BEBOP 01 - Forma é Poder

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1 - Em práticas de texto, a ênfase no “conteúdo” está ligada a uma certa noção de “naturalidade” na expressão. A forma “natural” é a que revela o “conteúdo” de maneira mais imediata. Preocupações com a “forma” obscurecem o “conteúdo”. 2 - Essa “naturalidade”, porém, só é possível através de um automatismo. Só quem obedece a um automatismo pode ser natural. Isso que se chama “naturalidade” é uma convenção. O natural é um artifício automatizado, uma forma no poder. A despreocupação com a forma só é possível no academicismo. 3 - Naturalismo, academicismo. O apogeu do naturalismo (Europa, segunda metade do século XIX) coincide com a explosão do jornalismo. O discurso jorno/naturalista representa o triunfo da razão branca e burguesa: o discurso naturalista é a projeção do jornalismo na literatura. 4 - O discurso jornalístico é discurso automatizado.Sua automatização decorreu de razões práticas, do caráter de NEGÓCIO que o jornalismo teve desde o início: a necessidade (contábil) de rapidez de redação, num veículo/mercadoria de edição diária, a necessidade de anonimato, sendo o jornal (a empresa) uma entidade impessoal a abstrata. 5 - A “enxutez” do discurso naturalista do século XIX é obtida através de uma tremenda repressão exercida sobre a fantasia mítica: é um discurso castrado. A disciplina do discurso naturalista, sua contenção, são calvinistas, puritanas, reprimidas a repressoras (Reich explica). 6 - Projetado na literatura, esse discurso “impessoal”, “objetivo” e “natural” é investido de “normalidade”. Na raiz, a palavra “normalidade” indigita sua origem de classe. “Normal” vem de “norma”. Norma é lei: poder. O discurso jorno/naturalista é o discurso do Poder. 7 - Esse poder é branco, burguês, greco-latino-cristão, positivista, do século XIX. Daí, as literaturas Latino-americanas, em seu momento de afirmação, privilegiarem as variantes ditas “fantásticas” do realismo. 8 - No discurso jorno/naturalista, o poder afirma, sob as espécies da linguagem verbal, a estabilidade do mundo, DE UM CERTO MUNDO, suas relações e hierarquias. O discurso, esse, em sua aparente neutralidade, é ideológico, embora invisível (ou por isso mesmo): é ideologia pura. Sua estabilidade é catártica: nos consola e engana com a imagem de uma estabilidade do mundo. De UMA CERTA ESTABILIDADE. Uma estabilidade relativa à visão do mundo de uma dada classe social muito bem localizada no tempo e no espaço. 9 - Contra a “neutralidade” do discurso naturalista branco, levantam-se os discursos reprimidos das culturas oprimidas, o frenético dinamismo mitológico dos fodidos, sugados e pisados deste mundo. Dinamismo, também, de formas novas. 10 - A “neutralidade” (objetividade) do discurso jorno/naturalista é uma convenção. Assim como a clareza, apenas uma propriedade (retórica) do discurso. Não há texto literário sem perspectiva, quer dizer, sem intervenção da subjetividade. No texto naturalista (ou jornalístico), essa perspectiva é camuflada, sob as aparências de uma Jornal objetividade, uma Universalidade que - supostamente - retrata as coisas “tal narrativo como elas são”. 11 - Invoca-se em vão o nome do realismo, que se procura confundir com o naturalismo. Realismo, quer dizer, discurso carregado de referencialidade, não é sinônimo de naturalismo. Ao contrário. O discurso realista não camufla a perspectiva. Realistas (e não naturalistas) são textos como o “Ulysses” de James Joyce. Ou as “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade. 12 - O naturalismo é incompatível com o experimento. Com a linguagem inovadora. O realismo favorece -os. 13 - A atitude naturalista convencional não enxerga a realidade, no experimento em prosa. Assim como não percebe sentimento no experimento poético. Pois identifica a expressividade com os signos convencionais do expressivo. 14 - Uma prática do texto criativo, coletivamente engajada, tem a função de desautomatizar. De produzir estranhamento. Distanciamento. É desmistificação da “objetividade” inscrita no discurso naturalista. Essa objetividade é falsa. Ela apenas reflete a visão do mundo de dada classe social, de determinada civilização. Sua pretensão a “discurso absoluto” é totalitária. 15 - Violação. Ruptura. Contravenção. INFRATURA. A poesia diz “eu acuso”. E denuncia a estrutura. A estrutura do Poder, emblematizada na “normalidade” da linguagem. 16 - Só a obra aberta (= desautomatizada, inovadora), engajando, ativamente, a consciência do leitor, no processo de descoberta/criação de sentidos e significados, abrindo-se para sua inteligência, recebendo-a como parceira e colaboradora, é verdadeiramente democrática. LEMINSKI, Paulo. Forma é Poder in Folha de S.Paulo: Folhetim, 04/07/1982. Reproduzido em ANSEIOS CRÍPTICOS, Criar Edições, Curitiba, 1986, p. 69 a 72.

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Ano 1 . Ed 1 . 2013

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Editorial Crônica

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QUEM EXpEriMEntoU Professor orientador Anderson Costa Editora da edição: Natacha Jordão narradores: Cristiano Martinez Lays Pedersseti Maíra Machado Natacha Jordão Taysa Santos.

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O Bebop é um jornal experimental produzido pelos alunos da turma A do 4º ano do curso de Comunicação Social (Jornalismo) da Unicentro. A finalidade deste material é informativa, educacional e cultural, sendo expressamente proibida a comercialização. Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião da Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste). Contato: jornalbebop@gmail.com Tiragem: 300 exemplares


E

MEU CARO LEITOR, por anderson antikievicz costa

começaram a improvisar e a quebrar as regras. Eles bagunçaram tudo em prol da liberdade. Acabaram configurando um espaço de resistência e, de quebra, fizeram dos anos 50 um dos períodos mais interessantes e criativos da história do jazz. A associação deste jorO termo bebop, à princínal com a música não é por pio, é utilizado para denomiacaso. Mas veja bem! A ideia nar o momento mais radical O jornalismo é não é produzir um jornalis- isso: envolvimento e do jazz enquanto música mo no improviso, mas fazer experiência. popular. Era rápido, frenéticom que os jornalistas, tal co, complexo, com centenas Engajados pela escomo os jazzistas do bebop, crita, queremos desde notas, sendo que muitas não se acomodem com as vendar o mundo con- além da redação, delas devoraram escalas as regras e com a rotina que tando as histórias mais ou seja, com o quais nem mesmo pertencitanto oprime o jornalismo importantes, que são repórter próximo am, surgindo daí sons dissotradicional. A intenção aqui aquelas que envolvem das pessoas e das nantes, sincopas, polirritmias é fazer com que eles bus- as pequenas coisas da comunidades. e mais uma dúzia de rupturas. quem inspiração para além vida e que, às vezes, Muitos jazzistas dizem que A intenção é das convenções e, assim, tem a duração de uma permitir aos alunos os fraseados soavam como não apenas criem textos canção. os martelos dos operários de a experiência jornamais pessoais, como tamferrovias ao baterem nos trilTemos por objetivo lística e, também, bém façam com que esse trabalhar com assuntos oferecer um produhos. Daí a onomatopeia. material fique mais próxi- do cotidiano do cidadão to de qualidade ao O fato é que os músimo das pessoas à medida de Guarapuava, através nosso público, que cos dessa época estavam em que ele se torna me- do Jornalismo Narrati- são todos aqueles descontentes com os clinos maquínico, mais hu- vo. Entendemos que a que gostam de inforchês do swing orquestrado mano, mais música. e dançante dos anos 30, e prática jornalística se dá mação e prosa.

screvo porque não sei fazer música*

*Felipe Pena

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crônica, por adrian lincoln

No lixão dos amores há centenas deles e de todos os tipos. Empilham-se em montes, separados por, classificados por, nomeados. Há para cada um, um diferente processo de reciclagem. Na pilha dos desgastados, os catadores – sim, há os catadores – devem chacoalhá-los, injetarem doses grandes da substância de ânimo, e os amaciarem usando um líquido feito à base de lembranças moídas junto de flores mortas. Há também o setor dos rejeitados em que os catadores precisam deixá-los secar à sombra, pacientemente apertá-los de abraços para assim retirar deles o chorume dos rancores. Depois, então, podem filtrá-los em uma máquina alimentada com estima, e aí, sim, eles, não os amores, mas os cata-

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amores

O lixão dos

dores podem se arriscar à chance, apresentando-se como a solução para os defeitos outros, e iniciarem o processo final de recuperação deste depósito, quase cemitério, de corações.

A pilha dos amores adolescentes é evitada pelos catadores. É uma sala enorme em que há sempre uma corrida com tudo, um vai e volta geral, por vezes não é preciso reciclagem alguma, voltam amanhã depois do fim do mundo de ontem, choram e se alegram ao mesmo tempo, e alguns, mesmo depois de crescidos, continuam lá, insistindo numa juventude ensaiada como um relógio gripado que corre os ponteiros, mas não conta as horas. No depósito dos amores adolescentes, tanto conflito produz um humor no ar, uma atmosfera de preguiça agitada em que os induz a aceitarem de logo a se envolver com as primeiras coisas aparecidas e atraentes por alguma razão, e aí se encucam os corações jovens numa ciranda vertiginosa em que paparicam o fugidio de alguma regra, o desarrumado de alguma arrumação, o quebra-regras da rua de cima, o poeta de guardanapo dos bares que rimam enquanto a natureza não rima (e de fato envelhece tudo). E tudo ali transforma mesmo a vontade nova em episódios repetitivos, os olhos puros em cansados, semicerrados com a antecipação do já visto. Há pilhas de todos os tipos lá, há os que marcam a própria pele e se arrependem depois, há os medrosos, os valentes demais, os com muita fome por causa da tristeza, os sem fome por causa da tristeza. Há os casos sérios dos amores morridos em que o processo de reciclagem é permanente, pois de tempos em tempos acontecem recaídas. Evitam-se os crisântemos, e só se ingere o resumo de lembranças enevoadas, pois puras, mesmo boas, desarranjariam tudo e teria de se começar o processo desde o começo. Há a pilha dos traídos, outra das complicadas. Rega-se com esquecimento, se aromatiza com as plantas quebra-rancores, e a quebra-pedras não é para os rins. De 6 em 6


horas, deve-se tomar o comprimido feito à base da opinião dos outros. Também o processo inclui deixar descansar com as mais diversas distrações e depois de longo tempo, dependendo do tamanho que aquela espécie de câncer chegou a ser, haverá a chance de uma nova chance ao catador paciente e esperançoso. Os catadores não eram catadores, mas já estiveram no lixão tantas e tantas vezes que se tornaram catadores. Especialistas em nãos, pós-graduados no enterro do que poderia ter sido, eles se tornaram versados em tentar. Não possuem marcas no corpo, pois a tatuagem que carregam é abstrata e na alma. Quando os catadores mostram os exames de coração para o médico responsável no local, sempre ouvem que devem mesmo é desistir, mas não o fazem, e ninguém sabe bem por quê. Sabe-se é que há alguns que nunca ali estiveram para o processo de reciclagem e assumiram direto a função de catadores, decerto, entristecidos o suficiente pelas aparências, desistidos antes da tentativa. Há catadores que estudam um caso único e fazem e refazem o processo de reciclagem por meses e até anos. Alguns conseguem finalmente salvar o caso, alguns desistem, outros continuam tentando, ainda que com a precariedade dos equipamentos do local… a ciência mais alta dali não abarca a engenharia complexa das sensações humanas, e nem vai, nem no dia do futuro, dizem os mais velhos.

Adrian Lincoln Mestrando em Linguagem, professor e escritor. E-mail: adrianlink@gmail.com

No lixão dos amores, a poesia não deve ser trágica nem dizer palavrão à toa, nem ser suja de sangue, nem desmascarar forçadamente a sociedade, nem intelectualizar a rima que não existe, pois no local, a impressão imediata e a urgência do agora já são gordas de pobreza aparente, sendo mais forte que qualquer pintura sobre, escrita sobre, ou fala de. No lixão, catadores e amores não rimam, pois não são palavras, mas tentam rimar é na realidade tocante, e quando conseguem é só louvor ao momento que todos lá escutam. Alegres tanto que correm na chuva para terem o banho dado por Deus, e deixar as ruas limpas daquela sordidez líquida que lhes sua a alma. Todos esses restos poluentes, os resíduos tóxicos de mágoa, os venenos de ódio, são despejados num rio morto, que não desce nem sobe, mas para, como verbo. E há rumores de que há quem esteja lá se alimentando daquele suco pantanoso, como quem, ausente de vida, suga qualquer ritmo de emoção que consegue encontrar. O rio que para, os humanos quase abutres que o rodeiam, as pilhas, os setores, o local, o depósito, e os catadores, todos querem ajuda: basta separar o seu lixo.

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As s nça esmo a i r c om ? ã t s je e ertindo o h de e div l é o s ua Ou q blema pro m e s

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Quem narra: LAYS PEDERSSETTI Fotos: ARQUIVO PESSOAL Ilustrações: CÉCILE GRAAT

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e prédio? piá d


“- FILHOOOO! Vem pra dentro que já tá tarde!”. Há dez anos era desta forma que as mães chamavam os filhos para o banho, no final do dia, depois de brincarem o dia todo na rua ou no lote dos vizinhos. Hoje, embora não seja tanto tempo depois, é mais comum ligar para o celular do filho ou ainda “-FILHOO! Desliga esse computador”, “Desliga esse videogame!”. Há dez anos eu costumava brincar com meus colegas no barro, fazer bolo de chocolate com terra, brincar na chuva de verão e me molhar nas poças de água que se formavam no quintal. Hoje, não é mais necessário ter criatividade para inventar brincadeiras, a maioria das crianças faz cupcake em jogos online, mas essa diferença está de alguma forma prejudicando o desenvolvimento das crianças? Bruna é da minha época, ela brincou da mesma forma e deixou de usar muita roupa que ficou tão suja que nunca mais voltou a ser a mesma. Hoje, ela é mãe de gêmeos e acredita que incentivá-los a brincar lá fora é bom, que se sujar faz bem; ainda mais quando se é mãe e pai ao mesmo tempo, já que Bruna criou Isabelly e Murilo sozinha. Isso não é problema, nem para ela, muito menos para os pequenos. Todo fim de tarde lá estão os três no lote de casa, Isabelly e Murilo, dividindo a

MURILO E JÁ ISABELLY DE S O CANSAD CAR IN TANTO BR

Bruna em duas pessoas, uma que brinca de carrinho e joga bola e outra que faz comidinha, brinca de boneca, mamãe e filhinha. De vez em quando o número de pessoas brincando aumenta, como Bruna mora com os pais, tem dias que o vovô e a vovó se juntam na “dança da chuva” e brincam no barro. Bruna dá muita importância para a infância dos seus filhos, “com certeza, é uma das fases mais importantes na vida de uma criança”. Mas como bem sabemos, os chamados ‘piá de prédio’ têm uma infância um pouco diferente, menos suja, mas nem por isso deve ser considerada problemática ou prejudicial. Como explica Humberto Oliveira Ausec, psicólogo e mestre em Análise de Comportamento, “é comum que as pessoas acreditem que há essa perda da infância, que elas só ficam no computador, mas não podemos esquecer que o ser humano é uma espécie

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extremamente maleável, somos muito sensíveis ao contexto, e por este motivo é muito difícil, senão impossível, estabelecer um tipo de infância ideal”. Ausec compreende que a criança deve ter uma interação social, porém a forma como isso acontece não é o mais importante. Permanecer muito tempo no computador pode afetar as relações sociais da criança, a menos que ela interaja nesse meio e tenha uma relação; não será face a face, mas ainda será uma relação. “Por exemplo, assistir TV não é uma relação com outras pessoas, mas proporciona conhecer a vida delas”. O psicólogo ainda acrescenta que as crianças de hoje são muito mais solidárias com as coisas que acontecem no mundo porque elas ficam sabendo disso.

Antigamente as crianças não tinham acesso a essas informações, elas sabiam somente o que acontecia ao redor delas. Apesar de não ser possível estabelecer um modelo de infância como certa em relação à outra, isso não quer dizer que elas não tenham valores sociais. Não há como dizer que a infância está perdida somente por ela ser diferente. E é neste ponto da conversa que os raciocínios de Bruna e Humberto se cruzam, para a mãe dos gêmeos “os pais tem o papel de incentivar, mostrar, brincar, levar em consideração que a infância é a melhor fase da vida de uma criança, então que as façam aproveitar da melhor forma possível” e para o psicólogo “o que as crianças não podem é perder a noção do valor das coisas e das pessoas e é importante que ela saiba de que maneira ela pode afetar o outro, se o que ela for fazer deixará alguém feliz ou se terá atitudes insensíveis”, se elas aprenderem a isso tudo se sujando ou não, hoje já não faz tanta diferença. Eu cresci no barro, mas me rendi ao computador. Confesso que sinto falta da lama.

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Quem narra: Natacha Jordão

reiro de 2013 tro, 25 de feve en ic Un a o im 19h20, próx pensamenas, neblina e lm ca as ru a, pessoas e Noite chuvos ndo”, observo as di re og pr os tos. “Estam vagar”. e, “devagar... De penso novament ituosos, somos preconce s do to s, so uo talvez - Preconceit de bar. A bebida o sa me a um em o ad diz um amig tenha libert m, ou talvez só nte, do qual lu lhe fizesse be preso em sua me va ta es e qu aquilo reender. tava para comp frase pressaí com aquela e s, do to de do ela enDespedi-me vo ter sussurra de e; nt me a nh anhamento em sa em mi causando estr a, av nh mi ca incomum, e por quanto ela não me era s ma a, vi me scobri porque quem ela noite eu de qu na a, nh mi e sort familiar. ela soava tão

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montaGem: natacha Jordão

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12h05, em aLGUm LUGar de GUarapUava, 20 de fevereiro de 2013

boas ações, porém tardias, do ministério da cultura do nosso país.

como as redes sociais podem funcionar tão bem, pessoas compartilham, convidam, anunciam eventos que para muitos meios de comunicação não vale a pena nem colocar ao lado do preço da banana em suas páginas, anunciar em um telejornal? Quem dirá ganhar um lugar no telejornal. e foi em uma rede social fiquei sabendo de uma das

- editais para negros e descentes pra produzirem livros, produzir roteiros, hum... interessante, pensei sem entender. - Quem vai fazer as entrevistas? - eu posso fazer... vou tentar. titubeio e deduzo que será


uma matéria fácil de escrever, então topo. - não, eu vou sim, pode deixar! talvez eu já esteja presa no sistema do jornalismo convencional, mas não agora, enquanto minhas lembranças sobre aquela noite ainda rodeiam meus pensamentos e me fazem refletir sobre a triste realidade de um país que diz não ter condições; na verdade o que faltar não é dinheiro, e sim caráter, humanidade e inteligência. 19h30, Unicentro, SaLa de eventoS, 25 de fevereiro de 2013 - Quatro pessoas, tudo isso veio assistir a palestra? você é a palestrante? - não, sou do centro cultural de entre rios. a chuva começa a cessar, ainda há esperança. chega a palestrante, uma senhora humilde, de aproximadamente de um metro e meio, cabelos loiros, com algumas marcas de experiência, parece a vontade com o lugar, cumprimenta a todos e brinca falando do tempo de Guarapuava, e logo reclama da chuva. - É sempre assim aqui? - a chuva parece ter compromisso todos os dias na cidade.

Sugestiva e animada, parece conhecer a todos que estão presentes, não fica parada, gesticula com as mãos como seus gestos chamassem os ouvintes a participarem e contribuírem com a palestra. - antes de falarmos sobre os editais, vamos falar um pouco sobre o sistema nacional de cultura, começa eleonora Spinato, totalmente imersa no assunto. olho para trás e observo, o salão está lotado. nada de imprensa. - nunca no Brasil foi colocada tanta verba na cultura, continua eleonora. É como disse a ministra marta Suplicy: É como se nós estivéssemos entregando a certidão de nascimento do Sistema nacional cultural do nosso país, e todo o cidadão será contemplado, pois todos têm direitos culturais. o salão está quieto, todos refletem sobre as palavras ditas. e parecem querer gritar “nós sabemos, por isso estamos aqui”. a palestra não é mais sobre os editais para jovens produtores negros, é sobre todas as minorias que sempre são temas nas épocas eleitorais, mas depois são esquecidas.

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montaGem: natacha Jordão

todos os presentes parecem concentrados no discurso da palestrante, balançando a cabeça em sinal de compreensão e afinidade com suas palavras. ela por sua vez, parece feliz em estar ali para avisar que aquilo pode ser só o começo, pode se tornar algo grandioso se cada um fizer a sua parte, sim todos, não somente os políticos, como ela faz questão de enfatizar, mas o seu apelo também era para aqueles que desconhecem seus direitos e se contentam com o pouco que lhe é oferecido. assim segue a palestra para explicar a opressão que o Brasil mantém em suas terras, opressão que continua após aquela noite chuvosa e que estará a mercê de muitas outras chuvas. - precisamos da participação social, o fundo nacional de cultura do rio Grande do Sul tinha 0,8% de investimentos para a cultura, hoje é 0,16%, é pouco, mas já dobrou. não me recordo porque houve risos quando eleonora disse isso, mas acho que o desespero pode ter sido o responsável, ou o humor negro estava em alta na noite. -os municípios pequenos precisam de um fundo de cultura para projetos e ações. Que co-

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mece com pouco, mas já é alguma coisa, e esses municípios que aderirem a esse sistema vão receber recursos diretos do fundo nacional. o complemento parece ser uma tentativa para tornar o 0,16 mais significativo. em seguida eleonora olha para a sala, suas palavras saem mais rápido do que no início da palestra: - nós vamos passar a noite inteira aqui. rostos inquietos, as vozes se cruzam, ninguém quer sair sem dar opiniões sobre o sistema cultural brasileiro. - É um absurdo, o paraná era o único estado que não tinha ainda aderido ao sistema, reclama elton Barz, um dos representantes da central de cultura da capital do estado. com a voz trêmula, eliane de Jesus de oliveira se manifesta: - nós negros estamos buscando nosso espaço, é esse o momento, o negro tem que se identificar como negro e assim buscar seus direitos. todos os negros que têm seus talentos, eles têm que aparecer. Uma senhora de cabelos grisalhos e andar lento, que não via a hora de falar, já

estava balbuciando as palavras com uma senhora que sentava atrás dela, até que conseguiu a atenção da sala: -nós batalhamos pela cultura de Guarapuava desde 99, fui proponente de uma vereadora para a criação de uma fundação cultural que foi aprovada no papel e até hoje ela ainda não foi efetivada. também batalhamos por um teatro em Guarapuava, uma cidade com 200 anos não tem teatro, nós estamos carentes de espaços culturais. respira fundo e continua falando sobre os temas em debate na noite: - nós temos uma história de escravidão [em Guarapuava], mas ela ficou invisível, não há interesse, comenta a senhora que apesar de mostrar contentamento com o projeto que beneficia negros e descendentes no meio cultural, demonstra que em Guarapuava ainda há muito que fazer com relação a igualdade. alguns ouvintes nervosos reclamam do descaso que a cidade tem com os negros, outros que o Brasil tem com a cultura, mas é preciso encerrar a discussão, pelo menos por hoje, acho que a matéria não vai ser fácil de escrever.

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literatura viva

Principezinho

Uma vez por ano, durante 42 anos, ele lテェ o mesmo livro

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Quem narra: tAYsA sANtOs ilustraテァテ」o: NAtACHA JORDテグ


“Tudo é sempre igual nos 20 de janeiro. Eu acordo cedo, pego minha xícara de café, olho pela janela e observo as crianças invadindo as ruas. E aí, sento no lado esquerdo do sofá, que fica embaixo de uma janela, ajeito minhas costas com a almofada que ganhei de presente no meu casamento. Faz 42 anos que sigo o ritual. É hora de ler o livro de minha vida”. Andando pelos corredores de um supermercado, um senhor me chamou atenção. Durante uns trinta minutos, o observei na gôndola de revistas, lendo sinopses, conferindo manchetes. A princípio ele poderia ser apenas um curioso, esperando algum amigo fazer as compras do mês, aproveitando para conferir os livros lançados e também os capítulos da próxima semana de sua novela preferida. Aquela cena me deixava cada vez mais curiosa e mesmo assim fiquei com receio de me aproximar. Centrado, com um olhar fixo na capa da Veja que falava sobre o Cérebro e a origem das emoções, aquele senhor, que demonstrava a idade pelas marcas do rosto, parecia vagar em um pensa-

mento distante. De qualquer forma, resolvi arriscar. - Boa tarde, tudo bem? O senhor tem o hábito de ler? - Com certeza, esse é o meu grande prazer na vida. A leitura me faz viver em vários mundos. Aquela resposta me deixou ainda mais interessada na história de vida daquele homem. Seguindo a conversa, me apresentei e aproveitei para saber mais sobre esse senhor. Mas nesse mesmo momento seu filho mais velho já estava terminando de passar as compras no caixa. E, por isso, o desenrolar da conversa ficou marcado para outro dia. Não sei explicar, talvez o faro jornalístico estivesse tentando me dizer que aquele senhor baixinho com olhos esverdeados escondidos atrás dos óculos pesados tinha muitas histórias para contar. Quatro dias depois nos encontramos num banco da praça da catedral, local que fica próximo a sua casa. Quando chegou, logo me disse que sua mulher era muito católica, diferente dele que entrou pela última vez na igreja no dia do seu casamento.

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As PEssOAs GRANDEs sÃO DECiDiDAMENtE MUitO BizARRAs...

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Duas horas se passaram, esse foi o tempo necessário para ele me contar um pouco de sua trajetória, bem como sua paixão pela literatura. Natural de Cambé, cidade do norte do Paraná, Seu João Carlos Silveira tem 58 anos, é aposentando, viúvo e mora em Guarapuava há 20 anos. O contato com os livros começou cedo. Seu pai trabalhava de caseiro numa fazenda da região, e todo ano seu patrão doava para ele livros velhos que já não eram usados mais. De todos os filhos, apenas João se interessava por eles, aliás, esse era o melhor presente que ele poderia ganhar: livros. O tempo foi passando e anualmente ele foi colecionando histórias, aventuras e principalmente sonhos. Aos dozes anos decidiu que queria ser professor de português, e com isso, plantar a semente da leitura em todos os alunos. “Enquanto meus irmãos queriam ser jogadores de futebol, médicos e advogados, meu sonho era passar conhecimento para outras pessoas. As palavras me fascinam, a leitura sempre me encantou, gostaria de encantar todo mundo com ela’’. Empolgado, ele conta que tem prazer em folhear um livro, em sentir a

textura do papel e principalmente em ter a oportunidade de sonhar e conhecer vários mundos por meio da leitura. Com um olhar distante e um sorriso no rosto, Seu João fala sobre o livro que é o motivador da sua vida, o clássico O Pequeno Príncipe, um romance do escritor francês Antoine de Saint – Exupéry, publicado em 1943 nos Estados Unidos. “A primeira vez que eu tive contato com o livro, foi com 10 anos, as histórias do principezinho marcaram a minha vida’’. Depois de ler o clássico pela primeira vez, João resolveu escrever uma frase do livro no guarda roupa que dividia com seus irmãos. “As pessoas grandes são decididamente muito bizarras... ’’. Com um olhar inocente de criança, ele observava que os adultos davam muita importância a bens materiais e se esqueciam de coisas importantes, como o afeto e as demonstrações de amor. Os anos foram passando. Novos livros fizeram parte da sua vida, entre eles, As Reinações de Narizinho, A Turma da Mônica, Mafalda, O Menino Maluquinho, Fábulas de Esopo. Apesar de novos personagens e histórias, ele começou a sentir necessidade de


ler mais vezes a história do pequeno príncipe. “Era mais que um livro, sempre me identifiquei muito com o conteúdo dele, prometi para mim mesmo que ia ler o príncipe uma vez por ano”. Dando uma gargalhada e relembrando os velhos tempos, Seu João conta que sempre foi muito teimoso e decidido, e por isso, segue esse costume até hoje. “Todo dia 20 de janeiro é sagrado na minha casa, é dia de ler o pequeno príncipe, faço isso há 42 anos”. O lápis o acompanha na leitura. Anualmente, ele escreve em folhas brancas trechos que representam o momento em que ele está vivendo. Envergonhado, conta que usou um trecho do livro até mesmo no discurso de casamento. “Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla’’. - Eu precisava dizer alguma coisa que marcasse aquele momento, eu iria passar a viver do lado da mulher da minha vida. E, por isso, o principezinho precisava estar junto comigo, ele sempre me ajudava com lindas palavras. Depois do casamento, frases do livro continuaram a fazer parte da sua vida. No nascimento dos seus

“se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla’’.

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dois filhos, para superar problemas familiares, em aniversários de amigos. E, principalmente, na realização do sonho de ser professor. - Já dizia o meu amigo principezinho, ‘’quando a gente anda sempre para frente, não pode mesmo ir longe“, precisamos valorizar quem amamos, dizer um ‘eu te amo’ logo cedo. E, ir em busca de nossos sonhos. Mesmo que todos duvidem, acredite em você. Depois de vinte e cinco anos em sala de aulas, foi preciso se aposentar. Há dois anos, Seu João está enfrentando o câncer no intestino e também na pele. Momentos difíceis, ainda mais

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depois de perder a mulher amada. Mas, sempre ao seu lado está o príncipe e as histórias que fazem parte da vida dele. Com lágrimas nos olhos, ele diz que já está perdendo as forças e por isso está sentindo que sua hora está chegando. “Em breve estou indo embora. Para onde? Não sei! Só espero encontrar o meu amor e poder me lembrar dos ensinamentos do príncipe, os quais regeram a minha vida”. Assim como seu amigo príncipe, João acredita que já fez sua trajetória

aqui na Terra e agora está na hora de conhecer outros mundos. “Temos uma rota a cumprir, já aprendi muito nesse lugar. Preciso ir adiante, seguir a minha jornada, ir à busca de novas histórias e principalmente da minha rosa”. Na despedida, palavras foram poupadas. Com um olhar sincero ele apenas me entregou um bilhete com um recado do pequeno príncipe:


Acorde menina, não há estrelas sob a lápide noturna

Acorde menina, pois a lua olha-nos cheia Há cicatrizes, e sua luz no meio à escuridão Acorde menina, não há estrelas sob a lápide noturna Há vento e folhas mortas Fumaça e indiferença Há tempo de caminhar E de tomar o lodo em nosso cerne Para vê-lo brilhar discretamente em nossas mãos Como ríspido diamante Há tempo de estremecer-se Na esquina povoada de espelhos d’água Onde a lua divide-se em centenas Centenas gotas de prata em nosso abraço febril Setenta punhais na noite em que farejamos o doce da espartana, Maestrina de tais príncipes Nós, setenta vezes assassinos Não os alcançaram à luz Nós, setenta vezes covardes Não Não Não Não Não Não

Kaio Miotti

bebemos água pura vimos o horizonte sutil conquistamos a vitória amamos nenhum de vocês pretendemos perdão ou misericórdia desejamos alguém que nos salvasse

Nos acolhemos à escuridão indiscreta Sedentos pelo guizo de prata Pelos gritos de fome Pela gargalhada de algum homem vil

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Que a inda exista

amor para

recomeçar

Quem narra: maĂ­ra machado Fotos: arquivo pessoal

Bartek Ambrozik

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E

u sempre tive medo de ficar sozinha. Sonhava em encontrar alguém com quem pudesse dividir a minha vida. E um dia encontrei. Naquele momento, eu sabia, o meu ‘para sempre’ acabara de começar. O tempo passou e eu fui esquecendo uma coisa muito importante: O ‘para sempre’, sempre acaba, já dizia Cássia Eller. E então, no auge dos meus 20 anos, já estava numa sala de terapia. O recomeço me assustava. Afinal, ainda não estou acostumada a reinícios. Como recomeçar? Foi aí que comecei a me interessar por histórias de pessoas como a de Maria Luiza. A moça, administradora de profissão e corajosa por opção, me mostrou que sempre é tempo de recomeçar, que sempre há tempo para viver algo novo, de novo.

“Quem tem amor tem coragem pra saber que não está só” Trecho da música Afeto em Partes, da banda Nuvens.

PRIMEIRO ATO. A história dela começa com um casamento que não deu certo. O relacionamento, que durou quatro anos deixou marcas, mas também um presente: uma filha. A separação se tornou inevitável, uma vez que a traição entrou na história. A filha dela, hoje com oito anos de idade, é o principal motivo para que as mágoas do passado tenham ficado para trás e, para que hoje a relação com o ex-marido seja boa. Eis o primeiro recomeço. Quando se tem um filho, diz ela, se espera encontrar alguém que nos proporcione um relacionamento mais sério, concreto, baseado no respeito. “Depois desse período, eu passei por uma fase de amadurecimento no que diz respeito a relações. Em outras tentativas, que também não deram certo, eu levei muito mais em conta esses critérios”. Mesmo com a decepção da traição, Maria Luiza continuou firme e, então, o coração se abriu de novo. Outra pessoa, outra história que mais tarde também não daria certo. Foram quatro anos. Três anos de namoro e um ano de convivência na mesma casa. Desse relacionamento, outro anjo. Ainda enquanto namorados, Maria Luiza descobriu que esperava outro filho. Um momento que deveria ser de alegria plena logo apresentou

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grandes frustrações. No meio da gestação eles resolveram terminar o namoro. “Num momento de fragilidade da mulher, e eu acredito que a gravidez é o momento mais frágil da nossa vida, quando a gente tem uma carência maior, chora por qualquer coisa, eu não estava com o meu companheiro, ele não estava do meu lado, não passou comigo os meus enjôos, as minhas vontades”. Nesse momento da história, outro episódio triste, a bebê que Maria Luiza esperava morreu. Ela não consegue evitar as lágrimas, mas prossegue coma entrevista. “Ainda antes de perder a bebê, esse meu namorado arrumou outra pessoa, o que me magoou mais ainda, me deixou muito pra baixo. E depois da morte da minha filha, eu ficava procurando um culpado. Meu rancor era muito grande, porque eu queria aquela pessoa do meu lado, batalhando junto e nada daquilo que eu imaginei aconteceu”. Ainda abalada com a perda da filha, Maria Luiza havia decidido colocar um ponto final na história. “Mesmo decidida, eu acabei considerando o fato de que aquela pessoa veio até mim e me propôs uma nova tentativa, um pedido de perdão, uma esperança de fazer dar certo. Era visto que não daria, mas mesmo assim eu quis continuar. Hoje eu sei que não foi o mais correto”.

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“Ter conhecido outra pessoa me fez querer recomeçar” sEgUndo ATo. Depois de quatro anos, esse relacionamento também acabou. Surge a necessidade de recomeçar mais uma vez. “Depois disso, eu fiquei sozinha por um bom tempo. Foi um período que eu fiquei muito desacreditada. Eu fiquei totalmente fechada para a possibilidade de encontrar outra pessoa”. Dois longos relacionamentos, duas histórias que não acabaram bem. “[suspiro] É triste quando um relacionamento acaba. É muito triste. Eu não consigo pensar em uma pessoa que saia de uma relação sem feridas e sem cultivar tristezas. Você passa um tempo com a pessoa, você convive com ela e, acima de tudo, você tem sentimentos e sonhos que incluem essa pessoa. Quando é rompido esse ciclo de expectativas, você sofre. Eu chorei, eu tive dor de cotovelo e eu amadureci demais com tudo isso”. Durante esse período muitas coisas se passaram pela mente de Maria Luiza. Foram perguntas, afirmações, conclusões que fizeram com que ela estivesse disposta a aceitar os riscos de mais um recomeço. “Eu nunca tive medo de ficar sozinha. Claro, eu acho que ficar sozinha é muito triste. Mas eu sabia que uma hora ou outra, apareceria alguém bacana”.

TErcEiro ATo. Mais um recomeço. O fato de ter conhecido outra pessoa, fez com que Maria Luiza, com toda a coragem, quisesse tentar de novo. “De repente eu conheci essa pessoa. Foi aos poucos. Eu percebi que tínhamos objetivos muito parecidos e foi então que eu resolvi me permitir conhecer melhor e investir em um novo relacionamento. O amor, mesmo que você não busque, ele aparece, sempre vale a pena apostar. Ninguém nasceu pra ficar sozinha”. QUARTO ATO. O recomeço que ainda segue. Há cinco meses, um novo namoro tem feito a vida dela mais colorida. Hoje feliz e deixando pra trás todas as vezes em que as decepções quase a fizeram desistir, ela garante “Toda panela tem sua tampa”. Então eu perguntei: “Malu, será que o para sempre existe?” - Não sei. ‘Que seja eterno enquanto dure’. Que seja bom enquanto dure. Ou que dure enquanto for bom. CENA FINAL: Talvez eu não precise mais de terapia.

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O Brasil de Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen De como vivenciei episódios extraordinários durante minha estada no Brasil, uma terra latinoamericana ao mesmo tempo fascinante e intrigante

QUEM NARRA: Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen, em carta transcrita a Cristiano Martinez

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Meu caro Décio, “Nunca acreditei no governo desse presidente”, dizes tu, meu perspicaz Valdécio Kloster Prestes, cidadão versado nas artes do comércio, da leitura e da música na pequena cidade de Guarapuava, no interior do Paraná. Fico feliz em receber tua carta, relembrando fatos sobre teu Brasil e a política praticada ao longo das últimas cinco décadas. Décio, como sei que gostas de ser chamado, és descrente, meu filho. Não te condeno. Mas minha experiência internacional antes de chegar a seu país e, especialmente, ao Paraná, e, mais ainda, a Guarapuava, provam que há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia, como diria Horácio, num livro de um conhecido meu. Em minhas andanças por terras misteriosas e povos

fascinantes, vivi muito e vi muita coisa. De todas as aventuras, talvez a vivenciada no gigante adormecido latino-americano, como o povo desse país no qual vivo desde os anos de 1960, seja a mais extraordinária. Décio, meu companheiro, mais fé e esperança. Por falar no sessentismo, isso me lembra de um episódio no qual tomei parte, meu caro comerciante. Ah, que data histórica o Primeiro de Abril de 1964. Parece que foi ontem que participei daquele jantar do dia 31 de março daquele ano. Estávamos eu e alguns generais a contemplar a destituição de um presidente comunista e a tomada do poder pelos meus amigos militares. Tudo pelo bem da nação. Eu, como bom monarquista que sou, vi com bons olhos aquela revolução que instaurou um governo democrático e limpo; afi-


nal, Costa e Silva, Médici, Figueiredo e tantos outros se alternaram no comando desse portentoso país. “Parecia que as coisas eram melhores naquele tempo. Servi o exército nos anos de 1980. A comida servida nos quartéis era muito melhor do que a de hoje”, tem razão meu querido Décio. Tudo era melhor naquela época. Que Primeiro de Abril! Eu estava lá, dando meus palpites aos coronéis, marechais e generais. Olhava nos olhos daqueles senhores, mais velhos do eu, claro, mas que tinham uma vivacidade e um sentido de pátria como nunca vi antes. Talvez, no Chile de Augusto Pinochet. Foi uma data muito autêntica. Em comemoração ao dia histórico, o jor-

de: Ka rl hieron friedrich ymus v on mün chhau sen para: Sr. val décio Guara Kl pauva - para oster prest es ná

nalista Paulo Francis tomou de uma só vez uma garrafa inteira do uísque Queen Anne. Oh, esses jornalistas... Não convidam as personalidades distintas e ilustres da sociedade para suas festinhas particulares. Em minhas aventuras pelo mundo, nunca vi tamanho desrespeito aos padrões mínimos de etiqueta. Não por sinal, o Francis se mudou desta terra para os Estados Unidos, nação do conservadorismo e liberalismo. Essa história de freedom não me convence nenhum um pouco. Lá, nosso cama-

rada se tornou uma pessoa bocuda e sem papas na língua. Um absurdo sem tamanho! Se ele tivesse ficado na pátria armada, ou melhor, amada, saberia que aqui meus amigos implantaram um moderno sistema de filtragem da informação, escolhendo o que de melhor poderia chegar aos olhos e ouvidos do povo brasileiro. Isso foi mais do que certo, já que tem muita porcaria circulando por aí e a imprensa pode publicar de maneira irresponsável. Hoje, no ano de 2013, vejo que a preocupação pela peneirada na informação voltou com tudo. Agora, eles deram o nome de “democratização da informação”. Mas, voltando a nosso Primeiro de Abril, como funcionou bem o sistema

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NO FiNAL, tUDO DÁ CERtO. sE AiNDA NÃO DEU CERtO É PORQUE AiNDA NÃO ACABOU ZÉL IA CA RD OS O DE ME LO

“A POUPANÇA É sAGRADA” FER NA ND O CO LLO R DE ME

LO

AREi X i E D E M “ M A s N Ã O i L U D i R AO P O V O . M iLUDiR, NE RA DE FAzERMOs HO CHEGOU A RDADE” VE O JOGO DA M É D IC I G E M ÍL IO

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AZU ARRAST


de filtragem. Graças a ele, obras subversivas e outras bobagens puderam ser evitadas. Um tal de Sófocles, pelo jeito um grego safado, quis encenar uma peça chamada Édipo Rei. Apesar da referência à monarquia, não li e não gostei. Logo que fiquei sabendo de sua montagem num teatrinho e com um atorzinho chamado Paulo Autran, fiquei furioso e acionei meus contatos. A peça foi proibida na hora. Só não conseguiram, amigo Décio, prender o autor do imbróglio. Sumiu sem deixar vestígios. Deve estar numa ilha grega, rindo até hoje do golpe dele em 64. Décio, sabes que não gosto de me gabar. Mas, preciso confessar algo: graças a mim, hoje seu país tem uma das estradas mais modernas e importantes. Ela corta sua pátria de fora a fora, gerando renda e fortuna, além de pôr a terra adorada entre as principais do mundo. Trata-se da Transamazônica! Que colosso de estrada, altamente transitável e perfeita para o transporte das cargas mais valiosas e portentosas desse país varonil. São 4.223 quilômetros de terra, aço e beleza. Quando o tempo está seco, vejo aquela nuvem de poeira a colorir a paisagem de um vermelho lindo e cativante. É a cor da paixão, a mesma que senti quando botei meus olhos experientes e realistas naquela imensidão verde chamada Amazonas. Quando faz chuva, ah, é o deslizamento de veículos leves e o afundamento de poderosos caminhões. Todos querem ficar um pouco mais na Transamazônica. Ninguém quer abandoná-la tão cedo. E tudo começou por acaso, quem diria. O Emílio precisava de uma grande obra, inspirada nos faraós do Egito antigo, para levar o Brasil a outro patamar de desenvolvimento. Também diziam que o Emilinho era um cara sem paciência. Tudo fofoca da oposição. Pois bem. Lá estávamos nós numa sala escura, em reunião, com alguns sujeitos em cadeiras e outros suspensos em barras (estes preferiam se exercitar). Entre um ou outro grito de alegria pela revolução, Emilinho pensava e pensava, sem chegar a lugar algum. Até que eu disse: “Transa”. Causei estupefação total na sala, todos pararam para saber o que era aquilo.

A ideia me veio na hora. Havia me lembrado de uma viagem à Amazônia, onde conheci lindas mulheres de uma tribo indígena. Por livre associação, pensei “Transamazônica”. Eureka! Era a solução: uma estrada que penetrava pelo Estado do Amazonas e chegava à outra ponta, no Estado da Paraíba. Os policias do Dops e Emílio pararam imediatamente a confraternização com aqueles moços e moças na cadeira ou suspensos nas barras. Meu general gostou tanto da ideia que queria batizar a estrada de “Barão de Münchhausen”. Porém, a modéstia me impediu. E ficou o belo nome de Transamazônica. Era o Milagre Brasileiro em gestação. Tempos de glória e de sinceridade. Décio, Décio, Décio. Em seus 50 anos de idade, talvez você não se lembre com tanta exatidão dessa época. Sua memória talvez tenha recordações mais precisas de outro período, que veio numa fase de abertura do país. ‘Anos colloridos’. Você já me disse em tua missiva que não acreditava nele, Fernando Collor de Melo. Quanta descrença! Foram anos de prosperidade e desenvolvimento.

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Depois de congelamentos, fiscais do Sarney, planos e planos, veio a modernidade com Elle, o outrora caçador de marajás. “O povo foi burro de o ter elegido”. Não, discordo. A voz do povo é a voz de Deus. Olhe, querido Décio, as atitudes modernas do Fernando, o Bello: fim de uma empresa que gastava rios de dinheiro para filmes que ninguém assistia, carros importados para o Brasil, uma nova moeda, o Plano Collor e o confisco da poupança. No país das mulheres poupançáveis, nada melhor do que passar a mão na dita cuja para ajudar no crescimento da economia. Confesso, desta vez a ideia não foi minha. É preciso dizer que prestei valorosos e honrados serviços a Paulo César Farias e Fernandinho; mas, no melhor lance de seu governo, não pude colaborar com coisa alguma. O que fazer

se, em sua equipe, havia uma mulher fantástica e que me superou no plano das ideias. Ungido de humildade e certa inveja, claro, sou obrigado a reconhecer que a senhora de nome diferente, Zélia, superou este pobre Barão que vos escreve. A aventura mais extraordinária do Brasil não foi uma colaboração minha. “Eu não tinha dinheiro aplicado na poupança, naquela época. Tinha um tipo de trabalho que não permitia investir em economias. Mas conheci um sujeito que vendeu seu caminhão e colocou tudo na poupança. Ele estava feliz da vida, vendo aquele dinheiro crescer. Mas, num belo dia, tudo acabou. O dinheiro sumiu”. É verdade, Décio. E eu só falo a verdade. Houve sim um confisco fiscal da economia. Mas a Zélia explicou na TV e em bilhetinhos, junto com o Bernardo Cabral, que era um plano arrojado e que daria um jeito na inflação. Chico Anysio também acreditou. No entanto, você sabe, sempre tem as intrigas e a inveja. Infelizmente, meu amigo collorido foi obrigado a deixar o governo. Outro absurdo da história brasileira. Viajamos de avião e partimos rumo a outras aventuras extraordinárias. A Justiça tarda, mas não falha. Anos depois, Fernando, o Bello voltou por cima como senador da República. A verdade dói, mas é justa. Bom, amigo Décio. Chegamos a um novo Primeiro de Abril, agora de 2013. Esse seu país gigantesco e portentoso é repleto de aventuras extraordinárias na política. Estou inebriado. Mas, por ora, está bom. Minha sincera e verdadeira despedida.

EsCOLHiDO PELO PERsONAGEM No dia 1º de abril de 2013 (ou 31 de março) completam-se 49 anos do movimento feito pelos militares brasileiros em 1964 que destituiu o então presidente João Goulart do comando do Brasil. ‘Golpe de 64’ para uns, ‘Revolução de 64’ para outros. Independentemente do nome, o episódio marcou o início de um período de ditadura militar que terminou apenas em 1984 com as eleições indiretas para a Presidência da República. No entanto, o primeiro presidente eleito de maneira democrática e direta surgiria somente em 1989, com Fernando Collor de Melo. Tendo em vista os fatos extraordinários da recente história brasileira e a passagem de mais um Primeiro de Abril, o Bebop escolheu o Barão de Münchhausen - personagem imortalizado na obra As aventuras do Barão de Münchhausen, Rudolph Erich Raspe - para relembrar esses episódios a partir do relato do guarapuavano Valdécio Kloster Prestes.

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