Paulo Mendes da Rocha, Entrevista

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Aproveitando uma passagem de Paulo Mendes da Rocha por Lisboa para uma conferência no MUDE, no âmbito da Estratégia Urbana, a Traço esteve à conversa com o arquitecto brasileiro, Prémio Pritzer em 2006 Texto: Ana Rita Sevilha | Fotos: SilvanaTorrinha

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“Eu não vejo o progresso como uma conquista infinitamente do ponto de vista da economia, eu prefiro uma imagem de consolidação de hábitos e costumes que possam garantir a nossa existência sempre em transformação”

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aulo Mendes da Rocha esteve em Lisboa, e em entrevista à Traço falou sobre o Museu dos Coches, o Brasil e as mais-valias que a crise económica poderá deixar ao mundo em geral e à arquitectura em particular No ano passado, numa conferência no Porto, revelou que estar envolvido no projecto do Museu dos Coches é antes de tudo, “uma grande aventura”. Porquê? Não, eu não posso dizer que é uma aventura, não faz sentido, é uma obra de uma grande delicadeza e de uma grande importância que ninguém pode assumir como aventura. Se eu disse isso foi uma imagem infeliz. Os arquitectos não se metem em aventuras, no fundo nós estamos a construir o habitat do Homem no planeta, e isso não pode ser dito como uma aventura por mais que seja espantoso, e extraordinário, para nós são trabalhos da maior seriedade. Também é uma questão de palavras. Eu prefiro não dizer, por exemplo, que um voo interplanetário seja propriamente uma aventura, é tudo meticulosamente planeado. A ideia de aventuras, não sei se estou certo, mas para mim tem um sentido de audácia, um tanto irresponsável. Não vejo que a nossa actividade, em relação ao que a sociedade espera de nós possa ser vista por nós como uma aventura... O que é que acha que a sociedade espera do arquitecto? A sociedade espera da arquitectura tudo! Porque num certo sentido nós estamos empenhados, enquanto forma de conhecimento da arquitectura no seio da universidade, das escolas, e em desenvolver infinitamente a

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consciência que vamos adquirindo cada vez mais sobre a questão da habitabilidade do planeta. No fundo estamos a construir a cidade contemporânea, sempre. Não se pode ver arquitectura como dedicada a exemplos isolados, ainda que se possa colocar como exemplo isolado todos os ideais que se tenha sobre tudo isso, o desiderato fundamental é a construção da cidade contemporânea. É um trabalho meticuloso que depende de todos nós, não é fruto de nenhum em particular e depende da totalidade dessa experiência na história e no tempo. O Brasil é hoje um país cheio de recursos, ao contrário dos países europeus que vivem um contexto económico e social complicado. Teme que no Brasil, este grande crescimento, afecte de uma forma menos positiva a arquitectura brasileira? Eu acho que a ideia de crescimento económico pode ter um sentido negativo em todos os aspectos, não é só na arquitectura. Acho que essa ideia de crescimento indefinido, a imagem desse crescimento, pode ser uma ideia errática, principalmente para colocar na mente dos jovens que estão a começar a ver o mundo pela primeira vez, porque a consolidação daquilo que temos e sabemos vai muito além da ideia de um crescimento infinito. Crescer o quê? Acho melhor pensar em consolidar. Outra das coisas que temos na mente como já atrasadas às vezes são muitas vezes a essência daquilo que se pode chamar a segurança da nossa estabilidade na vida. Aquilo que sabemos fazer por uma aprendizagem demorada. A dimensão daquilo que chamamos de cultura popular dentro do erudito. A experiência, a memória, a dimensão poética das atitudes humanas. Há

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um economista muito conhecido no Brasil que diz que “a economia é como andar de bicicleta, não se pode parar de pedalar”. Isto é uma visão desastrada de uma coisa que pode levar a um desastre, principalmente se se pedala de uma ladeira a baixo. Eu não vejo assim. Eu não vejo o progresso como uma conquista infinitamente do ponto de vista da economia, eu prefiro uma imagem de consolidação de hábitos e costumes que possam garantir a nossa existência sempre em transformação, se é tido conhecimento, sem dúvida nenhuma. Porque esse mesmo conhecimento pode ser instrumento de desastre, basta ver o que se fez com a sabedoria que temos hoje sobre a matéria e a sua constituição, a bomba atómica não é o que se esperava. Portanto, muito conhecimento pode também produzir grandes desastres. A grande questão, portanto, é política. É a decisão do que faremos com o que sabemos, e não sempre fazer tudo o que podemos porque pode ser um desastre. É também por isso que não gosto da palavra aventura, da palavra crescimento. Prefiro a consolidação daquilo que já temos como tesouros inestimáveis da nossa existência enquanto experiência, diante de conhecimentos sempre novos, sem dúvida nenhuma. Tendo em conta que os contextos de crise são também apontados como fases muito criativas, acha que o contexto de crise económica, que se vive por exemplo em Portugal, poderá deixar algum legado positivo na arquitectura de uma forma geral? Eu preferia também abdicar da ideia de crise económica porque pode ser uma imposição fictícia de opressão, como sempre se deu de modo desastrado, termina em guerras, a Europa sabe disso melhor do que nós na América. Eu acho que o mundo está à beira do limiar de uma grande transformação. Porque pela primeira vez estamos a viver o mundo todo - Ásia, África, América, Oceânia e Europa, hoje somos um mundo só e o Homem tem uma consciência firme sobre tudo isso, com muita nitidez, que estamos desamparados no Universo em cima de um pequeno calhau que gira abandonado nessa fenomenologia incrível que é a Natureza. E nós juntos, como parte da Natureza, somos uma passagem em permanente e contínua transformação. Portanto, todos estes conceitos devem mudar muito rapidamente enquanto consciência, eu acho que vai ter uma influência muito grande nas escolas. E a escola de Arquitectura no âmbito da universidade tem uma importância muito grande como solicitante de todas as formas de conhecimento para realizar esses altos ideias do género humano.

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