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Pedro Gadanho Texto: Ana Rita Sevilha | Fotos: Hugo Gamboa

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Pode usar-se a ficção para reflectir sobre arquitectura e cidade. Subitamente, começou a fazer sentido fazêlo. E não foi só a mim que tal ocorreu, aconteceu a vários níveis - até há quem já lhe tenha chamado um "super nicho."

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edro Gadanho optou por um percurso diversificado pela cultura contemporânea, e a par disso, tem desenvolvido um conjunto de actividades que vão desde o projecto de arquitectura ao comissariado de exposições até à organização da 1ª Conferência, em Portugal, sobre Arquitectura e Ficção Esteve na organização da 1ª Conferência Internacional realizada em Portugal sobre Arquitectura & Ficção - “Once upon a Place - haunted houses & imaginary cities". Como surgiu o tema, e quais foram as principais conclusões retiradas? O tema nasceu porque eu estava já envolvido na edição da Beyond – uma colecção entre o livro e a revista que procura questionar o modo como se escreve sobre arquitectura, e que aborda modelos mais li-

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terários e, daí, mais associados à ficção. Tudo começou com uma aproximação à escrita mais literária, não jornalística, não ensaísta e não académica. A ficção começou por emergir, logo no primeiro número da revista, como um tema que não tem que ver só com esse dispositivo literário mas que é muito mais abrangente: um modo de pensar que se pode entender como uma espécie de alternativa para se gerar conhecimento. Ou seja, pode usar-se a ficção para reflectir sobre arquitectura e cidade. Subitamente, começou a fazer sentido fazê-lo. E não foi só a mim que tal ocorreu, aconteceu a vários níveis - até há quem já lhe tenha chamado um "super nicho." Um dos lançadores deste tema, por volta de 2004/2005 é um escritor de ficção científica cyberpunk, que também participou no primeiro número da Beyond – Bruce Sterling, que fala precisamente da “architecture ficcion.” Ou seja, re-

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fere-se ao facto de a arquitectura hoje em dia, quando é mais especulativa e mais exploratória, parecer pertencer ao reino da ficção. E portanto, de repente, havia uma espécie de atmosfera e ambiente que puxava às reflexões sobre esse tema. No entanto, a conferência em si acabou por surgir com o convite de uma artista, a Susana Oliveira, que tinha uma disciplina de Ficção e Arquitectura na Faculdade de Arquitectura de Lisboa – uma disciplina optativa que se dedica às representações da arquitectura na ficção e na produção literária. Quando ela se apercebeu da publicação da Beyond sugeriu criarmos esta conferência. O tema por si só tinha a possibilidade de ser transversal e de abarcar aspectos culturais da arquitectura que me interessam desde sempre, que no fundo pretendem colocar a arquitectura no centro da produção cultural. Normalmente coloca-se a questão


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se a arquitectura é técnica ou se é a arte. Quanto a mim, porém, essa discussão tem hoje mais sentido no destrinçar de que aspectos da arquitectura constituem um serviço técnico e quais passam pelo campo da produção cultural. Nesta arena mais abrangente, de resto, e voltando ao aspecto da ficção, esta exerce uma omnipresença brutal. Não é que ela não tenha estado lá sempre, fornecendo as grandes narrativas nas quais nos revemos, mas com o cinema e outros meios à nossa disposição, a ficção acaba por ser uma forma muito presente de reflexão sobre o social e sobre a nossa evolução enquanto sociedade, e portanto, era um tema particularmente interessante a explorar no domínio das suas relações com a produção cultural da arquitectura. E aquilo que a conferência revelou é que realmente existem já várias facetas onde há uma resposta a esta necessidade de analisar estas várias abordagens da arquitectura: enquanto ficção e a forma como, assim, a produção arquitectónica pode caracterizar e dar a ler a sociedade. De facto, tivemos uma resposta impressionante, recebemos 250 papers do mundo inteiro, o que quer dizer que existe uma atracção por este tema. E ao analisarmos o conteúdo dessas propostas, começámos a perceber que havia gente que estava a trabalhar com a ficção no campo da pedagogia, ou como método de representação do projecto – isto é, como forma de entender a sua própria produção, comunicá-la estabelecendo registos ficcionais paralelos, ou mesmo criando cenários ficcionais para justificar a criação do seu projecto. Depois havia gente que estava a analisar literatura, cinema, e a tentar extrair daí reflexões sobre a arquitectura. E havia quem, de algum modo, analisava as representações da arquitectura nesses campos. Portanto, a reciprocidade era um dos pontos de partida óbvios. Foi isso que aconteceu na exposição que representou Portugal na Bienal de Veneza - “4 casas, 4 filmes”, e que estabeleceu uma relação entre a arquitectura e o cinema? Eu não diria que aí a ficção seja o ponto de partida, mas se calhar tornou-se o ponto de chegada de alguns dos trabalhos, nomeadamente o do João Salavisa. Aí eu vejo uma relação maior com o campo da arte, e com a forma como o campo da arte olha para o objecto arquitectónico ou para a cidade, que é uma forma ligeiramente diferente da forma como um arquitecto a olha. Mas acaba por ser uma versão ficcionada de um projecto... Sim...embora em alguns deles seja mais documental, outros mais próximos da fic-

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ção, o do João Onofre sendo tão absurdo e obviamente ficcional, joga com esse limite entre o documental e o ficcional – como a arte faz muitas vezes, para fazer disparar uma reflexão menos expectável. E é a isso que se calhar se deve procurar chegar com a ficção, a uma diferença e a uma deslocação do ponto de vista que nos permita olhar para aquilo que fazemos enquanto arquitectos de uma forma mais surpreendente, mais critica, e que nos permite rever o que fazemos. Ou seja, talvez estejamos a olhar para fora, à procura de um espelho qualquer que nos devolva a imagem daquilo que fazemos, quando porventura dentro do nosso campo se está a perder a capacidade ou importância dessa reflexividade. Com a abundância das imagens e do consumo das mesmas, a critica acabou por perder terreno, as pessoas deixam de a ler. Também por isso procurar estratégias ficcionais para a escrita sobre arquitectura acaba por ser um meio de ir captar leitores para a leitura e reflexão sobre essa produção. Esse, de facto, era o primeiro objectivo da Beyond -

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se a critica não está a funcionar mais em termos de escrita e a ser capaz de agarrar as pessoas para reflectir sobre a sua prática, então que outro tipo de escrita é que as poderá agarrar? Uma vez que as pessoas continuam a consumir ficção e a aliciar-se por esse lado do entretenimento, será que através desse dispositivo disfarçado de entretenimento conseguimos provocar essa reflexão? Recentemente Isay Weinfeld disse numa conferência: “Para mim desenhar um edifício ou fazer um filme é a mesma coisa”. Quer comentar? Penso que a frase vai no sentido de reforçar a ideia de que há uma narrativa por detrás de cada uma dessas actividades, tal com há um espectador, e há uma certa ideia ou mensagem a transmitir através das respectivas produções culturais. Acho que isso acontece de facto quando a arquitectura se entende também como comunicação, que é uma herança que vem dos anos 70, da semiótica e do olhar para a arquitectura Entrevista

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como objecto comunicativo. A partir daí, torna-se mais claro essa possibilidade de ver a arquitectura como uma produção que se aproxima das estruturas da ficção e da arte. Curiosamente, há um festival em Florença, Itália, chamado Beyond Media, que se dedica justamente a perceber as relações entre o meio audiovisual e a arquitectura. Basicamente explora trabalho de arquitectos que usam os meios audiovisuais no seu trabalho: ou como objectivo final, ou como documentários sobre arquitectura, etc. Através do festival é feita uma pesquisa e um arquivo brutal de toda a produção que tem havido a esse nível e que é muito mais extensa do que se possa imaginar. Quando participei há dois anos, com a apresentação da Beyond, a coisa mais interessante foi que, de repente, havia apresentações de projectos que utilizavam histórias, até no sentido de um empreendimento que vendia o seu produto por meio de um filme, com personagens, e todo um enredo. Ou seja, a ficção no fundo também é apropriada para gerar expectativas e cativar consumidores. O meio audiovisual está-se a tornar naquele com que comunicamos mais, e portanto em vez de escreverem, as pessoas estão a utilizar animações e filmes para expressar e comunicar o projecto. Também há trabalhos muito experimentais, pessoas que no fundo abdicam de produzir projectos de arquitectura na cidade para produzir espaços que têm muito mais a ver com um criação cinematográfica, ou de outros tipos de investigação... A arquitectura incorpora valores cinematográficos? Nomeadamente na relação plano/ sequência, ou mesmo num percurso e na decisão do que se segue, quando e como? Ou na continuidade ou descontinuidade? Sim. É curioso que refira isso, porque eu com este movimento de discussão mais teórica das relações entre a ficção e a arquitectura, quase que esqueço que no início da minha formação o lado da ficção apareceu através do meu gosto pelo cinema e pelo facto de, nos primeiros anos da Faculdade de Arquitectura, pensar a arquitectura do ponto de vista de narrativas lineares que tem que ver com o uso e com a possibilidade de uma história, que no fundo é a maneira como uma pessoa entra num edifício, vai percorrendo os diversos espaços, o tipo de relações que pode criar dentro desses espaços – e que não é senão o que Le Corbusier chamou promenade architecturale. Acho que essa relação está, hoje em dia, mais presente que nunca, principalmente naqueles que tenham uma sensibilidade maior para esse lado cinematográfico. Eu se não tivesse seguido arquitectura teria

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feito o curso de Cinema. Digamos que a minha aprendizagem de como representar e retratar um espaço nasceu com o cinema e não com a arquitectura. Na minha formação, são tão referenciais realizadores como Michelangelo Antonioni, quanto alguns arquitectos, sendo que Antonioni por acaso tinha a condição de ser arquitecto e realizador. E esses realizadores são referenciais porque me ensinaram a olhar, e esse olhar tem muito a ver com o modo como entendo a arquitectura. Claro que o espaço se sente, mas também se vê, também se percorre com o olhar, e principalmente acaba por se consumir através do olhar. Portanto, a maneira como se termina uma certa composição arquitectónica, mais do que presa a questões de estilo – como acontecia no classicismo – acaba por se ligar à forma como nós compomos e planificamos visualmente o espaço. A composição arquitectónica acaba por partilhar mais com outros sistemas visuais do que propriamente com um sistema tradicional estilístico da tradição Greco-Romana, ou, até, com as ambições que havia a determinada altura em vender a arquitectura como pura criação espacial. Claro que sim, que é criação de espaço, mas esse espaço é construído à base de imagens, quantas vezes naturalmente arquitectónicas. Foi por aí que a cultura visual acabou por absorver a arquitectura, e que leva ao efeito perverso de, nos últimos 20 ou 30 anos, a arquitectura se ter submetido a uma lógica de consumo quase puramente visual. Os alunos já consomem as imagens das revistas mais do que vão realmente visitar os edifícios. Como escrevi recentemente, mesmo dos críticos é esperado que não visitem o edifício – que está a centenas de quilómetros de distância – mas que recebam uma pasta com imagens e que façam a crítica do edifício a partir de pura informação. Portanto, habituámo-nos à ideia de que a arquitectura é consumida visualmente, e isso tem as suas perversidades, mas do ponto de vista cultural tem o seu interesse enquanto investigação. Quando falamos da arquitectura de Zaha Hadid, Frank Gehry ou Siza Vieira, e ao facto de criarem uma imagem de marca, poderão ser consideradas mais cinematográficas? Eu não sei se essas imagens são especialmente mais cinematográficas que outras. Sei é que um autor está à procura das suas imagens e das suas formas de fazer, e com isso vai criando imagens de marca. O próprio Siza, quer pelos materiais, quer pela forma como organiza a confluência dos planos do espaço, a sua pormenorização, acaba por recorrer a uma espécie de dicio-

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nário visual que é reconhecível nas suas origens e nas suas continuidades – desde a conjugação de elementos da tradição barroca ou moderna até ao estabelecer de uma paleta material estável. De forma eminentemente pós-moderna, ele pratica a remontagem de imagens que são recolhidas daqui e dali – mas imagens que são depois trabalhadas com o savoir-fair de quem realmente percebe o que é que aquelas significam espacialmente. A sua experiência permite-lhe "brincar" e articular de uma forma muito elaborada com o que aquelas imagens representam originalmente. É uma espécie de barroco ou maneirismo que utiliza uma paleta de materiais muito minimal. Também não se pode dizer que Frank Gehry não seja profundamente especial no seu tratamento do espaço. No fundo, desde quando é que uma imagem é apenas bidimensional? As imagens são tridimensionais. Assim, esta relação entre espaço e imagem é realmente um dos dilemas mais interessantes da contemporaniedade. Mas é claro que quando se diz de certos autores que têm uma imagem de marca, não será por acaso: não se diz que têm espaços de marca. Certas configurações formais do espaço, usando o exemplo da Zaha Hadid, tornam-se muito evidentes e muito claras. É muito fácil perceber qual é o tipo de traço, o tipo de imagem que gera a Zaha Hadid. É uma arquitecta interessante porque as suas referências iniciais são claramente inspiradas na produção imagética, na pintura dos suprematistas, incluindo Malevitch que também era arquitecto. Ela começa por fazer pinturas, e a sua imagem de marca vem exactamente desse tratamento pictórico da produção arquitectónica, acabando por transpor essas imagens bidimensionais para uma leitura espacial característica, que se mantém como a sua linha de actuação ou, se assim quisermos, a sua “linguagem”. Mas é curioso verificar que, no início, vem tudo de uma representação pictórica. Por outro lado, a circulação das imagens está agora a chegar a outro nível muito interessante. Por causa do meu interesse em questionar estes problemas, a última experiência que ando a fazer passa por uma recolha de imagens dos media da última casa que fiz – a Casa GMG, de 2010, que, depois de publicadas na Domus, começaram a aparecer em micro-blogs, os tumblrs, com certas imagens a reproduzirem-se a uma velocidade vertiginosa em contextos completamente desrelacionados do campo da arquitectura. Interessa-me perceber porque e como é que pessoas que expõem publicamente um determinado gosto, de repente, se agarram a uma determinada imagem de um projecto e inserem no seu fluxo de imagens personalizado. O que é espantoso é Entrevista

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que em três ou quarto dias, duas ou três imagens proliferaram por mais de um milhar de sites, e torna-se paradoxal verificar que o tipo de imagens que lhes estão associadas, antes e depois daquela imagem particular, não têm nada a ver com arquitectura. É cultura pop em estado puro! E como a mim me interessa o tema da ligação da arquitectura à cultura pop, que também tem algo que ver com ficção, estou fascinado com este fenómeno de consumo de certas imagens, o que é que atrai as pessoas numa determinada imagem. E não se trata apenas de imagens da minha própria arquitectura, claro. São muitas outras imagens de arquitectura que hoje se justapõem no mesmo registo e arena de uma fotografia da Madonna, de uma banda desenhada Manga, ou de uma série de televisão. Acho fascinante esta passagem da arquitectura para uma imersão total na cultura popular. O cinema é usado, ou deveria ser, como ferramenta de ensino da arquitectura? Esse uso acontece de forma mais ou menos espontânea. Ainda agora vai haver na FAUP uma escola de Verão sobre Arquitectura e Cinema. Eu costumava passar todos os anos aos meus alunos de primeiro ano, o “PlayTime” do Jacques Tati, que acho que todos os arquitectos devem ver logo no princípio do curso, porque, com a sua crítica implícita ao modernismo, desconstrói muitas ideias do que é ser arquitecto, o que é muito interessante. Tudo o que sejam formas de poder olhar para a arquitectura a partir de fora, através do olhar dos outros e com isso aprender um pouco melhor o que é que a arquitectura é, de uma perspectiva pedagógica, é sempre útil. E não é só isso, do ponto de vista teórico tem havido uma série de explorações dos paralelismo entre as expressões da arquitectura e do cinema. Basta recordar o papel central que esses

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dois meios adquirem na análise da pós-modernidade de um Frederic Jameson. O cinema retira da arquitectura a possibilidade de sugerir um estado ou uma relação emocional entre personagens. E a arquitectura, o que é que retira do cinema? Há a ideia de montagem, que já estava à partida estabelecida na noção já referida de promenade architecturale. Depois acho que se provavelmente analisarmos o que está a acontecer em termos de cinema de certos autores, provavelmente encontramos ecos das mesmas preocupações na arquitectura. Agora, isso requer uma pesquisa, análise e estudo para perceber que tipo de relações são essas. Por exemplo, na Once Upon a Place, surgiram análises muito particulares, casos de pessoas que queriam falar sobre o “Blade Runner”, mas também os que analisavam as representações da cidade e do subúrbio do cinema de Mike Leigh e tentavam perceber o que é que isso significava para a arquitectura. Não necessariamente do ponto de vista formal e da linguagem cinematográfica, mas do ponto de vista de como é que os conteúdos são transformados em narrativa, e quais são as ideias que essas narrativas têm incluídas, e tentar perceber se essas ideias no fundo também estão presentes em realizações arquitectónicas e urbanísticas. Se calhar estamos a falar mais de ideias do que formas de linguagem, porque cada campo se especializou em termos de linguagem, mas as ideias que exprimem enquanto cultura têm pontos em comum. Vemos muitas vezes no cinema uma antecipação do que se poderá ver em arquitectura, nomeadamente no Metropolis de Fritz Lang e no que são as cidades do futuro... Mas também acontece o contrario. Escrevi recentemente um artigo sobre Arquitectura e Ficção Científica que demonstrava

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que, às vezes, era o cinema que ia à frente e criava visões futuristas, no tipo de criação espacial, e outras vezes era o cinema que para representar o futuro ia buscar produções que já tinham sido construídas em arquitectura... Por exemplo? O “Sleeper” do Woody Allen, é um filme de 1973, e usa uma casa que foi feita em


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1963 para representar um cenário futurista. Houve constantemente estes avanços de uns e dos outros, há uma espécie de diálogo e de troca de informações, principalmente a nível das imagens do que poderá ser o futuro. Sempre foi mais fácil imaginar o futuro através da ficção do que da ciência, por exemplo. Por isso, a ficção também sempre serviu para isso mesmo, e é nesse sentido que também se pode tornar interessante na sua relação com a arquitectura. A arquitectura também é ficcional porque, justamente, está sempre a inventar um futuro próximo. Vai inventar o que é que poderá ser o futuro próximo de um edifício, como é que as pessoas o vão habitar. Portanto estamos sempre a tentar imaginar quer as condições de existência de uma dada situação, quer as narrativas que poderão ocorrer dentro desse edifício. O projecto é uma ficção e nós raramente nos lembramos disso, mas essa é uma das relações fundamentais entre arquitectura e ficção. Claro que se entendermos a arquitectura como uma mera reprodução de elementos do passado, não estamos a inventar nada! Mas a arquitectura sempre teve um ímpeto criador, e é esse ímpeto

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criador que penso que acaba por definir também a ideia de autoria. Partindo do princípio que já visitou edifícios do Rem Koolhaas, e que este iniciou o seu percurso profissional a estudar cinema e televisão e só mais tarde arquitectura, consegue-se perceber essa reciprocidade entre estas duas artes quando se visita uma das suas obras? Sim. O Koolhaas trouxe a noção de montagem do cinema para a arquitectura, no sentido em que, de algum modo, acaba por reproduzir experiências cinematográficas recentes no sentido da quebra da linearidade da narrativa para o uso e a legibilidade de um edifício. Ou seja, principalmente nos seus edifícios iniciais, ele não estava preocupado com a noção de coerência. A Casa da Música já é um objecto que procura uma grande coerência formal e material, mas não era assim nas suas primeiras experiências. No Kunsthal de Rotterdam, por exemplo, a forma como os espaços se sucedem ocorre por justaposição e não por continuidade, e portanto, introduz modelos de narrativas que vêem de uma ideia de montagem por descontinuidade, onde através do corte

e somatório de sequências de imagem se chega a produzir uma narrativa que não é necessariamente coerente, mas é fluída do ponto de vista da percepção. Isso vem de uma aprendizagem enquanto argumentista, e de montador no sentido da montagem cinematográfica. E há outras influências. O seu passado de jornalista traz para a arquitectura a ideia de relação com a realidade com uma espécie de real politk e de dirty realism - que passa por um tratamento muito directo do que é a realidade, sem grandes discursos aparatosos. Com estas formas de pensar, contribui, a determinado momento, para a cisão entre o mundo arquitectónico que vive da criação de uma narrativa nova, e por outro lado, uma produção mais mainstream. Ou seja, ele próprio é mais um produtor de ideias, criando a AMO para fazer pesquisa teórica e alimentar de narrativas os seus projectos. Mas depois assegura também o ponto de vista do escritório, com uma produção que responde com competência profissional àquilo que a sua celebridade acaba por trazer enquanto encomenda. Como ele traz estas novas dimensões culturais à produção arquitectónica, também os Herzog e de Meuron acabam por trazer influências da sua relação próxima com o mundo da arte à sua forma de abordar a arquitectura. Na forma como, em cada trabalho, exploram uma linguagem completamente diferente, denotam uma atitude muito mais típica de um artista do que de um arquitecto, o qual está frequentemente preocupado com a continuidade de uma certa exploração formal. O que os Herzog e de Meuron trazem da arte é um corte radical em cada novo projecto, e fazem disto o seu método de trabalho. É uma abordagem diferente, que vem seguramente do campo da arte. Estivemos até agora a falar da reciprocidade entre as duas artes, mas agora pergunto-lhe: o que é que as distingue? O que aconteceu com o Modernismo foi que cada meio se tornou cada vez mais autónomo. Eles podem ter cruzamentos, semelhanças, influências, correspondências, mas no fundo desenvolveram uma linguagem própria. O cinema continua a ser um conjunto de imagens em movimento, é isto que o define. A pintura pode estar na tela ou não estar na tela, mas há uma técnica que tem uma linguagem e uma tradição específica. A arquitectura usa paredes, usa vãos, usa espaços, pode até, no limite, não usar nada disso e ser apenas produzida por arquitectos. Nesse sentido, digamos que o suporte, o medium, é aquilo que faz com que ainda haja uma distinção clara entre modos de expressão. É aí principalmente que as diferenças residem.

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