabou por gerar efeitos de sinal contrário. Os cortes no pessoal e a não-renovação da via colocaram o estado de conservação da infra-estrutura em situações de emergência. A adopção de automotoras, cujo processo transitaria para a CP, acabou por ter penalizações de velocidade, devido ao estado decrépito da via-férrea136. Simultaneamente, desenvolvia-se a corrente de opinião que responsabilizava o estado pelas condições do arrendamento da sua rede e atribuía ao transporte rodoviário os problemas do sector ferroviário. Desde inícios dos anos 1930 que a Companhia Nacional, tal como as demais empresas ferroviárias portuguesas, aguardava por soluções miraculosas, que “só o Estado pode pôr em acção”137. O governo da ditadura, por seu lado, continuava à procura de uma estratégia para o agrupamento global da rede ferroviária numa só empresa138. Todavia, as duas principais empresas nacionais (CP e Companhia do Caminho de Ferro da Beira Alta) continuavam dominadas por capital estrangeiro o que limitava os alegados benefícios da concentração. Urgia assim libertar as duas empresas das mãos dos obrigacionistas estrangeiros. Em 1931, Salazar conseguiu chegar a um acordo com os credores franceses da CP para que estes aceitassem trocar parte das suas obrigações por acções e receber o seu dividendo em escudos. O estado continuou a ser o principal accionista, mas perdeu a maioria absoluta. Em todo o caso, o seu controlo era assegurado pela dependência financeira da CP e pelo reforço da posição estatal no conselho de administração, que se libertava da influência do comité de Paris. Igual processo foi seguido em relação à Companhia da Beira Alta no início da década de 1940139. Entretanto, o governo em 1933 tomava conta da gestão da Companhia do Norte, alegando a má situação financeira da empresa e a possibilidade de esta suspender o serviço. O estado procurou fazer o mesmo em relação à Companhia Nacional, mas esta litigou em tribunal arbitral, que lhe deu razão e impediu que os intentos da ditadura fossem realizados. A Norte não fez o mesmo e foi dominada pelo estado. Em 1937 a gerência nomeada pelo governo vendia-lhe a maioria das acções da Norte. O estado apropriava-se assim de mais uma companhia. Era mais um passo para a agrupação do sector a para a resolução do problema ferroviário. Quanto à Companhia Nacional (e também à companhia que explorava a linha do vale do Vouga), devia importantes so136
GOMES, 2014. SANTOS, 2011.
137
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral em 1940: 6.
138
SANTOS, 2011: 407.
139
SANTOS, 2010: 157 e 161. SANTOS, 2011: 407-412, 511 e 531-534.
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125 anos de exploração
mas à CP à laia dos serviços combinados, sem os quais não podia sobreviver. Perante o volume do débito a CP ameaçou suspender os serviços combinados com a Companhia Nacional, o que inevitavelmente levaria à falência da concessionária da linha do Tua e facilitaria a acção do governo no agrupamento das linhas140. Contudo, o deflagrar da segunda guerra mundial deu um novo fôlego às companhias ferroviárias, uma vez que as dificuldades em adquirir combustível, pneus e todo o tipo de acessórios e peças suplentes praticamente paralisaram o tráfico rodoviário. Nos caminhos-de-ferro concentrou-se novamente o grosso da procura de transporte, muito para além da sua capacidade de oferta. Porém, as companhias não tinham a menor hipótese de levar a cabo uma modernização do seu material fixo e circulante141. Assim, depois da segunda grande guerra, os níveis de tráfego de mercadorias voltaram a cair para os patamares de inícios do século142. Em 1945, o governo tomou uma medida para solucionar definitivamente a questão ferroviária. A lei 2.008 de 27 de Setembro, que coordenava os transportes terrestre, previa a concentração de todas empresas ferroviárias (independentemente da bitola das linhas que exploravam) numa única concessionária, que viria a ser a CP. O agrupamento era uma operação comum a vários países europeus, mas o caso português foi específico por não passar por resgates mas pela entrega da exploração total da rede a uma companhia alegadamente privada, mas tão dependente do estado como uma repartição pública143. Nos meses seguintes, procedeu-se ao estabelecimento de negociações com as restantes companhias ferroviárias para a sua fusão na CP. À Companhia Nacional, bem como aos restantes operadores ferroviários em Portugal, colocavam-se três opções: o resgate das linhas pelo estado, a venda das suas concessões a uma entidade ferroviária ou a entrada da companhia numa nova entidade a constituir, em cujo capital participaria com os seus activos e passivos. A Companhia Nacional partiu para esta negociação demasiado fragilizada pela dívida acumulada do serviço combinado com a CP (em 31 de Dezembro de 1945 este débito ascendia a cerca de 15 mil contos). Por isso, a decisão dos accionistas da Companhia Nacional passou por vender as suas concessões à CP. O protocolo foi assinado em 15 de Maio de 1946 e fixou na sua base II o valor da transacção em 19 mil contos. A este valor foi acrescentado os encargos de amortização e pagamento de juros das obrigações em circulação da Companhia Nacional (que, em 30 de Junho de 1946, totalizavam 4.385 contos), num total de 23.385 contos. Era uma solução mais barata do que o resgate das linhas puro e simples, calculado em 140
SANTOS, 2010: 157-158. SANTOS, 2011: 423-429, 445 e 518.
141
SANTOS, 2011: 518 e 527.
142
VALÉRIO, 2001: 374-375.
143
SANTOS, 2010: 161. SANTOS, 2011: 541-544.
347
A linha do Tua (1851-2008)
24.449 contos. Mais tarde, a CP fez o encontro de contas pelo remanescente de 8.385 contos144. A partir das 00:00 do dia 1 de Janeiro de 1947, a CP iniciou a exploração conjunta de toda a rede nacional (à excepção da linha de Cascais, operada até 1976 pela Sociedade Estoril, onde pontificava a figura incontornável de Fausto Cardoso de Figueiredo). Quase de imediato, estado e companhia empreenderam esforços para tentar modernizar a rede. Em 14 de Junho de 1951, a situação foi oficialmente regularizada através de um contrato entre o governo e a CP, pelo qual aquele fazia a concessão a esta de todas as linhas nacionais145. Em conclusão, a Companhia Nacional era uma pequena empresa ferroviária a operar em linhas de bitola métrica, geograficamente separadas e afluentes da rede principal. Utilizou genericamente a tracção a vapor e manteve, no caso da linha de Foz-Tua a Bragança, uma matriz de exploração tipo vaivém (navette), estabelecendo correspondência na estação do Tua, com os comboios da linha do Douro. Se comparamos os itinerários dos comboios no início da exploração, com os de finais dos anos 1920 ou finais da década de 1940, rapidamente constatamos que não houve inovação no sistema de exploração146. As estações de transmissão, em especial as que serviam vias de bitola diferente (como a estação do Tua), nunca conseguiram resolver os problemas matriciais da sua operacionalidade. Mesmo após a integração na CP, jamais estas estações foram dotadas de equipamentos que permitissem o transbordo fácil e barato das mercadorias. Na década de 1980, a inexistência de batata nos mercados de Lisboa e Porto, enquanto a mesma apodrecia em Trás-os-Montes, é exemplo paradigmático da ausência de equipamentos apropriados nas estações. Em sentido contrário, no sentido ascendente, as empresas de adubos, que davam os primeiros passos na paletização dos mesmos, viam-se confrontadas com problemas ligados ao transbordo das cargas147. Para tentar melhorar a sua situação, a Companhia Nacional sempre se bateu por um projecto de ligação da sua rede (linha de Viseu a Foz-Tua), de modo a beneficiar de economias de escala. Porém, a partir de finais dos anos 1920 a revolução da estrada comprometeu irreversivelmente os projectos de expansão da rede da companhia e mesmo da rede nacional. Em 1933, o plano ferroviário de 1930 foi simplesmente suspenso, só avançando as construções já acordadas antes do estado novo148. De qualquer modo, a linha do Tua foi um importante vector de penetração numa 144
GOMES, 2014. SANTOS, 2011.
145
SANTOS, 2011: 549-550, 554 e 561.
146
GOMES, 2014.
147
GOMES, 2014.
148
GOMES, 2014. SANTOS, 2011.
348
125 anos de exploração
das províncias mais periféricas e subdesenvolvidas de Portugal. A sua acção fez-se sentir na quantidade (gráfico 7) e qualidade de mercadorias levadas e trazidas do distrito de Bragança, como se pode ver no gráfico seguinte.
Gráfico 16 – Total e qualidade de mercadorias transportadas em pequena velocidade na linha do Tua (valores em t)149
Da análise do gráfico anterior percebe-se que a Companhia Nacional transportava sobretudo produtos do sector primário com pouca ou nenhuma transformação, acentuando o carácter eminentemente agrícola da região. Destacam-se neste rol os cereais e os comestíveis. No sentido ascendente, seguia o sal, importante para a conserva e preservação dos alimentos. Muitos destes itens, por serem considerados de primeira necessidade, eram alvo de uma tarifa especial, que limitava também as receitas de tráfego da companhia. A partir de inícios do século XX, a linha foi também importante no transporte de adubos e fertilizantes para a região, malgrado as fortes flutuações no volume transportado, visível no gráfico seguinte.
149
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
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A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 17 – Adubos transportados pela linha do Tua (valores em t)150
Em todo o caso, com capacidades de investimento limitadas, a Companhia Nacional começou por cortar na despesa e esperou pela intervenção do estado. As breves retomas do trânsito ferroviário durante alguns anos da década de 1930 e 1940 foram sempre consequência de situações conjunturais e nunca de estratégias consciente que invertessem a situação. A 1 de Janeiro de 1947, a CP iniciou a exploração conjunta de toda a rede portuguesa (excepto a linha de Cascais). O caminho-de-ferro do Tua, tal como os restantes, foi integrado numa entidade, que, 20 anos antes, tinha abdicado de explorar a via estreita, alegadamente por falta de vocação151.
150
Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Relatório do conselho de administração apresentado à assembleia-geral (vários anos).
151
GOMES, 2014. SANTOS, 2011.
350
125 anos de exploração
5.3. DINÂMICAS DEMOGRÁFICAS NO VALE DO TUA Eduardo Beira152
Foram feitos 15 censos, ou recenseamentos da população, em Portugal. O primeiro foi em 1864, ainda antes da abertura da linha do Tua (tal como o segundo, em 1878). O terceiro (1890) é o primeiro depois da abertura da linha entre Foz Tua e Mirandela. Os respectivos números mostram diferentes dinâmicas populacionais para o conjunto nacional versus Trás-os-Montes e o vale do Tua. Nos 147 anos, de 1864 a 2011 (gráfico 18): a população de Portugal cresceu 2,6 vezes, de 4,1 para 10,6 milhões. O crescimento da população do continente foi semelhante: o continente representava 95,3% da população de Portugal em 1864, contra 95,1% em 2011: pouco se alterou o peso da população insular; a população de Trás-os-Montes (medido pela soma dos distritos de Bragança e Vila Real) diminuiu de 372 mil para 344 mil pessoas: um decréscimo de 8%, exibindo portanto com uma dinâmica bem diferente da dinâmica nacional; a população do vale do Tua (medido pela soma das populações dos cinco concelhos) também diminuiu: de 63 mil para menos de 55 mil pessoas, uma diminuição de 13%, superior portanto á redução de Trás-os-Montes O gráfico 19 representa as parcelas da população nacional que Trás-os-Montes e o vale do Tua representavam em cada um dos censos. Se Trás-os-Montes representava 9% da população nacional em 1864, em 2011 representava apenas 3.3%; e o vale do Tua representava 1.5% da população nacional em 1864, versus 0.52% em 2011, sendo 152
IN Center for Innovation, Technology and Policy Research (Instituto Superior Técnico).
351
A linha do Tua (1851-2008)
que o vale do Tua representava 17% da população transmontana em 1864, contra 16% em 2011. O peso da população do vale do Tua na população de Trás-os-Montes pouco se alterou neste período. No entanto a evolução da população transmontana e do vale do Tua não foi linear entre o primeiro e o último censo. A população de Trás-os-Montes (conjunto dos distritos de Bragança e de Vila Real) atingiu um máximo no censo de 1960, quando as populações dos dois distritos, Bragança e Vila Real, atingiram os seus máximos históricos (respectivamente 23 e 32,3 mil pessoas) (gráfico 20). Por sua vez a população do vale do Tua conheceu o máximo no censo de 1950 (gráficos 21 e 22). São perfeitamente identificáveis duas tendências diferentes no vale do Tua: crescimento da população entre o censo de 1864 e o censo de 1950 e depois um decréscimo populacional a partir desse censo (gráfico 23). Nesse ano, a população recenseada no vale do Tua foi de 93,5 mil pessoas, contra cerca de 63 mil em 1864, tendo depois regredido para 54,8 mil em 2011. Ou seja, depois do máximo de meados do século XX, a população no censo mais recente era já inferior à do primeiro censo. Até 1950 a população do vale do Tua cresceu a uma taxa anual composta de 0,49%, mas depois de 1950 a taxa foi de -0,89% (gráficos 24 e 25). No entanto as taxas correspondentes para os quatro concelhos, sem incluir Mirandela, foram de 0,37% de crescimento até 1950 e de -1,2% depois de 1950. As taxas de Mirandela foram respetivamente 0,66% e -0,44%: cresceu mais rapidamente do que os outros concelhos até meados do século XX, e a partir daí perdeu mais lentamente população do que os concelhos vizinhos no vale do Tua. O distrito de Bragança tem vindo a perder regularmente peso na população transmontana: de 42,7% em 1864 para 39,8% em 2011 – naturalmente a favor do distrito de Vila Real. No vale do Tua, a população do concelho de Mirandela começa agora a aproximarse de metade da população do vale (gráfico 26). Em 2011, representava cerca de 44%. Mas no primeiro censo (1864) representava apenas 27,5%, não sendo sequer o concelho mais populoso entre os cinco. O mais importante era Alijó (cerca de 30% em 1864), embora agora represente só cerca de 22%. Todos os concelhos do vale do Tua, excepto Mirandela, perderam peso, sempre a favor de Mirandela. A população deste concelho quase duplicou entre 1864 e 1950 e no último censo estava a 77% do máximo. A perda de população depois de 1950 foi mais violenta nos outros concelhos do vale do Tua: se Mirandela apenas perdeu 23% da população entre 1950 e 2011, o concelho de Carrazeda de Ansiães perdeu 60% em relação ao máximo histórico de 1950. Alijó perdeu 50%, Murça 41% e Vila Flor 46%. Por sua vez, e por contraste, a população nacional em 2011 era 1,25 vezes superior à registada em 1950. * 352
125 anos de exploração
Os gráficos 27 a 31 mostram os nascimentos, óbitos e casamentos em cada um dos cinco concelhos do vale do Tua. As séries de dados foram obtidas das estatísticas oficiais (Anuário Estatístico de Portugal e fontes posteriores), mantendo o hiato clássico entre 1887 e 1912. As escalas dos diferentes gráficos são comuns para permitirem uma comparação mais fácil. O gráfico 32 consolida os dados dos cinco concelhos do vale do Tua. O saldo demográfico (nascimentos menos óbitos) é negativo nalguns concelhos já desde a década de 80 (gráfico 33). O forte pico negativo em 1918, comum a todos os concelhos, deve-se ao surto de febre, cujo efeito foi devastador na região (assim como em Portugal, comparar os gráficos 34 e 35). No entanto o deficit demográfico faz-se sentir no vale Tua uma, duas a três décadas antes do conjunto nacional. O gráfico 36 representa o saldo demográfico como uma percentagem dos nascimentos, para o conjunto dos cinco concelhos do vale do Tua. No gráfico 37 faz-se uma representação semelhante para cada um dos concelhos. A situação negativa do concelho de Carrazeda de Ansiães destaca-se, mas é também visível uma maior volatilidade nas últimas décadas. O gráfico 38 contrasta a situação do vale do Tua com a situação nacional: uma vez mais o vale do Tua antecipa as quebras de saldo demográfico. Embora a razão nascimentos / casamentos não seja equivalente ao número de filhos por família (ou mesmo por casamento), é um indicador que regista bem as tendências de longo prazo (gráfico 39). A quebra brutal de natalidade no vale do Tua é bem patente, de cerca de cinco para cerca de 1,5 entre as primeiras e as últimas décadas do século XX – uma redução de natalidade superior a três, cujos efeitos são por si só, independentemente dos efeitos de fluxos migratórios, as grandes forças diretrizes da questão demográfica no vale do Tua. Gráfico 18 – População de Portugal, Continente, Trás-os-Montes (distritos de Bragança e Vila Real) e Vale do Tua (concelhos de Alijó, Carrazeda de Ansiães, Mirandela, Murça e Vila Flor) nos 15 censos da população
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A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 19 – Percentagem que a população de Trás-os-Montes (distritos de Bragança e Vila Real) e do vale do Tua (cinco concelhos) representa da população de Portugal, em cada censo
Gráfico 20 – População dos distritos de Bragança e Vila Real, por censo
354
125 anos de exploração
Gráfico 21 – População total dos concelhos do vale do Tua, com e sem o concelho de Mirandela, por censo
Gráfico 22 – População dos cinco concelhos do vale do Tua, conforme censos
355
A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 23 – População comparada dos cinco concelhos do vale do Tua, 1864 versus 1950 versus 2011
Gráfico 24 – Taxas anuais compostas de crescimento da população, de 1864 a 1950 e de 1950 a 2011 (concelhos do vale do Tua, distritos de Tras os Montes e Portugal)
356
125 anos de exploração
Gráfico 25 – Índices populacionais do vale do Tua (com e sem Mirandela), Mirandela e Portugal (1950=100%).
Gráfico 26 – Populações dos concelhos de Mirandela e Carrazeda de Ansiães como percentagem da população total do vale do Tua
357
A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 27 – Demografia do concelho de Alijó (1886 a 2012): nascimentos, óbitos e casamentos
Gráfico 28 – Demografia do concelho de Carrazeda de Ansiães (1886 a 2012): nascimentos, óbitos e casamentos
358
125 anos de exploração
Gráfico 29 – Demografia do concelho de Vila Flor (1886 a 2012): nascimentos, óbitos e casamentos
Gráfico 30 – Demografia do concelho de Mirandela (1886 a 2012): nascimentos, óbitos e casamentos
359
A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 31 – Demografia do concelho de Murça (1886 a 2012): nascimentos, óbitos e casamentos
Gráfico 32 – Demografia do vale do Tua (1886 a 2012): nascimentos, óbitos e casamentos, por consolidação dos dados dos cinco concelhos do vale
360
125 anos de exploração
Gráfico 33 – Saldo demográfico (nascimentos – óbitos) por concelho do vale do Tua
Gráfico 34 – Saldo demográfico (nascimentos – óbitos) global do vale do Tua
361
A linha do Tua (1851-2008)
Gráfico 35 – Saldo demográfico (nascimentos – óbitos) global de Portugal
Gráfico 36 – Saldo demográfico como percentagem dos nascimentos, vale do Tua, desde 1913
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125 anos de exploração
Gráfico 37 – Saldo demográfico como percentagem dos nascimentos, por concelho do vale do Tua, desde 1913
Gráfico 38 – Saldo demográfico como percentagem dos nascimentos, Portugal e vale do Tua, desde 1913
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Gráfico 39 – Razão nascimentos / casamentos, vale do Tua
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5.4. A LINHA NA LITERATURA153 Maria Otília Pereira Lage154
“Há livros que são no mundo como almas penadas. Andam, andam, tropeçam através de séculos pela obscuridade e pelo sofrimento, até que um dia apareça alguém que os tire do limbo do esquecimento. E isto, parecendo que não, dá esperança…”155 Muitos dos textos literários sobre a linha do Tua que vamos analisar de um ponto de vista socioliterário têm um percurso idêntico ao da epígrafe, citação de Miguel Torga, bem conhecido escritor do Douro e Trás-os-Montes. As histórias que aí se contam, impressões escritas de diversos autores, em diferentes momentos históricos, são ricas em experiências sensitivas, narrativas, linguísticas e de técnicas de escrita. A ambiência ficcional do vale do Tua descrita e/ou sugerida insere-se em espacio-temporalidades diversificadas que oscilam entre a escala do local e do translocal, em que se torna possível procurar, num passado reinventado pela produção ficcional atravessada por um realismo imaginário, fundamentos e alternativas para esperanças e utopias do presente. Nas ficções e textos literários, as personagens e episódios da sociedade interior transmontana em que estão genericamente inseridos, estabelecem entre si correlações dinâmicas e dialógicas próprias das representações sociais construídas no cruzamento do singular e do colectivo, com trocas múltiplas e mútuas entre ambientes e 153
Este texto é uma versão adaptada do trabalho da autora: LAGE, 2014a.
154
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto)
155
TORGA, 1942.
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A linha do Tua (1851-2008)
elementos culturais desenrolados em tramas narrativas e cenários descritivos de paisagens naturais e humanas, hábitos e costumes das populações que aí habitaram ou habitam, permitindo percepcionar transformações vivenciadas numa diacronia mais que centenária. Na leitura de cada um dos fragmentos e do seu conjunto, através das representações sociais construídas na e pela linguagem literária, pode-se ser levado a partilhar costumes, tradições, modos e regras de organização de comportamentos sociais influídos pela presença da via-férrea e das rotinas diárias da chegada e partida dos comboios do Tua. Essa compreensão, a um nível micro, de regras e práticas quotidianas que organizam as condutas sociais em torno de um elemento veiculador de abertura de novos horizontes, identificado, ideologicamente, como meio de progresso e desenvolvimento, implica e possibilita que se adira, numa empatia emotiva, a essas representações que veiculam elementos afectivos e sociais e contribuem para a construção de um sentimento de realidade comum identitário. Figura 132 – Rio Tua (Castanheiro)156
O discurso literário, de ficção e/ou testemunho, sendo construído num âmbito social de que autores e leitores fazem parte como sujeitos integrantes de uma dada sociedade – no caso presente, a sociedade transmontana em que a chegada do caminho-de-ferro abre um traço de ruptura e desenvolvimento ao nível de troca de produtos e mercadorias, trânsito e mobilidades populacionais e irrupção de novos e mais alargados mundos, pela via da chegada regular de notícias – transfere para a escrita/ 156
Fotografia de M. J. Fernandes Lopes
366
125 anos de exploração
leitura parte das experiências vividas no meio, vendo-se assim estimulados os actos que originam a sua compreensão. Partindo desses pressupostos, este texto propõe-se investigar as representações sociais, e as lógicas ou mundos sociais, possíveis de construir na e pela linguagem literária, e suas hipotéticas influências no decifrar desta colectânea literária sobre o significado sociohistórico da linha-férrea do vale do Tua, num horizonte desejado de encantamento de gerações subsequentes de leitores. Espelho de imagens refractadas de um património natural e humano invulgares, a amostra aqui analisada é constituída por testemunhos e ficções literárias produzidas num período longo (finais do século XIX até ao presente) e é composta de variados textos em diferentes estilos e de uma diversidade de autores, na generalidade portugueses, suas impressões e vivências imaginativas do vale, do rio, da linha e do comboio do Tua. As contingências históricas e sociais da produção literária díspar sobre o vale e a linha do Tua influíram nos resultados da pesquisa e compilação exaustivas do corpus literário analisado. A amostra estudada não surge de modo arbitrário. É formulação singular e expressão de uma prática social e intelectual regrada que se caracteriza assim: “as margens de um livro não estão nunca rigorosamente recortadas: (...) além de sua configuração interna e forma que o autonomiza, está envolvido em um sistema de citações de outros livros, de outros textos, de outras frases, como um nó numa rede”157. Considera as relações entre enunciados e acontecimentos, nós de uma rede extensa de sentidos e significados que não depende só do trabalho e escolhas do compilador e organizador da compilação. A sua apreciação crítica exige que se atenda à concepção dialógica dos géneros discursivos, pois as suas formulações não são meras produções subjectivas. Como qualquer outra, a colectânea examinada tem o seu estilo próprio que remete para o “grupo social representado pelo destinatário que participa de modo permanente no discurso interior e exterior do homem e encarna a autoridade que o grupo social exerce sobre ele”158. As respostas encontradas para a sua construção e organização não decorrem de gostos privados do compilador/organizador, embora o argumento das preferências pessoais esteja implícito e/ou explicito no intradiscurso que incide na materialidade linguística e histórica da colectânea.
157
FOUCAULT, 1970: 37 e 46-47.
158
TODOROV, 1981: 212. Ver também ADORNO, 1992. TODOROV, 1987.
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Figura 133 – Linha do Tua (Brunheda, Carrazeda de Ansiães)159
No horizonte de divulgação, preservação e consolidação de uma espácio-temporalidade histórica local e de um património e identidade regional, todos os textos reunidos se encontram em língua portuguesa, a quinta língua mais falada no mundo, com aproximadamente 280 milhões de falantes. Construção discursiva pluriperspectivada da memória literária do vale e linha do Tua, os textos reunidos dão a ver um objecto sociocultural e técnico, historicamente ancorado e enquadrado em suas dimensões espácio-temporais. O corpus literário, muito variado quer ao nível dos temas, géneros e autores, quer nas dimensões contextuais representadas, introduz-nos em ambiências históricas díspares, mas muito impressivas e num universo simbólico de grande riqueza literária, estética e sensitiva. Com a preocupação de traduzir a contextualização histórica, social, literária e cultural do vale e linha do Tua, objecto natural e técnico, as obras recolhidas compõem uma constelação espácio-temporal em que os autores operam de modo unifocado, produzindo uma trama de leituras susceptíveis de remeter quer à actualidade quer à genealogia do objecto, literariamente representado. Entendida também enquanto prática de análise crítica, este texto e a divulgação destas obras são relevantes para a afirmação de memórias identitárias, sempre fragmentariamente representadas, sendo ainda incentivo ao desenvolvimento investigativo, educacional e cultural de públicos diversos. No campo da investigação, propicia a renovação do género ao abrir para propostas 159
Fotografia de M. J. Fernandes Lopes.
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com enfoques não dicotómicos da história, língua e literatura160 e contribui para novos projectos que enriqueçam o conhecimento e o debate literário, cultural e histórico sobre o vale e linha do Tua. No domínio da educação, surge como incentivo a uma política de aprendizagem ao longo da vida, na medida em que: remete para textos para vários interesses e gostos, de diferentes escritores, génerose períodos; divulga diversos estilos de escrita: poemas e quadras, contos, lendas, crónicas, fragmentos de romances, narrativas de viagens, memórias e impressões de viagens, crónicas e reportagens jornalísticas e até letras de canções outrora em voga; todos os textos têm em comum referências e representações não só de traços distintivos do vale, rio, linha e comboio do Tua, de suas povoações ribeirinhas e populações, mas também condensados de emoções experimentadas em múltiplas vidas; cada leitor pode facilmente compreender de que autor ou de que género de escrita gosta mais, embora tais preferências mudem com o tempo e com o que se lê. Figura 134 – Vale e rio Tua161
Os textos estudados revelam e informam sobre estilos de vida, características socioculturais, económicas e históricas e diferentes meios físicos da região ou área
160
SERRANI, 2008.
161
Fotografia de Jorge Delfim.
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geográfica retratada162, o espaço regional do vale do Tua, que é seu pano de fundo e lhe confere substanciação. Essa substância decorre, quer de um dado fundo natural (clima, topografia, flora, fauna, etc., elementos que afectam a vida humana na região), quer das maneiras peculiares das sociedades humanas aí estabelecidas e que a fizeram distinta de qualquer outra. Nessa medida, podem reconhecer-se como documentos de certas realidades e características desta região, ao situar colectividades e indivíduos e reflectir criativamente visões de vida, de tempos e espaços, de homens e de lugares da sociedade transmontana, suas transformações entre finais dos séculos XIX e XX. Encontramos aí formas tradicionais e não tradicionais de narrar que, nalguns casos, romperam com as formas clássicas de contar um passado e um presente transformados pela sociotécnica, reinventados pela materialidade ficcional e recriados nas alternativas, esperanças e frustrações, o que permite conhecer mais profundamente os vários significados económicos, sociais e culturais da história do vale do Tua, o seu entrosamento geográfico local e a sua projecção num horizonte que ultrapassa a escala local e se aproxima do translocal, pela similitude de contingências históricas. Construídas nesse pano de fundo, as ficções literárias, reconstruções imaginadas de vivências, memórias e imaginários, sob uma variedade de percepções e afectos, marcando, na sua observação diacrónica, por diversas formas de realismo imaginado, as personagens e sociedades que retratam em experiências vulgares ou fantásticas, permitem visualizar, até por meio de objectos que se impõem, transformações várias do comum e do quotidiano do vale, do rio, da linha e do comboio do Tua, desde os movimentos de pessoas, bens e mercadorias, deslocações, mobilidades e emigração recorrente, acontecimentos históricos e modalidades de trabalho e lazer do dia-a-dia, ou mesmo pragas e doenças como a pneumónica e a gripe espanhola, remédios e mezinhas de cura, empreendimentos locais e transformações sociais, etc. As personagens e contextos sociais em que se inserem e as tramas narrativas que se desenrolam em cenários reconstruídos de paisagens, costumes e hábitos de uma geografia e história local que se vai transformando estabelecem entre si relações dinâmicas e dialécticas que são próprias das representações sociais simbólicas usadas pelos indivíduos, em gestos e palavras e construídas no encontro do singular/colectivo, com trocas mútuas entre ambientes naturais, sociais e culturais. Definir representações sociais não é tarefa fácil. As representações colectivas (Durkheim), enquanto conceito, foram recuperadas pelos historiadores das mentalidades, pelos antropólogos e pelos sociólogos nos últimos 50 anos, derivando no campo da psicologia social para a categoria analítica de representações sociais (Moscovici) a propósito das quais, em geral, se pode afirmar (Jodelet) que, aplicadas a uma dada 162
OLANDA & ALMEIDA, 2008.
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realidade, permitem a compreensão – ou pelo menos o acto de compreender –, a lógica dos actores sociais e alguns dos seus comportamentos, especialmente importantes para uma integração das atitudes sociais típicas em relação a diversos domínios da vida humana (sociedade, política, economia, justiça, etc.). Dada a sua composição polimorfa, podemos entendê-las como um conjunto de conceitos, proposições e explicações com origem na vida quotidiana no desenrolar das comunicações interpessoais163. Figura 135 – Linha do Tua164
Têm como objectivo abstrair o sentido do mundo e introduzir nele ordem e percepções que reproduzam o mundo de forma significativa. A sua função na sociedade actual pode ser vista como equivalente aos mitos e sistemas de crenças das sociedades ditas tradicionais. Podem ainda ser vistas como a versão contemporânea do senso comum165. Segundo outras definições, são modalidades de conhecimento prático socialmente elaborado e compartilhado, que se manifestam como elementos cognitivos (imagens, conceitos, categorias, teorias), mas que não reduzem os componentes cognitivos166, orientadas para a comunicação e compreensão do contexto social, material e cognitivo em que vivemos e que contribuem para a construção de uma realidade comum a um conjunto social167. Elementos simbólicos podem também ser entendidos como conteúdo mental estru163
MOSCOVICI, 2003.
164
Fotografia de Jorge Delfim.
165
S , 1996.
166
SPINK, 1993.
167
JODELET, 2002. FRANCO, 2009.
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turado, ou seja, cognitivo, avaliativo e afectivo a respeito de um fenómeno social relevante, tomando a forma de imagens ou metáforas, mensagens mediadas pela linguagem, construídas socialmente e ancoradas na situação real e concreta dos indivíduos que as emitem, sendo esse conteúdo partilhado com os demais membros dos diferentes grupos sociais e culturais, de modo consciente. Nesse sentido, pode afirmar-se que “as representações sociais são comportamentos em miniatura”168. As representações sociais são aqui tomadas como saber popular, mitos, crenças, costumes, condensados de memórias e expressão de identidades múltiplas, convergentes e contraditórias que confluem num senso comum e que são histórica e socialmente partilhadas. Funcionam como um sistema de interpretação da realidade, actuando nas relações estabelecidas pelos indivíduos no seu meio de inserção orientando, assim, seus comportamentos e práticas e devem ser vistas como um modo específico de compreender e comunicar aquilo que já sabemos, sendo certo que não são as mesmas para todos os membros da sociedade, pois elas dependem tanto do conhecimento do senso comum como do contexto sociocultural em que os indivíduos estão inseridos. No estudo das representações sociais é então indispensável a realização de uma cuidadosa análise contextual: é preciso conhecer os diferentes contextos espacio-temporais em que elas são produzidas historicamente e como se relacionam, bem como as condições socioeconómicas e culturais em que os indivíduos estão inseridos. E devem ser estudadas articulando-se elementos afectivos, mentais e sociais e integrando-as, ao lado da cognição, da linguagem e da comunicação, às relações sociais que afectam as representações e a realidade material, social e ideal sobre a qual vão intervir. Nesta perspectiva analítica, a amostra, sem obnubilar a singularidade própria de cada produção literária, pode então ser vista como composta desses diversos tipos de elementos, expressão de múltiplos contextos e relações sociais, cuja articulação encaminha para a compreensão das representações sociais, memórias e identidades múltiplas e para o entendimento das mensagens que são construídas com base nestas, uma outra forma afinal de conhecer também as comunidades transmontanas. De cunho regionalista, são os espaços-tempos do vale, da linha-férrea e do comboio do Tua, que aí invariavelmente se revisitam, não como uma cópia ou um reflexo, uma imagem fotográfica da realidade, mas antes como traduções, versões desta. As variações do clima e dos tempos, a fisionomia dos montes, a topografia do vale alcantilado, as margens abruptas e o leito pedregoso do rio, sempre na vivência de tudo isso pelas populações locais, que compõem os espaços literários, são objecto de distintos modos de abordagem e recriações sucessivas (memórias, impressões, percepções, observações, diversos pontos de vista), revestindo-se de um interesse mais vasto e abrangente, carregado de simbolismo. 168
LEONTIEV,1978.
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Comete-se à literatura, que coexiste como modalidade da arte e constituinte da cultura, a possibilidade de intermediar a compreensão da relação do homem com o meio por ele produzido e valorizado, como o grande depositário das relações – discursos ou vínculos – estabelecidas entre o homem e a terra. Ao longo dos tempos, os mundos-espaços vividos, narrados e representados, são considerados como substrato latente da experiência humana literariamente recriada. E os comportamentos e personagens, numa mediação entre realidade e representações sociais, são observados como movimentos constantes e superficiais de um iceberg. Figura 136 – O Pensador (Pinhal do Norte)169
O silvo do comboio do Tua, símbolo da revolução industrial que chegava, tardia e incompleta, que com o ruído metálico de suas carruagens nos carris perfura o silêncio do vale, na estreita via-férrea que percorre em ecos através das encostas graníticas o espaço interior transmontano surge como imagem forte de “progresso, desenvolvimento e comunicação” e organiza as possíveis leituras da amostra reunida, recentrando as vozes que a constituem em torno da representação social nuclear do caminho ferroviário170, a primeira grande máquina que revolveu sedimentos do atraso do nordeste transmontano transformando as suas ancestrais noções de espaço, tempo e velocidade. Os (des)compassos da máquina férrea, em movimento e/ou parada em ignotas estações e minúsculos apeadeiros, concitam novas e sucessivas configurações de tempos-es169
Fotografia de M. J. Fernandes Lopes.
170
Assinalam-se a negrito expressões que traduzem representações sociais da colectânea literária, identificadas através da análise de conteúdo de todos os textos que a compõem.
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paços, populações e mercadorias em trânsito não só pelas transformações induzidas mas também pelo ver passar o comboio. A abertura, passagem centenária e encerramento da linha-férrea e o funcionar/parar do comboio – na sua função de transporte de gentes e produtos permutados entre o interior e as grandes urbes do litoral – foram atraindo comércios e mercados, passageiros, visitantes e curiosos, trazendo notícias dos lugares mais distantes do mundo, revolucionando lenta mas decisivamente os quotidianos confinados, produzindo novas memórias e originando outras percepções colectivas e sociais. Este é um primeiro e determinante conjunto de representações sociais, transversal a todas as ficções literárias analisadas, em torno da qual gravitam outras representações sociais cuja identificação, em sua dimensão espácio-temporal, constituinte da ficção171 se prossegue. Das muitas imagens literárias e representações sociais construídas sobre o vale do Tua, desde o início até ao encerramento da sua linha férrea, infere-se uma vasta projecção humana e social contrastante com o carácter inóspito da região que aquela atravessa. De Foz-Tua a Mirandela, a região montanhosa e agreste de precipícios destaca ainda mais o acto público da inauguração da chegada do comboio pela família real portuguesa: ostentação e afluência, festa, música, fogo-de-artifício, aclamações e reclamações dos povos, comparência de fidalgos, notáveis e autoridades locais, discursos e cumprimentos, brindes aos melhoramentos materiais da província, ingredientes da crónica jornalística que relata o simbolismo oficial do novo traçado de comunicação que passaria a reduzir interioridades, organizando-se em redes num raio de acção curto, entre as pequenas estações e apeadeiros e as aldeias e vilas do interior transmontano. A construção da linha, à força de uma grande quantidade de explosivos para abrir a via, entre pedras e barrancos, ficaria marcada pela jocosa alcunha/estátua imaginária ao Dinamite, numa alusão também a lutas políticas acesas de regeneradores e progressistas, assim socialmente representada. Prosseguirá o comboio arrasta arrasta em lenta velocidade a sua marcha até Bragança, passando por Vila Flor e Mirandela, o maldito comboio que leva os primeiros amores para a vida militar ou para a emigração, em velhas e novas andanças transmontanas. Perpassam na imaginação literária da voz popular, a ausência e o afastamento dos naturais da terra, o medo da perda, a maldição e a imagem do diabo que impendem na edificação de pontes como a emblemática ponte de Abreiro, construída num abismo. Nessa densidade obscura de sentimentos, receios e crenças caldeadas nas dificuldades e contrariedades dos povos e numa letargia surda como a lenta velocidade do comboio ronceiro, encontramos para além desta, a representação social do diabolismo e dos medos associada à construção da linha, túneis e pontes e ao comboio arrastador. 171
SILVA, 1974. BISPO, 2009.
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Segue-se, impressiva e precisa, a localização da região do Tua no extremo leste da privilegiada zona vinícola do Douro, ao tempo, entre Alijó e Foz Tua, com seu calor de brasido, e Carrazeda, ligada pelo caracolear do macadame, a sua geografia física, humana e social em que se destacam ribas de proporções grandiosas, antigas quintas do Douro de grandes proprietários e reputados comerciantes ingleses do vinho do Porto, as alcandoradas povoações transmontanas, semelhantes a lugarejos luso-romanos, o enxame dos habitantes destas colmeias para a labuta do aro agrícola envolvente, onde se cultiva o pão, a vinha, e os nomeados olivedo e laranjais. Impõe-se então a atracção da tecnologia moderna e ferroviária da máquina de metal a carvão, escasso no período da guerra, turfa e lenha, e vapor, por entre o remexer e olear de manípulos, válvulas, alavancas e carruagens de passageiros, o atrelar de nove e dez vagões de mercadorias, o trabalho em série do fogueiro, maquinista, mão no freio, factor, carregador e agulheiro, condutor e guarda-freios, pondo o trem em marcha por entre baforadas de fumo e rolos de vapor, rodas tractoras chiando nos carris, apitos esporádicos, cornetadas de agulheiro, fazendo em estações e apeadeiros (Avantos, Romeu, Quadraçal, Cortiços…) “sempre especar as pessoas que lhe acenavam, saudavam com o chapéu, atiravam gritos. A máquina era o fascínio daquele comboio”172. Impõem-se, para além desses objectos humanos e não-humanos, os movimentos maquinais e em períodos de crise como a primeira república (1910-1926) e a primeira guerra mundial (1914-1918), actos de resistência, revolta e clandestinidade da propaganda política, lutas políticas entre republicanos e monárquicos, tumultos sociais (greves, assaltos ao comboio, roubos de mercadorias, mudanças constantes de governos, confrontos partidários, doenças e epidemias como a gripe espanhola ou pneumónica e vagas de mortalidade). Dramas pessoais e colectivos empurram o povo migrante para trabalhos sazonais e mendicidade, chegando e partindo todos os dias dos “sítios mais incríveis para os menos verosímeis”173, de comboio, como clandestinos, as mesmas caras das feiras de Bragança, dos arraiais de Macedo ou dos ajuntamentos do Tua, nas vindimas e apanha da azeitona. “Volta e meia surgiam zaragatas tremendas, resolvidas a varapau e a tiro”174. Atravessando agora outras temporalidades, na ditadura salazarista a personagem romanesca do proprietário agrícola absentista, coleccionador de livros e borboletas, dono de quinta em Foz do Tua, onde só passa as vindimas, vivendo em Lisboa, em imponente palacete com mordomo, criados e chauffeur particular, e que hospitaleiro, serve, sem cerimónias, vinho do Porto de sua lavra. Paralelo ao vale, o rio Tua, corre por entre escarpas e ravinas sem qualquer forma 172
CARDOSO, 2007.
173
CARDOSO, 2007.
174
CARDOSO, 2007.
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de vida, pedras que se olham com amor, parecendo que o homem “gosta da terra improdutiva, livre, rebelde, preguiçosa como um mendigo de chagas ao sol”175. Em Macedo de Cavaleiros, os bandos de ciganos, medida absoluta da liberdade, anarquistas, príncipes do nada, milionários do desinteresse, sacerdotes da preguiça, comendo a podridão e vestindo de absurdo, marcianos na terra. Continua a correr na margem do rio, o cíclico comboio duro e mecanizado rangendo nos ferros. A realidade física e humana transmuda-se em ficções poéticas e representações literárias. A poesia palpita e segue de comboio, por entre almas penadas, homens distraídos à janela, diluídos nas paisagens fugitivas, campos imprecisos de braços abertos às montanhas. Em carruagens lentas e entregues à aventura juvenil de passageiros despertos pelo controlo do revisor e o receio de um descaminho dos bilhetes, as viagens femininas de comboio, durante o estio, desde a tórrida Foz-Tua a terras de Bragança, fim de linha. O olhar estrangeiro estranha as diferenças sociais das carruagens de primeira, segunda e terceira classe do comboio, parando em todas as estações e apeadeiros que recebem o estranho de braços abertos e entre cochichos. No comboio, indiscriminadamente de mercadorias e passageiros, espantam as saudações e despedidas francas, conversas e confraternização, a partilha das merendas de petiscos regionais, como se todos fossem velhos conhecidos. Em época e ambiente fortemente concorrencial de vinhos e aguardentes do norte e sul do país, as revoltas sociais com incêndios e assaltos aos armazéns do Tua, sem temores nem medo, característica dos valentes povos transmontanos, ciosos do que é seu, para sobreviver em meio agreste. As quintas do Douro em mãos inglesas que se compram e vendem nas subidas e descidas dos mercados de vinho do Porto enquadram o início do vale e linha do Tua, numa ambiência rural económica e social, paraíso de memórias, aventuras e folguedos infantis, por entre a lenta luz subindo da água do rio, pontes, arcos, barqueiros, voos rasantes de aves, lendas de mouras e cavaleiros, o comboio seguindo o voo lento do milhafre nos penhascos, local de partida e de chegada. Explode de novo, anos 1940, a dinamite, nas construções de engenharia, agora ao serviço de técnicas mais modernas na abertura da nova ponte rodoviária na foz do Tua. E a viagem prossegue a par e passo de longa, pormenorizada e erudita descrição de outra prazerosa e antiga jornada de comboio, de Foz-Tua a Bragança pela linha do Tua (ramificação da linha do Douro) comparada às vias helvéticas ou francesas das cercanias dos Alpes. Regurgitando de sacos e passageiros, as janelas das carruagens, aos solavancos, desvendam lameiros verdejantes, esporões e píncaros graníticos, ribeiros descendo das serras, o leito cascalhento do rio, o vale recortado, campos arados 175
TORGA, 1973: 60.
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de cereais e pomares, alguns rebanhos, estradas e montadas, ermidas e monumentos, pequenas comunidades, píncaros graníticos, atalaias para perscrutar enigmas dos céus, em suma, toda uma paisagem histórica, onde se impõe a natureza construída em estranho convívio com a técnica. O comboio serpeja na estreita via-férrea, obra homérica de engenheiros e trabalhadores, paralela ao rio contorcido, no vale estrangulado, por entre rochas vivas, águas primitivas, cataclismos onde impera o mítico diabo e o mitológico enigma dos céus. A mutação de andamentos no não-lugar da estação de Foz Tua, em sonata ou gritos estridentes da figura feminina errante nos carris, antiga conhecida do agulheiro Enquanto a canção do festival nacional da RTP celebriza o comboio do Tua e as gentes de Trás-os-Montes, que se cruzam em velhos e novos rumos: soldados, estudantes, namorados, crianças, emigrantes, lenços agitados em partidas e reencontros. Entre vagonetas, travessas, locomotiva e armazéns desactivados, agora objecto de reanimação nas mãos activas de vários (chefe da estação, capataz, assentadores e cozinheira), desenvolve-se a narrativa ficcional do drama da linha do Tua e seu último ferroviário. Segue com nostalgia o percurso do comboio pouca-terra de outrora na linha desactivada, a mudança dos tempos, da alma transmontana, avessa a contas de políticos, e a hospitalidade das gentes que acorrem a chegadas e partidas nos apeadeiros e estações. A antiga construção da linha férrea como coisa horrorosa e ganha-pão de muitos com pá e picareta nas mãos. Instala-se o medo, o pânico, a confusão do desastre da locomotiva em velocidade desenfreada e emergem superstições transmontanas, o socorro imediato. O rio Tua desenha-se em poesia, águas mornas e pedras e a viagem de comboio estouvado, saltimbanco, com as gentes esperançosas dentro, em sobressaltos, rompe o miolo da noite, com ruídos na linha que tem uma galáxia por destino, para lá do negrume das falésias e do transbordo. Ficcionam-se sonhos infantis da viagem de comboio, belo monstro de ferro, por mil mundos, rés ao rio que separa e aproxima vidas entre as duas margens e ao engrossar em cheias, engole adultos e crianças. Figuras masculinas de velhos solitários, desvalidos entre a morte e a vida, esperam o comboio nas estações desertas e fazem sua casa nos abandonados apeadeiros, enquanto abnegadas figuras femininas, professoras trota-mundos, ambas se impondo como autoridades sábias ao respeito e influência nas comunidades. Representada como memória de um povo debruçada sobre as fragas, a história centenária da linha do Tua, antropomorfizada, passa a ser a personagem central. De novo, o comboio como cavalo de ferro galopante, regida a vida pendular das gentes ao minuto, e a epopeia bíblica da construção da linha, por entre o ribombar constante do rio, por engenheiros eficazes e trabalhadores sem medo da morte, sob iniciativa de benditos homens de elites transmontanas, sob os olhares afluentes das
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gentes sorrindo surpresas à posteridade, obreiros colectivos da ideia de construção e de progresso de uma região. Na dispersão geral dos fragmentos, a evocação plurifacetada do vale do Tua: rio, linha e comboio, ventre de fragrâncias estranhas e passageiros absortos na beleza de Trás-os-Montes, breves paragens e votos de boa viagem, e ainda a percepção diacrónica do tempo, desde a data imemorial da inauguração da linha e do comboio, com honras de realeza, passando por sucessivos presidentes, repúblicas e ditadores até à sua paragem abrupta, a Noite do Roubo das máquinas, face à cara carrancuda do estado, em nome de outra ideia de progresso estranha aos que continuam a viver a linha do Tua, as águas termais do São Lourenço, liturgia termal de uma nação176. A partir das representações sociais citadas, pode perceber-se ainda: a força do sistema social que organizava costumes, hábitos, práticas e condutas sociais de personagens, mudanças e readaptações interiorizadas, no longo período relatado; as regras de funcionamento e organização da vida social e cultural que estabelecem uma realidade comum aos indivíduos que, incorporando e reelaborando em seus repertórios os valores que recebem do meio, se encontram umbilicalmente ligados à cultura destes lugares. Figura 137 – Linha do Tua (túnel)177
As representações sociais dessa realidade económica, social e cultural compósita que foi e é o vale, o rio, a linha e o comboio do Tua podem então agora ser reanalisadas 176
Para a lista de obras analisadas, ver: LAGE & BEIRA, 2013.
177
Fotografia de M. J. Fernandes Lopes.
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a partir de uma tentativa da sua categorização sociológica mais abrangente, expressa no quadro analítico abaixo178, mais adequado à singularidade do objecto empírico em estudo e construído a partir das lógicas ou mundos sociais, conceitos da sociologia de acção, que podem ser mobilizados e operam pelo seu valor heurístico e hermenêutico no presente contexto de análise. Estes conceitos permitem perspectivar a realidade ficcionada e representada, agenciando recursos e denunciando ou justificando acções dos actores, servindo-nos para o efeito da prova pelos objectos, segundo as diversas lógicas ou mundos em que operam, nomeadamente a lógica doméstica (baseada na confiança, mais de cunho social e familiar), a lógica industrial (baseada na racionalidade e eficácia e de feição económica), a lógica do mercado (baseada na oportunidade), a lógica da inspiração (assente na imaginação e inovação, mais de cariz individual) e ainda a lógica cívica (inspirada na ética). Neste enquadramento teórico e heterogéneo de coordenação, construído para defrontar problemas e questões derivadas do uso plural de escalas micro e macro e da necessidade de integração entre acção e estrutura, se desenvolve esta categorização final das representações sociais tendente á leitura inteligível da realidade empírica complexa e híbrida até pela marca nela estruturante de um regime de pluriactividade derivado da presença simultânea da pequena agricultura e espaços tecnologizados pela linha-férrea e o comboio, o que permite também aproximar, ao nível interpretativo e explicativo, este caso de outros casos nacionais. Tabela 7 – Mundos ou lógicas sociais Lógica doméstica
Lógica industrial
Lógica de mercado
As quintas e o proprietário agrícola absentista
O comboio como cavalo de ferro e belo monstro de ferro
O comboio e a linha férrea, meio e via de ligação
A construção da linha do Tua
Transporte de pessoas e de mercadorias
Agricultura no vale do Tua, labuta do aro agrícola
178
BOLTANSKI & THÉVENOT, 1987. BOLTANSKI et al., 1989.
379
Lógica de inspiração
Lógica cívica
Ficções literárias
Denúncia do encerramento da linha e da Noite do Roubo das máquinas
Escrita poética
Defesa de um mundo de valores e de património natural e histórico
A linha do Tua (1851-2008)
Lógica doméstica
Lógica industrial
Lógica de mercado
Lógica de inspiração
Lógica cívica
As relações entre os ferroviários e as populações locais
Os trabalhadores ferroviários
Debates e polémicas em torno da abertura da linha
Perceptos e afectos
Apeadeiros abandonados e estações fechadas
Práticas, usos e costumes rurais locais
O silvo do comboio e o barulho dos carris
Mobilidades e emigração
Argumentos e enredos literários
Polémicas em torno da construção da barragem
Barcas de passagem do rio
Máquina a vapor, locomotivas, manípulos, alavancas
Escoamento de produtos agrícolas e mercadorias
Percepções eruditas e mitológicas
Tumultos, revoltas sociais e zaragatas
Hospitalidade das populações locais e confraternização
Ideia de progresso e desenvolvimento regional
Comerciantes ingleses do vinho do Porto
Percepção diacrónica do tempo
Inauguração oficial da linha, construção e progresso de uma região
Crenças e superstições (o diabo…)
A força explosiva dadinamite
Ambiente fortemente concorrencial de vinhos e aguardentes
Braços abertos às montanhas, ventre de fragrâncias estranhas
Direito à continuidade da vida das populações no vale do Tua
Os fragmentos literários que compõem a colectânea analisada, unidos na sua diversidade por uma temática comum do vale do Tua – a abertura, funcionamento mais que secular e encerramento da linha – percepcionada e reinventada em múltiplas perspectivas, constroem como que uma epopeia colectiva atravessada por diferentes sinais de um propalado progresso e desenvolvimento regional. Recorrendo de novo à literatura, terminamos, metaforicamente, com esta recomendação: “se fores ao Tua, esquece-te dos pronomes possessivos”179; e a seguinte advertência, escrita em Foz-Tua, há 60 anos: “o progresso muita pedra deixa ainda no seu caminho!”180. As polifónicas memórias que narram vivências e impactos sociais e culturais desse empreendimento técnico, historicamente marcante, que foi a linha-férrea do Tua em Trás-os-Montes, factor de transformação do modo de vida de pequenas e interiores comunidades rurais, apresentam-se aqui, num corpus literário, testemunhal e ficcional que nos remete para a história. Narrativas épicas, reflexões discursivas, impressivas 179
CABRAL, 1999.
180
TORGA, 1953.
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crónicas de quotidiano, percepções poéticas e discursos sensitivos, encontram-se saturados de representações sociais que partilham diferentes mundos ou lógicas sociais com que se recriam realidades que se transformam e transformam a ambiência envolvente, dando sentidos vários ao processo histórico em questão. Nesse processo de recriação, experiências vividas/imaginadas são transferidas para os textos escritos e aí transmudadas, proporcionando aos autores e leitores representar também os seus contextos. Daí que os repertórios de representações e lógicas sociais identificados possam ser importantes na interpretação da colectânea sobre o Tua, pois que enquanto leituras do mundo e dos contextos sociais e históricos, ora permitem criar elos de ligação e intersecção, em dinâmicas de identificação, ora possibilitam conhecer e experienciar de modos novos. Saliente-se por fim, que são transversais ao presente texto, diferentes acepções de verdade na literatura (identificada com o fabuloso, mas eminentemente social), na ficção (que põe a verdade em suspensão) e na história (narrativa da veracidade), as quais, através da análise sociohistórica aqui feita, questionam os aspectos ficcionais do relacionamento entre a literatura, a história e a sociologia, requerendo uma configuração particular entre as três disciplinas, numa solução de compromisso. A busca por uma referência universalizante a um objecto específico aplica-se à literatura e ao modo como a história lê a produção literária. A cor local e a permanência da natureza são aqui uma característica comum e ponte para o diálogo entre o escritor e o historiador social, revelando duas formas de saber diferentes do mesmo objecto. A ficção tem de ser regulada pelo documento, pela referência extra-narrativa para alcançar a verdade. A mediação entre o que pode ser ficcionado e a constituição da própria história passa pela figura da imaginação que possibilita a representação quer da história, quer da literatura, para ler as fontes de que se dispõe, reconstituir o passado e pôr diante do leitor, o ausente181. Este é, porém, todo um outro desenvolvimento deste argumento.
181
SILVEIRA, 2009.
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5.5. O PAPEL ESTRUTURADOR DA LINHA DO TUA EM FOZ-TUA, CACHÃO E MIRANDELA Pedro Venceslau182
O final do século XIX marcou o vale do Tua pela aceleração do tempo das viagens graças ao caminho-de-ferro, que veio ainda alterar os hábitos comerciais e culturais da região. O impacto da linha não foi o desejado, no entanto pode dizer-se que nas aldeias ribeirinhas houve transformações, sendo as mais significativas nas dinâmicas comerciais. Nas três localidades à frente analisadas – Foz-Tua, Cachão e Mirandela – o caminho-de-ferro teve consequências ainda mais vincadas, não só ao nível das dinâmicas comerciais, mas também ao nível da industrialização e do urbanismo. A primeira transformação no vale liga-se directamente à origem da infra-estrutura, passando o transporte de pessoas e bens a ser feito por comboio. Também durante a construção se sentiu um movimento diferente, mais regular, no vale, que foi também notado nas aldeias183. A mala-posta que existia entre Vila Flor, Samões e Carrazeda de Ansiães deixou de operar neste período, apontando como motivo a construção e funcionamento do comboio, que passou a desviar parte desse trânsito, e a construção da estrada entre Carrazeda e Vila Flor que também contribuiu para o fim do trânsito comercial pelas zonas ribeirinhas do vale do Tua. No mapa seguinte, listam-se as estradas e outras vias que existiam no vale do Tua no fim do século XIX. A falta de referências a vias na região é um indicador de que seriam utilizados outros percursos não-oficiais, principalmente no trânsito comercial. 182
Escola Superior Gallaecia.
183
LAGE, 2011: 35-39.
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Tanto as estradas de segunda ordem, como as vias romanas conhecidas (que poderiam ser utilizadas) têm posições transversais ao rio, portanto contrárias às movimentações comerciais, remetendo para a existência de uma outra via ou percurso de apoio. Mapa 29 – Mapa das vias de comunicação no vale do Tua no fim do século XIX
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Existem dois troços de calçadas empedradas que, embora estejam identificados, não foram estudados, desconhecendo-se a que períodos correspondem. No entanto, os dois troços encontram-se em posições paralelas, contíguos ou atravessados pela actual estrada municipal que liga a aldeia do Pombal a Paradela. Pode colocar-se a hipótese de essa estrada, na sua maioria, ter sido construída sobre a antiga via de acesso ao porto da foz do Tua, tanto mais quando é tido em conta o seu sentido (paralelo ao rio). As alterações nas dinâmicas mercantis/comerciais do vale foram de um modo geral positivas. A partir do início da construção da linha, os habitantes daquele território, que até então viam passar com grandes dificuldades mercadorias e mercadores passam a ter mais formas de subsistir, graças a toda a actividade comercial em torno da construção da infra-estrutura184. Das aldeias ribeirinhas do rio Tua saíram ainda pessoas, embora em número reduzido em proporção da escala do território, para trabalhar no caminho-de-ferro em diversas funções (desde chefe de estação a maquinista ou factor)185. No início do século XX, à semelhança do que aconteceu noutras zonas do país, ocorreu a procura (lícita e ilícita) de minério, aspecto importante para a história da relação entre a linha e o vale do Tua. O facto de o caminho-de-ferro estar em funcionamento facilitou o seu transporte. Ao mesmo tempo, verificou-se grande adesão à exploração livre, ou seja, o dito contrabando e mercado negro, que fazia transportar o minério em animais (ao contrário do concessionado, que seguia por comboio). Além de minério, refira-se também o granito e os mármores de Santo Adrião, igualmente explorados em Trás-os-Montes, com maior incidência nas áreas contíguas à via-férrea, pela qual era feito o seu escoamento186. Há dois momentos em que a transição foi sentida positivamente, tendo por isso dependido de forma directa do caminho-de-ferro: o trânsito comercial que termina com o início do funcionamento da linha e o movimento em torno da construção e manutenção da via, simultaneamente com o mercado do minério. Esta fase mais positiva resultou do facto de haver bastante procura de trabalho, não obrigatoriamente agrícola (embora esta estivesse em alta, não só pela facilidade de escoamento da produção, mas também pelo fácil acesso aos adubos). Porém, o dinheiro fácil da exploração livre do minério não teve grande repercussão no território, do ponto de vista de desenvolvimento regional ou mesmo local187. Numa região em que o desenvolvimento tecnológico e industrial era reduzido, a esperança de crescimento económico regional era baixa ou quase nula. Contudo, a retracção económica provo184
LAGE, 2011: 35-36.
185
LAGE, 2011: 38.
186
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LAGE, 2011: 37.
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cada pelas duas grandes guerras, sentida em toda a Europa e, pelo menos, no litoral de Portugal, não teve reflexo na região. Em suma, a primeira alteração significativa no território diz respeito à alteração das dinâmicas comerciais das populações ribeirinhas que, até ao início do funcionamento da linha do Tua, tomavam algum partido do trânsito comercial que se fazia sentir, oriundo do entreposto fluvial da foz do Tua. Com o comboio em funcionamento, as populações passaram a ter o seu próprio dinamismo comercial, ilustrando a significativa importância da linha para as aldeias do vale e para a economia das localidades circundantes (para além da dinâmica criada pela exploração e contrabando/comercialização do minério, que era escoado pela linha e negociado a partir da estação do Tua, onde confluíam os negociantes). Até aqui deu-se relevância às questões das acessibilidades, que justificavam parcialmente a fragilidade económica da região. Também foi possível perceber o contributo do caminho-de-ferro na evolução do sector dos transportes no vale. De seguida, procede-se à análise morfológica de Foz-Tua, Cachão e Mirandela, para assim identificar o papel estruturador da linha do Tua no desenho urbano destas localidades.
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A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 30 – Planta de Localização de Foz-Tua
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125 anos de exploração
Até ao final do século XVIII, as grandes cheias do Douro durante o Inverno e as altas temperaturas do Verão levavam a que Foz-Tua não fosse um local habitado188. Os pescadores da zona normalmente residiam no Fiolhal e somente durante o Verão lá permaneciam, usando pequenas choupanas para pernoitarem e guardarem as redes. No entanto, a existência de um porto fluvial naquele lugar, o mais importante a montante da Régua, motivou com o decorrer dos anos o desenvolvimento do espaço, embora inicialmente com propósitos diferentes de habitação. Em 1876, o visconde de Vila Maior fazia referência à foz do Tua, onde existiam grandes armazéns, mandados construir pela antiga companhia do Alto Douro, onde era depositado o vinho comprado na região e o que os guardas apreendiam do contrabando. O mesmo autor refere ainda que esses armazéns tinham capacidade para 500 pipas de vinho189. José Viriato Capela menciona também a existência de 80 armazéns neste porto, onde a maior parte da gente do concelho vinha negociar, vender o que produzia e adquirir o que não tinha190. Figura 138 – Ilustração da foz do Tua no fim do séc. XVIII191
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CAPELA, 2007.
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VILA MAIOR, 1876.
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CAPELA, 2007.
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VILA MAIOR, 1876.
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Mapa 31 – Planta provåvel do lugar da foz do Tua, em 1880
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Mapa 32 – Planta síntese do lugar foz do Tua em 1880
No mapa anterior, o núcleo edificado inicial (NEI) surge na encosta mais próxima do porto fluvial da foz do Tua. Nesta síntese é perceptível a acentuada topografia e a consequente dificuldade que se levantava ao crescimento gradual do edificado, além
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A linha do Tua (1851-2008)
daquela estreita faixa com a mesma cota. A possibilidade de crescimento seria apenas ao longo da margem do rio Douro com variações mínimas de declive, facilitando a acessibilidade entre os armazéns e o porto fluvial. Esta mesma estreita faixa de terra condicionou o estado a construir a estação a cerca de 1 km para montante do NEI. Por um lado, era a faixa de terreno disponível mais larga e distante do rio; por outro, oferecia melhores condições para o início da futura linha em direcção ao interior da região (a linha do Tua). A chegada do comboio a Foz-Tua transformou este lugar. Toda a zona envolvente à Senhora da Guia, em especial a nascente, era ocupada por dezenas de armazéns, pertença de comendas, casas senhoriais e muitos comerciantes de todo o distrito. Muitos foram arrasados com a construção do caminho-de-ferro; outros foram abandonados e alguns conservaram-se adaptados a outas funções. As casas inglesas também recuperaram alguns armazéns, mantendo-os em actividade192. Com a chegada do comboio nos finais do século XIX o porto fluvial entrou em decadência, pois a transacção de produtos passou a ser feita por comboio, o que explica também o desaparecimento de alguns daqueles armazéns. Figura 139 – Excerto do projecto definitivo da linha do Tua (c. 1887)193
192
MORAIS, 2013.
193
Centro nacional de documentação ferroviária.
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125 anos de exploração
Uma estação ferroviária com a importância que a do Tua teve na região deu à foz do Tua dinamismo, desenvolvimento e crescimento. Passavam por aquela estação milhares de pessoas em direcção ao Porto e Lisboa. No século XIX, passaram também os emigrantes em direção ao Brasil, São Tomé, Angola e Moçambique e no século XX (principalmente na década de 1960) os que se dirigiam para França e Espanha. A estação por si só foi um pólo de desenvolvimento que gerou algum crescimento em seu torno. Manteve-se sempre essa tendência e o crescimento foi acontecendo em função deste equipamento, preenchendo os interstícios entre o NEI e a estação. Figura 140 – Excerto da planta geral de melhoramento da estação do Tua (1943)194
194
Arquivo histórico municipal do Porto.
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A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 33 – Planta de Foz-Tua (década de 1940)
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125 anos de exploração
Mapa 34 – Planta síntese de Foz-Tua (década de 1940)
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A linha do Tua (1851-2008)
No mapa anterior é perceptível a falta de área suficiente para implantar a estação do Tua que, conjugada com a necessidade de vencer o desnível (entre o NEI e o início da linha do Tua), forma os critérios de justificação da implantação do edifício da estação a cerca de 1 km do NEI para montante na faixa disponível. A estação por si só foi um pólo de desenvolvimento que gerou algum crescimento em seu torno. Manteve-se sempre essa tendência e o crescimento foi acontecendo em função deste equipamento, preenchendo os interstícios entre o NEI e a estação. O lugar da foz do Tua transformou-se numa aldeia onde a maior parte dos residentes subsistiam de pequenas casas comerciais (pensões e tabernas na maioria) ou em funções ligadas ao caminho-de-ferro. Quando a linha passou para a CP, esta empresa construiu o bairro da CP, de forma a alojar alguns funcionários. A aldeia chegou a ter alguns serviços como os da guarda nacional republicana, correios e escola primária. As quintas do Tua empregavam a maior parte da mão-de-obra disponível. Era trabalho duro, difícil, mal pago e sazonal, o que aliado a outras questões sociais fez crescer a procura por um emprego na companhia do caminho-de-ferro. Na aldeia do Tua, em meados do século XX, o poder económico estava directamente relacionado com a estação. A população mais abastada vivia de actividades ligadas à ferrovia. O lado sul da aldeia, a Foz, apenas possuía a vertente religiosa. A perda de importância do comboio como infra-estrutura de transporte, o atravancamento geográfico da foz do Tua (sentido até hoje pelas difíceis condições de acessibilidades rodoviárias) e a indisponibilidade topográfica de terrenos para construção ditou o retrocesso e abandono da aldeia nas duas últimas décadas do século XX. Figura 141 – Vista geral da estação do Tua195
195
Foto do autor.
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Mapa 35 – Planta de Foz-Tua (década de 1980)
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A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 36 – Planta síntese de Foz-Tua (década de 1980)
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125 anos de exploração
O mapa anterior demonstra a dimensão que Foz-Tua tomou, ocupando o espaço disponível entre a estação e a parte antiga da aldeia. O diminuto crescimento que se verificou nesta fase final (1950-1980) procurou lugares onde pontualmente seria possível construir, tendencialmente afastados da aldeia. Disto são exemplos os equipamentos bairro da CP e escola primária que foram implantados a alguma distância do NEI e até mesmo da zona da estação, mas seguindo sempre o mesmo princípio. * O caminho-de-ferro imprimiu um dinamismo ao vale do Tua e à economia do distrito. Ao longo do seu traçado, as estações e apeadeiros foram implantados de forma estratégica, para poder servir as povoações no seu ponto mais próximo da linha (mesmo nos casos das sedes de concelho que não foram atravessadas por esta infra-estrutura). A curta distância e a fácil acessibilidade que o relevo permitia foram, possivelmente, os dois fundamentos que justificaram que no lugar do Cachão fosse implantada uma estação para servir Vila Flor, o flanco nascente do concelho de Carrazeda de Ansiães e Alijó. Neste mapa faz-se referência à implantação da estação do Cachão para servir Vila Flor e como se dá o início à edificação civil deste lugar. A estação foi implantada num local estratégico, na confluência de duas vias, as quais davam acesso aos locais por ela servidos. As primeiras construções surgiram perto da gare. Ao longo da estrada foram-se estendendo casas comerciais que viviam da dinâmica da estação. As manchas representantes da área passível de crescimento, mais a norte e centro, eram zonas ricas para a agricultura, servindo portanto de apoio às casas comerciais. A mancha mais a sul, para além de ficar mais distanciada, era uma zona muito rochosa e com um declive acentuado. Localizado a uns escassos 13 km de Mirandela, o Cachão (lugar da freguesia de Frechas) fica inserido no sopé de duas serras na margem do rio Tua. A estação ali construída servia também o concelho de Alfândega da Fé e o vale da Vilariça, muito propício à produção agrícola devido ao seu microclima. Desde cedo, a estação do Cachão fez atrair movimento de pessoas e de mercadorias, impulsionando o desenvolvimento local. Na memória oral ficou a figura de D. Pulquéria, natural de Vilarinho das Azenhas, que foi a primeira a construir uma pequena casa de comércio e pensão no Cachão. Com o decorrer dos tempos, o negócio evoluiu, tomando a dimensão de uma casa comercial, retalhista e armazenista. Chegou a ter rebanhos para a produção de queijo que era exportado via comboio para o Porto. Pouco depois surgiram os Cardosos, família de comerciantes, que ali se estabeleceu para desenvolver o seu negócio196. 196
Entrevista a Maria Violante Pastor, neta da sra. Pulquéria.
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Mapa 37 – Planta de localização do Cachão
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Mapa 38 – Plantas do Cachão 1910-1960
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Mapa 39 – Planta síntese do crescimento do Cachão 1910-1960
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125 anos de exploração
O Cachão tornou-se assim um entreposto comercial, sendo um posto de distribuição de sal para toda a região. As mercadorias vinham de comboio e uma grande parte delas ficava nas casas comerciais ali estabelecidas, que posteriormente as revendiam através de intermediários distribuídos pela região. Por outro lado, os agricultores levavam as suas produções (sobretudo cereal e azeite) ao Cachão para as vender aos armazenistas, que posteriormente as negociavam e expediam pelo comboio, enraizando neste local uma cultura comercial197. Mais tarde, já em pleno século XX instalou-se no Cachão um complexo agroindustrial, pela mão do engenheiro Camilo de Mendonça, natural de Vilarelhos, concelho de Alfândega da Fé. Camilo de Mendonça ingressou na vida política na união nacional, organização política que suportava o estado novo. Desempenhou vários cargos ligados a sectores económicos (desde delegado do governo no grémio dos armazenistas e exportadores de azeite a presidente da junta de exportação do café ) e foi um dos membros do sector de desenvolvimento do regime. Foi o mentor e impulsionador do complexo agroindustrial do Cachão (CAICA), enquadrado na óptica desenvolvimentista para a região, ideia que defendeu durante anos, como seu projecto de vida. O local inicialmente pretendido para a implantação deste empreendimento foi Mirandela, mas, pela dificuldade e impossibilidade de negociação na aquisição de terrenos da dimensão necessária, foi necessário encontrar outra solução. O local mais próximo com as características necessárias para implantar o empreendimento era a aldeia do Cachão. Apoiado na sua proximidade ao regime, Camilo de Mendonça foi dando passos decisivos para a realização do projecto, conseguindo por exemplo a união dos grémios da lavoura. O projecto foi idealizado para suportar uma revolução agrícola, que colocaria a agricultura transmontana ao nível das melhores da Europa198. Para além de um complexo destinado à agro-indústria, o empreendimento incluía a extensão do regadio a uma vasta área, suportada pela construção de barragens de terra batida. Para conquistar a adesão dos grémios a este projecto, Camilo de Mendonça mostrou ele próprio obra, empregando muitas vezes capitais próprios. Defendeu que só com a união da região se conseguiria vencer o atraso e criar condições de vida para “segurar a gente”199, contrariando assim a emigração, através do fomento industrial com a criação de núcleos de mecanização e da implementação do ensino superior na região (depois de muita insistência, conseguiu Camilo de Mendonça a instalação da universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro em Vila Real). Em 1963, através da federação dos grémios da lavoura do nordeste transmontano (FGLNT), que começou por traçar caminhos, sugerir soluções e perceber em que pro197
Entrevista a Maria Violante Pastor, neta da sra. Pulquéria.
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Entrevista a Maria Violante Pastor 401
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duções se deveria apostar para valorizar a região, surge o CAICA, com o objectivo de revolucionar a agricultura da região através do desenvolvimento de actividades ligadas à produção, aquisição, transformação e comercialização de produtos agropecuários200. O CAICA foi dirigido por Camilo de Mendonça, com base numa nova política agrícola de aumento da rentabilidade e da produtividade. Graças aos esforços do seu dirigente máximo, o empreendimento do Cachão estendeu-se a vários núcleos dispersos por todo o distrito de Bragança. Pelos seus objectivos e dimensão, foi um projecto único no país, destacando-se também na Europa. Em suma, este complexo destinava-se, essencialmente, à valorização e expansão das produções agropecuárias da região, através da sua transformação industrial e comercialização, canalizando-as não só para o mercado interno, mas também para o exterior. Idealizado como o “Motor da Região Nordestina”201, o CAICA, em 1964, atingiu uma área coberta de 9 ha, tendo criado uma marca própria, a Nordeste.
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VISEU, 2007.
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Mapa 40 – Planta do Cachão 1965-1970
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Mapa 41 – Planta síntese do crescimento do Cachão 1960-1970
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125 anos de exploração
Um empreendimento desta natureza necessitava de uma grande área, pelo que foi implantado na mancha central, mais próxima da estação e do NEI. Camilo de Mendonça projectou o bairro social na parcela de terreno disponível mais a sul. Segundo Albano Viseu, esta escolha ficou a dever-se ao facto de o engenheiro pretender distanciar o bairro de apoio do complexo da aldeia202. Porém, analisando o redesenho cartográfico, percebe-se que aquele era o único local disponível para implantar o equipamento. Pouparam-se os terrenos agrícolas ao mesmo tempo que não se constringiu o NEI, que podia assim desenvolver-se e crescer, como aliás acabou por acontecer. O CAICA, constituído por unidades industriais (pavilhões) dispostas em planos sucessivos, na base do monte da Nossa Senhora da Assunção e perto do rio Tua, compreendia os seguintes sectores: fruticultura, horticultura, destilação e vinhos e azeites. A implementação do complexo foi gradual, embora o essencial para o início da laboração tenha sido montado de uma só vez. Algumas fábricas e equipamentos foram adicionados à unidade industrial com o decorrer dos anos. O bairro social foi executado por fases, sendo que a primeira correspondeu à data do início do complexo, altura em que se construíram as primeiras sete habitações para albergar alguns técnicos. O CAICA recebia mais de trinta produtos, vindos de toda a região, para vender e transformar. Desta forma, o projecto valorizou as culturas existentes na região em função da sua intervenção e dinamização. No sector pecuário, o matadouro foi a última fábrica a ser instalada, não só pela sua dimensão, mas também devido à complexidade do sector em questão. O matadouro era uma peça do plano de Camilo de Mendonça para o encabeçamento do gado transmontano, do qual faziam ainda parte núcleos de criação de animais espalhados pela região (alguns dos quais chegaram a ser realizados). Outra vertente deste plano era cruzamento de raças autóctones de ovelhas com carneiros que vinham da Grécia, para que cada cria nascesse logo com 6 ou 7 kg. No que respeitava à lã, foram criadas pela FGLNT, núcleos de artesanato destinados à manufactura de artigos daquela matéria, com o objectivo de dar saída à produção e manter ocupadas as mulheres, dando-lhes ainda a oportunidade de aumentar o orçamento familiar, evitando a emigração. Foi igualmente criado um centro de arte e design com um sector comercial que procurava exportar os têxteis artesanais do CAICA para o mercado internacional203.
202
VISEU, 2007.
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Mapa 42 – Planta do Cachão, 1970-1975
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Mapa 43 – Planta síntese do crescimento do Cachão, 1970-1975
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Energeticamente, o complexo era auto-suficiente, através de uma central de vapor, geradora de energia eléctrica. No sector da formação e da investigação, houve também uma grande aposta204. O bairro social foi criado para resolver o elevado custo do transporte de trabalhadores, para facultar a laboração das fábricas por turnos e ainda para enraizar famílias no Cachão, que garantiam assim mão-de-obra para as gerações seguintes. A ideia foi implantar o bairro no extremo sul do complexo, desconectando-o do espaço da aldeia. O novo conjunto habitacional foi crescendo a partir das primeiras sete moradias de trabalhadores atingindo um total de 130 fogos. Era composto de vivendas iguais, com luz eléctrica, saneamento e água canalizada, infra-estruturas inexistentes na aldeia do Cachão e na maior parte das outras aldeias do distrito. A este bairro, o engenheiro Camilo de Mendonça deu o nome de Vila Nordeste. A luz eléctrica era fornecida por geradores ou pela central de vapor do complexo. Foi projectada uma estação de tratamento de águas residuais, que, porém, não chegou a entrar em funcionamento. Figura 142 – Mulheres a trabalhar no sector da lã205
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VISEU, 2007.
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Arquivo Agro-Industrial do Nordeste.
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Inicialmente, o posto médico funcionava numa dependência do complexo e mais tarde passou para o bairro social (tendo médicos de todas as especialidades)206. A Vila Nordeste contava ainda com um infantário, duas escolas, correios e um campo de futebol. As escolas no Cachão tiveram um papel preponderante na emancipação das mulheres da região, que passaram a ter a possibilidade de deixar os filhos na escola e em actividades ocupacionais durante o seu turno de trabalho. Para além destas regalias, as famílias tinham ainda direito ao abono de família, aspecto também inovador no país207. Dentro do complexo, foi criada uma cooperativa de consumo, a COOPENORD, que colocava à disposição dos associados electrodomésticos e mercearia, a preços mais baixos do que no mercado e com facilidades de pagamento. Isto possibilitou aos trabalhadores do CAICA e aos moradores da Vila Nordeste o acesso a outro tipo de produtos (como televisores) e a melhores condições de vida208. Foi ainda criado, no âmbito da federação nacional de alegria no trabalho, o centro de alegria no trabalho, um projecto de apoio aos trabalhadores com uma grande dinâmica no campo cultural e desportivo209. O CAICA oferecia apoio ao agricultor, facilitando o cultivo e aumentando os rendimentos. Dispunha de uma equipa de técnicos para dar suporte local. Introduziu um núcleo de mecanização em Macedo de Cavaleiros, onde qualquer agricultor tinha acesso a meios mecanizados (ceifeiras-debulhadoras, enfardadeiras, tractores), os quais pagavam com as próprias culturas. Figura 143 – Primeiras ceifeiras-debulhadoras a operar na região. Núcleo de Mecanização do CAICA210
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VISEU, 2007.
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Arquivo Agro-Industrial do Nordeste.
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O engenheiro Camilo de Mendonça planeou um sistema de irrigação com 130 barragens com paredões de terra batida para colmatar a falta de água na região. Foi sob este plano que se construíram as barragens do Cachão, da Carvalheira, em Macedo de Cavaleiros, Rebordelo, Alfândega da Fé e Vilariça. Mais tarde, foram adicionadas novas barragens (como por exemplo as do Azibo e Carrazeda de Ansiães), feitas por outras instituições, mas nos locais estrategicamente previstos pelo CAICA211. As barragens serviram também durante anos para abastecimento de água às localidades contíguas. O complexo dinamizou a agricultura e os produtos existentes na região e implementou outros que não eram conhecidos, através da criação de um sistema de produção de plantas em viveiros. O CAICA garantia o escoamento total da produção, chegando mesmo a exportar para a Rússia. A exportação iniciou-se em 1964 com um comboio de 17 camionetas com cerca de 15 t de castanha, que se dirigiu a Leixões para seguir para o Brasil. Em 1966, o CAICA produziu 60 t de bagaço de uva, 5 mil l de borras de vinho, 150 pipas de vinho e 1 milhão l de azeite, entre outros produtos212. Considerando a dependência da região do sector primário, a acção do CAICA relançou a economia regional. O mapa seguinte refere-se ao complexo na sua totalidade e ao bairro social na penúltima fase de construção. Em meados da década de 1970, o complexo não estava ainda a funcionar em pleno, devido a obstáculos burocráticos (o matadouro levou alguns anos a entrar em funcionamento, por exemplo). Este período corresponde aos primeiros anos de democracia, que influiu na entrada em laboração de alguns equipamentos. Foi também nesta época que se preencheu na totalidade a Vila Nordeste, com a construção de equipamento desportivos e a pavimentação das ruas. Durante esta fase final, e no que diz respeito ao crescimento do edificado, nota-se um considerável crescimento do NEI, facilmente justificado pelo CAICA se encontrar em actividade e empregar um elevado número de trabalhadores.
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Entrevista a Mário Joaquim Mendonça Abreu Lima.
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VISEU, 2007: 346.
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125 anos de exploração
Mapa 44 – Planta do Cachão 1975-1980
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A linha do Tua (1851-2008)
Mapa 45 – Planta síntese do crescimento do Cachão 1975-1980
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125 anos de exploração
Mapa 46 – Planta com indicação das vias de comunicação construídas sob influência do CAICA
O CAICA teve um grande impacto na agricultura por todo o distrito. As acessibilidades não eram as melhores, pelo que o complexo rasgou novas estradas (ver mapa anterior), que, além de facilitar o transporte de mercadorias, ligavam o extremo nordeste do distrito ao lado poente (Alfândega, Torre de Moncorvo, Freixo-de-Espada-àCinta), facilitando ao mesmo tempo a ligação a Mirandela, Vila Real e Porto. * 413
A linha do Tua (1851-2008)
No que diz respeito a Mirandela, uma série de factores ocorridos entre o fim do século XIX e o século XX alteraram a sua morfologia e romperam com o seu isolamento territorial, efectivando a sua centralidade geográfica. Esses factores ligaram-se intimamente ao desenvolvimento dos meios e vias de comunicação e à urbanização da região. Mapa 47 – Planta de localização de Mirandela
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125 anos de exploração
Um marco significativo para o desenvolvimento desta área foi a inauguração da linha do Tua em 1887, que, conjugado com a localização central de Mirandela no centro do nordeste transmontano, polarizou valências não só na localidade, mas também na sua área de abrangência. Mirandela fortificou-se como ponto de passagem obrigatório e tornou-se o cruzamento rodo e ferroviário mais importante da região213. Centro histórico do comércio agrícola e da indústria (foi um pólo sericícola até perto do final do século XIX), o seu desenvolvimento esteve intimamente ligado às vias de comunicação: à linha de Foz Tua Mirandela (1887); à linha de Bragança (1906); e à via rodoviária IP4, que redefiniu uma nova centralidade regional para a cidade, em finais do século XX (1995). Em Mirandela, o caminho-de-ferro fixou chefes de estação, guardas da linha, maquinistas, fogueiros, revisores, pessoal de conservação da via, fiscais, pessoal especializado na manutenção e na reparação das máquinas e equipamentos e respectivas famílias. Depois de 1887, e mais tarde nos anos 1960, Mirandela tornou-se urbanamente atractiva e a sua centralidade tornou-a num local dinâmico do nordeste transmontano214. Mirandela foi-se modernizando e a linha-férrea foi um dos factores responsáveis pelo aparecimento de novos serviços e de novos organismos públicos e particulares: a CUF, a SAPEC, bombas de gasolina, oficinas de madeiras, moagens, fábricas de cortiça, lagares de azeite, oficinas de metalomecânica, oficinas da CP, oficinas de reparação de máquinas e de automóveis, padarias, cafés, lojas de vestuário e calçado, farmácias, hotéis, pensões e residenciais, barbearias, talhos, peixarias, oficinas de sapateiros, alfaiates, pintores, trolhas, entre outros. O mapa seguinte apresenta o período antecedente à chegada do caminho-de-ferro a Mirandela. Observa-se que o aglomerado edificado encontrava-se entre três barreiras: a norte, a ribeira de Carvalhais; a poente, o rio Tua e a sul uma tímida linha de água e uma porção de terreno pertencente a um só proprietário. Desta forma, a vila só poderia crescer para nascente, pela disponibilidade de área e topografia acessível. A fábrica da CUF foi construída em Mirandela em 1926, num local conhecido por Vale da Azenha ou Cruzeiro, com área de 38 mil m2 (11 mil m2 de área coberta), contíguo à estação de caminho-de-ferro, da qual dependia directamente. A CUF tinha um ramal ferroviário ligado à estação, que a abastecia de adubos e outros produtos para a agricultura e escoava óleos e outras produções.
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VISEU, 2007: 98-107.
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VISEU, 2007: 150.
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Mapa 48 – Planta de Mirandela, dÊcada de 1880
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Mapa 49 – Planta síntese de Mirandela na década de 1880
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Da área coberta faziam parte o lagar de azeite, a extracção de óleos, a caldeira, a central eléctrica, os secadores verticais, o armazém do bagaço de azeitona, as tulhas de azeitona, o armazém do subproduto, o armazém de matérias, as oficinas, a casa das bombas, a casa do boi, os balneários e os refeitórios do pessoal. Manteve em funcionamento uma rede regional de engenheiros agrónomos que cobriu todo o país e que, em estreita colaboração com as entidades oficiais, contribuiu para melhorar a produtividade da agricultura. A central eléctrica da fábrica da CUF era composta por dois geradores a vapor que produziam energia para toda a instalação e ainda para uma parte da vila, principalmente em dias de grande consumo215. Até à década de 1960, Mirandela foi um aglomerado pequeno, cujos pontos principais eram o Toural, a rua de São Francisco, a rua das Amoreiras, a rua de Santa Luzia, a rua da Portela, o São Miguel, o Bairro da Tarana, a rua D. Manuel II, a zona do Tanque, o Cardal e a rua da República216. Surgiram em seguida os seguintes bairros: Operário, Preguiça, Pinheiro Manso, São João e Convento. Nos anos 1960, foram concretizadas algumas realizações e deu-se início a um processo que levou a que Mirandela ficasse equipada com organismos, serviços, equipamentos, monumentos, pontes e espaços aprazíveis: resolveram-se os problemas mais urgentes da vila e do concelho (estradas e caminhos, abastecimento de água canalizada, electrificação, urbanização, saneamento, melhoria das habitações, serviços, escolas); a nível da educação, Mirandela muniu-se de estabelecimentos de ensino de qualidade, atraindo um grande número de estudantes217. No mapa seguinte, é possível perceber que o caminho-de-ferro limitou na totalidade o perímetro da área edificada, ou seja, o desenho da linha fechou o lado nascente, para onde poderia a vila poderia crescer e se desenvolver. Mirandela ficou assim completamente congestionada, pois a área disponível para a construção era reduzida, traduzindo-se em apenas algumas zonas de preenchimento. A via-férrea tornou-se em mais um limite físico, que demorou cerca de duas ou três décadas a ser transposto. Por outro lado, foi a infra-estrutura que deu o impulso de construção fora dos limites da cidade através da construção do bairro operário. O incentivo ao desenvolvimento de Mirandela naquele flanco foi reforçado pelos serviços ferroviários, que albergaram os trabalhadores das oficinas gerais da linha do Tua.
215
VISEU, 2013.
216
VISEU, 2012: 148-151.
217
VISEU, 2007: 142.
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125 anos de exploração
Mapa 50 – Planta de Mirandela na década de 1950
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Mapa 51 – Planta síntese de Mirandela na década de 1950
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125 anos de exploração
Em 1954, foi elaborado um plano geral de urbanização pelo arquitecto Brito e Cunha, que, embora não tivesse sido aprovado, antevia muito daquilo que viria a acontecer. É assim de crer que foi levado em conta e seguido pelos técnicos da câmara em muitas decisões. Por esta altura, Mirandela estava dividida em duas partes, separadas pelo rio Tua: a vila, propriamente dita, urbanizada e desenvolvida, e a zona de Golfeiras, a precisar de melhoramentos essenciais (escolas, arruamentos calcetados, ajardinamentos e alguma indústria). A entrada em laboração, em 1964, do CAICA foi de grande importância para Mirandela por ter levado à fixação de organismos nesta localidade: a direcção-regional de Trás-os-Montes do ministério da agricultura (1978), a direcção-geral dos serviços pecuários, os serviços agrícolas regionais, os serviços de hidráulica, de viticultura e de oleicultura, bancos, escolas, hospital, a junta autónoma das estradas, o gabinete e apoio técnico da terra quente transmontana, etc. Por outro lado, a EPAC controlava as reservas de cereais e fazia o escoamento à lavoura. Por fim, a CUF construiu em Mirandela um armazém de venda de produtos de apoio à agricultura local (sobretudo adubos e alfaias agrícolas). Em 1965, foram ainda inauguradas as seguintes obras, que demonstram a importância e crescimento de Mirandela: hospital moderno, novo bairro próximo da estação, centro desportivo, quartel dos bombeiros, vários edifícios de habitação novos, jardins (junto ao rio e junto ao mercado) e seis modestas unidades hoteleiras. O final da década de 1960 ficou marcado pelo crescimento da população estudantil, que fez aumentar a procura de alojamento. Os estabelecimentos de ensino existentes (ensino preparatório, liceal e técnico: agrícola, comercial e industrial) eram factores de atracção da região. A vila começou a crescer e a desenvolver-se. A chegada de professores, técnicos e funcionários de vários serviços e dos retornados das colónias (após o 25 de Abril), levantaram problemas de alojamento que tiveram de ser solucionados. Antes da expansão da malha urbana, em Mirandela havia meia dúzia de casas nos seguintes bairros: São João, Operário, do Pinheiro, da Cadeia, dos Pobres, do Convento, da Boavista e do Sardão do lado de Golfeiras. O plano de urbanização permitiu articular o crescimento de todos estes aglomerados bem como resolver a questão dos bairros clandestinos218.
218
VISEU, 2012: 158
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Mapa 52 – Planta de Mirandela na dÊcada de 1980
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Mapa 53 – Planta síntese de Mirandela na década de 1980
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A linha do Tua (1851-2008)
Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, alguns bairros foram melhorados e ampliados (Preguiça, Pinheiro, Convento, Tarana, São João) e surgiram outros novos: Castanheiros, São Sebastião, Cadeia, Urbimira, Conde Fijó, Zona Industrial, Fundo de Fomento, Salesianos, Conde Redondo, Fontes Frias, Vale da Azenha e, do lado de Golfeiras, Sardão, Peleiros, Boavista, Entre Vinhas, Estanca Rios e São Bento. A década de 1980 foi marcada por um boom no crescimento de Mirandela. Foi também um momento de transição no que respeita à análise morfológica da cidade, em virtude da extensão do IP4 até Mirandela. As tendências de crescimento da cidade na margem direita do Tua ganharam ainda mais força com esta infra-estrutura rodoviária. O fim da linha do Tua começou a ser anunciado. Embora o efectivo encerramento deste serviço ainda tivesse demorado alguns anos, a perda de importância do comboio para a cidade aconteceu a partir de então. No mapa anterior, contudo, é possível perceber o poder de incentivo ao desenvolvimento da cidade proporcionado pelos serviços do caminho-de-ferro. Ao mesmo tempo a CUF também solidificou a sua malha edificada com o desenvolvimento da empresa e a necessidade de construir também edifícios para albergar alguns trabalhadores. As zonas de preenchimento disponíveis no aglomerado urbano inicial foram ocupadas. Com a falta de espaço para construção, foi procurada uma área que oferecesse condições para o crescimento urbano. Na década de 1980, o lado sul de Mirandela ainda reunia condições do ponto de vista infra-estrutural. Porém, há que ter em conta dois outros vectores de crescimento. O primeiro situou-se ao longo de uma via no sentido nascente, que comunicava com um pequeno aglomerado edificado que surgiu a alguma distância da vila e que resultou no bairro São João. O segundo estendia-se ao longo da estrada nacional no sentido norte. Na margem oposta do rio, apareceram pequenas manchas respeitantes a construções de apoio agrícola. No desenho cartográfico aparece um novo elemento, o actual hospital Trigo de Negreiros, no lado oposto do rio Tua. Com ele, surgiram também algumas manchas edificadas, salientando mais uma vez a força que um equipamento de carácter público pode ter no desenho de uma cidade.
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125 anos de exploração
Mapa 54 – Planta de Mirandela elaborada em função dos serviços na década de 1980
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A linha do Tua (1851-2008)
Relativamente à vila, com o decorrer dos anos a mancha edificada foi ganhando dimensão, mediante a estrutura seguida até então. Houve uma aposta no crescimento e desenvolvimento para sul, apoiados nas infra-estruturas que existiam, mas também na construção de novos equipamentos, seguindo políticas do estado novo (como por exemplo habitações associadas à educação como o bairro fundo fomento habitação, o liceu, a escola primária, a escola secundária ou o pavilhão gimnodesportivo). Um dos primeiros loteamentos projectados pela câmara surgiu no seguimento do bairro operário (bairro da Preguiça). O plano de urbanização de Mirandela previa o desenvolvimento da vila precisamente no sentido sul, factor que reforça a ideia do desenvolvimento da cidade ter uma justificação infra-estrutural, ao invés de outra apoiada na facilidade e disponibilidade de área. No mapa desenhado em função dos serviços (a seguir), é possível perceber que os equipamentos de carácter público de grande dimensão e importância (educação, transporte, industria) foram localizados a sul, ainda mais se a estes factores forem associados os equipamentos de habitação colectiva lá situados.
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125 anos de exploração
5.6. ALTERAÇÕES NA LINHA DO TUA (1895-1920) Albano Viseu219
A linha do Tua sofreu, ao longo dos tempos, um conjunto de alterações, o que demonstra a sua dinâmica, posta ao serviço das populações locais e das terras que sentiram o pulsar das suas várias actividades e que ganharam outra importância com esta via de comunicação. As actividades económicas ganharam outra vida, porque o caminho-de-ferro proporcionou a canalização para o mercado das suas produções e a captação para a região transmontana de produtos e matérias-primas que nela não existiam. A linha do Tua teve que responder às necessidades de circulação de pessoas e de mercadorias, suprindo carências, tornando-se mais funcional e dignificando uma região que precisava de ver resolvidos os seus problemas de interioridade e os seus estrangulamentos no relacionamento com o modus vivendi regional e nacional. A via-férrea não poderia ter ficado eternamente na mesma, pois a sua operacionalidade diária, os fenómenos resultantes do desgaste natural do território e os factores climáticos invasivos e influenciadores acarretaram problemas que tiveram que ser resolvidos. A linha passou assim por um conjunto de alterações que se tornaram essenciais nesse processo de transformação. As estações e os apeadeiros foram alterados, pois houve a necessidade de preservar a sua conservação, de os aumentar e de os adaptar às exigências do momento e de neles introduzir melhoramentos. Os apeadeiros nasceram em locais específicos e 219
Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
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A linha do Tua (1851-2008)
aqueles que se mostraram desadaptados deram lugar a outros, em lugares mais bem localizados, respondendo, assim, às necessidades de circulação. A abrangência deste processo acabou por envolver as entidades da Companhia Nacional e os directores dos seus vários serviços, responsáveis pela delineação, pela fiscalização e pela execução de vários projectos. As alterações concretizadas ao longo da linha, entre o ano de 1895 e o de 1920, ocorreram em determinados locais: 1) Mirandela e arredores; 2) estação do Tua; 3) outras estações (Cachão; Abreiro; Amieiro/Santa Luzia; São Lourenço; vedação de propriedade em Vilarinho das Azenhas), apeadeiros (Codeçais, Latadas, Vilar de Ledra, Salselas e Rebordãos) e num muro de espera (estrada Mirandela-Bragança, km 60,350). Entre 1895 e 1905. – 1895: demolição de uma casa de guarda em ruínas ao km 9 e reconstrução de outra, de igual tipo, ao km 26, dando origem à estação de Codeçais220. No dia 1 de Maio de 1895 o director de serviço da Companhia Nacional comunicou ao engenheiro director fiscal de exploração de caminhos-de-ferro que a casa de guarda, situada ao km 9 ameaçava ruir, pelo que pedia autorização para a demolir e para a reconstruir ao km 26, onde podia ser utilizada ao serviço de exploração. Paiva Couceiro pede ao engenheiro-chefe da segunda divisão fiscal de via e obras, cinco dias depois, que o informe sobre essa casa e ficou a saber que: “o estado de conservação da casa de guarda (…) não é bom, tem estado abandonada. Não resultará inconveniente para o serviço de exploração do caminho-de-ferro da sua supressão, porque ficando no extremo de dois partidos, os respectivos capatazes não a habitam, preferindo ficar nas estações de Amieiro e S. Lourenço e a passagem de nível que lhe fica próximo, não tendo guarda, por ser de pouca importância, a torna também dispensável”. A Companhia Nacional começou a fazer a escavação para o alargamento do recinto da estação de Codeçais e a reconstrução da mesma no início do mês de Agosto de 1895. A 16 de Agosto, o engenheiro-chefe da segunda divisão fiscal de via e obras informou a direcção fiscal que “só ali se andava procedendo ao alargamento do terreno que deve servir de estação de Codeçais”. A 3 de Setembro de 1895, a Companhia Nacional tinha terminado “a demolição da casa de guarda ao quilómetro 9 da sua linha de Mirandela, e principiou outra do mesmo tipo, destinada a estação do apeadeiro de Codeçais ao quilómetro 26”; e a 23 de Outubro de 1895 estava já construído “um cais coberto e descoberto”.
220
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 162.001 a 162.012 de 1895.
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125 anos de exploração
Figura 144 – Planta do projecto de obras no apeadeiro de Codeçais221
Figura 145 – Apeadeiro de Codeçais (km 25)222
– 1895-1896: reparação da estrada real n.º 38 (Chaves a Torre de Moncorvo por Mirandela), entre a vila de Mirandela e a sua estação de caminhos-de-ferro223. 221
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 162.012.
222
Fotografia de Eduardo Beira
223
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 85.001 a 85.009 de 18951896.
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A linha do Tua (1851-2008)
A câmara municipal de Mirandela apresentou ao rei uma representação, a 20 de Dezembro de 1895, para que fossem ordenados “os preciosos e urgentíssimos reparos, que a estrada Real n.º 38 de Mirandela a Vila Flor precisa na parte que desta vila conduz à estação de caminhos-de-ferro. Este troço de estrada, talvez trezentos metros, está há muito tempo no mais lastimável estado, sendo hoje quase impossível transitar por ela. Todos os dias se estão dando ali graves acidentes e não havendo outra estrada que ligue a vila com a estação é forçoso que tanto passageiros como carros se arrisquem a fazer aquele trajecto impossível”. Paiva Couceiro informa o director de serviços de obras públicas, Leite Bettencourt, a 29 de Janeiro de 1896, que aquele troço da estrada era “um desvio que por necessidade da construção do caminho-de-ferro (…) foi construído pela Companhia respectiva e faz parte integrante da estrada real n.º 38. A sua conservação, portanto, não pode incumbir à Companhia e o que falta é a formalidade da posse pela respectiva Direcção de Obras Públicas”. Um despacho de 7 de Fevereiro de 1896 do ministro das obras públicas determinava que se fizesse “a entrega à Direcção das Obras Públicas do distrito de Bragança do troço de estrada real n.º 38 compreendido entre Mirandela e a respectiva estação de caminhos-de-ferro”. – 1896-1897: construção de um novo edifício na estação do Amieiro224/ Santa Luzia. A 23 de Dezembro de 1896, a direcção fiscal de caminhos-de-ferro tomava conhecimento, através do engenheiro-chefe de divisão de via e obras, segunda divisão, da necessidade da construção de um novo edifício na estação do Amieiro que fora construída “na base de uma encosta para o que esta foi cortada quase verticalmente até a uma altura de 5 m aproximadamente, ficando-lhe o terreno superior da encosta com um pequeníssimo declive até a uns 14 metros. Quando se fez o corte reservou-se um espaço de 2,5 m de largo para o serviço da estação e do cais”. Devido às muitas chuvas que caíram no mês de Dezembro desse ano, destacou-se um grande rochedo da encosta que provocou grandes e profundas gretas no talude da mesma até à sua parte superior, o que fez prever o desabamento de toda aquela parte da trincheira, podendo aquelas terras entulharem ou demolirem o edifício da estação. A estação foi apeada, ficando o serviço concluído no dia 12 de Dezembro de 1896, e foi feito “o desmonte da trincheira até a colocar em regulares condições de segurança”. O serviço passou a ser feito no cais coberto, “efectuando-se a passagem para o 224
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 163.001 a 163.009 de 1896-1897.
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125 anos de exploração
cais pela gare da estação, sendo o embarque e desembarque dos passageiros na mesma gare, como era antes da demolição da estação”. A Companhia Nacional, a 24 de Abril de 1897, pretendia reconstruir a estação “próximo do local que ela ocupava, mas ao abrigo de qualquer desabamento da trincheira próxima” e seguindo o mesmo tipo da antiga estação, “pensando apenas em a fazer avançar proximamente dois metros, a fim de deixar à sua retaguarda espaço suficiente para a passagem dos carros que têm de fazer serviço no cais”. Figura 146 – Vista geral do Amieiro225
A reconstrução da estação do Amieiro começou no dia 10 de Maio de 1897 e ficou concluída a 4 de Agosto de 1897. – 1899: vedação de uma propriedade, em frente à estação de Vilarinho das Azenhas226. D. Maria Teresa Barroso Vilhena de Moura Carvalhais, residente na freguesia de Vilarinho das Azenhas, concelho de Vila Flor, pediu licença à divisão fiscal de via e obras da exploração de caminhos-de-ferro “para estabelecer uma vedação de prumos postes de madeira ligados com fios de arame na sua propriedade, denominada das Três Rodas, confinante com o caminho-de-ferro de Foz Tua a Mirandela, entre pontos quilométricos 36,218 e 36,426, defronte da estação de Vilarinho”. 225
Apud. BEIRA, 2014: 28.
226
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 86.001 a 86.005 de 1899.
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Figura 147 – Estação de Santa Luzia (Amieiro fica do outro lado do Tua)227
Como “a distância ao carril externo do limite da propriedade era de m, a proprietária não precisou de licença para fazer a vedação e por ser o alinhamento da pretendida vedação, além do alinhamento legal, definido no C. n.º 1529, artigo 2 º do Decreto de 31 de Dezembro de 1864”. – 1901: construção de um hangar na estação do Tua228. No dia 18 de Maio de 1901, o director de serviço da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro apresentou a Paiva Couceiro o pedido de aprovação da construção de um hangar na estação do Tua, “para resguardo da locomotiva que ali se acha estacionada, como reserva”. Paiva Couceiro concordou com a construção e deu conhecimento dessa resolução ao director de serviço e ao engenheiro-chefe da divisão de via e obras. Este projecto era acompanhado da respectiva planta.
227
Fotografia de Eduardo Beira
228
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 154.001 a 154.004 de 1901.
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125 anos de exploração
Figura 148 – Planta do hangar para a estação do Tua229
Figura 149 – O hangar na estação do Tua230
– 1901-1904: mudança de lugar da Estação de Vilarinho das Azenhas e construção do apeadeiro da Ribeirinha231. 229
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 154.001.
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Fotografia de Eduardo Beira.
231
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 80.001 a 80.031 de 1901-1904.
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A linha do Tua (1851-2008)
A câmara municipal de Vila Flor, através do seu presidente, José Manuel da Costa, pediu ao governo, no dia 5 de Dezembro de 1901, a construção de um apeadeiro no sítio da Ribeirinha232, pois que “para ficar a povoação de S. Pedro de Vale do Conde em magníficas condições de comodidade ficam enormemente prejudicadas as povoações de Vilas Boas, Longra e Barcel, as quais são de maior importância que aquela, havendo ainda mais a circunstância de que a povoação de S. Pedro de Vale do Conde tem muito fácil comunicação com Mirandela para onde é servido por bons caminhos, e para onde concorre com todos os géneros da sua produção agrícola”. A fim de evitar o “mal-estar” dessas povoações, com a mudança da estação de Vilarinho para a ponte de São Pedro de Vale do Conde, aquela câmara pedia a construção de um apeadeiro com cais de carga e de descarga no sítio da povoação da Ribeirinha. Figura 150 – Estação nova de Vilarinho das Azenhas (km 37,8)233
A estação de Vilarinho das Azenhas passou a situar-se, como refere o documento, junto da “ponte de S. Pedro de Vale do Conde”. A construção do apeadeiro da Ribeirinha foi sugerida em 1901, mas a obra só foi inaugurada em 1904. A decisão tardou em concretizar-se, estando em causa o tipo de estação, o ponto quilométrico onde esta deveria ser instalada, se ao km 33,650 ou se ao km 33,892, e o orçamento da mesma. O ponto quilométrico 33,650 era considerado impróprio, tanto pelas condições de 232
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 1669, pasta n.º 4, Companhia Nacional Foz Tua a Mirandela, com a chancela da Direcção Fiscal da Exploração de Caminhos de Ferro.
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Fotografia de Eduardo Beira
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125 anos de exploração
acesso, como pelas dificuldades que adviriam para as construções. E o perfil transversal da linha, naquele ponto, era em trincheira de 7 m de altura do lado direito da linha. Outro parecer “era de que a projectada estação não era necessária, para satisfazer as conveniências das povoações (…), porque, para serviço de passageiros, seria bastante um simples apeadeiro constituído pela casa de guarda que já existe a 115 m de distância da agulha de entrada lado do Tua da estação projectada, e, para mercadorias, vê-se na planta (…) que as povoações são tão bem servidas pelas estações de Vilarinho e de Abreiro como pela estação projectada, tendo aquelas sobre esta a vantagem de haver pontes no Tua, quando nesta há somente um vau”. Figura 151 – As populações (Vilas Boas, Longra, Barcel, Vilarinho das Azenhas e Ribeirinha), as estações de Vilarinho (velha e nova), o apeadeiro da Ribeirinha e a linha de Foz-Tua a Mirandela234
Quanto ao orçamento, depois de o director-geral de obras públicas e minas ter reformado o projecto “suprimindo-se o cais coberto e a linha de resguardo com as suas duas agulhas, reduziu-se por esta forma o custo da obra em 1 990$000 réis”, este passaria a ser de 2,74 contos de réis, o que daria para construir o edifício de passageiros, estação de quarta classe, o cais descoberto de 10 m de comprimento com a sua linha de serviço e o caminho de acesso. A 25 de Setembro de 1903, a Companhia estava pronta “a executar a construção” e a 14 de Abril de 1904, a direcção fiscal dava conhecimento de uma inspecção dos trabalhos às obras do apeadeiro. “O edifício de passageiros ficou em boas condições de segurança, não sendo porém de grande perfeição o seu acabamento, mas os operários da região não sabem construir melhor. Houve o aumento de 0,80 m no comprimento e de 0,30 m na largura, tendo também o edifício ficado mais elevado 0,20 m do que 234
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 80.004.
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A linha do Tua (1851-2008)
a cota do projecto pela conveniência de o livrar quanto possível da humidade do solo, que tanto se faz sentir por ficar adjacente a uma trincheira muito húmida. Esta modificação porém não modifica a exploração. Foi aberta uma porta para o lado de trás do apeadeiro na casa correspondente à cozinha do projecto, tendo esta passado para a fachada da frente, e ficando também aquela casa em comunicação com a casa contígua por uma porta que não estava projectada. Sendo preferível a distribuição do projecto, principalmente pela colocação da cozinha, e porque tornava independente o serviço do apeadeiro, julgo contudo que poderá ser aceite a alteração feita que permite maior vigilância em todo o edifício. Ficaram em condições regulares a bilheteira, e a casa de despacho de bagagens com o respectivo balcão. Os fios telegráficos já estão comunicados para o edifício, mas faltam os aparelhos”. A linha de serviço do cais descoberto estava em boas condições e a agulha tinha sido deslocada 8 m para o lado de Mirandela e a passagem de nível tinha avançado 10 m para o mesmo lado. Os caminhos de acesso ao apeadeiro estavam transitáveis. A povoação da Ribeirinha, “adjacente e sobranceira à linha”, ficava em comunicação com esta, através de um dos caminhos. O recinto do apeadeiro foi ampliado, ficando adaptado, caso houvesse mais tráfego e se viesse a construir um cais coberto. De acordo com a inspecção, o apeadeiro da Ribeirinha podia abrir provisoriamente ao público, “devendo ser feita com brevidade a colocação do relógio e da balança, e assim como estabelecido o telégrafo”. A 21 de Abril de 1904 os caminhos de acesso ao apeadeiro da Ribeirinha encontravam-se concluídos, a 26 de Abril as obras ficavam concluídas e a 8 de Maio de 1904 ocorreu a abertura do apeadeiro da Ribeirinha ao serviço de exploração. Figura 152 – A estação da Ribeirinha (28 de Março de 1904)235
235
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 80.037
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125 anos de exploração
Figura 153 – O apeadeiro da Ribeirinha (aspecto actual)236
– 1905: deslocação do apeadeiro das Latadas237. Um grupo de proprietários residentes em Mirandela, Marmelos, São Salvador, Vila Verde e Latadas enviou um abaixo-assinado ao ministro das obras públicas, em 1905, comunicando que uma vez que lhes constara “que vai ser suprimido o apeadeiro denominado Latadas, na linha férrea de Foz Tua a Mirandela, vêm muito respeitosamente implorar a valiosíssima protecção de V. Ex.ª, a fim de que o mesmo seja conservado para o tráfego de passageiros, como está estabelecido há muitos anos, pela falta sensível e prejuízos que resultam para os habitantes das referidas povoações com a sua supressão”. Outro pedido, feito à Companhia Nacional, da deslocação do apeadeiro, do km 48,411 para o km 50,490, foi considerado vantajoso, em Janeiro de 1905 “pois o apeadeiro, na sua actual situação, poucos serviços presta (…) e é de esperar que depois de deslocada melhor possa aproveitar o público”. A acompanhar esta carta, seguia o projecto para execução da transferência do apeadeiro. 236
Fotografia de Eduardo Beira
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 143.001 a 143.009 de 1905.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 154 – Planta do novo apeadeiro das Latadas238
Figura 155 – Planta do novo apeadeiro das Latadas239
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 143.005.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 143.006.
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Figura 156 – Planta do novo apeadeiro das Latadas240
Figura 157 - Local do antigo apeadeiro das Latadas (entretanto demolido)241
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 143.007.
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Fotografia de Eduardo Beira.
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A direcção fiscal de exploração de caminhos-de-ferro emitiu um parecer, em Março de 1905, dando-o a conhecer ao director da Companhia Nacional, contrário à deslocação do apeadeiro, porque “junto do actual apeadeiro passa a Estrada Real n.º 38, servindo a povoação de S. Salvador e de Vila Verde, na margem esquerda do rio Tua, e que ficam respectivamente às distâncias de 2.000 m e de 5.000 m, e a povoação de Marmelos, na margem direita, que está a 2.000 m. Do local para onde se pretende fazer mudança do apeadeiro fica a referida estrada Real n.º 38 à distância de mais de dois quilómetros, sem outro caminho público, e assim nas condições actuais não teriam os povos serventia para o apeadeiro projectado, que só aproveitaria ao proprietário do terreno adjacente à linha”. De 1907 a 1918. – 1907: travessia da linha por um tubo de ferro, para levar água para rega, no Choupim, em Mirandela242. Figura 158 – Planta da passagem do tubo de ferro243
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 81.001 a 81.012 de 1907.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 81.003.
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125 anos de exploração
Eduardo Pinto da Silva, casado, residente no Porto, na rua de Vilar, n.º 54, possuía um terreno que fora atravessado pela linha-férrea de Foz-Tua a Mirandela, no lugar de Choupim, freguesia de Santa Maria Maior, em Mirandela, ao km 50,333, pelo que apresentou, em 24 de Outubro de 1907, um requerimento a pedir uma licença para atravessar a linha, passando por dentro de um aqueduto um tubo de ferro de 0,09 m de diâmetro para condução de água de rega entre as suas propriedades. A água seria tirada do rio Tua com uma bomba, accionada por uma roda hidráulica244. As circunstâncias locais e as do projecto eram indicadas num desenho de planta e perfil longitudinal, juntamente enviado com o requerimento. O director da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro informava Paiva Couceiro, a 2 de Novembro de 1907, de que “não há nenhum inconveniente em que seja concedida a licença requerida”. Esta decisão foi também comunicada ao engenheiro-chefe de divisão de via e obras, a quem era dado conhecimento das condições de realização da obra pretendida: “1.ª Os trabalhos dentro dos limites do caminho-de-ferro serão executados pelo pessoal do serviço de via e obras ou pelo do concessionário sob a fiscalização e segundo as indicações daquele; 2.ª A despesa que se fizer com o pessoal que for empregado na execução ou na fiscalização do trabalho será paga pelo concessionário; 3.ª O trabalho será efectuado nas horas que forem designadas pelo serviço de via e obras; .ª O concessionário ficará obrigado à conservação do encanamento por forma que não prejudique a Companhia de caminho-de-ferro nem lhe ocasione qualquer despesa futura, seja quais forem a causa e a natureza das avarias que se derem; 5.ª A Companhia do Caminho-de-Ferro ficará isenta da responsabilidade por qualquer avaria que venha a dar-se no encanamento, tanto pelo uso natural como em consequência de quaisquer reparações que tenham de ser feitas na linha férrea ou no aqueduto. Além destas condições o concessionário ficava sujeito aos preceitos dos artigos n.º 99, n.º 100 e n.º 103 do Decreto de 19 de Setembro de 1900 e ao pagamento dos emolumentos devidos à Fazenda Nacional, nos termos da lei de 16 de Abril de 1867 e respectivos impostos adicionais”245: 3 mil réis de emolumentos e 540 réis de impostos a pagar à fazenda nacional. – 1907: depósito de petróleo e licença para instalação de um tubo em ferro, na estação de Mirandela, para carga e descarga de vagões de petróleo da companhia Colonial Oil246. 244
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 81.001 a 81.012.
245
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 81.010 e 81.011.
246
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 82.001 a 82.010 de 1907. 441
A linha do Tua (1851-2008)
Figura 159 – Estação ferroviária de Mirandela247
A Colonial Oil Company, possuidora de um terreno na freguesia de Santa Maria Maior, em Mirandela, perto da estação de caminho-de-ferro, pede licença, no dia 27 de Abril de 1907, para estabelecer um tubo para carga e descarga de vagões de petróleo a granel, ao km 54,139, entre as linhas de desvio da estação e o seu depósito (armazéns) existente naquele terreno. O encanamento atravessaria subterraneamente a última via de resguardo dos terrenos da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. A planta anexa a este processo ajuda a compreender a localização do referido depósito, em relação à estação de caminhos-de-ferro de Mirandela e à estrada real n.º 38 que ligava Chaves a Moncorvo e passava por Mirandela. Figura 160 – Localização do depósito da companhia Colonial Oil248
247
Fotografia de Hugo Silveira Pereira.
248
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 82.005.
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125 anos de exploração
O director da Companhia Nacional acusou a recepção do requerimento e autorizou a realização daquela obra a 21 de Junho de 1907, de acordo com as seguintes condições, fixadas no dia 28 de Junho de 1907: “1.ª A canalização será fechada à saída dos depósitos da Companhia Colonial Oil e na boca instalada no terreno do caminho-de-ferro por meio de torneiras encerradas em cofres munidos de duas chaves diferentes, das quais ficará uma em poder do chefe da estação e a outra em poder da Companhia Colonial Oil, não podendo fazer-se operação alguma sem autorização e cooperação do chefe de estação e a presença de um empregado da mesma estação; 2.ª A canalização será metida em um canal ou em outra canalização estanque e em declive na direcção dos depósitos, onde desembocará em um pequeno reservatório em que se reúna o petróleo proveniente das fugas; a boca no terreno da estação será colocada no centro de uma bacia estanque comunicando com o canal; 3.º A canalização deverá ficar vazia no intervalo das operações; 4.º As operações só se realizarão de dia; 5.º Os trabalhos do estabelecimento da canalização serão executados sob a fiscalização do serviço de via e obras do caminho-de-ferro e bem assim todas as reparações [não se lê esta parte] pela Fiscalização do Governo ou pela Companhia do Caminho-de-Ferro; 6.ª A Companhia Colonial Oil fica obrigada a obter as autorizações administrativas que forem necessárias tanto para a execução dos trabalhos como para a exploração; .ª A Companhia do caminho-de-ferro fica com o direito de mandar arrancar a canalização, quando esta lhe cause qualquer embaraço ou prejuízo, sem que a Companhia Colonial Oil possa reclamar por esse facto qualquer indemnização; Além destas condições, fica a Companhia Colonial Oil sujeita aos preceitos dos artigos n.º 99, n.º 100 e n.º 103 do Decreto de 19 de Setembro de 1900 e no pagamento dos emolumentos devidos à Fazenda Nacional, nos termos da lei de 16 de Abril de 1867, e respectivos impostos adicionais” (3.540 réis de emolumentos e impostos adicionais). – 1907: abertura de um portal em frente à estação do Tua249. Francisco da Rocha Leão apresentou um requerimento, no dia 8 de Março de 1907, pedindo ao rei para lhe conceder a licença para abrir um portal num terreno que comprara à Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, em frente à estação do Tua, pela quantia de 30 mil réis, para servidão da sua propriedade da Quinta da Chousa, 249
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 84.001 a 84.014 de 1907.
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A linha do Tua (1851-2008)
conforme tinha sido concedida, tempos antes, à dona de outro terreno, sua vizinha, Margarida de Jesus Gouveia. O requerimento era acompanhado por uma planta, onde estavam assinalados os terrenos dos dois proprietários e o portal requerido, assinalado com a letra a: Figura 161 – Planta da estação do Tua e do terreno de Francisco da Rocha Leão250
Figura 162 – Estação do Tua (km 0)251
O director da Companhia Nacional informou o engenheiro-chefe de divisão de via e obras do seguinte: “com o senhor Rocha Leão há contractada a venda de uma porção de terreno com a superfície de 77 m2, fora da faixa da linha férrea, e separado 250
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 84.014.
251
Foto de Hugo Silveira Pereira.
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125 anos de exploração
dela por um muro de vedação, que corre ao longo desse terreno e se prolonga pela frente do que lhe fica contíguo, e onde desde muitos anos existe uma casa abarracada. Esta casa tinha serventia para a linha, que se lhe deixou, por meio de uma cancela, numa das extremidades do referido muro. m dos pontos que tem demorado a realização do contracto com o Sr. Leão, tem sido a concessão de nova serventia, que ele solicita, mas a que até agora não temos dado deferimento, assunto que com o mesmo senhor temos tratado por cartas, tendo sido condição desde princípio posta por nós que só concederíamos abertura de serventia no terreno, que o senhor Leão deseja obter, se ele por acordo com o proprietário vizinho obtivesse que se vendesse a antiga serventia, servindo a nova para os dois proprietários”. A 9 de Abri de 1907, há um aditamento a este ofício, esclarecendo que “a casa de venda que tem serventia para a nossa linha, existia já antes da construção desta, tendo sido edificada por ocasião da construção da linha do Douro. Tendo nós vedado o recinto da estação, foi deixada a serventia alegando a proprietária os seus antigos direitos”. No dia 27 de Abril de 1907, Manuel Bello esclarece Paiva Couceiro sobre a serventia em causa: “1.º a serventia não serve para carga ou descarga, mas simplesmente para dar ao proprietário livre passagem e comunicação através do recinto da estação, com a estrada que passa do outro lado desse, e para a qual não pode ter serventia doutro modo. É apenas para peões. 2.º Não tem cancela, nem o uso da serventia está dependente do beneplácito do chefe da estação. 3.º O proprietário não possui título algum, que lhe dê direito a serventia. Esta foi feita logo na construção da linha, e teve portanto de ser mantida, quando neste local se fez a instalação da estação comum de Foz-Tua”. O requerente, segundo a Companhia Nacional, pretendia: “estabelecer uma abertura de 2 m de largura no muro de vedação desta Companhia para lhe dar serventia a um habitação que pretende construir no seu terreno, abertura que está indicada na planta, que devolvo a V. Ex.ª, que foi verificada e está exacta. Que a saída mais fácil que o mesmo tem é para o lado do caminho-de-ferro neste ponto, tendo entretanto outra saída, mas a 290 metros da propriedade, dando também sobre o terreno do caminho-de-ferro da dita Companhia, junto da placa e cocheira de locomotivas. Para a serventia que pretende, necessita o requerente de adquirir uma pequena superfície triangular de terreno, situado entre a aresta inferior da trincheira e o muro de vedação, terreno que parece pertencer à Companhia Nacional. Esta servidão é inconveniente por devassar o recinto do caminho-de-ferro, verdade seja que a propriedade já tem outra nestas condições como se disse, havendo a favor da pretensão o destinar-se a dar passagem para uma hospedaria em projecto
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A linha do Tua (1851-2008)
para serviço dos passageiros; mas esta circunstância pode desaparecer com o tempo. Informando sobre a serventia da propriedade vizinha, comunico a V. Ex.ª que dá também passagem para uma casa que pertence a Margarida de Jesus Gouveia, e serve de restaurante e hospedaria, dando a serventia passagem directa para a estação, não tendo esta proprietária outra servidão e não podendo ter outra, devido ao acidentado do terreno, sendo esta já do tempo da construção do Caminho-de-Ferro do Douro. Para V.Ex.ª ajuizar das circunstâncias locais é juntamente enviado um perfil transversal, tirado pelo eixo da estação. O requerente não obtendo a concessão não pode fazer a construção. A servidão requerida está projectada a 14 m aquém do eixo da estação, isto é 14 m antes do 0 da quilometragem, que começa neste eixo”. Figura 163 – Planta de perfil transversal a acompanhar o requerimento de Rocha Leão252
Figura 164 – Planta de perfil transversal a acompanhar o requerimento de Rocha Leão253
– 1907-1918: construção de um muro de vedação e respectivo cais de embarque na estação do Cachão254. 252
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 84.013.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 84.014.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 83.001 a 83.020 de
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125 anos de exploração
Júlio de Araújo, residente no Porto, dono de um terreno e armazém, confinante com a estação do Cachão, requereu uma licença, a 3 de Abril de 1907, para abrir uma porta para o recinto da estação para por ela efectuar a carga e descarga de mercadorias do seu armazém, provenientes das suas propriedades localizadas em várias terras de Trás-os-Montes e ali arrecadadas. As circunstâncias ficavam indicadas numa planta e no perfil de um desenho que acompanhava o requerimento apresentado, onde constava a distância do armazém ao muro da vedação e desta ao carril mais próximo. Figura 165 – Construção de um muro de vedação e cais de embarque na estação do Cachão255
O vizinho, Manuel Maria Cardoso, obtivera a mesma licença da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, antes da fiscalização da linha estar a cargo da divisão de via e obras. Figura 166 – Construção de uma porta na estação do Cachão (corte transversal)256
1907-1918. 255
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 83.006.
256
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 83.004.
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A linha do Tua (1851-2008)
Segundo o parecer do director da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, de 15 de Abril, essa abertura era considerada inconveniente, “não só porque o recinto da estação ficava cativo dessa serventia particular, logo sem inteira possibilidade de fiscalização e guarda, mas ainda por ter o estacionamento de vagões para esse serviço de carga e descarga a fazer-se sobre a agulha, lado de Mirandela, o que demandaria precauções muito especiais para não prejudicar a livre circulação dos comboios e a sua segurança. Em tempo foi feita por esta Direcção concessão semelhante, de abertura de duas portas ao proprietário Camilo de Mendonça e que vão indicadas na planta junta pelas letra a e a’. Não podemos precisar os motivos, porque tal concessão se fez, sem prévia autorização da Direcção Fiscal, mas nos termos da concessão expressamente se declara que a Companhia poderá mandar tapar as portas, quando lhe convenha, sem que ao proprietário reste o direito de qualquer reclamação contra a Companhia Nacional”. Em vista do exposto, e para evitar o mau efeito que essa excepção poderia trazer, foi dado ordem ao chefe de serviço de via e obras para mandar tapar tais portas de comunicação, existentes entre o terreno de Camilo de Mendonça (e de Manuel Maria Cardoso) e o recinto da estação do Cachão. Figura 167 – As duas portas que deviam ser tapadas na estação do Cachão257
O director de serviço de via e obras informava Paiva Couceiro das atitudes tomadas por Júlio de Araújo, que “disse hoje na gare, ao entrar para o comboio, ao seu administrador da casa de Vale Frechoso e na presença do pessoal, tanto da estação como do comboio, que amanhã dia 11 (de Junho de 1907), mandasse deitar abaixo a parte do muro feito de novo e que abrisse o portal defronte do armazém, e caso fosse embargado, por qualquer empregado da Companhia, fosse ele quem fosse, que não só levantasse um auto contra todos os empregados presentes, como também à Companhia”. As ameaças não foram cumpridas, ficando a estação bem vigiada com pessoal para impedir e prender os delinquentes. 257
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 83.012.
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125 anos de exploração
Paiva Couceiro informava o engenheiro-chefe de via e obras, no dia 17 de Junho de 1907, que “não podem ser permitidas serventias particulares para o recinto das estações, pelo que a pretensão de abertura de uma porta na estação do Cachão não pode ter deferimento”. Mas, por volta de 10 de Setembro de 1917, o director da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro enviou a Paiva Couceiro outro parecer sobre a referida abertura: “não vemos inconveniente em que seja concedida a Júlio d’Araújo a serventia no muro da estação de Cachão, no sítio indicado na planta que V. Ex.ª juntamente nos enviou e que com o presente devolvemos. Parece-nos, porém, que se deve estabelecer, além de outras que V. Ex.ª determine, as condições seguintes: 1.ª Que a abertura seja fechada com cancela ou porta, com chave em poder do pessoal da estação; 2.ª Que a direcção e fiscalização de todo o serviço de cargas e descargas pertença exclusivamente aos agentes da Companhia; 3.ª Que todo o serviço de cargas e descargas se aplique o § 1.º do art.º 12.º Cap. VI do 1.º Aditamento à Tarifa de Despesas Acessórias de 31 de Maio de 1916, com os aumentos das sobretaxas em vigor ou de quaisquer disposições que de futuro se estabeleçam alterando a referida tarifa; 4.ª Que seja ressalvado para a Companhia o direito de fazer tapar aquela abertura, por conta do concessionário”. Figura 168 – Planta do requerimento de Júlio de Araújo258
Em Fevereiro de 1918, foi concedida a autorização feita por Júlio de Araújo e as condições a que o mesmo se sujeitava, perante tal concessão.
258
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 83.017.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 169 – Planta do requerimento de Júlio de Araújo (recebida pelo chefe de fiscalização a 9 de Fevereiro de 1918)259
– 1907: construção de uma linha de resguardo na estação da Ribeirinha260. O director de serviço da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro enviou, no dia 26 de Junho de 1907, ao engenheiro director fiscal de exploração de caminhos-deferro, o projecto para a aprovação de uma linha de resguardo, na estação da Ribeirinha, para o cruzamento de comboios naquela estação. O projecto obteve a aprovação, no dia 27 de Junho de 1907. No mesmo dia, foi essa resolução comunicada, quer ao director da Companhia Nacional, quer ao engenheiro-chefe da divisão de via e obras. – 1909-1910: alargamento da estação do Cachão261. No dia 24 de Dezembro de 1909, Paiva Couceiro apresentou ao director da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro o seu acordo para que fosse realizada a obra de ampliação da estação do Cachão e participou este parecer também ao engenheirochefe de divisão de via e obras. O alargamento da estação do Cachão viria a ficar concluído no dia 28 de Junho de 1910.
259
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 83.019.
260
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 168.001 a 168.005 de 1907.
261
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 167.001 a 167.004 de 1909-1910.
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125 anos de exploração
Figura 170 – Estação do Cachão (km 41,8)262
– 1910: alargamento da estação de Abreiro263. Figura 171 – Ponte de Abreiro264
262
Fotografia de Eduardo Beira
263
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 159.001 a 159.002 de 1910.
264
Apud. BEIRA, 2014: 37.
451
A linha do Tua (1851-2008)
A estação de Abreiro ficava localizada exactamente em frente à ponte do Diabo, ponte rodoviária que ligava naquela zona as duas margens do rio Tua, e que desapareceu com a grande cheia de 1909. Essa ponte “seria constituída por um tabuleiro horizontal ou de cavalete assente sobre três arcos em alvenaria de pedra”265. Em 1910, esta estação sofreu um alargamento, conforme pode ser comprovado pela planta de execução do projecto, assinada pelo director de serviço da Companhia Nacional, Manuel Bello. Figura 172 – Planta do alargamento da estação de Abreiro (21 de Abril de 1910)266
Figura 173 – Estação e nova ponte rodoviária de Abreiro (23 de Junho de 1957267), km 29,2268
265
BEIRA, 2014: 116.
266
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 159.001.
267
VISEU, 2007, vol. 1: 55.
268
Fotografia de Eduardo Beira
452
125 anos de exploração
– 1911: modificação interior da estação de São Lourenço269. O director de serviço da Companhia Nacional, Manuel Bello, enviou ao engenheiro director fiscal de exploração de caminhos-de-ferro, no dia de 8 de Junho de 1911, a planta de modificação interior da estação de São Lourenço, a fim de obter a respectiva aprovação. Em 12 de Junho de 1911, Paiva Couceiro comunica à Companhia Nacional que concordava com a alteração proposta. E no dia 14 de Junho de 1911 comunica ainda que estavam concluídas as modificações na estação de São Lourenço, “sendo o trabalho executado em boas condições e conforme o projecto aprovado”. Figura 174 – Planta de modificação do interior da estação de São Lourenço270
Figura 175 – Estação de São Lourenço (anterior à modificação)271
269
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 165.001 a 165.005 de 1911.
270
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 165.002.
271
http://os-caminhos-de-ferro.blogspot.pt/2012/12/linha-do-tua-um-pouco-de-historia.html.
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A linha do Tua (1851-2008)
Figura 176 – Estação de São Lourenço (após a modificação, ao km 15,5)272
– 1911: projecto de construção de um muro de espera num aterro ao km 60,350 na estrada de Mirandela a Bragança273. A 15 de Fevereiro de 1911, Manuel Bello, director de serviço da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro envia a planta de um projecto de construção de um muro de espera ao aterro do km 60,350, na estrada de Mirandela a Bragança. Figura 177 – Planta da construção de um muro de espera (km 60,350)274
272
https://
273
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 169.001 a 169.002 de 1911.
.flickr.com/photos/valeriodossantos/9312020225/in/set-72157631420478028/.
274
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 169.001.
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125 anos de exploração
Figura 178 – Planta da construção de um muro de espera (km 60,350)275
– 1915: construção de uma passagem de nível na estação do Tua276. A 11 de Janeiro de 1915, António de Castro apresenta um requerimento ao engenheiro director fiscal de exploração de caminhos-de-ferro para que o autorize a estabelecer uma passagem de nível, “através da mesma linha-férrea, próximo às agulhas da estação de Tua”, pois que a sua propriedade, situada junto a esta estação, tinha sido “interceptada pela linha de Tua a Mirandela”, e a continuar a usufruir da servidão que tinha para a estrada nacional do Pocinho ao Pinhão, conforme o estabelecido para outros proprietários em idênticas circunstâncias às dele. A Companhia Nacional de Caminhos de Ferro não teria nenhuma despesa nem qualquer prejuízo e a propriedade do requerente não poderia prescindir dessa passagem, porque a linha de Mirandela a separara da estrada. A decisão tomada pelo engenheiro-chefe de divisão de via e obras foi comunicada a 30 de Junho de 1915 ao director fiscal de exploração de caminhos-de-ferro, “em relação ao requerimento de António de Castro para abrir uma passagem de nível na linha Tua-Mirandela, no prolongamento da passagem de nível da linha do Douro, numa propriedade confinante com o recinto da estação do Tua (…) o pedido é de justiça, porque o proprietário não tinha acesso para a estação e estrada nacional senão atravessando a linha da Companhia Nacional. E que o deferimento obviaria a prática abusiva que se fazia de se atravessar a linha naquele ponto sem haver a passagem de nível”. E acrescenta: “a passagem de nível deve ser estabelecida para trânsito de carros”. A primeira decisão, tomada em relação a este requerimento, a 3 de Julho de 1915, pelo director da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, foi de que deveria ser informado o requerente sobre as “condições que no caso de deferimento devam ser impostas”. 275
Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, proc. 169.002.
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Centro nacional de documentação ferroviária. Direcção de caminhos-de-ferro, procs. 87.001 a 87.013 de 1915.
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A linha do Tua (1851-2008)
Manuel Bello, director de serviços da Companhia Nacional escreve, no dia 14 de Julho de 1915, a Paiva Couceiro sobre o pedido, em que refere: “A passagem pedida pelo requerente António de Castro, possuidor de uma propriedade confinante com a linha de Tua a Mirandela, nas proximidades do Km 0,134, é dentro das agulhas da estação de Tua, tendo de atravessar duas linhas pertencentes a esta Companhia, um terreno entre as linhas da Companhia e as do Minho e Douro, e ainda 3 linhas do Douro. Por tais motivos, esta Companhia julga inconveniente que se conceda a passagem de nível requerida”. Esta opinião, de considerar inconveniente o pedido formulado, foi aceite, a 16 de Julho de 1915, por aquela direcção que considerava que a planta que acompanhara o requerimento não estava exacta. A divisão de via e obras remeteu à direcção fiscal de exploração de caminhos-deferro, no dia 26 de Julho de 1915, a opinião de José Vitorino Damásio, chefe da sexta secção, sobre o requerimento: “tenho a honra de informar que a posição da agulha que indicou na planta está exacta. A passagem que requereu António de Castro é só sobre uma linha fora da agulha. Para mim, é surpresa a Direcção da Companhia Nacional achar agora inconveniente na concessão da passagem de nível, quando ela consentiu que ali próximo, mesmo de fronte da estação, se estabelecesse uma passagem, essa é que está em más condições e perigosa, porque as pessoas que para ali se dirigem terem de atravessar os comboios, que quase sempre estão ali estacionados e é de bastante movimento por estar ali estabelecida uma taberna. O proprietário o que deseja é legalizar por não ter outra servidão para aquele local e já no tempo do outro proprietário que era João da Cruz, concessionário da construção do Caminho-de-Ferro de Mirandela a Bragança, a Companhia autorizou-o a desmontar a trincheira naquele local e atravessar a linha com carros de bois para o transporte da pedra para o lado do rio e autorizava-o também a construir um armazém naquele local com servidão para a linha. Tenho a honra de informar a V. Ex.ª que é de toda a justiça a pretensão de António de Castro porque me parece que judicialmente não lhe podem tirar o direito de passar para a sua propriedade, não tendo outro acesso”. A 6 de Agosto de 1915, Manuel Bello comunica ao engenheiro director fiscal da exploração de caminhos-de-ferro que “nenhuma dúvida há em conceder a António de Castro a construção de uma passagem de nível (…) desde que as despesas de construção da referida passagem e as de conservação sejam por ele satisfeitas”. O director da Companhia Nacional recebe, a 2 de Agosto de 1915, a informação de que a passagem de nível requerida atravessaria “apenas uma linha dessa Companhia, e não duas, sendo portanto o cruzamento realizado fora das agulhas estabelecido no prolongamento da passagem de nível já existente sobre a linha do Douro da estrada
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125 anos de exploração
de acesso à estação de Foz-Tua. Igualmente sou informado de que o requerente não tem outro acesso para a sua propriedade”. A licença requerida foi, de facto, concedida por alvará de 6 de Setembro de 1915, passada pelo engenheiro director, nas seguintes condições: “será munida de cancelas que deverão abrir-se somente na ocasião de serviço, sob a responsabilidade do concessionário, com a condição de pagar à Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro a importância que há a fazer com o estabelecimento da mesma passagem”, ficando ainda sujeito à legislação em vigor, às condições regulamentares, relativas a passagens de nível, e ao pagamento dos emolumentos à fazenda nacional. * As transformações ocorridas na linha do Tua, entre 1895 e 1918, nas suas estações e apeadeiros, e ao longo do seu percurso, deixam em aberto a necessidade de continuar a procurar saber como se processaram outras transformações posteriores às referidas no presente trabalho. O material circulante sofreu um desgaste constante e foi necessário proceder à sua manutenção, reparação e reposição, tendo sido esse trabalho executado com empenho dos vários especialistas que ao serviço das oficinas de Mirandela libertaram as máquinas e os equipamentos das várias anomalias que foram apresentando. Foram esses funcionários, inclusive, os responsáveis pela resolução de problemas que ao longo da via apresentaram as máquinas, os vagões, as carruagens, e lhes deram o acerto necessário para as repor em circulação. Houve também o cuidado indispensável dos maquinistas, dos fogueiros e do pessoal responsável pelas manobras e pela fiscalização. A linha passou um trabalho contínuo e necessário de modernização e de resolução de problemas que foi enfrentado ao longo da sua vida, ao logo de um trajecto complicado que sempre justificou um olhar atento e contínuo. A modernização, contudo, foi pouco ajustada às necessidades verificadas no seu percurso, pelo CAICA, pela Sociedade Clemente Menéres no Romeu, pelos agricultores e criadores de gado de Macedo de Cavaleiros e de Bragança. A aposta numa linha de bitola larga, reclamada por estas entidades, não foi ouvida num tempo em que a história poderia ter registado outro impacto e outra projecção para estas e para outras unidades de produção do distrito de Bragança.
457
A linha do Tua (1851-2008)
5.7. EVOLUÇÃO DO SISTEMA DE MOBILIDADE E DECADÊNCIA DA LINHA Ana Carina Azevedo277 Ângela Salgueiro278
As vicissitudes que marcaram os destinos finais da linha do Tua, principalmente no que diz respeito ao troço entre Tua e Mirandela, encontram-se profundamente ligadas às conjunturas nacionais que afectaram o sector ferroviário no último terço do século XIX e inícios do século XXI. Desde as lógicas económicas, passando pelos condicionalismos políticos e sociais, até às várias estratégias gizadas em ordem ao desenvolvimento do país, a conjuntura que pauta o período indicado é essencial para a compreensão do tema. A decadência da linha, a sua baixa rentabilidade e a possibilidade do seu encerramento eram temas já tratados no início da década de 1970, em pleno estado novo. Em Janeiro de 1970, foi elaborado, pelo departamento de organização e planeamento da CP, um estudo de rentabilidade sobre este caminho-de-ferro279. Foi feita uma análise às condições socioeconómicas da via-férrea e da região do vale do Tua e concluiu-se que era necessário manter a linha em operação. As conclusões não foram, porém, abonatórias, quer em termos de número de passageiros e mercadorias transportados, 277
Instituto de História Contemporânea (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa).
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CP, 1970.
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quer no que diz respeito à tendência de desenvolvimento populacional e económico da região. Usando dados da década de 1960, este relatório começou por constatar a diminuição populacional ocorrida nos municípios servidos pela linha, à excepção do conselho de Macedo de Cavaleiros, que apresentou uma taxa de crescimento positiva. As implicações desta realidade no tráfego de passageiros eram evidentes. Este factor foi ainda agravado pela predominância da agricultura na zona, sector que, ao contrário do secundário e terciário, conduz a uma maior sedentarização, não originando tráfego associado aos horários de trabalho. Em termos do transporte de mercadorias, esta predominância conduzia também a um predomínio de produtos agrícolas, que se encontravam sujeitos a uma tarifa especial. Por outro lado, a escassez de indústrias não permitia, igualmente, que o caminho-de-ferro fosse utilizado em escala suficiente para o transporte de matérias-primas e de produtos acabados280. Além destes elementos limitadores do aumento do tráfego de passageiros e mercadorias, o mesmo relatório referia o estado de deterioração da linha e a necessidade de investimento na substituição dos carris e do material circulante, nomeadamente a compra de quatro locomotivas diesel e de três automotoras Allan e atrelados281. O total dos investimentos necessários facilmente ascenderia aos 151 mil contos, o que correspondia a encargos anuais de 20 mil contos durante 15 anos282. Em 1970, as despesas de exploração da linha eram bastante superiores às receitas, situando-se as primeiras na ordem dos 33.018,6 contos e as segundas nos 12.633,7 contos283. Por todas estas razões, os relatores não tinham dúvidas: “face às características actuais da exploração e aos resultados daí decorrentes, a primeira perspectiva que ocorre quanto ao futuro da sua exploração é, indubitavelmente, o seu encerramento. (…). A manutenção da linha só poderá admitir-se, por conseguinte, desde que o Estado, em regime de normalização de contas, cubra integralmente o deficit e assuma os encargos com os investimentos previstos. (…) [S]erá legítimo pôr a pergunta se o Estado terá capacidade financeira para suportar, durante anos, o conjunto de todos estes encargos. Se a resposta for negativa, então há que estabelecer um critério de prioridade, em função do interesse geral, de modo a que se possa tirar o maior proveito dos investimentos concretizáveis”284. O ano de 1974 marcou o início de um período de instabilidade económica, no qual os períodos de crise e recuperação se alternaram. Ainda antes da revolução, Portugal havia começado a sentir os efeitos adversos da crise internacional pautada pelo choque 280
CP, 1970: 9-12.
281
CP, 1970: 47-48.
282
CP, 1970: 48.
283
CP, 1970: 42.
284
CP, 1970: 44 e 52.
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petrolífero e pelo aumento dos preços ao consumidor, situação que provocou o declínio das exportações nacionais. Por outro lado, o período revolucionário e as transformações que este implicou no que diz respeito às relações laborais (estabelecimento da semana de 45 horas, instituição do salário mínimo nacional e generalização dos descontos de 75% aos militares) acabaram também por causar uma situação gravosa no sector dos transportes285. A CP, detentora da linha do Tua desde 1 de Janeiro de 1947286, não foi imune a esta realidade, bem como às nacionalizações que decorreram neste contexto, principalmente após as movimentações de 11 de Março de 1975. A partir do processo revolucionário em curso, as flutuações conjunturais e económicas sucederam-se. O país passou por momentos de crise e retrocesso económico, que implicaram a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), mas também por períodos de relativa prosperidade, como aquele que se viveu de 1985 até 1990. Nesta época, as condições que haviam levado à crise transformaram-se, devido à redução do preço do petróleo, à depreciação do dólar, à adesão à comunidade económica europeia, à conjuntura económica internacional benéfica, à estabilidade política que se começou a sentir no país e a políticas expansionistas. A CP foi nacionalizada a 16 de Abril de 1975 (decreto n.º 205/75), numa época em que se encontrava numa difícil situação a nível económico e de recursos humanos. Pelo decreto-lei n.º 109/77, de 25 de Março, foi transformada numa empresa pública, sujeita ao regime geral287. Nesta conjuntura, o sector ferroviário não foi entendido como prioridade económica, dando-se primazia à saúde e educação. O estado pôs fim ao contrato de concessão detido pela CP e procedeu à reestruturação do sector dos transportes, com a formulação da lei de bases do sistema de transportes terrestres288. Porém, o estado não teve sucesso na viabilização da CP, que entrou num período de estagnação. As dificuldades financeiras da empresa foram reforçadas pela fixação das tarifas, que dificilmente cobriam os custos de exploração. Para tentar solucionar a situação, foi ponderada a reorganização da CP e de todo o sector ferroviário, tendo o I governo constitucional, em parceria com o conselho de gerência da empresa, decidido contratar a francesa Sofrerail e a canadiana Canadian Pacific para estudar uma solução. A Sofrerail teve um importante papel na elaboração de relatórios sobre a modernização dos caminhos-deferro nacionais e de alguns estudos sectoriais sobre determinados troços. Estes estudos influenciaram as políticas que viriam a ser tomadas até à década de 80, nomeadamente 285
ALMEIDA, 2006: 161.
286
CP, 1947: 51. SANTOS, 2011: 549.
287
Diário da República, I série, 16.41975, n.º 89: 576; I Série, 25.3.1977, n.º 71: 607-615.
288
CHENRIM, 2008: 64.
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no que diz respeito ao plano nacional de transportes289. Em 1977 foram publicados os novos estatutos da CP (decreto-lei n.º 109/77 de 25 de Março) e, até 1983, surgiram várias propostas no sentido de sanear financeira e economicamente a empresa. No entanto estas sugestões não tiveram aplicação concreta ou resumiam-se a pequenas mudanças não-estruturais. Assim, o final da década de 1970 foi marcado na CP por uma relevante diminuição das receitas. Esta situação permaneceu inalterada até à segunda metade da década de 1980, quando a conjuntura se tornou mais favorável. Nesta década, o estado introduziu medidas de reforço do controlo sobre as empresas nacionalizadas, o que resultou numa maior disciplina nos investimentos da CP, numamaior flexibilidade na política de preços e no encerramento de algumas linhas de pouco movimento e de baixa viabilidade económica290. Simultaneamente, tornava-se visível um aumento da importância atribuída pelo estado à modernização do sector, nomeadamente através do aumento das verbas atribuídas. Contudo, este reforço financeiro não resultou em verdadeiras vantagens para a rede ferroviária. A promulgação dos decretos-lei n.º 361/85 (de 5 de Setembro) e 387/85 (de 2 de Outubro) inseriram-se nesta lógica. Ambos tiveram implicações positivas na recuperação sentida pela empresa, ao promulgarem medidas para o saneamento económico do sector e para um aumento dos investimentos em infra-estruturas ferroviárias291. A adesão de Portugal à comunidade económica europeia (CEE) foi, igualmente, responsável por esta melhoria, tendo aumentado a consciência da necessidade de melhorar tecnológica e financeiramente o sector e tendo contribuído para a promulgação de medidas tendentes à sua reorganização. À data da entrada do país na CEE, em 1986, a rede ferroviária nacional apresentava um forte atraso tecnológico, financeiro e de gestão em comparação com as congéneres europeias. Nesse mesmo ano, o partido popular (CDS-PP) propôs ao parlamento a realização de um inquérito sobre a situação do caminho-de-ferro, sendo este aceite pelo partido social democrata (PSD), na altura no governo. Esta questão levou ao plenário os atrasos que pautavam a ferrovia portuguesa, bem como os deficits apresentados pelas empresas ferroviárias. Apesar da constatação política da necessidade de definição de uma rede de caminhos-de-ferro estruturada e viável para o progresso nacional, a principal aposta governamental foi feita na construção e requalificação de estradas, sendo que os investimentos no caminho-de-ferro apenas começaram a ganhar importância na segunda metade da década de 1990. No entanto, após a entrada de Portugal na CEE, as directrizes europeias come289
CHENRIM, 2008: 64-65.
290
LOPES, 1996: 359-360.
291
CORDEIRO, 2010: 26.
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çaram a fazer parte das normas que orientavam o sector nacional, modificando as suas formas de gestão e reservando ao estado a tarefa de manutenção das ferrovias e de outras infra-estruturas de apoio292. De facto, no final da década de 1980, o caminho-de-ferro perdia terreno na Europa, o que levou a comissão europeia a legislar no sentido de revitalizar as ferrovias europeias para que estas mais bem se adaptassem às exigências do mercado interno. A directiva 91/440/CEE (29 de Julho de 1991) foi o primeiro passo desta adaptação da legislação nacional às normas comunitárias, sendo transposta para o direito português pelo decreto-lei n.º 252/95 de 25 de Setembro293. Este novo quadro de interesses resultou, em 1988, na resolução do conselho de ministros n.º 6/88, que aprovava um plano de modernização e reconversão dos caminhos-de-ferro (1988-1994). Este plano passava a ser a base dos investimentos feitos e das políticas adoptadas no sector, não obstante o mesmo também prever a construção de vias rodoviárias que progressivamente substituiriam a rede ferroviária294. A resolução 6/88 apresentou-se, porém, bastante selectiva nos investimentos feitos, privilegiando os sistemas ferroviários suburbanos e os principais eixos de longo curso, em detrimento dos troços menos utilizados. Em consequência, 933 km de via-férrea e 250 estações e apeadeiros foram encerrados295, quer pelo reduzido número de passageiros que apresentavam, quer pelo facto da ausência de investimentos colocar em causa a qualidade do serviço: “a administração da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses tem um ponto de vista aparentemente indestrutível. O caminho-de-ferro tem de dar dinheiro ou, no mínimo, prestar bom serviço às populações”296. As linhas de via estreita foram as principais afectadas por esta decisão. Já em Setembro de 1985, a CP assinara com o governo um contrato-programa que previa a redução da rede explorada de 3.610 km para 2.796 km, sobretudo em troços de via reduzida. Estabelecia também que a CP podia adequar os serviços em qualquer linha à procura existente. Da mesma forma, dois anos depois, em 1987, a gerência da empresa anunciava que não pretendia investir nas linhas de bitola métrica297. No norte do país, os encerramentos iniciaram-se em 1988, com o fecho da linha do Sabor (1 de Agosto) e dos últimos quilómetros da linha do Douro, entre Pocinho e Barca de Alva (18 de Outubro). Seguiram-se as linhas do Tâmega e Corgo, que foram parcialmente encerradas no final de 1989. No primeiro caso, foi fechado o troço entre Amarante e Arco de Baúlhe e, no segundo caso, o troço que ligava Vila Real a Chaves. 292 293 294
CHENRIM, 2008: 46. .refer.pt/MenuPrincipal/TransporteFerroviario/OSetorFerroviario/UniaoEuropeia/Legislacao.aspx CHENRIM, 2008: 65-66.
295
CORDEIRO, 2010: 27.
296
Sábado, 1-8.10.1988, n.º 76: 101-104.
297
CHENRIM, 2008: 78.
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A 1 de Janeiro de 1990, foi cancelado o troço da linha do Minho entre Valença e Monção. Seguiu-se, no final de 1991, a linha do Tua. Como contrapartida às populações afectadas, o ministro do equipamento social, arquitecto Rosado Correia, assinou vários protocolos atribuindo aos municípios respectivos compensações financeiras para obras de carácter social298. Os protocolos tardaram, porém, a ser colocados em prática e, em todo o caso, não impediram que as populações se manifestassem contra as intenções de encerramento das linhas propostas pelo governo e pela CP. No parlamento, essas manifestações foram secundadas pelo partido comunista português (PCP) e pelo partido ecologista Os Verdes. Já o PSD, na altura no poder, defendia a procura de alternativas rodoviárias de maior qualidade. Como resultado desta difícil situação política nasceu a lei de bases do sistema de transportes terrestres, de Março de 1990, que revogou a legislação anterior e regulamentou as especificidades de cada meio de transporte, classificando as ferrovias em linhas principais, complementares ou secundárias299. A formulação desta lei deu azo à apresentação de propostas por parte do PCP e do PSD, sendo o primeiro contrário ao encerramento de caminhos-de-ferro, devido aos custos sociais associados, enquanto o PSD defendia apenas a manutenção de vias-férreas de interesse geral300. A linha do Tua foi um dos caminhos-de-ferro visados pela política do governo. Para a compreensão do contexto que levaria ao seu encerramento, os Diários das Sessões da Assembleia da República são uma importante fonte. Na verdade, os debates referentes à possibilidade de encerramento da linha do Tua, após a revolução de Abril, iniciaram-se logo nos finais da década de 1970. As premissas que tentavam justificar o fecho da linha prendiam-se já com a sua falta de rentabilidade e mau funcionamento. Por outro lado, a lógica que a enquadrava enquanto serviço público era manifestamente utilizada como justificação para a sua manutenção. Em 1979, o deputado social-democrata Amândio de Azevedo afirmava que “se a linha funciona mal, pois ponha-se a funcionar bem, se a linha não é rentável, poderá passar a sê-lo. Mas, mesmo que o não seja, na política de transportes do nosso país tem-se afirmado muitas vezes que este é um dos sectores onde é admissível que haja deficits porque se trata de uma empresa destinada a prestar um serviço social”301. Durante toda a década de 1980, os debates, apelos e representações dirigidos ao parlamento pela renovação e manutenção das linhas do Tua, Tâmega, Sabor e Corgo sucederam-se. Argumentavam que as ligações ferroviárias no interior transmontano aliavam a si as problemáticas do isolamento e das deficitárias vias de comunicação 298
MARTINS, 1996: 135-136.
299
CHENRIM, 2008: 66-67.
300
CHENRIM, 2008: 78-79.
301
Diário das Sessões da Assembleia da República, 26.7.1979: 3384.
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que serviam a zona e a ligavam ao restante país. Eram vistas ainda como elemento essencial, não apenas no que respeitava ao transporte de passageiros, mas também ao de mercadorias. Através da linha do Tua, com especial incidência no seu km 0, onde se ligava ao caminho-de-ferro do Douro, circulavam bens essenciais como adubos, ferro, materiais de construção e outras mercadorias a preços de transporte acessíveis. Da mesma forma, pelo caminho-de-ferro se escoavam as produções regionais como a batata, o cereal e a castanha302. Para os habitantes das povoações entre o Tua e Mirandela, o caminho-de-ferro era, assim, essencial em termos económicos e de quotidiano. Esta certeza não era partilhada pela CP, para quem as linhas de via estreita eram causa de um deficit que deveria ser combatido. Se não o fosse pelo simples encerramento das vias, devia-o ser pelo menos através de uma redução das viagens diárias, o que acabou por ter como consequência, não apenas transtornos na vida das populações, mas também a acumulação de mercadorias na estação do Tua. Segundo o deputado do PSD, Eleutério Alves, em sessão de Maio de 1980, “aí estiveram retidas grandes quantidades de adubo, a fazer falta aos lavradores transmontanos, falta essa cujos prejuízos ainda não podem ser avaliados mas que serão de certeza elevados, já que muitas culturas foram mesmo abandonadas devido à falta de adubos em tempo oportuno”303. Cinco anos depois, o encerramento progressivo de infra-estruturas continuava. Quanto às estações, “hoje, estão praticamente todas encerradas e o património imobiliário de certo valor completamente abandonado e destruído. É desolador ver casas que outrora albergaram famílias inteiras, confortavelmente, apesar de tudo, completamente arrasadas, quando há tantas famílias sem casa neste país. E casos houve de famílias que pretendiam continuar a habitá-las, tendo sido compelidas ao despejo. Para, afinal, ficarem à mercê de quem quisesse destruí-las, como aconteceu, e agora proporcionarem o espectáculo de uma criminosa destruição. Agora, os eventuais passageiros não têm ninguém que os receba, não têm onde se abrigar do frio e da chuva e sentem-se totalmente inseguros nomeadamente nas noites de Inverno. Do mesmo passo, ninguém pode fazer qualquer despacho, por ausência de quem o processe”304. A redução do número de composições em circulação, bem como o encerramento de algumas estações, relaciona-se com um acordo estabelecido entre a CP, o ministério do equipamento social e algumas câmaras municipais, no sentido de criar condições para a viabilização da linha do Tua. No entanto, esta solução não teve em conta as necessidades das populações e, além disso, as contrapartidas, nomeadamente a construção da via rápida entre Porto e Bragança, tardaram em chegar. 302
Diário das Sessões da Assembleia da República, 20.5.1980: 2306.
303
Diário das Sessões da Assembleia da República, 20.5.1980: 2306.
304
Diário das Sessões da Assembleia da República, 12.7.1985: 4100.
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A remodelação e o pleno funcionamento do troço, que, segundo a CP, ultrapassariam 1 milhão de contos305, foram defendidos, ainda em 1980 por vários partidos com assento parlamentar, contrários às pretensões de encerramento da linha manifestadas pela aliança democrática (PSD-CDS). Esta, por seu lado, esquivava-se a afirmações contundentes sobre o futuro dos caminhos-de-ferro de via estreita. Exemplo desta situação é a intervenção do deputado Arménio Matias, do PSD, que afirmava que “relativamente à questão das vias estreitas e do seu eventual encerramento, penso que isso são fantasmas que o Sr. Deputado Mário Tomé vê. O Governo, em sucessivas afirmações públicas, tem demonstrado à evidência o interesse em servir as populações por onde passam essas vias e portanto nunca esteve em causa o abandono das populações. Pelo contrário, o Governo preocupa-se em assegurar meios de transporte adequados a essas populações, mas aí há a situação económica das zonas servidas e, por isso, o Governo nunca encarou, de facto, a hipótese de encerrar pura e simplesmente estas linhas”306. Esta foi uma retórica que se manteve até ao fecho efectivo da linha. Durante bastante tempo, os partidos da oposição solicitaram ao governo uma resposta oficial relativamente ao futuro do caminho-de-ferro. No entanto, a resposta foi sendo consecutivamente adiada e envolvida em relatórios técnicos e em entendimentos com os municípios envolvidos, alguns deles propondo alternativas de transporte para os seus concelhos307. A linha do Tua estava, de facto, incluída no plano de viabilização da CP, sendo alvo de estudo e de discussão com as autarquias por ela servidas. Todavia, o fecho de algumas estações e a degradação do material circulante, pela falta de investimento, eram uma realidade, o que contribuía para o deficiente serviço prestado e para justificar o seu encerramento. “Com efeito é perfeitamente inconcebível que, para transporte de passageiros, se forneça composições constituídas por uma máquina e uma carruagem, antiquíssima, sem aquecimento, sem casa de banho, com bancos de madeira partidos e janelas, já tapadas com folhas de tabopan, quando outras estão imobilizadas no Porto” – referia em 1984, Hernâni Moutinho, do CDS308. Os problemas de segurança na via começaram, igualmente, a ser cada vez mais visíveis, dada a falta de investimento da CP. Luís Vaz, deputado do partido socialista, descrevia em Março de 1985 o “espectáculo trágico-cómico de ver parar o comboio antes e depois de cada passagem de nível, para que o próprio revisor vá fechar e abrir as can-
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Diário das Sessões da Assembleia da República, 28.10.1981: 181.
306
Diário das Sessões da Assembleia da República, 30.10.1981: 208.
307
Diário das Sessões da Assembleia da República, 25.11.1983: 2267.
308
Diário das Sessões da Assembleia da República, 10.2.1984: 3267.
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celas, ou apenas abrandar a marcha adivinhando-se a todo o momento o acidente”309. As condições da infra-estrutura não eram, também, as melhores, sendo que já em 1985, se alertava no parlamento para “o abandono da via em matéria de assistência, o que se traduz na criação de condições para que graves acidentes possam ocorrer. Por falta dessa assistência, a linha está em deploráveis condições a impor que os comboios transitem a velocidades ridículas, rondando por vezes os 20 km/h”310. Pela mesma altura, o porvir do troço Tua-Mirandela começava a ser pensado segundo as lógicas da futura adesão de Portugal à CEE. Em Dezembro de 1984, o deputado socialista José Lello lembrava que “nesta medida, impõe-se uma racionalização nos investimentos e na utilização dos fundos de apoio comunitário de pré-adesão, de molde a que, com urgência, se minimizem e corrijam as assimetrias regionais existentes e se atinjam níveis de desenvolvimento mais harmónico no todo do território nacional”311. As discussões acerca do estado de conservação da via, do encerramento e degradação das estações, da redução das viagens e do estado do material circulante mantiveram-se durante toda a década de 1980. Salientava-se também a tentativa de racionalização do serviço prestado pela CP, que se deparava na época, como vimos, com problemas económicos. A aposta da companhia noutras áreas, como o serviço intercidades, conduziu a uma reorganização da rede e das prioridades da empresa. As linhas de via estreita foram assim ainda mais relegadas para segundo plano, além de que continuavam sem serviço rodoviário de substituição. Nos finais da década de 1980 o encerramento de vias de tráfego reduzido foi retomado. O fecho de linhas e estações e a redução do número de comboios, enquadrados numa lógica puramente economicista, conduziram a protestos por parte de populações e autarquias, que, contudo, não foram levados em consideração nem pelos governos nem pela CP. O encerramento de linhas de baixa procura e de via estreita constituiu-se como solução para a viabilização económica da empresa, quer para os governos, quer para a CP. A sua situação financeira continuou a agravar-se na década de 1990, tendo o deficit aumentado de 101,8% em 1994 para 126,2% em 1996312. A linha do Tua encontrava-se no âmbito daquelas que apresentavam as características acima referidas. De facto, já no plano de modernização e reconversão dos caminhos-de-ferro (1988-1994) havia sido considerada secundária. Os investimentos feitos pela CP concentravam-se no eixo Braga-Porto-Lisboa-Faro, bem como nas 309
Diário das Sessões da Assembleia da República, 21. 3.1985: 2476.
310
Diário das Sessões da Assembleia da República, 11.7.1985: 4100.
311
Diário das Sessões da Assembleia da República, 21.12.1984: 1278.
312
ANTUNES, 2010: 168.
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áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e numa ligação a Espanha pela linha da Beira Alta. A ferrovia do Tua foi incluída no conjunto daquelas que apresentavam possibilidades de aproveitamento em sistemas de metro ligeiro313. Neste plano, para toda a rede secundária (que contava com cerca de 1.076 km) ficaram consignados apenas 0,2% dos investimentos previstos314. O início da década de 1990 foi marcado por alterações estruturais na CP, que se repercutiram no serviço prestado, bem como no encerramento de vários troços. Na assembleia da república foi aprovada nova lei de bases do sistema de transportes terrestres que definia “um plano ferroviário nacional e todo um mecanismo de audição das autarquias, dos cidadãos e das suas organizações. [Porém] tudo isto tem vindo a ser suplantado e, na prática, denegado ao sistema democrático e às suas instituições”315. As desconfianças contra a política traçada pela CP manifestavam-se no parlamento. O deputado Jerónimo de Sousa, do PCP, afirmava em 1992 que “os ferroviários recusam-se a aceitar a lógica economicista com que o actual governo e o conselho de gerência da CP encaram este problema. O que dá lucro mantém-se (para depois entregar ao privado); o que dá prejuízo, em termos de receitas directas, fecha-se! Os benefícios sociais da manutenção das linhas hipoteticamente deficitárias não são minimamente ponderados. Segue-se, deliberadamente, uma política de terra queimada», que começa pela degradação consciente das infra-estruturas e do serviço, para, numa segunda fase, justificar o encerramento. O recente caso da Linha do Tua é paradigmático. Primeiro, houve um plano, obviamente não publicitado, para levar a degradação das condições de segurança até aos limites do impossível; depois, houve a tentativa de encerramento, com a hipócrita desculpa da falta de segurança”316. Apesar da oposição aos planos do governo e da CP, os primeiros troços da linha do Tua foram efectivamente encerrados. A 15 de Dezembro de 1991, a CP procedeu ao fecho do troço entre Mirandela e Macedo de Cavaleiros, deixando isolada a ligação entre Macedo e Bragança. Dois dias depois, um descarrilamento em Sortes ditou o fim deste último troço. Apesar de a CP garantir que o encerramento era apenas provisório, menos de um ano depois, em Outubro de 1992, a companhia retirou das estações de Macedo e Bragança as locomotivas, vagões e carruagens, por via rodoviária, durante a noite e sob escolta policial. Com o fim deste trecho da linha, a luta centrou-se na manutenção do que havia permanecido aberto (entre Tua e Mirandela) e na tentativa de reabrir a via até Bragança. Apostou-se, em vão, em argumentos culturais e turísticos e, inclusivamente, numa hipotética ligação a Espanha através de Bragança, em vão. 313
REFER, 1998.
314
Diário das Sessões da Assembleia da República, 9.1.1990: 1041.
315
Diário das Sessões da Assembleia da República, 31.1.1992: 724.
316
Diário das Sessões da Assembleia da República, 31.1.1992: 725.
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A linha do Tua (1851-2008)
Três anos após o fecho do troço Mirandela-Bragança, foi criada a empresa Metro de Mirandela, pelo decreto-lei n.º 24/95 de 8 de Fevereiro. Tratava-se de uma empresa municipal com participação da CP, criada no seio de um programa de medidas de racionalização de linhas de baixa procura, como forma de evitar o seu encerramento317. O projecto foi alvo de várias críticas, principalmente por parte de autarquias vizinhas. Um excerto da revista Grande Reportagem é bastante revelador desta situação: “o Presidente da Câmara de sucesso Mirandela defende-se das invejas como pode (…). Diz que o complexo agro-industrial do Cachão, espécie de elefante branco da região é um gigante adormecido que começa a acordar por isso se justifica que o metro chegue lá, e que as outras câmaras da linha só não conseguiram a colaboração da CP para um idêntico ao seu, porque não quiseram. “Não queremos metro nenhum, que só serve para um aglomerado urbano de grande densidade , responde o vice-Presidente da Câmara de Macedo de Cavaleiros. Queremos é o comboio para servir as nossas populações rurais que estão cada vez mais isoladas. Isso é que nos preocupa», retorquiu”318. Apesar das críticas dos municípios vizinhos, a câmara municipal de Mirandela manteve o projecto, aproveitando a estrutura da linha do Tua para servir a cidade e os seus dois pólos educativos319. Assim, a 28 de Junho de 1995, era inaugurado o metro de superfície de Mirandela, circulando no percurso compreendido entre Mirandela e Carvalhais, localidade onde existe uma escola agrícola. A 21 de Outubro de 2001, o metro passou a circular, também, entre Carvalhais e Tua, fazendo a ligação à linha do Douro. No entanto, em 2007 e 2008, quatro acidentes vieram ditar o encerramento de um dos troços usados pelo metro. A 12 de Fevereiro, um rochedo destruiu parte da linha fazendo com que o comboio n.º 6205 do Metro Ligeiro de Mirandela, que havia partido da estação do Tua, descarrilasse ao km 6 925, caindo ao rio quando da sua passagem pelo local. O acidente provocou três mortos e dois feridos graves320. A 10 de Abril de 2008, a dresine DPE 207 e o reboque RE 016, que estavam a “verificar a disponibilidade da infra-estrutura, antes da primeira circulação regular de passageiros no troço Abreiro-Tua (…) por motivo das condições climatéricas serem adversas (chuvas fortes)”, descarrilaram ao km 2,17, entre Mirandela e Tua, devido à queda de alguns blocos de pedra na plataforma. Do acidente resultaram ferimentos ligeiros em três colaboradores da equipa de via e geotecnia do Tua321. 317
BELO, 2013: 117.
318
Grande Reportagem, Fevereiro de 1995, n.º 47.
319
Diário das Sessões da Assembleia da República, 24.5.1995: 2547.
320
REFER, 2007.
321
REFER, 2008b.
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125 anos de exploração
Menos de dois meses depois, a 6 de Junho de 2008, uma outra composição do metro ligeiro descarrilou perto da estação do Tua, provocando ferimentos sem gravidade ao maquinista e a dois passageiros. Por fim, a 22 de Agosto de 2008, um descarrilamento próximo da estação de Brunheda causou a morte a uma passageira e feriu quarenta e três322. Após estes acidentes seriam encerrados mais 41 km de via e o metro passou a operar apenas entre Carvalhais e o complexo industrial do Cachão323. A ligação do Cachão ao Tua passou a ser realizada, oito vezes por dia, por uma frota de quatro táxis contratados pela CP, num custo anual de 125 mil euros pagos pelo Metro de Mirandela. Este elevado custo, que resultava em prejuízo para a empresa, fez com que fosse considerado o fim da circulação do metro entre Mirandela e o Cachão a partir de 2012. O encerramento foi, porém, evitado através da assinatura de um protocolo de entendimento entre as autarquias servidas pela empresa – Tua, Mirandela, Vila Flor, Carrazeda de Ansiães, Alijó e Murça –, a administração da CP e a REFER. Até 2012, muitas foram as campanhas realizadas por populares, autarquias e forças políticas partidárias, tentando evitar o fecho da via-férrea. As cartas e representações dirigidas aos governos multiplicaram-se, tentando forçar ao recuo da decisão. Além disso, a possibilidade de aproveitamento turístico da linha do Tua encontrava-se, também, presente nas agendas da época, nomeadamente no que diz respeito ao plano de desenvolvimento turístico do vale do Douro324. Este preconizava a qualificação de “eixos de âmbito intermunicipal e ou regional com elevado interesse turístico-paisagístico de âmbito rodo-ferroviário, tendo em vista a estruturação de vias panorâmicas que contribuam de forma decisiva para a valorização da oferta turística regional», bem como a criação, expansão e dinamização de actividades de animação turística, nomeadamente, negócios ligados à actividade turístico-fluvial, turístico-ferroviária e ou turístico-ambiental”325. Ainda na área do património, uma outra campanha giraria em torno da tentativa de classificação da linha do Tua como património de interesse nacional, através do projecto de resolução 418/X (4.ª) do grupo parlamentar Os Verdes, de Janeiro de 2009, cujo texto reproduzimos: “A Linha do Tua, linha de caminho-de-ferro de via estreita, com 5 quilómetros, que liga a estação de Foz do Tua, na Linha do Douro, a Mirandela, é, sem dúvida alguma, uma peça importante do nosso património, pelo papel que desempenhou na História, pelo testemunho que nos lega da capacidade que os nossos antepassados tiveram para conviver e superar os obstáculos e as adversidades 322
REFER, 2008a.
323
BELO, 2013: 54-55.
324
PORTUGAL, 2007.
325
PORTUGAL, 2007: 26 e 33.
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A linha do Tua (1851-2008)
da Natureza e, ainda, pela capacidade que tem de nos deslumbrar com os encantos paisagísticos que o Vale do Tua nos proporciona. Esta obra-prima da engenharia portuguesa, tal como foi logo na hora apelidada, ainda é hoje considerada por especialistas e entidades desta área, entre os quais a Associação Portuguesa do Património Industrial, representante em Portugal do Comité Internacional do TICCIH – The International Committe for the Conservation of the Industrial Heritage, Organismo Consultor da NESCO para o património industrial. A linha do Tua é uma peça única e sem equivalente do património ferroviário português, ocupando, por essa via, um lugar relevante no Património Industrial que é cada vez mais valorizado a nível mundial. Exemplo disso foram as duas linhas férreas noutros países, classificadas como Património Mundial pela NESCO em 2008. Esta linha entre Foz do Tua e Mirandela, inaugurada oficialmente no dia 29 de Setembro de 188 , e que ainda continua a funcionar, corresponde ao primeiro troço da linha ferroviária que viria, em 1906, a ligar o Douro a Bragança. A inauguração desta linha foi um acontecimento regional e nacional que contou com a presença do Rei D. Luís, de D. Maria Pia e do Infante, e cujo registo nos chega até aos nossos dias por diversas fontes, entre as quais pelo delicioso relato do jornalista e humorista Bordalo Pinheiro, que acompanhou a comitiva oficial, e que no seu precioso testemunho atesta da importância do evento, do acontecimento ímpar que representou para Trás-os-Montes e para a sua população, a qual compareceu massivamente no acto. O contributo inegável que esta linha veio dar para quebrar o isolamento desta região com o resto do País e do mundo e o papel relevante que veio a desempenhar no desenvolvimento de Trás-os-Montes e no bem-estar das suas populações, não são estranhos às manifestações de apoio que esta obra teve na época e ao apego que, ainda hoje, as populações locais demonstram ter por esta, mesmo depois do abandono a que tem sido votada em termos de investimento público e das contingências de que tem sido alvo nos últimos anos, que muito geraram um atenuar do contributo que esta infraestrutura poderia dar para o desenvolvimento da região. (…) Notável ainda, e importante sublinhar, é o facto desta linha, no troço ainda activo, ter sido construída em apenas três anos e ter-se afirmado como uma obra de grande qualidade ao longo dos seus 121 anos de vida, registados no passado mês de Setembro de 2008, o que se traduziu por um número reduzido de acidentes registados. m dos valores desta Linha, e que constitui, sem dúvida, uma das suas grandes potencialidades de atracção, respeito e admiração sentidos por todos os que conhecem a Linha, ou pelos milhares de turistas nacionais e estrangeiros que todos os anos a visitam, reside nas dificuldades que o Homem conseguiu contornar e o arrojo que permitiu a passagem dos comboios pelos rochedos intransponíveis do Vale do Tua e
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125 anos de exploração
pelas serras do Nordeste Transmontano extracto do texto da petição pela Linha do Tua, lançado pelo Movimento Cívico pela Linha do Tua, entregue na Assembleia da República em Junho de 2008). Outro dos valores que não pode ser, de maneira alguma, omitido é o valor do Património Natural que o Vale do Tua constitui ao nível paisagístico, graças à beleza, à rudeza e à diversidade das suas paisagens. A Linha e o Vale do Tua constituem um binómio indissociável Linha Vale do Tua que integra a identidade cultural das populações deste Vale e no qual a Linha se assume como um elemento unificador. Mesmo para os mais idosos, a quem a paisagem diz menos, a Linha importa (…). Ela marca a dimensão cultural destas paisagens vivas, onde a acção do Homem foi capaz de submeter a Natureza selvagem e indomável» (extracto do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidroeléctrico da Foz do Tua). Por fim, na avaliação patrimonial que deve ser feita da Linha do Tua e das suas potencialidades, não pode esquecer-se o facto de parte desta Linha, os seus primeiros quilómetros, se inserirem na Região do Alto Douro Vinhateiro, classificada como Património da Humanidade pela NESCO. Classificar este Património é um dever e é urgente: como forma de homenagem à obra de engenharia que nos foi legada, e a todos os trabalhadores que com risco para as suas vidas nos legaram este Património e tão bela obra; como forma de reconhecimento e valorização da paisagem constituída pelo Vale e pela Linha do Tua; como forma de potencializar este Património Natural e Cultural, dando-o a conhecer e a usufruir às gerações presentes e futuras; como forma de potencializar e integrar, de maneira inteligente, um conjunto de Património já hoje em dia classificado: as gravuras de Foz Côa, o Douro Vinhateiro e a Linha do Tua esta última ainda não classificada ; como forma de promover um desenvolvimento sustentado desta Região e compatível com os compromissos assumidos no quadro da NESCO. Assim, face ao exposto, os Deputados do Grupo Parlamentar “Os Verdes”, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, apresentam o seguinte projecto de resolução: A Assembleia da República resolve recomendar ao Governo que desencadeie o processo de classificação da Linha Ferroviária do Tua como Património de Interesse Nacional. Palácio de S. Bento, 16 de Janeiro de 2009. Os Deputados de Os Verdes: Heloísa Apolónia Francisco Madeira Lopes”326. De facto, por diversas vezes se tentou usar o interesse patrimonial da linha do Tua como uma alavanca para o seu aproveitamento na área do turismo. Ainda em 2010, “foi determinada a abertura do procedimento administrativo relativo à classificação da Linha Ferroviária do Tua, concelhos de Carrazeda de Ansiães, Vila Flor e Mi326
Diário das Sessões da Assembleia da República, II série A, 23.1.2009: 77-78.
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randela, distrito de Bragança, e concelhos de Alijó e Murça, distrito de Vila Real” (anúncio n.º 8665/2010)327. Porém, não obstante as tentativas de viabilização do caminho-de-ferro, aliadas aos estudos e debates que preconizavam a construção da barragem de Foz-Tua, a sua completa eliminação encontrava-se já expressa no plano líder 2010. Neste plano, a CP procurava atingir a liderança ibérica na ferrovia, equilibrar as suas contas e criar valor para o accionista na ordem dos 3,2 mil milhões de euros. Deste modo, a CP preconizava “redimensionar a oferta adequando-a aos volumes e padrões de mobilidade regional”328, antecipando assim a redução de comboios ou o próprio encerramento de troços e vias de uso reduzido. Na verdade, os estudos realizados pela CP indicavam um aumento crescente das despesas nas vias-férreas de menor tráfego. Em alguns casos, os custos de cada passageiro por quilómetro chegavam a ser 5000% superiores aos registados nos principais troços. No caso da linha do Tua o custo de cada passageiro por quilómetro situava-se nos 1,90 , muito acima do valor na rede principal, que girava em torno dos 0,5 , a valores de 2008329. A resolução do conselho de ministros n.º 45/2011 indicava, assim, “que o modo ferroviário é muito pouco eficiente nos eixos de baixa procura e que é possível assegurar uma adequada satisfação das necessidades de mobilidade das populações, com custos substancialmente mais baixos para a sociedade, através de modos de transporte público muito mais vocacionados para estas situações”330. Estas conclusões conduziram à suspensão do processo de reactivação das linhas de baixa procura, nomeadamente, do Corgo, Tâmega, Figueira da Foz e Tua. Os resultados financeiros da sua operação, ligados à sua crescente deterioração, à possibilidade de construção da barragem de Foz-Tua e ao compromisso assumido pelo estado português no memorando de entendimento no sentido de “rever a dimensão da sua rede ferroviária, racionalizando-a de acordo com a verdadeira vocação do caminhode-ferro, de modo a aumentar a sustentabilidade financeira do sector ferroviário”331 levaram ao encerramento definitivo da linha do Tua em 2012. O metro ligeiro de Mirandela manteve-se como o único elo ferroviário de ligação entre algumas das zonas anteriormente servidas pelo caminho-de-ferro centenário.
327
Diário da República, II série, 8.9.2010, n.º 175: 46459.
328
CP, 2010.
329
Diário da República, I série, 10.11.2011, n.º 216: 4809.
330
Diário da República, I série, 10.11.2011, n.º 216: 4809.
331
Diário da República, I série, 10.11.2011, n.º 216: 4809.
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125 anos de exploração
5.8. O ENCERRAMENTO DA LINHA DE BRAGANÇA NA IMPRENSA REGIONAL Ana Carina Azevedo332 Ângela Salgueiro333
O encerramento da linha do Tua, nomeadamente do troço entre Mirandela e Bragança – o primeiro a ser fechado e aquele que acabou por originar episódios que marcaram duradouramente a memória das populações –, constituiu-se como um acontecimento que captou o interesse do País e dirigiu a atenção nacional para as idiossincrasias do nordeste transmontano entre os anos de 1990 e 1992. A imprensa nacional e regional acompanhou, de forma mais ou menos contínua, o processo que conduziu ao encerramento definitivo do troço, a luta e resistência das populações e as acções da CP, do governo e das autarquias locais. Como seria de esperar, entre os jornais nacionais e locais são evidentes algumas diferenças na forma como os acontecimentos foram tratados. Os primeiros, mais directos e factuais; os segundos, marcados por uma maior afectividade e emotividade no tratamento dos temas. Assim, para tentar criar uma amostra representativa procurou-se escolher um conjunto abrangente de fontes, seleccionando-se dois jornais de circulação nacional – um de Lisboa e outro do Porto, respectivamente o Diário de Notícias e O Comércio do Porto – e cinco jornais de âmbito regional, de grande circulação nas zonas servidas pela Linha 332
Instituto de História Contemporânea (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa).
333
Instituto de História Contemporânea (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa).
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A linha do Tua (1851-2008)
do Tua e cujo acompanhamento da temática se revelou de maior interesse: O Cardo. Jornal do Nordeste; Terra Quente. Periódico de Informação Regional; Notícias de Mirandela; A Voz do Nordeste e O Mensageiro de Bragança. A 15 de Dezembro de 1991, o troço da Linha do Tua que ligava Mirandela e Macedo de Cavaleiros foi encerrado pela CP, deixando a ligação entre Macedo e Bragança isolada da restante rede ferroviária. Dois dias depois, também este troço foi encerrado devido a um descarrilamento em Sortes. Estes acontecimentos – e o seu prelúdio durante o ano de 1990 – marcaram o início de uma época de maior dinâmica nas notícias referentes à linha do Tua, quer nos jornais nacionais, como nos regionais. Figura 179 – Descarrilamento em Sortes334
De facto, as notícias sobre as possibilidades de encerramento da linha do Tua tiveram início em 1990 e estenderam-se até 1992, altura em que este se encontrava já efectivado, sendo principalmente da responsabilidade da imprensa regional. Logo em Junho de 1990, dizia o jornal Terra Quente: “A incerteza paira sobre o futuro negro do Caminho de Ferro do Tua, mais concretamente no troço entre Mirandela e Bragança, cujo encerramento esteve previsto para finais do passado mês de Março. De facto, e talvez procurando iniciar um processo de “tratamento mental” das populações a C.P., deu início à suspensão do transporte de algumas mercadorias a norte da Régua, ensaiando o fecho do cais da estação de Mirandela”335. A imprensa regional mantinha-se, assim, atenta às acções levadas a cabo pela CP, fazendo suas as preocupações e os rumores populares que interpretavam o fim do transporte de mercadorias como um prenúncio do encerramento do serviço de passageiros. Porém, após um período quente marcado pelos rumores sobre o encerramento, a acalmia regressaria às páginas dos jornais, sendo somente 334
O Mensageiro de Bragança, 20.12.1991: 28.
335
Terra Quente. Periódico de Informação Regional, 1.6.1990, a. 1, n.º 8: 2.
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quebrada em Dezembro de 1991, altura em que efectivamente o troço seria fechado. Nesta fase foram, de facto, os jornais regionais que mais acompanharam a situação e mais se insurgiram contra o encerramento, mesmo que temporário, do troço entre Mirandela e Bragança. O Notícias de Mirandela referia, em Janeiro de 1992, ter sido “por entre o silêncio da madrugada que no passado mês de Dezembro o comboio do Tua, deixou de circular no troço entre Mirandela e Bragança.”336. No mesmo mês, o periódico Terra Quente lançava críticas ao encerramento das linhas ferroviárias e ao aumento do isolamento da região, principalmente se ao fecho do caminho-de-ferro se juntassem as debilidades dos outros meios de transporte existentes. “Escandaloso! A CP quer isolar e desertificar ainda mais o Nordeste Transmontano. Com a anuência do Governo Abaixo aqueles que fazem sofrer o povo Nordestino!”337. Da mesma forma, também O Mensageiro de Bragança enfatizava os malefícios do fim do caminho-de-ferro numa zona economicamente frágil. “Será justo retirar o comboio a uma região que começa em pedra e acaba em pedra, e onde a força do rio Douro tornou Trás-os-Montes e Alto Douro a maior potência hidroeléctrica de todo o território português?”.338 Figura 180 – Cartoon relativo à actuação do governo na questão da linha do Tua339
A Voz do Nordeste manifestar-se-ia no mesmo sentido. Na edição de Abril de 1992 pode ler-se: “nasceu democraticamente, através de resolução do Parlamento, que autorizou sucessivamente os dois troços que a compõem; morre ocultamente, por determinação despótica de alguém que não ouviu ou não quis ouvir os muitos beneficiários da sua exploração”340. 336
Notícias de Mirandela, 31.1.1992: 12.
337
Terra Quente. Periódico de Informação Regional, 1.1.1992, a. 3, n.º 27: 8.
338
O Mensageiro de Bragança, 31.1.1992, n.º 2373: 6.
339
O Cardo. Jornal do Nordeste, 28.2.1992: 1.
340
A Voz do Nordeste, 7.4.1992, n.º 153: 16.
475
A linha do Tua (1851-2008)
Paralelamente às críticas das páginas dos jornais decorriam as negociações com o governo, tendo os representantes do poder local solicitado aos populares o fim das hostilidades para que a CP pudesse iniciar “os trabalhos na via ferroviária” e para “que os autocarros iniciem o transporte que os cidadãos necessitam para que a sua imagem não fique deslustrada”341. De facto, no início de 1992, a esperança de que o encerramento da linha fosse apenas temporário persistia. A própria CP difundiu, a partir das reuniões que realizou com representantes do poder local e de associações nordestinas, três soluções distintas para a rentabilização do troço entre Mirandela e Bragança. Segundo O Mensageiro de Bragança, o primeiro destes cenários “prevê a manutenção das actuais condições de circulação, entre os 25 e os 30 km/hora, reduzindo ao mínimo os trabalhos de reparação, que mesmo assim, atirariam para custos da ordem dos 300 mil contos. (...) O segundo preconiza a realização de trabalhos, que se consideram necessários (…). Esta opção permitiria reduzir para uma hora a ligação BragançaTua (…). Esta alternativa implicaria um investimento da ordem de um milhão e meio de contos. O terceiro ponto aponta para a construção de um novo traçado, para poder competir com o IP4, e seriam necessários 12 milhões de contos”342. O turismo também não deixou de fazer parte das alternativas para a manutenção da linha. Porém, a CP acabou por não passar da retórica à prática, mantendo encerrado o serviço ferroviário no troço em questão, o que intensificou visivelmente o sentimento de traição do povo nordestino relativamente aos decisores nacionais. Neste contexto, O Mensageiro de Bragança alertou para o facto de o governo e a CP serem influenciados pelos lobbies das empresas rodoviárias e da construção civil e também por agentes externos, como o FMI e o Banco Mundial, os quais vinham pressionado as autoridades portuguesas para o encerramento das linhas de via estreita. Estas pressões manifestavam-se na falta de investimento na superstrutura ferroviária e no desinteresse do poder central em obter soluções alternativas para a rentabilização das linhas: “Pode-se ainda perguntar: o que tem sido feito para minorar e inverter a situação económica e financeira dos caminhos-de-ferro, nomeadamente em Trás-os-Montes e Alto Douro? Os investimentos correctos e atempados na renovação da via? A melhoria das condições de transporte de passageiros e de eficiência e competitividade no transporte de mercadorias? A introdução de novo material circulante? Nada disto tem sido feito”.343 Mas não só o governo central é considerado responsável pelo encerramento da linha do Tua. Também contra os eleitos locais são viradas as baterias da contestação popular. “Outro aspecto muito gravoso de toda esta política é a efectiva colaboração, activa ou pelo silêncio, que muitas autarquias nela têm tido. Na maior parte dos casos 341
O Comércio do Porto, 20.12.1991, n.º 202: 15.
342
O Mensageiro de Bragança, 31.1.1992, n.º 2373: 6.
343
O Mensageiro de Bragança, 14.2.1992, n.º 2375: 12.
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125 anos de exploração
tem sido fácil à CP fechar as linhas devido ao consentimento dos poderes locais”344. No entanto, até ao Verão de 1992, a esperança de reabertura da linha, quer nos moldes anteriores, quer com um reforçado teor turístico, permanecia. No final de Junho de 1992, porém, a notícia da proximidade do encerramento definitivo chegava ao jornal O Cardo. “Ao fecharmos esta edição chegou-nos a informação, por fonte fidedigna, de que a CP apronta o processo de encerramento definitivo do troço da Linha do Tua entre Mirandela e Bragança, para logo de seguida fechar os restantes quilómetros entre o Tua e Mirandela”345. No final do ano surgia a confirmação sobre o carácter definitivo do encerramento do troço entre Mirandela e Bragança e a possibilidade de este representar o fim de toda a linha do Tua. Iniciou-se então uma época marcada pelas tentativas das câmaras municipais e das associações locais, como o núcleo empresarial do distrito de Bragança (NERBA) e a comissão regional de turismo, de chegar a acordo com o governo e a CP sobre a reabertura do troço ou a obtenção das contrapartidas no caso de encerramento do mesmo. Viveu-se também um momento de forte resistência popular, a qual originou episódios de grande tensão em algumas aldeias anteriormente servidas pelo caminho-de-ferro, com grande eco na imprensa regional e nacional. Tabela 8 – Cronologia do encerramento do troço Mirandela-Bragança Suspensão do serviço da CP no troço Mirandela-Macedo de Cavaleiros. Início do serviço de carreiras entre Bragança e Mirandela. 15 Dez A população de Fermentãos retém o autocarro e corta a estrada. Na povoação de Salsas corta-se a estrada e impede-se a circulação do autocarro fretado. Intercepção de um autocarro da CP em Macedo de Cavaleiros. Descarrilamento da composição n.º 36207, perto de Sortes.
1991
Suspensão temporária da circulação entre Mirandela e Bragança. 17 Dez Reunião, em Bragança, de empresários ligados à NERBA e à associação comercial e industrial de Mirandela, exigindo a reabertura da linha. A população de Salsas arranca carris da linha. Populações de Salsas, Cernadela e Cortiços sequestram autocarros. 18 Dez O governador civil de Bragança e vários representantes das autarquias, da indústria e do comércio das zonas afectadas deslocam-se a Lisboa e reúnem com o secretário de estado dos transportes e com o presidente do conselho de administração da CP. Reunião entre representantes das populações de Sortes e Salsas e o governador civil de 21 Dez Bragança, o presidente da câmara de Bragança e a CP para tentar chegar a uma solução de compromisso. 22 Dez
Retidos sete autocarros da empresa do Tâmega, ao serviço da CP: dois em Sortes, três em Cortiços e dois em Salsas.
344
O Mensageiro de Bragança, 14.2.1992, n.º 2375: 13.
345
O Cardo. Jornal do Nordeste, 30.6.1992, n.º 54: 1. 477
A linha do Tua (1851-2008)
1992
20 Janeiro
Crítica pública do NERBA ao presidente da república, Mário Soares.
23 Janeiro
Novo encontro entre o governador civil de Bragança e o secretário de estado dos transportes.
23 Março
Manifestação pública contra o encerramento em Bragança.
13/ 14 Outubro
Transporte das locomotivas e carruagens da estação de Bragança para Mirandela, pela madrugada. Detenção do presidente do NERBA.
A resistência das populações ao fecho do troço foi, talvez, o aspecto mais marcante dos meses que antecederam a confirmação do seu encerramento definitivo. A primeira notícia relacionada com o tema teve origem num jornal nacional, O Comércio do Porto que, em Dezembro de 1991, referia a forte oposição dos trabalhadores da CP, da população local e do NERBA ao encerramento, procurando sensibilizar a empresa para a necessidade de discutir soluções de compromisso que impedissem o fim da linha do Tua. De facto, apesar de a CP afirmar o carácter provisório do encerramento, os “funcionários da CP consideraram a interrupção da circulação de comboios entre a cidade de Mirandela e a vila de Macedo de Cavaleiros o primeiro passo para o encerramento definitivo do troço Bragança-Mirandela e a primeira fase do encerramento da linha do Tua»”346. As acusações contra a CP continuariam pela voz do NERBA. “O presidente do Núcleo Empresarial da Região de Bragança (NERBA), Fernando Guilherme, acusou o conselho de gerência da CP de falta de competência para rentabilizar a linha do Tua e de seguir o caminho mais fácil que é fechá-la». Segundo o NERBA, não houve diálogo com os agentes económicos da região e deixou-se degradar deliberadamente a linha e os serviços ”347. Entre os partidos políticos, três destacaram-se neste processo: Os Verdes, que mantiveram a sua oposição ao encerramento e envidaram vários esforços para garantir a rentabilização turística da linha; o PS, cujas críticas se dirigem maioritariamente ao PSD, na altura no poder; e o PSD local, cujas acusações incidiam, particularmente, no conselho de gerência da CP. Já as manifestações populares, de grande impacto político e social, iniciaram-se no final do ano de 1991, na sequência da criação de carreiras de autocarros, pagas pela CP, entre Bragança e Mirandela, as quais foram introduzidas sem conhecimento dos utentes da linha. “No dia 15 do corrente efectuou-se a viagem inaugural das novas carreiras que a CP coloca ao serviço da população de Mirandela e Bragança, em autocarros de luxo, dos mais modernos que funcionam no Nordeste. (…) Desde que, há alguns dias, se começou a falar na implementação do novo sistema de autocarros da CP, alguma imprensa
346
O Comércio do Porto, 18.12.1991, n.º 200: 17.
347
O Comércio do Porto, 18.12.1991, n.º 200: 17.
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associou desde logo esse facto ao encerramento da linha”.348 No Diário de Notícias podia ler-se o seguinte. “Para já, a linha do Tua, que liga esta estação a Bragança, vai continuar a funcionar nos mesmos moldes, mas a entrada em funcionamento dos autocarros é sinal mais que evidente de que está para breve o encerramento entre Mirandela e Bragança, onde os comboios cada vez andam menos por o estado da linha não permitir uma velocidade superior a 40 quilómetros por hora, e alguns troços a 30 km/h”349 . Cientes desta realidade, cedo os populares optaram pela retenção dos autocarros como forma de luta. Em Dezembro de 1991, “a população de Salsas reteve, na povoação, o autocarro que se dirigia para Mirandela, tendo colocado no meio da estrada uma pedra com cerca de 500 quilos, impedindo, assim, o andamento do veículo. Entretanto, o autocarro que seguia em direcção a Bragança foi interceptado em Macedo de Cavaleiros (…). De manhã, o autocarro que fazia o percurso entre Mirandela e Bragança foi interceptado, cerca das 8 e 30, pela população de Cortiços e Cernavela, que acabou por sequestrar outro, uma hora depois, na povoação dos Cortiços. Entretanto, a população de Salsas, que já tinha retido um autocarro, na noite de terça-feira, deteve outro, ontem à noite”350. Na segunda quinzena de Dezembro de 1991 vários foram os autocarros retidos pelas populações, que não se encontravam dispostas a recuar enquanto o troço entre Mirandela e Bragança não fosse reaberto. “Os A TOCARROS só vão seguir viagem quando virem passar os comboios. Era assim que um popular de Sortes desabafava em relação à retenção dos autocarros da CP, apesar de as garantias dadas pelo Secretário de Estado dos Transportes de que a linha do Tua não irá encerrar”.351 Estas manifestações populares ganhariam, cada vez mais, uma visibilidade nacional, na medida em que os principais órgãos de comunicação social davam conta do descontentamento local. Porém, no final de Dezembro, as populações decidiram aceitar o serviço de autocarros, como medida provisória até à reabertura da linha. De facto, a reabertura do troço mantinha-se como prioridade para as populações e as trocas de acusações sobre a responsabilidade do fecho da linha repercutiram-se nos jornais, tendo como alvo a CP e a sua política de não-investimento na modernização da via. Porém, a consciência da necessidade de obras de remodelação na linha era uma realidade para as populações nordestinas, que entendiam os riscos associados ao estado da ferrovia: “Só os mais sentimentalistas persistem na manutenção da Linha do Tua, tal como ela está. A maioria é de opinião que a via deverá ser adaptada aos novos tempos”352. Sobre este assunto O Cardo referia: “a linha do Tua é um pouco como a questão 348
A Voz do Nordeste, 16.12.1991, n.º 146: 28.
349
Diário de Notícias, 16.12.1991, a. 127, n.º 44827: 28.
350
Diário de Notícias, 19.12.1991, a. 127, n.º 44830: 27.
351
Diário de Notícias, 20.12.1991, a. 127, n.º 44831: 26.
352
O Cardo. Jornal do Nordeste, 22.12.1992, n.º 60: 6.
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de Timor. A tempo e horas ninguém se importou com a modernização da linha do Tua, ninguém exerceu influência no sentido de essa via de comunicação ser beneficiada de forma a ser rentável e rápida (...) ninguém hoje em dia quer largar nove horas de tempo, que é quanto demora uma viagem ronceira entre o Porto e Bragança (...). E, sejamos francos: quantas pessoas defensoras da linha do Tua andam nos comboios dessa linha? Poucas. Aposto”353. De facto, cerca de nove meses depois, em Dezembro de 1992, o mesmo jornal depositava as suas esperanças nos fundos adstritos ao Pacote Delors II como forma de reabilitar e modernizar a linha do Tua: “não choremos pelo comboio enferrujado que com comiseração nos iam dando. Sejamos também realistas, aquilo não passava de um émulo dos vagões que apinhados chegavam a Auschwitz num passado não muito distante (...). Queremos que o dinheiro do Pacote Delors II sirva o Nordeste pelo menos durante 8,3 dias, ou sejam 12 mil e picos minutos... (...) É por esse comboio que devemos lutar denodadamente”354. Assim, a resistência popular manteve-se ao longo do ano de 1992. A 23 de Março tinha lugar uma grande manifestação pública, amplamente divulgada pelo jornal O Cardo. “No sentido de se reagir contra a iminente intenção do Governo em encerrar a Linha do Tua, vai realizar-se, em Bragança, no dia 23 de Março, uma manifestação em que se espera que toda a população esteja presente e saiba reagir com severos protestos, contra mais um acto discriminatório, contrariador de todas as regras políticas de solidariedade regional e que nos arrastam para o isolamento e para fora das vias do progresso. Basta de isolamento...”355. A edição seguinte, de Março de 1992, daria testemunho dessa manifestação, enfatizando as vitórias alcançadas e dando voz a alguns nordestinos que na mesma haviam estado presentes. “No dia 23 de Março, a Praça Cavaleiro de Ferreira foi palco de um levantamento popular contra as intenções do Poder Central e da CP em quererem fechar a Linha do Tua”.356 Figura 181 – Manifestação popular contra o encerramento da linha do Tua357
353
O Cardo. Jornal do Nordeste, 31.3.1992, n.º 51: 2.
354
O Cardo. Jornal do Nordeste, 22.12.1992, n.º 60: 6.
355
O Cardo. Jornal do Nordeste, 28.2.1992, n.º 50: 1.
356
O Cardo. Jornal do Nordeste, 31.3.1992, n.º 51: 9.
357
O Cardo. Jornal do Nordeste, 31.3.1992, n.º 51: 1.
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Esta manifestação acabaria por surgir também nas páginas de alguns jornais nacionais, como o Público e o Jornal de Notícias. Diz o Público, a 24 de Março, num artigo intitulado Milhares de manifestantes contestam encerramento da Linha do Tua. Bragança chama Cavaco: “mais de três mil pessoas saíram ontem à rua em Bragança, para protestar contra o encerramento da linha férrea do Tua, entre Mirandela e aquela cidade”358. E, no artigo Três mil desfilam em Bragança. Queremos o comboio’, referia “MANIFESTANTES nordestinos vieram ontem de novo para a rua, para exigirem a reabertura da linha ferroviária do Tua, no percurso Mirandela-Bragança, que se encontra encerrado desde o passado dia 15 de Dezembro. Cerca de três mil pessoas concentraram-se em Bragança, na praça do Cavaleiro Ferreira, e desfilaram de seguida até ao Governo Civil, gritando palavras de ordem como Bragança também é Portugal e Queremos o comboio ”359. Por sua vez, o Jornal de Notícias, na mesma data, publicava: “Brigantinos revoltados exigem o “seu” comboio. Manifestantes desfraldaram bandeira espanhola”360. Em 1991, aquando do encerramento do troço que ligava Mirandela a Bragança, a CP afirmou que este era apenas provisório. Porém, menos de um ano depois, em Outubro de 1992, teria lugar um acontecimento que marcaria as populações locais e que para muitos significaria o início do fim da linha do Tua. Trata-se daquela que ficaria conhecida como a Noite do Roubo, quando a CP retirou, por via rodoviária, durante a noite e sob escolta policial, as locomotivas e carruagens que se encontravam nas estações de Macedo de Cavaleiros e Bragança. Este acontecimento fez manchete na imprensa nacional e regional, tendo igualmente sido profusamente relatado nos restantes meios de comunicação social. Figura 182 – Notícia sobre a Noite do Roubo n’O Mensageiro de Bragança361
358
O Cardo. Jornal do Nordeste, 31.3.1992, n.º 51: 12.
359
Apud. O Cardo. Jornal do Nordeste, 31.3.1992, n.º 51: 12.
360
Apud. O Cardo. Jornal do Nordeste, 31.3.1992, n.º 51: 12.
361
O Mensageiro de Bragança, 23.10.1992: 13.
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Refere O Mensageiro de Bragança: “Pela calada da noite de 13 para 14 de Outubro de 1992, e usando métodos que o ordeiro povo transmontano não pode tolerar, o Governo de Cavaco Silva (…) roubou os símbolos da esperança na manutenção da linha do Tua (...) alguém combinado com a CP procedeu ao corte dos circuitos de rádio e de telefone em toda a área de Bragança, Vinhais, Macedo de Cavaleiro e Mirandela Ainda não tinha dado a meia-noite quando os piratas , cerca de três dezenas, davam início ao saque (…) a operação teve a duração de cerca de três horas. O primeiro carregamento deixava Bragança por volta das 00,30 horas, protegido por batedores da Brigada de Trânsito e por jipes da GNR, com homens armados (…). Em Macedo de Cavaleiros também decorreram idênticas operações, sendo levada daquela estação da CP uma automotora”362. Mas não foram só os jornais regionais a encarar a chamada Noite do Roubo com emotividade. Também o Diário de Notícias expressou a consternação das populações locais pela forma como a operação foi conduzida. “Pela calada da noite, com aparato policial que o receio ordenava, a CP procedeu, em Bragança, à retirada de duas carruagens e de duas locomotivas da ferrovia do Tua”363. Figura 183 – A Noite do Roubo, Outubro de 1992364
362
O Mensageiro de Bragança, 23.10.1992: 13.
363
Diário de Notícias, 15.10.1992: 23.
364
A Voz do Nordeste, 20.10.1992: 1 e 13.
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Acompanhando as várias manifestações populares contra o encerramento da linha do Tua deve destacar-se, também, um activo movimento de crítica social através da literatura, presente na publicação regular de poesias na imprensa local, nas quais se fazia a apologia dos tempos áureos do comboio do Tua e se recordava os momentos mais marcantes da sua história. Poema – Vieram de noite e levaram365 (A partir de uma canção de José Afonso – Era de Noite e Levaram Vieram de noite e levaram enquanto o povo dormia Os restos que deixaram da primeira razia Levaram-nos o nosso comboio Escoltado, qual perigoso bandoleiro Deixam-nos as margaças e o joio levam o trigo pró celeiro O Nordeste colonizado uma espécie de Timor Onde o sonho é massacrado e o abandono o invasor Adeus ó linha do Tua Adeus ó comboio roubado à socapa ... Só já falta roubarem-nos o Sol e a Lua Pró nordeste ser riscado do mapa.
365
O Cardo. Jornal do Nordeste, 30.10.1992, n.º 58: 3.
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5.9. VALE DO TUA: UMA PAISAGEM TECNOLÓGICA366 Ellan F. Spero367
A investigação feita sobre a linha de Foz-Tua a Bragança feita nos últimos três anos analisou diversos aspectos da vida, tecnologia e ambiência dos vales do Tua e Douro, no norte de Portugal. Foi discutido e debatido a forma como estas e outras categorias mudaram ao longo do tempo e em muitos casos até se fundiram. Depois de três anos de investigação, com várias publicações lançadas e planos para um núcleo de memória do vale do Tua, o momento é propício à reflexão. Esta região do norte de Portugal é um veículo para a compreensão do conceito de paisagem tecnológica como história em feitura. É uma forma de interrogar a fronteira entre a natureza e o artificial, o invisível e o visível. Figura 184 – O vale do Douro368
366
Texto baseado em SPERO, 2014 (tradução de Hugo Silveira Pereira).
367
Massachussests Institute of Technology e Singapore University of Technology and Design.
368
SPERO, 2014.
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Com as suas impressionantes fragas, inclinações e clima, com os seus socalcos para a vitivinicultura, com as suas linhas de caminho-de-ferro, estradas antigas, auto -estradas novas e uma barragem em construção, os vales do Tua e do Douro fornecem um contexto único e útil para reflectir sobre o que constitui progresso tecnológico, distância e isolamento, conectividade e ligação, práticas tradicionais e de alto nível tecnológico e a complexidade da preservação. Talvez seja algures entre o irónico e o perfeitamente adequado que o facto que deu origem ao projecto de investigação sobre o caminho-de-ferro do Tua ter sido a construção de uma barragem, ela própria um empreendimento de grande transformação e impacto tecnológico. Este evento serviu de catalisador para virar a atenção dos investigadores do projecto para as grandes alterações no terreno anteriores à barragem, designadamente o caminho-de-ferro e a agricultura em socalcos. Como historiadores, a sua tarefa passou por encontrar uma forma de preservar e difundir o património cultural do vale e da sua via-férrea, agora simbolizado em parte pelo troço de via que irá ser inundado pela albufeira da barragem. Esta história, ilusoriamente local, mas genuinamente global, de um sistema de transporte de alta tecnologia que se tornou obsoleto e que depois se transformou em capital cultural é em si de realçar. Os diversos sub-projectos de investigação surgidos no âmbito do projecto geral de investigação sobre a linha e o vale do Tua examinaram as mudanças demográficas na região, os fluxos locais e globais de produtos e pessoas, incluindo ainda a logística política, financeira e tecnológica por trás de uma prévia construção de um caminhode-ferro. Os responsáveis por esses sub-projectos recolheram provas de fontes locais, incluindo de indivíduos e memórias orais preservadas fora dos sistemas tradicionais de arquivos. Criaram também repositórios digitais para estes e outros materiais. Outros investigadores focaram a sua pesquisa nas mudanças no próprio território, através do recurso a novas técnicas de mapeamento geo-espacial. Para estabelecer pontes com o público em geral, equipas de arquitectos e designers concentraram-se nos desafios físicos e práticos associados ao núcleo de memória de Foz-Tua. Recolheram, analisarem e aprenderam com exemplos de outros projectos internacionais de património ferroviário (na Europa e em especial em Inglaterra). Ao longo de todo este trabalho (heterogéneo, mas ao mesmo tempo integrado) existe um tema unificador, ao qual damos o nome de paisagem tecnológica. Pensemos primeira na paisagem em si. Apesar de tudo, é difícil não se aperceber de algum conceito de paisagem quando rodeados por uma região como a do Alto Douro no norte de Portugal. Na obra de J. B. Jackson, Discovering the Vernacular Landscape, a paisagem é
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definida como uma “composition of man-made or man-modified spaces to serve as infrastructure or background for our collective existence”369. No volume Technologies of Landscape, David Nye cita Jackson, mas vai mais longe, afirmando que “Landscape is thus defined not as natural, but cultural. It is not static, but part of an evolving set of relationships. Landscapes are part of the infrastructure of existence, and they are inseparable from the technologies that people have used to shape land and their vision”370. Para Nye e para os seus colegas, a paisagem e a tecnologia não são opostos, mas antes elementos subtilmente interligados. Nas palavras de Nye, a paisagem é “a process embedded in narrative, or time”371,“a verb as well as a noun, referring to an active process in hich human beings do not merely intervene, but improve a site so that it becomes a more useful or pleasing prospect”372. Figura 185 – Detalhe do vale do Tua373
369
JACKSON, 1984.
370
N E, 1999: 3.
371
N E, 1999: 7.
372
N E, 1999: 5.
373
SPERO, 2014.
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A linha do Tua esteve em operação por mais de 120 anos no caso do troço entre FozTua e Mirandela e por pouco menos de 90 na secção de Mirandela a Bragança. A exploração deste caminho-de-ferro foi marcada por diversas alterações e mudanças, ao nível do material circulante, das instalações fixas e até da própria gestão – em meados do século XX a linha deixa de ser gerida pela Companhia Nacional e passa para as mãos da CP. O seu impacto foi também marcante, a nível económico, demográfico, urbanístico, paisagístico e cultural. Apesar de tudo isto, a linha do Tua entrou em decadência em consequência das suas próprias características, da falta de investimento e, acima de tudo, da evolução do sistema de mobilidade rodoviária da região. A consequência mais imediata e sonante foi o encerramento da linha de Bragança em 1992. Em 2008, após vários acidentes na via, a operação é reduzida para as estações em torno de Mirandela, exploradas pelo serviço de metropolitano local, promovido pela autarquia de Mirandela. Pelo meio ficaram as expectativas de outra conexão à rede ferroviária nacional, pela ligação de Foz-Tua a Viseu, que chegou a ser projectada e adjudicada nos anos trinta do século XX, mas que nunca chegou a ser construída, gorando-se uma oportunidade sistémica que porventura poderia ter tido impacto na geografia regional das Beiras e Trás-os-Montes.
PROJECTO FOZTUA coordenadores ANNE MCCANTS (MIT, EUA) EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal) JOSÉ MANUEL LOPES CORDEIRO (U. Minho, Portugal) PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal) www.foztua.com