Marquês da Foz

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Luís Santos

Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco,

1º. MARQUÊS DA FOZ: um capitalista português nos finais do século XIX

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Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco,

1º. MARQUÊS DA FOZ: um capitalista português nos finais do século XIX

Luís Santos


Marquês da Foz: um fim de século de aventuras ferroviárias

PROJETO FOZTUA coordenadores ANNE MCCANTS (MIT, EUA) EDUARDO BEIRA (IN+, Portugal) JOSÉ M. CORDEIRO (U. Minho, Portugal) PAULO B. LOURENÇO (U. Minho, Portugal) www.foztua.com

ISBN: 978-150-04688-3-5 Junho 2014 Design gráfico, paginação e capa por Ana Prudente Editado e impresso por Inovatec (Portugal) Lda. (V. N. Gaia, Portugal) Impressão da capa e encadernação por Minerva – Artes Gráficas, Lda. (Vila do Conde, Portugal)

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PREFÁCIO José Manuel Lopes Cordeiro A história da construção da rede ferroviária nacional, e de todos os aspectos que lhe estão associados, iniciou-se, verdadeiramente, na década de 1980, com o surgimento dos primeiros trabalhos académicos. Até então, tinham sido poucos os trabalhos publicados, quase todos de divulgação ou de comemoração de efemérides, como foi o caso da obra de Frederico de Quadros Abragão, editada a propósito das comemorações do centenário do caminho de ferro em Portugal. Importa destacar também, e não apenas no domínio da divulgação, o meritório trabalho desenvolvido pelas várias associações de amigos dos caminhos de ferro, embora desenvolvido já depois do 25 de Abril. Foram várias as razões daquele atraso, desde a orientação que a historiografia portuguesa seguiu durante o período do Estado Novo, que não contemplava a história contemporânea, às dificuldades na disponibilidade de fontes, uma vez que a documentação histórica estava então praticamente inacessível. Tal situação alterou-se nas últimas décadas, registando-se um avanço muito significativo, quer pelo natural interesse que esta temática suscitou junto de novas gerações de investigadores, quer pelo esforço que tem vindo a ser feito em salvaguardar, organizar e disponibilizar o acervo documental ferroviário, pelo Arquivo da CP e também pelo Centro Nacional de Documentação Ferroviária. Apesar do considerável desenvolvimento que a história ferroviária conheceu nestas três últimas décadas, existem ainda inúmeros aspectos relacionados com aquele processo que estão por conhecer e explorar. Este livro do Doutor Luís Santos vem, precisamente, proporcionar um importante contributo para o conhecimento da implantação da rede ferroviária entre nós no período de 1884 a 1891 e, em particular, do papel desempenhado por um dos seus mais destacados protagonistas, Tristão Guedes

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de Queiroz Correia Castelo Branco, o marquês da Foz, preenchendo, por conseguinte, uma importante lacuna da história ferroviária portuguesa. Também no que respeita à linha do Tua, o autor apresenta nesta sua obra aspectos essenciais relacionados com todo o processo que conduziu à sua concretização. Embora se tratasse de um investimento menor no universo dos negócios do marquês da Foz, como salienta, não deixou de ter importância na estratégia que o mesmo desenvolveu no âmbito da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro. Salientam-se as condições em que obteve a sua concessão, com base na apresentação de um orçamento do preço quilométrico irrealista e insuficiente para permitir a sua construção, tanto mais que a mesma envolvia consideráveis dificuldades devido às características montanhosas do terreno, obrigando à utilização de parte do orçamento destinado à linha do Dão, o que acarretou insanáveis prejuízos à Companhia Nacional. O marquês da Foz foi um personagem incontornável para a compreensão do capitalismo português no último quartel do século XIX, cuja actividade nos elucida muito claramente sobre a relação de estreita reciprocidade que o mundo dos negócios entretinha com o Estado, e também sobre as actividades de especulação que frequentemente se encontravam associadas. O negócio do caminho de ferro era essencialmente o da sua construção, já que a posterior exploração se revelava pouco promissora quanto à remuneração do capital investido. Por essa razão, a concessão de linhas ferroviárias era normalmente obtida em troca do Estado garantir o juro à respectiva exploração. Com base numa análise exaustiva da documentação do arquivo pessoal do marquês da Foz, que se encontra distribuído pelos arquivos da CP e da Fundação dos Caminhos de Ferro Armando Ginestal Machado, o autor aborda pormenorizadamente a sua actividade empresarial, ligada aos grandes empreendimentos ferroviários então em curso, assim como os aspectos financeiros que sempre os acompanhavam. Merece particular interesse a descrição do contexto em que Foz iniciou a sua actividade no sector ferroviário, através de um sindicato envolvendo personalidades do mundo político, financeiro e jornalístico da época, com a consequente tomada da administração da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, processo no qual suplantou o sindicato rival constituído em torno de Henry Burnay. Sob a administração do marquês da Foz a rede da Companhia Real conheceria uma forte expansão, pondo em exploração as linhas de Lisboa a Torres Vedras e a Sintra, o troço da linha do Oeste entre Torres Vedras, Figueira da Foz e Alfarelos, a linha de Cascais, a linha da Beira Baixa, a linha de cintura e a nova estação central e o túnel do Rossio. Com estas iniciativas, como o autor salienta, o empresário revelou uma faceta inovadora no domínio da política comercial ferroviária até então desenvolvida em Portugal, principalmente com a construção da estação, túnel e ramais de Cascais 6


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e Sintra, os quais se articulavam num plano de transportes abrangendo aspectos de estratégia ferroviária mas também urbanísticos. Os negócios do marquês da Foz não se limitavam ao sector ferroviário, embora tenha sido este o que lhe proporcionou maior projecção enquanto empresário, inclusivamente nos meios financeiros além-fronteiras, característica não muito frequente de encontrar em Portugal na elite económica e financeira da época. Como esta obra nos revela, a actividade empresarial do marquês da Foz foi muito diversificada, contemplando investimentos na banca, na agricultura, na indústria mineira, na imprensa, na importação de cimentos Portland, para além do sector ferroviário, tanto em Portugal como em Espanha. Não deixa, contudo, de ser surpreendente o envolvimento de Foz em projectos tão complexos e longínquos como a construção do canal do Panamá, companhias de gás e iluminação no Rio de Janeiro, e caminhos de ferro na Venezuela, na Turquia e na China. A crise económica e financeira de 1891/92, em grande medida uma consequência do modelo económico baseado nos empréstimos externos seguido por Portugal a partir de meados do século XIX, viu-se agravada pela impossibilidade de se negociarem novos empréstimos internacionais, pela redução das remessas dos emigrantes, e pela questão do ultimatum britânico, que aumentou as dificuldades de solvência da dívida pública, tendo tido consequências nefastas na saúde dos negócios do marquês da Foz ao comprometer a difícil situação em que então se encontravam, e acabando por provocar a sua falência. Mais do que nos elucidar sobre os primórdios da construção da linha do Tua – razão primeira, mas não única, da sua inserção no Projecto Tua História – esta obra do Doutor Luís Santos apresenta-nos um magnífico retrato do ambiente económico e financeiro que marcou as últimas décadas do Portugal oitocentista, o pano de fundo em que se consumavam as grandes obras públicas, a interligação entre a política e os negócios, constituindo, por conseguinte, um excelente contributo para um melhor conhecimento daquela época, assim como da nossa história ferroviária. José Manuel Lopes Cordeiro

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AGRADECIMENTOS Quero expressar os meus agradecimentos aos professores José Manuel Lopes Cordeiro e Eduardo Beira, que me confiaram a execução deste trabalho e me apoiaram. Quero agradecer também à EDP, que me proporcionou a oportunidade de realizar e editar este estudo, através do projeto FOZTUA. O meu muito obrigado à Dr.ª Ana Sousa e ao arquivo da CP, onde sempre fui muito bem recebido e fizeram todos os possíveis por me facilitar o longo trabalho de consulta de fontes. É de inteira justiça lembrar o Centro Nacional de Documentação Ferroviária e o seu amável pessoal, graças ao qual pude examinar, o que até nós chegou do arquivo do marquês da Foz. Os meus melhores agradecimentos ao Dr. Gilberto Gomes, que como em muitas ocasiões anteriores, me pôs com os seus conhecimentos e conselhos, na pista do marquês da Foz e das fontes para lhe aceder. Finalmente, o meu muito obrigado à Luciana, que fez o favor de pacientemente rever, corrigir e melhorar o meu texto, quando a mim já me falhava a paciência para o fazer.


ÍNDICE 005

PREFÁCIO

008

AGRADECIMENTOS

011

MAPAS

013

INTRODUÇÃO

023

I. O GRUPO FOZ E A COMPANHIA REAL DE CAMINHOS-DE-FERRO

023 029

042 053

1.1 Os antecedentes da Companhia-Real 1.2 A participação do grupo Foz, no primeiro concurso de concessão da linha da Beira Baixa 1.3 A tomada da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, pelo grupo Foz 1.4 O corte com o passado e a nova organização 1.5 A expansão da rede da Companhia Real

067

II. A COMPANHIA NACIONAL DE CAMINHOS-DE-FERRO

077

III. A COMPANHIA DO CAMINHO-DE-FERRO DE MADRID A CÁCERES E PORTUGAL E DO OESTE DE ESPANHA

082

FIGURAS

033


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IV. O PROJECTO DA COMPANHIA DO CAMINHO DE FERRO DO GRANDE CENTRAL ESPANHOL, O CAMINHO DE FERRO DE SALAMANCA À FRONTEIRA PORTUGUESA E O “QUINTO PODER DO ESTADO”

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V. OUTROS EMPREENDIMENTOS FERROVIÁRIOS, MINEIROS, BANCÁRIOS E DIVERSOS

137

VI. A QUEDA DE UM FINANCEIRO

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VII. A VIDA APÓS A QUEDA

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CONCLUSÃO

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BIBLIOGRAFIA


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MAPA 1

Principais administrações ferroviárias, Espanha, finais do século XIX

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MAPA 2

Evolução da rede ibérica 1890 / 1895

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INTRODUÇÃO Objetivos, estado da questão, fontes e metodologia Foram organizados pelo projeto FOZTUA, apoiado pela EDP e com a participação do programa MIT.Portugal e da Universidade do Minho a presente monografia inserese no ciclo de atividades que marcaram a realização de três congressos de história ferroviária em Foz-Tua, com periodicidade anual, entre Outubro de 2011 e Outubro de 2013. Foram organizados com o apoio da fundação EDP e da Universidade do Minho, abordando não só o percurso histórico da linha do Tua, como diversos aspetos da realidade ferroviária, abrangendo o ponto de vista histórico, cultural, a perspetiva económica, financeira e técnica. Nestes eventos, estiveram presentes especialistas de vários ramos, nacionais e estrangeiros, entre historiadores, economistas, geógrafos, engenheiros, etc. Nesta iniciativa, coube a realização e edição de estudos temáticos. Foi neste âmbito que me surgiu o amável convite para realizar este estudo. O objetivo deste trabalho é apresentar uma monografia do Marquês da Foz. A ligação desta personagem à linha do Tua é óbvia, uma vez que se trata do primitivo concessionário deste eixo, fundador, principal acionista e primeiro presidente do Conselho de Administração, da empresa para a qual se transferiu a concessão: a Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro. Mas Foz foi muito mais do que isso, sendo a sua ligação à Companhia Nacional, um detalhe num vasto mar de atividades financeiras, industriais, agrícolas e até políticas. Nas últimas décadas do século XIX, o conde, mais tarde marquês da Foz, foi um dos principais capitalistas portugueses. Foi líder de um grupo de financeiros que durante anos, disputou os favores, concessões e negócios proporcionados pelo Estado. O seu campo de influência, estendeu-se à Companhia Real de Caminhos-de-ferro, à companhia espanhola do caminho-deferro de Madrid a Cáceres e Portugal, à tentativa de criação da Companhia do Caminhos-de-Ferro do Grande Central Espanhol, a diversas empreitadas ferroviárias,

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em Portugal e Espanha, estendendo a sua influência de forma tentada à Turquia. No sector financeiro, esteve associado entre outros, aos Bancos de Portugal e Lusitano, tendo inclusivamente sido fundador de uma pequena casa de crédito em Paris. Esteve ligado a empresas como a Companhia Real Promotora da Agricultura Portuguesa, ou a Companhia do Monte Estoril. Foi peça chave na fundação de companhias mineiras em Portugal e Espanha e os seus investimentos alcançaram objetivos tão diversificados longínquos como o canal do Panamá, caminhos-de-ferro, companhias de gás e iluminação no Rio de Janeiro ou Venezuela. Digna de nota, é ainda a sua atividade agrícola, assente nas vastas propriedades que possuía no Alentejo e Ribatejo, onde se dedicava à produção cerealífera, vitivinícola, olivícola, corticeira e pecuária. Igualmente se aludirá à sua discreta, mas longa e importante carreira política, bem como ao investimento em meios de comunicação, tendo chegado a ser um dos proprietários do jornal Diário Popular. Famosa era ainda a sua fabulosa coleção de arte, bem como o requinte e o luxo com que remodelou e decorou o famoso palácio Foz, aos Restauradores, sua casa em Lisboa, anteriormente pertença dos condes de Castelo Melhor. Em 1891-92, num contexto de dificuldades económicas internacionais, a crise económica política e social que abalou o Estado português, levaria à queda abrupta de Foz e de todo o grupo que encabeçava. Tratando-se de uma figura chave para a compreensão do capitalismo português da segunda metade do século XIX, pouco se sabe no entanto, sobre si. Este trabalho tentará lançar alguma luz sobre o Marquês da Foz, alguns elementos da sua vida, o contexto em que atuou, a caracterização da sua época, a forma como se inseria numa vasta e complexa teia de alianças, que abrangiam os meios financeiros, políticos, jornalísticos, industriais e agrícolas, propagando-se até além fronteiras. Limites à realização de um estudo deste tipo, são evidentemente a natureza das fontes disponíveis, bem como os prazos de entrega, que impõem o momento a partir do qual é necessário dar-lhe a forma final, potenciando o que se tem. O tipo de informação que foi possível obter, concentra-se principalmente no período das últimas três décadas do século XIX, abrangendo precisamente a etapa de auge de poder financeiro, político e de influência do grupo Foz, a falência e a estratégia de sobrevivência até finais do século XIX. Foi ainda possível recolher elementos que permitem rastrear o percurso de Foz ao longo dos primeiros anos do século XX, até ao momento da sua morte em 1917. Faltam até ao momento, fontes que permitam abranger a sua vida entre a data de nascimento, em 1849, e o auge do seu poder económico-políticosocial, atingido a partir de 1883, grosso modo, mas alguma contextualização é ainda assim possível. Relativamente aos conteúdos, a documentação consultada e organizada, incidiu principalmente sobre a vertente ferroviária da atividade de Foz, a esta cabendo o maior destaque ao longo do trabalho. Tal não impede que não se tenha abordado

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a atividade financeira, estreitamente relacionada com todos os grandes empreendimentos ferroviários ou de construção civil, os investimentos mineiros ou a atividade agrícola, a qual acompanharia toda a sua vida empresarial, tendo persistido ainda para além da falência. A história económica, social e política de Portugal, da segunda metade de oitocentos, a etapa da chamada regeneração, tem sido abundantemente tratada pela historiografia portuguesa. Este período foi marcado pelo desejo e esforço de Portugal, país periférico e menos desenvolvido do que os do centro da Europa, de encurtar a distância que o separava das nações mais industrializadas e desenvolvidas, com base no modelo de acumulação capitalista. Sendo indiscutível que houve modernização do país, também é inegável que os resultados ficaram muito aquém do esperado. O modelo fontista, seguido por todos os governos durante cerca de 40 anos, regeneradores ou progressistas, foi posto em causa pela crise de 1891/92. Desta, sairia um profundo desencanto, uma ideia de falhanço, que implicaria o encerramento sobre si mesmo, e a remodelação de toda a visão do modelo de desenvolvimento nacional, do papel de Portugal no mundo e do olhar dos portugueses sobre si mesmos e sobre o seu país. À conjuntura exterior e interna desfavoráveis, juntou-se um delicado problema colonial, de cujo embate o prestígio da monarquia já não se restabeleceria. Existem, não sendo contudo tão numerosos, estudos sobre empresários, o meio empresarial, o desenvolvimento industrial ou bancário português neste período. Nesse aspeto, destaco os trabalhos de Jaime Reis, Maria Filomena Mónica, Nuno Miguel Lima ou Filipe S. Fernandes. Estes autores produziram algumas das fontes secundárias, necessárias ao enquadramento deste trabalho em termos de contextualização Jaime Reis (2011) editou uma obra sobre os corpos sociais do banco de Portugal, do qual chegou a ser diretor o próprio marquês da Foz, compendiando e resumindo preciosa informação biográfica. De Maria Filomena Mónica (1987), é um interessante estudo sobre os primórdios e o desenvolvimento do capitalismo industrial português, ao longo de toda a 2ª metade do século XIX, útil para a compreensão da época. Filipe S. Fernandes, (s.d.), publicou um estudo sobre Henry Burnay, outro dos principais capitalistas internos de finais do século XIX, líder de um grupo financeiro que constituiu dos principais concorrentes daquele que era encabeçado por Foz. Neste artigo, Burnay é apresentado como estando na origem do conceito de grande empresário de cariz capitalista, em Portugal. Nuno Miguel Lima, (2009) realizou também ele, um estudo sobre a figura de Henry Burnay, partindo do inventário post-mortem do seu património. Todos estes trabalhos figuram na lista das fontes secundárias. No entanto, não se realizou até ao momento, nenhum estudo sobre o Marquês da Foz, tentando agora esta obra preencher essa lacuna. Ainda entre os estudos utilizados na contextualização do período em que Foz exerceu a sua atuação, está o de Paulo Jorge Fernandes, (2010), sobre Mariano Cirilo

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de Carvalho. Este revelou-se de grande importância para a compreensão do funcionamento dos meios político, capitalista e jornalístico da época, da forma como estes três mundos se interligavam e complementavam, bem como da forma como neles se processava uma política de alianças e clientelismo. Produzida em finais do século XIX, a obra de J. A. da Silva Cordeiro, (1896), em que se aborda o ambiente da alta finança de finais de oitocentos, numa tentativa de explicar as causas da crise e da “decadência” nacional, revelou-se de utilidade em termos de demonstrar a forma como no país e naquela época, se via, vivia e interpretavam os acontecimentos e os negócios de alta finança. No que se refere a fontes primárias, fez-se uso dos periódicos Gazeta dos Caminhos-de-Ferro, Diário Popular e Jornal do Comércio. O primeiro, uma revista quinzenal, constituiu uma referência indispensável não só para a história do caminho-de-ferro em Portugal, em finais do séc. XIX e princípios do XX, como para a contextualização do ambiente económico do período. As duas restantes publicações são jornais diários e a sua visão é complementar. O Diário Popular era propriedade de António Centeno Durante algum tempo o próprio marquês da Foz deteve parte do seu capital, tendo sido durante muitos anos dirigido por Mariano de Carvalho. O seu editorial alinhava com o ideário do partido progressista, sendo as suas posições frequentemente próximas dos interesses do chamado grupo Foz. Por sua vez, o Jornal do Comércio era propriedade de Henry Burnay, financeiro que beneficiava de uma sólida e mais ou menos estável posição de parceiro económico privilegiado do Estado. Quando a aproximação dos Progressistas ao grupo Foz, na tentativa de encontrar alternativas de financiamento, fez perigar o seu posto, o Jornal do Comércio não teve dúvidas em alinhar a sua linha editorial com os regeneradores. No conjunto, as duas publicações dão-nos a visão complementar de dois grupos políticos e à sua sombra, dois grupos financeiros antagónicos. O principal contributo documental deste trabalho é contudo a exaustiva análise do que até nós chegou do arquivo pessoal de Foz. Este está distribuído pelo arquivos da CP e da Fundação dos Caminhos-de-Ferro, Armando de Ginestal Machado. O seu estudo e classificação, constituiu o grosso da tarefa de execução deste estudo, não só pela considerável extensão, como pela dificuldade da sua leitura, por ser composto essencialmente por documentos manuscritos, frequentemente cartas pessoais, mas também minutas de contratos, escrituras, recibos. Havendo alguma documentação anterior, o essencial do seu conteúdo concentra-se no período que vai de 1883 a 1891-92, havendo ainda razoável cobertura do período seguinte, até à morte do seu protagonista em 1917. Neste arquivo foi possível seguir o fundamental da estratégia ferroviária de Foz, reconstituindo os acontecimentos, como se de um puzzle se tratasse. Algumas das suas opções financeiras, assim como parte da atividade mineira e agrícola também são detetáveis, mas só puderam ser reconstituídas com lacunas.

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Outros temas houve, como os seus empreendimentos industriais e inclusivamente certos aspetos dos temas mais completamente cobertos, em que faltam peças importantes do puzzle, para que possam ser compreendidos e interpretados corretamente. Ainda importante como fonte primária foi a petição de agravo de Foz, redigida com o apoio dos seus advogados posteriormente à sua prisão e consequente libertação, destinada a procurar reabilitar a sua imagem. Nesta, faz-se alguma luz sobre os acontecimentos da grande crise de 1891-92, da falência da Companhia Real, do Banco Lusitano e do próprio Foz, bem como sobre a obscura transferência de fundos da caixa de aposentações da Companhia Real para o Banco Lusitano, de modo a assegurar um empréstimo que salvasse a dita instituição bancária. Por ter enfrentado uma falência em 1891, não nos é possível contar com um inventário dos bens patrimoniais de Foz, feito por ocasião da sua morte, à semelhança do que ocorre por exemplo, com o caso de Henry Burnay. Da maior importância seria ter localizado o seu processo de falência, mas não foi infelizmente possível. Para futuras investigações reserva-se o acervo existente no Banco de Portugal sobre a Companhia Real Promotora da Agricultura, que o prazo de realização do trabalho não permitiu consultar. O estudo compõe-se da presente introdução, sete capítulos e as conclusões. A introdução tratará da apresentação dos objetivos, estado da arte, descrição das fontes utilizadas, bem como da estrutura da obra. Segue-se uma breve síntese de elementos biográficos de Foz, do contexto em que viveu e atuou como capitalista. O primeiro capítulo ocupa-se da tomada da Companhia Real de Caminhos-de-Ferro pelo grupo Foz, bem como da linha de atuação da sua gestão. O segundo capítulo trata dos primeiros tempos da Companhia Nacional, desde a sua constituição até à situação de incumprimento relativamente aos obrigacionistas, o que já se adivinhava durante a etapa de construção das linhas. O terceiro capítulo abrange o tema da gestão por Foz, da companhia de caminhos-de-ferro espanhola de Madrid a Cáceres e Portugal, bem como da construção do seu ramal, a linha do Oeste de Espanha, cuja concessão era independente da anterior, ainda que o Conselho de Administração fosse comum. Esta longa transversal, que une Plasencia a Salamanca e Zamora, terminando em Astorga, comunicando três linhas radiais espanholas, duas delas troncais, foi promovida pela Companhia Real sob os auspícios do grupo Foz, uma vez que era à empresa portuguesa que cabia a exploração desta rede no país vizinho, bem como a garantia de um determinado juro aos seus acionistas. O quarto capítulo trata do abortado projeto de constituição da Companhia do Caminho de Ferro do Grande Central Espanhol, que se destinava a constituir com o núcleo de Madrid a Cáceres e Portugal um traçado alternativo ao proporcionado pela Companhia do Norte de Espanha, entre as fronteiras franco-espanhola e portuguesa, tendo como objetivos a atração de tráfego que alimentasse os portos portugueses e libertasse a Companhia Real dos encargos com a garantia de juro de Madrid a Cáceres e

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Portugal, que a arrastavam para a falência. Finalmente articulava-se ainda com um plano interno de domínio do caminho-de-ferro de Salamanca à Fronteira Portuguesa e da rede do Minho e Douro, que se procurava concentrar com o núcleo da Companhia Real. Ao mesmo tempo, libertavam-se dos encargos com a linha de Salamanca à Fronteira Portuguesa, os bancos do sindicato do Porto que se tinham reunido para a construção daquela linha espanhola, em troca de que abdicassem do direito de emissão fiduciária, no que intervinha a própria estratégia financeira do governo. O quinto capítulo abrangerá outros negócios em que se viu envolvido Foz, entre empreendimentos ferroviários menos documentados, como a conturbada empreitada da linha do Algarve, alguns aspetos da sua atividade bancária, mineira e agrícola, bem como determinados investimentos em países estrangeiros. O sexto capítulo abarca a falência, no contexto da traumática crise de 1891-92 O sétimo e último, procura fazer alguma luz sobre a vida de Foz após a falência, até à morte em 1917. Termina com as conclusões e bibliografia. MARQUÊS DA FOZ, O HOMEM E O SEU TEMPO Tristão Guedes de Queiroz Correia Castelo Branco nasceu a 9 de Maio de 1849, na freguesia lisboeta de Santa Engrácia. Foi o segundo conde e o primeiro marquês da Foz. Foi o primogénito do general Gil Guedes Correia de Queiroz, (1795-1870) e de Maria Georgina Palha de Faria Lacerda, (1824-1898). O seu pai, o primeiro conde da Foz, detinha uma brilhante folha de serviços militares, sendo detentor de várias condecorações. Destacou-se na guerra peninsular, no rio da Prata e durante a guerra civil, na ilha Terceira e no cerco do Porto. Foi ajudante de campo de D. Pedro IV e de D. Fernando II, sexto administrador do morgado de Mão-por-Cão e padroeiro do convento de Santo António dos Capuchos, em Estremoz.001 Uma escritura de 1841 informa-nos de que era também comendador da ordem de Avis.002 O testamento de partilha da sua herança entre os dois filhos, Tristão, o mais velho, futuro marquês da Foz e José, informa-nos ainda que era comendador da ordem espanhola de Carlos III.003 Não foi possível localizar o documento que outorgou ao general Gil Guedes Correia de Queiroz, o título de conde. Mas dispomos da carta em que D. Pedro lhe outorgou o de visconde: “Dom Pedro por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves. Faço saber 001  REIS, Jaime, Uma elite financeira; os corpos sociais do Banco de Portugal, 1846-1914, Lisboa, ed. Banco de Portugal, 2011, pp. 107. 002  Cf.” Arquivo CP”, Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Caixa 133, Pasta -Cartas Comerciais, fl. 24, pp. 1 003  “Arquivo CP” in Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Caixa 166, pasta - Partilha do processo de herança do Marquês da Foz, pp. 25

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aos que esta minha carta virem que sua Magestade El Rei o senhor Dom Fernando Segundo Meu muito Amado e Prezado Pae, tomando em consideração os leays e bons serviços do Barão da Foz, Gil Guedes Correia de Queiroz, Marechal de Campo obrados na carreira das armas, em proveito do paíz, e, particularmente os que elle prestára ao Mesmo Augusto Senhor na qualidade de seu Ajudante de Campo dando sempre evidentes provas da sua honra e lealdade, e Querendo por este respeito conferir-lhe um público testemunho de apreço e Real Magnificência Houve por bem por seu Decreto de quinze de Setembro de mil oitocentos e cinquenta e cinco, na qualidade de Regente em Meu Real Nome Fazer-lhe Mercê do Título de Visconde da Foz em sua vida. (…) 004 A sua linhagem tinha origens antigas, no Alentejo. Dos seus pais, Tristão, o futuro Marquês da Foz, herdou considerável património de bens de raiz, no Alentejo e no Ribatejo.005 Não nos foi possível encontrar documentação que revelasse a sua herança materna, mas dispomos do documento de partilha da herança do seu pai, Gil, cuja morte ocorreu em 1870. Entre bens em espécie, móveis e imóveis, pela meação dos bens partilhados, coube-lhe o valor de 15.280.000$000 réis. Pela sua legítima 16.277.296$000 réis.006 Em 1892, ano em que encontraria a falência, estava registado no recenseamento eleitoral como proprietário, encontrando-se entre os quarenta maiores contribuintes de Lisboa, cabendo-lhe a muito elevada contribuição de 891$000 réis. Em 1870, ano da morte do seu pai, casaria pela primeira vez com Maria Luísa Infante Baião Matoso, filha de Justino Infante Baião Matoso, par do reino e importante proprietário do distrito de Beja, e de Maria José Pessanha. Maria Luísa viria a falecer no ano seguinte, de 1871, sem deixar descendência. Casaria pela segunda vez, com Maria Cristina da Silva Cabral, (1853-1898) em 1878, filha de Eduardo Augusto da Silva Cabral, segundo conde de Cabral e de Margarida Angelina Pinto Esteves Costa, por sua vez, cunhada do 2º marquês de Fontes Pereira de Melo. Deste casamento teve três filhos sobrevivos: Gil Pedro Paulo Guedes Cabral Correia de Queiroz e Castelo Branco, (1880-1944) que herdaria o título de marquês da Foz e que casou com Mariana de Assunção Mascarenhas de Melo, descendente das casas de Óbidos e do Sabugal; Maria Margarida Tomásia Correia de Queiroz e Castelo Branco, que casou com o quarto marquês de Belas, José Inácio de Castelo Branco; e Maria Saturnina da Conceição Guedes Cabral Correia de Queiroz, a qual casaria com Jorge Rodolfo Teixeira de Almeida Campos. 004  “Arquivo CP”, Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, caixa 83, pasta -Cartas, escritura Porto de Lisboa, fl. 1 005  REIS, Jaime, Idem, pp. 107. 006  “arquivo CP”, Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Caixa 166, pasta- Partilha do processo de herança do marquês da Foz, pp. 135-136.

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Nos finais do século XIX, seria uma das figuras de proa dos sectores bancário e ferroviário português. Entre outros, foi diretor do Banco de Portugal entre 1888 e 1891, acumulando ao todo 220 ações, adquiridas entre 1886 e 1888 e passadas ao portador em 1892. Esteve ligado à Companhia Real Promotora da Agricultura Portuguesa. No sector ferroviário, pode mencionar-se a sua participação no conselho de administração da Companhia Real de Caminhos-de-Ferro, à cabeça daquele que veio a ser conhecido como “o grupo Foz”, de que faziam parte Mariano de Carvalho, Emídio Navarro, Henrique Moser, o conde de Cabral, (seu sogro) e Adolfo de Lima Mayer; na Companhia Nacional, da qual foi o fundador e presidente do conselho de administração, tendo previamente sido o concessionário das linhas de via estreita de Foz-Tua a Mirandela e de Santa Comba Dão a Vizeu, concessões posteriormente transferidas para a companhia; foi empreiteiro de várias secções da linha do Algarve. Manteve ainda uma carreira política, no quadro do partido progressista. Foi inicialmente eleito para a câmara dos deputados, por Moura, em 1877, numa eleição suplementar. Seria ainda eleito por Cuba para a legislatura de 1879-81 e de novo por Moura em 1882-84. Fez parte da comissão de petições, mas a sua atuação foi sempre discreta. Em 1885 e 1887, seria eleito por Santarém, para a câmara dos pares. Era oficial-mor honorário da casa real, tendo-lhe sido outorgado o título de marquês da Foz em 1886. Para além das já mencionadas, foi ainda agraciado com a ordem espanhola de Isabel a Católica. Na época, faziam furor as festas que dava no sumptuoso palácio Foz, nos Restauradores, anteriormente Castelo-Melhor, durante anos a sua casa em Lisboa, para cuja decoração contratou os melhores artistas europeus. Aqui se encontrava ainda a sua valiosa coleção de arte, mais tarde vendida como forma de superar as dificuldades financeiras.007 A título de curiosidade e de “fait-divers”, consta que nessas festas nem faltava um pretenso conde húngaro, que fazia demonstrações de lançamento de facas, para as quais era sempre convidada a colaborar una senhora da audiência. O espetáculo desencadeava por vezes escândalos, quando a tensão produzida pela exibição, provocava o desmaio de um dos cavalheiros presentes, que não era nem o marido, nem o noivo oficial da senhora que cooperava. Feita uma sumária caracterização do homem, torna-se fundamental contextualizar a sua ação no ambiente financeiro da época. Não é surpreendente a afirmação de que o capitalismo português se desenvolveu numa relação de estreita reciprocidade com o Estado. Essa característica não é evidentemente exclusiva do caso português, nem dos finais do séc. XIX, podendo ser encontrada em todos os países e em diferentes épocas. Mas é especialmente evidente em países como Portugal, onde a escassez de recursos, de grau de desenvolvimento, pequenez do mercado e reduzido poder de 007  REIS, Jaime, op. cit. Pp. 107-108.

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compra, faziam dos que se realizavam com o Estado, dos poucos grandes negócios possíveis. Grupos financeiros, organizados naquilo a que na época se denominavam sindicatos, disputavam os monopólios, concessões, privilégios que o Estado lhes podia conceder, assim como a participação na colocação e venda das emissões de dívida pública ou nos contactos que abrissem as portas a empréstimos estrangeiros. Por seu lado, o Estado português empenhou-se em toda a segunda metade do século XIX, em procurar reduzir a distância que o separava dos países mais desenvolvidos da Europa. A sua atuação caracterizou-se por pesados investimentos orientados sobretudo para a política de obras públicas, de que é exemplo significativo a construção de caminhos-de-ferro e portos. Em crescente aperto financeiro, contava com o apoio dos grupos empresariais que privilegiava, para obter o financiamento das suas atividades. Os contactos das grandes casas bancárias com o estrangeiro eram normalmente decisivos para a colocação de dívida pública e a obtenção de empréstimos. Outras formas utilizadas para obter liquidez imediata, era, por exemplo, a concessão ou arrendamento de monopólios estatais apetecíveis, a grupos privados que os exploravam por determinado número de anos, a troco de proporcionar receita rápida ao Estado. Tendo em conta este contexto, os diferentes grupos financeiros tinham os seus interlocutores e contactos preferenciais no aparelho de Estado e partidos políticos. Era inclusivamente normal, que capitalistas relevantes mantivessem paralelamente uma carreira política. Era o caso de Foz, que estava associado ao partido progressista. Outro dos mais proeminentes banqueiros e empresários de Portugal em finais do século XIX, Henry Burnay, tentaria também uma carreira política como independente, tendo chegado a ser eleito, ainda que nunca tenha ocupado o posto 008. Do mesmo modo, políticos influentes podiam ser atraídos pelas vantagens de enriquecimento que lhes podiam proporcionar estes grandes sindicatos financeiros, em troca do seu favorecimento. Outro vínculo importante era, tal como hoje, o estabelecido entre os poderes financeiro e político e a imprensa. As diferentes forças políticas tinham os seus órgãos de comunicação social, oficiais ou oficiosos. Assim, O Progresso, era o jornal do partido Progressista, mas dirigido pela influente pedra dos progressistas que era Mariano de Carvalho. Ainda que não tivesse vínculo oficial com o partido, o Diário Popular também expressava o seu ideário. Do mesmo modo, os interesses financeiros podiam ser proprietários de órgãos de comunicação social, que para além de atrair a opinião pública à simpatia pela causa da sua estratégia comercial, também podiam defender as posições dos partidos políticos com cujo favorecimento contavam. Assim, o Jornal do Comércio era propriedade de Henry Burnay. Quanto a Foz, teve durante algum tempo participação no capital do Diário Popular. 008  FERNANDES, Filipe S., Henry Burnay, financeiro para todos os negócios in Empresários do Século XIX, s.l., s.e., s.d., pp. 13-14.

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A aproximação do grupo Foz aos progressistas era muito óbvia e transcendia o próprio facto de o marquês da Foz ser deputado pelo partido. Na verdade, figura chave em toda a sua estratégia a partir da década de 80 do século XIX, seria Mariano de Carvalho. Sem nunca ter chegado a ser presidente do conselho de ministros, desempenhou o cargo de ministro da fazenda, Mariano foi dos mais influentes homens da política portuguesa de finais do século XIX e era das figuras mais importantes dos progressistas. À sua enorme habilidade e experiência políticas, juntava-se a atividade jornalística e a acutilância com que dirigia o Diário Popular e, mais tarde, em acumulação, o Correio de Portugal.009 A sua importância para a estratégia do grupo Foz, resultava evidente. Pelo seu lado, o mesmo Mariano de Carvalho revelou-se permeável à oportunidade de aumentar os seus créditos, o que lhe proporcionou o interesse de Foz e do sindicato que liderava. À entrada dos anos 80 do século XIX, Burnay, o banqueiro nascido em Lisboa, de origem belga, dominando vastos contactos internacionais, nomeadamente em França e na Bélgica, tinha adquirido uma posição de certa comodidade, como parceiro “preferencial” do Estado, transversal a diversos governos, na obtenção de financiamento para as suas atividades, beneficiando em troca de privilégios e facilidades na construção de diversos negócios. Com a aproximação aos progressistas, Foz procurou uma porta de entrada para se constituir como alternativa ao grupo liderado por Burnay, nesta relação de benefícios recíprocos com o Estado. Outros grupos e interesses disputavam a mesma posição, mas o seu destacar-se-ia ao longo dos dez anos seguintes. Por sua vez, ao orientar as opções financeiras dos governos progressistas para Foz e os seus aliados, que incluíam ainda Mendonça Cortês, do banco Lusitano, um dos mais importantes da época, os objetivos progressistas não se limitavam ao enriquecimento pessoal de alguns dos seus membros, com Mariano de Carvalho à cabeça, mas à busca de concorrência e alternativa aos habituais financiadores, para não depender sempre das mesmas casas financeiras e mercados.010 Durante algum tempo, Foz conseguiria satisfazer este desígnio, já que os seus contactos abririam às necessidades do Estado não só outros bancos do mercado francês, em alternativa aos que até aí mais tinham sido utilizados, como ainda conseguiria atrair o financiamento de uma nova praça financeira, a alemã.

009  FERNANDES, Paulo Jorge, Mariano Cirilo de Carvalho; O “poder oculto” do liberalismo progressista (18761982), Lisboa, Divisão de Edições da Assembleia da República; Texto Editores, Colecção Parlamento, 2010, pp. 227. 010  Ibidem, pp. 382.

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CAPÍTULO I O GRUPO FOZ E A COMPANHIA REAL DE CAMINHOS-DE-FERRO 1.1. Os antecedentes da Companhia-Real No percurso do marquês da Foz e do grupo de financeiros por ele liderado, foi chave o controlo da maior administração ferroviária portuguesa, a Companhia Real de Caminhos-de-Ferro, exercido entre 1884 e 1891. Esta etapa marcaria uma rutura na história da empresa, já que se caracterizaria pela perda de peso do comité de Paris na sua gestão, em detrimento do de Lisboa. Mais importante ainda, pela primeira vez a condução da administração da companhia estaria nas mãos de portugueses, por oposição ao anterior domínio por parte de estrangeiros. A transformação não implicou no entanto, alteração apreciável na origem e posse do capital, bem como na obtenção de financiamento, que em grande medida continuou em mãos de estrangeiros, principalmente franceses. Para a compreensão da rutura que implicou a tomada da Companhia Real por Foz, bem como dos antecedentes que preparam o ambiente para o êxito da sua intervenção, torna-se necessário fazer alguma retrospetiva da evolução da empresa. Criada em 1860 pelo marquês de Salamanca, a Companhia Real de Caminhosde-Ferro era fundamentalmente uma empresa francesa, à semelhança das principais organizações do género, criadas em Espanha, casos das Companhias de Caminhosde-Ferro do Norte de Espanha e da de Madrid a Zaragoza e a Alicante, (MZA). Reflexo da origem da companhia e do capital que permitiu a sua constituição, o conselho de administração foi desde o princípio formado principalmente por estrangeiros, normalmente associados às casas financeiras que a apoiavam, bem como a outras companhias ferroviárias, dos seus países de origem. Do primeiro conselho de administração, por exemplo, para além de Salamanca, o fundador, constavam nomes como D. Alejandro Llorente, D. José de la Fuente, Juan Gómez Roldán, D. Tomás

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Retortillo, Joaquín de la Gándara, D. José de Zaragoza, Chatelus, Edouard Dalloz, Lichtlin, Paul Daru, Joseph de la Bouillerie, Edouard Blount, Gustave Delahante, entre outros nomes franceses e espanhóis.011 Para a gestão, criou-se um conselho de administração dividido em dois comités, um sediado em Paris, local de proveniência da maior parte do capital e investidores e que foi acumulando a maior parte do poder de decisão; outro em Lisboa, sendo mais executivo. A atividade da empresa seria marcada pela constante importação de capital, que escasseava em Portugal, faltando ainda o interesse em aplicá-lo neste tipo de negócios; ou porque os rendimentos aquém do nível esperado obrigavam a recorrer ao crédito, sobretudo em França. Banqueiros e financiadores da Companhia Real em França foram a Société Géneral de Crédit Industriel et Commercial, as casas financeiras Blount e Camondo.012 Os administradores e acionistas destas sociedades eram simultaneamente acionistas da Companhia Real e em nome dos seus interesses nesta, tinham ainda assento no seu conselho de administração. Havia, evidentemente, administradores portugueses, mas estes eram mais comumente personalidades de prestígio, destinadas a dar brilho e aceitação à empresa, do que administradores com efetiva capacidade de gestão. Não por acaso, o seu ingresso no conselho aparecia frequentemente associado a períodos de dificuldades financeiras. Entre essas personalidades, estão Fontes Pereira de Melo, Eduardo Pinto de Soveral ou António de Serpa Pimentel. Exceção constitui o caso de Fortunato Chamiço Júnior e Francisco de Oliveira Chamiço, os irmãos Chamiço, ligados aos bancos Nacional Ultramarino e Totta, responsáveis pelas operações financeiras da companhia em Lisboa e que por isso, detinham claro protagonismo na sua gestão.013 De qualquer das formas, sendo a maior parte do capital francês, tendo em conta a prática de os financiadores serem simultaneamente acionistas da companhia e terem assento no conselho de administração, o que se compreendia pela necessidade de proteger os seus interesses, não surpreende que fossem os estrangeiros quem preponderava nos destinos e condução da empresa. Esta preponderância de estrangeiros à cabeça de um elemento de importância estratégica tão fundamental como o caminho-de-ferro começou logo em 1866, a colidir com algumas conceções de nacionalismo económico. De facto, começou nesta época a emergir um movimento que entendia dever o novo sistema de transportes, ser construído e explorado diretamente pelo Estado.014 011  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, A Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, 1859-1891, Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História, realizada sob a orientação científica da Professora Maria Fernanda Rollo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Julho de 2008, pp. 23-24. 012  Ibidem, pp. 32. 013  Ibidem, pp. 27. 014 Ibidem, pp. 50.

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O período a partir de 1865/66 seria de desilusão para com a bondade do caminhode-ferro em Portugal, como negócio. Não cabendo dúvidas de que o país necessitava do novo meio de transporte, todo o tráfego que a sua economia podia gerar, revelou-se insuficiente para ser remunerador para uma companhia ferroviária. Em dificuldades perante o pagamento das suas cargas financeiras, a Companhia Real viu-se obrigada a recorrer ao crédito, para fazer face às suas obrigações. Precisamente na mesma altura, em Espanha vivia-se uma desilusão semelhante e os principais concessionários, também se viram forçados ao recurso ao crédito, como forma de evitar a falência.015 No caso da Companhia Real, contratou empréstimos com juros elevadíssimos, por exemplo, com o Crédit Industriel et Commercial (1.900.000 francos em 1866) e com o Banco Nacional Ultramarino (20.000 francos, no mesmo ano), recorrendo ainda a outras casas bancárias. Tentou ainda um empréstimo junto do governo, mas este resistiu a satisfazer a pretensão. Para além da obtenção de empréstimos destinada a garantir a liquidez imediata, a empresa tomou ainda importantes medidas de contenção de custos de exploração. Nessa estratégia, se enquadrou a contratação de dois técnicos franceses, S. Le François, que ocupou o cargo de diretor-geral e Ladame, para o serviço de exploração. Para os atrair e motivar a conseguir os objetivos propostos, não só lhes foram atribuídos avultados salários, como até a possibilidade de usufruir das receitas líquidas da companhia, sempre que estas superassem os 5.000 francos por quilómetro. Ato contínuo, aplicaram-se medidas como o despedimento de funcionários, redução dos custos de manutenção com a via e obras e redução do número de circulações diárias. Optou-se igualmente pela redução dos salários dos administradores em 15%, do pessoal da secretaria e da cobrança de vários empréstimos e dívidas, como as da Casa Real. Procedeu-se ainda à concentração da manutenção nas oficinas gerais, eliminando-se a pequena manutenção, assim como também se suprimiram certos direitos dos trabalhadores, caso do subsídio de doença. Se bem que é certo que se obtiveram importantes reduções das despesas, não é menos verdade que isso se conseguiu à custa de notória degradação da qualidade de serviço. Daqui resultou o desenvolvimento de um clima de tensão entre a administração da Companhia Real, os funcionários e a fiscalização do governo. Deste, resultaria um grave incidente que terminaria na agressão física entre o diretor-geral Le François e o diretor-geral da fiscalização governamental, Joaquim Nunes de Aguiar, na sequência de uma discussão resultante da interdição da ponte do Tejo, que se encontrava em perigo de queda. O episódio seria tomado como desprezo por parte dos estrangeiros que dominavam a Companhia Real, para com os portugueses e os interesses do país, que embora suportando pesa015  SANTOS, Luís António Lopes dos, Política Ferroviária ibérica: de princípios del siglo XX a la agrupación de los ferrocarriles (1901-1951), Tesis doctoral, Facultad de Geografía e História de la Universidad Complutense de Madrid, 2011, pp. 123.

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dos encargos com a construção da rede ferroviária, não tinha o serviço de transporte com a qualidade devida. Mais se acentuou a hostilidade para com a ideia de serem estrangeiros a dominar a exploração de um serviço de importância estratégica, como era o caminho-de-ferro. O incidente seria momentaneamente superado com a demissão de Le François e Ladame em Dezembro de 1871, e a nomeação pela primeira vez de um português, Manuel Afonso de Espregueira, para o cargo de diretor-geral. 016 Depois de momentos difíceis nos dez anos a partir de 1866, em que necessitou da injeção de capitais, a companhia entraria numa fase de certa prosperidade a partir de 1877, quando construiu a ponte D. Maria Pia e obteve a concessão do ramal de Cáceres, dando início a uma fase de expansão que se estenderia até 1891, acompanhada pelo esforço de outras administrações ferroviárias, período após o qual a rede de caminhos-de-ferro ficaria configurada na sua forma praticamente definitiva, pouco evoluindo posteriormente. A estratégia inerente à construção do ramal de Cáceres levaria a que a empresa iniciasse um ciclo de forte aposta e investimentos em Espanha. O ramal tinha como objetivo mais imediato, atrair ao porto de Lisboa o tentador tráfego dos fosfatos de Cáceres, que eram exportados para o norte da Europa. Como desígnio de maior alcance estratégico, procurava ainda uma ligação mais direta a Madrid, por forma a atrair o tráfego do centro de Espanha e da Europa. Para que o plano funcionasse, tornava-se necessário garantir em território espanhol, a continuidade do ramal que a partir de Torre das Vargens e por Marvão-Beirã, alcançasse Cáceres. Nessa altura, o traçado espanhol encontrava-se incompleto e as concessões estavam distribuídas por três empresas diferentes. Em Julho de 1877, a Companhia Real acabou por assinar um contrato com as companhias de Cáceres à fronteira portuguesa e de Cáceres a Malpartida de Plasencia, que se comprometiam a trespassar as concessões a uma nova companhia. A Companhia Real comprometia-se a emitir as obrigações necessárias à construção dos troços que faltava construir, como também se obrigava a garantir um juro de 5% ao capital de ações. Em troca, recebia obrigações da companhia espanhola no valor nominal das quantias empregues, ficando até com a possibilidade de ter participação nos lucros sempre que as receitas líquidas excedessem os 9.000 francos por quilómetro. Assim se constituiu a Sociedade Anónima dos Caminhosde-Ferro de Cáceres a Malpartida de Plasencia e à Fronteira Portuguesa. Em 1880, far-se-ia a fusão final desta empresa, com a Companhia do Tejo, concessionária da ligação entre Madrid e Malpartida de Plasencia. Daqui resultou a Companhia do Caminho de Ferro de Madrid a Cáceres e a Portugal. Num novo contrato assinado a 14 de Novembro de 1880, a Companhia Real contraiu a obrigação de assegurar um produto anual líquido de 11.000 francos por quilómetro à empresa espanhola nos pri016  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 48-50.

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meiros três anos, elevando-se a 12.000 francos por quilómetro a partir daí. O negócio seria um desastre. A linha revelou-se desde os primórdios deficitária, começando de imediato a drenar os rendimentos da própria Companhia Real, que assim se viu sobrecarregada com um pesado encargo. Este contrato geraria nova onda de descontentamento para com os administradores e grandes acionistas estrangeiros da Companhia Real. Na verdade, muitos explicavam a elaboração de um contrato ruinoso, pelo facto de os mesmos administradores serem comuns ao Madrid a Cáceres e Portugal e à Sociedade dos Fosfatos de Cáceres, pelo que drenavam o capital da Companhia Real em seu próprio benefício. De facto, os principais promotores da linha de Madrid por Cáceres à fronteira portuguesa, estavam associados a um dos principais acionistas da Sociedade dos Fosfatos de Cáceres, Segismundo Moret y Pendergast, que mais tarde, em 1882, entraria para a administração da Companhia Real. O contrato para o transporte dos fosfatos entre a Companhia Real e Sociedade Geral dos Fosfatos, foi assinado por Joaquín de la Gándara e Edmond Joubert, presidente do concelho de administração da sociedade dos fosfatos e que passado pouco tempo, também integrou o conselho da Companhia Real. Abraham de Camondo, também jogava nos dois tabuleiros, uma vez que integrava quer a Companhia Real, quer a de Madrid a Cáceres e a Portugal.017 A ideia de que os estrangeiros delapidavam os recursos nacionais em proveito próprio, mantendo um serviço ferroviário medíocre, apesar de a companhia apresentar bons resultados, mais acentuou uma certa hostilidade para com os estrangeiros que dominavam um sistema de transportes que à época, não contava com alternativas. Contudo, uma intervenção política sobre questões da Companhia Real, não era fácil. O Estado português dependia para a sua sobrevivência, de empréstimos no estrangeiro, principalmente em França. Estes eram normalmente obtidos perante as mesmas casas que detinham interesses na Companhia Real. Nomes como o de Henry Burnay, tinham inclusivamente prosperado na intermediação do Estado português com determinados bancos franceses. Por outro lado, a própria Companhia Real chegava a servir de financiadora do Estado. Numa conjuntura de desafogo, como a verificada entre 1871 e 1881, a empresa decidiu aplicar fundos disponíveis em adiantamentos ao governo. Com um carácter de curto prazo, estes empréstimos eram considerados um bom negócio, já que era seguro e proporcionava bons rendimentos. O juro oscilava entre 4,75% e 7%. Neste período de dez anos, a empresa adiantou ao estado mais de 1.812.000$000 réis.018 O domínio estrangeiro da principal administração ferroviária do país, dominando as linhas mais importantes e de maior tráfego, levantava ainda problemas e dúvi017  Ibidem, pp. 38-43. 018  Ibidem, pp. 52.

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das quanto às necessidades de defesa nacional. Parecia perigoso que uma empresa de capital externo e nas mãos principalmente de franceses, detivesse todas as linhas de aceso à capital. Por essa razão, quando a companhia tomou a decisão de construir a linha do Oeste, optou-se por dividir a concessão em dois troços: um de Lisboa a Sintra e Torres Vedras, com um ramal até Merceana, concessionado a Henry Burnay, que para o efeito constiuiu um sindicato com Abraham de Camondo, Joubert e o marquês de Guadalmina; outro de Torres Vedras à Figueira da Foz e Alfarelos, concessionado à Companhia Real. Claro que o acordo não camuflava totalmente, a intimidade de relações de Burnay com Camondo, um dos nomes de maior peso da Companhia Real.019 Em vésperas do “assalto” ao domínio da maior empresa nacional, pelo grupo Foz, estava preparado todo um ambiente de oposição ao domínio estrangeiro dos principais eixos ferroviários, bem como a ideia de que era importante para o país, que essas linhas fossem subordinadas a uma administração portuguesa. Em Abril de 1884, sem se referir ao tema do predomínio de estrangeiros na empresa, dirigido pela acutilância de Mariano de Carvalho, o Diário Popular reforçava este ambiente de desconfiança e descontentamento geral, relativamente à direção da companhia, exortando à mudança: “Toda a imprensa se manifesta contra o novo horário proposto pela companhia real dos caminhos de ferro portugueses, e que na parte relativa ao Alentejo já foi modificado, porque na verdade era impossível admitir o que se propunha a começar pelos comboios na linha do norte e a partir do Porto, tendo-se conseguido a final que despertassem de profundo somno a associação comercial e a cãmara d’aquella cidade. Os jornaes da cidade invicta combatem afincadamente os horários propostos, queixando-se da supressão do comboio das prias, e de outros factos igualmente lastimosos. Assim o expresso de Madrid, parte açodado do Porto, chega ao Entroncamento e por ali fica, quando poderia vir a Lisboa, com pequeno dispêndio e com grande vantagem pública. Também se quer estabelecer que o comboio mixto saia de Lisboa cedo de mais, e chegue ao Porto perto das 11 horas da noite, de modo que nem os particulares, nem a imprensa aproveitam nada e os passageiros são incomodadíssimos. A nosso vêr os interesses bem entendidos da companhia real dos caminhos de ferro portugueses concordam perfeitamente com os do público, sendo n’uma exploração bem entendida, que o principal interesse da companhia está. A exploração defeituosa causa graves transtornos ao publico, e, conforme 019  Ibidem, pp. 76.

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a nossa opinião, se póde por algum tempo favorecer a companhia diminuindolhe as despesas de exploração, no fim a prejudica cerceando-lhe também os rendimentos. Esperamos que a companhia, melhor aconselhada, mude de projetos, e que o governo não aceite horários prejudicialíssimos para o movimento económico do paíz.”020 1.2. A participação do grupo Foz, no primeiro concurso de concessão da linha da Beira Baixa O período a partir de 1877 marcaria a segunda grande vaga de crescimento da rede ferroviária portuguesa. No caso da Companhia Real, o pontapé de saída seria dado com a construção da ponte D. Maria, através da qual, finalmente, a linha do Norte atingiria o Porto, e com a construção do ramal de Cáceres. O movimento de expansão prosseguiu com a obtenção da linha do Oeste, dividida em duas concessões, anunciando-se muitas outras. Desta etapa é a construção da linha da Beira Alta, explorada pela companhia do mesmo nome, que seria o segundo concessionário ferroviário privado português. Por parte das redes do Estado, trabalhava-se na construção da linha do Douro até à fronteira e esperava-se prolongar a do sul, até ao Algarve. Os investimentos ferroviários portugueses chegariam inclusivamente a Espanha, não só no caso da linha de Madrid a Cáceres e Portugal, como inclusivamente no caso da construção da linha de Salamanca à fronteira portuguesa, que teria garantia de juro do Estado português, devendo-se à ação de um sindicato liderado por Henry Burnay, sob impulso da Associação Comercial, de que faziam parte o grosso dos bancos do Porto, Aliança, Comercial do Porto, Mercantil Portuense, União Portuguesa, Comercial e Industrial, o Banco do Minho ou a Nova Companhia de Utilidade Pública. Ligada ao grupo Foz, seria ainda nesta etapa que se fundaria a Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro.021 O ambiente era favorável à expansão da rede ferroviária, sendo numerosos os concursos públicos para adjudicação de concessões, assim como os pedidos de concessão de eixos ferroviários. Para grupos financeiros e empreiteiros, cujas funções muitas vezes se confundiam, a construção de novas linhas era uma oportunidade de negócio a não perder. A porta de entrada que propiciaria a tomada da Companhia Real de Caminhosde-Ferro por Foz e o grupo que o acompanhava, seria o concurso para a concessão da linha da Beira-Baixa. 020  O Diário Popular, Lisboa, Sábado, 5 de Abril de 1884, 19º ano, pp. 1 021

SANTOS, Luís António Lopes dos, Op. cit., pp. 146-149.

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O primeiro concurso para a concessão da linha da Beira Baixa, teria lugar a 3 de Outubro de 1883. A comissão que presidiu aos trabalhos, seria composta pelo diretor-geral de obras públicas, Joaquim Simões Margiochi, pelo secretário do ministério, o conselheiro Viriato Luís Nogueira e pelos engenheiros João Joaquim de Matos e António Xavier de Almeida Pinheiro. O procurador-geral da Coroa não estava presente, tendo sido substituído pelo ajudante, o conselheiro António Cardoso Avelino. Sabe-se que a única proposta apresentada a esse concurso, foi entregue pelo visconde de Macieira, em nome de um sindicato de que faziam parte vários capitalistas e o banco Lusitano. Houve outros interessados, mas que não chegaram a apresentar proposta, por subsistir uma dúvida quando ao artigo 26º do decreto de abertura do concurso, assunto de que falaremos mais adiante. Estes apresentaram protestos, casos de Carlos Santos, o representante do banco Comercial, sr. Ferraz e Henry Burnay, que apresentou dois protestos, em nome da Henri Burnay & Companhia e da Société des Depots et Compt Courant.022 Segundo Maria Filomena Mónica, Henrique Eugénio Macieira, o visconde de Macieira, definido como “capitalista e negociante de grosso trato da praça de Lisboa”, era diretor do banco Lusitano e da fábrica Aliança Fabril, (ambos empresas às quais Foz estava associado), aparecendo na carteira Biográfica de 1885 também como diretor do caminho-de-ferro da Beira-Baixa,023 o que não deixa de ser curioso, porque a concessão nunca lhe chegaria a pertencer e em 1885 já estava na posse da Companhia Real, a quem seria diretamente outorgada. À época, para além da linha da Beira Baixa, sob o governo regenerador, preparavam-se e discutiam-se concursos para os caminhos-de-ferro de Mirandela a Foz-Tua, de Viseu, Alentejo e Algarve. Estas linhas tinham sido promessas eleitorais de Fontes Pereira de Melo, na prosa verrinosa de Mariano de Carvalho dito “o valido”.024 O Diário Popular de 11 de Outubro de 1883, dá-nos ainda a saber que o empreiteiro francês Bartissol, fazia parte deste sindicato liderado pelo banco Lusitano.025 Este acabaria por ser um parceiro privilegiado do grupo em muitos negócios, nos anos seguintes. Por ocasião da realização do 2º concurso para adjudicação desta linha, (o 1º concurso acabaria por ser anulado), obtemos a informação de que o então conde da Foz era um dos membros deste sindicato, porque lhe coube em sua representação, apresentar um protesto pela

022

“O concurso para o caminho-de-ferro da Beira-Baixa” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5.965, quinta-feira, 4 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1.

023

MÓNICA, maria Filomena, “Capitalistas e Industriais (1870-1914)” in Análise Social, vol. XXIII, Nº 99, 5º ano, 1987, pp. 830.

024  “Boletim político” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5.968, domingo, 7 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1. 025  “Caminho-de-ferro da Beira –Baixa” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5.972, quinta-feira, 11 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1.

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anulação do 1º concurso.026 Não só a sua participação, como o seu peso determinante dentro do grupo, são confirmadas de forma clara por uma carta que foi enviada a Foz, pelo financeiro francês Ellicott, no dia seguinte ao concurso, a 4 de Outubro de 1883, felicitando-o pela vitória da sua proposta. Nessa altura, Ellicott, que viria a ser outro parceiro privilegiado nos planos de Foz, queria saber se a obtenção desta concessão punha em causa a sua participação noutro empreendimento ferroviário, em Espanha, o que esperava que não acontecesse: “Mon cher Comte, Je viens de voir dans le journal que votre proposition pour le chemin de fer de la Beira Baixa avait été le préférée. Il est donc probable que malgré les protestations dont parlent les principaux journaux, vous aurez à conclure cette affaire. Je vous felicite donc du succès et vous souhaite bonne reussite – Est-ce que se fait viendra modifier les intentions de votre groupe en ce qui concerne Madrid – Valencia ? J’espére non, car avec les dispositions de Paris et les facilités que vous y trouverez pour les versements du capital, je pense que vous ne voudrez echapper une telle occasion.»027 A 6 de Outubro já se noticiava que o governo não tinha aceite a proposta do banco Lusitano e que seria aberto novo concurso.028 O processo tem alguns contornos teatrais, cuja descrição seria morosa. No essencial, o negócio da linha da Beira Baixa era fundamentalmente a sua construção. Da exploração não se esperava que fosse por aí além remuneradora, pelo que ninguém aceitaria a concessão se o Estado não garantisse o juro à exploração. Contudo, o artigo 26º do decreto que regulava essa questão, tinha sido redigido de forma dúbia, deixando dúvidas quanto à distinção de produto líquido e produto bruto.029 Na prática, como a redação deixava campo livre à especulação, não era claro que o concessionário pudesse dispor das quantias pagas pelo Estado como garantia de juro. Ao fazê-lo, estava-se naturalmente a salvaguardar a possibilidade de o Estado poder resgatar a linha por baixo preço, já que a indemnização a pagar ao concessionário em caso de resgate antecipado, era calculada com base na média do rendimento líquido do concessionário. Pondo-se em causa a propriedade do concessionário sobre o rendimento que o Estado garantia à exploração, ninguém se abalançaria a tomar a concessão. Quando o ministro das Obras Públicas, Hintze Ribeiro, (o vice-valido, segundo Ma026  “Caminho-de-ferro da Beira Baixa” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5999, quinta-feira, 8 de Novembro de 1883, 18º ano, pp.1. 027  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Caixa 49, Pasta – Minas, doc. digitalizados Nº 49-50. 028  Diário Popular, Lisboa, Nº 5.967, sábado, 6 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1. 029  “Boletim Político” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5.968, domingo, 7 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1

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riano de Carvalho), chamou o visconde de Macieira ao seu gabinete, condicionou a outorga da concessão a que o sindicato que ele representava, aceitasse que não podia dispor das receitas proporcionadas pelo juro garantido pelo Estado. Naturalmente, este recusou. Um comunicado seu, foi publicado em vários jornais: “Lisboa, 6 de Outubro. – Sr. redactor do Economista. – No número do bem acreditado jornal de hoje, e debaixo da epigraphe, “O caminho de ferro da Beira Baixa” encontro asserções menos exactas. Diz v. “um dos concorrentes, o único, perguntado se assinava o contracto definitivo, tal como se continha no programma, disse que só com modificações poderia proceder a tal contracto. A verdade dos factos é esta: S. ex.ª, o ministro das obras públicas, mandou-me chamar ao seu gabinete no dia 4 do corrente, cuidando em que era para me anunciar, (…) que ao grupo de indivíduos que representei no dia 5, estava adjudicado o caminho de ferro, tal qual o mandava adjudicar o programa; em vez disto s. ex.ª declarou-me que o governo estava prompto a assignar o contracto definitivo, comtanto que os meus constituintes consentissem em que n’esse contracto ficasse bem claro que a condição do artigo 26º do programma nunca poderia ser entendida de forma que as quantias pagas pelo governo como garantia de juro pudessem ser consideradas como rendimento da empresa. S. ex.ª, entendendo muito bem que isto era alterar essencialmente as condições do programma, o que só podia fazer com que a annuencia dos proponentes, que não pediam aclarações nem as desejavam, disse-me que desejava saber se podia contar com essa annuencia. Em vista disto, tendo consultado os meus constituintes, a resposta d’elles, que tive que transmitir a s. ex.ª o sr. ministro, foi que não assignariam contracto em que houvesse a mínima alteração nas palavras textuais do artigo 26º. Posso pois afirmar a v., e póde afirmar aos seus leitores, que por parte do grupo que representei ao concurso, nenhuma alteração se pediu, nem houve recusa de assignar o contracto definitivo, sendo elle formulado conforme a letra do programma. Sou com toda a consideração De v. etc. Visconde de Macieira.”030 Mariano de Carvalho não teria dúvidas em afirmar que Hinzte Ribeiro e o governo regenerador tinham cedido ao protesto e pressão do banco Fonsecas e Vianna e de

030  “Boletim político” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5.969, segunda-feira, 8 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1.

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Henry Burnay.031 Parece claro que o ministro utilizou a redação duvidosa do artigo 26º, para forçar uma condição que tornava impossível ao vencedor do concurso aceitar a concessão. A proposta do banco Lusitano tinha cumprido todas as condições, sendo o custo quilométrico proposto, de 450$000, inferior aos 500$000 réis indicados pelo governo no concurso.032 Destacou-se o facto de a Companhia Real não ter apresentado proposta a um concurso em que se concessionava um ramal da linha do leste. Não sabemos que explicação poderá ter essa atitude, mas pode ser admitido como hipótese, que a redação pouco clara quanto ao destino a dar às quantias resultantes da garantia de juro, possa ter parecido arriscada à empresa. Sabemos ainda que os bancos Fonsecas e Viana e a casa Henry Burnay & Cia., eram próximos do Estado e da Companhia Real. Não é absurda a possibilidade de que pudessem ter pressionado o governo a anular o concurso e a abrir novo processo com cláusulas mais claras, de forma a que a Companhia Real se pudesse candidatar, mas os elementos disponíveis não permitem passar da conjetura. O interesse do grupo Foz nesta empreitada, é justificável pela oportunidade de negócio que representava a construção de uma via-férrea, à semelhança do que fariam com outros concursos de concessões ou empreitadas ferroviárias. Não parece haver relação com a tomada da gestão da Companhia Real, que pouco tempo depois se configuraria. Não é possível dizer em que momento terá sido planeada a linha de atuação que lhes permitiu assumir os destinos da empresa, mas não há evidências de que esta tentativa de obtenção da concessão da linha da Beira Baixa, estivesse relacionada com a tomada do conselho de administração da maior empresa de caminhos-de-ferro portuguesa. 1.3. A tomada da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, pelo grupo Foz. A 8 de Outubro de 1883, foi publicado no Diário do Governo o decreto abrindo o novo concurso para a construção e exploração da linha da Beira Baixa. Desta vez, o “pecado” do concurso original tinha sido corrigido, já que o polémico artigo 26º, tinha passado a garantir ao concessionário, que em caso de resgate o Estado pagaria uma anuidade não inferior a 5,5% do capital desembolsado, durante todo o tempo que faltasse para que se alcançasse o prazo de caducidade da concessão. Em tudo o resto, as condições eram exatamente as mesmas do concurso original.033 031  “Boletim político” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5.968, domingo, 7 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1. 032  Ibidem, pp. 1 033 In Diário Popular, Lisboa, Nº 5.970, Terça-feira, 9 de Outubro de 1883, 18º ano, pp. 1.

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As propostas foram recebidas em sessão de 7 de Novembro de 1877, sendo a comissão composta pelos membros do concurso anterior. Foram desta vez apresentadas três candidaturas: uma pela Companhia Real, representada por Osborne Sampaio, outra por Henry Burnay e a terceira, de novo pelo visconde de Macieira, em nome do sindicato encabeçado pelo banco Lusitano. Como já foi referido, o conde da Foz apresentou um protesto pela anulação do anterior concurso, que o sindicato que integrava, sob os auspícios do banco Lusitano, tinha vencido. Abertas as propostas, a Companhia Real apresentou um orçamento máximo por km de construção, de 35:800$000 réis, Burnay de 36:300$000 e o banco Lusitano em 36:395$000 réis. De acordo com a lei vigente, o governo tinha o prazo de oito dias para deliberar.034 Contudo, no Diário Popular do dia seguinte, já se podia ler a notícia: “A construção do caminho de ferro da Beira baixa é adjudicada, segundo se afirma, à companhia do caminho de ferro de Norte e Leste.”035 A notícia ainda não tinha sido, no entanto, oficialmente confirmada. Seria curiosa a atitude expressa por Mariano de Carvalho no Diário Popular, quanto à adjudicação da linha à Companhia Real e sofreria evolução, até uma clara inflexão, com o evoluir dos acontecimentos. A sua primeira posição foi de um ceticismo prudente, já que a entrega da linha da Beira Baixa ao maior concessionário ferroviário português, foi vista como uma ameaça à recém-criada Companhia da Beira Alta, concessionária do caminho-de-ferro com o mesmo nome. De facto, ao entroncar com a linha da Beira Alta na Guarda, o itinerário proporcionava em teoria, à Companhia Real, uma possibilidade de fazer divergir para a sua própria rede, o tráfego internacional que a Beira Alta esperava captar e que tinha sido a motivação para a construção da via. Ao fazer perigar a posição da Beira Alta, na qual capitalistas franceses tinham posto capitais importantes, admitia-se que a decisão de entregar a linha da Beira baixa à Companhia Real, a confirmar-se, pudesse dificultar as transações financeiras estatais futuras, na praça de Paris.036 O contrato provisório, concessionando a linha da Beira Baixa à Companhia Real, seria efetivamente assinado a 15 de Novembro de 1883. Contudo, mais uma vez, houve uma modificação de uma cláusula, que faria com que a aprovação definitiva ficasse dependente da Câmara dos Deputados, à qual só seria apresentado a 13 de Fevereiro de 1884, ocorrendo a discussão em 13 de Maio seguinte.037 É difícil saber 034  “Caminho de ferro da Beira Baixa” in Diário Popular, Lisboa, Nº 5999, Quinta-feira, 8 de Novembro de 1883, 18º ano, pp. 1. 035  In Diário Popular, Lisboa, Nº 5999, Quinta-feira, 8 de Novembro de 1883, 18º ano, pp. 1. 036  in Diário Popular, Lisboa, Nº 6.000, Sexta-feira, 9 de Novembro de 1883, 18º ano, pp. 1. 037  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, Op. cit., pp. 57.

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quando terá sido gizado o plano que levou um grupo comandado por Foz a apoderar-se da Companhia Real, usando como pretexto esta concessão, da Beira Baixa. Da correspondência trocada com Ellicott, ainda não transparece nada, a 14 de Novembro de 1883. Numa carta desse dia, o financeiro francês respondeu a Foz, que o informava que tinha perdido o concurso para a linha da Beira Baixa, mas que tinha protestado, admitindo que talvez ainda fosse possível obter a concessão.038 É no entanto curiosa a inflexão de posição do Diário Popular, logo a 12 de Novembro de 1883. Depois de no dia 9, a ter encarado com algum ceticismo e ter receado que pudesse prejudicar a posição do Estado português na praça de Paris, no espaço de poucos dias, apareceu a defender claramente a adjudicação da linha à Companhia Real, integrando-a na necessidade de promover grandes redes: “Entende o Economista que é inconveniente adjudicar à companhia real dos caminhos de ferro portugueses a linha da Beira Baixa. A sua razão é que por este modo a companhia vae ficar com todas as saídas de Lisboa para a fronteira. Não colhe esta razão. Que a linha da Beira Baixa pertença ou não à companhia real, sempre há de desembocar na linha de leste e, portanto, sempre as saídas de Lisboa pelo norte do Tejo ficarão em poder da companhia. O facto não resultará da adjudicação ser feita a este ou àquelle, mas do traçado geral da nossa rêde ferro-viária e da própria configuração do paíz. Não é possível irradiarem de Lisboa diversas redes independentes por causa da posição geográfica da capital entalada d’encontro ao Tejo e ao mar. A própria linha de Torres, tendo que desembocar na linha do norte, fica sujeita à companhia real, quer lhe pertença, quer não. O erro vem do princípio e não tem cura. Succede mais, dada a actual constituição da nossa rêde ferro-viária, que o nosso interesse nos manda fortificar a rêde portuguesa do norte e leste a fim de podermos resistir com vantagem à formidável concorrência das linhas e portos espanhóis e ao temível bloqueio que o paiz vizinho lançou com uma cinta de ferro em volta da nossa fronteira. Se não fizermos assim, a ruína dos portos portuguezes será a consequência fatal da situação dos caminhos de ferro e das pautas dos dois paízes. A nossa obrigação é, repetimo-lo, fortificar as redes portuguesas e, por isso, não devemos dessiminar concessões por companhias fracas e, portanto, inábeis para a lucta com os caminhos hespanhoes.” (…)”039 038  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia-Real e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 6-7. 039 In Diário Popular, Çisboa, Nº 6.003, Segunda-feira, 12 de Novembro de 1883, pp. 1

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É certo que a oposição inicial à atribuição da concessão à Companhia Real não tinha sido muito enérgica. Mas no espaço de poucos dias, de certa oposição, passouse a clara defesa da decisão governamental, encarada como a opção estratégica certa, em termos de política ferroviária. Seria esta alteração de posição, consequência de um plano entretanto urdido para propiciar o domínio da empresa por Foz e o seu grupo? Podia um projeto de tal complexidade ter sido pensado em tão pouco tempo? Não podemos senão especular e a documentação encontrada não faz luz sobre o tema. O que já pode obedecer a certa premeditação e à existência de um plano, é uma carta de resposta remetida pelo banqueiro francês Goguel a Foz, a 17 de Janeiro de 1884: “(…) Monsieur le Comte: Je m’empresse de répondre à la lettre que vous m’avez fait l’honneur de m’écrire le 13 courant, reçue ce matin. Elle m’annonce l’envoie prochaine du rapport du conseil de la Compagnie Royale ; se sérai très aise de le recevoir et de compléter ainsi les renseignements fournis récemment par les journaux de Lisbonne que notre ami Monsieur Eugénio de Alemeida a l’obligeance de m’envoyer de temps en temps. Pour vous être agréable et quoique des opérations analogues soient très offertes sur les mêmes titres sur notre place, je suis tous disposé à entrer dans le vues que vous m’éxprimez en faisant acheter par ma maison Mille actions des chemins portugais pour lesquelles une provision de cent francs par action lui serait préalablement adressée. Je viens de vous télégraphier dans ce sens les actions achetées pouvaient être à (…) à l’occasion de l’assemblée générale prochaine à l’effet d’obtenir des cartes aux noms que vous indiquiez pour faire partie de le réunion – tout en restant, bien entendu, *a la dispositions de ma maison qui les déposerait et aurais seule le droit de les retirer. (…) »040 Em princípios de 1884 e por solicitação de Foz, Goguel estava a examinar relatórios do Conselho de Administração da Companhia Real, a reunir informações sobre a empresa, bem como a preparar-se para reunir ações, que pudessem garantir uma representação de peso na assembleia-geral da companhia. Se bem que estas cartas raramente explicitem com detalhe os assuntos de que tratam, não é absurdo fazer corresponder esta atuação com o que posteriormente se passou, podendo perfeitamente ser um indício de uma estratégia que já podia estar concertada. Note-se aliás, que Goguel começa o texto, informando que responde à carta que Foz lhe enviou a 040  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, arquivo CP, Caixa 16, Pasta - Correspondência recebida de M. M. Goguel e Cie. (Banqueiros), fl. 6-7.

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13 de Fevereiro. Precisamente nesse dia, o contrato de concessão provisório, seria apresentado à câmara dos deputados. De qualquer forma, realmente decisiva seria a ação de Mariano de Carvalho, no momento da discussão do contrato a 13 de Maio. As críticas e modificações propostas não incidiram sobre o contrato em si mesmo, mas antes se aproveitaram para procurar forçar a companhia a alterar o modelo administrativo e a dar a predominância a portugueses, ou estrangeiros residentes em Portugal, no conselho de administração. “(…) Mas discutindo-se esta proposta, aproveito a ocasião favorável para que entre em caminho novo e mais prudente a respeito da gerência e admissão das companhias de caminhos de ferro em Portugal. (…) Sr. presidentre, em Portugal tolera-se que nas redes principais de caminhos de ferro, as direcções sejam na sua maioria estrangeiras. (…) em Portugal vai ser concedida uma rede de perto de 1.000 quilómetros de caminho de ferro à Companhia Real dos Caminhos de Ferro, que tem uma direcção, que na sua maioria é estrangeira. (…) Portanto tenho a honra de mandar para a mesa o seguinte aditamento ao projecto: (…) Em caso nenhum se modificam as condições financeiras e técnicas do projecto. Mas em relação aos caminhos de ferro que vão ser construídos, estabelece o princípio salutar não só de que o Governo nos contratos e estatutos terá seguras garantias de fiscalização, como também que nunca em Portugal possam ser explorados caminhos de ferro sem que a maioria das direcções sejam portuguesas. (…) A concessão da linha da Beira Baixa à Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses não se tornará efectiva sem que a mesma Companhia, no prazo de três meses, contados da publicação desta lei concorde em modificar, com a aprovação do Governo, os seus estatutos (…).041 A proposta do político progressista seria aceite e a lei aprovada a 26 de Maio.042 Por esta, a definitiva concessão da linha da Beira-Baixa, ficava condicionada a que a Companhia Real aceitasse rever os seus estatutos, de forma a que não só o seu conselho de administração fosse composto por uma maioria de portugueses, ou estrangeiros residentes em Portugal, como ainda a reconhecer ao Estado mais amplas faculdades de fiscalização da sua atividade. Parece que ainda antes da discussão e votação do contrato de concessão provisório, terão decorrido negociações para a entrada de vários portugueses no conselho de administração, que se revelaram infrutíferas. A explicação oficial para o insucesso foi a indisponibilidade de lugares vagos.043 041  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, Op. cit., pp. 57-58. 042  Ibidem, pp. 58. 043  “Lisboa, 13 de Setembro; Assembleia-Geral da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses” in Jornal do Comércio, Lisboa, Nº 9241, 31º ano, Domingo, 14 de Setembro de 1884, pp. 1.

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Confrontado com este problema, o conselho de administração marcou a reunião de uma assembleia-geral extraordinária, para o dia 28 de Agosto. No entanto, por razões ainda não explicadas, esta não se chegaria a realizar por falta de quórum. Os estatutos da companhia obrigavam a que os acionistas que pretendessem estar representados, ou presentes nas reuniões, depositassem com certa antecipação os seus títulos em estabelecimentos bancários previamente indicados. Apesar de que os depósitos decorreriam normalmente, no dia da assembleia não estiveram presentes mais do que 9 acionistas, representando 4.040 ações. Nestas condições, o artigo 38º dos estatutos, obrigava à marcação de uma nova reunião da assembleia-geral no prazo de 15 dias, a qual se realizaria, fosse qual fosse o número de acionistas presentes. Essa nova reunião seria marcada para a data de 13 de Setembro de 1884. No dia seguinte, o conselho-de-administração recebeu uma proposta assinada por M. Cortês e Carlos Marcelo dos Santos, como diretores do Banco Lusitano, Francisco Van Zeller e conde Foz, na qualidade de diretores da Sociedade Agrícola e Financeira da Portugal e ainda Mariano de Carvalho, Fernando Pereira Palha, Frederico Biester, Carlos Maria Eugénio de Almeida, E. Carvalho Silva, Henrique Jorge Moser e Adrião de Seixas. Nesta, defendia-se a aceitação por parte da companhia, da concessão da linha da Beira Baixa, assim como da submissão às consequentes exigências estatais.044 Acresce que todo o período que mediou entre o concurso de adjudicação da linha da Beira-Baixa e a assembleia-geral de Setembro de 1884 se caracterizou pelo crescimento da tensão entre opinião pública e Estado por um lado e a companhia por outro. A partir de Maio, ocorreram até demissões em cargos importantes ocupados por portugueses. Que em alguns casos, essas vagas fossem supridas por cidadãos nacionais, revelou-se insuficiente para apaziguar o ambiente. Assim, a 11 de Junho, por ocasião da assembleia-geral ordinária, pôs-se a necessidade de reconduzir ou substituir os administradores conde de Camondo, Joubert, Fortunato Chamiço e Francisco Chamiço. Habitualmente, a recondução era feita por aclamação, mas um dos representantes dos acionistas franceses solicitou que fosse feita por votação secreta. Em consequência disso, os dois membros franceses do conselho foram reconduzidos, mas os Chamiços seriam substituídos por Carlos Zeferino Pinto Coelho e António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado.045 Tratava-se justamente dos poucos portugueses que detinham uma participação relevante na condução da empresa. Em reunião do conselho de administração havida após esta assembleia, seria intimado a demitir-se o diretor-geral, Manuel Afonso de Espregueira, saindo ainda o engenheiro Pedro Ignácio Lopes.046 O sucedido a 13 de Setembro seria de tal ordem, que a reunião ficou conhecida 044  SALGEURO, Ângela Sofia Garcia, Op. cit., pp. 58-60. 045  “Assembléa geral” in Diário Popular, Lisboa, Nº 6.207, quinta-feira, 12 de Junho de 1884, 19. Ano, pp. 2. 046  Diário Popular, Lisboa, Nº 2.208, sexta-feira, 13 de Junho de 1884, pp. 2.

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como “a assembleia selvagem”. Para além do invulgar decurso da própria assembleia, ainda houve um episódio rocambolesco à margem do acontecimento, já que Le François, o antigo diretor-geral, agora engenheiro consultor e acionista da companhia, que tinha vindo a Lisboa para participar no ato, acabaria por ser preso, o que foi interpretado como uma manobra para o afastar da assembleia-geral e da votação. O fundamento para a sua prisão foi a existência de processos contra si, na sequência de acidentes ferroviários ocorridos no período em que tinha sido diretor-geral e nos quais tinham falecido ou ficado feridos passageiros. O pagamento da fiança, permitiu-lhe contudo ser libertado de forma a ainda poder participar na reunião, tendo chegado com esta já a decorrer.047 O ataque à ordem instituída na empresa começou logo pela própria constituição da mesa da assembleia-geral. A presidência foi ocupada pelo governador civil de Lisboa, Eduardo José Segurado, centrando-se a discussão sobre a escolha dos restantes membros. Os estatutos determinavam que estes deviam ser os dois maiores acionistas. Aqui, as interpretações dividiram-se: O sr. Pinto Coelho, sustentou que o maior acionista presente era o que maior número de votos representava, contando com as procurações que lhe tinham sido entregues. No entanto, votou-se que deviam ser os detentores presentes de maior número de ações próprias, verificando-se serem o visconde de Macieira, (na qualidade de diretor do Banco Lusitano) e Fernando Palha. Estes escolheram para secretário Frederico Biester. Feita a chamada pela lista oficial apresentada pelo conselho de administração, a mesa verificou estarem presentes 17 acionistas, fazendo-se 33 representar por procuração. A rutura estalou quando a própria mesa considerou inválidas e ilegais as 25 procurações de acionistas franceses, na posse do sr. Pestel, com o argumento de que se tratava de documentos particulares feitos em país e língua estrangeira, pelo que a lei portuguesa não lhes conferia qualquer valor. A discussão estalou entre Pinto Coelho, que procurou defender os interesses dos acionistas representados por procuração e Fernando Palha, que ocupava a mesa. Se do ponto de vista estritamente legal, a posição da mesa era sustentável, na prática, nunca tinha sido uso da companhia, tendose sempre os acionistas estrangeiros feito representar por procuração, nos termos em que agora o faziam. Na polémica tomaram ainda parte A. P. de Carvalho, Vanzeller, Osborne Sampaio, Foz e Mariano de Carvalho. No meio da disputa que naturalmente se gerou, chegou Le François, entretanto libertado sob fiança, cuja presença invalidava a procuração que tinha entregue a Pestel, para o representar. Posto o problema a votação, a assembleia rejeitou por inválidas, as procurações do Sr. Pestel, pondo em maioria pela primeira vez, os acionistas portugueses presentes.048 047  Diário Popular, Lisboa, Nº 6296, domingo, 14 de Setembro de 1884, ano 19, pp. 1-2. 048  Arquivo da CP, Lisboa, “Acta da Sessão da Assembleia-Geral de 13 de Setembro de 1884”, in Acta da Assembleia-Geral da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, Livro 1, pp. 160-166.

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O tema do dia era a aceitação ou rejeição da concessão da linha da Beira-Baixa, já que aceitar a concessão, implicava modificar os estatutos da companhia. Sobre esse assunto, o conselho de administração preparou um relatório, que leu à assembleia sob ressalva dos direitos dos acionistas excluídos pela deliberação anterior. Neste documento, o conselho revelou-se desfavorável à modificação dos estatutos, recomendando a rejeição da linha da Beira Baixa. Esta recomendação era baseada no relatório de Pedro Inácio Lopes e aprovado pelo ex-diretor-geral, Manuel Afonso de Espregueira, ambos recentemente demitidos. Neste, considerava-se essencial para a construção da linha: 1. que o custo de construção por quilómetro não fosse superior aos 37 contos de réis propostos pelo governo; 2. que as obrigações a emitir se colocassem por 317 francos; 3. que a exploração se fizesse com a despesa máxima de 3865 francos por quilómetro. Relativamente a estas condições, o conselho duvidava da possibilidade de se fazer a exploração pelo custo quilométrico recomendado, mas tinha decidido ir a concurso, na expectativa de reduzir os custos de construção através de variantes, cuja aprovação dependia de existência de boas relações com o governo. Por outro lado, a boa aceitação dos títulos obrigacionistas na praça de Paris, pelo valor calculado como conveniente, dependia da confiança dos investidores estrangeiros. Contudo, a nova conjuntura expressa nas condições legalmente exigidas para aprovação definitiva da concessão, viam-se agora goradas. A obrigação de garantir uma maioria de administradores portugueses no conselho era vista como hostilidade relativamente aos acionistas estrangeiros, bem como uma restrição à sua liberdade de nomear livremente os seus administradores, o que prejudicaria a colocação dos títulos obrigacionistas. A crescente tensão com o governo fazia gorar as expectativas de poder negociar a execução de variantes que reduzissem os custos de construção.049 Esta linha de argumentação seria violentamente rebatida por Fernando Palha. Este não hesitou em recordar os inúmeros apoios que o Estado sempre tinha dado à companhia, quer na fase de construções das suas linhas, quer nas dificuldades que tinha encontrado ao longo da sua vida, entre subsídios previstos nos contratos, ajudas não previstas legalmente ou construção de infraestruturas de apoio, como estradas para a estações, alegando que um Estado que tinha sempre dado tal ajuda à empresa, não a ia desamparar agora; mais acrescentou que os cálculos de viabilidade e custos de construção e colocação de ações e rendimentos de exploração necessários, apresentados pelo conselho para avaliar da viabilidade do projeto eram falsos e que tinham sido intencionalmente viciados; em contraponto apresentou os estudos que o sindicato de que ele próprio tinha feito 049  Ibidem, pp. 166-172.

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parte, para o mesmo concurso, tinha apresentado, com base nos cálculos de Duparchi; ainda assim as condições desse estudo tinham sido melhoradas, por outro mais recente, da autoria do engenheiro suíço Almeida Pinheiro050, que tinha trabalhado na linha do Douro e que tendo uma companhia que cumpria as suas obrigações irrepreensivelmente, não podia ver dificultado o seu acesso aos mercados financeiros. Finalmente, dirigiu ferozes críticas a alguns membros do conselho, especialmente do comité de Paris, que no fundo, acusou de terem feito um contrato ruinoso para a empresa, com a companhia do caminho-de-ferro de Madrid a Cáceres e a Portugal, com o objetivo de pôr a Companhia Real a subsidiar o MCP, uma vez que eram eles próprios os administradores e acionistas da companhia espanhola. A recusa em aceitar a concessão da linha da Beira Baixa e a alteração dos estatutos, prendia-se assim com a necessidade de impedir o acesso à empresa de novos administradores, que pudessem querer impedir este estado coisas. Terminou, exortando a que a concessão fosse aceite e os estatutos modificados.051 No seguimento desta atuação e da discussão que se gerou, seria o próprio conde da Foz a submeter uma proposta pela qual se revogava o mandato do conselho de administração e se procedia à modificação dos estatutos, a qual devia incidir sobre os artigos 18º, 19º, 20º, 22º e 52º. Os protestos dos Sr. Pestel, não puderam impedir que as resoluções fossem aprovadas por unanimidade. O Conselho de Administração passava a ser composto por um mínimo de doze administradores portugueses, residentes em Portugal, o que lhes garantia a maioria. A sua nova composição foi: Conte Armand, Jean Baptiste Jaurreguillery, Paul Leroi Beaulieu, Albert Le Play, Charles Cotard, Edmond Bartissol, Mathieu Bodet, J. de la Bouillerie, Fortunato Chamiço Junior, Francisco de Oliveira Chamiço, Miguel de Ozoria Cabral de Castro, António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado, Carlos Ferreira de Santos Silva, Francisco Vanzeller, visconde de Macieira, Fernando Palha, Mariano Cirillo de Carvalho, Henrique Jorge Moser, Ernesto Driesel Schroter e conde da Foz.052 Após breve interregno, os irmãos Chamiço voltavam à direção da Companhia Real. Entre golpe de génio e episódio rocambolesco, estava assim consumada a passagem da principal companhia ferroviária portuguesa para o domínio do sindicato liderado por Foz.

050  Almeida Pinheiro seria um homem importante, na estratégia e atividade do grupo Foz. 051  Arquivo da CP, Lisboa, “Acta da Sessão da Assembleia-Geral de 13 de Setembro de 1884”, op. cit., pp. 172179. 052  Idem, pp. 181-187.

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1.4. O corte com o passado e a nova organização O novo conselho de administração tomou posse a 15 de Setembro de 1884. Era composto por 22 administradores, sendo 12 portugueses e 10 estrangeiros. Contudo, destes só ocuparam o cargo 13 dos administradores. Edmond Bartissol e Charles Cottard ficaram com a incumbência de tomar posse dos bens e documentos do comité de Paris, bem como de o organizar. No entanto a tarefa não se revelaria fácil e a nova direção ainda teria que se confrontar com inúmeros obstáculos, já que os membros do anterior comité de Paris recusaram reconhecer legitimidade ao novo conselho de administração e entregar os bens e documentação pertencentes à companhia, que se encontravam na sua posse. O incidente obrigou a recorrer à mediação da justiça francesa, que decretou um sequestro, ficando Hue encarregado do seu exercício. Seria Hue o autor do inventário geral dos bens na posse do comité, bem como de um detalhado relatório das suas atividades, do qual resultariam polémicas revelações. De facto, a análise documental revelou que o conselho de administração anterior se tinha dedicado com insistência a atividades de especulação financeira, ou expedientes no limite da legalidade. Havia casos de aplicações financeiras irregulares, tendo-se ainda descoberto que a concessão Lisboa a Torres Vedras e Sintra, na posse de Henry Burnay, não passava de uma manobra de fachada, destinada a contornar a decisão governamental de evitar que todos os acessos à cidade de Lisboa estivessem sob o mesmo concessionário. De facto, existia desde o início uma combinação, entre Burnay, Abraham de Camondo, Joubert e o marquês de Guadalmina, pela qual o troço pertencia realmente à companhia, tendo Burnay inclusivamente sido reembolsado de todas as despesas feitas com a concessão e estudos. Contudo, o dito acordo não parecia ser conhecido pelo conselho de administração, ou pelas autoridades, em Lisboa. Perante o relatório de Hue, Cottard e Bartissol acabariam por afirmar que as atividades do comité de Paris se assemelhavam mais às de um banco do que às de uma companhia de caminhos-de-ferro.053 Esta mesma ideia de que os antecessores se tinham dedicado à especulação à custa da companhia e a necessidade de marcar um corte com a administração passada, transparece de uma carta aparentemente incompleta, não endereçada, mas assinada pelo conde da Foz, sem que saibamos a quem era destinada: “negóciations mm. Le François, Pestel et Burnay de Lisbonne: ces mm ne voyaient la Compagnie des Chemins Portugais que comme une manière de faire ses affaires personnelles, et une vrai source de toute sorte de spéculations. 053  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 60-61.

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Je vous engage de venir nous voir en Lisbonne ou je vous montrerai des jolis bibelots, et ou vous trouverez un bien beau soleil. Agréez mr. L’assurance de ma considération la plus distinguée. Conte da Foz »054 Logo depois da polémica “assembleia-geral”, o Jornal do Comércio serviu de palco ao protesto dos administradores depostos, ao publicar o seguinte anúncio: “Os abaixo assinados, membros do conselho de administração da companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes, declaram formalmente e para todos os efeitos, que em vista das deliberações ilegalmente tomadas na reunião de accionistas de 13 de corrente mez, e da intervenção da autoridade administrativa, que os esbulhou da posse dos seus cargos, que legalmente exerciam, protestando contra esses actos, tomam, individual e solidariamente com todos os seus solegas de Lisboa, Paris e Madrid, que com eles fizeram parte das administrações d’aquella companhia, tanto das transactas como da que ultimamente foi expulsa, toda a responsabilidade pelos actos praticados pelas administrações de que respectivamente fizeram parte; mas declinam absolutamente toda e qualquer responsabilidade, desde o dia em que foram privados da posse e exercício de seus cargos. Lisboa, 21 de setembro de 1884. Carlos Ferreira dos Santos Silva António Pereira de Carvalho C. Z. Pinto Coelho Osborne J. Sampayo”055 Preocupação do novo conselho foi a sua legitimação. Para isso foi importante marco o reconhecimento governamental, obtido a 15 de Setembro de 1884. Num evidente gesto de apaziguamento das relações entre o Estado e a companhia, tensas nos tempos imediatamente anteriores à mudança da direção, o comissário régio interino, Viriato Luís Nogueira, passou a assistir às reuniões, o que aliás constituía uma sua prerrogativa. Simultaneamente, o governo nomeou uma comissão à qual encomendou um inquérito aos atos de gestão da companhia desde 1866, composta por João Crisóstomo de Abreu e Sousa, visconde de S. Januário, Henrique Barros Gomes, José Maria Borges, Luís Frederico de Bívar da Costa, Jaime Larcher, João Joaquim de Melo e Joaquim Pires de Sousa Gomes. A justificação apresentada para a iniciativa prendia-se com a 054  Centro Nacional de documentação Ferroviária, Arquivo da CP, Lisboa, caixa 16, pasta Correspondência recebida-enviada, dig. 029. 055  “Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes” in Jornal do Comércio, Lisboa, Nº 9248, 31 º ano, Terça-Feira, 23 de Setembro de 1884, pp. 4.

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importância que tinha o crédito das companhias, abalado pelas dúvidas que recentemente tinham sido levantadas pelas suspeitas despertadas pela anterior administração, convindo restaurar a confiança numa empresa de tão grande utilidade pública.056 Progressivamente, as resoluções da assembleia-geral do mês de Setembro de 1884, começavam a ser aceites, ao que não foi estranha também a enérgica campanha de imprensa conduzida por Mariano de Carvalho no Diário Popular, ao qual se opunha, entre outros, o Jornal do Comércio, próximo de Burnay e dos interesses que o escudavam, dos acionistas franceses e administradores afastados. A disputa foi debatida ponto a ponto, durante largo tempo. Dois extratos, um de cada periódico, ilustram a discussão sobre a validade da assembleia. Começando pelo Diário Popular de 23 de Setembro de 1884: “Deixámos os Benchimoes para o fim para ir cada qual no seo logar. Justo é tratar cada um conforme os seus méritos. Comecemos por dizer que estes venerandos cidadãos escreviam nos seguintes termos em 14 do corrente: As procurações apresentadas pelo sr. Pestel careciam de todos os requisitos que a lei marca para poderem ser considerados documentos autênticos. Colhido de surpresa, o sr. Pinto Coelho protestou contra a recusa de aceitar essas procurações, já porque o sr. Pestel ignorava a lei, já porque os acionistas francezes não tinham sido prevenidos do que em Portugal se reclamava para a validade das proculações, já porque enfim em outras assembléas geraes se tinham dispensado formalidades que ora eram exigidas. Fácil foi demonstrar que a violação da lei não é precedente que se invoque, e que portanto a assembléa querendo o exacto cumprimento da mesma lei, estava no seu direito –mais ainda: fazia com que a assembléa não podesse ser taxada de ilegal. Portanto não só a assembléa procedeu legalmente excluindo as procurações do sr. Pestel, mas, o que é mais, se procedesse de outro modo, seria uma assembléa ilegal.”057 A isto, responderia o Jornal do Comércio do dia seguinte: “Vem, pois, a propósito analysar as soluções que nas diversas hypotheses o assumpto póde ter, e quaes as suas consequências. A questão da assembléa geral divide-se em duas partes: a primeira com056  SALGUEIRO, Ângela Sofia García, op. cit., pp. 62. 057 In Diário Popular, Lisboa, Nº 6305, Terça-feira, 23 de Setembro de 1884, 19º ano, pp. 1-2.

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preende as resoluções tomadas sobre o objecto da convocação; a segunda diz respeito às deliberações votadas sobre matéria para a qual a assembléa não fora convocada. Quanto a esta última parte não há a menor dúvida de que o que se passou foi absolutamente ilegal, e, portanto, tem forçosamente de ser annullado. Emquanto o não fôr, a companhia não poderá celebrar com o governo o contrato da Beira Baixa, nem nenhum outro. D’isto está o próprio governo convencido, visto que, para não se comprometer, ordenou que o seu commissario régio não comparecesse nas sessões do novo conselho de administração até se resolver a pendencia. Quanto ao primeiro ponto, não é só a questão das procurações, que torna ilegal e nulla a assembléa de 13 de setembro; basta dizer que, pelo artigo 40º dos estatutos que diz: As deliberações serão tomadas por maioria de votos, contando os accionistas presentes e representados; o sr. Pestel tinha direito constante a 273 votos, emquanto que, para a eleição da mesa, a assembléa lhe admitiu apenas o seu voto pessoal. Ergo, a constituição da meza foi ilegal. E ilegal foi também a escolha do sr. visconde da Macieira para escrutinador, visto que, como representante de acionista, dispunha apenas de 20 votos, ao passo que o sr. Pestel reunia, na mesma qualidade de representante de accionistas, 273 votos. Portanto, quando mesmo as delegações ou procurações, como lhe quiserem chamar, não fossem válidas, o que não crêmos, em vista das abalisadas opiniões de advogados portuguezes, a ilegalidade da assembléa é manifesta, mesmo antes d’ella ter deliberado sobre o objecto da sua convocação, isto é, desde a sua origem. (…)”058 Ainda que a polémica prosseguisse e que ambos os periódicos recorressem posteriormente, a pareceres de jurisperitos, a verdade é que como vimos, o governo não levou muito tempo a reconhecer os resultados da assembleia e a enviar o seu representante às reuniões do conselho de administração. O outro momento chave para a legitimação e consolidação da nova etapa da Companhia Real, seria uma nova assembleia-geral extraordinária, que o conselho se apressou a organizar, aprazada para 28 de março de 1885. A sua realização foi preparada com enorme cuidado, tendo-se Enrique Moser e Fernando Palha deslocado a Londres e Paris, respetivamente, para supervisionar os depósitos de ações na casa Glyn Mills & C.ª e Crédit Foncier. Era necessário evitar qualquer possi058  “Lisboa 23 de Setembro; Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes” in Jornal do Comércio, Lisboa, Nº 9249, quarta-feira, 24 de Setembro de 1884, pp. 1

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bilidade de acusação de irregularidade, que pudesse resultar na anulação da assembleia. Os objetivos fundamentais, eram por um lado ratificar as deliberações da assembleia anterior; por outro lado, sendo essa desde o início uma das preocupações do grupo Foz, promover a conciliação entre os grupos desavindos, em disputa sobre o domínio da empresa.059 De facto, ainda que a administração estivesse nas mãos de um grupo em que predominavam portugueses, a circunstância não alterava o facto de que o seu capital e acionistas, eram fundamentalmente franceses e o financiamento era obtido em França. Mesmo que se encontrassem fontes de financiamento alternativas, como efetivamente se veio a fazer, a conciliação com o grupo derrotado em Setembro, que representava quem detinha a maior parte do capital da companhia e com considerável influência e capacidade de pressão sobre os mercados de procedência do financiamento, era vital. Havia, no entanto, quem duvidasse das possibilidades de êxito de qualquer tentativa de reaproximação e advertisse o conde da Foz, quanto aos perigos que encontraria se confiasse no grupo a quem tinha desferido tão vibrante golpe: tal era o caso de um informador de Foz em Madrid, G. Higuelmann pai, da agência de notícias La correspondence espagnole autographique, quando lhe escreveu em 20 de Novembro de 1884: “(…)Croyez vous la conciliation possible encore ? Je vous répète que, si elle se fait, elle ne se fera que contre vous, ces gens la n’oubliant que sous le talon de ses vainqueurs ; mais enfin, pour des motifs que j’ignore, elle peut vous paraitre indispensable. (…) »060 A mesma fonte procurou alertar, a 24 de Dezembro, que a realização de nova assembleia-geral extraordinária, era desejo simultâneo do grupo derrotado em Setembro, em que preponderava Camondo, disponibilizando de imediato os seus serviços para influenciar a imprensa, de maneira a atrair a simpatia da opinião pública: “(…) M. Camondo, par des moyens connus de moi, a obtenu que le Ministère de France et le Ministre d’Italie à Lisbonne exigent qu’une assemblée générale soit convoquée à bref délai après avoir officiellement protesté contre tout ce qui s’est fait le 19 Septembre. C’est textuel. Je viens de voir de mes yeux le texte auquel l’Espagne va adhérer, son ministre pouvant heureusement être retenu ici. Je soutien moi que si on voulait m’écouter cela pourrait être très bon pour 059  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 63. 060  Cf Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, cx 15, Fundo Marquês da Foz, (6 F - Fundos Particulares), Série 01 - Correspondência recebida, datas, 1884.11.20/1885.04.29, Assunto, Documentação diversa recebida pelo Marquês da Foz de G. Higuelman Pére, fl. 1

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vous ; mais il faudrait sans une seconde me mettre à même de devancer à Paris la publicité du faily et d’entraver tout ici où le dossier va être retenu. – dans tous les cas nous ferions donner journaux et cortes. (…) »061 A verdade é que apesar do ceticismo de Higuelmann, ambas as partes tinham consciência da necessidade e vantagens da conciliação e pareciam desejá-la. A 14 de Março de 1885, o conselho de administração recebeu missivas de dois grupos de acionistas opostos, que convergiam na defesa da urgência de que fosse encontrada a conciliação. Um deles era assinado por banqueiros estrangeiros, como Nissim, Abraham e Isaac de Camondo, Nissim Léon ou Jacques Alfasse. O outro era assinado pelo grupo português que tinha tomado a administração, como o visconde de Macieira, Mark Serny e Carlos Marcelo dos Santos, na qualidade de dorectores do banco Lusitano, o conde da Foz e Schindler, na qualidade de directores da Sociedade Agrícola e Financeira, Manuel José da Silva, Frederico Biester, José Iglesias, conde de Cabral, Carlos Maria Eugénio de Almeida e Mariano de Carvalho. A superação do problema e a necessidade de encontrar uma base de convergência, obrigavam à abertura suficiente, por parte dos dois grupos, para poder levar a bom termo uma negociação. Da assembleia-geral de 28 a 30 de Março de 1885, resultou um novo conselho de administração, composto de 30 elementos. Destes, 16 eram portugueses, ou domiciliados em Portugal e os restantes estrangeiros. João de Andrade Corvo foi nomeado presidente do conselho de administração, sendo vice-presidentes Mariano de Carvalho e António Maria Fontes Pereira de Melo Ganhado. Pedro Inácio Lopes ficaria no cargo de diretor da exploração e para administrador delegado do comité de Paris, foi nomeado Augustin Pestel. Pelo menos em teoria, os administradores estrangeiros recuperavam algum peso, o que justificava a permanência do comité de Paris e a criação de uma nova delegação em Madrid, agrupando os cinco administradores espanhóis. Em contrapartida, ratificou-se a aceitação da concessão da linha da Beira-Baixa, a subsequente modificação dos estatutos, bem como a resolução do problema da concessão do troço entre Lisboa, Torres Vedras e Sintra da linha do Oeste, que passaria para a posse da companhia.062 Mesmo o cético Higuelmann, cujo concurso, com o tempo, Foz acabaria por dispensar, considerou a assembleia como um sucesso: “(…) 061  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, cx. 15, Fundo Marquês da Foz (6F – Fundos particulares), Série 01, - Correspondência recebida, datas 1884.11.20/1885.04.29, Assunto, Documentação diversa recebida pelo Marquês da Foz de G. Higuelmann Pére, fl.2 062  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, Op. cit., pp. 63-64.

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Monsieur, Antérieurement à la dernière Assemblée générale de actionnaires de la Compagnie Royale des Chemins de fer Portugais, M. Van Zeller m’écrivit pour m’annoncer votre venue à Paris dans la mitaine pour causer avec moi de l’affaire du chemin de fer de Navalmoral à Mérida par Trujillo, ainsi que de ce qui allais se poser à Lisbonne. J’attendais vainement; et quand je connu le résultat de l’assemblé, je regrettais vivement de n’avoir pas pu vous tenir au courant de ce que je savais, ce qui vous eut facilité un triomphe complet et vous eut évité le ennuis qui vont résulter pour vous et vos amis des quelques concessions que vous avez cru devoir faire à M. Camondo. Ce fut néanmoins un triomphe, puisque le principe de la nationalisation de la compagnie à été voté par M. Camondo lui-même.»063 A escritura dos novos estatutos seria assinada por António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado, a 25 de Junho de 1885. Uma das atribuições do comité de Paris era a representação da companhia em todos os negócios a realizar em França, normalmente de carácter financeiro. Outra das atribuições dos administradores que a compunham, como membros de pleno direito do conselho, era a participação na administração da empresa, para o que o conselho de Lisboa se obrigava a consultá-los, relativamente às diferentes decisões. No entanto, como o conselho sediado em Lisboa tinha a maioria efetiva, foi para ele que se deslocou o centro de gravidade do poder decisório e com o tempo, deixaria até de dar conhecimento das suas opções ao comité de Paris. Apesar das conquistas obtidas na assembleia-geral de Março de 1885, o definitivo apaziguamento ainda custaria algum trabalho. Significativo, é que dois meses depois da assembleia, ainda o comité de Paris não se tinha reunido, o que motivou que Foz, Enrique Moser e Mariano de Carvalho se deslocassem à capital francesa, para regularizar a situação. A sua ação incidiu sobre a constituição do comité, assim como sobre a troca de impressões para a renegociação do oneroso contrato de garantia de juro com o Madrid a Cáceres e a Portugal, afinal, as duas bandeiras que justificam a intervenção na empresa. Este estado de indefinição do comité de París, está bem patente numa carta que o seu irmão, José, enviou a Foz, para Paris, dando conta do andamento de vários negócios. Sobre o comité francês, faz-lhe saber: “Tristão: Hoje 26 não veio pelo correio a acta prometida. Chegou uma comunicação 063  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, cx. 15, Fundo Marquês da Foz (6F – Fundos particulares), Série 01, - Correspondência recebida, datas 1884.11.20/1885.04.29, Assunto, Documentação diversa recebida pelo Marquês da Foz de G. Higuelmann Pére, fl. 6.

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de puro expediente que trazia como direcção Mrs. Administrateurs de la Cie. Royal e assinada l’administrateur – A. Pestel – Já vês conto serão boas as razões que nas minhas cartas dei, de não ter consultado o comité de Paris que ainda não sei oficialmente que se tenha constituído.”064 Marco da nova etapa da vida da Companhia Real, seria a preponderância de Foz, Mariano de Carvalho e Moser, em todo o período até 1891. A sua presença seria constante no conselho, (Mariano de Carvalho seria o único a ausentar-se, durante algum tempo, mas a atuação seria sempre de proximidade com a companhia), mantendo um enorme peso na assembleias-gerais, graças em parte às ações que detinham em nome pessoal, mas fundamentalmente àquelas que concentravam a título de representação. Uma nova assembleia-geral realizada em Agosto de 1885 elegeu um novo conselho de administração, que na prática era uma confirmação do já eleito anteriormente, na medida em que a generalidade dos membros integrantes transitava do anterior. Seria empossado a 5 desse mês.065 A 10 de Agosto, um dos membros desse conselho de administração e um dos aliados de Foz desde o início do processo de tomada da empresa o banqueiro Goguel, ainda enviou ao conde uma carta em que fazia considerações sobre alguns administradores, emitindo opinião sobre quem recomendava para presidente do comité de Paris: “Lundi 10 Aout Cher Monsierus Comte: Quoique nous devrons nous retrouver à 2 heures au Conseil, je tiens a vous dire dés ce matin que, tranquille à la campagne, j’ai réfléchi sur la compositions de notre conseil. Mr. Blount, comme Président conviendrait je crois parfaitement mais je n’en dirai pas autant de Mr. D. (…) bien que je trouve qu’il serait bon au conseil, aussi bien il ne me semble pas appelé à le présiderLaissons plutôt la chose en blanc si Mr. Blount n’accepte pas y voyons venir –N’avons nous pas Mr. P. W à l’horizon. Notez que je n’ai aucune prévention contre mr. D., comme administrateur ; tout au contraire : je suis avec lui dans de très bons rapports. Nous recauserons de cette Présidence à loisir, mas j’ai renu à vous écrire dès ce matin pour que, si possible vous ne preniez pas d’engagements. Bien à vous

064  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Marqu~es da Foz, Caixa 15, Fundo C. Marqu~es da Fioz (G.F. - Fundos Particulares), Série 01 - Correspondência recebida, Peça 11, Assunto: Correspondência recebida do irmão, fl. 1. 065  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op cit., pp. 65-66.

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C. Goguel »066 Embora o comité parisiense se mantivesse, a sua perda de protagonismo foi muito evidente e o próprio comportamento do conselho de Lisboa, relativamente aos colegas da delegação francesa, consistiria em os ignorar ostensivamente, nem os informando das decisões tomadas. A partir de 1885, os incidentes foram-se acumulando, até se traduzir na rutura definitiva e na demissão dos administradores franceses. O pretexto final para o corte, seria a decisão tomada em Lisboa de emprestar 10 milhões de francos ao governo, sem consultar o comité de Paris, que ao tomar conhecimento do facto consumado o considerou um grave erro estratégico e apresentou a demissão. Na sessão da reunião do conselho de 3 de Agosto de 1887, o próprio Foz consideraria que a queda do comité de Paris era normal e que a sua existência já não se justificava, constituindo um estorvo ao próprio desenvolvimento da empresa. Deste incidente resultou nova assembleia-geral, realizada a 10 de Setembro de 1887, na qual os comités estrangeiros se transformavam em delegações financeiras, se preencheram as vagas dos administradores demissionários, bem como se converteram as obrigações de 3% em novas obrigações de 4% e 5%. Ao mesmo tempo, aumentou-se o capital social para 50 milhões de francos, representados por 100.000 ações de 500 francos cada uma. A braços com um pesado programa de investimentos na rede interna, de expansão da rede que explorava em Espanha, por conta do MCP-Oeste e forçada a garantir o juro aos acionistas da companhia espanhola, eram cada vez mais evidentes as necessidades de emissão de obrigações da Companhia Real. Como a desproporção entre capital obrigacionista e acionarial, se estava a tornar demasiado grande, a empresa não teve alternativa senão aumentar o capital social, de maneira a poder continuar a recorrer ao crédito, (legalmente, o capital obrigacionistas não podia ser superior a uma determinada proporção, relativamente ao capital ações). Uma vez mais a organização das delegações financeiras de Paris e Berlim, ficaria a cargo de Foz e Moser. A delegação financeira de Paris, destinava-se à fiscalização das obrigações emitidas em França, dos títulos do MCP-Oeste, bem como das encomendas de material feitas em França. Ficava a cargo de Denfert Rocherau, integrando igualmente diretores do Crédit Lyonnais, do Crédit Industriel et Commercial e da casa Ephrussi & Cie. A delegação financeira de Berlim, tinha como principal atividade a fiscalização da emissão de obrigações na Alemanha, ficando sob a orientação de diretores do Bank für Handel & Industrie, da casa Mendeljsohn & Cª e Robert Warschaner & C.ª067 Não se pode no entanto deixar de referir, que houve um certo apaziguamento e aproximação entre os grandes acionistas desavindos da companhia. Aparentemente, o capital contornou o supérfluo para preservar o fundamental. Naquele momento, 066  Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Fundo Foz, caixa 16, pastaCorrespondência Recebida, M. M. Goguel & Cie, (Banqueiros), fl 17. 067  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 67-69.

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Foz apresentava-se em Portugal como uma via para as praças financeiras e centros industriais estrangeiros, representando igualmente para possíveis investidores estrangeiros, pela sua influência e conhecimento do mercado, como uma porta de entrada para o mercado português, que sendo pequeno, nem por isso era desprezável, principalmente numa etapa que se procedia a importantes obras públicas, como a construção de portos e caminhos-de-ferro. Assim, Abraham de Camondo, não deixou de colaborar estreitamente com Foz, por exemplo ao exercer influência sobre a imprensa, de maneira a favorecer a imagem da Companhia Real em França.068 Ainda mais interessante, não duvidou em oferecer a Foz cimentos e travessas, para os seus empreendimentos ferroviários, ou mesmo a solicitar-lhe que recebesse e orientasse nos seus contactos em Portugal Mr. Obled, o enviado da sua fábrica de cimentos, acabando por atribui-lhe uma comissão pelos cimentos que se vendessem no país e finalmente, até a representação em Portugal da sua fábrica cimenteira, como oportunamente veremos. O facto de ter aberto não só à Companhia Real, mas ao próprio Estado, alternativas financeiras aos tradicionais interlocutores em Paris, entre elas e pela primeira vez na praça de Berlim, conferiria ao conde da Foz, depressa transformado em marquês, um enorme prestígio. A necessidade de diversificação das relações financeiras da empresa, fez sentir com urgência na sequência da conflitualidade resultante da própria forma como o grupo português se apoderou da administração, levando à substituição de administradores que eram peças chave dos principais financiadores desde os primórdios da companhia. Os problemas ficaram bem patentes ao longo de 1885, na dificuldade em encontrar uma instituição bancária que aceitasse o depósito de ações para as assembleias-gerais. De facto, a empresa tinha-se desenvolvido numa grande dependência do mercado francês e dentro dele, do Crédit Indutriel et Commercial. Nesta nova etapa, o mercado francês continuaria a desempenhar um papel central na vida da Companhia Real e o Crédit Industriel et Commercial também não deixaria de estar presente, mas ver-se-ia relegado a 2º plano. Os parceiros privilegiados sob a administração Foz, seriam o Crédit Lyonnais e a casa Michel Ephrussi e Cª. Foi com a colaboração de Ephrussi que se fez uma emissão de 100.000 obrigações com juro de 4%, destinada a financiar a construção da linha de Cascais. Outro problema resultava porém da depreciação dos títulos em França, pela saturação desta praça em consequência dos regulares recursos ao crédito por parte da companhia portuguesa, traduzidos em vagas de emissão de obrigações. O inconveniente acentuou-se ainda, pelo extenso programa de expansão da rede empreendido 068  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Caixa 15, Fundo: Marquês da Foz (G. F. Fundos particulares), Série 01 - Correspondência recebida, Peça Nº 12, Datas 1886.01.22 -1888.06.15, Assunto: correspondência recebida de A. Camondo, fl. 7.

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entre 1885 e 1893, que requereu avultados empréstimos. Tal dificuldade reclamava o recurso a mercados alternativos, mas o de Londres estava fechado aos títulos portugueses. A solução consistiu então na viragem para Berlim, que até apresentava a vantagem de não requerer a garantia do Estado português para negociar a colocação das emissões obrigacionistas da Companhia Real. Estas operações foram realizadas através dos já referidos Bank für Handel & Industrie, de Darmstadt, pelas casas M. Mendeljsohn & C.ª, Robert Warschaner & C.ª e M. Merck & C.ª. Na Alemanha, a empresa faria duas grandes emissões financeiras, uma relacionada com a construção da linha da Beira Baixa, realizada em 1886, de 95.000 obrigações de 4,5%, ao preço unitário de 90$000 réis ou 400 marcos e uma segunda, já perante as dificuldades financeiras, em 1889, mantendo-se o juro nominal. Em Lisboa, também houve diversificação dos parceiros financeiros. Pela proximidade entre conselhos de administração, sendo inclusivamente vários dos administradores comuns e pelo protagonismo assumido em todo o processo de tomada da empresa, o Banco Lusitano desenvolveria relações privilegiadas com a Companhia Real. Contudo, esta instituição já se encontrava em má situação no momento em que o sindicato Foz tomou conta da companhia e a sua ação, consistiria mais em drenar capital desta em seu favor. Com efeito, em dificuldades, o banco via-se confrontado com a frequente necessidade de recorrer a empréstimos, que muitas vezes eram garantidos pela Companhia Real. Em 1889, com a própria companhia também já numa conjuntura financeira desfavorável, seria feita através do Lusitano uma emissão de 18.000 obrigações de 4,5%, adquiridas por um sindicato de bancos portugueses, liderado pelo Fonsecas, Santos & Viana. Outra opção de política financeira da Companhia Real para aumentar o seu capital, consistiu no recurso a operações financeiras como a compra de dívida pública, o empréstimo a governos e a aquisição de obrigações próprias. O investimento em dívida pública e os empréstimos a Estados, eram operações seguras e consideradas de bom rendimento. Logo em 1885, fez-se uma importante compra de dívida pública portuguesa, para o que se aplicaram parte dos fundos disponíveis em Lisboa, transferindo-se ainda somas avultadas de Paris, para os bancos de Portugal, Lisboa & Açores e Lusitano. Quanto aos empréstimos, no ano de 1886 fez-se um ao governo francês, de montante desconhecido e outro ao português, de 900:000$000 réis. Em 1887, voltaria a ser feito outro empréstimo ao governo português, agora de 10.000.000 de francos. A compra de obrigações próprias, destinava-se a fazer aumentar a cotação nos mercados internacionais, acumulando juros que podiam ser utlizados em novas aquisições, assim liquidando os encargos. É de destacar o protagonismo e envolvimento do marquês da Foz e de Henrique Jorge Moser, em todo o tipo de operações financeiras, nas negociações com casas bancárias nacionais, estrangeiras ou governos. Os seus contactos

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internacionais revelar-se-iam decisivos e conferir-lhes-iam inegável prestígio.069 1.5. A expansão da rede da Companhia Real O período em que o sindicato liderado pelo marquês da Foz dominou a Companhia Real, entre 1884 e 1891, corresponderia à segunda grande vaga de construção da rede ferroviária portuguesa. O grande arranque ferroviário nacional ocorreu entre 1860 e 1865; posteriormente, houve um período em que a construção do sistema ferroviário não foi interrompida, mas o seu ritmo decresceu, tendo a iniciativa cabido sobretudo ao Estado. A partir de 1877, até 1891, o ritmo de avanço das construções recrudesceu, voltando a contar com forte intervenção da iniciativa privada.070 Em 1885, a empresa explorava uma rede de cerca de 580 km, compreendendo as linhas do norte e leste, com os ramais de Cáceres e Coimbra. Em 1892, o sistema tinha alcançado os 1.023 km, tendo praticamente duplicado.071 Posteriormente a esta data, seriam já muito poucas as novas construções. Também característico desta etapa de construção da rede ferroviária portuguesa, seria a fórmula de participação do Estado no financiamento das novas linhas. No momento do grande arranque de construção da rede, a partir de 1860, (havia naturalmente, em Portugal, linhas construídas antes desta data, mas limitavam-se a pequenos troços, executados com grande esforço, a sua entrada em serviço marca o fim do período experimental) havia uma grande confiança nas possibilidades do caminhode-ferro como negócio, pelo que se optou pela subvenção quilométrica. Tratava-se de um subsídio à construção, já que o Estado pagava ao concessionário uma determinada importância, determinada no contrato, quando abriam à exploração certos troços. Contudo, a crise de 1865 demonstrou que se era indispensável à modernização do país, o caminho-de-ferro detinha escassas possibilidades como empreendimento comercial em Portugal, dada a falta de escala da economia interna. Por essa razão, ao iniciar-se esta segunda grande vaga de construção da rede, o Estado viu-se obrigado a recorrer à garantia de juro, para estimular a iniciativa privada. Esta era um subsídio à exploração, uma vez que o Estado garantia ao concessionário um certo rendimento mínimo anual, avançando ele próprio com a importância necessária para o alcançar, sempre que os resultados da exploração não o atingissem. A partir deste momento, quase todos os caminhos-de-ferro construídos em Portugal, beneficiaram de garantia de juro. Exceções foram a linha da Beira Alta, que por ser a grande via de comunicação internacional, contava com previsões de tráfego muito otimistas; ou as linhas próximas às duas gran069  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 84-87. 070  SANTOS, Luís António Lopes dos, op. cit., pp. 90-91 071  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 72-73.

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des cidades, Lisboa e Porto, que asseguravam um tráfego denso com características suburbanas, casos das linhas de Cascais, Lisboa a Torres Vedras e Sintra.072 Sob a administração de Foz, a rede da Companhia Real sofreria uma forte expansão, pondo em exploração as linhas de Lisboa a Torres Vedras e a Sintra, o troço da linha do Oeste entre Torres Vedras, Figueira da Foz e Alfarelos, a linha de Cascais, a linha da Beira Baixa, a linha de cintura, bem como a nova estação central e o túnel do Rossio. No caso concreto da linha do Oeste e do ramal de Sintra, a sua concessão já estava atribuída à Companhia, no momento em que o conselho de administração liderado por Foz tomou posse. Contudo, no quadro do crescimento de certa hostilidade relativamente a uma empresa que dominava um elemento de importância estratégica fundamental, o caminho-de-ferro, estando sob domínio estrangeiro, foi julgado perigoso do ponto de vista dos critérios da defesa, que o mesmo concessionário dominasse todos os acessos a Lisboa. Por essa razão, a concessão foi dividida em dois troços: um de Lisboa a Torres Vedras, com ramal de Cacém a Sintra, outorgado a Henry Burnay provisoriamente em 1881, sendo o contrato definitivo de 10 de Julho de 1882; outro, abrangendo o percurso restante, de Torres Vedras a Sintra, com ramal entre o Louriçal e Alfarelos, onde entronca na linha do norte, outorgado à Companhia Real. Na verdade, a concessão do troço de Lisboa a Torres e Sintra a Burnay, não foi mais do que um artifício para que a Companhia Real controlasse todo o percurso. A inspeção feita à documentação do comité de Paris, na sequência do “séquestre”, revelou a existência desde o primeiro momento, de um acordo entre Burnay e Abraham de Camondo, para que o negócio fosse feito em seu nome, permitindo à empresa apropriar-se de facto, de toda a linha. Os fundos necessários para obter a concessão, 200:000$000 réis, foram obtidos através de um sindicato informal, no qual Burnay detinha 30% do capital e Abraham de Camondo, Joubert e o marquês de Guadalmina, os restantes 70%. No entanto, segundo o próprio Camondo, a Companhia Real era a verdadeira proprietária desses 70%, uma vez que os signatários só davam a cara por ela. A 9 de Março de 1883, Burnay cederia a sua parte à companhia, pela importância de 400.000 francos, ou 72.000$000 réis, sem que o conselho de administração em Lisboa tivesse sequer chegado a saber do negócio.073 Para todos os efeitos, Burnay continuou a agir como se fosse o verdadeiro concessionário, tendo até chegado a instalar oficialmente uma sede em Lisboa, para construir e administrar a linha: “O sr. Henry Burnay arrendou o palácio do sr. conde de Avilez, às Necessidades, para ali estabelecer provisoriamente os escriptórios e repartições do 072  SANTOS, Luís António Lopes dos, op. cit., pp. 146-148. 073  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 76-77.

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caminho de ferro de Lisboa a Cintra. O arrendamento foi por 3 anos e pelo preço de 1.100$000 réis cada ano.”074 De facto, a posição de Burnay era cómoda e permitiu-lhe conduzir vantajosamente um longo e difícil processo de negociações, para que a concessão pudesse ser definitivamente trespassada para a companhia. De facto, embora existisse documentação que demonstrava os direitos da empresa à concessão, a combinação não podia ser revelada sob pena de que o contrato fosse considerado inválido, o que implicava a perda dos direitos sobre o troço, bem como de toda a despesa entretanto feita com a sua obtenção, estudos e o arranque da construção. O trespasse para a administração direta da Companhia Real, podia agora ser aceite pelo governo, na medida em que ao ser dominado por portugueses o conselho de administração, considerava-se que a posse da linha pela companhia deixava de ser problemática para a defesa do país. Burnay e Camondo souberam usar a situação para dela tirar proventos. Durante o processo, a Companhia Real ficou numa situação difícil, já que se viu a braços com as despesas de construção, entregues ao engenheiro Ravel, sem deter ainda a concessão nem sequer ter a garantia de a obter.075 O desconforto provocado pela singular situação, está bem patente numa carta de José Guedes de Queiroz ao seu irmão, o marquês da Foz, que mais uma vez se encontrava em Paris, em que expressa o desagrado pelo facto de Ravel pedir continuamente fundos à companhia sobre os quais esta não tinha qualquer controle, não prestando ele quaisquer contas: “(…) levantou-se hoje 70 contos que estavam em promissória no Comercial e lá os deixei ficar à ordem. Isto não deve ter incomodado o banco e serve para já um rateio no banco, satisfazer os duros pedidos do Ravel, que pelo visto, tem carta branca para levantar o dinheiro que quiser sem que nós possamos pedir-lhe contas. (…)”076 Noutra carta ao seu irmão, José Guedes de Queiroz volta a insistir no desagrado que lhe produz o problema: “Outra questão. Continuo a dar dinheiro a Ravel sem conta peso e medida? Ele não tem que me dar contas em que o emprega e pode quando quiser pedir 074  In O Diário Popular, Lisboa, Nº 6.034, Sexta-feira, 14 de Dezembro de 1883, 18º ano, pp. 2. 075  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 77. 076  Centro nacional de Documentação Ferroviária, Arquivo CP, Marquês da Foz, caixa 15, Fundo C. Marquês da Foz (G. F. - Fundos Particulares), Série 01 - Correspondência recebida, Peça 11, Assunto: Correspondência recebida do irmão, fl. 1

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para Torres ou qualquer outra cousa ou pessoa o dinheiro que entender, e isto a meu ver não pode, nem deve ser.”077 A decisão tomada pela companhia, de resolver esta questão, emanou da assembleia-geral efetuada a 30 de março de 1885. Nesta, Segismundo Moret fez a defesa de Burnay, negando a existência de qualquer acordo ou combinação relativo ao troço, o conselho de administração viu-se na conveniência de “reconhecer” ter sido assim, decidindo-se finalmente a executar o trespasse da concessão para a propriedade da empresa: “O Sr. Moret- (…) Portanto devo declarar em nome de todos os seus amigos, que tudo o que o Sr. Burnay fez, foi de perfeito acordo com os membros do antigo Conselho, os quais se tornaram solidários com os seus atos, como foi declarado em comissão, e o conformaria agora em nome dos administradores de Paris, o Sr. Conde de Camondo (sinais de adesão do Sr. Conde), e o confirma em nome dos de Lisboa e o Sr. Viana (sinais afirmativos do Sr. Viana). Cumpre-me igualmente declarar que o Sr. Burnay procedeu neste assunto com todo o desinteresse, e que entre ele e o antigo Conselho não existia nenhum contacto nem convénio dos que se lhe atribuíram.”078 De seguida apresenta-se a declaração que uma comissão de inquérito interna teve que ler, por forma a desbloquear as negociações: “Tendo-se discutido no seio da comissão escolhida pela assemleia-geral sobre os factos e publicações a respeito das dissidências levantadas entre os dois grupos de accionistas da Companhia-Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, foi declarado que em todas essas publicações haveria apenas intenção de apreciar factos sem ferir a honra e probidade de pessoa nenhuma; que por consequência é mutuamente retirada no fundo e na forma toda e qualquer frase que pudesse prestar-se a uma interpretação ofensiva ou injuriosa, ficando assim intacta a dignidade e a honra pessoal de todos; e que pelo mesmo motivo todo o processo de qualquer natureza que seja relativo a estas dissidências deve ser considerado fundo e como não intentado. Depois deste ponto importantíssimo que sana todas as contestações que até agora dividiam os Srs. Acionistas, a Comissão examinou as questões postas na ordem do dia pelo atual Conselho e sobre todas apresenta as resoluções 077  Idem, fl. 18. 078  Arquivo da CP, Lisboa, “Acta da Sessão da Assemleia-Geral de 30 de Março de 1885” in Actas da AssembleiaGeral da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, pp. 193.

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que tenho a honra de entregar ao Sr. Presidente.”079 Finalmente, a resolução: “2ª A assembleia geral autoriza o Conselho de Administração a aceitar por conta da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses o trespasse da concessão das linhas de Torres Vedras e Sintra logo que pelo governo seja concedida a necessária licença aos Srs. Henry Burnay e Cie. Concedida essa licença realizar-se-á regularmente o trespasse da concessão; a Companhia ficará em tudo e por tudo substituída aos primitivos concessionários e pagará Sr. Conde et. de Camondo as quantias por ele adiantadas para pagamento de despesas com essas linhas.”080 Um contrato provisório de trespasse da concessão, foi assinado a 9 de Setembro de 1885, cerca de seis meses depois do início das negociações, mas o problema só seria totalmente resolvido com o pagamento de 72.000$000 réis, a título de contribuição de registo, para que o governo pudesse considerar o contrato como definitivo. Incluído nesta concessão, estava um ramal de 10 km entre Torres Vedras e Merceana, denominado ramal de Merceana, mas não chegou a ser construído. O troço de Lisboa a Tores Vedras, com ramal de Cacém a Sintra, acabou por abrir em 1887, não contando com qualquer subsídio estatal.081 Mais simples foi a história do troço de Torres Vedras à Figueira da Foz e Alfarelos, concedido à Companhia Real a 23 de Novembro de 1883, com garantia de juro. A empreitada da sua construção foi entregue a Jean Baptiste Dauderni e Jean Alexis Duparchi, por um contrato de 15 de Setembro de 1885. A morte de Dauderni levou a que Edmond Bartissol avançasse para a sua substituição na sociedade com Duparchi, (a Duparchi & Bartissol). A construção foi contratada pelo preço de 21.864$000 réis por km, sendo o trajeto até à Figueira inaugurado em Maio de 1887 e o ramal até Alfarelos em Novembro de 1890.082 A linha da Beira-baixa revestiu enorme importância simbólica para a direção da Companhia Real liderada por Foz, na medida em que foi um dos pretextos fundamentais que justificaram a sua intervenção na empresa, (outro, foi a necessidade de a libertar do contrato com o MCP Oeste de Espanha.) Pela forma como decorreu todo o processo de tomada da companhia, a sua construção era uma necessidade inadiável. 079  Idem, pp. 194. 080  Idem, pp. 195-196. 081  SALGUEIRO, Ângela, Sofia Garcia, pp. 78-79. 082  Ibidem, pp. 79-80.

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Contudo, as perspetivas de negócio proporcionadas por este eixo, não eram animadoras, embora a sua construção fosse indispensável para o acesso e desenvolvimento da região do interior que servia. De facto, a história dos projetos relacionados com a construção de caminhos-deferro atravessando a Beira-Baixa era já muito antiga, remontando aos primórdios deste meio de transporte em Portugal. Por esta região, se planeou fazer passar a primeira linha construída em Portugal, destinada a ligar Lisboa e Madrid por Monfortinho. O projeto foi no entanto adiado, pela necessidade espanhola de aproveitar para a ligação a Lisboa, a linha que servia Badajoz.083 Não obstante, manteve-se o interesse na sua execução, chegando inclusivamente a ser classificada como via de interesse prioritário pela II comissão mista luso-espanhola, destinada a estudar as ligações internacionais. O plano seria truncado pela construção do ramal de Cáceres, destinado a atrair o tráfego dos fosfatos sobre o porto de Lisboa, o qual não tinha sido previsto inicialmente. Neste contexto, tornava-se supérfluo insistir num traçado internacional pela Beira-Baixa, invadindo a zona de influência do ramal de Cáceres, enquanto ficava uma larga região até à linha da Beira Alta, a norte, sem serviço ferroviário. Por esta razão, o trajeto foi reconvertido como linha de carácter interno. Estudado inicialmente por Sousa Brandão, dele não se esperava demasiado tráfego, antes lhe cabendo um papel de fomentar e induzir a criação de movimento, mais que a atrair o existente.084 O projeto definitivo foi estudado por Augusto Fuchini, sendo o definitivo contrato com o Estado assinado em 29 de Julho de 1885. A empreitada seria entregue a um grupo de banqueiros do Porto, de que faziam parte o visconde Barreiros, José Nogueira Pinto, Ricardo Pinto da Costa e Joaquim Lourenço Alves. O contrato provisório foi assinado em 21 de Novembro de 1885, o definitivo a 1 de Fevereiro de 1886. A empreitada era de três anos, com o preço de 29.925$000 réis por km. Por cada mês de atraso, o empreiteiro era penalizado com uma multa de 9.000$000 réis. Ricardo Pinto da Costa era um dos nomes ligados ao sindicato de Salamanca e viria a ser homem de certa importância na estratégia de Foz, como veremos posteriormente, no capítulo 4. Não terá sido casual a sua participação nesta empreitada. Quer para a companhia, quer para o empreiteiro, seria um obstáculo a dificuldade de fazer aprovar o traçado dos diferentes troços da linha pelo governo. O desígnio do concessionário em construir pelo custo mais baixo possível, chocava por vezes com o conceito governamental de salvaguardar o serviço público. O atraso inerente à aprovação dos projetos, refletiu-se na saúde financeira do empreiteiro, que era forçado a pagar pesadas multas pelo atraso. Neste contexto, a Companhia Real viu-se forçada a adiantar fundos ao empreiteiro, que nos finais de 1890 já tinham alcançado 083  SANTOS, Luís António Lopes dos, op. cit., pp. 100-101. 084  Ibidem, pp. 139-140.

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os 840.007$211 réis. A esta benevolência para com a empresa construtora, para além de necessidade de ver terminada com brevidade a obra, talvez não tenha sido estranha a colaboração de Ricardo Pinto da Costa com outros projetos do marquês da Foz e o seu grupo. As dificuldades do empreiteiro continuaram no entanto a avolumar-se, o que acabou por produzir uma cisão no conselho de administração. Se por um lado, os adiantamentos eram necessários para procurar garantir a rápida conclusão da obra, sem perder os subsídios estatais, por outro lado, havia indícios de que seriam insuficientes para evitar a falência do construtor e levar à conclusão do eixo. Para agravar o problema, a própria Companhia Real entraria em dificuldades ao aproximar-se o ano de 1890. A 20 de dezembro de 1890, utilizou-se o recurso a um convénio extraordinário, pelo qual a companhia voltava a fazer um empréstimo ao empreiteiro, em troca da sua responsabilização, mas os seus resultados foram nulos. Em março de 1891, seria necessário proceder à liquidação com a empresa construtora, assumindo a Companhia Real os trabalhos diretamente a partir de Abril, liderados pelo engenheiro Vasconcelos Porto e com a Companhia já em grave situação financeira. A linha seria concluída só em 1893, com atraso e grave derrapagem orçamental. Como previsto, os resultados da exploração foram pouco animadores, dependendo o equilíbrio da sua exploração, da garantia de juro do Estado.085 A concessão do ramal de Coimbra foi trespassado à Companhia Real por contrato de 23 de Novembro de 1883. Contava com subvenção quilométrica, pelo que a companhia o construiu, trespassando-o logo após à Companhia dos Caminhos-de-Ferro do Mondego.086 Ainda que independente, este concessionário era na realidade uma empresa da esfera da Companhia Real, que detinha parte do seu capital.087 De características inovadoras na evolução da política comercial ferroviária em Portugal, foi a construção do ramal de Cascais e da linha urbana, compreendendo a execução da nova estação central e do túnel do Rossio. Neste caso, a iniciativa foi claramente de Foz, cujas negociações levaram à obtenção da concessão a 9 de Abril de 1887. Foi ele quem alertou o conselho de administração para a utilidade de uma linha marginal do Tejo, cuja concessão estava na eminência de ser solicitada pelo empreiteiro das obras do porto de Lisboa. Tal iniciativa violava os direitos da empresa, na medida em que essa linha podia claramente ser considerada como um ramal da sua rede, cabendo-lhe a prioridade na obtenção da sua concessão.088 A empreitada foi divi085  SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, op. cit., pp. 74-76. 086  Ibidem, pp. 80. 087  SANTOS, Luís António Lopes dos, op. cit. pp. 280. 088  COSTA, L. de Mendonça e, “A história da iniciativa” in Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, Número comemorativo da inauguração da estação central do Rossio e linha urbana de Lisboa, Lisboa, Nº 60, 12º do 3. Ano, 11 de Junho de 1890, pp. 187.

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dida em duas secções, uma entre o caneiro da Alcântara e a Torre de Belém, que seria entregue a Hersent, pelo custo de 2:291:000$000 réis; outra agrupando a estação central e túnel do Rossio até Campolide, a secção de Campolide ao caneiro de Alcântara, bem como o troço entre a Torre de Belém e Cascais, seria entregue a Duparchy & Bartissol, com o custo de 2:800.000$000 réis. A construção do ramal de Cascais, pôs ainda na posse da companhia os terrenos de elevado valor que foram ganhos ao Tejo, ao longo do próprio processo de execução da linha. Desde o início prevista para intensos movimentos regulares de passageiros, a via seria duplicada rapidamente e as tarifas estudadas estavam abaixo das praticadas na maior parte da rede, o que se por um lado refletia o desejo de estimular movimentos intensos de passageiros, por outro lado também era consequência da concorrência do percurso paralelo do rio Tejo. As obras do ramal seriam concluídas com atraso, em 1894. Quanto à estação central do Rossio, um dos seus objetivos era proporcionar um acesso direto ao centro da cidade, o que não era possível com a situação excêntrica da estação de Santa Apolónia, sendo outro o de dotar a companhia com uma estação monumental, digna da sua importância, constituindo simultaneamente a sua sede, proporcionando o local para as reuniões do conselho de administração, concentrando ainda boa parte dos serviços de exploração. O túnel do Rossio foi inaugurado em 1889 e a estação central em 18 de maio de 1890. A estação e o túnel do Rossio, associadas ao ramal de Cascais, teriam um profundo impacto na evolução social e urbanística da vila piscatória.089 Foram a estação e o túnel do Rossio que proporcionaram a Foz a oportunidade de adquirir o palácio dos condes de Castelo Melhor, aos Restauradores, já que as duas obras ocupavam uma parte dos terrenos pertencentes ao edifício. A possibilidade de expropriação, criou condições muito favoráveis para negociar a compra de toda a propriedade, incluindo o palácio. Como a edificação da estação e do túnel, não requeriam mais do que uma parcela do terreno, criaram-se as condições para que Foz pudesse comprar o palácio, que se tornaria a sua casa em Lisboa, hoje conhecido por palácio Foz. Liderado pelo marquês da Foz, o projeto da Companhia Real de erigir a linha para Cascais, valeu a Mariano de Carvalho, então ministro da Fazenda, a acusação de proteger a empresa, apodada de “Estado dentro do Estado”.090 Ainda que o projeto de construção da estação gerasse certa consensualidade e não houvesse grandes dúvidas quanto à sua utilidade, o alto custo da obra produziu certa apreensão entre o conselho fiscal, como mais uma vez nos revela uma carta enviada ao marquês da Foz, que se encontrava em Paris, pelo seu irmão, José:

089  SALGUEIRO, Ângela, Sofia Garcia, op. cit., pp. 80-82. 090  FERNANDES, Paulo Jorge, op. cit., pp. 282.

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“(…) –Agora, a história do conselho fiscal, contada pelo Centeno: é ele que fala: O Figueiredo perguntou em sessão do conselho fiscal o que se tinha passado nas sessões do conselho de administração, disse que se tinha tratado do túnel e da estação central e que o conselho de administração tinha lido e apreciado o relatório do Espregueira, e que por fim e muito bem, tinha resolvido dar 250 contos para termos uma estação de 1ª ordem, etc… etc., mas, que era opinião dele Figueiredo que tudo estava bem, e que o conselho não precisava ocupar-se deste negócio que já era findo; a isto redarguiu o Jorge Gabriel, que o conselho fiscal tinha direito de tudo saber, e apoiado pelo Mendes da Silva requereram que o Jorge solicitasse e obtivesse o relatório do Espregueira e mais esclarecimentos sobre o assunto, o que o Jardim fez – Ora isto que acima fica foi o que o Centeno me disse pois eu não estava lá – Eu já em tempos te disse que este modo de proceder era mau, e nada me estranha, que pois o Jorge Gabriel ficou encarregado de dar parecer sobre esta questão: talvez isto nada dê mas não é bom sintoma…”091 A construção do túnel também apresentou diversas dificuldades técnicas, como danos nos edifícios situados nas suas proximidades ou possibilidade de que ocorressem, pondo a necessidade de evacuação dos seus ocupantes, assim como instabilidade de alguns dos terrenos atravessados, tudo com os inerentes e desagradáveis custos para a empresa. Dessas vicissitudes, também nos dão notícia as cartas de José Guedes de Queiroz Correia e Castelo Branco, ao seu irmão Tristão, marquês da Foz: “Continuam as intimações da câmara municipal aos moradores dos prédios, que estão perto ou sobre o túnel a que saiam; e isto não é só dos que estão fendidos e danificados, mas até dos que estão bons, e que nunca estarão maus em consequência do túnel. Eu tenho pago para não fazer questão com o Fernando, e porque as quantias são pequenas mas é preciso pôr cobro a isto. Apareceu também no túnel um banco de areia fluida, isto é, uma areia finíssima que é difícil sustentar e por causa da grande extensão pode prejudicar o equilíbrio e ofender as casas que estão em cima, mas isto está sendo muito cuidado e tendo-se recomendado ao Porto toda a cautela e segredo sobre isto, pois não é preciso fazer alardes inúteis. Enfim, eu cá estou, e não levanto mão deste negócio.”092 091  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Marquês da Foz, caixa 15, Fundo C. Marquês da Foz (G. F. -Fundos Particulares), Série 01 - Correspondência recebida, peça 11, Assunto: Correspondência recebida do irmão, fl. 11. 092  Idem, fl. 12

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Importante elo necessário à otimização da nova estação central de Lisboa, era a sua ligação com as linhas do Leste e Norte. Essa função caberia ao ramal de Santa Apolónia a Benfica, uma linha de cintura urbana, cuja necessidade já tinha sido apresentada numa proposta da Junta Consultiva de Obras Públicas. A sua execução encaixava perfeitamente no movimento expansionista e hegemónico da Companhia Real, bem como no realçar do protagonismo da estação central, garantindo ainda a interconexão de toda a rede em Lisboa, já que se tratava da ligação das linhas do Leste e Norte, com as do Oeste e ramais de Sintra e Cascais. O projeto seria realizado pelo engenheiro Ressano Garcia, que dirigiria igualmente as obras. A aprovação seria obtida por alvará régio de 7 de Julho de 1886. O orçamento foi calculado em 78:000$1888 réis, tendo-se optado desde o início pela instalação da via dupla. Na expectativa de moderar os custos de construção, abriram-se concursos públicos para os diversos troços do ramal. Se bem que as obras andassem rapidamente, abrindo-se o trajeto em 1888, ocorreu considerável derrapagem financeira, já que em 1889 o valor gasto alcançava 383:289$887.093 A estação central do Rossio construiu-se para concentrar em si todo o tráfego de passageiros e mercadorias da grande velocidade, da Companhia Real, com origem e destino em Lisboa, inclusivamente o de longo curso, fosse ele internacional ou interno. Mas principalmente, estação, túnel e ramais de Cascais e Sintra articulavam-se num plano de transportes com características inovadoras em Portugal, abrangendo não só aspetos de estratégia ferroviária, mas também urbanísticos. O objetivo perseguido, ao ligar diretamente o centro de Lisboa, onde se concentrava o grosso da atividade económica com a periferia da cidade, era criar zonas suburbanas onde as classes trabalhadoras pudessem encontrar habitação mais barata e em melhores condições. Os fortes movimentos pendulares de carácter suburbano podiam alimentar o tráfego ferroviário, à semelhança do que se passava nos centros urbanos de vários países, enquanto a urbanização das zonas periféricas criava oportunidades de negócio, quer pela valorização dos terrenos, quer pela própria atividade de construção que podia ser desencadeada por essa nova ocupação.094 Porém, não era só com as classes trabalhadores que se contava para este plano, já que se esperava converter a zona do Estoril e Cascais numa estância de lazer de luxo, destinada às classes endinheiradas. Existiam já planos, para construir uma infraestrutura balnear propriedade de Carlos Ferreira dos Anjos, incluindo um hotel, um ascensor entre este edifício e a estação do caminho-de-ferro, que daria serviço igualmente às casas de veraneio da zona. Incluíam-se ainda projetos para erigir um complexo de banhos quentes e frios, quiosques, lojas, venda de terrenos para construções luxuosas ou mesmo construí-las para 093  SALGUEIRO, Ãngela, Sofia garcia, op. cit., pp. 80. 094  COSTA, L. de Mendonça e, op. cit., pp. 186-187.

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venda, lagos, jardins, parques, carreiras de tiro e jogos ao ar livre, tudo com iluminação elétrica. Para realizar este ambicioso plano de urbanização de luxo, acabou por se constituir uma empresa intitulada Companhia do Monte Estoril, com capital de 225 contos, subscrito entre outros, pelo marquês da Foz, Henrique Moser e o conde de Valenças. Mariano de Carvalho, um dos grandes promotores do projeto e apreciador da zona, era o presidente da assembleia-geral.095 O texto que a seguir reproduzimos, não deixa dúvidas quanto à importância da liderança e protagonismo de Foz, neste período: “Façamos história; é para ela, para que no futuro se não perca o registro de a quem pertence a ideia de dotar Lisboa com uma estação que centralize o movimento de todas as linhas que irradiam da capital, que vamos aqui referir, como tal iniciativa nasceu, como se avolumaram a ideia e o desejo de a ver realizada, enquanto que noutros artigos, penas mais autorizadas descrevem, sob diversos aspectos, o edifício, os seus anexos, os serviços a que se destinam, a construção, etc. Desde que o sr. marquês da Foz, entrando para o conselho de administração da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, começou a tomar parte activa nessa indústria, na sua mente germinava o desejo de desenvolver no nosso pais esse enorme movimento de passageiros, entre o centro da cidade e seus subúrbios, que, em Paris, Viena, Londres, Liverpool, Berlim, Bruxelas, etc., é importante elemento de tráfego das linhas férreas, ao mesmo tempo que um factor poderosíssimo para o bem estar dos habitantes dessas cidades. (…) O facto de S. Ex.ª, pouco depois, entrar em negociações com os herdeiros do falecido marquês de castelo Melhor, por intermédio do tutor das menores, o Sr. Campos de Andrade, para a aquisição do palácio daquelas menores, na Avenida, decidiu a questão para este lado, porque foi do alto do jardim daquela casa que o sr. marquês, abraçando com a vista o terreno, se afirmou mais de que a ideia de estabelecer ali uma estação central seria realizável. (…) Esta última parte da concessão está realizada por completo: - a linha Urbana e a estação central de Lisboa são inauguradas em 11 de Junho de 1890 e começam a prestar ao público os seus serviços, que não podem deixar de ser 095  FERNANDES, Paulo Jorge, op. cit., pp. 297.298.

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importantes, e todos os elementos de apreciação, que os exemplos de outros países nos fornecem, nos provam que não virá longe o tempo, em que se reconheça o grandioso serviço, que essa linha vai prestar, a transformação que operará no nosso meio económico, no viver das diferentes camadas sociais, e para quando então se reconhecer o benéfico influxo de um terminus das linhas portuguesas no centro da capital, pondo os passageiros em fácil relação com toda a rede europeia, bom será que aqui fique inscrito que tão grande melhoramento se deve ao génio empreendedor, ao espírito inventivo e esclarecido so Sr. marquês da Foz. (…)”096 Na mesma publicação, o próprio marquês da Foz não hesitaria em assumir o mérito e o protagonismo da sua direção da Companhia Real. Sem nunca ter chegado a presidir o conselho, era ele quem efetivamente conduzia os destinos da empresa: “Lisboa, 18 de maio de 1890 Meu prezado amigo, (director da Gazeta) Perdoe-me se o contrario, não lhe relatando miudamente tudo quanto se passou para que a construção da linha urbana e da estação central de Lisboa fosse levada a efeito, e o papel que tive de desempenhar na iniciativa desse melhoramento, com que vai ser dotada a cidade de Lisboa; os documentos oficiais existentes na Companhia Real podem instruir a V. mais sobre o assunto, do que eu o faria por uma carta, privado, como me reconheço, de todos os dotes de escritor. Agradeço-lhe todas as frases amáveis que me dirige, e o que posso assegurar-lhe é que assumo todo o entusiasmo, a responsabilidade moral de ter siso o iniciador da obra, a que V. se refere; sei que sofre ainda hoje muita crítica; o futuro, e espero que não longínquo, fará justiça ao que se assina com muita estima. De V. etc., Marquês da Foz”097 O projeto da Companhia do Monte Estoril, não viria a ser concretizado. A rede da Companhia Real atingia por esta altura, a sua forma praticamente definitiva, tendo crescido de forma mínima, posteriormente. No exato momento em que a administra096  COSTA, L. de Mendonça e, op. cit., pp. 186-187. 097  FOZ, Marquês, “A iniciativa” in Gazeta dos Caminhos-de-Ferro de Portugal e Hespanha; Número comemorativo da inauguração da estação central do Rossio e linha urbana de Lisboa, Nº 60, 12º do 3º ano, 11 de Junho de 1890, pp. 177-178.

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ção liderada por Foz celebrava a sua glória, os problemas já se avolumavam: apesar dos bons resultados da exploração, o esforço financeiro de expansão da rede, conjugado com a obrigatoriedade de garantir o juro à companhia espanhola de Madrid a Cáceres e Portugal e do Oeste de Espanha, provaria ser demasiado pesado para a empresa. Sobre a tentativa conduzida por Foz de se libertar do lastro do MCP-Oeste e das dificuldades financeiras que se avizinhavam, falaremos em capítulos posteriores.

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CAPÍTULO II A Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro A obtenção das concessões das linhas de via estreita de Foz-Tua a Mirandela e de Santa Comba Dão a Viseu, assim como a fundação da empresa que havia de as construir e explorar, a Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, insere-se no movimento de grande expansão da rede ferroviária portuguesa, ocorrido entre 1877 e 1891. Contudo, muitas são as diferenças entre a atuação de Foz e do seu grupo no âmbito desta empresa e da Companhia Real, previamente analisada. Em primeiro lugar, a Companhia Real já era o mais antigo e mais solidamente implantado concessionário ferroviário português, até a maior empresa nacional, no momento em que o grupo Foz tomou conta da condução os seus destinos. Pelo contrário, relativamente à Companhia Nacional e suas concessões, é a atividade de Foz que está na génese da empresa. Outra diferença, resulta de que enquanto a Companhia Real era para todos os efeitos uma empresa francesa, por ser francês a maioria do seu capital, a Nacional era uma empresa de capital português, sendo até de origem fundamentalmente interna o seu financiamento. A construção de caminhos-de-ferro secundários, com juro garantido pelo Estado, foi campo de atuação deixado à iniciativa interna: por um lado, a sua menor extensão e grau de exigência económica, fazia com que coubessem mais facilmente nas possibilidades de atuação dos grupos financeiros nacionais; por outro lado, após terem investido nas linhas mais importantes, sem que os rendimentos fossem animadores, os grandes grupos internacionais sentiam-se pouco estimulados a apostar em linhas secundárias em Portugal, cujos resultados seriam inferiores aos das principais, quando tinham alternativas mais sedutoras para aplicação do seu capital, noutros países. As condições dos concursos de concessão das linhas de Foz-Tua a Mirandela e de Santa Comba Dão a Viseu, foram decalcadas das que se tinham estabelecido para

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o caminho-de-ferro da Beira Baixa, resultando da aplicação da lei de 26 de Abril de 1883 e dos decretos de 2 e 30 de Agosto e de 22 de Setembro do mesmo ano. À semelhança do que se havia passado com o concurso para a linha da Beira Baixa, a redação pouco clara do artigo 26º, que se ocupava da garantia de juro, com repercussão nas cláusulas de indemnização em caso de resgate antecipado, fez com que não se apresentassem candidaturas ao primeiro concurso destinado ao ramal de Viseu. Um decreto de 21 de Novembro de 1883, clarificou o detalhe e abriu novo concurso. A adjudicação foi feita a Henry Burnay e C.ª, com o preço quilométrico de 22.885$000 réis. Um contrato provisório seria assinado em 24 de Dezembro de 1883. Quando ao eixo de Foz-Tua a Mirandela, o concurso foi aberto a 22 de Setembro de 1883, mas a questão da garantia de juro e da indemnização a pagar em caso de resgate, foi regulada pelo decreto de 22 de Novembro do mesmo ano. Quer neste caso, quer no do ramal de Viseu, a legislação passou a garantir que em caso de resgate antecipado, em caso algum a indemnização a pagar ao concessionário, podia ser inferior ao rendimento mínimo contratado com o Estado. Apareceram então três concorrentes, tendo a adjudicação sido feita ao ainda conde da Foz. O contrato provisório foi assinado a 24 de Dezembro de 1883.098 Por ocasião da discussão feita nas câmaras, para que passassem a definitivos os contratos provisórios, a já analisada proposta de aditamento defendida por Mariano de Carvalho, que levaria à alteração dos estatutos da Companhia Real, também abrangeria estas duas linhas, uma vez que o texto do seu primeiro parágrafo propunha: “(…) O sr. Mariano de Carvalho mandou para a mesa o seguinte aditamento: 1º O governo não permitirá a concessão da linha de Mirandella ou do ramal de Viseu, a companhia ou sociedade em cujos estatutos não se inclua expressamente a cláusula de ser composta de cidadãos portuguezes ou domiciliados em Portugal a maioria da sua direcção ou conselho de administração. (…)”099 O contrato definitivo de concessão da linha de Mirandela ao conde da Foz, foi assinado em 30 de Junho de 1884. Não foi possível encontrar documentação, sobre quais as razões que terão levado Burnay a prescindir da concessão da linha de Viseu, nem quais as condições do seu trespasse. A verdade, é que seria feito um contrato de concessão definitivo a quatro membros do grupo Foz, a 29 de Junho de 1885. A construção da linha do Tua começaria ainda antes da sua integração na Companhia 098  Arquivo da CP, Lisboa, “Secretaria da câmara dos senhores deputados” in Diário do Governo, Lisboa, Nº 35, 13 de Fevereiro de 1884, pp. 375. 099  “Boletim parlamentar” in Diário Popular, Lisboa, Nº 6179, Quarta-feira, 14 de Maio de 1884, ano 19, pp. 1.

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Nacional, tendo as duas empreitadas sido ainda contratadas pelos concessionários originais. O trespasse das duas concessões à Companhia Nacional de Caminho de Ferro, criada com o objetivo de construir e explorar os dois eixos, aconteceu em Outubro de 1885.100 Há alguns pontos obscuros quanto aos primeiros tempos da empresa, mas o negócio evoluiu em coordenação com os contactos internacionais. Independentemente de que as fontes de financiamento tivessem sido fundamentalmente internas, chegou-se a encarar a possibilidade de colocar obrigações no estrangeiro e de qualquer modo, quer o material para a infraestrutura, quer o móvel, não se fabricavam em Portugal e tinham que ser importados. Esta carta demonstra que o negócio da linha do Tua não só era objeto de preocupações, como envolvia os habituais parceiros do sindicato liderado pelo marquês da Foz. A carta seguinte é-lhe enviada para Paris, onde mais uma vez se encontrava, fazendo o ponto da situação relativo aos contactos, não sendo claro quem a assina: “Meu caro Tristão: Só agora recebo uma carta do Moser, pela mão do Seixas em que me diz que o negócio de Mirandella urge, e que elle vai para Paris, para onde convinha que eu mandasse o nosso homem de Francfort, tratar com vocês.A última carta de Francfort que eu mostrei ao Moser era do dia 6 do corrente e pedia mais informações, que o Moser prometteu dar-me d’ahi a um ou dois dias. – Esperei, telefonei, escrevi e insisti, mas afinal nada me disserão – e o nosso homem de Francfort à espera! Emfim à vista do pedido que elle me faz agora, lá telegrafei para Francfort, mas não respondo pelo resultado, porque bem vês que quem pede é que deve hir. – Tenho pena que ao menos não lhe tivesse (…) mandado as informações que elle pediu porque assim já elle poderia ajuizar do negócio. – Disserão-me hontem que tinhas já estado em Londres, o que se terá por lá passado? Saudades de todosVi hontem os teus na quermesse e estão bem mas saudosos. –”101 Outra carta, enviada pelo financeiro francês Ellicott, a 8 de Fevereiro de 1884, mostra que ele estava em negociações para se encarregar da empreitada e do forne100  “A Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro e os seus obrigacionistas” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 86, ano 4º, 16 de Julho de 1891, pp. 214. 101  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 14, Pasta Correspondência particular diversa recebida pelo Marquês da Foz, fl.14

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cimento do material circulante destinado à linha, tendo até conseguido a preferência de Foz, em caso de igualdade de condições da sua proposta: “(…) Nous avons déjá en train des fournitures de matériel de chemin de fer pour l’Espagne – et nous comptons sur la préférence que vous avez bien voulu me promettre pour le matériel de Tua- Mirandela. Nous nous préparons aussi pour prendre à forfait la construction des 54 kilometroes dont vous avez la concession. Mais tous dépendra de l’éxamen du projet définitif et de son devis. La note qui m’a été remise par M. Pinheiro indique une masse (…) a ajouté encore que le gouvernement exigerait une section pour les tunnels comme pour la voie large ! Je vous prie, de bien vouloir demander à M. Pinheiro de me faire préparer une petite note, où la question des excavations et celle de la maçonnerie sera précisée d’avantage – en indiquant dans chaque cas le prix élémentaire du devis. Il faut encore que nous sachons d’une façon précise ce que vous entendez donner à forfait pour un prix de-. Vous m’obligeriez en m’envoyant un résumé du devis, indiquant au moins les totaux par chapitres. (…) »102 A 11 de Setembro, Ellicott insistia no tema: “(…) Mon cher Conte, (…) Je viens aujourdhui vous demander des nouvelles de votre entreprise du Tua-Mirandella. Les études définitives sont elles terminées ? Estes-vous disposé à traiter avec nous pour la construction de la ligne ? Comment pensez-vous régler les questions financières inhérentes à cette affaire ? Nous avons besoin d’être fixés la dessous afin de pouvoir de notre coté, renseigner en connaissance de cause nos amis les entrepreneurs généraux à qui nous avons parlé de cette entreprise. Il faudrait que nous puissions savoir d’avance si oui ou non nous devrons envoyer sur place l’ingénieur qui doit déterminer le prix de revient de la ligne. Quant au material roulant, vous savez que depuis longtemps des propositions complétes se trouvent entre les mains de votre ingénieur M. Almeida Pinheiro. 102  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 15, Pasta Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 9

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Ainsi, je vous serai très obligé de nous écrire le plus vite que cela vous será possible, afin de nous fixer sur la conduite que nous devons tenir. En attendant de vos nouvelles, croyez, mon cher conte à mes sentiments dévouées. Ellicott »103 Almeida Pinheiro, a quem se alude na carta, era um engenheiro suíço que já havia dirigido as obras da linha do Douro. Era um técnico a quem Foz sistematicamente recorria para questões ferroviárias, sendo já da sua autoria alguns estudos sobre a linha da Beira Baixa e do Sul, da qual o marquês também seria empreiteiro. Estava envolvido no projeto da linha do Tua e viria a ser o diretor-geral da Companhia Nacional. Uma carta previamente enviada por Foz a Ellicott, no mês de Março do mesmo ano, informa-nos de que ele tinha dado a Ellicott, com quem se associara para diversos negócios financeiros, de minas e empreitadas, a preferência na concessão da empreitada e fornecimento do material necessário à construção da linha do Tua.104 Foz também estudou com Ellicott e o seu sócio, Pfeiffel, a possibilidade de recorrer ao crédito em França, através de uma emissão de obrigações, para o empreendimento do Tua. Este advertiu-o, no entanto, de que a emissão era de pequena escala, pelo que os custos de publicidade, que eram fixos, absorveriam boa parte do valor que podia ser obtido; por outro lado, a cotação dos títulos portugueses também não era brilhante. A título de comparação, até indicava o caso de uma recente emissão de 18.960 títulos de 5% com garantia do Estado brasileiro, que tinham alcançado o valor de 415 francos, mas como a garantia do Estado português, informava, era claramente inferior à do brasileiro, acreditava que uma possível colocação de títulos da companhia em França, não podia ultrapassar no máximo, a cotação de 410 francos.105 Foz ainda insistiu no preço de 430 francos por obrigação, mas diligências de Ellicott informaram que o máximo que podia obter em Paris ou Londres, era efetivamente 410 francos.106 Sabemos pelos relatórios apresentados pelo conselho de administração à assembleia-geral da Companhia Nacional, que as condições da possível emissão obrigacionista no estrangeiro, não devem ter sido consideradas satisfatórias, visto que se

103  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta –Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 24 104  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta- Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 17. 105  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, caixa 82, Pasta – Companhia Espanhola; Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, fl. 5. 106  Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 82, Pasta – Companhia Nacional; Listagem de acionistas, dig. 003.

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optou por fazer uma emissão no mercado interno, de 12.300 títulos.107 A empreitada de construção de linha do Tua, acabaria por ser entregue aos empreiteiros espanhóis Liort e Villagelia. Não é possível saber, a partir da documentação analisada, se estes seriam os empreiteiros em contacto com Ellicott e Pfeifel, ou até que ponto se terão concretizado os contratos de fornecimento de material fixo e móvel, com o financeiro francês. O material foi naturalmente importado, Ellicott tinha a vantagem de contar com a preferência, em igualdade de condições com outro concorrente e eram numerosos os negócios que mantinha à época com Foz. É possível que tenha obtido os contratos, mas sabemos que contou com concorrência: o engenheiro francês Paul Sévérac, apresentou uma proposta para fornecimento de material de via, armamento das estações e montagem do telégrafo.108 Quando a Companhia Nacional foi criada e as duas concessões finalmente trespassadas para a sua posse, já em 1885, a linha do Tua já se encontrava em construção, estando os trabalhos da do Dão prestes a iniciar-se. Entre os membros dos seus conselhos de administração, fiscal e direção-geral, voltamos a encontrar muitos dos nomes familiares dos negócios à volta de Foz. O Presidente era o próprio Marquês da Foz, o vice-presidente o visconde de Moreira de Rey. Entre os administradores estavam Alfredo Ribeiro, Eduardo Segurado, Henrique Matheus dos Santos, conselheiro Júlio Marques de Vilhena, António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado, (que era simultaneamente administrador da Companhia Real), Arnaldo Navarro e o diretor-geral era António Xavier d’Almeida Pinheiro. O conselho fiscal seria composto por António Francisco da Costa Lima e Adrião de Seixas, (este tinha sido um dos juristas que tinham defendido a posição do grupo Foz na Companhia Real, nas páginas do Diário Popular).109 Os 54 km da linha de Mirandela foram adjudicados por 19.700$000 réis por km. Por seu lado, a linha de Viseu, que contava inicialmente com 48 km, seria adjudicada pelo valor de 23.000$000 réis por km. O contrato de empreitada geral, foi feito por 11.000$000 réis por km para Mirandela e por 10.000$000 réis por km para Viseu110 Avaliando estes elementos, salta à vista o paradoxo de a linha do Tua, que encerrava dificuldades de construção consideráveis, ter sido adjudicada por um valor mais baixo do que a do Dão, cujo grau de dificuldade de construção, era claramente inferior. Não se pôde identificar o empreiteiro da linha de Viseu, mas sabemos que em Maio de 1885 107  Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro; Relatório do Conselho de Administração e parecer do Conselho Fiscal apresentado à assembleia-geral ordinária de 30 de Abril de 1887, Lisboa, 1887, pp. 3. 108  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 82, Pasta Companhia espanhola; Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, dig. 007 109  Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro; Relatório do Conselho de Administração e parecer do Conselho Fiscal apresentados à assembleia geral ordinária de 30 de Abril de 1887, Lisboa, 1887, pp. 4-7. 110  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, caixa 82, Pasta- Companhia espanhola; Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, dig. 03

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houve sondagens de Arnaldo Oliveira, para saber quais eram as condições e determinar se lhe interessava a execução do trabalho.111 Desde os primórdios, contava-se com importantes prolongamentos da rede, existindo inclusivamente cálculos executados pelo marquês da Foz, para levar a linha de Mirandela, posteriormente, a Bragança.112 Este troço foi efetivamente construído, mas já no século XX e fora da administração de Foz. A realidade dos primeiros anos da Companhia Nacional seria bem diferente e difícil. Os problemas começaram logo ao princípio. Entre a informação disponível sobre a construção das duas linhas, foi possível localizar uma lista das despesas efetuadas entre Abril de 1884 e Junho de 1885, assinada por Almeida Pinheiro e o chefe da contabilidade, Emygdio da Silva. Não aparecem, infelizmente, descriminadas as despsas correspondentes a uma ou outra linha, mas como os trabalhos no vale do Dão deviam ter começado há pouco tempo, é legítimo supor que o grosso se refira ao Tua: CAMINHOS-DE-FERRO DE MIRANDELA E VISEU Despesas efetuadas 1884 Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro

1885 298$117 Janeiro 343$440 Fevereiro 256$130 Março 587$380 Abril 309$265 Maio 427$170 Junho 2:200$000 1:841$110 5:702$176 Total 33:317$290

3:422$374 2:894$218 2:941$371 2:405$124 6:689$423 3:000$000

Fonte: Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Caixa 86, Pasta –Cartas com bancos; negócios dos C.F., dig. 102-104.

Já perante as graves dificuldades da empresa, em 1891, a Gazeta dos Caminhosde-Ferro faria a análise do problema. O orçamento previsto para a linha do Tua, de 19:692$000 réis por km, que contava com a necessidade de atravessar um terreno rochoso, escarpado, de dificuldade de construção extrema, contando com obras de arte 111  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa. 134, Pasta – Correspondência recebida 4/12/1849 a 16/12/1886, dig. 106-107 112  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, caixa 82, Pasta – Companhia Nacional; listagem de acionistas, dig. 58-59.

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caras, como túneis e pontes, era insuficiente para garantir a execução da via. A solução subsequente, foi desviar para o Tua, parte do orçamento previsto para a linha do Dão. Contudo, os problemas não se ficaram por aqui, já que a aprovação dos projetos da linha de Viseu pelo governo foi morosa e forçou a empresa a aceitar a introdução de variantes ao trajeto, que incluíram a construção de obras de arte. Daí resultou um aumento de percurso de dois km, passando o traçado definitivo a contar com 50 km.113 A emissão de obrigações prevista passou a ser claramente insuficiente. Para além disso, posto em serviço em 1887, o troço Tua a Mirandela, também não deu o rendimento previsto. Em parte, o fenómeno explicou-se pelo facto de a via ter sido posta em serviço há pouco tempo, pelas epidemias que tinham dizimado um décimo da população da região, assim como pela presença da filoxera. A solução consistiu em nova emissão de 11.200 obrigações, sem a qual a empresa não poderia terminar a linha de Viseu, ainda em construção.114 No entanto, o problema não seria tão facilmente superado. A companhia entraria a partir daqui numa espiral de incumprimentos, que anunciava o desastre próximo. A 10 de Dezembro de 1889, o diretor-geral Almeida Pinheiro escrevia ao presidente do conselho de administração, o marquês da Foz, uma carta alarmante: “Cumpre-me comunicar a V. Ex.ª que não tenho fundos disponíveis para pagamento da linha de Viseu, sem tocar no que fiz depositar no Banco Inglês e que é o indispensável para pagamento dos juros e amortização das obrigações. A importância a receber pelas liquidações provisórias feitas pelo governo tem de servir para pagamento do débito à Beira baixa e que está sob minha responsabilidade pessoal, responsabilidade que tem de ser saldada, por isso que acabo de pedir a minha demissão da Empreza. Como este estado tende a agravar-se sucessivamente em todos os mezes que vão decorrendo, ver-me-hei forçado também a resignar o meu logar da Companhia, se não fôr rapidamente adoptada qualquer providencia que possa habilitar-me a fazer ultimar os trabalhos de Vizeu, com o celeridade que a estreiteza de prazos exige. Aguardo as suas ordens, sou, com a maior consideração. (…) Almeida Pinheiro”115

113  “A Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro e os seus obrigacionistas” in op. cit., pp. 214-215. 114  Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro; relatório do Conselho de Administração e parecer do Conselho Fiscal apresentado à assembleia geral ordinária de 30 de Abril de 1888, Lisboa, 1888, pp. 4-5. 115  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 80, Pasta – Companhia Nacional, dig. 002-003

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A segunda emissão de obrigações, a garantia de juro do Estado, calculada para um custo de construção irrealista, bem como o tráfego, que se revelava escasso, foram insuficientes para tirar a empresa das dificuldades em que se achava e que continuamente se agravavam. No relatório do conselho de administração à reunião da assembleia-geral de 1889, fazia-se referência à escassa densidade populacional do percurso servido pela linha de Mirandela (a de Viseu ainda estava em construção), às características do solo, que não se prestava a culturas importantes, bem como à presença da filoxera, como causas que limitavam o desenvolvimento do tráfego. Alguma expectativa era posta na construção de estradas, que podiam canalizar movimento para as estações, mas a sua construção revelava-se lenta e nem todos o eixos viários necessários ao tráfego da linha, estavam em curso de construção. Nessa altura, já tinha sido apresentado às cortes o projeto do troço de Mirandela a Bragança, mas a sua aprovação tardava.116 De facto, a conjuntura ia-se tornando desfavorável à construção de novos caminhos-de-ferro, quer para a companhia, quer para o estado, cujo crescente estrangulamento financeiro, desaconselhava a contração de compromissos com novos contratos que o forçavam a garantir o juro. Apesar da ameaça, Almeida Pinheiro não se demitiu ou talvez a sua demissão não tenha sido aceite ou tenha sido persuadido a continuar. A 4 de Abril de 1889, o mesmo mês em que se realizou a assembleia-geral, enviou outra carta alarmante, relativa às necessidades de pagamento das obras da linha de Viseu, ao marquês da Foz: “Illmº. E Exm.º Sr. Para governo de V. Ex.ª envio a inclusa nota das despezas a pagar, relativas ao mez de “março” p. p. Para fazer face a ellas, teremos apenas o saldo de 10 contos, quando levantarmo os 30 do governo, operação que ainda hoje não pôde ter logar por falta do offício da repartição de cam.ºs de ferro p.º a tesouraria do minist.º da fezenda. Tratei de obter que esta formalidade fosse hoje preenchida. Como V. Ex.ª verá o pagamento da linha importa em 23:750$000. Aguardando as instruções de V. Ex.ª acerca d’este assunto, sou com a maior consideração.”117 Num ambiente de ruína financeira, a companhia entrou em discussão com o governo, sobre a questão da garantia de juro, solicitando que esta cobrisse as despesas de exploração, sempre que as receitas brutas não fossem capazes de as suportar, mas

116  Companhia Nacional de caminhos-de-Ferro; relatório do Conselgo de Administração e parecer do Conselho Fiscal, apresentados à assembleia-geral ordinária de 30 de Abril de 1889, Lisboa, 1889, pp. 3-4. 117  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, caixa 80, Pasta – Companhia Nacional, dig. 004.

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o problema arrastou-se sem solução no imediato.118 A linha de Viseu seria finalmente inaugurada em Novembro de 1890,119 mas a situação financeira continuou a agravar-se. Em maio de 1891, Almeida Pinheiro remeteu uma carta de um credor, à qual não tinha meios de dar solução, ao Marquês da Foz, acompanhada de uma nota pessoal, em tom totalmente desesperado: “Ao Ex. Sr. Marquês da F. (Confidencial) É uma questão de três contos de réis com que se satisfariam. Os homens parecem dispostos a tudo. Que fazer? Careço já de autoridade moral para lhes infundir respeito necessário. Estou em casa com parte de doente porque não me largam em toda a parte. Dirigem-se a mim pedindo dinheiro, uma vergonha. Peço me devolva esta com a resposta de V. Ex.ª Pinheiro”120 Naturalmente, a falência era inevitável. Em meados de 1891, a Companhia Nacional viu-se forçada a suspender parcialmente os pagamentos aos obrigacionistas, deixando ainda em atraso pagamentos a fornecedores e empreiteiros.121 Seria necessário negociar um convénio com obrigacionistas e numerosos credores, tema de que se tratará noutro capítulo. No momento da derrocada geral, o da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro seria mais um problema a agravar as dificuldades com que se debateria o Marquês da Foz.

118  Companhia Nacional de Caminhos-de-ferro, relatório do Conselho de administração e parecer do Conselho Fiscal, apresentados à assembleia-geral ordinária de 1890, Lisboa, 1890, pp. 4. 119  “A Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro e os seus obrigacionistas” in op. cit., pp. 214. 120  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, caixa 82, Pasta – Companhia Nacional; Listagem de acionistas, dig. 37-39 121  “A Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro e os seus obrigacionistas”, in op. cit., pp. 215.

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CAPÍTULO III A Companhia do Caminho de Ferro de Madrid a Cáceres e Portugal e do oeste de Espanha A tomada da Companhia Real de Caminhos-de-Ferro pelo grupo Foz foi concretizada com o fim de satisfazer dois pretextos imediatos. Um, o da necessidade de ampliar e expandir a rede interna explorada pela empresa, como o reclamava o interesse público e de desenvolvimento da economia, desígnio protelado por uma administração estrangeira que se considerava pouco motivada para a sua concretização; esse tema foi já abrangido pelo capítulo I. Outro, o da necessidade de libertar a companhia do ruinoso contrato de garantia de juro com a Companhia do Caminho de Ferro de Madrid a Cáceres e a Portugal e do Oeste de Espanha, comumente designada MCP-Oeste. A história desta empresa articula-se intimamente com a da Companhia Real e com a tentativa de criação da Companhia do Caminho de Ferro do Grande Central Espanhol. A importância do MCP-Oeste desde 1877 até 1891 é não só indissociável como de peso determinante, na própria evolução da Companhia Real. Não é de estranhar que todo o processo relativo a esta temática tenha sido conduzido pelo próprio marquês da Foz, o verdadeiro protagonista, ainda que também seja de destacar o importante contributo de Fernando Palha, Mariano de Carvalho e de Henrique Moser. Este será o tema do presente capítulo. Relativamente ao assunto desta companhia espanhola, a atuação da administração liderada por Foz, desenvolveu-se em duas vertentes: por um lado, aligeirar o encargo que desta empresa resultava para a Companhia Real; por outro lado, melhorar os seus rendimentos e dotá-la de condições de atração de tráfego, através da ampliação da sua rede. Abrangeremos os dois aspetos, no desenrolar do capítulo. O grande objetivo perseguido pela rede ferroviária portuguesa desde os primórdios tinha sido o tráfego internacional, de maneira a potenciar as possibilidades do

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porto de Lisboa, que se via como uma porta de entrada e saída na ligação da Europa com outros continentes. Foi com essa finalidade que a Companhia Real construiu a Linha do Leste. O fracasso do eixo como via de tráfego internacional, sequer procedente de Espanha, foi inicialmente atribuído à excessiva distância imposta pelo percurso, que não procurava o caminho mais curto entre Lisboa e Madrid. A contrariedade levou a que se planeasse a rápida correção do erro cometido, através de uma nova ligação que encurtasse a distância entre as duas capitais ibéricas. Em 1876, a exploração dos jazigos de fosfatos de Cáceres tinha alcançado uma grande dimensão, o que motivou a construção do ramal de Cáceres, entre Torre das Vargens e Marvão - Beirã, com o objetivo de atrair este tráfego ao porto de Lisboa, engrossando o movimento da rede da companhia. Contudo, para que o plano resultasse plenamente, havia que garantir a execução do traçado em território espanhol, de maneira a ligar à rede portuguesa. Neste ponto, as ambições da Companhia Real não se limitavam ao cativar do movimento dos fosfatos, mas viu-se como oportunidade para concretizar a finalidade mais ampla, de obter uma rota mais direta entre Lisboa e Madrid, de maneira a canalizar o tráfego da capital espanhola, Europa e interior de Espanha, através da rede da Companhia Real, para o porto de Lisboa. Para isso, a empresa não hesitou em promover, financiar e até garantir a exploração da linha espanhola, através de um contrato inicial com a Companhia da Malpartida de Plasencia a Cáceres e à fronteira portuguesa, alcançada em Valência de Alcântara, assinado em 21 de Julho de 1877, aprovado pela assembleia-geral da Companhia Real de 21 de Novembro do mesmo ano. Por esse acordo, a Companhia Real trocava um certo número de obrigações com a empresa espanhola, cujo produto seria aplicado na construção da linha. Para além disso, garantia um juro de 5% ao capital desta empresa, desde o momento da construção da linha, comprometendo-se a fornecer o material móvel e a garantir a sua exploração, quando as obras estivessem concluídas. Enquanto a receita bruta não excedesse as 9.000 pesetas por km, as despesas de exploração eram estimadas em 3.000 pesetas por km; ultrapassado o limite de 9.000 pesetas por km de rendimento bruto, passava-se a calcular as despesas de exploração em 33% do rendimento bruto, aplicando-se o excedente ao pagamento do juro e amortização das obrigações e do dividendo de 5% às ações. Do restante, retirava-se 3% da receita bruta para aquisição de material móvel. Este contrato cessava quando esta linha se fundisse com a que estava a construir o troço de Madrid a Malpartida de Plasencia, momento a partir do qual ficaria disponível o percurso completo entre Madrid, Cáceres e a fronteira portuguesa.122 A fusão das duas linhas e das empresas concessionárias foi efetivamente realizada, constituindo-se a nova empresa do MCP, (Madrid a Cáceres e a Portugal), o que 122  Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses: Relatório do Conselho de Administração, in Gazeta dos Caminhos-de-Ferro, Lisboa, ano 4, Nº 73, 1 de Janeiro de 1891, pp. 15.

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libertava a Companhia Real de qualquer obrigação para com a nova sociedade. No entanto, a Companhia Real assumiu novo compromisso com o MCP, através de um novo contrato assinado a 14 de Novembro de 1880. No seus termos, deixava de garantir a exploração da linha, mas mantinha a obrigação de garantir o juro e amortização das obrigações, bem como o juro de 5% ao capital ações, sendo que a Companhia Real garantia à empresa espanhola um produto bruto de 11.500 francos por km nos três primeiros anos e de 12.000 francos por km a partir desse momento.123 Era este o contrato que estava em vigor quando o grupo Foz assumiu os destinos da companhia, sendo causa de acesa polémica e tendo-se revelado verdadeiramente ruinoso para a empresa. De facto, os rendimentos do MCP foram sendo baixos e a exploração foi quase sempre deficitária. As críticas agravavam-se pelo facto do os acionistas e administradores serem em grande número comuns às duas empresas, pelo que a Companhia Real estava a ser vítima de uma verdadeira sangria de capital, de maneira a evitar que os acionistas perdessem dinheiro com a exploração de uma linha ferroviária que nunca seria um bom negócio. Entre 1881 e 1884, as despesas da Companhia Real com o MCP, foram: DESPESAS RESULTANTES PARA A COMPANHIA REAL, DO CONTRATO DE 1880, COM O MADRID A CÁCERES E A PORTUGAL, 1881 A 1884 Exercício

Reais

Francos

1881

54.525$704

302.920,57

Perda na exploração

1882

87.950$615

488.616,08

Garantia

1883

288.950$894

1.570.480,85

Garantia

1884

278.863$448

1.549.241,38

Garantia

Fonte: “Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses: relatório do Conselho de Administração”, in Gazeta dos Caminhos-de-Ferro, Lisboa, ano 4º, Nº 73, 1 de janeiro de 1891, pp. 15.

O contrato onerava pesadamente a companhia, sem que o contributo do tráfego internacional jamais tivesse correspondido às expectativas, ou sequer justificado minimamente as despesas feitas. Por fim, vivia sob a suspeita de que boa parte dos acionistas e administradores eram comuns às duas empresas, pelo que a solução não passaria de um expediente para lhes garantir à custa da Companhia Real, elevada remuneração do capital que tinham empregado num mau negócio. Sendo um dos te123  Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses: Relatório do Conselho de Administração, in Op. cit., pp. 15.

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mas centrais da vida da empresa, este assunto mereceu a atenção do marquês e da sua direção, desde o primeiro momento, a par da expansão da rede interna da companhia. Todo o processo de planeamento e condução das negociações, foi liderado por Foz, ainda que posteriormente tenha tido colaborações importantes dos atores já referidos. As negociações e estudos começaram logo nos primórdios da sua gestão da Companhia Real. Segundo as notas pessoais encontradas no seu arquivo, foram inicialmente consideradas três possibilidades para libertar a empresa do contrato com o MCP: A) a cessão pura e simples, mediante indemnização através de uma quantia a negociar, que podia ser paga de uma só vez ou anualmente, entregando-se a exploração a uma empresa, a encontrar, que garantisse a sua economia; B) negociar um contrato de exploração com outra empresa, motivando-a através de uma participação de volume crescente nos resultados a obter boas economias e resultados de exploração; C) a solução mais radical e a que Foz preferia, consistindo na liquidação da empresa, com reembolso dos acionistas e obrigacionistas e entrega da rede a outra companhia, com pagamento de uma compensação à empresa que a recebesse. Para a realização de qualquer destes três projetos, ele considerava necessário contar com a maioria dos votos na assembleia-geral, de maneira a obter a aprovação. Nas duas primeiras hipóteses, o MCP continuava a existir, ainda que na prática a exploração fosse assegurada por outra companhia. O plano previa que ou a Companhia do Norte de Espanha, (Norte), ou a de Madrid a Zaragoza e a Alicante, (MZA), no fundo, as duas caras do duopólio que configurava o sistema de transportes da rede espanhola, se pudessem encarregar da exploração do MCP, mediante um sistema de arrendamento. O próprio Foz tinha conduzido negociações com a companhia do Norte, que segundo informava, parecia ter acolhido favoravelmente a ideia. A terceira hipótese implicava que o MCP deixasse de existir, ao ser integrado, fundido ou absorvido, por uma rede de maior dimensão. Para a concretização deste projeto, Foz estimava que a principal interessada era a rede da MZA. De facto, a linha da Extremadura concessionada a esta companhia, ligando Madrid à fronteira portuguesa em Badajoz, sofria continuamente a concorrência da de Madrid a Cáceres e fronteira portuguesa. Para esta administração, era a oportunidade de se desembaraçar de um concorrente e dispor de um trajeto mais direto e curto no tráfego da Estremadura para o norte de Espanha. Livre do concorrente, dispunha ainda da possibilidade de fazer estratégicos e prudentes aumentos de tarifas. Para a rede do MCP, a integração numa grande companhia permitia-lhe beneficiar das economias de escala e melhor utilização do parque de material, de onde se contava com uma poupança de custos de exploração de 500.000 francos por ano. Oficinas, conselho de administração, tudo passava a ser comum. Foz contava ainda que houvesse uma progressiva melhoria dos resultados da linha. Do ponto de vista da Companhia Real, é certo que teria que pagar uma indem-

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nização aos acionistas e obrigacionistas do MCP, mas nesse momento tinha com a remuneração ao capital ações e obrigações da empresa, uma despesa anual de 2.850.000 francos. Com a liquidação e reembolso dos títulos, pensava pagar 2.701.800 francos, de onde resultava uma poupança anual de 148.200 francos, capitalizando esse valor a 5%, Foz contava com um rendimento de perto de 3.000.000 de francos. Caso a MZA não revelasse interesse pelo acordo, havia ainda a possibilidade de o propor à terceira administração ferroviária espanhola, a Companhia dos Caminhos-de-Ferro Andaluzes. Era possível ligar as duas redes, sem grandes custos através de Bélmez. Mantinham-se todas as vantagens da fusão anteriormente projetada, passando as duas empresas a dispor de um itinerário direto entre a Estremadura e a Andaluzia, controlando os acessos aos portos de Cádiz, Málaga e Lisboa, em concorrência com a MZA. Até para evitar a formação deste perigoso grupo concorrente, Foz admitia que a MZA tivesse interesse estratégico no negócio.124 No entanto, nenhuma das três possibilidades se concretizaria, sem que saibamos porquê. É muito provável que nenhuma companhia se interessasse pela exploração de uma linha que era deficitária e servia uma das regiões mais pobres e menos povoadas da península Ibérica. Se em termos de tráfego interno o negócio não era apetecível, também nenhuma das grandes companhias espanholas, Norte ou MZA, se sentia motivada para canalizar movimento na direção do porto de Lisboa, em concorrência com rotas dos principais portos espanhóis, que já serviam, com fluxos perfeitamente definidos e garantidos. Foz deve ter-se apercebido de que a Companhia Real estava solidamente amarrada a um grande problema, que a sua administração tinha herdado e de que não seria fácil libertar-se. Incapaz de denunciar o contrato, ou passar a outra companhia um mau negócio, restava-lhe tentar renegociá-lo, de maneira a procurar que fosse menos oneroso para a Companhia Real. O resultado seria um novo contrato, cujos termos foram apresentados na assembleia-geral que decorreu entre 30 de Julho e 5 de Agosto de 1885: 1. a Companhia Real tomava a seu cargo, por tempo ilimitado, a exploração das linhas do MCP; 2. a Companhia Real garantia o juro das emissões de obrigações do MCP, emitidas até à data; 3. a Companhia Real garantia ao MCP a quantia de 500.000 francos anuais, enquanto o seu rendimento não excedesse os 10.000 francos por km, 550.000 francos anuais logo que o rendimento excedesse os 10.000 francos por km 124  Arquivo CP, Lisboa, Compagnie Royale des Chemins de Fer Portuguais, Norte sur le contrat du Cáceres pour Monsieur le Comte da Foz, Fundo, CRCFP/CP ; Secção –Administração, Subsecção secetaria-geral, Série 12caminhos-de-ferro espanhóis, Sub-série 11, Sociedad de los ferrocarriles de Madrid a Cáceres y a Portugal, Item, Lx, 192/12, Peça Nº 10, Datas extremas, 1878-02-20 a 1886-07-23, Dimensão da unidade de descrição, 41 folhas, âmbito e conteúdo, Conversão de obrigações de Madrid-Cáceres Portugal; notas do conde da Foz sobre o contrato de comp. RCFP e a Comp. Madrid Cáceres Portugal, contrução do ramal de Cáceres Cláusulas e condições para a empreitada geral de construção, fl. 8-10

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FIGURA 1

Vista parcial da sala de espera do “Palácio Foz” decorada em estilo Luís XIII.

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FIGURA 2

Sala de baile do “Palácio Foz”, decorada ao estilo da regência de Luís XV.

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FIGURA 3

Sala de baile do “Palácio Foz”, decorada ao estilo da regência de Luís XV.

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FIGURA 3

Sala de visitas do “Palácio Foz”, decorada ao estilo Luís XVI.

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FIGURA 5

Vista da magnífica sala de jantar do “Palácio Foz”, decorada em estilo Luís XIV.

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FIGURA 7

Capela do “Palácio Foz”.

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FIGURA 8

Galeria da escada principal do “Palácio Foz”, destacando o lampião.

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FIGURA 9

Jardins do “Palácio Foz”.

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FIGURA 10

O “Palácio Foz”, nos Restauradores. Era inicialmente pertença do marquês da Castelo Melhor, tendo sido vendido pela 6ª marquesa de Castelo Melhor ao marquês da Foz em 1889, na sequência da construção da estação central do Rossio, que ocupou parte dos terrenos pertencentes ao palácio. Foz tornaria o edifício num dos mais sumptuosos de Lisboa. Viveria nele até à morte da sua segunda esposa, ocorrida em 1898.

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FIGURA 11

Casa da Torre de Santo António, na quinta de Santo António em Torres Novas, propriedade do marquês da Foz. Utilizada anteriormente a 1898, para estadias curtas, seria após a morta da sua segunda esposa, ocorrida nesse ano, a residência do marquês da Foz, até à data do seu falecimento, em 1917.

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FIGURA 12

Escada principal do “Palácio Foz”, com a grade de fabrico e efeito estético especialmente cuidado, feita pelas oficinas “Moreau.”

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FIGURA 13

Vista parcial da biblioteca do “Palácio Foz”.

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e 600.000 francos anuais, assim que o rendimento fosse superior a 11.000 francos e inferior a 11.000; 4. quando as linhas rendessem mais de 12.000 francos e menos de 15.000, cabia 50% do excesso a cada uma das duas companhias; quando o rendimento excedesse 15.000 francos, cabia 65% do excesso à Companhia Real e 35% ao MCP; 5. quando a rede alcançasse o rendimento de 15.000 francos ou mais, durante três anos consecutivos, qualquer das duas companhias tinha o direito de denunciar o contrato; 6. o Conselho de administração do MCP passava a ser composto por cinco membros, dois escolhidos pelo MCP, dois escolhidos pela Companhia Real e o quinto, por acordo entre as duas.125 Com um contrato elaborado nestas condições, procurava-se reduzir os encargos da Companhia Real com o MCP, através da afinação da tabela de divisão dos rendimentos. No caso de o MCP alcançar hipoteticamente, uma estabilidade económica que lhe permitisse dispensar a garantia da Companhia Real, estava até prevista a cessão do contrato, a partir dos 15.000 francos por km. Visto que garantia o rendimento aos acionistas e obrigacionistas do MCP, a Companhia Real chamava a si a exploração da rede, assim como passava a ter um peso determinante no seu conselho de administração, o que se justificava, uma vez que era a principal interessada numa exploração económica e eficiente. A possibilidade de que o MCP alcançasse o rendimento que permitisse a denúncia do contrato era meramente teórica, como se viria a demonstrar, mas a proposta podia reduzir no imediato os encargos com a rede espanhola. A assembleia acabou por aprovar a proposta.126 Por parte do MCP, também parece não ter havido objeções às negociações destinadas a chegar a um novo acordo, como se depreende do seguinte texto, destinado aos acionistas: “La Compagnie Royale des Chemins de fer Portugais nous a demandé de modifier le mode d’éxécution du Contrat du 14 Novembre 1880 et nous avons commencé avec elle des négoaciations à cet effet. La base qui parait la plus convenable serait de donner l’exploitations de norte ligne à la Compagnie Portuguaise qui garantira le service de nos obligations et assurerait à nos actions un dividende dont le chiffre reste à discuter. Dans la réunion des deux exploitations, elle trouverait des facilités de développer le trafic et de réaliser des réductions importantes sur les frais que 125  Arquivo da CP, Lisboa, Continuação da acta da sessão da Assembleia-Geral de 30 de Julho de 1885 em 5 de Agosto do mesmo ano in Actas da Assembleia-Geral da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, pp. 224-225 126  Ibidem, pp. 227.

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notre société supporte aujourd’hui. Cette solution aurait la conséquence heureuse d’alléger les chances les charges de la Compagnie Royale sans mise à nos intérêts. Nous désirons tous voire aboutir les négociations entamées, et nous allons le poursuivre. Les conventions à intervenir seront, en reste, soumises à votre approbation dans une assemblée général extraordinaire que nous convoquerons dés que nous nous serons mis d’accord. »127 A convenção acabou por ser assinada com o MCP a 22 de Outubro de 1885, tendo sido aprovada pela assembleia-geral da Companhia Real a 23 de Dezembro do mesmo ano.128 Sobre o protagonismo de Foz em toda a condução deste assunto, bem como da enorme importância do contributo de Fernando Palha, Mariano de Carvalho e Henrique Moser, não há qualquer dúvida, como nos demonstra a seguinte carta, enviada pelo conselho de administração da Companhia Real a Foz: “Illmº. Exmº. Snr. Tenho a honra de participar a V. Ex.ª que o Conselho de Administração d’esta Companhia na sua sessão de 5 do corrente aprovou a seguinte proposta que lhe foi submetida pelo Exmº Snr. Francisco Van Zeller, e que foi aprovada por unanimidade: Propõe que o conselho consigne um voto de louvor aos Snrs. Fernando Palha, Mariano de Carvalho e Mozer e em especial ao Snr. Conde da Foz pela habilidade, zelo e dedicação com que se houveram em Paris com respeito à modificação do contracto de Cáceres e outros assumptos de subido interessa para a Companhia e pelas adesões sympathicas de casas respeitabilíssimas nos círculos financeiros que S. Ex.ªs souberam adquirir como apoio e auxiliares da salvaguarda e prosperidade dos interesses da mesma Companhia. Propõe mais S. Ex.ª que d’esta resolução o Conselho a adoptar como esfera, se dê conhecimento oficial ao Snr. Conde da Foz. Deus guarde V. Ex.ª, 8 de Agosto de 1885 Illm.º Exm.º Snr. Conde da Foz Paris Fontes Ganhado”129 127  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 83, Pasta bancos, 1885-07-18, dig. 07. 128  Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses: relatório do Conselho de Administração, in op. cit., pp. 15 129  Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta - Cartas, listas de

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O bom resultado das negociações foi apreciado e saudado inclusivamente pelos acionistas e administradores franceses, que tinham entrado na empresa em redor do apoio a Foz e seus aliados. Era unânime entre os meios acionistas e administradores de entrada recente, que o contrato de Cáceres representava um pesado lastro para a Companhia Real e que se o mal estava feito e não havia possibilidade para a empresa, de se libertar da ruinosa obrigação contraída com a companhia espanhola, então, que em salvaguarda dos seus interesses, se tornava indispensável assegurar a sua exploração. Tal é o espírito de um extrato de uma carta enviada pelo banqueiro Goguel a Foz, a 28 de Outubro de 1885: “Dans l’une de ces questions un pas important a été fait par la signature do contrat d’exploitations de Cáceres –Reste à savoir si malgré l’approbation des assemblés générales nous n’avons pas de difficultés avec le gouvernement espagnol –Mais en tous cas l’état de choses que vous me signalez de complet abandon dans le service de la ligne de Cáceres, va immédiatement s’améliorer. Il n’est que temps car les charges qui nous viennent de ce chef. Sont épouvantables et il est bien à désirer que la terrible compte d’attente puisse se fermer.»130 No entanto, os resultados nunca chegaram a corresponder às expectativas: o problema fundamental da linha do MCP resultava da falta de tráfego, consequência da pobreza e escassa densidade populacional da região que servia. No que era essencial, os custos mantiveram a sua tendência ascendente: DÉFICIT DO MCP ENTRE 1886 E 1889 Exercício

Reais

Francos

1886

280.078$065

1.555.989,25

1887

290.581$493

1.614.341,63

1888

303.071$068

1.683.728,16

1889

299.025$331

1.661.251,84

Fonte: “Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses; relatório do Conselho de Administração, (continuação)” in Gazeta dos caminhos-de-Ferro, Lisboa, Nº 74, 16 de janeiro de 1891, pp. 31.

Certamente por esta razão, a da insuficiência de tráfego, a direção de Foz não se accionistas, dig. 04. 130  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 16, Pasta - Correspondência recebida de Goguel & Cie. (banqueiros), dig. 023.

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limitou a procurar reduzir os encargos da Companhia Real com o MCP, mas tentou criar meios que atraíssem tráfego à linha espanhola e com ele, engrossar também o da rede própria. Este foi o segundo aspeto da atuação da Companhia Real em Espanha, sob a influência desta administração. A forma de atrair mais tráfego à linha de Madrid, por Cáceres à fronteira portuguesa, foi a ampliação da rede com a construção de uma longa linha transversal de mais de 300 km, que bifurcando da primeira em Malpartida de Plasencia, terminava em Astorga, passando por Salamanca e Zamora. Não só servia diretamente duas capitais provinciais do interior espanhol, (Salamanca e Zamora), como estabelecia um elo entre vários eixos radiais da rede do país vizinho, comunicando entre elas as linhas Madrid-Cáceres Portugal, Medina del Campo-Salamanca/ Salamanca à fronteira portuguesa, Medina del Campo a Zamora, enlaçando em Astorga com a linha de Venta de Baños à Galiza, concessionada à companhia do Norte de Espanha, a partir da qual se punha em comunicação com os portos do Cantábrico, fossem eles os galegos, (Vigo, A Corunha, O Ferrol), asturianos (Gijón), ou cântabros, (Santander). De uma forma mais ampla, através da ligação em Cáceres com as linhas da MZA, estabelecia um itinerário direto entre a Andaluzia e o norte de Espanha, evitando o desvio e a concentração de tráfego no nó de Madrid. Esta linha, que ficaria conhecida pela “Rota da prata”, por ser esse o traçado aproximado de uma estrada romana que inspiraria o nome, por deformação da palavra árabe “bala” ou “pala”, (pavimento), seria a linha do Oeste de Espanha. Não foi concessionada diretamente à Companhia do MCP, mas seria constituída para a construir e explorar a Companhia do Caminho de Ferro do Oeste de Espanha, ainda que a ligação com a anterior fosse evidente e partilhassem o mesmo conselho de administração. O grupo ficaria posteriormente conhecido pelo MCP-Oeste. O importante elo transversal que fechava, o fato de enlaçar quatro linhas radiais, permitia que se pusessem neste eixo expetativas de atração de tráfego. Para além de destacar este aspeto, o relatório apresentado pelo conselho de administração à assembleia-geral da Companhia Real, aludia ainda às potencialidades da região diretamente servida pela linha. O que se diz, ilustra a forma como os projetos se estudavam no séc. XIX, na medida em que não se avaliava de forma profunda a sua justificação económica, antes se ficando por alguns cálculos superficiais e estimativas. Efetivamente lê-se: “(…) Temos ainda a convicção de que a nova linha do Oeste dará um rendimento avultado, porque atravessa um país muito fértil e bastante povoado na sua maior extensão, e por isso pensamos que a exploração da nossa rede de Espanha seria muito mais produtiva no futuro do que até agora, (…)”131 131  “Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses; relatório dos Conselho de Administração, (continuação)” in Op. cit., pp. 31.

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A região servida tratava-se, como hoje, das menos densamente povoadas da península Ibérica. Para a construção da linha do Oeste de Espanha, a Companhia Real assinou dois contratos a 1 de Junho de 1888, aprovados por assembleia-geral de 27 de Setembro do mesmo ano: A) pelo primeiro, comprometia-se com a Companhia do Oeste de Espanha, a explorar a linha de Plasencia a Astorga e garantir o pagamento anual de 4.000 pesetas por km, enquanto as receitas brutas não excedessem as 10.000 pesetas por km. Quando fossem superiores a 10.000 pesetas por km, pagaria 40% dessas receitas; B) pelo segundo contrato, comprometia-se a garantir o juro e amortização de 64.000 obrigações destinadas a financiar a construção da linha, durante os período de 3 anos que devia durar a construção, bem como ao longo dos primeiros 10 anos de exploração. Para fazer frente ao compromisso, a companhia arrecadou 5.230.000 francos, do produto da emissão das obrigações, que com os juros entretanto acumulados, formavam uma conta especial, afinal, um fundo de reserva, que constituía a sua garantia no caso de o rendimento de linha não cobrir o encargo assumido, (pelo menos nesse aspeto, a lição do MCP tinha sido aprendida). Esta conta só seria acionada em caso de necessidade, porque durante a construção, o serviço financeiro das obrigações seria suportado pela conta ordinária. Para além disso, a Companhia Real recebia da do Oeste um bónus de 1.500.000 francos pelos serviços prestados e um pacote de 36.000 obrigações de segunda hipoteca, de que faria uso caso ao fim dos 10 anos de exploração, o saldo fosse deficitário para a Companhia Real.132 Se é incontestável que Foz foi o promotor e o responsável por se ter levado à prática o projeto, já é mais discutível que tenha sido o pai da ideia, uma vez que há estudos e correspondência desde 1882, entre o engenheiro Ravel e a Companhia Real, sobre a construção desta transversal, anteriormente à entrada do grupo Foz para a empresa. Perante a insuficiência de tráfego do MCP, é natural que a administração anterior também tenha procurado soluções, sendo a construção da transversal, que apresentava várias perspetivas de captação de movimento, uma possibilidade óbvia. Ravel seria mais tarde o empreiteiro dos troços de Lisboa a Torres Vedras e Sintra da linha do Oeste, tendo começado a obra com a concessão ainda sob o domínio de Henry Burnay, continuando até à sua conclusão, quando a concessão foi transferida para a Companhia Real, já sob a direção influenciada por Foz. Em 9 de Agosto de 1882, Ravel tinha concluído um anteprojeto da futura linha do Oeste, de cujas conclusões deu conhecimento por carta aos administradores do comité de Paris. Neste, prevê um custo de 40.409.980 pesetas, para uma extensão de 345,500 km de caminho-de-fer132  Ibidem, pp. 31.

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ro. O custo quilométrico previsto era de 125.000 pesetas. Contava com um subsídio estatal de 60.000 pesetas por km, total de 22.730.000 pesetas, ficando consequentemente a cargo da sociedade o financiamento de 22.460.000 pesetas. Descrevia ainda o traçado, particularmente difícil entre Malpartida de Plasencia e Béjar, incluindo uma difícil rampa e não podendo evitar a construção de um túnel de 2.150 m nas proximidades de Béjar. A partir desse ponto, considerava que o perfil era bastante mais fácil, nos 255 km seguintes, até Astorga, o que corresponde com muita exatidão ao que efetivamente viria a ser construído. Como o traçado unia várias linhas radiais, Ravel propunha estabelecer depósitos e estaleiros para o material de construção em Astorga, Zamora e Salamanca, a partir dos quais se estabeleceriam várias frentes da ataque aos trabalhos, permitindo uma rápida construção. O material era desembarcado nos portos de Bilbao e Santander, sendo transportado por caminho-de-ferro até aos mencionados pontos de instalação dos estaleiros.133 Em Abril de 1884, ainda antes da tomada da Companhia Real pelo grupo Foz, Ravel volta a dirigir-se ao comité de Paris, revelando que o projeto está em movimento e que a companhia realmente vai avançar com a construção da linha. Nessa ocasião, informa que já foi promulgado o decreto que aprova o seu projeto da transversal, ainda que os engenheiros do governo espanhol tenham imposto algumas variantes, que segundo ele, não se justificavam. Com as variantes introduzidas, a extensão do traçado passa a ser de 348 km, o preço kilométrico de 135.000 pesetas e o custo total de 43.407.726 pesetas. Contudo, informa: de capital importância, é obter a aprovação estatal do orçamento de 84.003.972 pesetas, correspondendo a um valor quilométrico de 240.000 pesetas, o que permite obter a subvenção do valor máximo permitido por lei, de 60.000 pesetas por km, capaz de cobrir boa parte do valor real de construção. Nesse momento, estando já aprovado o projeto, julgava eminente a fixação de uma data para abertura de concurso público e adjudicação da concessão.134 Estas cartas provam que no momento de assumir a gerência da Companhia Real, Foz encontrou já em andamento o projeto da linha do Oeste de Espanha e lhe deu continuidade. Para o concretizar, contou com a participação do financeiro francês Ephrussi, seu aliado em vários negócios. Constituiu-se para o efeito um sindicato formado por uma parte espanhola, representada pelo marquês de Guadalmina, detendo 40% da participação e uma parte representada pelo marquês da Foz e detendo 60% da participação. Destes, Foz cederá 20% a Ephrussi.135 Entre apontamentos do marquês 133  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 001-002. 134  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 003-005. 135  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 54-55.

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da Foz, sem data, encontramos mais alguma informação sobre os participantes na parte portuguesa deste negócio. No momento em que escrevia essas linhas, Ephrussi tinha já depositado 345.000 francos, o Banco Lusitano 250.000, Henrique Moser outros 250.000, ele próprio, Foz, 250.000. Há uma rubrica de vários participantes, que reúne 700.000 francos, outra com o título “depósito de Cáceres emprestado” com 1.000.000 e outro depósito com o título empreiteiros, com o valor de 1.500.000, num total de 4.295.000 francos.136 O projeto contou ainda com o apoio financeiro das três deputações provinciais atravessadas, Cáceres, Zamora e Salamanca: a primeira contribuiu com 14.000.000 de reais, procedentes da dívida contraída pelo Estado com a província pelos abastecimentos feitos durante a 1ª Guerra Civil e dos adiantamentos para construção de estradas; contribuiu ainda com 250.000 pesetas do orçamento provincial, a pagar em oito exercícios, desde o início das obras no interior do território da província. Zamora contribuiu com 3.000.000 de reais do orçamento provincial, 3.500.000 reais procedentes do crédito contra o Estado, pela construção da estrada de Vigo e trocou as ações de que dispunha da linha de Medina a Zamora, pelas da linha transversal. Salamanca contribuiu com 3.500.000 reais, do orçamento provincial.137 O concurso para a adjudicação da linha do Oeste de Espanha foi aprazado para o dia 1 de junho de 1888.138 Contudo, o sindicato encabeçado pelos marqueses da Foz e Guadalmina, não se apresentaria diretamente a concurso, faltando esclarecer as razões do seu procedimento. Entre os papéis de Foz, encontra-se a minuta de um contrato prévio ao concurso, pelo qual o primitivo concessionário, que é identificado como senhor X, se compromete a trespassar a concessão à Companhia do Oeste de Espanha. O mesmo documento informa que a soma necessária ao depósito de participação no concurso, foi entregue ao senhor X por Foz e Guadalmina, comprometendo-se este à sua devolução, posteriormente à adjudicação. Esse mesmo contrato, já entregava a empreitada de construção da linha Duparchi & Bartissol, pelo preço quilométrico de 8.000 francos, encarregando-se de todas as expropriações e comprometendo-se estes a assinar posteriormente um contrato definitivo de empreitada, com os marqueses da Foz e Guadalmina.139 Aparentemente, não houve um senhor X, mas dois, visto que Fernando Fernández Sanz, no seu trabalho sobre as locomotivas da Companhia do Oeste 136  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 062-064. 137  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 051-052. 138  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo a CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 006-007. 139  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 047-050.

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de Espanha, ao fazer a retrospetiva da origem das linhas que compuseram essa rede, informa que os primitivos concessionários da linha foram Ramón María Cobo e Juan Rózpide, que se apresentaram ao concurso em nome da nova Companhia dos Caminhos de Ferro do Oeste de Espanha, cujos interesses estavam ligados aos de Madrid a Cáceres e a Portugal.140 A minuta do contrato definitivo de empreitada, entre Duparchy & Bartissol e a Companhia do Oeste de Espanha, encontra-se também entre os papéis de Foz, com a descrição minuciosa do caderno de encargos.141 Complementariamente a estas movimentações, foi ainda feito outro contrato entre a Companhia do Oeste e o sindicato dirigido por Foz e Guadalmina, pelo qual a empresa se comprometeu a vender ao sindicato 66.000 obrigações, destinadas a colocação nas praças de Madrid, Paris, Lyon e alemãs não identificadas, revertendo os fundos da operação à Companhia Real, devendo ficar depositados à guarda do comité de Paris.142 A construção de um caminho-de-ferro representava uma ineludível oportunidade de negócio. Fazendo jus ao ambiente de reconciliação entre grupos adversários, que tinha sucedido à tomada da companhia Real pelo grupo do marquês da Foz, Abraham de Camondo interveio junto de Foz, no sentido de lhe propor o fornecimento de travessas para a linha do Oeste de Espanha, a partir da mesma empresa que tinha fornecido as da linha de Madrid a Cáceres e a Portugal: “Mon cher Marquis: Monsieur Moret et le Marquis de Guadalmina vous ont parlé de la Forestal Estremenia à laquelle je m’intéresse. Cette société a fait dernièrement des propositions pour la fourniture de traverses pour la Transversale, et je serais bien content si elles étaient acceptées. Les prix qui ont été faits sont tout à fais bon marché e je ne pense pas que vous pourriez les trouver autre part dans de si bonnes conditions de prix et de qualité. C’est cette société qui a fourni les traverses de la ligne de Cáceres, et si vous voulez bien lui prêter votre appui, vous m’obligerez, tout lui ayant complète satisfaction sous tous les rapports. Je ne doute pas de l’efficacité de votre concours, et dans l’attente de vos bonnes nouvelles, croyez cher Marquis à l’assurance de tous mes meilleurs sentiments. 140  SANZ, Fernando Fernández; REDER, Gustavo, Locomotoras de la Compañía del Oeste, Historia de la tracción vapor en España, Tomo IV, Madrid, ed. Revistas Profesionales, 2011, pp. 26. 141  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 054- 061 142  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, Pasta - Companhia do Oeste de Espanha, dig. 031-034.

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De Camondo.»143 Contudo, a vida da construção da linha de Malpartida a Astorga não seria nada fácil. Em 1890, com a linha em construção, a nova empresa que era na realidade subsidiária do MCP, estava como a casa mãe e a Companhia Real, que tinha promovido e financiava ambas, a caminhar para um desastre. O próprio contrato com os empreiteiros Duparchy & Bartissol provocava o descontentamento de boa parte dos acionistas: com a empresa em dificuldades para poder terminar a linha, tinha-se gasto boa parte do orçamento da construção, sem que houvesse um só quilómetro de via em exploração. A empresa já não dispunha de fundos para terminar as obras e admitia-se ter que recorrer a novo empréstimo, o que representaria um aumento de cargas financeiras e a desvalorização dos títulos. Pedia-se a rescisão do contrato com os empreiteiros franceses: “Mon cher marquis: Le marquis Guadalmina m’a mis au courant des cholera des portugais à la suite annonce du projet de resiliation du contrat (Bartissol ouest) qui a devenu une necessite vu la façon dont ce contrar été executé jusqu’à ce jour. Je m’explique : Au lieu de demander aux entrepreneurs de faire des travaux utiles a la mise en exploitation (…) o a laissé travailler partout, sans que les rails sont fournis ! 270.000 traverses pourrissent sur les chantiers, bref on à epuisé 26 millions et il n’y à pas un kilomètre exploité !!! La situation est ruineuse, l’ouest n’a plus de fonds disponibles elle recourt à l’emprunt, elle doit encore et pour cela on me demande mon intervention. (…) »144 De facto, a Companhia do Oeste de Espanha enfrentava a falência e já não dispunha de fundos para terminar a linha. Igualmente em dificuldades estavam o MCP e a Companhia Real, que garantia o juro às duas empresas espanholas. Numa manobra de recurso, perante a ameaça do desastre financeiro, Foz tentou desembaraçar a Companhia Real do lastro representado por estas duas linhas espanholas, transferindo o contrato para a nova companhia do Grande Central Espanhol, em formação. No entanto, a empresa não chegaria a ser constituída, o que será tema do próximo capítulo. Tentou-se então transferir as duas linhas para a Companhia do Norte de Espanha, 143  Centro nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, arquivo CP, Caixa Nº 15, Fundo, Marquês da Foz (G.F. Fundos Particulares), Série 01 - Correspondência recebida, Peça Nº 12, datas 1886/01/22 -1888/06/15, Assunto, Correspondência recebida de A. Camondo, fl. 14-15. 144

Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, pasta - Companhias espanholas, dg. 1-2.

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negociação que falharia igualmente, como veremos. Seguiu-se a suspensão de pagamentos das três empresas envolvidas. A linha do Oeste de Espanha seria terminada mais tarde, já fora da esfera de influência da Companhia Real e do marquês da Foz, graças à intervenção do banco Internacional de Paris. Este assinou dois contratos a 11 de julho de 1884, com as duas empresas espanholas. Pelo primeiro, comprometiase a explorar a linha do MCP. Pelo segundo, a terminar a linha do Oeste de Espanha no prazo de dois anos, após o que a exploraria por 50 anos. No ano seguinte, novo acordo levou à fusão das duas empresas, formando a nova companhia MCP - Oeste e criou-se a nova sociedade intitulada Companhia de Exploração dos Caminhos de Ferro do MCP e do Oeste de Espanha, encarregada da exploração das duas linhas por 50 anos. Seria esta a sociedade que exploraria a rede até esta empresa ser integrada na Companhia Nacional dos Caminhos de Ferro do Oeste de Espanha, concessionária de uma grande rede de mais de 1.000 km, em 1928.145

145  SANZ, Fernando Fernández; REDER, Gustavo, op. cit., pp. 26-27

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CAPÍTULO IV O PROJECTO DA COMPANHIA DO CAMINHO DE FERRO DO GRANDE CENTRAL ESPANHOL, O CAMINHO DE FERRO DE SALAMANCA À FRONTEIRA PORTUGUESA E O “QUINTO PODER DO ESTADO” O novo contrato de exploração do MCP e a construção da linha do Oeste de Espanha foram tentativas de diminuir o impacto negativo da rede espanhola sobre a saúde financeira da Companhia Real. No entanto, o aproximar de finais da década de 80 do séc. XIX, evidenciou um avolumar de dificuldades que punham em causa a estabilidade da companhia. Segundo António Lopes Vieira, por essa época, a companhia podia dispor para investimento na construção das novas linhas em Portugal e Espanha, incluindo material móvel, suportar as cargas financeiras próprias e garantir o juro ao MCP Oeste, da quantia, na melhor das hipóteses, de £7.8 milhões, resultantes de receitas, capital próprio e emissões obrigacionistas. Adverte o mesmo autor, que o montante indicado, calculado para uma cotação das obrigações a 50%, podia até ser inferior, na medida em que estes títulos desciam por vezes a cotações inferiores a 50% do seu valor nominal. Esta realidade contrastava com a necessidade de dispor de uma quantia anual de £8.3 milhões, entre custos de primeiro estabelecimento das novas linhas, cargas financeiras e obrigação de garantir o juro ao MCP-Oeste.146 Em 1889, já devia ser evidente para a administração de Foz, que a companhia caminhava para o espectro da suspensão de pagamentos do juro e amortização dos títulos obrigacionistas, consequentemente, para a falência. Na verdade, a empresa dispunha do necessário para enfrentar a ampliação da sua rede interna e cargas financeiras daí decorrentes; o desequilíbrio resultava do ruinoso contrato com a garantia de juro do 146  LOPES VIEIRA, António, The Role of Britain and France in the Finance of the Portuguese Railways, 18501890, Thesis submitted to the University of Leicester for the Degree of Doctor of Philosophy, 1983, pp. 294295.

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MCP-Oeste, cuja insuficiência de tráfego há muito não trazia qualquer mais-valia à rede da Companhia Real, antes a deixando perante um gravoso deficit que se via obrigada a cobrir. É certo que sob a orientação do grupo Foz, a Companhia Real se tinha lançado na construção da linha do Oeste de Espanha, com o objetivo de trazer à linha do MCP maiores volumes de tráfego, mas vimos já no capítulo anterior como rapidamente se viu confrontada com a falta de fundos para terminar a construção desse eixo, enfrentando uma situação embaraçosa. Por outro lado, é natural que se tenha avolumado a suspeita, de que a nova linha do Oeste de Espanha pouco ou nada podia acrescentar ao insuficiente volume de transportes do MCP. Pressionada pelo espectro da falência, a Companhia Real tinha absoluta necessidade de se libertar dos encargos contraídos com o contrato com o MCP-Oeste. Não lhe sendo possível negociar a sua rescisão, a única saída possível era transferi-lo para outra companhia. Essa possibilidade começou a configurar-se com o projeto de criação da Companhia dos Caminhos de Ferro do Grande Central Espanhol. Objetivo desta nova empresa, era a construção e exploração de um caminho de ferro que se estendia entre Torralba, onde entroncava com a linha de Madrid a Zaragoza, concessionada à MZA, por Soria e Sangüesa à fronteira francesa. Acrescia ainda a pretensão de a anexar à rede já existente do MCP-Oeste, formada pela linha de Madrid a Cáceres e fronteira portuguesa e pela linha do Oeste de Espanha, então em construção. Ainda que no percurso entre Torralba e Madrid, o eixo dependesse da MZA para ligar os dois grupos da sua rede, tratava-se na realidade de um novo traçado alternativo ao dominado pela Companhia do Norte de Espanha, entre a fronteira francesa e Madrid e desde a capital espanhola, através de rede do MCP-Oeste, à fronteira portuguesa. Para a Companhia Real, que colaborou activamente nas negociações destinadas a criar esta nova rede, o Grande Central representava duas importantes vantagens: por um lado, era a oportunidade de se libertar dos encargos representados pelo MCP-Oeste, que eram transferidos para a nova companhia; por outro lado, passava a beneficiar da tão ansiada linha direta entre as fronteiras portuguesa e francesa, via Madrid, acalentando a esperança de que o tráfego da Europa e do centro de Espanha, fosse finalmente canalizado para a sua rede, de maneira a alcançar os portos portugueses. Esta expectativa cruzava-se com um segundo plano, de concentração nas suas mãos das linhas internas de acesso a todos os principais portos portugueses, de maneira a recolher todos os benefícios proporcionados pelo tráfego trazido à sua rede, pela nova empresa espanhola. Este capítulo estudará os dois aspectos deste problema. É possível que os planos para a constituição do Grande Central tenham começado a tomar forma perante as dificuldades financeiras das Companhias Real e do Oeste de Espanha, materializados na falta de fundos para concretizar a longa transversal espanhola. O sindicato para a sua constituição foi formado pelo financeiro belga

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Eduard de Otelet e pelo marquês de Guadalmina. Previa-se que as suas concessões fossem, para além da rede do MCP-Oeste, a linha de Torralba a Soria, concessionada a Otelet, a de Soria a Sangüesa, o troço deste último ponto à fronteira francesa, e o de Pasages a Jaca.147 Sabemos que a secção entre Sangüesa e a fronteira francesa, foi inicialmente concessionada a um Sr. Los Arcos, que posteriormente a transferiu para a propriedade do marquês de Guadalmina, em Fevereiro de 1890.148 Todas as concessões seriam trespassadas para a posse da Companhia do Grande Central, assim que esta fosse legalmente constituída. Para a concretização do projeto, a Companhia Real tinha que transferir para o Grande Central, as obrigações e os direitos sobre as linhas do MCP-Oeste, através de um contrato que tinha que ser aprovado e assinado pelas três entidades. A apresentação do tema decorreu na Assembleia-Geral da Companhia Real de 20 de Dezembro de 1890. Os termos do acordo eram os seguintes: • a Companhia Real cedia à do Grande Central os direitos sobre as linhas do MCP-Oeste, obrigando-se a pagar, durante 10 anos, um encargo anual de 180 contos. No imediato, representava assinalável poupança, na medida em que no ano anterior, esse custo tinha sido de 299 contos e ao fim de 10 anos, ficaria finalmente livre de quaisquer despesas; • a empresa contribuía para o financiamento da nova rede, com a emissão de 70.000 obrigações de 3%, que entregava à Companhia do Grande Central. Em troca, a nova sociedade entregava-lhe 210.000 das suas obrigações, de 1ª hipoteca; • no caso de os rendimentos da rede da nova sociedade atingirem a média de 16.000 francos por quilómetro, a Companhia Real seria reembolsada de todas as despesas feitas com a rede do MCP, através da entrega de 48.000 obrigações à Companhia Real, que entrariam em carteira de forma a que delas se dispusesse da forma que se considerasse conveniente. No total, a rede alcançava a extensão de 1.297 km, ficando a concretização desta proposta, pendente da criação da Companhia do Grande Central Espanhol.149 Sendo favorável aos interesses da empresa, a proposta de contrato foi naturalmente aprovada. O conselho de administração justificou aos seus accionistas, que não pretendia abandonar a empresa que tinha ajudado a construir e a linha do Oeste de Espanha, por não acreditar nas suas potencialidades, mas porque se ia tornando 147  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, Pasta - Companhias espanholas, dig. 43-51. 148  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 84, pasta - Companhias espanholas, dig. 56, Diário de las sesiones de las cortes, Apéndice 20 al número 86. 149  “Assembleia geral da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 73, ano 4º, 1 de Janeiro de 1891, pp. 6-7.

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difícil explorar uma rede tão extensa num país estrangeiro, pelo que se aproveitava o ensejo de entregar a uma nova companhia espanhola, que se encarregaria da sua gestão com muito maior eficácia, libertando ao mesmo tempo a empresa portuguesa dos seus encargos.150 No mesmo dia em que se celebrou esta assembleia geral da Companhia Real, apesar de a empresa não estar ainda formalmente constituída, ficou definida, em Madrid, a composição do seu conselho de administração, sendo integrado por D. Praxedes Mateo Sagasta, que ocuparia o cargo de presidente, D. Luis Silvela, pelo conde de Montenegrón, pelo general Salcedo, D. Xavier de los Arcos, (que havia sido o concessionário original de um dos novos troços), que era deputado e director geral dos correios e telégrafos, D.Manoel Pardo, (o director geral de obras públicas), Morlesin, J. Cort, e os banqueiros marquês de Guadalmina e D. Ramón Lobo.151 Uma linha que oferecia um trajeto alternativo ao da companhia do Norte encurtando a distância em 120 km, contou naturalmente com a oposição dos interesses ligados a essa administração ferroviária, a maior de Espanha. Daí resultou uma campanha de imprensa destinada a tentar desacreditar a iniciativa,152 motivando reacção de Eduard Otelet: “Bruxelas 6 de Janeiro, -À administração do jornal Le messager de Paris. É como fundador do Grande Central Espanhol e em nome desta companhia que uso do meu direito de resposta. Considerei sempre o Messager de Paris como um jornal de polémica séria, e nesta conformidade entendo que o meu dever é levantar as inexactidões e os erros que fervilham no artido do seu correspondente, publicado no nº 30 de Setembro de 1890. Em primeiro lugar, para provar que a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses fez um deplorável negócio com o Grande Central Espanhol, o seu correspondente é obrigado a afirmar que o Grande Central vai criar sobre a linha de Torralba – Soria, a que ele chama Baides –Soria, “250.000 obrigações sobre 93 kilometros, ou seja, (diz ele) 125 milhões que representam um encargo anual de mais de 40.000 francos por kilometro. Se o seu correspondente se desse ao trabalho de ler a convenção ratificada em Lisboa em 20 de Dezembro último, teria visto que se tratava de 25.000 obrigações somente, se quisesse ver os estatutos, saberia que, mediante oito 150  Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses relatório do Conselho de Administração, (continuação), in Op. Cit., pp. 31. 151  “Linhas espanholas; o grande central espanhol” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, ano 4º, Nº 73, 1 de Janeiro de 1891, pp. 13. 152  “Nova linha internacional de Lisboa a Paris” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 74, 4º ano, 16 de Janeiro de 1891, pp. 22.

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milhões de francos, quer dizer, o valor destas 25.000 obrigações o Grande Central adquirira a linha de Torralba a Soria (93 kilometros) as cauções depositadas, cerca de 1.500.000 francos e o custo dos projectos das linhas de Soria à fronteira espanhola. Entre 25.000 e 250.000 obrigações há um abismo; entre um encargo kilometrico de 3.500 francos e um de 40.000, há a distância de um negócio são e razoável a um outro que deve fatalmente cair, arrastando ruínas inevitáveis. Se o Grande Central previu a criação complementar de 250.000 obrigações, o que elevaria o número a 250.000 máximo é para o acabamento da sua obra, que compreende a construção, em seu nome, de 410 kilometros novos, de Soria à fronteira francesa. O Grande Central não pode emitir e não emitirá estas obrigações senão para as suas necessidades ulteriores, e a Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses não é obrigada senão a tomar-lhe então 45.000. (…) Atacando as combinações do Grande Central o seu jornal ataca a Companhia Real Portuguesa: não tenho a missão defendê-la, mas deve permitir que lhe diga que, não tendo o Grande Central solicitado até hoje, sob qualquer título, os capitais franceses, os seus ataques sobre ele são intempestivos, e tanto mais que, segundo a todos se afigura, ele encontrará os seus apoios financeiros fora de França. O seu ataque é verdadeiramente contra os moinhos, porque a sua polémica é, neste momento, platónica, não podendo interessar senão aos accionistas do Norte de Espanha que espera sossegar, o que eles agradecerão se considerarem que atingiram o seu fim. Tenha, todavia, por verdadeiro, sr. Redactor, que a nova linha de Irún a Madrid se fará, com grande satisfação dos interessados franceses, sacrificados até hoje; queremos encurtar em 15% a distância da fronteira a Madrid, queremos melhorar o serviço acelerando as actividades para passageiros e mercadorias queremos reduzir os preços de transporte entre a França e o centro de Espanha. Representante dos interesses franceses, devíeis aplaudir a nossa obra. A Companhia do Norte de Espanha resistiu até hoje a construir a sua segunda via de Irún a Madrid, não obstante as suas abundantes receitas (39.000 francos) por kilómetro; conserva na sua linha velocidades só dignas da África Central, mantém tarifas exageradíssimas que impedem todo o desenvolvimento das relações comerciais entre a França e a Espanha; e em breve suportará o duro castigo devido ao seu imobilismo.

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Os promotores do Grande Central juraram levar este negócio até ao seu fim, e, creia-me, snr. redactor, são homens para o conseguir mesmo contra ventos e marés. O terreno sobre o qual construíram é sólido; os 1.300 kilometros que compõem a sua rede actual não serão sobrecarregados senão com cerca de 6.000 francos por kilometro de via, provenientes das obrigações e dos contratos de exploração. O Grande Central está, pois, na melhor posição para lutar contra o Norte de Espanha que tem que fazer face a um encargo kilometrico de 15.000 francos mínimo, proveniente das obrigações. Receba sr. redactor, etc.”153 A reacção da Companhia Real e dos interesses ligados ao Grande Central, não se limitou à carta publicada por Otelet, tendo sido orquestrada em França uma contracampanha de imprensa, em defesa das suas posições. Desta, nos deu eco a Gazeta dos Caminhos de Ferro, citando por exemplo, um artigo da Semaine Financiére: “As acções dos caminho de ferro portugueses, introduzidas em França há vinte anos, estão de há muito consideradas como valores de carteira. Esta designação é, de resto, justificada pelos dividendos que a Companhia Real tem distribuído aos seus accionistas. Citando apenas os últimos, vemos que tendo dado 27 francos em 1886, 30 em 1887, em 1888 e em 1889, fixou na mesma quantia o dividendo de 1890. Se considerarmos que, há alguns anos, a Companhia Portuguesa, tem as mãos atadas pelo tratado com a Companhia de Cáceres, e que, fazendo face aos pesados encargos impostos por esse contrato, pôde, todavia aumentar e manter forme o seu dividendo, é fácil compreender que, se ela tivesse o direito da livre disposição dos seus lucros, os dividendos continuariam a sua marcha ascendente, e por conseguinte as acções teriam atingido preços mais elevados. Hoje o tratado de Cáceres acha-se anulado, mediante um sacrifício inferior em cerca de 40% àquele que era suportado até aqui, e que deve desaparecer dentro de 10 anos. Assim desembaraçada a Companhia poderá fazer mais largas distribuições de dividendos aos seus accionistas, as quais verão –graças às imediatas reduções dos encargos de Cáceres – os seus dividendos atingir 40 francos, mais tarde 50 francos, e mais ainda, porque a exploração das linhas portuguesas dá hoje um produto kilométrico médio de 25.000 francos, quase igual ao das melhores linhas francesas. 153  “As questões do Grande Central” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 74, ano 4º, 16 de janeiro de 1891, pp. 25.

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Os produtos actuais que não cessam de aumentar, serão sensivelmente melhorados depois do acabamento completo das linhas com que o Grande Central, fará o núcleo de ligação e estabelecerá rápidas e directas ligações entre França, Espanha e Portugal por Irún.”154 A realidade revelaria, no entanto, não haver lugar a grandes optimismos. Efectivamente, a conjuntura interna e exterior à península, seria muito desfavorável à execução de novas construções ferroviárias. Em qualquer dos dois Estados peninsulares, estava-se a assistir ao encerrar do segundo grande ciclo de construções ferroviárias, após o qual a rede dos dois países assumiria a sua configuração praticamente definitiva, evoluindo muito pouco nas etapas posteriores. Em Espanha, esse ciclo tinha terminado numa grave crise em 1885, por causas não exclusivamente ferroviárias. Em Portugal, o ambiente em 1890 era já muito semelhante; companhias ferroviárias, bancos e o próprio Estado, encontravam-se em sérias dificuldades financeiras, lutando para evitar a falência. A própria participação da Companhia Real no projeto do Grande Central, se prendia com essa necessidade de evitar um desastre que inexoravelmente se avizinhava. A esta conjuntura interna da península, juntava-se uma grave crise financeira internacional. O ambiente era desfavorável a grandes empreendimentos ferroviários e dentro deles, a investimentos em Portugal e Espanha, onde o caminho de ferro tinha proporcionado sempre baixos rendimentos, quando comparado com os dos países do centro de Europa, frequentemente até, enormes desastres, traduzidos em suspensões de pagamentos, falências, conversões de obrigações, recurso de emergência a empréstimos, para saldar dívidas de empréstimos anteriores. Sabemos já pela carta de Otelet, que o Grande Central não contava recorrer a capitais franceses. Certamente, o mercado francês não se mostrou propício ao financiamento da empresa, pelo que o alvo foi a praça de Berlim. Contudo, uma carta de Ephrussi ao marquês de Guadalmina, preservada no arquivo pessoal do marquês da Foz, mostranos como a empresa encontrava dificuldades para efectivamente se poder constituir: “Paris, le 25 Février 1890 Monsieur le Marquis de Guadalmina, Madrid Cher Monsieur: Nous avons bien reçu vos lettres du 22 et 25 courant, et votre dépêche de ce jour. Vous savez qu’el est l’état général des Bourses en ce moment et de Berlin en particulier, où il y a un véritable Krach ; bien qu’il n’en soit nullement solidaire, cette baisse des valeurs minières et des banques, paralyse le peu d’esprit 154  “As acções da Companhia Real” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 75, ano 4º, 1 de Fevereiro de 1891, pp. 44.

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d’initiative qui pouvait rester à Paris. De plus, une défaveur notable règne chez nous sur tour ce qui est portugais et espagnol, nous croyons donc inutile de négocier pendant quelques jours, dès que l’horizon se sera rasséréné, nous reprendrons l’affaire et y apporterons tous nous soins.»155 Contudo, o panorama não se desanuviaria. Incapaz de encontrar financiamento, a empresa nunca chegaria a ser formada. Numa carta de 2 de Abril de 1891, farto de suportar despesas sem retorno, Otelet, que também era um importante accionista da Companhia Real, informou o marquês da Foz que se retirava do projeto, inviabilizando-o definitivamente. As suas linhas, com sublinhados para destacar os pontos mais fortes, deixavam transparecer alguma ira: “La question des 1000 actions portugais qui m’oblige encore envoyer 70.000 £ (…) à mon agent a Paris m’iragne c’est la goutte qui fait déborder le vase et il déborde dans ce moment. Je me suis retiré du Grand Central pour pouvoir soigner en sauvegarde mes intérêts et je suis decidé.»156 Gorada a tentativa de formação de uma empresa para a qual pudesse transferir os encargos com o MCP-Oeste, mas precisando absolutamente de se libertar do peso morto representado pelos empreendimentos espanhóis, Foz tentou então uma manobra alternativa, voltando a encarar o seu plano original de trespassar a companhia espanhola a uma administração já existente. Desta vez, encontraria interlocutor interessado na Companhia do Caminho de Ferro do Norte de Espanha, tendo as três empresas envolvidas chegado a um acordo. A proposta de contrato negociada com as companhias do Norte e MCP-Oeste, foi discutida e aprovada na assembleia geral da Companhia Real de 26 de Junho de 1891. Na verdade, não se tratava de um contrato, mas de quatro. O primeiro era de cedência ao Norte de Espanha, da concessão e exploração da linha do MCP; o segundo, cedia-lhe a linha do Oeste de Espanha, ainda em construção; o terceiro cedia ao Norte a linha de Torralba a Soria e os estudos e concessões das linhas de Soria a Sangüesa e de Pasages a Jaca; o quarto destinava-se a regular a combinação do tráfego das duas empresas. A linha do Oeste só passava para a posse da Companhia do Norte quando a sua construção estivesse completa e aprovada pelo governo. As garantias de juro dadas às 50.000 ações e 150.000 obrigações do MCP-Oeste ficavam, momentaneamente, 155  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 83, Pasta – Ephrussi, correspondência recebida, dig. 005. 156  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Pasta – Companhias espanholas, dig. 41-42.

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a cargo da Companhia Real, transferindo-se para o Norte, quando esta empresa recebesse definitivamente as linhas.157 Os contratos entre as três empresas envolvidas foram efectivamente assinados em Paris, a 13 de Agosto de 1891 e podiam ter salvo a Companhia Real. Contudo, quando a saída parecia encaminhada, voltaria a falhar no último momento. O último passo era constituído pela aprovação do contrato na assembleia geral da Companhia do Norte de Espanha. De acordo com os seus termos gerais, os seus accionistas não aprovaram, no entanto, a redução do número de ações e do juro dos seus rendimentos, pelo que acabaram por rejeitar o acordo.158 Perante este panorama, a Companhia Real e o MCP-Oeste precipitaram-se para a falência. Noutras ocasiões, o Estado já tinha socorrido a companhia ferroviária, tal como esta já por diversas vezes tinha auxiliado o governo. Porém, em 1891, o próprio Estado confrontava-se com graves dificuldades e buscava de forma quase desesperada financiamento para poder solver os seus compromissos. Este seria o gérmen da queda do grupo Foz. Contudo, apesar do insucesso do empreendimento do MCP-Oeste e da necessidade de subtrair a Companhia Real a um contrato que a arrastava para a ruína, escudado na grande empresa ferroviária portuguesa, o grupo Foz teve outros planos para investimento em Espanha, que se cruzavam ainda com uma curiosa tentativa de concentração do sector ferroviário português. Ainda que este processo seja anterior à tentativa de formação do Grande Central, em certo ponto os dois projetos complementavam-se, na medida em que a grande rede espanhola se constituía como peça capaz de potenciar e optimizar a rede portuguesa em projeto. O problema envolvia ainda complexas questões de política financeira estatal. Em jeito de antecedentes, evocaremos o tema da “salamancada”: a linha da Beira Alta foi construída pela Société Financière para ser o grande eixo de ligação de Portugal com a Europa. O seu traçado, estendendo-se da Figueira da Foz a Vilar Formoso, entroncando com a linha do Norte na Pampilhosa, despertou na cidade do Porto o receio de perda de importância estratégica, antevendo o desvio dos esperados grandes fluxos de tráfego internacional para outros portos, como a Figueira da Foz ou Lisboa. Como reação a uma iniciativa que podia “fazer crescer a erva nas ruas do Porto”, criou-se em 1881, um sindicato abrangendo a generalidade das casas bancárias da cidade, para a construção de duas linhas de caminhos de ferro em Espanha, ligando Salamanca às fronteiras de Fuentes de Oñoro/Vilar Formoso, onde encontraria a linha da Beira Alta e La Fregeneda/Barca de Alva, ligando à linha do Douro, já em construção pelo Estado. A iniciativa teve apoio político de Hintze Ribeiro (então ministro das Obras Públicas) e Lopo Vaz, que ao apoiar o empreendimento procuravam 157  “Assembleias Gerais da Companhia Real de Caminhos de Ferro” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 85, 1 de Julho de 1891, pp. 199. 158  SANZ, Fernando F.; REDER, Gustavo, op. Cit., pp. 26.

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atrair os votos da cidade do Porto, até então um feudo progressista. Em consequência, o Estado atribuiu ao concessionário das duas linhas em Espanha, 135 contos de garantia de juro anual, a que se juntava a garantia concedida pelo Estado espanhol.159 A concessão seria efectivamente obtida pelo sindicato, que a trespassaria em 1885 à Companhia dos Caminhos-de-Ferro de Salamanca em 1895, a qual, na realidade, dependia do mesmo sindicato. Henry Burnay foi o organizador de todo o negócio,160 para o qual atraiu os principais bancos do Porto, Aliança, Comercial do Porto, Mercantil Portuense, União Portuguesa, Comercial e Industrial, Banco do Minho e Nova Companhia de Utilidade Pública.161 As linhas seriam efetivamente concretizadas, mas a fase de construção rapidamente revelou que se tratavam de um sorvedouro de dinheiro público e dos bancos que compunham o sindicato, no que posteriormente se tornaria no maior desastre financeiro português do sec. XIX. De facto, o troço entre Fuente de San Esteban-Boadilla, ponto de divergência da linha para Vilar Formoso e Barca de Alva, foi porventura, o de mais difícil construção de toda a rede ferroviária ibérica, ultrapassando os custos todas as previsões. Veículouse à data, que só Burnay ganhou com este negócio, através do fornecimento de vários materiais de construção.162 Certo é, que em 1887, ainda com as linhas em fase de construção, as dificuldades eram de tal monta que o sindicato estava em dificuldade para cumprir com os seus compromissos e ansiava libertar-se do que já se tinha percebido ser um negócio desastroso. Posteriormente, já fora do âmbito deste trabalho e considerando exclusivamente o ponto de vista financeiro, o exíguo tráfego da rede, mostraria a enorme e negativa desproporção custo-benefício da sua construção e exploração. Na altura em que o sindicato do Porto enfrentava as dificuldades resultantes da sua aventura de construção de caminhos-de-ferro em Espanha, Mariano de Carvalho ocupava a pasta de ministro da Fazenda, após a sua passagem pela Companhia Real e vários negócios do grupo ligado ao marquês da Foz, dentro do qual tinha alcançado enorme preponderância. Sob a sua ação, procurava-se implementar algumas reformas na Fazenda. Uma delas, consistia na intenção de criar uma espécie de banco central, à semelhança do que já se fazia no países mais avançados, entregando por contrato ao Banco de Portugal, presidido pelo próprio marquês da Foz, o privilégio da emissão de notas em todo o reino por 40 anos. Obstáculo à consecução deste objectivo, resultava do facto de várias instituições disporem do direito de emissão fiduciária. Nesse caso, estavam precisamente os bancos que compunham o sindicato Salamanca. As graves 159  FERNANDES, Paulo Jorge, Op. Cit., pp. 166. 160  CORDEIRO, J. A. da Silva, A crise em seus aspectos morais; introdução a uma biblioteca de psicologia e colectiva, Coimbra, F. França Amado, 1896, pp. 94-96. 161  SANTOS, Luís António Lopes dos, Op. Cit., pp. 147-148. 162  CORDEIRO, J. A. da Silva, Op. Cit., pp. 101-104.

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dificuldades por que passavam foram vistas por Mariano de Carvalho, como uma oportunidade para realizar dois planos: a) por um lado, aceitar ajudar o sindicato e indemnizá-lo por todos os prejuízos, em troca da sua desistência do direito de emissão fiduciária. Como compensação, outorgava-lhes o arrendamento das linhas do Minho e Douro, pertencentes ao Estado.163 Esta combinação, feita por ajuste pessoal entre Mariano de Carvalho e o sindicato, não era conhecida do restante executivo, nomeadamente do Presidente do Conselho, José Luciano de Castro, o que viria a trazer graves dissabores ao ministro da Fazenda;164 b) por outro lado, procurava concentrar numa grande exploração ferroviária o Minho e Douro, as linhas de Salamanca à Fronteira e vários caminhos-de-ferro fundamentais do norte de Portugal. O conjunto assim criado seria posteriormente trespassado à Companhia Real de Caminhos de Ferro. Caso o plano tivesse sido concretizado, o grupo financeiro liderado por Foz teria conseguido controlar diretamente toda a rede ferroviária básica a norte do Tejo, abrangendo todas as ligações internacionais. Para além disso, em coordenação com o MCP-Oeste, mais tarde ainda com o Grande Central de Espanha, configurava-se a perspectiva de ter controle sobre uma vasta rede quase contínua, entre os portos portugueses e a fronteira franco-espanhola. O poder obtido, que fazia com que as ambições do grupo transbordassem para outros ramos, como o monopólio dos tabacos, fez com que um contemporâneo o descrevesse, caso todo o plano se tivesse concretizado, como “o quinto poder do Estado”. Obstáculo às maquinações de Mariano de Carvalho e do marquês da Foz, era o próprio conde de Burnay, que naturalmente também estava interessado no negócio. Assim se iniciou uma batalha entre dois grupos financeiros concorrentes. Como aliados e intermediários nas negociações com o sindicato, Foz recorreu a duas personagens da sua órbita: um, o banqueiro e comerciante do Porto, Henrique Carlos Meirelles Kendall. O outro, diretor de um dos bancos integrantes do sindicato, o União, foi Ricardo Pinto da Costa. Kendall não desempenhava nenhum cargo nos bancos interessados no sindicato, tendo sido utilizado só como intermediário nas negociações, mas coube-lhe um papel importante, reportando diretamente ao marquês da Foz, tal como Pinto da Costa, sendo o negócio conduzido por um quadrado, cujos vértices eram Kendall, Pinto da Costa, o marquês da Foz e Mariano de Carvalho. Para o êxito do seu plano, era imperativo provocar a rutura do sindicato com Burnay. Em 1906, já após a falência, Silva Cordeiro apreciaria este caso com uma visão contemporânea e irónica: 163  FERNANDES, Paulo Jorge, Op. Cit., pp. 276. 164  Ibidem, pp. 275-276.

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“No tempo em que o Sr. Mariano de Carvalho geria, pela primeira vez, a pasta da fazenda, sendo já conhecido o desastre do Sindicato, cujas perdas se calculavam em 2.000 contos, viu-se este jogado entre duas influências que se disputavam o predomínio político-financeiro no país. Apenas elevado ao poder, o Sr. Mariano acercou-se (ou deixou-se acercar) dum grupo bem conhecido que se abalançava vertiginoso a todos os negócios de interesse do tesouro – empréstimos, conversões, suprimentos de dívida flutuante, etc. O conde de Burnay, que fora o banqueiro insubstituível do ministério precedente, sentiu-se naturalmente roubado. Daí uma guerra encarniçada entre as duas coteries, de que a situação progressista ressentiu o golpe mais duma vez: - por exemplo na questão dos tabacos, na conversão da dívida, na discussão do banco emissor e em questões políticas, das quais o mais interessante não era o que publicamente se declamava no parlamento, mas o que se passava no seio das comissões. Amigos do conde acusavam publicamente o ministro de representar, no poder, um sindicato financeiro. Verdadeira ou falsa, indicando as assembleias de Santa Apolónia como o centro de operações do grupo que se estenderia com ramificações evidentes pelos bancos Lusitano e de Portugal para outros pontos, dentro e fora do país, onde se pudesse especular em grande, a lenda que assim falava, mesmo injusta que seja, mostra, pelo menos, que a luta política estava dominada por uma batalha de interesses. À gente que fez o túnel da Avenida e outras obras de gran –sinedrio para encobrir desfalques colossais, e poucos anos depois havia de cair, entregando outra vez as linhas à fiscalização do estrangeiro, na derrocada geral que arrastou também o Lusitano, a essa grei de sindicateiros e banquistas não desagradaria a posse das linhas de Salamanca, sobretudo se as pudessem obter por dez réis de mel coado, como quem compra a enforcados, ou como quem estendesse uma coroa ao afogado para o salvar… ficando-lhe com o casaco. Ao inimigo Burnay, metido já debaixo do tesouro” arrancariam assim o último dente com que ainda segurava o resto da presa: e o grupo dos amigalhaços ficaria além das linhas que já possuía, com aquelas de Espanha que se tratava de comprar, com as do Minho e Douro cujo arrendamento se dava por certo e ainda com o monopólio dos tabacos e do porto –franco (para o que já estava em construção a linha de Cascais sem garantia de juro), a essa gente ficaria assim uma base tão extensa de força política e financeira para futuros empréstimos e negociatas, que constituiria um quinto poder do Estado, sem licença do qual, dentro em pouco, nenhum governo poderia administrar, contrair empréstimos ou fazer eleições. O sonho da gente que se acercara do Sr. Mariano de Carvalho não iria muito longe disto. Que a aquisição das linhas de Salamanca entrava no plano do

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“Grande Central”, confessa-o o mesmo Sr. Mariano de Carvalho na defesa com que houve de atalhar às gravíssimas arguições daqueles que em 1892 o lançaram ao mar e que na primeira eleição tinham ido busca-lo para seu oráculo e eleitor-mór.”165 De dentro da estratégia da Companhia Real, não é possível saber-se em que momento se começou a delinear esta tentativa de concentração parcial da rede interna e sua integração nos fluxos de tráfego europeus, mas uma carta enviada pelo banqueiro francês Goguel ao marquês da Foz em 1885, mostra que este já havia reconhecido o terreno quanto à possibilidade de algum negócio com a Société Financière, envolvendo ações da Beira Alta, no qual tinha participação Mariano de Carvalho, mas que no momento não pôde avançar: “La combinaison trouvé par Mariano de Carvalho relativement aux actions de la Beira Alta est très ingénieuse. Il est bon que la négociation avec la Financiére soit abandonée au moins officiellement.»166 Aparentemente, terá sido Mariano de Carvalho a solicitar a intervenção de Kendall, pedindo-lhe que sondasse o sindicato quanto à venda da capacidade fiduciária, em troca de ajudar os bancos que o compunham, a sair dos problemas financeiros em que se tinham metido com a “salamancada”. Só posteriormente, quando de uma conferência em Lisboa, já depois de Kendall ter sido nomeado pelo sindicato como intermediário nas negociações com o Governo, é que lhe revelaria a possibilidade de agitar, em troca da faculdade de emissão fiduciária, o arrendamento por 30 anos das linhas do Minho e Douro. Deu-lhe a entender, no entanto, que para isso era indispensável o afastamento de Henry Burnay do sindicato.167 Numa carta remetida a Foz, Ricardo Pinto da Costa, diretor do Banco União e representante da Companhia Nacional no Porto, informou que o sindicato aceitaria o arrendamento do Minho e Douro: “Illm.º Ex.º Snr. Marquês da Foz e meu Respeitável amigo: Desde que regressei a esta tenho procurado com toda a prudência, e dedicação encaminhar o assumpto que motivou as minhas conferências com V. Ex.ª e o Exm.º Ministro da Fazenda. Hoje houve reunião de todas as direcções dos Bancos emissores, e depois de larga discussão, authorizou-se o Exm.º Snr. Cus165  CORDEIRO, J. A. da Silva, Op.cit., pp. 115-118. 166  Centro Nacional de Doocumentação Ferroviaria, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida de M. M. Goguel & Cie. (Banqueiros), fl. 28 A 167  CORDEIRO, J. A, da Silva, pp. 121-123.

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tódio Teixeira Pinto Basto, digno Presidente da Direcção do Banco Comercial, o mais antigo dos de aqui, a dirigir um offício ao Exm.º Conselheiro Mariano de Carvalho, agradecendo os seus bons serviços, e protecção à nossa situação e dizendo que os Bancos aceitam em princípio o arrendamento das linhas do Minho e Douro (…)”168 É-nos possível acompanhar alguns passos das negociações, através das cartas de Henrique Kendall ao marquês da Foz. Em finais de 1887, o sindicato nomeou uma comissão, que se deslocou a Lisboa para se avistar numa conferência com o ministro Mariano de Carvalho. No dia de Natal de 1887, Kendall escreveu a Foz, dando conta do relatório apresentado por essa comissão numa recente reunião do sindicato. Neste, faz-se uma sumária descrição das linhas privadas que devem integrar uma importante companhia e aventa-se que a garantia de juro, podia ser aumentada para 270 contos: “O Freitas apresentou um relatório escripto da conferência que tiveram ahi, com o Sr. Ministro da Fazenda, os emissários do syndicato. Diz ter-lhes sua Ex.ª sugerido a conveniência de se crear uma companhia importante, para explorar uma rede de vias-férreas de 1006 kilometros, a saber: Salamanca à fronteira Portuguesa 202 km Medina 77 km Ávila 53 km Beira Alta 252 km Foz- Tua 72 km Nova linha transversal de Astorga, Salamanca, Béjar e Plasencia: 350 km 1006 km Diz igualmente, que o Sr. Ministro lhe era a entender que não seria difícil obter-se a linha de Medina por 6 milhões de francos ou por meio de arrendamento, na razão de 4.000 francos por kilometro. E diz mais, que sua Ex.ª espera conseguir a anuência dos seus colegas para apresentar às cortes uma proposta de lei para a ampliação da actual subvenção concedida ao syndicato, à soma de 270 contos de réis.”169 É curioso que a quilometragem da linha do Tua não aparece certa, o que possivelmente se deverá a um erro. Perante este panorama, o sindicato admitiu várias hipó168  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta – cartas, petições, coupons, dig. 09-11. 169  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 334, Pasta -Bancos, dig. 4-9.

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teses, entre elas a de criar ele próprio esta companhia, ou de vender as suas linhas à organização que a pretendesse criar, hipótese que preferia.170 Neste momento, Kendall ainda não conhecia integralmente o plano, mas já tinha sido capaz de o intuir, pedindo a Foz que lho revelasse integralmente: “(…) Parece-me certo que o Sr. Ministro não falaria tão determinadamente na rede de 1006 kilometros, se não estivesse pouco mais ou menos combinado o plano para a constituição da grande empresa exploradora: e n’esse caso V. Ex.ª não deve ser estranho a esse negócio. Portanto, se é esse o caso, e se a V. Ex.ª interessa que o syndicato se comprometa a vender as linhas de Salamanca, antes ou depois da aquisição da de Medina, e depois de obter a ampliação do Estado, é mister ser franco commigo, para combinarmos na maneira de meter mãos à obra quanto antes. (…)”171 A questão do aumento da garantia de juro é interessante, porque inicialmente, representantes do sindicato tinham consultado Mariano de Carvalho quanto à possibilidade de aumentar a garantia de juro contratada com o governo, tendo ele recusado, chegando a afirmar que “nenhum ministro se atreveria a levar ao parlamento uma tal proposta”. (CORDEIRO, Op. Cit., pp. 121) No entanto, acedeu neste momento, já fosse para facilitar as negociações, ou para preparar em boas condições a entrega das linhas ao grupo financeiro de que fazia parte e que agora procurava favorecer. Finalmente, Kendall revela que seguindo já algumas instruções de Foz, tinha consultado Ricardo Pinto da Costa, calculando que o sindicato poderia vender as linhas de Salamanca por 7000 a 7200 contos, recebendo 6000 a 6200 em obrigações e 1000 em ações da nova empresa.172 A 29 de Dezembro, Kendall dá conta a Foz da reação de Burnay, que estando em Paris, foi posto ao corrente do que se passava: “Apenas tive tempo de fazer uma rápida leitura da exposição alludida, mas direi a V. Ex.ª os pontos principais, que me ficaram de memoria. Começando por allegar os bons desejos que há um anno tinha manifestado, quando insistia pela acquisição da linha de Medina, para o syndicato, e acrescentando a mentirola de que o Sr. Ministro da Fazenda se havia então opposto a essa acquisção, diz que o número de obrigações de Medina, na pos170  Idem. 171  Idem. 172  Idem.

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se do Comptoir e das municipalidades, segundo a informação dada pelo Sr. Ministro aos comissários é inteiramente falsa, assim como o preço indicado de 6 milhões. Que as obrigações do Comptoir estão por cerca de 10 milhões de francos; e que, ainda há pouco, uma das municipalidades perguntara ao Comptoir que preço offereceria por algumas obrigações, e que oferecendo-lhe este 250 francos por cada uma, não o quis aceitar. Que concorda, com as vantagens da formação de uma rede internacional, comprehendendo, Salamanca, Medina, Ávila, e Beira Alta, em combinação com Minho e Douro, mas excluindo a grande linha transversal, que prejudicaria inclusivamente as do Douro e Beira Baixa (!) (…) Que se promptificaria a cooperar para a formação do grupo para explorar as linhas indicadas, de combinação com as do Minho e Douro, ou obtendo a do Douro somente; mas não para a rede indicada no relatório. (…) Reconhecendo que o syndicato não está habilitado a formar grupo para a exploração da grande rede, aconselha-o a declarar que o Sr. Ministro que o syndicato prefere vender todas as ações e obrigações a quem lhe der preço que o ponha a coberto de prejuízos, e que n’esse intuito seguirá em tudo as indicações governo! (…)”173 Por este documento, ficamos a saber que Burnay estava perfeitamente ao corrente do negócio, inclusivamente quanto à perspetiva de arrendamento do Minho e Douro, estava interessado na formação da empresa que exploraria este agrupamento de linhas, objectando somente quanto à inclusão da linha do Oeste de Espanha no conjunto, por temer que fizesse divergir tráfego da rede e dos portos portugueses. Os seus atos seguintes, mostram que sabia claramente que concorrentes enfrentava, uma vez que procurou ganhar vantagem adquirindo ele próprio uma das linhas que deviam integrar a nova rede, a de Medina del Campo a Salamanca,174 informando ainda por telégrafo, desde Paris, ter conseguido capitais para a formação de uma empresa nacional que explorasse o novo agrupamento ferroviário, propondo ao sindicato como bases para a compra das linhas de Salamanca, a libertação das obrigações não tomadas firmes e o pagamento de uma indemnização que cobrisse inteiramente as despesas de construção, acrescido de um bónus.175 173  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 334, Pasta – Bancos, dig. 17-20 174  CORDEIRO, J. A. da Silva, Op. Cit., pp. 121. 175  Ibidem, 123-124.

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Com o jogo em aberto, Foz foi obrigado a mover-se: nos seus arquivos existem as minutas de três contratos, redigidos por Henrique Kendall; um destinado a ser apresentado ao sindicato, em nome de um grupo de banqueiros que representa, fazendo uma proposta para a aquisição das linhas de Salamanca à fronteira portuguesa, por 7.000 contos de réis, sendo 6000 em dinheiro e 1000 em ações da nova companhia que se formará, para a sua exploração. A sua concretização fica, no entanto, pendente do aumento da garantia de juro estatal, para 270 contos.176 O segundo, entre Kendall e o Estado, pelo qual tomava em arrendamento as redes do Minho e Douro.177 O terceiro, destinado a ser estabelecido entre ele e a Companhia Real, no qual se declara arrendatário das linhas do Minho e Douro, mas se compromete a transferir o dito arrendamento para a empresa, que o indemnizará de todas as despesas necessárias, 1500 contos de reis, pagando-lhe ainda outros 1500 contos pela aquisição dos seus direitos.178 Mesmo não tendo chegado a ser efetivamente assinados, os dois documentos revelam a intenção de concentrar o Minho e Douro e as restantes linhas destinadas a ser agrupadas, no núcleo da Companhia Real, sob o domínio de Foz-Moser, o Banco Lusitano e todo o seu grupo. O que realmente acaba por ser proposto ao sindicato pelo mesmo Kendall, é a compra das linhas de Salamanca por 7200 contos, em nome do Banco Lusitano. Esse era o custo das linhas declarado por Burnay. No entanto, na qualidade de delegado do sindicato, o banqueiro belga rejeitaria a oferta e diria agora que o custo real de construção da rede era de 7800 contos.179 O expediente foi uma manobra dilatória para impedir a venda da rede a um grupo rival, mas trouxe a Burnay algum embaraço, já que o ministro da Fazenda dirigiu ao sindicato um ofício a solicitar explicações, deixando também a organização numa posição difícil. Nesse momento, Burnay tentou avançar com uma contraproposta, não em nome próprio, mas de três dos bancos do sindicato. Sobre este ponto, dá-nos esclarecimentos outra carta trocada entre Kendall e o marquês da Foz, em que o primeiro faz o ponto da situação e emite opinião sobre o passo seguinte, queixando-se ainda do pouco apoio que tem tido de Ricardo Pinto da Costa. Na correspondência de Kendall com Foz, Burnay é frequentemente designado como “Rocambole”: “Illm.º. e Exmº Sr. Marquez e meu prezado amigo. Confirmo a minha carta d’hontem e o telegramma de que junto copia pelo qual V. Ex.ª terá compreendido que o insigne Rocambole, desorientado com o offício do Sr. Ministro ao Syndicato, pedia autorização para publicar um 176  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 80, Pasta – Kendall, dig. 04-06. 177  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta – Espanha, bancos e CN, dig. 89-93. 178  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 83, Pasta – Espanha, bancos e CN, fl 10. 179  CORDEIRO, J. A. da Silva, op. Cit., pp. 127.

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folheto com documentos justificativos do excesso de custo das linhas, historiando todos os incidentes relativos ao syndicato desde a sua fundação. Esta enorme tolice, que daria lugar a polémica, em que o syndicato e o seu delegado ficariam pelas ruas da amargura, foi logo contrariada e rejeitada. Em seguida aventou a ideia de fazer uma proposta, em que não figurasse o seu nome, sendo apresentada por três bancos. Porém, só encontrou apoio nos seus amigos do Alliança e no Lima do Mercantil. Mas como o d’este último dependia do Conselho Fiscal, este lhe sugeriu autorização, com certeza. O fim todo do homem é entreter este estado de cousas; não sei com que fim: e parece-me que, atenta a exigência disparatada, declarada no offício que hoje recebí e de que junto cópia, não haverá remédio senão reunir os conselhos fiscais todos em sessão magna, e contar-lhes todas as intrujices do Burnay e todas as inépcias e velhacarias das direcções: ou talvez seja até melhor convocar, a uma reunião, os accionistas de todos os bancos interessados e dar-lhes a conhecer tudo. Se o nosso amigo, o Sr. Ricardo Pinto da Costa, empregasse a energia devida, perante o syndicato, as cousas correriam de outra forma; mas infelizmente tenho-me sempre só em campo, a luctar cá de fóra. E se não fosse o representante do Banco Portuguez, não se teriam evitado muitas inconveniências, nem eu estaria na posse de documentos preciosos, que me servirão para atacar o Burnay, quando se julgar conveniente. O Sr. Ricardo entende que se deve fazer uma proposta, oferecendo os 6000 contos em dinheiro, e o resto em ações ou obrigações pelo seu valor nominal, até ao limite de 7.800 contos, sujeito a verificação de contas. Eu entendo que é de mais; e que, mesmo em papel, se não deve ir além de 7.200 contos: e que vale mais retirar a proposta e deixar os bancos entregues à sua situação, se os conselhos fiscais, ou, se fôr preciso, os accionistas não fizeram entrar as direcções na ordem. No entanto, se V. Ex.ª entender que se faça a proposta, como indica o Sr. Pinto da Costa, ficando nós implicitamente com o direito de disputar as contas, queira dizer-mo pelo telegrapho, para me servir de governo na resposta a dar ao offício dos trez bancos. Com a máxima consideração, De V. Ex.ª Amigo dedicado e obrigado. H. Kendall”180 Apesar da recomendação de Kendall de que se devia abandonar o negócio, não foi 180  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 80, Pasta – Kendall, dig. 11-13.

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essa a opinião de Foz e de quem o acompanhava, porque foi efectivamente apresentada uma proposta no valor de 7800 contos.181 Neste momento, Ricardo Pinto da Costa assumiu uma posição ambígua. Tornando-se necessário destituir Burnay da sua posição de delegado do sindicato, para que se concretizasse o negócio, pareceu querer diferir a decisão, procurando ganhar tempo, como contou Kendall a Foz, mais uma vez “Porém, quando se passou a apresentar a minha proposta para a destituição do Burnay, o nosso amigo Sr. Conselheiro Ricardo declarou que, para uma resolução tão importante, precisava de os seus colegas: o que me obrigou a lembrar-lhe que o Conselho Fiscal, no sábbado, havia aconselhado a direcção a votar a destituição immediata. Outro membro do syndicato achou que estávamos poucos. Por fim, resolveu-se atirar a resolução para quarta-feira; ficando eu com os quesitos propostos, ao Burnay, pela Commissão official; a fim de redigir uma resposta directa do syndicato, que será submetida à assembleia n’aquelle dia.”182 O negócio acabaria por se gorar. Burnay terá manobrado nos bastidores, para fazer cair o plano, que tinha por base o arrendamento do Minho e Douro. Utilizando os seus contactos políticos, fez chegar à oposição a insinuação de que o ministro da Fazenda planeava entregar a rede estatal, em condições lesivas do interesse público. Interpelado no parlamento, o ministro das Obras Públicas não tinha conhecimento do plano, que nunca tinha sido apresentado em conselho de ministros. Fez então saber que enquanto fosse ministro, não seriam arrendadas as linhas do Estado.183 Mariano de Carvalho ficaria em maus lençóis perante o executivo, agravando uma divisão com José Luciano de Castro, que vinha de há algum tempo. Os bancos do Porto seriam efetivamente ajudados pelo Estado, em troca da perda da capacidade fiduciária, mas posteriormente a estes acontecimentos e noutro contexto. Os caminhos-de-ferro do Estado só viriam a ser arrendados no séc. XX. Quer o plano do Grande Central, quer o de concentração desta rede que o complementava, não chegariam a ser concretizados. Foz sofreu nesta combinação e na do Grande Central, uma derrota decisiva: a Companhia Real, os bancos de Portugal e Aliança, o Estado português, o marquês da Foz e os seus aliados, caminhavam para uma situação financeira cada vez mais periclitante.

181  CORDEIRO, J. A. da Silva, Op. Cit., pp. 127. 182  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo CP, Caixa 80, Pasta – Kendall, dig. 17-20. 183  CORDEIRO,. A. da Silva, Op. Cit., pp. 124-125.

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CAPÍTULO V OUTROS EMPREENDIMENTOS FERROVIÁRIOS, MINEIROS, BANCÁRIOS E DIVERSOS Nos seus arquivos encontra-se documentação dispersa de vários tipos de negócios no qual o marquês da Foz se achou envolvido. Alguns, como a construção do caminhode-ferro do Algarve e as suas participações bancárias, são relativamente conhecidos. Outros há, como a sua actividade mineira, que ainda que menos publicitados, estão relativamente bem cobertos pela documentação disponível. Noutros casos, porém, não dispomos de mais do que referências fragmentárias, não sendo possível em muitos casos saber qual foi o seu grau de participação real, ou o desfecho de muitas iniciativas empresariais, casos dos planos de empreitada de caminhos-de-ferro na Turquia e Venezuela, da instalação de uma companhia de gás no Rio de Janeiro, ou a participação obrigacionista na construção do canal do Panamá. Ao longo deste trabalho, tem sido referida a ligação de Foz ao Banco Lusitano, bem como o facto de ter sido o diretor do Banco de Portugal entre 1888 e 1891. Fez igualmente parte da Companhia Agrícola e Financeira de Portugal, tendo sido diretor na companhia de Francisco Wanzeller e Henrique J. Moser.184 Constituiu também com Fernando Palha e Mariano de Carvalho, a Companhia Real Promotora da Agricultura Portuguesa, que se tratava de uma sociedade anónima destinada ao fabrico de adubos e aquisição de maquinaria agrícola, com o objetivo de revenda aos agricultores nacionais.185 Contudo, a actividade financeira não se limitou ao território nacional, já que a liquidação de um banco parisiense, a “Caisse Commerciale”, proporcionou ao marquês da Foz a oportunidade de criar com o empreiteiro Bartissol, uma sociedade de crédito 184  Diário Popular, Lisboa, Nº 6148, Domingo, 13 de Abril de 1884, 19º ano, pp. 1 185  FERNANDES, Paulo Jorge, Op. Cit., pp. 197.

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com o capital de 8 milhões, cabendo metade a cada um dos sócios.186 Quanto às expectativas geradas por este negócio, bem como à estratégia a adoptar em termos de afastamento de obstáculos, escreveu Bartissol a Foz em Agosto de 1888, o seguinte: “La semaine prochaine, je la passerais entiérement à Paris pour réorganizer la Caisse Commerciale – Je suis persuadé que cette banque nous donnera d’excellents résultats –le profit personnel est plus grand dans les petites banques que dans les grandesIl est absolument indispensable de mettre de coté M. Bourges, qui ne cherche qu’á créer des difficultés, et qui est inspiré par M. Ravel – On ferait des difficultés jusque l’accord entre nous soit rompu, c’est pour ce motif qu’il ne faut plus prolonger plus longtemps cette situation – Je ne serais plus étonné que M. Ravel soit d’accord en cela avec g. et M. – Vous devez comprendre qu’on nous fait bonne mine, mais qu’on n’est pas enchanté de l’autorité que vous avez – Il est donc autant dans votre intérêt que dans le nôtre que le mal soit coupé dans sa racine –»187 A atividade ferroviária de Foz não se limitou ao que se descreveu nos capítulos anteriores; em Portugal, foi ainda empreiteiro de várias secções da linha do Algarve.188 Já em 14 de Novembro de 1883, ainda anteriormente à adjudicação da empreitada, o marquês conduzia negociações com o banqueiro francês Ellicot, tendo em vista o fornecimento de carris destinados a esta obra, como o revela uma carta de resposta do segundo: “J’ai reçu, avec votre lettre, le cahier des charges pour la fourniture de rails d’acier au ch. de fer du sud portugais. J’ai envoyé ce document à un de mes amis qui est l’agent de la seule maison qui en Allemagne fait tête à Bochum. Vous savez que cette dernière maison est représentée à Lisbonne par Kessler et qu’elle est avantageusement comme déjà. Votre espérance d’avoir vous une commission de 10% est tout à fait sans fondement. Les commissions que donnent les fabricants dans cet ordre de produits, où la concurrence est terrible et où leurs bénéfices sont possibles, varient entre ½ et 3%. (…) »189 186  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 334, Pasta – Cartas com bancos, Marchand e Lusitano, dig. 105-106. 187  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 86, Pasta – cartas com bancos; negócios dos c.f., dig. 44-45. 188  REIS, Jaime, Op. cit., 2011, pp. 108. 189  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, dig. 009.

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O concurso para a adjudicação desta obra decorreu a 7 de Dezembro de 1883. No entanto, Foz não se apresentou directamente, fazendo aparentemente avançar em seu nome, o empreiteiro George Hai. Para além dele, submeteram candidaturas o major de artilharia Arnaldo de Novaes Rebello, com o preço quilométrico de 12 contos de réis e o engenheiro civil João Francisco Ramos, com o preço quilométrico de 11.276$915 réis. Hai, apresentou o preço de 10.978$000 réis por quilómetro190, pelo que a empreitada lhe foi efectivamente entregue, a 12 de dezembro.191 José Guedes de Queiroz, que era engenheiro, estava à frente deste negócio e acompanhava a obra, reportando regularmente ao seu irmão, Tristão, o marquês da Foz, onde quer que este se encontrasse. A correspondência entre os dois revela algumas dificuldades, como se pode ver por esta carta, datada de 21 de julho de 1886: “Todas as obras da 6ª secção estão passadas a tarefas, e o deficit d’esta situação reduziu-se a um conto de réis, sendo o recebido do governo 13 contos, havia a pagar de trabalho 14 contos, este deficit é proveniente do tunnel, se até fins de Agosto estiver resolvido o negócio do tijolo como espero, e que não abandono a situação de agosto deve deixar um saldo; e d’ali por deante deve começar a haver lucros na 2ª secção. (…) São estas as notícias do sul, que por não serem muito agradáveis, e por não te querer afligir, podendo prejudicar assim negócios da mais alta importância, que tu aí estás tratando é (sic) para que necessitas socego de espírito, te não mandei muito de propósito dizer. Não julgues pois que foi leviandade minha, acredita Tristão, que já começo a olhar para os negócios com seriedade, e que o culpado de tu teres feito o quezilento e desagradável negócio do sul foi o Pinheiro, que de boa fé se enganou, como o George me enganou a mim, porque quando fui pela primeira vez ver os trabalhos não tinha pratica de construção confiei nas informações com que acompanhava o cálculo dos lucro, que se deviam obter.”192 É muito possível que tenha sido cometido nesta empreitada, o mesmo erro que gravou a construção da linha do Tua: um orçamento excessivamente baixo, calculado com o objetivo de obter a adjudicação em concurso público, pode ter-se na prática, 190  “Caminho-de-ferro do Algarve” in Diário Popular, Lisboa, Nº 6028, Sábado, 8 de Dezembro de 1883, 8 de Dezembro de 1883, 18º ano, pp. 1. 191  Diário Popular, Lisboa, Nº 6033, Quinta-feira, 13 de Dezembro de 1883, 18º ano, pp. 1. 192  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Fundo C.Marquês da Foz, (6F – Fundos Particulares), Série – Correspondência recebida, datas 1886.06.10/1891.08.25, Assunto Correspondência recebida pelo Marquês da Foz do seu irmão José Guedes de Queiroz, fl. 2-2a

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revelado insuficiente para garantir um bom rendimento. Para além disso, toda a obra se revelou de facto quezilenta. No tribunal de Odemira, decorreram pelo menos 18 ações de reclamação na sequência de expropriações.193 Simultaneamente, foram frequentes os conflitos entre intervenientes nos trabalhos, como o demonstra outra citação da carta anteriormente referida, de José Guedes de Queiroz, ao irmão, marquês da Foz: “Vamos ao negócio do sul, fui lá como era de prever, que se fizesse depois do que se tinha combinado, levei comigo o Arroyo, houve durante a visita várias scenas desagradáveis, entre George e Arroyo, que me fizeram muito mau humor, e que te contarei à tua chegada, não te mandei dizer nada, porque só se pode tomar qualquer resolução definitiva, quando tu aqui estejas, a impressão que os trabalhos me fizeram não foi em geral má, exceptuando a do tunnel, onde há graves dificuldades que também seria longo explicar-te agora. A fiscalização tinha-nos feito ali todo o mal que poude, e apezar de o Júdice já ter tomado posse e estar muito bem disposto, e eu ter conseguido desmascarar o Vasconcelos deante d’elle, de modo que este se vae embora no fim d’este mez, ainda temos, que sofrer as arbitrariedades d’este cavalheiro na situação d’este mez.”194 De que o negócio parece ter corrido mal, não restam grandes dúvidas, visto que a partir de 1891, se tornam frequentes as cartas de funcionários a solicitar o pagamento de salários em atraso, assim como de fornecedores, reclamando pelo não pagamento de materiais. Entre os descontentes, encontrava-se Jacques Ribeiro, o contabilista da empresa construtora da linha do Algarve, que não duvidou em manifestar com veemência a José Guedes de Queiroz, a 15 de junho de 1891, o seu mal-estar: “V. Ex.ª de certo reconheceu que não trabalho para me distrair; e que do meu logar na construção da linha do Algarve, apenas tenha colhido prejuízos, desgostos e desconsiderações. Ponhâmos, porém, de parte recriminações que não podem trazer-nos vantagem alguma, e que eu não desejo que sejam tomadas à conta de menos respeito: já agora hei-de deixar o serviço sem descer a tal pratica. Peço simplesmente a V. Ex.ª que me poupe o o incómodo e vergonha de 193  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 86, Pasta – Cartas com bancos; negócios dos C. F., dig. 67-68. 194  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Fundo. Marquês da Foz (6F – Fundos Particulares), Série – Correspondência recebida, datas 1886.06.10/1891.08.25, Assunto Correspondência recebida pelo Marquês da Foz do seu irmão José Guedes de Queiroz, fl. 2 – 2ª.

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andar todos os dias a procura-lo para receber os meus ordenados sem obter mais do que escuzas que não se justificam.”195 De abril do mesmo ano, encontramos outra carta de reclamação de um trabalhador estrangeiro: “Dans un nouvel entretien que j’ai eu avec M. Georges Hai j’ai appris que M. José Guedes aurait dit que que j’avais renoncée à ma liquidation pour les travaux de l’Algarve. Je ne sais pas comment M. votre frères a pu être induit à faire cette declaration. Les dernières paiements que vous m’avez fait faire seront de 500f par mois pour les mois de Janvier et Février 1890, dans lesquels j’ai eu le plus grand travail des liquidations. Je n’ai donc même pas reçu pendant ce temps une rétribution en rapport avec l’importance du travail que j’ai fait.»196 A 8 de Junho de 1891, seria a vez de uma empresa metalúrgica belga, a Société Anonyme de Construction de Marlanwel, de reclamar pelo atraso no pagamento pelo fornecimento de uma ponte, destinada à linha do Algarve: “Monsieur le Marquis: Nous avons l’honneur de vous faire connaitre que sous la date du 27 Avril dernier, Mr. Jacques Ribeiro Costa chef de la Comptabilité de l’entreprise George Hai à qui nous avons fourni un pont destiné à vos travaux des Algarves nous a informé qu’il tenait à notre disposition la somme de 530019 Réis qui nous reste due sur cette founiture, nous priant de lui dire ou nous désirions qu’il versait cette somme. Nous l’avons prié de la verser entre les mains de M. Henry Burnay & Cie. En votre ville, correspondant de nos banquiers à Bruxelles. Depuis lors, malgré nos réclamations, nous ne sommes pas encore parvenues à nous faire payer de cette somme. Nous osons donc nous permettre, Monsieur le Marquis, de venir vous demander de vouloir bien intervenir au prés de ce M. G. Hai pour que ce paiement nous soit fait sans plus de retard, les ordonnances de paiement qui nous ont été données précédemment venant de chez vous.»197 195  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 86, Pasta – Cartas com bancos negócios dos c.f., dig. 57. 196  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 86, Pasta – cartas com bancos; negócios dos c.f., dig. 52. 197  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 86, Pasta – cartas com bancos;

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Neste último caso, a intervenção do marquês revelou-se decisiva, porque a importância foi efetivamente paga, como o demonstrou uma carta de agradecimento da mesma sociedade a Foz, de 15 de julho de 1891, informando já ter recebido o pagamento.198 O grupo Foz manteve ainda negociações com o banqueiro Ellicott, para se candidatar à adjudicação do caminho de ferro de Luanda a Ambaca, em Angola. Nestas conversações, interveio para além de Foz e Ellicott, Lima-Mayer, admitindo-se a possibilidade de um sindicato que se encarregasse da execução desta obra.199 No entanto, em abril de 1885, o marquês fez saber a Foz que o seu grupo não participaria no projeto.200 Pela mesma altura, Ellicott propôs ao grupo Foz a sua participação na construção de uma linha radial entre Madrid e Valencia. A rede espanhola era criticada pelas lacunas representadas pela ausência de ligações mais diretas, entre determinados pontos importantes do território, que estavam unidos por itinerários demasiado longos. Tal era o caso da ligação de Madrid a Valencia, que se fazia por um longo percurso da capital espanhola, por Alcázar de San Juan, Albacete e Almansa. Para além da longa distância a percorrer, a ligação não era dominada por um só concessionário, visto que entre Madrid e Almansa a linha era concessionada à MZA, estando o trajeto entre o último ponto e Valencia, em mãos da Companhia do Norte de Espanha. A ligação direta de Madrid a Valencia por Cuenca e Utiel, viria colmatar esta deficiência. No projeto, contava-se ainda com a participação do marquês de Albuia, que chegou a deter os direitos do traçado entre a capital espanhola e Cuenca. No entanto, o plano fracassaria e Albuia seria forçado a vender a sua concessão,201 que acabou por ficar em poder da MZA. Determinante, deve ter sido o facto de o empreendimento colidir com a estratégia de expansão das duas grandes empresas ferroviárias espanholas, Norte e MZA, que configuravam um duopólio que dominava todo o esquema de comunicações no território espanhol. Nenhuma delas dispunha de uma ligação direta de Madrid com Valência, pelo que cada uma se empenhou, em primeiro lugar, na protecção à zona de influência e expansão da sua rede; em segundo lugar, em impedir a expansão do concorrente, para a sua zona de influência. Assim, se a MZA seria negócios dos c.f., dig. 55-56. 198  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 334, Pasta – cartas com bancos/ Marchand e Lusitano, dig. 54. 199  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia Real e a empresa de Dauphin Duparchi, dig. 34. 200  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia Real e a empresa de Dauphin Duparchi, dig. 40.1. 201  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Pasta – Contratos entre a CR e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 2.

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concessionária da ligação entre Madrid e Cuanca, o Norte cortar-lhe-ia o caminho, ao obter o troço entre Valencia e Utiel. A ligação entre Cuenca e Utiel, de pouco mais de 40 quilómetros, só seria concretizada bem entrado o século XX. Foi igualmente Ellicott, quem propôs ao grupo Foz a sua participação num sindicato destinado à construção de um caminho de ferro entre Puerto Cabello e Valencia, na Venezuela. O negócio era identificado por Ellicott, como uma boa oportunidade para todo o grupo que o marquês liderava, tal como para o Banco Lusitano.202 Neste caso, procurava-se a captação de capitais portugueses para se aplicarem neste empreendimento, tendo Ellicott chegado a propor a Foz um prémio de 5.000 libras, caso conseguisse no país uma participação nominal de 100.000 libras.203 A documentação não permitiu conhecer o desenlace da proposta. Nos arquivos de Foz, encontra-se ainda um documento descrevendo-se as bases para a construção de caminhos de ferro secundários em Espanha, o que sugere que o marquês pode ter encarado a sua participação nesse negócio.204 Foz encarou também a participação na construção de caminhos de ferro na parte asiática da Turquia, desta vez em associação com Bartissol, tendo-lhe sido formulado um convite para visita ao país e discussão do tema, pelo próprio governo turco, que após várias más experiências anteriores, encarava com desconfiança os representantes do capital e indústria estrangeiras, dos quais, no entanto, necessitava. O convite ocorreu em junho de 1888205 e tal como no caso anterior, a documentação não nos permitiu saber se realmente se efetuou a visita, ou qual terá sido a evolução das negociações. Outro documento encontrado no seu arquivo, datado de Outubro de 1887, dá conta do fracasso das negociações de um sindicato inglês, com o governo da China, para a construção de caminhos-de-ferro no país, cuja introdução ainda parecia ter que esperar mais algum tempo.206 A partir dos anos 80 do século XIX, ainda anteriormente ao grande arranque das suas actividades ferroviárias, o marquês da Foz participou com os seus parceiros habituais, em vários investimentos mineiros em Espanha e Portugal. Um dos mais importantes terá sido a formação de uma companhia para explorar as minas de pirites de cobre, de Sotiel e Coronada, na província de Huelva, onde já 202  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, di. 24. 203  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, dig. 22. 204  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 82, Pasta – Espanha diversos, dig. 11-17. 205  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 82, Pasta – Companhia Nacional; listagem de accionistas, dig. 28-30. 206  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchi, fl. 51

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pontificava a exploração das minas de Rio Tinto, Tharsis e Buitrón, todas nas mãos de companhias britânicas, exportando para a indústria inglesa o cobre extraído. Neste negócio, Foz participou com o engenheiro Lourenço Malheiro e Lima-Mayer, recorrendo ainda à Ellicott, para obter em Paris o capital de primeiro estabelecimento necessário. No momento, em meados de 1885, a Sotiel e a Coronada eram as últimas grandes massas de minério existentes em Huelva, ainda livres para uma exploração em grande escala. A bacia mineira que fez a prosperidade desta indústria extractiva na referida província espanhola, estendia-se ainda para além da fronteira portuguesa, sendo cortada pelo rio Guadiana. Dela fazia parte a mina portuguesa de S. Domingos, tal como as vizinhas espanholas, explorada por uma companhia inglesa. O objectivo era obter a exploração dos jazigos, através de um contrato de arrendamento com os concessionários. Na carta que escreveu ao então conde da Foz, que em Agosto de 1885 se encontrava em Paris, Lourenço Malheiro calculava que o projeto implicasse um investimento de 5.000.000$000 de pesetas. À partida, a exploração era facilitada pelo facto de já existirem galerias de acesso ao filão construídas e pela proximidade da linha de caminho de ferro da mina de Buitrón, que era alcançável através de um ramal de dois quilómetros.207 As duas minas estavam situadas em posições contíguas e a sua exploração era vista como complementar: não só a Sotiel se considerava como a continuação da Coronada, como se considerava haver vantagem em que a condução das águas no seu interior se fizesse através das galerias de desaguamento da Coronada. A Coronada era propriedade de uns Conradi,208 estando a Sotiel nas mãos de Sanchez Dalp e dos irmãos Daguerre, todos de Sevilha. As negociações, destinadas a chegar a acordo quanto aos termos de um contrato de arrendamento, encontraram grande dificuldade por parte dos irmãos Daguerre. Por um lado, as suas más relações com o sócio, Sanchez Dalp, foram de certo modo um obstáculo, mas o problema essencial, consistiu nas perspetivas de rendimento que o grupo português podia garantir aos proprietários. Efetivamente, o contrato de arrendamento, baseavase num valor a pagar pelos arrendatários, de 5 pesetas por T. de minério. Contudo, como denotaram os irmãos Daguerre, em Portugal não havia indústrias de transformação de cobre e as minas de S. Domingos, Rio Tinto e de Tharsis, todas inglesas, tinham constituído um sindicato, que lhes garantia o monopólio da exportação para Inglaterra, sendo esse o grande mercado consumidor. Por essa razão, os Daguerre estavam mais inclinados para um entendimento com possíveis arrendatários ingleses, capazes de garantir elevados rendimentos à exploração. O problema desbloqueou-se, quando Lourenço Malheiro revelou que o plano assentava na exportação das pirites para os Estados Unidos, outro mercado de grande consumo, com o qual já estavam 207  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Correspondência particular recebida de Lourenço Malheiro, fl. 19. 208  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta – Minas, dig. 41.

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estabelecidos contactos de fornecimento, beneficiando ainda da vantagem de que os fretes para esse país eram mais baratos do que para o Reino Unido.209 O contrato seria de facto assinado e a Companhia Mineira Sotiel-Coronada seria constituída. Em finais de 1883, empregava 531 operários, sob a direcção de Lourenço Malheiro.210 Os administradores eram Fernando Palha e Henrique J. Moser, sendo o Banco Lusitano responsável pelas operações financeiras que lhe dissessem respeito, em Lisboa e Porto.211 O marquês da Foz associou-se ainda com Ellicott para explorar minas em Ciudad Real, pondo-se grande expectativa num poço denominado Paris - Murcia. Esta associação manteve-se em Portugal, para a criação da Companhia da Tapada,212 constituída para a exploração, entre outras, da mina de antimónio e ouro de Vale de Canas. A grande concentração de minas nas imediações motivava a existência de um importante concorrente, a Companhia de Minas de Gondomar, já anteriormente existente e que disputou à Companhia da Tapada a produção e domínio dos jazigos.213 O marquês da Foz envolveu-se também em negócios de importação e colocação em Portugal, de cimentos Portland. Abraham de Camondo era presidente da Société des Ciments Portland du Boulonnais, e tinha uma fábrica em Devres, perto de Boulogne sur Mer. A empresa já tinha conseguido uma cota de mercado importante em França, mas desejava expandir-se para outros países e alargar o seu mercado às exportações. O contacto com Foz, foi visto por Camondo como uma oportunidade para abrir caminho à comercialização do cimento no país, pelo que em julho de 1885, solicitou a sua intervenção, no sentido de lhe indicar com quem tinha que contactar para obter clientes.214 Em Outubro de 1885, foram expedidas de França para Portugal, amostras ao cuidado do marquês da Foz,215 acabando Camondo por lhe enviar, em princípios de 1886, um representante da fábrica, Mr. Obled, que confiou à receção e orientação de Foz, com o objetivo de conseguir encomendas.216 Uma das encomendas 209  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta – Correspondência particular recebida de Lourenço Malheiro, fl. 7- 7 a. 210  Diário Popular, Lisboa, Nº 6.104, terça-feira, 26 de fevereiro de 1884, 19- ano, pp. 2. 211  Cf, “Companhia Mineira Sotiel-Coronada”, in Diário Popular, Lisboa, quarta-feira, 14 de fevereiro de 1884, 19º ano, pp. 4. 212  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 134, Pasta – Correspondência recebida, 4/12/1888 a 16/12/1886, dig. 53-54. 213  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta Minas, dig. 36-37. 214  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta Particular e diversos; 9 recibos de direitos de mercê; diversos, dig. 62-64. 215  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta – Particular e diversos; 9 recibos de direitos de mercê; diversos, dig. 74-75. 216  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta – Correspondência recebida com negócios, Sociedade Geral Agrícola, dig. 101-102.

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conseguidas foi precisamente de 3.000 T de cimento destinado à Companhia Nacional, tendo Foz remetido o dito Mr. Obled ao diretor-geral, Almeida Pinheiro. A decisão final sobre a concretização da encomenda, foi remetida por Almeida Pinheiro ao conselho de administração da companhia, presidido por Foz, solicitando Camondo o seu apoio para a confirmar.217 A documentação encontrada no arquivo não é clara quanto ao grau de participação do marquês da Foz nas obras dos portos de Leixões e Lisboa, mas o seu grupo era parte interessada e pelo menos no caso de Lisboa, há provas documentais desse interesse. O concurso público para as obras do porto de Leixões foi aberto a 23 de Janeiro de 1884. A única proposta foi apresentada pelos empreiteiros franceses Dauderni e Duparchy, que já tinham a cargo a construção do caminho de ferro da Beira Alta. A base de licitação era de 5.000 contos, tendo a proposta apresentado o valor de 4.489 contos.218 A adjudicação foi feita a esta empresa francesa, tendo o contrato sido assinado a 16 de fevereiro do mesmo ano.219 À morte prematura de Dauderni, Bartissol tomaria o seu lugar na empresa e ocuparia o seu posto no conselho de administração das obras do porto de Leixões.220 Bartissol e Duparchi desenvolveriam depois uma relação privilegiada com o sindicato financeiro liderado pelo marquês da Foz, tendo depois sido os empreiteiros de muitas das obras realizadas pelas empresas que estavam sob o seu controle, casos do troço entre Torres Vedras – Figueira da Foz/Alfarelos, da linha do oeste, da estação e túnel do Rossio, parte da linha de Cascais ou a linha do Oeste de Espanha. Bartissol seria, inclusivamente, sócio do marquês da Foz, na constituição de uma sociedade financeira em Paris. No entanto, só por si, o facto não demonstra que houvesse envolvimento claro e direto do marquês no porto de Leixões. O mesmo se passa para o caso do porto de Lisboa, em cujo processo, em todo o caso, Foz teve interesse e fez um detalhado acompanhamento. Em Dezembro de 1883, uma notícia do Diário Popular, dá-nos conta de uma reunião realizada na Sociedade Agrícola e Financeira, com o fim de se organizar uma empresa que adquirisse a concessão do porto de Lisboa e realizasse os melhoramentos necessários.221 Em junho de 1884, o banqueiro francês Ellicott, respondeu a uma carta enviada pelo marquês da Foz, pedindo-lhe informações sobre o interesse do empreiteiro Hersent, nas obras do porto de Lisboa. Suspeitava-se de que através dele, Burnay estivesse a preparar igualmente, a sua participação no negócio. Na verdade, Hersent tinha sido sócio de outro 217  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa Nº 15, Fundo: Marquês da Foz (G. F. – Fundos Particulares), Série 01 – Correspondência recebida, Peça Nº 12, datas 1886.01.22 – 1888.06.15, Assunto, correspondência recebida de A. Camondo, fl. 13. 218  Porto de Leixões – in Diário Popular, Lisboa, quinta-feira, 24 de janeiro de 1887, 19º ano, pp. 1. 219  Diário Popular, Lisboa, Nº 6095, domingo, 17 de fevereiro de 1884, 19º ano, pp. 1. 220  Diário Popular, Lisboa, Nº 6136, segunda-feira, 31 de março de 1884, 19º ano, pp. 1. 221  Diário Popular, Lisboa, Nº 6041, sexta-feira, 21 de Dezembro de 1883, pp. 1.

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empreiteiro, W. Couvreau pai, o qual, através dos Rollins da Bélgica, já tinha tido relações com Burnay noutras ocasiões. No entanto, Couvreau pai estava já retirado dos negócios, tendo-lhe sucedido W. Couvreau filho; embora a relação desta com Burnay se mantivesse, a associação com Hersent não se tinha mantido. Após conversa com o próprio Hersent, Ellicott confirmou a Foz que este seguia há muito tempo o negócio do porto de Lisboa, a cuja adjudicação se pensava candidatar, mas que trabalhava sozinho e seria assim que se apresentaria a concurso. Mais garantiu expressamente, que não tinha nenhum entendimento com Couvreau filho, nem com ninguém.222 Claramente, Foz estava a recorrer aos seus contactos internacionais, para avaliar um concorrente, ou até possivelmente, encarar a possibilidade de uma aliança. Hersent seria efectivamente o empreiteiro e concessionário do porto de Lisboa. Sobre isso, do arquivo Foz, consta um protesto de Duparchy e Bartissol, enviado ao ministro e secretário de Estado de Obras Públicas, Comércio e Indústria, Emidio Navarro, informando que não tinham apresentado proposta por não ter sido esclarecida pelo caderno de encargos uma questão técnica, que no caso de ter sido clarificada, lhes teria permitido apresentar um orçamento mais favorável do que o de Hersent.223 A iniciativa de Foz, de fazer a Companhia Real avançar para o pedido de com concessão da linha de Cascais, ao abrigo da legislação, que permitia considerar esse eixo como um ramal da sua rede, terá já sido uma forma de cortar o caminho a Hersent, que estando já na posse da concessão do porto de Lisboa, se preparava para obter o do ramal de Cascais, como sugere esta carta recebida de Rüppen, de Inglaterra, em abril de 1887. Este mantinha a esperança de que o Banco Lusitano pudesse ainda entrar na empreitada: “Monsieur & cher collègue, J’ai à vous félliciter pour le succès que vous avez obtenu auprès du gouvernnement de S. M. Portuguaise pour la ligne de Cascaes, mais c’est surtout três bien manœuvré pour faire désister Hersent de son project, car il me revient qu’il en avait fait un sine qua non pour entreprendre les travaux du port. Si le Banco Lusitano prend le port, les anglais y prendraient facilement un intérêt.»224 Não nos é possível saber, através da documentação disponível, que tenha havido um acordo com Hersent, para participação de Foz, do seu grupo, ou de alguma das empresas da órbita do seu sindicato, no porto de Lisboa. 222  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 15, Pasta Contrato entre a Companhia Real e a Empresa Dauphin Duparchi, fl. 11, 1-2 223  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta 11, fl. 1. 224  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta – Negócios Caminhos de Ferro, 1887, dig. 33.

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Ellicott formou uma parceria valiosa com o grupo Foz e as suas propostas de participação em negócios diversos, em diferentes partes do mundo, são muito numerosas. Entre elas, está um convite para a integração de uma empresa inglesa, que explorasse a rede de iluminação a gás do Rio de Janeiro. O anterior concessionário do serviço tinha sido expropriado pelo governo brasileiro, o que tinha levado à formação de um sindicato em Londres e Paris, para tomar o seu lugar. Sabemos que em Portugal, o Banco Lisboa e Açores também tinha manifestado interesse, propondo Ellicott a Foz e aos seus amigos, uma participação que podia variar entre 20.000 a 50.000 libras, mas desconhecemos o seu desenlace.225 Sabemos contudo, que após um contacto de Ephrussi, o Crédit Lyonnais reservou ao marquês uma participação de 1.000 obrigações, no empreendimento do canal do Panamá.226 Estas foram certamente tomadas, na medida em que Ephrussi lhe fazia relatórios da sua cotação.227 Entre os seus papéis, foi possível encontrar, por exemplo, a escritura da compra da sua parte dos direitos de portagem da ponte D. Luís I, em Santarém, negócio em que terá entrado com Henrique Moser.228 Há ainda documentação testemunhando a importação de trigo da Califórnia, (em colaboração com Ephrussi),229 da produção de vinho230 e cortiça,231 procedente das suas propriedades. Emile de Rouillet propôs-lhe montar duas refinarias de petróleo, uma em Lisboa e outra no Porto, iniciativa em que podiam participar os Rotschild232 e os irmãos Daguerre, de Sevilha, que tantas dificuldades chegaram a pôr à concretização da projeto de Sotiel-Coronada, tentaram obter o seu financiamento para a construção de um canal de irrigação de planície de Sevilha, a partir do rio Guadalquivir.233 225  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Caixa 15, Pasta – Contrato entre a Companhia Real e a empresa Dauphin Duparchy, fl. 24. 226  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 133, Pasta - Cartas comerciais, dig. 114. 227  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta – Ephrussi, correspondência recebida, dig. 16. 228  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta – Espanha, bancos, CN, fl. 7. 229  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta – M. Ephrussi & cie., dig. 16-17. 230  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida-enviada, dig. 22. 231  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida-enviada, dig. 30. 232  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Pasta – Companhia espanhola; Companhia Real dos C.F. Portugueses, dig. 09. 233  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 83, Pasta – Correspondência direta com bancos, dig. 11.

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CAPÍTULO VI A QUEDA DE UM FINANCEIRO A grande crise portuguesa de 1891 não resulta só das opções e atos da política económica interna, antes se inserindo num contexto de adversidade e crise europeia. No caso português, o que se pôs em causa em 1891, foi todo o modelo económico, político e social, tal como tinha sido desenvolvido ao longo da segunda metade do século XIX. Os sinais da queda eram já visíveis em 1889, mas desde finais de 1890 o Estado começava a ter claras dificuldades em fazer frente ao deficit orçamental, para ajudar bancos e companhias ferroviárias à beira da falência. O rumor de falência das instituições bancárias, lançou uma onda de pânico entre o público, que acorreu aos bancos para trocar o papel-moeda por metal, entre maio e setembro de 1891. Consequência deste fenómeno, o Banco de Portugal esgotou as suas reservas, sucedendo-se as falências e suspensões de pagamentos noutras casas. Factor de agravamento, foi ainda a instabilidade que sucedeu à proclamação da república no Brasil, que se refletiu em revoltas regionais, várias tentativas ditatoriais e queda do preço do café, então, a principal exportação brasileira. Esta conjuntura, refletiu-se na desvalorização da moeda e estancamento das remessas dos emigrantes portugueses para o país de origem. Os fundos procedentes do Brasil eram vitais para o equilíbrio das contas do Estado português, consequentemente, de toda a economia. A um panorama tão desfavorável, acresceu a quebra na exportação de produtos agrícolas, o aumento das importações, o agravamento dos compromissos do Estado, assim como das empresas privadas, com o exterior. Para cúmulo, a questão colonial relacionada com a divisão do território africano, entre Portugal e a Inglaterra, levaria o governo inglês a fazer ao português um Ultimatum que assentaria ao prestígio da monarquia, um golpe de que já não recuperaria. Foi nesta altura que muitos setores da sociedade, puseram em causa o “fontismo”,

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a corrente político-económica prosseguida nos quarenta anos anteriores. O que se contestava e encontrava a sua derrocada final, era todo o sistema implantado por Fontes Pereira de Melo em meados do século XIX e desde então, prosseguido pelo rotativismo, baseado nos sucessivos governos regeneradores e progressistas. A sua atuação, baseava-se na política de obras públicas, cujo aspecto mais visível era a construção de caminhos-de-ferro. As obras financiavam-se à custa de um deficit crescente, coberto pelo dinheiro dos emigrantes no Brasil. Com a suspensão dessas remessas, o sistema ruiu pela base.234 Para além dos erros de gestão cometidos, o incipiente capitalismo português tinha sido construído com pés de barro, sendo colhido por esta derrocada geral. Foi esta a armadilha que envolveu o sindicato Foz, que entre 1884 e 1891, tinha investido em diversos negócios que como vimos, foram dando quase sempre resultados abaixo do esperado, avolumando perdas. Em fevereiro de 1891, uma carta de Affonso Netto ao marquês da Foz, anunciava já o ambiente de tensão, dificuldades e aproximação de temporal, que se avizinhava: “(…) Meu Exm.º amigo o que é feito da procuração do Bartissol? Olhe que temos lucta, e naturalmente renhida, pelo menos o John já deligenciou (sic) apanhar a procuração do José Nogueira Pinto, e julgando que o Feliciano Abreu ainda tenha voto falou-lhe para trabalhar de comum acordo com elle. Arranjei quem empreste Libras 2000 sobre 300 obrigações da Companhia Nacional. É pouco (30.000$000 por obrigação) mas a verdade é que se for ao Banco de Portugal ou Montepio não adiantam um vintém sobre esse papel. De mais não há prejuízo algum para o Marquês, porque não se trata de venda e só sim de caução até à liquidação de Astorga. Peço-lhe pois que leve logo para o Banco (eu estou lá da 1 às 2 horas) as 300 obrigações, e eu lhe passarei o respectivo recibo, como é justo, porque há morrer e viver. Não deixe é de as trazer hoje, porque amanhã realiso a transacção sobre ellas. Mt.º e mt.º obrigado se confessa mais uma vez o de V. Ex.ª criado certo e amigo Affonso Netto.)”235 A missiva que acabamos de transcrever é reveladora de vários aspetos: o momento era de grande dificuldade, aproximava-se uma dura batalha pelo domínio da 234  SANTOS, Luís António Lopes dos Santos, Op. Cit., pp. 155-156. 235  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 82, Pasta – Companhia Nacional, listagem de accionistas, dig. 35-36.

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Companhia Real, havia falta de fundos e era já muito difícil obter crédito, sendo que os títulos da Companhia Nacional estavam já muito desacreditados e desvalorizados. Começaremos talvez pela Companhia Nacional a análise desta etapa. Tal como pudemos ver no capítulo 2, o problema da Companhia Nacional, resultou de um cálculo deficiente e irrealista do custo de construção da linha do Tua, que nos primeiros cerca de 30 quilómetros, ofereceu consideráveis dificuldades de construção. Consequentemente, para construir a linha foi necessário recorrer parcialmente,ao orçamento atribuído à construção da linha do Dão, concessão da mesma empresa. Embora o cálculo do custo de construção quilométrico da segunda linha, se tivesse revelado realista, ficou cerceado pela necessidade de terminar a linha do Tua. Neste contexto, a companhia ficou sem recursos para concluir a linha do Dão, obstáculo que procurou enfrentar com uma segunda emissão obrigacionista. Esta revelar-se-ia, ainda assim, insuficiente para permitir cobrir todos os custos, para o que até pode ter contribuído a imposição de algumas variantes por parte do Governo, que terão agravado os custos. A linha concluiu-se, mas a companhia seria incapaz de saldar os pagamentos a empreiteiros, fornecedores e obrigacionistas. A 1 de julho de 1891, seria obrigada a suspender parcialmente o pagamento da dívida obrigacionista.236 A situação era aflitiva. O serviço das 32.164 obrigações requeria a aplicação de 133 contos por ano. Para além disso, a empresa tinha 800 contos de dívidas a diversos. Entre esses diversos, contavam-se dívidas a empreiteiros, fornecedores, atrasos no pagamento de salários a funcionários e jornaleiros. Os próprios membros dos Conselho do Administração tinham deixado de receber os seus honorários. Diante deste panorama, a companhia contava para fazer frente às dívidas e custos, com 121.526$655 anuais, procedentes da garantia de juro paga pelo Estado. Não era de esperar uma rápida melhoria das exíguas receitas proporcionadas pela exploração das suas linhas. O conselho de administração liderado por Foz decidiu então, ditatorialmente, elaborar um plano de pagamentos de dívidas, tendo por base os seguintes termos: 1) pagar aos obrigacionistas um quarto do cupão, em cada semestre, usando uma parte de garantia de juro; 2) usar o remanescente da quantia procedente da garantia de juro, para ir pagando aos outros credores; 3) alargar o prazo de amortização das cargas financeiras, para o limite do prazo de concessão das duas linhas.237 236  “Linhas Portuguesas; Companhia Nacional” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 86, ano 4º, 16 de Julho de 1891, pp. 222. 237  “Um obrigatário, aos obrigatários e mais credores da Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro”, in, Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro; Relatório do Conselho de Administração e parecer do Conselho Fiscal apresentado à assembleia-geral ordinária, Lisboa, 1891, pp. 4-7

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Esta iniciativa unilateral foi complementada por uma ameaça velada aos obrigacionistas: “Não convém embaraçar a execução d’este plano salvador por isso que, em tal caso, correis o risco de vêr-nos entregar as linhas ao Estado, com o qual tereis de haver-vos depois.”238 A atitude desagradou aos obrigacionistas, que não só viam ser preteridos os seus interesses, relativamente aos restantes credores, como defendiam que qualquer solução devia ser negociada com os interessados e não imposta unilateralmente, pelo conselho de administração que tinha conduzido a empresa à ruína. É o que transparece do documento dirigido por um obrigacionista aos seus pares, na assembleia que reuniu ainda em julho de 1891: “Do estudo da 1ª e 3ª das disposições do célebre decreto de dictadura da administração da companhia, resulta pois naturalmente para o público a convicção firme de que nenhuma confiança devem ter nos títulos de crédito da mesma companhia, enquanto não forem tomadas providencias serias que definam claramente as garantias d’esses títulos; ao passo que para nós, obrigatários, resultam as consequências funestíssimas d’essa justa apreciação, além do direito de pensarmos que os accionistas representados pelos seus dictadores, estão a brincar comnosco. Outra cousa não podemos com efeito imaginar, em face da sem-cerimónia com que dispõem do que é nosso, pretendo convencer-nos de que devemos ficar-lhes agradecidos.”239 Na assembleia, por proposta de Feliciano de Abreu, foi nomeada uma comissão administrativa com plenos poderes, composta por Manuel António de Seixas, Mesquita da Rosa e pelo Banco Comercial.240 O conselho de administração demitir-se-ia, sendo a solução finalmente adotada, não a inicialmente proposta pelo conselho, mas a da cedência pelos acionistas, aos obrigacionistas, de parte da representação social da companhia, aceitando estes a conversão das obrigações. Passando a ter peso na administração da empresa, os obrigacionistas ficariam em condições de a conduzir de forma a que os seus interesses fossem satisfeitos da melhor maneira possível.241 238  Idem, pp. 7 239  Idem, pp.11-12. 240  “Linhas Portuguesas; Companhia Nacional” in op. cit., pp. 222. 241  Um obrigatório; aos obrigatários e mais credores da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro, op. cit., in op. cit. pp. 18.

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Se a falência da Companhia Nacional foi um golpe, a verdadeira derrocada seria representada pela queda da Companhia Real, que pelas relações íntimas que mantinha com a alta finança e o Estado, estaria envolvida na insolvência do Banco Lusitano, do Banco de Portugal, do sistema bancário português em geral, bem como do próprio Estado. Para se compreender totalmente a problemática da época, há que destacar a relação de enorme dependência financeira do exterior, de um país como Portugal. A tentativa de modernização e desenvolvimento que marcaria toda a segunda metade do século XIX, necessitava da assistência técnica e financeira do estrangeiro. No caso do capital, era obtido através da colocação dos títulos de dívida pública ou de empréstimos, em determinadas condições. Contudo, as negociações destinadas a viabilizar as operações financeiras de que dependiam quer o Estado, quer as grandes companhias e bancos privados, não eram fáceis. Portugal era um país pouco desenvolvido, pobre, com a economia assente fundamentalmente na agricultura, com um Estado politicamente instável e bastas vezes no passado, insolvente. Por essa razão, era frequente o encerramento das praças estrangeiras aos títulos nacionais; conseguir a sua aceitação obrigava os governos a negociar e capitular diante das exigências dos Estados e financeiros, dos países cuja assistência se solicitava.242 Ainda que os sintomas fossem já visíveis, pelo menos desde 1889 agravando-se continuamente desde então, a crise declarou-se abertamente em abril de 1891.243 O texto que a seguir citamos, extraído do boletim de análise financeira da Gazeta dos Caminhos de Ferro, de maio de 1891, ilustra a conjuntura da época. Nas entrelinhas, reflecte-se a crise, a importância central que no país desempenhava a Companhia Real e a forma como se articulava com o setor financeiro, bem como o ambiente de guerra entre grupos de capitalistas concorrentes: “Lisboa, 15 de Maio. Teve excepcional importância, sob o ponto de vista económico e financeiro, tanto no país como fora dele, a quinzena que hoje expira e que trouxe grave e seriamente perturbadas, por causas diversas, umas mais gerais, outras mais particulares, as praças nacionais e estrangeiras. A crise portuguesa de há muito pronunciada e infelizmente pouco prevenida, embora coincidisse com a crise geral europeia, quasi se pode afirmar ter sido principalmente produzida por causas que procedem directamente da nossa economia interna e também, em grande parte, influenciada pelos dissentimentos e antagonismos, que de há tempos a esta parte puseram em conflito grupos de financeiros, especialmente 242  PINHEIRO, Magda, “Caminhos de Ferro em Portugal na Segunda Metade do Século XIX.” In Análise Social; Revista do Gabinete de Investigações Sociais, Vol. XV, Nº 58, 1979, s.l., ed. Gabinete de Investigações Sociais, pp. 266-268. 243  CORDEIRO, J. A. da Silva, Op. cit., pp. 68.

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interessados numa grande empresa portuguesa. Não se pode ocultar, porém, que se a crise se desenvolveu e medrou, pondo a descoberto um pouco da verdade da nossa organização bancária, que de muito merecia as atenções dos que a sangue frio podem estudar estes assuntos, foi porque a situação era mais propícia para a alimentar, pois os erros acumulados por administrações pouco previdentes, lançadas imprudentemente em especulações de todo o género, haviam enfraquecido por igual os elementos de defesa bancária e o necessário e imprescindível apoio da confiança pública, muito difícil de adquirir e de consolidar, facílimo de anular e de perder, impossível de readquirir e de restabelecer quando uma vez perdida. (…)”244 Nos acontecimentos financeiros que marcaram o ano de 1891, Mariano de Carvalho, o ministro da Fazenda em atividade e peça importante das actividades do sindicato Foz, desde 1884, seria um dos protagonistas. Em princípios de 1891, o evidente desequilíbrio orçamental do Estado, via-se acentuado pela má impressão criada em Paris, quer pelos protestos dos detentores dos títulos de D. Miguel, quer pelas dificuldades de tesouraria da Companhia Real. No que a esta se referia, fazia saber a imprensa que a direcção onde pontificava Foz tinha acumulado uma dívida de mais de 12.000 contos. A partir de 1 de janeiro de 1891, a empresa aproximava-se, de facto, da falência, sentindo-se Mariano de Carvalho compelido a tentar uma manobra destinada a salvá-la. Da saúde da Companhia Real, que tocava com importantes interesses financeiros franceses e alemães, se compreendeu que dependia a saúde do crédito do Estado. Para a tentativa, Mariano de Carvalho recorreu a António Centeno, que se deslocou a Paris para negociar uma saída. A solução proposta por Centeno, era de extremo arrojo. O seu plano consistia em liquidar a Companhia Real em assembleia geral. Os seus ativos seriam vendidos a uma nova empresa, com situação financeira saneada, para a qual o Estado transferiria a posse das concessões. O produto da venda dos ativos serviria para indemnizar os accionistas e obrigacionistas da Companhia Real. 245 Quarenta anos depois, em Espanha, em 1936, pouco tempo antes do deflagrar da Guerra Civil e também diante da inevitabilidade da falência, as duas principais companhias ferroviárias, Norte e MZA, estudariam uma solução similar, que a conjuntura política/ social/militar, impediram que se pusesse em prática.246 Contudo, o contexto de tensão política impediria a concretização do plano Centeno. A 4 de janeiro, diante de ausência de Mariano de Carvalho por doença, a ideia 244  J. F.; PESSARD, G., “Boletins Financeiros” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 82, ano 4º, 16 de maio de 1891, pp. 149. 245  FERNANDES, Paulo Jorge, Op. cit., pp. 365-367. 246  SANTOS, Luís António Lopes dos, Op. cit., pp. 459.

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chegou a ser submetida a conselho de ministros, sob a forma de uma proposta de lei intitulada convénio, mas a sua discussão foi julgada inoportuna. Mariano entendeu este ato como uma contestação e manifestação de desconfiança relativamente ao seu ministério, tendo chegado a apresentar a demissão ao chefe do governo, João Crisóstomo, mas a 7 de Janeiro recuou. A 11 de janeiro, na câmara dos Pares, D. Luís Câmara Leme, denunciou que o ministro da Fazenda tinha recentemente adiantado milhares de contos ao Banco Lusitano e mais de 13 milhões de francos à Companhia Real, sem conhecimento do parlamento, autorização ou a legitimação de uma lei. Em conselho de ministros realizado passado pouco tempo, Mariano de Carvalho revelou que tinha realizado por sua iniciativa um adiantamento de 13 milhões de francos, cerca de 2600 contos, à Companhia Real, para pagamento de dívidas. Os restantes membros do governo mostraram-se surpreendidos e desconhecedores do facto, o que é muito improvável, porque os problemas da Companhia Real e do Banco Lusitano eram abundantemente tratados pela imprensa. Mariano de Carvalho ficou assim isolado, perante a proximidade de um escândalo. Demitiu-se logo depois, tendo estes acontecimentos precipitado o final da sua longa carreira política.247 A intimidade de relações entre a Companhia Real e o Banco Lusitano e o impacto que daí advinha para os negócios do Estado está bem patente em outro trecho do já citado boletim financeiro da Gazeta dos Caminhos de Ferro, que relata ainda a derrocada geral: “Depois da extraordinária falência do Banco do Povo, que, quanto a nós está longe de ser considerada um caso esporádico da nossa anarquia bancária, o Banco Lusitano começou a ser alvo de uma singular desconfiança, em que muitos quiseram ver apenas o resultado de uma campanha surda, desenvolvida por intrigas de financeiros, com o fim de indiretamente causar perturbação mais grave numa poderosa companhia, cujos interesses se prendiam um pouco com os daquela casa bancária, mas que no fundo era o agravamento de uma crise, que vinha de muito longe, influenciada por causas muito anteriores às operações que envolveram o Banco Lusitano no negócio dos caminhos de ferro portugueses, que parece ter sido agora o principal factor da sua capitulação perante o cerco formal que lhe fizeram os seus depositantes, que em poucos dias o colocaram na posição difícil de pedir uma moratória, tendo sido insuficiente o auxílio que lhe prestou o governo, que, em vista das circunstâncias, lhe negou, ao que parece, novos suprimentos para os quais parece não ofereceriam suficiente garantia os seus recursos de ocasião. Anunciada a suspensão de pagamentos do Banco Lusitano, a desconfiança pública sobreexcitou-se e 247  FERNANDES, Paulo Jorge, Op. cit., pp. 369-370.

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daí como natural consequência, a corrida a todos os bancos. Em vinte e quatro horas foram retirados depósitos no valor de 1.870 contos, não tardando a reconhecer-se que o stock de ouro carecia de ser cuidadosamente defendido. Daí o decreto permitindo ao Banco de Portugal pagar em prata as suas notas de ouro. Esperava-se que com estas e outras providências serenasse o sobressalto público, o que não sucedeu, reconhecendo-se logo que os depósitos metálicos não comportariam as exigências da situação. Promulgou-se então o decreto da moratória. Estava acentuada e definida a crise monetária. O governo, no intuito de fortalecer as reservas metálicas mandou cunhar 2.000 contos em prata, e como papel subsidiário permitiu que fossem emitidas pelo Banco de Portugal novas notas ou cédulas de valor de 2$000, 1$000 e 500 réis. Não devemos ocultar que a criação destes dois últimos tipos de moeda foi mal recebida, chegando a afirmar-se que os operários se recusariam a aceitá-los, por acreditarem que esse papel entraria logo no mercado com depreciação, que ou se traduziria directamente num ágio de desconto imediato ou indirectamente na elevação no preço dos géneros de primeira necessidade, quando pagos com cédulas menores.”248 A 14 de janeiro, João Crisóstomo apresentaria a demissão do governo, dissociando-se das ações do ministro da Fazenda. Como mais tarde viria a explicar Mariano de Carvalho, procurando evitar uma falência fulminante, tinha sido forçado a negociar com o Darmstadt Bank um empréstimo que lhe permitisse garantir o pagamento do coupon dos títulos do Estado. A contrapartida exigida pela casa financeira alemã, foi que o Estado aceitasse ajudar a Companhia Real, assim como sugeriu que a empresa fosse nacionalizada, de forma a indemnizar os obrigacionistas, o que explicava o conteúdo do plano Centeno de liquidação da empresa. Sem alternativa, o ministro da Fazenda foi forçado a aceitar as condições. A situação era desesperada: as finanças dispunham de 600 contos procedentes do contrato do tabaco, o Banco de Portugal contava com 2000 contos em ouro e prata e 8000 a 9000 contos em circulação. O governo tinha adiantado 1542 contos à Companhia Real, 1585 contos ao Banco Lusitano, 50 contos ao Banco do Povo. Rodeado de companhias e bancos em falência, já não havia dinheiro para que o Estado cumprisse os seus compromissos.249 Pelo seu lado, o marquês da Foz ver-se-ia ele próprio envolvido num escândalo, do qual a sua imagem pública sairia indelevelmente manchada, relacionado com uma tentativa de salvar o Banco Lusitano. Nesse princípio de 1891, o banco estava, tal como a Companhia Real, em situação desesperada. Forçada pela necessidade de acor248  J. F.; PESSARD, G., op. cit., pp. 149-150. 249  FERNANDES, Paulo Jorge, op. cit., pp. 372.

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rer às suas despesas, a companhia tinha levantado todos os seus depósitos no banco, sendo ainda devedora de cerca de 100 contos. Com o estabelecimento a descoberto, o diretor, António Vítor dos Reis e Sousa, que também era membro do conselho de administração da Companhia Real, terá solicitado o auxílio de Foz para fazer frente à delicada situação. Não se dispondo de outras verbas, a solução encontrada consistiu em levantar do cofre da Companhia Real, 2.565 obrigações de 4 ½% do governo português, pertença das caixas de socorros e previdência dos empregados da Companhia Real, no valor de 204.687$000 reís e transferi-las para o Banco Lusitano. Esses títulos foram então entregues no Montepio, onde serviram de caução para a obtenção de um empréstimo de 150 contos, que outorgasse ao Banco Lusitano alguma liquidez. O rumor de que tinham sido desviados fundos da caixa dos empregados da Companhia Real, levou o comissário da 2ª divisão policial a inspeccionar o cofre da Companhia Real, no dia 12 de janeiro. Verificando-se a transferência dos fundos, o comissário apresentou-se no dia seguinte no Banco Lusitano, tendo confrontado António Vítor dos Reis e Sousa. Na sequência deste caso, acabariam por ser presos António Vítor dos Reis e Sousa, Mendonça Cortez, Mark Seruya, Guilherme da Silva Guimarães, João B. de Figueiredo, Constantino J. Vianna, todos directores do Banco Lusitano e o próprio Marquês da Foz, com uma fiança de 250 contos.250 Seria libertado pouco tempo depois, assim como os diretores do Banco Lusitano. O prestígio até então intocável do marquês da Foz começava a desvanecer-se com este infeliz episódio, assim como a sua própria carreira de capitalista se aproximava do fim. Um ano depois, seria pronunciado num processo-crime, consequência destes acontecimentos. O próprio Foz se encarregaria em 1892, de editar uma petição de agravo, destinada a procurar limpar o seu nome, explicar os factos e limitar o seu grau de participação na operação. A sua defesa consistiu em defender o ponto de vista de que não tinha havido desvio dos fundos, na medida em que à semelhança de outros títulos da caixa de aposentação dos funcionários da Companhia Real, eles tinham sido depositados numa instituição financeira. Por outro lado, fazia parte do âmbito de atividade de uma instituição financeira, aplicar em negócios os fundos que lhe eram confiados pelos clientes, pelo que negava a existência de crime. Para além disso, Foz defendeu que os fundos lhe tinham sido confiados pelo banco para que pudessem caucionar o empréstimo no Montepio, reclamando ter sido essa negociação a sua única participação no negócio. Procurou demonstrar que não podia ter autorizado o seu levantamento dos cofres da Companhia Real porque nesse dia tinha estado de serviço no Banco de Portugal. Confrontado, António Vítor dos Reis e Souza, começaria a hesitar, quanto à participação do marquês na autorização para o levantamento dos títulos do cofre da Companhia Real.251 250  Petição de agravo do Marquêz da Foz com os documentos que a instruem, relator o Ex.mo Sr. Mattoso, no seu impedimento o Ex.mo Sr. Seabra, Lisboa, Typ. Da Companhia Nacional Editora, 1892, pp. 5-18. 251  Idem, pp. 9-21.

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No preâmbulo que acompanha a petição de agravo, o próprio marquês da Foz escreveu: “Quando uma falsa opinião, adredemente desvairada, fazia cahir sobre o meu nome toda a sorte de suspeições, tratando assim d’ennodoar o que eu tanto prezava de ter mantido sem mancha, como a herança paterna de maior valor, supportei d’animo sereno e levantado quantos golpes me vibraram, esperando tão somente que o processo, com que essa opinião tinha sido excitada, deixasse de ser um segredo de justiça, para que a publicação d’elle fosse uma cabal resposta, pela qual as pessoas sinceras e justas reconhecessem a honestidade do meu procedimento. Elle ahi está, esse processo em que todo o meu crime foi, - n’uma ocasião de crise angustiosa para todos, em que o próprio Governo tratava por todas as formas de, evitando um desastre do Banco Lusitano salvar a Praça de Lisboa e a do Porto de um grande cataclismo – ter prestado a esse estabelecimento o auxílio do meu crédito para, no Montepio Geral, levantar um empréstimo, que hoje é uma operação daquelle estabelecimento. D’essa operação soube eu bem que corria os riscos d’uma perda avultada de capital, se, durante a existência d’ella, os fundos com que estava garantida baixassem tanto, que o penhor não cobrisse o empréstimo; mas que ella poderia vir trazer-me, um anno depois, uma pronuncia, pelo artigo 453 do Código Criminal, creio que nem o espírito mais propenso a investigar perigos futuros o podia ter previsto. O público lendo as peças juntas n’este folheto, e as consultas dos distinctos jurisconsultos mais versados na especialidade, que eu desejei ouvir, espero me fará justiça. Aos meus amigos, de quem durante este mezes de dura provação tenho recebido tão significativas provas d’estima e de simpathia, aproveito esta occasião para com a presente brochura, lhes significar a minha gratidão. Aggravando para o Venerando Tribunal da Relação, aguardo, perfeitamente seguro da integridade da magistratura do meu Paiz a solução d’esta questão. Lisboa, 3 de março de 1892 Marquêz da Foz”252 Sobre este episódio, cinco anos depois, escreveria Silva Cordeiro, entre exagero e ironia, mas não sem deixar de ser certeiro: “(…) e com o valor dos depósitos, a pretexto de operação de tesouraria, “operação bem combinada”, ia-se buscar dinheiro ao Montepio, dispunha-se da caixa de aposentação dos empregados da Companhia dos Caminhos-de252  Idem, pp. 3-4.

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Ferro do Norte e Leste, a ponto de não se poder ainda hoje apurar, nem pela escrituração, nem pelos depoimentos do pessoal, aonde foram parar muitos depósitos, de que só ficaram as cascas. E o mais curioso é que, quando o Ministério Público bateu à porta daquela batota, o único a pagar aos baratos na cadeia (com excepção dum par do reino, logo despronunciado, que a política alijou para quebra-mar da onda pública), foi um pobre diabo de empregado ínfimo que transportava inconscientemente as ordens, a lápis, dos directores para a bolsa, para onde fosse preciso agiotar. (…)”253 Ao longo de 1891, o marquês abandonaria a administração do Banco de Portugal, tal como da Companhia Nacional e outras instituições, de que tinha sido proeminente figura. Na assembleia geral de 26 de Junho de 1891, o conselho de administração da Companhia Real apresentou a sua demissão, marcando o fim de uma época de domínio de uma administração portuguesa, iniciada em 1884, a saída do marquês da Foz e do domínio do seu grupo.254 Nessa assembleia geral, tomando a palavra para responder a um acionista, Francisco Van-Zeller, membro do conselho de administração demissionário, lembrou que a situação a que se tinha chegado, não era exclusivamente resultado de erros de gestão, mas da crise internacional e da grande extensão das obras, em resposta às aspirações da própria sociedade, que as reclamava e das exigências do Estado, que pressionava no sentido da ampliação da rede: “O Sr. Van-Zeller- principiou por declarar que tendo o Conselho de Administração resolvido dar a sua demissão como no decurso da sessão se verá, não é como membro desse Conselho que vai responder ao Sr. Abreu, mas como simples accionista. Nessa qualidade ponderou qual era actualmente a situação da Companhia, derivada de causas gerais que não só afligem o país como assoberbam os mercados estrangeiros, mas das grandes obras realizadas pela Companhia num período de tempo relativamente curto, umas aconselhadas pelos próprios interesses da Companhia, outras exageradas talvez no intuito de oferecer ao comércio e ao público vantagens e comodidades de que ainda há poucos anos estavam privados, e não poucas por obediência a exigências da administração do Estado, mas todas inquestionavelmente levadas a cabo em benefício incontestável em todo o país. Algumas destas últimas foram largamente discutidas pelo Conselho e só realizadas no intuito de satisfazer aquelas imposições. (…)”255 253  CORDEIRO, J. A. da Silva, pp. 84-89. 254  Arquivo da CP, Lisboa, – Acta da Sessão da Assembleia-Geral ordinária de 26 de Junho de 1891 – in Actas da Assembleia-Geral da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, livro Nº 2, pp. 207. 255  Idem, pp. 204.

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Burnay acabou por liderar o novo conselho de administração da companhia. Já confrontado com a falência e destituído de qualquer poder dentro da empresa, Foz participou na assembleia geral que decorreu em Janeiro de 1892, na qualidade de acionista. Tendo que suportar o tom jocoso de Burnay, tomou a palavra para assumir a responsabilidade da sua gestão, afirmar que de facto tinha sido efectivamente ele quem tinha conduzido os destinos da grande administração ferroviária desde 1884, lembrando que a situação já era difícil no momento da sua entrada. Mais defendeu, que a sua gestão tinha permitido à companhia adiar a falência e que no caso de se terem mantido as condições do mercado de capitais, teria triunfado: “O Sr. Marquêz da Foz- tinha vindo a esta assembleia com a ideia de não falar, mas não quer fugir às responsabilidades dos seus actos antigos, e nem sequer tem dúvidas em assumir as responsabilidades novas. Assume completamente a responsabilidade das gerências que terminaram em 26 de Junho último e de que fez parte. Têm-se feito referências nesta casa a que não pode deixar de responder. Que não acompanha o Sr. Conde de Burnay na forma hilariante que tem empregado. Que deseja, como sempre desejou em 26 de Junho último, que se liquidem todas as responsabilidades pela forma que a assembleia julgar mais conveniente. Que a companhia foi administrada por ele desde Setembro de 1884; que a situação da companhia nessa ocasião era tal que, se continuasse, a falência teria chegado muito mais cedo. Que isto foi motivo de relatório de um dos mais hábeis publicistas do nosso país; que se as circunstâncias dos mercados se tivessem conservado boas não estaria a Companhia hoje no estado em que se encontra. Tem tenção de se dirigir às Câmaras dos dignos pares e Srs. deputados, para que se faça um inquérito político a esta Companhia, sendo representados nesse inquérito os quatro partidos existentes, aos quais ele forneceria todos os elementos. Que foi chamado em Julho para lhe dizerem que era necessário o Conselho de Companhia dar a sua demissão por o seu nome e outros do mesmo Conselho serem irritantes; que no caso deles saírem a Companhia não teria dificuldades. Que em lugar do crédito do paíz ter perdido com a falta de crédito da Companhia, foi exactamente o contrário. Começou pela Companhia contra o crédito português pelos portadores dos títulos de D. Miguel. A falta de crédito do Estado é que acarretou o descrédito da Companhia. Dá como prova a emissão de obrigações que se fez na Société Lyonnais. Que o governo pediu sempre a continuação das obras da Companhia. A impossibilidade de colocar as novas obrigações, a obrigação de satisfazer de pronto aos encargos das obras começadas obrigaram a Companhia a levantar dinheiros e a fazer operações que acarretaram a ruína não só da Companhia, mas de todos os estabelecimentos que com ela

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estavam ligados. Em tempo, o crédito da Companhia serviu de muito ao governo. Tem feito todo o possível para o acordo, consentindo em sair em Junho sem que houvesse inquérito. Foi agora chamado pelo Sr. Ministro da Fazenda para se formar uma comissão de credores, no que ele concordou; indicaram-se nomes, e só depois é que apareceu o Sr. Conde de Burnay. Que efectivamente tinha dito que este nome era irritante para muitos dos antigos accionistas.”256 A 21 de abril de 1892, o Estado seria forçado a nomear uma comissão administrativa, que trataria de negociar um convénio com os credores da empresa.257 Na sequência desse convénio, a gestão passaria para as mãos dos obrigacionistas, maioritariamente estrangeiros. O capital da companhia nunca tinha deixado de estar nas mãos de estrangeiros, sendo os accionistas fundamentalmente franceses, mas a administração tinha sido feita durante alguns anos por portugueses. Agora voltava a estar na posse do capital francês e alemão, representado pela massa dos obrigacionistas da empresa falida. Sobre este regresso da gestão da principal administração ferroviária portuguesa, às mãos dos estrangeiros, escreveria Silva Cordeiro: “(…) Amigos do conde (Burnay) acusavam publicamente o ministro (Mariano de Carvalho) de representar, no poder, um sindicato financeiro. Verdadeira ou falsa, indicando as assembleias de Santa Apolónia como o centro de operações do grupo que se estenderia com ramificações evidentes pelos bancos Lusitano e de Portugal para outros pontos, dentro e fora do país, onde se pudesse especular em grande, a lenda que assim falava, mesmo injusta que seja, mostra, pelo menos, que a luta política estava dominada por uma batalha de interesses. À gente que fez o túnel da Avenida e outras obras de gran-sinedrio para encobrir desfalques colossais, e poucos anos depois havia de cair, entregando outra vez as linhas à fiscalização do estrangeiro, na derrocada geral que arrastou também o Lusitano, (…)”258 Este momento marcaria a saída de cena do marquês da Foz como capitalista.

256  Arquivo da CP, Lisboa, “Actas da sessão da Assembleia-Geral extraordinária de 9 e 7 de Janeiro de 1892” in Actas da Sessão da Assembleia-Geral da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, Livro Nº 2, pp. 270-271. 257  Arquivo da CP, Lisboa, Administração, secretaria-geral; compilação de documentos, 1864-1893, Linhas Norte e Leste, “Compilação de diversos documentos oficiais sobre as linhas do norte e leste.” 258  CORDEIRO, J. A. da Silva, op. cit., pp. 116.

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VII A VIDA APÓS A QUEDA A crise de 1891 e a falência fizeram com que o marquês da Foz se retirasse da vida pública. Arruinado, retirou-se de todos os bancos de que tinha feito parte. Sem crédito, viu-se impossibilitado de continuar o exercício da atividade de empreiteiro, ou participar em quaisquer grandes empreendimentos. Com a imagem pública desacreditada, retirou-se também da política, carreira que de qualquer modo tinha exercido sempre com discrição. Significativamente, o fluxo de correspondência que expede e recebe posteriormente a 1891, reduz-se consideravelmente e boa parte das cartas, são de natureza pessoal e particular, ou de credores. Estancam-se os convites de banqueiros, industriais e empreiteiros franceses, ingleses, alemães e espanhóis, para a participação em vários negócios. Em seu lugar, podem encontrar-se cartas de credores indignados, procurando ser ressarcidos do que lhes era devido. Perante a aproximação do desastre, Foz recorreu ainda ao expediente de contrair novos empréstimos, possivelmente em condições de risco, na expectativa de obter capital que lhe permitisse salvar os negócios. Seria em vão e a manobra teria o efeito de agravar ainda mais as suas dívidas. É esse o caso que nos revela esta carta, enviada de França: “Cher Monsieur le Marquis: Je veux bien voir M. Marchand comme vous me le dites, mais je doute que nous puissions nous mettre d’accord. Vous considérez mes quelques 300.000 f comme une dette quelconque, mais je la considère comme une dette toute d’honneur, puisque mon prêt n’a été fais (sic) qu’en prévision de vous sauver de vos mauvaises affaires ce qui malheureusement n’étais pas possible. Comme bonne volonté j’en ai mis autant que je l’ai eu pu. En tour il y a une limite comme vous n’en doutez pas.

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J’ai épuisé la bonne volonté des Banquiers et je ne suis pas disposé a rembourser les 300.000 f, qui devraient être réglées par vous depuis longtemps, tandis que vous n’avez pas fait le moindre effort pour donner une à-compte, ni même payer les intérêts. Il faudrait cependant être juste, vous verriez que vous avez par trop négligé votre dette au vis-à-vis de moi. On dirais parce que vous n’avez vu plein de bon vouloir à votre égard vous avez tenu d’autant moins compte de vos engagements. Si donc il en résulte un ennuis désormais vous vous comprendrez a vous-même seulement. Je ne puis m’expliquer que vous ayez des meubles et des tableaux qui valent beaucoup de centaines de mille francs et qui dorment paisiblement quand vous me devez 300.000 f et les intérêts et que vous ne m’avez pas versé un reis pour faire preuve de bonne volonté. Croyez-moi bien, cher Monsieur le Marquis, vous faites trop bon marché des services que je vous ai rendus. (…) »259 O património seria de facto chamado a cobrir as avultadas dívidas. O palácio Foz, nos Restauradores, em Lisboa, chegou a ser considerado a casa mais luxuosa da cidade. Não só a sua decoração tinha sido feita com móveis, artefactos e porcelanas preciosas, como o marquês tinha acumulado uma colecção de arte impressionante e de avultado valor comercial. É sabido que ele foi pagando dívidas e que para isso foi vendendo a coleção de arte e o recheio do palácio. Finalmente, após a morte da mãe e da sua segunda esposa, retirar-se-ia para Torres Novas, tendo inicialmente arrendado e depois vendido, o próprio palácio.260 No entanto, se a venda do património desempenhou um papel importante no saldar dos seus compromissos para com os credores, não é verdade que Foz tenha vivido exclusivamente disso até ao fim dos seus dias. Procurou enfrentar e renegociar as dívidas, chegando a acordos com os credores, e não se resignou com a adversidade. A partir deste momento, o centro de gravidade da sua actividade seria a agricultura, que tinha por base as propriedade que possuía no Ribatejo e no Alentejo. Os rendimentos agrícolas devem ter-lhe garantido alguma estabilidade, ao mesmo tempo que lhe permitiam negociar e garantir o pagamento a alguns credores. Entre os seus papéis, encontram-se relatórios informando com detalhe, da cotação do valor de cereais, animais e azeite em vários municípios, como Beja, Vidigueira, Serpa e Moura.261 Também se encontram notas relativas à cobrança de foros, como uma referente aos foros correspondentes a várias herdades em Beja, cujo rendimento totalizou em 259  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Pasta – Bancos, 1885-07-18, dig. 3132. 260  “Marquês da Foz” in Gazeta dos Caminhos-de-Ferro, Lisboa, Nº 717, 1 de Novembro de 1917, ano 30, pp. 327. 261  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta – Escrituras-bens, dig. 01.

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1898, 1.785$355 réis.262 Os seus apontamentos revelam ainda a existência de acordos com arrendatários, para a exploração de propriedades agrícolas em Torres Novas.263 Foi com base na negociação do valor obtido com a venda de cortiça, que o marquês da Foz foi, por exemplo, saldando a dívida contraída com os três empréstimos que tinha pendentes com o Crédito Predial Português, que amortizava em prestações de 10.000$000 réis. A Companhia Cortiças de Portugal encarregava-se da venda, entregando directamente ao banco a quantia de 10.000$000 réis, da parte dos rendimentos que correspondiam a Foz, como o demonstram as cartas e recibos enviados pelo Crédito Predial.264 Outro exemplo de que o marquês se esforçava por ir negociando e pagando as suas dívidas, é a correspondência recebida com procedência de Londres, enviada por Chas. J. C. Scott, ligado ao “Union Bank of Spain England”. Numa carta com data de 15 de Outubro de 1901, o financeiro britânico aludia ao acordo que tinham feito para o pagamento de umas notas promissórias, que não estaria a ser cumprido por Foz. A 27 de novembro do mesmo ano, Chas Scott insistia no tema, queixando-se de que não tinha recebido ainda qualquer notícia de Foz. Não sabemos o que ocorreu entretanto, ao longo do enorme hiato de tempo até 3 de fevereiro de 1905, quando Scott volta a escrever a Foz, congratulando-se com a sua resposta e agradecendo a “entente cordiale”.265 Para além dos bancos e instituições de crédito, também há no seu arquivo recibos do pagamento de letras correspondentes a dívidas mais pequenas, normalmente a credores em nome individual, como os 500$000 réis entregues a Alexandre de Saldanha da Gama, em Julho de 1905.266 Noutros casos, encarregou credores da venda de gado ou outros materiais, por forma a perfazer a importância do valor em dívida.267 No entanto, o marquês não se resignou com as dificuldades que enfrentava e ainda tentou um regresso aos negócios. Dos antigos parceiros comercias, Bartissol manteve o contacto, continuando a visitá-lo, pelo menos em Lisboa, tendo ainda passado férias em comum em Vichy, em 1895, acompanhados das respetivas famílias. Se por 262  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta – Escrituras-bens, dig. 02. 263  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida, Augusto Hedin; Chas. J. C. Scot; José António da Silva, dig. 10 264

Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 49, Pasta – Empresas diversas, dig. 01-10.

265  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida, Augusto Hedin; Chas. J. C. Scott; José António da Silva, dig. 03-05. 266  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida de Saldanha da Gama, dig. 01-02. 267  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida, Augusto Hedin; Chas. J. C. Scot; José António da Silva, dig. 07.

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um lado, o facto demonstra que manteve a proximidade com o empreiteiro francês, por outro lado também indica que se sofreu um terrível golpe, a falência não impediu Foz e a sua família de ter acesso a certos luxos. Nessas férias, os dois terão discutido a possibilidade de participação numa empreitada, que motivou a circulação de várias cartas ao longo de 1896. Não se chega a descortinar pelo texto, qual a natureza do projeto, mas de qualquer forma não foi possível concretizá-lo. Se noutros tempos o seu nome tinha sido, só por si, uma importante garantia, agora ninguém lhe concedia um empréstimo, o que impedia quaisquer operações que requeressem capitais avultados.268 Deve ter-se tornado evidente, que qualquer regresso a algum patamar que se aproximasse do seu esplendor passado era impossível. A frase que se lhe atribui, “não sou um homem sem posses, sou um homem sem crédito”, ilustra de forma muito clara a situação em que se encontrava. Em 1898, faleceriam a sua mãe e a sua segunda esposa, Maria Cristina. Foi a partir daí que abandonou o palácio nos Restauradores, passando a residir na quinta de Santo António, em Torres Novas. Aparentemente terá investido na agricultura, havendo na sua correspondência cartas manifestando o interesse na compra de maquinaria agrícola. Numa ida a Paris em 1902, o seu irmão, José Guedes de Queiroz, fez o contacto com uma firma, manifestando o interesse do marquês em adquirir aparelhagem para a secagem de fruta. Essa empresa, intitulada “Pilter”, escreveu-lhe para Torres Novas: “Le 26 Juin 1902 Monsieur le Marquis de la Foz à Torres Novas (Portugal) J’ai reçu, ces jours derniers la visite de M. Guedes de Queiroz me priant de me mettre en rapport avec vous au sujet d’appareils pour dessécher les fruits. Ces appareils sont de plusieurs modèles. Ils se composent généralement d’un fourneau à air chaud et d’une ou plusieurs étuves traversées par les gaz s’échappant du fourneau et contenant les fruits à dessécher sur ces tamis. Ces appareils peuvent, suivant leurs dimensions, dessécher de 100 à 2.000 kilos de fruits par 24 heures. Pour pouvoir vous donner les prix, poids et dimensions des appareils qui vous seraient nécessaires, il faudrait donc que je connaisse la quantité de fruits que vous désirez traiter ou tout au moins la quantité dont vous disposeriez pour faire une installation d’essais si telle est votre intention. (…) »269 268  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 16, Pasta – Correspondência recebida de Bartissol, fl. 12-16. 269  Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, Arquivo da CP, Caixa 133, Pasta – Cartas comerciais, fl. 16.

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Tristão Guedes de Queiroz Correia, 1º conde, 2º marquês da Foz, faleceu a 29 de outubro de 1917, em Torres Novas.270 No seu número de 1 de novembro de 1917, a Gazeta dos Caminhos de Ferro, que tanto tinha destacado a sua obra por ocasião da inauguração da estação do Rossio, em 1891, publicou um elogio fúnebre: “Desceu ontem à campa o Sr. marquês da Foz cujo nome andou, por muitos motivos, ligado aos nossos caminhos-de-ferro há trinta anos. Concessionário das linhas de Viseu e Mirandela hoje pertencentes à Nacional, fez parte do chamado Grupo português, importante grupo financeiro capitaneado por Mariano de Carvalho, que tão saliente papel desempenhou nas questões da Companhia Real, quando do movimento de 13 de Setembro de 1884. Exerceu então por uns meses, e enquanto o engenheiro Pedro Lopes não o pôde reassumir, o cargo de director da Companhia, passando depois ao Conselho de Administração, sendo esse Conselho que resolveu a construção das linhas da Beira Baixa, de Sintra, Torres, Figueira e Cascais, a aquisição do ramal de Alfarelos e, a obra mais importante, a estação central e linha de Cintura. Espírito de verdadeiro artista, tendo, por essa ocasião, adquirido o antigo palácio Castelo Melhor, na Avenida, fez proceder à sua completa restauração e ampliação fazendo dele não só uma luxuosa vivenda mas um repositório de objectos de arte de grande valor; aí se deram faustosas festas que ficaram notáveis na nossa sociedade elegante. Falecendo-lhe a segunda esposa retirou-se à sua casa em Torres Novas, vendendo todo o recheio da sua preciosa vivenda em Lisboa e mais tarde o próprio palácio e suas dependências. Tristão Guedes Correia de Queiroz, conde e depois marquês da Foz, era filho do primeiro conde da Foz que foi ajudante de campo de el rei D. Luís, que lhe deu o título em 1867 e o elevou a marquês em 1886; (…) O seu carácter franco e jovial cativava as simpatias de todos que com ele travavam conhecimento, e é com viva saudade que aqui recordamos as provas de deferência, precursoras de uma boa amizade, com que nessa época de agitadas lutas financeiras da Companhia Real o então conde da Foz distinguiu quem nestas linhas presta a derradeira homenagem à sua memória.”271

270  REIS, Jaime, op. cit., pp. 107. 271  “Marquês da Foz”, op cit., pp.327.

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CONCLUSÃO Este trabalho concentrou-se na etapa entre 1884 e 1891. Mais do que uma opção apriorística, tratou-se de uma limitação imposta pelas fontes. Esse foi o período de auge do marquês da Foz e do grupo de investidores, financeiros, industriais e empreiteiros, que com ele trabalhavam e que ele liderava. O seu apogeu coincidiu com um período de aparente prosperidade e de grandes investimentos realizados em Portugal, fundamentalmente em infra-estruturas, os então chamados “melhoramentos materiais”. De entre esses melhoramentos, caminhos-de-ferro e portos foram os principais recetáculos dos investimentos. A rede ferroviária portuguesa foi construída em duas grandes etapas, a primeira entre 1860 e 1865, a segunda, aquela que marca a conjuntura em que este trabalho se insere, entre 1877 e 1891. É claro que antes, entre e após estes períodos, também houve construção de caminhos de ferro, mas foi mais lenta. Após 1891, a rede ferroviária adquiriu a sua configuração praticamente definitiva, tal como chegou aos nossos dias. Os eixos construídos posteriormente, acrescentaram muito pouco ao sistema, quer em extensão, quer em funcionalidade estratégico-económica. Excepções, são a linha do Sado e ramal de Sines, a linha do Setil a Vendas Novas, o ramal de Leixões e já na transição do século XX para o XXI, a travessia ferroviária do Tejo. O período de 1877 a 1891 configurou-se assim, como um momento de grande oportunidade, para o capital. As grandes obras públicas traduziam-se simultaneamente em importantes operações financeiras, pelo que atraíam as casas bancárias mais importantes. Os capitalistas e os bancos por eles encabeçados organizavam-se em sindicatos, que se ocupavam do financiamento e construção destas empreitadas, assim como das grandes concessões e monopólios proporcionados pelo Estado. O Estado, também necessitava de capital para garantir as suas diversas actividades e despesas. As obras públicas podiam ser total ou parcialmente financiadas pelo Esta-

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do. As que eram concessionadas a privados, como os portos de Lisboa e Leixões, ou os caminhos de ferro concessionados a privados, eram subsidiadas pelo Estado, que complementava o capital investido pelos particulares e que em muitos casos garantia a sua reprodução, através da figura da garantia de juro. Noutros casos, era o próprio Estado quem construía e explorava diretamente certos equipamentos, caso dos seus caminhos de ferro, divididos entre as redes do Minho e Douro e do Sul e Sueste. A prossecução da suas restantes atividades, também requeria somas avultadas, necessárias ao pagamento aos funcionários públicos, manutenção da ordem, etc. Os capitais necessários a Estado e privados, não existiam no país em quantidade suficiente e tinham que ser importados do estrangeiro. Aqui residia o cerne da questão e a grande dificuldade. Portugal eram um país considerado um destino pouco apetecível para o investimento estrangeiro. Era pouco desenvolvido, politicamente instável, proporcionava um mercado diminuto e pouca produtividade para os capitais entregues. Também enfrentava insolvências e dificuldades financeiras regulares. O período da segunda metade do séc, XIX, entre 1852 e 1891, marcado pela “Regeneração” e pelo “Fontismo”, foi o mais estável de toda a centúria. Não estranha neste contexto, que a maior das praças financeiras rejeitassem os títulos da dívida pública ou quaisquer possibilidades de aplicar excedentes no país. Daí resultava a sua dependência de escassas praças financeiras, Londres, Paris e de contadas casas, dispostas a financiar o Estado ou negócios em Portugal, (o Comptoir d’Escompte era uma delas). Os empréstimos revestiam-se ainda assim de enormes cautelas, condições e exigências que podiam ser exorbitantes e com juros altos. A negociação e obtenção destes empréstimos requeria ainda um intermediário, que fosse considerado idóneo, nas praças estrangeiras cuja assistência se procurava obter. Os banqueiros que pelos seus contactos internacionais, pudessem dispor desta faculdade, estavam na posse de uma considerável vantagem estratégica. O Estado e os grandes empreendimentos privados necessitavam de recorrer à sua intermediação, para conseguir financiar as suas atividades. Ter o poder de desbloquear as necessidades de capital públicas e privadas, dotava-os de enorme poder negocial e de impor, em troca da sua colaboração, as contrapartidas de que pudessem usufruir. Teriam sempre a vantagem da preferência, na obtenção de certos negócios, monopólios e concessões do Estado, como também no apoio e fornecimentos aos privados que a eles recorressem. Henry Burnay, banqueiro de origem belga radicado em Portugal, era o exemplo mais significativo de um homem que soube jogar notavelmente, com esta capacidade de intermediário entre as praças financeiras estrangeiras e as necessidades de financiamento internas. A glória do marquês da Foz e do grupo que liderava consistiu precisamente na sua capacidade de se intrometer neste negócio e nessa intermediação. A sua vantagem consistiu em dispor de amplos contactos, prestígio e influência internacionais, de maneira a oferecer uma alternativa aos mercados financeiros e interlocutores habituais.

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Numa altura em que em Portugal tinha necessidade de capitais, ele abriu as portas de novos financiadores na praça de Paris e possibilitou, pela primeira vez, o recurso ao mercado de capitais alemão. Dominar esta capacidade de intermediação financeira, dotou-o de uma valiosa vantagem estratégica, que lhe permitiu alcançar, assim como aos seus aliados, um prestígio, protagonismo e prosperidade no mundo dos negócios, que poucos tinham podido alcançar. A sua carreira política facilitou a aproximação à esfera progressista, na qual Mariano de Carvalho, jornalista, notável político e mais tarde, ministro da Fazenda, se revelaria um precioso aliado. Esse período de esplendor e glória acabou por se revelar curto. A crise de 1891 evidenciou a enorme fragilidade do equilíbrio financeiro do Estado, da economia e do incipiente capitalismo português. A ascensão do grupo Foz começou com a obtenção do domínio da Companhia Real, aproveitando um surto de nacionalismo económico, hostil ao predomínio estrangeiro na empresa. Efetivamente, havia uma grande pressão do Estado e da sociedade para que a rede fosse ampliada, servindo zonas do país carecidas de transportes e para que a qualidade do serviço fosse melhorada. No entanto, a administração e os acionistas estrangeiros, sentiam-se pouco motivados para investir numa rede que se revelava pouco rentável. Nesses tempos, considerava-se que as únicas ligações potencialmente lucrativas eram as internacionais e essas já estavam construídas. Mesmo as principais linhas, as de maior tráfego e rendimento potencial, tinham revelado resultados dececionantes. As que se construíssem, mesmo que contando com garantia de juro do Estado, seriam de ainda menor rendimento. Muito criticada, era ainda a decisão de garantir o juro à rede espanhola do MCP. Esta medida, que se destinava a potenciar a rede da Companhia Real e o porto de Lisboa, acabou por se tornar num lastro para os recursos da empresa. O MCP foi quase sempre uma rede deficitária, nunca representou qualquer mais valia em termos de canalização de tráfego e representava avultada despesa para a Companhia. Por outro lado, não passou desapercebido à opinião pública, que boa parte dos acionistas eram comuns às duas empresas. Na verdade, estavam a drenar da Companhia Real para o MCP, fundos que cobrissem um mau investimentos garantindo artificialmente a remuneração de um capital que tinha sido mal empregue, num mau negócio. Em Portugal, via-se com antipatia que as receitas da empresa estivessem a ser desviadas, através do MCP, para os bolsos dos acionistas, em vez de serem empregues nas necessárias e tão reivindicadas melhorias do serviço e ampliação da rede interna. Foi este ambiente de desconfiança e antipatia relativamente ao predomínio forasteiro na companhia, que propiciou as condições para que o grupo Foz pudesse dar o golpe, que o pôs na liderança da empresa. Logo aqui, a ação parlamentar de Mariano de Carvalho foi decisiva, ao fazer depender a obtenção da concessão da Beira Baixa, da condição de a companhia aceitar modificar os seus estatutos, de maneira a garantir

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uma maioria de portugueses ou estrangeiros radicados em Portugal, no conselho de administração. Claro que a direcção da empresa se preparava para rejeitar a condição e, consequentemente, a concessão da linha da Beira Baixa. O ambiente ficou preparado para o golpe do grupo Foz, que foi um misto de jogada de génio, burla e cumprimento da legalidade. Note-se que se é certo que a empresa passou a ser administrada por portugueses, o domínio nacional era fictício: o seu capital continuava a ser estrangeiro, principalmente francês, país de origem da maior parte e mais importantes acionistas e obrigacionistas. A manobra só foi possível porque Foz conseguiu obter o apoio de casas financeiras francesas e, pela primeira vez, alemãs, que desejavam entrar no negócio da Companhia Real, em alternativa às que até ao momento o detinham. A partir deste momento, sob a batuta de Foz, Moser, Mariano de Carvalho, do Banco Lusitano, Van Zeller e outros aliados, a companhia protagonizaria um programa sem precedentes de investimentos e expansão do sistema que explorava. A estação central e o túnel do Rossio, a linha de cintura, as linhas do Oeste e Sintra, Cascais e da Beira Baixa, todas foram construídas neste período. O resultado foi a falência da empresa. Foram cometidos erros de gestão nas faustosas obras executadas pela direção? Certamente que sim. Mas havia alternativa? A direção de Foz obteve apoio político e da opinião pública portuguesa, expressamente para que executasse a política de expansão da rede, que se considerava e incontestavelmente era uma necessidade. Recusar levar a cabo a construção das novas linhas, em função da sua falta de rendimento, seria prosseguir a política da administração anterior, defraudando quem o tinha apoiado e perdendo todos os aliados. A direcção de Foz não teve alternativa senão a fuga para a frente. De qualquer modo, a empresa teria tido a possibilidade de enfrentar os custos e cargas financeiras inerentes aos seus investimentos na ampliação da rede, se não fosse o enorme encargo que tinha contraído com a garantia de juro do MCP. Contudo, esta dificuldade já foi herdada pela administração liderada pelo marquês da Foz, da direção anterior. Precisamente, libertar a companhia deste encargo ruinoso tinha sido o segundo grande objetivo da tomada do poder na grande administração ferroviária. Contudo, a solução não era fácil. Legalmente, não era possível denunciar o contrato, nem fazer com que os acionistas do MCP, beneficiando da cómoda garantia de juro, aceitassem suportar as perdas da sua linha. O marquês estudou a possibilidade de trespassar o MCP a uma das grandes companhias ferroviárias espanholas, Norte ou MZA, mas não deve ter sido possível. Embora não saibamos se houve negociações, não era fácil que alguma das grandes espanholas aceitasse encarregar-se da exploração de uma linha deficitária. Não podendo libertar a Companhia Real do lastro do MCP, Foz virou-se então para uma solução que não sendo a ideal, era exequível e procurava reduzir os deficits

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do eixo: por um lado, renegociou o contrato de garantia de juro, de maneira a que a Companhia Real explorasse diretamente a linha do MCP, de forma a assegurar que a exploração fosse o mais económica possível; por outro lado, procurou desenvolver o tráfego da linha, através da construção da longa transversal de Plasencia a Astorga, intercetando várias linhas radiais espanholas, no que parecia ser uma forma de melhorar o rendimento da rede. O empreendimento mobilizava, ao mesmo tempo, a participação dos banqueiros e empreiteiros estrangeiros que ao seu grupo se tinham aliado, na expectativa de realização de grandes empreendimentos deste género. A construção da linha do Oeste de Espanha foi um desastre e um erro? Foi sem dúvida. Mas na altura, construir os ramais que alimentassem uma linha deficitária, de maneira a engrossar o seu tráfego e dotá-la de meios de subsistência, era um ato comummente aceite de boa gestão e ampla visão comercial. Prova disso, o conselho de administração anterior já tinha ordenado o estudo da linha do Oeste de Espanha e encarava a sua construção. Diante do desastre do MCP-Oeste e perante a aproximação da falência, o marquês não desarmou e participou na criação do Grande Central Espanhol. Uma empresa que se destinava a construir e explorar uma nova linha internacional entre a fronteira franco-espanhola e Madrid, integrando a rede do MCP-Oeste que ligava à fronteira portuguesa. De uma só vez, libertava a Companhia Real do ruinoso encargo do MCP-Oeste e obtinha a tão desejada linha direta para a Europa, de forma a atrair à rede portuguesa e ao porto de Lisboa o tão almejado tráfego internacional. Com este plano, articulou-se a possibilidade de se apropriar igualmente das linhas de acesso ao Porto, assim como das de Salamanca à fronteira portuguesa. A construção desta rede espanhola estava a ser executada por um sindicato de Bancos do Porto, que na ânsia de dotar a cidade de ligações internacionais condignas, tinha entrado num negócio que os estava a arrastar para a falência. Em ligação com Mariano de Carvalho, que então desempenhava o cargo de ministro da fazenda, usando como intermediário Henrique Kendall, o plano era que o Estado ajudasse os bancos do sindicato, em troca de estes aceitarem renunciar à capacidade de emissão fiduciária, que Mariano de Carvalho planeava concentrar no Banco de Portugal, cujo diretor era Foz. Para além disso, o Estado entregava ao sindicato o arrendamento do Minho e Douro, que posteriormente seria trespassado, com as linhas de Salamanca à Fronteira Portuguesa, para a Companhia Real. Com a jogada, o seu grupo estendia direta ou indiretamente, a influência sobre uma vasta rede ferroviária, que se estendia de forma quase contínua das duas principais cidades portuguesas, através de Espanha, até à fronteira portuguesa. Como quase todos os planos de risco, esta teria sido uma solução genial, se tivesse resultado, ou um desastre se falhasse. Falhou rotundamente. A Companhia do Grande Central não pôde constituir-se. A conjuntura económica internacional nas proximidades de 1890 já era pouco auspiciosa e desfavorável a

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grandes investimentos. Mais ainda, tratando-se da construção de caminhos-de-ferro na Península Ibérica, cujos rendimentos se revelavam invariavelmente dececionantes, quando não desastrosos. A pressão dos interesses favoráveis à Companhia do Norte de Espanha, também ela de capitais franceses, que queria impedir o estabelecimento de uma rota concorrente da sua linha principal, entre França e Madrid, também teve importância na leitura do problema. Quanto à negociação com o sindicato do Porto, a jogada também falhou. A relação de favorecimento de Mariano de Carvalho com o sindicato Foz era já muito clara e facilmente aproveitável em termos de oposição política. A fragilidade deste elo foi muito bem aproveitada por Burnay, que liderava o sindicato Salamanca. Para que a negociação funcionasse, era fundamental afastar Burnay do sindicato, mas o negócio do arrendamento do Minho e Douro, também lhe interessava. Por outro lado, ele tinha sido durante muito tempo o intermediário privilegiado entre o Estado e o financiamento estrangeiro. Que sob os governos progressistas a sua influência sofresse a concorrência do grupo Foz, pôs-lhe um problema de concorrência, que não podia aceitar facilmente. A combinação foi denunciada e num ambiente de instabilidade e hostilidade política, não pode ser concretizada. Foz tentou então uma manobra de recurso: trespassar o MCP à Companhia do Norte de Espanha, o que permitia à Companhia Real libertar-se do encargo e respirar livremente, evitando “in extremis” a falência. Por pouco, não triunfou. O negócio falhou no último momento, quando a assembleia geral do Norte de Espanha o rejeitou, ao não aprovar a quebra dos rendimentos previstos nas ações. A falência tonou-se então inevitável. No caso da Companhia Nacional, houve um claro e decisivo erro de gestão, logo na fase de arranque do projeto. A necessidade de obter a concessão da linha do Tua, em concurso público, levou a que Foz propusesse um orçamento do preço quilométrico irrealista e insuficiente para permitir a sua construção. De facto, apesar da sua pouca extensão, o troço de Foz-Tua a Mirandela, é dos de maior dificuldade de construção da rede ferroviária portuguesa. Para terminar a obra, a empresa teve que desviar para a linha do Tua, parte do orçamento destinado à construção da linha do Dão. Construiu a linha de Mirandela, mas estava falida ainda antes de pôr em exploração a linha de Viseu. A emissão das obrigações que tinham ficado em carteira, de reserva para uma eventualidade, revelou-se também ela insuficiente para salvar a empresa. Em qualquer dos casos, Companhia Real e Companhia Nacional chegariam à suspensão de pagamento da amortização às cargas financeiras. Os conselhos de administração tiveram que demitir-se, sendo necessário formar comissões administrativas que se encarregaram de reorganizar as duas empresas, estabelecendo um convénio com os credores. A derrocada ocorreu no meio da grande crise internacional, sendo acompanhada pela insolvência do Estado português e de todo o sistema

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bancário nacional. Era o fim de uma ilusão. O desenvolvimento capitalista português baseava-se em negócios de especulação e sustentava-se numa deficiente capitalização. O caso do banco Lusitano é paradigmático. A sua participação na Companhia Real, prendia-se com o facto de já estar em dificuldades anteriormente a setembro de 1884, precisando de uma fonte da qual pudesse retirar capital e lhe proporcionasse a oportunidade de operações financeiras vantajosas. No momento em que a companhia ficou sem liquidez, o banco caiu em simultâneo. A prisão de Foz, na sequência da polémica tentativa de os salvar, transferindo para o banco os fundos pertencentes à caixa de aposentação dos ferroviários, marca o fim de uma época e de um símbolo. De herói, passou a vilão, quando o sistema que ele representava e que tinha ajudado a sustentar o Estado, caiu com estrondo, pela base. A sua carreira de capitalista acabou aqui. Ainda tentou regressar ao mundo dos negócios, mas o seu nome, que antes era sólida garantia em qualquer operação financeira, tinha agora passado a afastar o crédito. Restou-lhe ir pagando as dívidas, no que dissipou parte importante do seu património e viver discretamente, como agricultor, em Torres Novas. A construção da linha do Algarve, de que foi empreiteiro, parece ter contornos muito próximos aos da construção da linha do Tua: uma vez mais, foi uma empreitada que se complicou e cujo orçamento se revelou pouco realista. No auge, o seu nome era constantemente demandado por capitalistas estrangeiros, não só solicitando a sua intervenção e influência, para o bom êxito de negócios que queriam fazer no país, como inclusivamente para atrair o seu prestígio e capital a investimentos em diferentes partes do mundo. Para a história, a ação do marquês da Foz revelou-se decisiva na expansão e configuração quase definitivas da rede ferroviária nacional. Ficou ligado a obras como as da estação e túnel do Rossio, a linha de cintura, a linha do Oeste e o ramal de Sintra, a linha de Cascais, a da Beira Baixa, do Tua, do Dão e do Algarve. Imprimiu um cunho muito nítido a uma parte da história da Companhia Real e transformou-a de forma muito importante, virando-a e preparando-a mais para as necessidades do mercado interno, ilusórias que seriam, as esperanças depositadas na atração de tráfego internacional. Simultaneamente, também se tornou num símbolo das ilusões e fragilidades do modelo de desenvolvimento capitalista português, implementado a partir do fontismo, o qual encontrou o seu termo brutal em 1891. O palácio Foz, nos Restauradores, palco de sumptuosas festas, a estação do Rossio e parte significativa da rede ferroviária nacional permanecem como sinais da sua memória.

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BIBLIOGRAFIA Títulos Monográficos CORDEIRO, J. A. da Silva, A crise em seus aspectos morais; introdução a uma biblioteca de psicologia e colectiva, Coimbra, F. França Amado, 1896 FERNANDES, Paulo Jorge, Mariano Cirilo de Carvalho; O “poder oculto” do liberalismo progressista (1876-1892), Lisboa, Divisão de Edições da Assembleia da República; Texto Editores, Colecção Parlamento, 2010 LOPES VIERA, António, The Role of Britain and France in the Finance of the Portuguese Railways, 1850-1890, Thesis submitted to the University of Leicester for the Degree of Doctor of Philosophy, 1983. Petição de agravo do Marquêz da Foz com os documentos que a instruem, relator o Ex.mo Sr. Mattoso, no seu impedimento o Ex.mo Sr. Seabra, Lisboa, Typ. Da Companhia Nacional Editora, 1892. PINHEIRO, Magda, “Caminhos de Ferro em Portugal na Segunda Metade do Século XIX.” In Análise Social; Revista do Gabinete de Investigações Sociais, Vol. XV, Nº 58, 1979, s.l., ed. Gabinete de Investigações Sociais. REIS, Jaime, Uma elite financeira; os corpos sociais do Banco de Portugal, 1846-1914, Lisboa, ed. Banco de Portugal, 2011. SALGUEIRO, Ângela Sofia Garcia, A Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, 1859-1891, Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História, realizada sob a orientação científica da Professora Maria Fernanda Rollo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Julho de 2008. 165


Marquês da Foz: um fim de século de aventuras ferroviárias

SANTOS, Luís António Lopes dos, Política Ferroviária ibérica: de princípios del siglo XX a la agrupación de los ferrocarriles (1901-1951), Tesis doctoral, Facultad de Geografía e História de la Universidad Complutense de Madrid, 2011. SANZ, Fernando Fernández; REDER, Gustavo, Locomotoras de la Compañía del Oeste, Historia de la tracción vapor en España, Tomo IV, Madrid, ed. Revistas Profesionales, 2011

Publicações Periódicas

Companhia Nacional de Caminhos-de-Ferro; Relatório do Conselho de Administração e parecer do Conselho Fiscal apresentado à assembleia-geral ordinária, Lisboa, (Anos diversos). Cf. COSTA, L. de Mendonça e, “A história da iniciativa” in Gazeta dos Caminhos de Ferro de Portugal e Hespanha, Número comemorativo da inauguração da estação central do Rossio e linha urbana de Lisboa, Lisboa, Nº 60, 12º do 3. Ano, 11 de Junho de 1890. Diário Popular, (Artigos e números diversos). FERNANDES, Filipe S., “Henry Burnay, financeiro para todos os negócios” in Empresários do Século XIX, s.l., s.e., s.d. FOZ, Marquês, “A iniciativa” in Gazeta dos Caminhos-de-Ferro de Portugal e Hespanha; Número comemorativo da inauguração da estação central do Rossio e linha urbana de Lisboa, Nº 60, 12º do 3º ano, 11 de Junho de 1890, pp. 177-178. Gazeta dos Caminhos de Ferro, (Artigos e números diversos) J. F.; PESSARD, G., “Boletins Financeiros” in Gazeta dos Caminhos de Ferro, Lisboa, Nº 82, ano 4º, 16 de maio de 1891. Jornal do Comércio, (Artigos e números diversos). MÓNICA, maria Filomena, “Capitalistas e Industriais (1870-1914)” in Análise Social, vol. XXIII, Nº 99, 5º ano, 1987.

Arquivos

Arquivo da CP, Lisboa, “Acta da Sessão da Assembleia-Geral de 13 de Setembro de 1884”, in Acta da Assembleia-Geral da Companhia Real dos Caminhos-de-Ferro Portugueses Arquivo da CP, Lisboa, (Documentação diversa) Centro Nacional de Documentação Ferroviária, Lisboa, (Documentação diversa).

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