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a cidade
O mapa sensível ao lado esquerdo expressa as presenças mais importantes que observei tanto em mapas, quanto em visitas. Novamente a linha ferroviária é um eixo concentrador de pessoas, comércios e serviços, e é por onde há maior presença de pessoas se locomovendo ativamente a pé, por bicicleta e skates - este último, inclusive, foi observado com frequência como elemento unificador e de transporte em grupo. Os equipamentos urbanos, representados pelos paralelepípedos no mapa, estão concentrados ou no eixo ferroviário, ou no eixo rodoviário, com ainda mais intensidade. Abaixo desse eixo rodoviário, tem-se uma imensa área não urbanizada, com presença de vegetação esparsa e característica do cerrado distribuídas nos morros, onde entre esses últimos há a presença de importantes dedos de mata ciliares que protegem naturalmente os cursos d’água. Essa área é contrastante à superior, onde estão concentrados os usos de habitação, comércio e serviço. Ao fim, tem-se o distrito industrial que adentra na imensa área do cerrado, e une indústrias do setor têxtil, de plástico e de metais. Ao lado, as duas primeiras imagens ilustram a paisagem urbana de topografia movimentada e terreno íngreme. A terceira indica o ponto de cruzamento do eixo ferroviário com o rodoviário, formando um viaduto muito significativo na paisagem, e por fim a última imagem refere-se à qualidade paisagística dada na transição da mancha urbana adensada em direção ao Complexo Hospitalar, atravessando o Rio Juquery.
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O COMPLEXO HOSPITALAR DO JUQUERY
O Complexo Hospitalar do Juquery está localizado na margem direita da linha férrea da CPTM, e até 1983 ocupava cerca de 20% de toda a área do município, cuja influência era tamanha nas primeiras décadas da cidade que essa teve seu desenvolvimento urbano e econômico vinculado ao Asilo. O trecho seguinte destaca impactos importantes do hospital em relação à aspectos territoriais e econômicos:
“a) o Juqueri ocupa aproximadamente 21% da área do município; b) em virtude da existência do Hospital de Juqueri, Franco da Rocha possui uma das maiores percentagens, na Grande São Paulo, de pessoas não naturais do município em relação à população total; c) devido ao funcionamento do Juqueri, a maior parte da população do município está alocada no setor terciário; d) o Juqueri, além do atendimento psiquiátrico, oferece serviço médico gratuito aos familiares dos internos e dos servidores, bem como à população de Franco da Rocha e municípios vizinhos; e) apenas 40% da população está servida com rede de esgoto; assim, os esgotos “in natura” e o lixo do hospital são lançados no rio Juqueri, contribuindo para a poluição dos cursos d’água da região.” (CASTRO SÁ, 1983, p. 86)
Não apenas a abrangência territorial, mas a dependência econômica em relação ao Complexo deve ser exaltada, especialmente porque conforme observamos nos mapas do PDUI, atualmente a situação é completamente diferente visto que a economia está intimamente ligada às atividades agropecuárias e industriais. Sabe-se que a cidade teve sua ocupação distribuída na porção marginal ao rio Juqueri, em função de serem áreas mais articuladas e próximas às Colônias Agrícolas do Complexo. Mas, para entender essa importante relação, é preciso entender o processo de formação desse Complexo na cidade de Franco da Rocha, que além de ter sido o primeiro e mais antigo Hospital Terapêutico do país, também foi o maior.
Em 1852, houve a inauguração do primeiro Manicômio de São Paulo após a Santa Casa de Misericórdia paulista recusar a população alienada da cidade, o que seria o início de uma cadeia de acontecimentos para a implantação do Complexo Hospitalar do Juquery. O espaço localizava-se em um edifício já existente na esquina das ruas São João (atual avenida São João) e Aurora, uma região que posteriormente passou por intenso processo de urbanização e adensamento urbano.
“O asilo iniciou suas atividades contando com nove internos, alguns criminosos vindos das cadeias públicas da cidade. Popularmente conhecida como Casa de Alienados, onde receberam apenas condições mínimas de habitabilidade, mas sem nenhum tipo de acompanhamento psiquiátrico. [...] A internação de escravos era condicionada ao pagamento de pensão diária ou havia a opção de dar aos alienados a carta de alforria, para que os mesmo ficassem à mercê do serviço - obviamente os donos dos escravos davam alforria para se verem livres do problema.” (PIZZOLATO, 2008, p.49)
Por se tratar de um edifício adaptado para receber essas atividades, o Asilo passou por diversas críticas de sanitaristas sob a acusação de ser considerado um cárcere ou depósito de presos. Em 1859, o prédio tornou-se insuficiente para atender às atividades e demandas, e diante disso o Governo do Estado comprou a chácara do Padre Monte Carmelo na Várzea do Tamanduateí, onde recebeu o Asilo e seus pacientes em 1862. A partir de então, sucessivas expansões foram necessárias para atender a demanda cada vez maior de pacientes “alienados”, que agora estavam sob tratamentos coordenados pelo Dr. Inácio Xavier Paes de Campos. Em 1881, o número de pacientes era de 67 homens e 70 mulheres, mas é apenas em 1888 que a ala feminina foi construída. Ou seja, as condições de abrigo já denunciavam uma situação de superlotação. Diante disso, o governo do Estado promulga a lei nº15 de 11 de novembro de 1891 criando três novas colônias agrícolas para alienados em cidades fora de São Paulo, cujo interesse é na colônia de Sorocaba que mais tarde encaminhará os primeiros pacientes para o Juquery. Outro importante aspecto desse momento é o início da direção na Instituição pelo Dr. Franco da Rocha, que impactou numa remodelação do sistema assistencial, implicando em uma visão social avançada e na implantação da própria psicanálise. (PIZZOLATO, 2008, p. 52 e 53)
“Conjuntamente com o Dr. Franco da Rocha, formou-se uma comissão composta pelo engenheiro Theodoro Sampaio e o naturalista sueco Albert Loefgren, com o intuito de propor um leque de características topográficas e de localização importantes para resolver a situação para o novo local. Foram definidos os seguintes parâmetros: Não ser muito perto da cidade, para que em breve não seja o edifico alcançado pelo desenvolvimento que a mesma possa tomar; Ter área suficiente não só para as edificações necessárias, como também para a aplicação agrícola dos asilados; Ser de fácil acesso, o que não só convirá à construção como à fiscalização do estabelecimento Ter abundância de água para todos os misteres; Não apresentar dificuldades para o transporte dos materiais de modo a encarecê-los; Não serem muito caros os terrenos.” (PIZZOLATO, 2008, p. 53)
A região do Juquery se destacou pela sua proximidade com a cidade de Caieiras que à época produzia cal e pedra, materiais que seriam utilizados na construção dos edifícios, e pela quantidade de trens que circulavam na região. Assim, foram adquiridos 150 hectares na região do Juquery, e a primeira construção iniciou-se em 1895 com projeto 32
de Ramos de Azevedo e capacidade inicial de 800 leitos, inaugurados em 1898 pelos pacientes vindos de Sorocaba. O conceito do Asilo deriva das recomendações do Congresso Internacional de Alienistas, realizado em Paris, 10 anos antes da inauguração do primeiro edifício do Juquery. De forma geral, as recomendações diziam respeito a ter-se colônias agrícolas anexadas aos asilos, e adotar um sistema onde deveria haver um asilo central cercado de áreas destinadas ao trabalho agrícola desenvolvido pelos pacientes para fim de ocupação.
“O Asilo de alienados do Juquery foi concebido como um sistema completo, onde a proposta asilar da Instituição incluía além do hospital central para os agudos, as colônias em regime open-door parcial (da 1º colônia até a 6º colônia, pois a cronificação dos pacientes agudos era a tônica do tratamento), fazendas com open-door total (Crisciuma e Fazenda Velha) e assistência familiar (nutricio).” (PIZZOLATO, 2008, p.59)
3º CAPÍTULO - A ARQUITETURA
Além disso, os próprios edifícios dentro de uma mesma colônia respeitavam preceitos ditados pela época. Isto é, organização em pavilhoes horizontais, racionalização, setorização e separação dos doentes por diversos criterios como sexo, tipo de doença e tratabilidade etc. Também foram considerados aspectos de iluminação, ventilação, e higiene, com a disposição dos pavilhões assentados em diferentes patamares respeitando a topografia local e aclive do terreno. O edifício frontal é o que norteia todo o conjunto central, e por isso é dele que partem os eixos de simetria e articulação do restante do conjunto. Em 1901, os dados apontaram para um total de 160 alienados e 289 pacientes em toda a construção da Instituição. Contudo o maior dado que se tem é de 1971, com a indicação de cerca de 13 mil pacientes ao todo, segundo Castro Sá (1983). Em relação ao aspecto econômico, o conceito de cultivo agrícola e animal oferece outras vantagens se não as de tratamentos, pois segundo o próprio Dr. Franco da Rocha, essas atividades reduziam o aporte em dinheiro necessário pelo Governo, pois os produtos desses cultivos eram utilizados para consumo próprio dos pacientes. Mas, acrescenta que essa organização não poderia “considerar o trabalho dos pacientes como único sistema de manutenção e financiamento de alimentação, o que seria uma exploração que desmentiram os fins humanitários e terapêuticos”. (PIZZOLATO, 2008, p. 65) Devido às mortes serem recorrentes nas Colônias e Asilo devido à doenças trazidas ou adquiridas em meio a superlotação, foi necessário a implantação em 1913 de um cemitério formal. Contudo, diversas mortes anteriores, e até posteriores tiveram as certidões de óbitos preenchidos de forma incompleta, incorreta, ou até mesmo anulada. Durante a Ditadura Militar a situação foi ainda pior, com aumento no número de mortes e restrição de divulgação dos óbitos. Entre diversas denúncias e escândalos, estima-se segundo dados da reportagem local em 1998 publicados na Folha de S. Paulo, que:
“Com base nos dois livros recebidos, a comissão parlamentar estimou que 61 mil pessoas teriam morrido dentro do hospital de 1898, quando foi inaugurado, até 1991. Desse total, cerca de 30 mil teriam sido enterrados no cemitério do próprio Juqueri. “Informações do próprio hospital, recolhidas na época, falavam em 33.977 mortos enterrados ali”, diz o deputado Gouveia. Nesse meio, haveria cerca de 7.000 adolescentes, crianças e natimortos, além de um número grande de membros amputados, como pernas e braços, diz Cristina Lopes. “O que nos espanta é a grande quantidade de crianças enterradas e a razão de tantas amputações”, afirma a psicóloga. Quase todas as crianças seriam filhas de pacientes do próprio hospital.”(Folha de S. Paulo, 1998) Em 1923 a direção passa para o Dr. Pacheco e Silva, depois de Franco da Rocha atingir idade suficiente para aposentar-se. Com a nova direção, às colônias continuam a serem construídas, mas agora com uma nova disposição arquitetônica, menos central e introspectivo, e com um posicionamento em leque, com maior presença de áreas verdes, como é o caso da 6º colônia psiquiátrica masculina e a 1º colônia psiquiátrica feminina. É também nessa nova direção que ocorre a construção do Manicômio Judiciário, uma antiga reivindicação dos alienistas desde quando a instituição estava em São Paulo. A partir de 1934, e por se tratar de uma cidade recém formada, foi necessário a construção de diversas infraestruturas para abrigar os funcionários da instituição e suas famílias. Tem-se, portanto, a construção de lavanderia, cozinha, padaria, praça de esportes e outras facilidades. A praça de esportes é uma das principais contribuições da nova administração para a constituição da paisagem urbana de Juquery, cuja localização está abaixo do prédio da administração, entre a várzea do rio Juquery, e próximo à atual linha da CPTM. Após esse período, a demanda pelo hospital torna-se ainda mais expressiva e preocupante:
“A partir de 1966 - a criação do INPS assegura a uma grande faixa da população o direito à cobertura de assistência médica; não houve expansão da rede hospitalar, em proporção ao aumento da população; não se dotava, para a maioria das pessoas com transtornos mentais, outro tratamento psiquiátrico que não o hospitalar; há a deterioração na qualidade de vida em São Paulo por: expansão industrial fora de controle; êxodo rural, mudanças de hábitos de vida; especulação imobiliária. Esses fatores sociais condicionantes jamais permitiria diminuir a lotação de doentes no Juqueri” (CASTRO SÁ, 1983, p. 61)
Outro importante espaço, que ainda perdura até hoje, é o Museu Osório César. O museu deriva do Ateliê Livre, uma sala de artes criada em 1948 pelo médico psiquiatra Osório César com o objetivo de possibilitar aos pacientes o desenvolvimento de potencialidades que seriam reveladas no ato de criação e criatividade. Não havia interferência alguma na produção, e a única orientação era em relação ao uso das técnicas e materiais . Em 1952, após o acúmulo da intensa produção dentro dos ateliês, foi fundado o Museu de Imagens do Inconsciente, que mais tarde tornou-se o Museu Osório César.
Fotografias: Alice Brill. Disponível em: https://ims.com.br/por-dentro-acervos/ alice-brill-e-a-arte-no-juquery-por-cassiano-viana/
O que é interessante expor é que Osório foi casado com Tarsila do Amaral, e próximo de artistas e intelectuais como Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Carlos Scliar, e portanto era um grande admirador dos modernistas. Alice Brill foi convidada a fotografar os internos do Juquery nesse espaço de produção e arte, e as imagens mostram um imaginário diferente dos loucos perigosos, do desespero ou das crises. As imagens são do Acervo Instituto Moreira Salles, e são datadas de há quase sete décadas. O ateliê foi desativado durante a década de 70, mas reinaugurado sob forma de museu em 1985. Contudo, o Complexo era alvo de duras críticas e denúncias relativas aos direitos humanos: más condições de higiene, violências e práticas abusivas, péssimas condições de moradia e alimentação, repressão, torturas e técnicas terapêuticas como retirada de dentes e eletroconvulsoterapia. Durante a ditadura militar, as denúncias são ainda piores. Assim, embora por vezes a historiografia retrate por vezes uma atmosfera terapêutica asilar de zelo e cuidado, as denúncias e retratos expressam diferente. As fotografias a seguir são de autoria de Claudio Edinger de 1990, e foram retiradas do Acervo do Autor na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
“ Aquele lugar parecia uma maçã podre. Por fora, a casca era bonita e reluzente, com prédios e construções que eu nunca tinha imaginado que veria na minha vida. Do lado de dentro, a polpa estava pobre e carcomida por vermes famintos. Um amontoado de homens pelados ou maltrapilhos com a cabeça raspada passava o dia perambulando pelas galerias e corredores e povoava cada um dos pátios.” (O Capa Branca – Farias, Walter e Sonim Daniel Navarro– p. 35)
Fotografias desta página: Cláudio Edinger. Disponível em: https:// enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21658/claudio-edinger
Nos últimos anos o que se teve foi uma acelerada decadência do hospital enquanto Asilo Terapêutico, e enquanto edificações tombadas pelo CONDEPHAAT. A desativação segue em processo lento e gradual, e os últimos dados encontrados foram de uma reportagem do Estadão, onde os últimos 57 pacientes ainda habitavam o local. Em 2005, um incêndio destruiu drasticamente não apenas o principal edifício administrativo, tombado pelo CONDEPHAAT, como também a biblioteca mais completa de livros e periódicos de psiquiatria do país, acumulados ao longo dos mais de 100 anos do Complexo. Do edifício, infelizmente sobraram apenas elementos estruturais. Contudo, o ocorrido não é o único a denunciar o descaso com o maior e mais importante Complexo Hospitalar Terapêutico do país, pois a 1º Colônia Colônia Masculina também projetada por Ramos de Azevedo e que não teve seu restauro concluído até hoje. O que é mais intrigante, diante desses fatos, é que nas visitas de campo me foi proibido visitas aos edifícios, desenhá-los ou até mesmo fotografá-los. Essa repressão não aparenta ser nada mais do que um acobertamento do enorme descaso para com esses edifícios históricos e tombados, e deixo aqui, de forma clara, meu protesto e indignação em relação a esse descaso com o patrimônio histórico nacional.
“Embora ainda seja cedo para avaliar se o incêndio foi intencional ou não, ele certamente será fruto de mais de uma década de abandono e descaso na manutenção das edificações do Complexo. Cabe ressaltar que o prédio da antiga 3ª Clínica Feminina do Hospital Central, que foi incendiado (!) há alguns anos, ainda não foi recuperado, correndo sérios riscos de desaparecer. Esse risco também se estende à Colônia Azevedo Soares, construída em 1896, primeira edificação do Hospital do Juquery, também projetada por Ramos de Azevedo, há 110 anos com indiscutível valor histórico e arquitetônico.” (Iná Rosa e Lucia Teresa Faria, arquitetas e pesquisadoras do Hospital do Juquery, para Vitruvius)