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ISSN 1519-7727

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posURB PUC-CAMPINAS | jANEIRO_JUNHO 2015

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SUMÁRIO |CONTENTS 5

NOTAS DO EDITOR | EDITOR’S NOTE | NOTAS DEL EDITOR | MARIA CRISTINA DA SILVA SCHICCHI

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EDITORIAL | EDITORIAL PESQUISAR? PARA QUÊ? PARA QUEM? | RESEARCH? FOR WHAT? FOR WHOM? | ¿INVESTIGAR? ¿PARA QUÉ? ¿PARA QUIÉN? | JONATHAS MAGALHÃES PEREIRA DA SILVA

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ENSAIO VISUAL | VISUAL ESSAY | ENSAYO VISUAL DESENHOS DE PROSPECÇÃO PARA PROJETOS URBANOS: CENTRO POPULAR DO JARDIM ÂNGELA, SÃO PAULO — 1988 | PROSPECTIVE DRAWING FOR URBAN DESIGNS: POPULAR DOWNTOWN AREA OF JARDIM ÂNGELA, SÃO PAULO — 1988 | DISEÑOS DE PROSPECCIÓN PARA PROYECTOS URBANOS: CENTRO POPULAR DEL JARDIM ÂNGELA, SÃO PAULO, 1988 | CLAUDIO MANETTI ARTIGOS ORIGINAIS | ORIGINAL ARTICLES | ARTÍCULOS ORIGINALES

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A CIDADE EM MOVIMENTO: PRÁTICAS INSURGENTES NO AMBIENTE URBANO | THE MOVEMENT IN CITIES: RISING PRACTICES IN THE URBAN ENVIRONMENT | CIUDAD EN ACCIÓN: LAS ACTIVIDADES CRÍTICAS EN EL ENTORNO URBANO | CARLOS HENRIQUE MAGALHÃES DE LIMA

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PRÁCTICAS COTIDIANAS DE LOS ADULTOS MAYORES EN EL CONTEXTO FAMILIAR LATINOAMERICANO | EVERYDAY LIFE PRACTICIES OF ELDERLY PEOPLE IN THE FAMILIAR LATIN AMERICAN CONTEXT | PRÁTICAS COTIDIANAS DO IDOSO NO CONTEXTO FAMILIAR LATINO-AMERICANO | PAMELA QUIROGA

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PRÁTICAS CRÍTICAS NO ESPAÇO URBANO: TRISHA BROWN, DUANE MICHALS E BERNARD TSCHUMI | CRITICAL PRACTICES IN URBAN SPACE: TRISHA BROWN, DUANE MICHALS AND BERNARD TSCHUMI | PRÁCTICAS CRÍTICAS EN EL ESPACIO URBANO: TRISHA BROWN, DUANE MICHALS Y BERNARD TSCHUMI | MARIANA DOBBERT TIDEI, DAVID MORENO SPERLING

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DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL: DE PARADIGMA A MITO | URBAN SUSTAINABLE DEVELOPMENT: FROM PARADIGM TO MYTH | DESARROLLO URBANO SOSTENIBLE: DE PARADIGMA A MITO | ANDRÉ LUIZ PRADO

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PLANEJAMENTO E SOCIALISMO: NOTAS PARA UMA BIOGRAFIA INTELECTUAL DO URBANISTA RAYMOND UNWIN | PLANNING AND SOCIALISM: NOTES FOR AN INTELLECTUAL BIOGRAPHY OF THE URBAN PLANNER RAYMOND UNWIN | PLANIFICACIÓN Y SOCIALISMO: APUNTES PARA UNA BIOGRAFÍA INTELECTUAL DEL PLANIFICADOR URBANO RAYMOND UNWIN | LUIZ AUGUSTO MAIA COSTA

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O NEW URBANISM E A LINGUAGEM DE PADRÕES DE CHRISTOPHER ALEXANDER | THE NEW URBANISM AND THE PATTERN LANGUAGE OF CHRISTOPHER ALEXANDER | EL NEW URBANISM Y EL LENGUAJE DE PATRONES DE CHRISTOPHER ALEXANDER | DANILA MARTINS DE ALENCAR BATTAUS

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DAS RETÓRICAS DO MODERNO NACIONAL AO RECONHECIMENTO DE BRASÍLIA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL | FROM NATIONAL MODERN RHETORIC TO THE RECOGNITION OF BRASÍLIA AS CULTURAL HERITAGE | DE LA RETÓRICA DE LO MODERNO NACIONAL AL RECONOCIMIENTO DE BRASÍLIA COMO PATRIMONIO CULTURAL | ALBA NÉLIDA DE MENDONÇA BISPO, ANA CLARA GIANNECCHINI

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PROCESSO DE FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL DE PEQUENAS CIDADES: o caso de Serro | SOCIAL AND SPATIAL FORMATION PROCESS OF SMALL TOWNS: THE CASE OF SERRO, BRAZIL | PROCESO DE FORMACIÓN SOCIO-ESPACIAL DE PEQUEÑAS CIUDADES: EL CASO DE SERRO, BRASIL | KELLY DINIZ DE SOUZA, TERESA CRISTINA DE ALMEIDA FARIA, ÍTALO ITAMAR CAIXEIRO STEPHAN

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A REORGANIZAÇÃO DO SETOR DE OBRAS PÚBLICAS EM SÃO PAULO: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DO ENGENHEIRO PAULA SOUZA, 1869-1891 | THE REORGANIZATION OF THE PUBLIC WORKS DEPARTMENT IN SÃO PAULO: AN ANALYSIS THROUGH THE PROFESSIONAL TRAJECTORY OF THE ENGINEER PAULA SOUZA, 1869-1891 | LA REORGANIZACIÓN DEL SECTOR DE OBRAS PÚBLICAS, EN SÃO PAULO: UN ANÁLISIS DE LA TRAYECTORIA PROFESIONAL DEL INGENIERO PAULA SOUZA, 1869-1891 | CRISTINA DE CAMPOS

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POLÍTICA DE MOBILIDADE, MERCADO DE TERRAS E A NOVA LÓGICA DE EXPANSÃO NA CURITIBA METRÓPOLE: INCLUSÃO DO EXCLUÍDO? | MOBILITY POLICY, LAND MARKET AND THE NEW LOGIC OF EXPANSION IN CURITIBA: INCLUSION OF THE EXCLUDED? | POLÍTICA DE MOVILIDAD, MERCADO DE TIERRAS Y LA NUEVA LÓGICA DE EXPANSION EN CURITIBA METRÓPOLI: ¿INCLUSIÓN DEL EXCLUIDO? | SYLVIA RAMOS LEITÃO

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RESENHA | BOOK REVIEW | RESEÑA O ENIGMA DO CAPITAL E AS CRISES DO CAPITALISMO | SONIA ROHLING SOARES

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AGRADECIMENTOS | ACKNOWLEDGEMENTS | AGRADECIMIENTOS O C U L U M E NS A IOS 1 2 ( 1 ) R e v i s t a d o P r ogr am a d e P ós‑ Gr ad u ação em U rbani smo J a n e i r o‑ Ju n h o 2 0 1 5 p.1‑189


NOTA DO EDITOR

Uma das contribuições mais importantes para a discussão recente sobre a gestão das cidades é a produção de estudos que invertem o olhar técnico sobre elas e buscam com‑ preendê‑las a partir da visão de quem as utiliza ou das manifestações que nelas têm lugar. Estes estudos se inserem no âmbito de análise das “práticas sociais” e a produção do espaço. No presente volume 12, número 1 da Revista, podemos associar um conjunto de artigos que tratam de questões por este viés, não exatamente à maneira de uma disciplina e sim para estabelecer aproximações. Os artigos A cidade em movimento: praticas insur‑ gentes no ambiente urbano de Carlos Henrique Magalhães de Lima, Practicas cotidianas de los adultos maiores en el contexto familiar latino‑americano de Pamela Quiroga e Práticas críticas no espaço urbano de Mariana Dobbert Tidei e David Moreno Sperling, apresentam aspectos singulares sobre esse tema. Ainda como contribuição à discussão sobre a produção do espaço, apresentam‑se dois artigos, os quais, embora com enfoques distintos, partem de uma análise do pro‑ cesso histórico de formação socioespacial das cidades. O primeiro, Processo de forma‑ ção socioespacial de pequenas cidades: o caso de Serro, dos autores Kelly Diniz de Souza, Teresa Cristina de Almeida Faria e Ítalo Itamar Caixeiro extrai elementos para a discussão desta pequena cidade do Estado de Minas Gerais, que possui um inestimável patrimônio histórico‑cultural, revelando aspectos recentes da formação de sua paisagem urbana. O segundo, de Sylvia Ramos Leitão, Política de mobilidade, mercado de terras e a nova lógica de expansão na Curitiba metrópole: inclusão do excluído?, reuniu aspectos dos vários movimentos de expansão da cidade para a compreensão da lógica de produção do espaço contemporâneo, amparado por estudo de caráter empírico sobre os efeitos de ações e intervenções visando a inclusão social. A elucidação de conceitos correntes utilizados nas análises dos fenômenos con‑ temporâneos no campo do urbanismo não pode prescindir do conhecimento da história do urbanismo, das propostas dos urbanistas e da atuação das instituições e atores sociais em cada momento. É uma das formas possíveis de leitura do conjunto formado pelos artigos Planejamento e socialismo: notas para uma biografia intelectual do urbanista Ray‑ mond Unwin de Luiz Augusto Maia Costa, O New Urbanism e a linguagem de padrões de Christopher Alexander de Danila Martins de Alencar Battaus, Das retóricas do moderno nacional ao reconhecimento de Brasília como patrimônio cultural de Alba Nélida de Mendonça Bispo e Ana Clara Giannecchini e A reorganização do setor de Obras Públicas em São Paulo de Cristina Campos. Com enfoques, personagens e objetos distintos, tais artigos reforçam a importância dos estudos sobre trajetórias de profissionais e de insti‑

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tuições para o conhecimento da construção do campo de atuação do urbanismo, numa perspectiva transnacional. Com relação aos conceitos em que se apoiam os estudos contemporâneos, não raro se apresentam imprecisões ou ambiguidades, seja por desconhecimento dos fatores aos quais se relacionavam na origem, ou porque, tratando‑se de campo multidisciplinar e complexo, impõem‑se certos deslocamentos de sentido. Assim, as pesquisas no campo epistemológico são cada vez mais importantes para o resgate de tais conceitos. O artigo Desenvolvimento urbano sustentável: de paradigma a mito de André Luiz Prado, propõe que se reveja este conceito, presente nos discursos e propostas mais recentes de políticas públicas a planos diretores. Por fim, apresentamos uma proposta de leitura possível, e por esta razão os artigos não foram perfilados na ordem em que foram associados. Com isso, reafirmamos o desejo de que outras emanem da leitura de cada um.

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EDITOR’S NOTE

One of the most important contributions to the recent discussions on the management of cities is the production of studies that reverse the technical view of cities, seeking to understand them from the perspective of those who use them, or the events that take place in them. These studies fall within the scope of analysis of “social practices” and the production of space. In this volume 12, number 1 of the Journal, we link a set of articles that deal with issues from this perspective, not in precisely the same way, as a discipline but rather, to establish similarities between them. The articles A cidade em movimento: práticas insurgentes no ambiente urbano (The city in movement: Insurgent Practices insur‑ gents in the urban environment) by Carlos Henrique Magalhaes de Lima, Practicas daily los adults older en el family context Latin America (Daily practices of older adults in the Latin American family context) by Pamela Quiroga and Práticas críticas no espaço urbano (Critical practices in urban space) by Mariana Dobbert Tidei and David Moreno Sperling, present unique aspects on this theme. As a contribution to the discussion of the production of space, we present two articles, which, although with different focuses, are based on an analysis of the historical process of formation of poverty and cities. The first, Processo de formação socioespacial de pequenas cidades: o caso de Serro (Process of sociospatial formation of small cities) by the authors Kelly Diniz de Souza, Teresa Cristina de Almeida Faria and Ítalo Itamar Caixeiro, extracts elements for discussion of a small city in the state of Minas Gerais, which has an inestimable historical and cultural heritage, revealing aspects of the recent formation of its urban landscape. The second, by Sylvia Ramos Leitão, Política de mobilidade, mercado de terras e a nova lógica de expansão na Curitiba metrópole: inclusão do excluído? (Policy on mobility, land market and the new logic of expansion in the Curitiba metropolis: includ‑ ing the Excluded) brought together aspects of the various movements of expansion of the city for an understanding of the logic of production of contemporary space, supported by empirical studies on the effects of actions and interventions aimed at social inclusion. The elucidation of current concepts used in the analysis of contemporary phenom‑ ena in the field of urbanism cannot do away with a knowledge of the history of urbanism, the proposals of the urban planners, and the activities of the institutions and social actors in each period. It is one of the possible ways of reading the set formed by the articles Planejamento e socialismo: notas para uma biografia intelectual do urbanista Raymond Unwin (Planning and socialism: notes for an intellectual biography of the urbanist Ray‑ mond Unwin) by Luiz Augusto Maia Costa, O New Urbanism e a linguagem de padrões de Christopher Alexander (The New Urbanism and the language of patterns of Christopher

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Alexander) by Danila Martins de Alencar Battaus, Das retóricas do moderno nacional ao reconhecimento de Brasília como patrimônio cultural (The rhetoric of modern national rec‑ ognition of Brasilia as cultural heritage) by Alba Nélida de Mendonça Bispo and Ana Clara Giannecchini and A reorganização do setor de Obras Públicas em São Paulo (The reorgani‑ zation of the Public Works sector in São Paulo) by Cristina Campos. Each with different approaches, characters and objects, these articles reinforce the importance of studies on the trajectories of professionals and institutions, for the knowledge of the construction of the field of urban planning from a transnational perspective. In relation to the concepts that support contemporary studies, it is not rare to find inaccuracies or ambiguities, whether due to a lack of knowledge of the factors that were interlinked in the origin, or because in this complex, multidisciplinary field, certain shifts of meaning are imposed. Thus, research in the epistemological field is increasingly impor‑ tant for reviving these concepts. The article Desenvolvimento urbano sustentável: de para‑ digma a mito (Sustainable urban development: from paradigm to myth) by of Andre Luiz Prado, proposes to review this concept, which is present in the most recent discourses and proposals, from public policies to urban master plans. Finally, we present a proposal for a possible reading, for which reason the articles were not profiled in the order in which they were linked. With this, we reaffirm the desire that others will emanate from the reading of each one.

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NOTA DEL EDITOR

Uno de los aportes más importantes dentro de la reciente discusión sobre la gestión de las ciudades son los estudios que invierten la mirada técnica sobre ellas y buscan comprenderlas a partir de la visión de quien las utiliza o de las manifestaciones que tienen lugar en ellas. Estos estudios se incorporan al ámbito de los análisis de las “prác‑ ticas sociales” y la producción del espacio. En el presente volumen 12, número 1 de la Revista podemos asociar un conjunto de artículos que tratan cuestiones dentro de esta tendencia, no exactamente a la manera de una disciplina sino para intentar un acerca‑ miento. Los artículos A cidade em movimento: práticas insurgentes no ambiente urbano (La ciudad en movimiento. Prácticas insurgentes en el ambiente urbano) de Carlos Henrique Magalhães de Lima, Practicas cotidianas de los adultos maiores en el contexto familiar latino‑americano (Prácticas cotidianas de los adultos mayores en el contexto fami‑ liar latinoamericano) de Pamela Quiroga y Práticas críticas no espaço urbano (Prácticas críticas dentro del espacio urbano) de Mariana Dobbert Tidei y David Moreno Sperling, presentan aspectos singulares sobre este tema. Por otra parte se presentan dos artículos para contribuir a la discusión sobre la producción del espacio con enfoques distintos, ambos parten de un análisis del proceso histórico de formación socio espacial de las ciudades. El primero, Processo de formação socioespacial de pequenas cidades: o caso de Serro (Proceso de formación socio espacial de pequeñas ciudades: el caso Serro), de los autores Kelly Diniz de Souza, Teresa Cristina de Almeida Faria e Ítalo Itamar Caixeiro, extrae elementos en pos de un análisis de esta pequeña ciudad del estado de Minas Gerais, la cual posee un inestimable patrimonio histórico cultural y revela aspectos recientes de la formación de su paisaje urbano. El segundo, de Sylvia Ramos Leitão, Política de mobilidade, mercado de terras e a nova lógica de expansão na Curitiba metrópole: inclusão do excluído? (Política de movilidad, mercado de tierras y la nueva lógica de expansión en la metrópolis Curitiba: inclusión de los Exclui‑ dos), reúne aspectos de diversos movimientos de expansión de la ciudad para comprender la lógica de producción del espacio contemporáneo, amparado por un estudio de carácter empírico sobre los efectos de las acciones e intervenciones, con miras a la inclusión social. La elucidación de los conceptos actuales utilizados en los análisis de los fenó‑ menos contemporáneos dentro del campo del urbanismo no puede prescindir del conocimiento de la historia del urbanismo y las propuestas de los urbanistas así como de la actuación de las instituciones y los actores sociales en cada momento. Es una de las posibles formas de lectura del conjunto, formado por los artículos Planejamento e socialismo: notas para uma biografia intelectual do urbanista Raymond Unwin (Pla‑

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nificación y socialismo: notas para una biografía intelectual del urbanista Raymond Unwin) de Luiz Augusto Maia Costa, O New Urbanism e a linguagem de padrões de Christopher Alexander (El New Urbanism y el lenguaje de patrones de Christopher Alexander) de Danila Martins de Alencar Battaus, Das retóricas do moderno nacional ao reconhecimento de Brasília como patrimônio cultural (De las retóricas del moderno nacional al reconocimiento de Brasilia como patrimonio cultural), de Alba Nélida de Mendonça Bispo y Ana Clara Giannecchini y A reorganização do setor de Obras Públicas em São Paulo (La reorganización del sector de Obras Públicas en San Pablo), de Cris‑ tina Campos. Con miradas, personajes y objetos distintos, estos artículos refuerzan la importancia de los estudios sobre las trayectorias de los profesionales y las institucio‑ nes para el reconocimiento de la construcción del campo de actuación del urbanismo desde una perspectiva transnacional. Con relación a los conceptos en los que se apoyan los estudios contemporáneos, no raramente existen imprecisiones o ambigüedades debidas ya sea por desconocimiento de los factores a los cuales se relacionaban en su origen o por que, tratándose de un campo multidisciplinario y complejo, se imponen ciertos dislocaciones de sentido. De esa forma, las investigaciones en el campo epistemológico son cada vez más importantes para rescatar esos conceptos. El artículo Desenvolvimento urbano sustentável: de paradigma a mito (Desarrollo urbano sostenible: de paradigma a mito), de André Luiz Prado, propone replantear este concepto, el cual está presente en los discursos y las propuestas más recientes de las políticas públicas a planes directores. Para finalizar le sugerimos una posible lectura, y es por esto que los artículos no se perfilan en el orden en los que se asociaron, reafirmando así el deseo de que otras emanen de la lectura de cada uno de ellos.

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PESQUISAR? PARA QUÊ? PARA QUEM? Escrevo para abrir um debate. Escrevo sem pesquisar dados quantitativos; sem me ater a sábios autores; sem ter certezas. Trago para o debate a dúvida, germe da curiosidade que pode ser criativa ou não. Caso o leitor já tenha suas respostas às perguntas, convido-o a interromper imediatamente a leitura e não perder mais tempo. Ataque os suculentos artigos, frutos de suadas pesquisas. Por outro lado, caso o leitor já tenha feito a si essas proibidas perguntas sem nunca tê-las explorado, seja por pura preguiça ou medo de ser descoberto diante de tais pensamentos traumáticos, que podem inclusive resultar em contemporâneo fenômeno conhecido como bulling, recomendo que se isole de todos e leia o presente editorial escondido, sem ser notado. Por fim, caso o leitor ficou simplesmente curioso e a pergunta desperta certo ânimo para o debate, leia sem medo; mal não fará. Desculpe me alongar na introdução deste já pequeno editorial. Apenas gostaria de reforçar que, independentemente do leitor-tipo, o presente texto não se propõe a concluir as questões lançadas. Para isso necessitaríamos de uma pesquisa mais aprofundada. Ah!!! Então já respondemos à primeira pergunta? Não. Acho que não. O certo é que, aparentemente, não se faz pesquisa que se preze, sem que as questões estejam adequadamente elaboradas. Esta “certeza aparente” é o que fomenta a pesquisa: dúvida sobre a realidade. A pesquisa questiona o que nos é apresentado como “realidade”. Algumas das várias faces da referida “realidade” são reveladas no processo. Difícil é o pesquisador perceber que os resultados obtidos são, na grande maioria das vezes, apenas uma face da tal “realidade”. Ok! Até dá para entender, filosoficamente, as razões de se pesquisar. Mas cabe a questão: e na prática? Para que serve a pesquisa realizada atualmente por pesquisadores dos cursos de pós-graduação em arquitetura e urbanismo? Questiona-se aqui a recente prática acadêmica que, por correr atrás de índices de produção preestabelecidos, esquece o real objetivo de sua existência. Passa-se a gerar artigos e textos pelo simples fato de estes pontuarem e garantirem boas notas aos programas de pós-graduação. Sofistica-se o sistema ao fazer uma avaliação supostamente “qualitativa” no momento em que se passa a contar o número de citações do artigo. A cada tentativa de se medirem com mais eficiência os produtos acadêmicos, o processo produtivo na universidade responde com novas estratégias para garantir a boa pontuação. Até mesmo os alunos de graduação, que enfrentam uma Iniciação Científica, são logo cooptados pelo processo avaliativo. Alguns se candidatam para a Iniciação Cientí-

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fica objetivando garantir uma boa pontuação no processo de solicitação de intercâmbio. Os mestrandos e doutorandos aprendem com seus orientadores como citarem e serem aceitos nos periódicos, sendo que em alguns cursos são ameaçados de não receber o título caso não tenham algum artigo publicado. Tudo para aperfeiçoar um sistema de avaliação que provoca a produção, mas não necessariamente a pesquisa. Não se faz aqui a defesa de uma pesquisa purista que paire acima do entendimento e avaliação dos homens. O que questionamos é o foco das preocupações. O entendimento de nossa realidade — socioeconômica, espacial, histórico-cultural, no caso das pesquisas em arquitetura e urbanismo —, não deveria ser esse o foco das preocupações no processo de pesquisa? Os valores passados para graduandos, pós-graduandos e pesquisadores não devem ser debatidos? O que de fato estamos construindo a longo prazo? Será Currículos Lattes, muito bem preenchidos e, simultaneamente, esvaziados de conteúdos? Lidamos com recursos públicos no apoio de nossas pesquisas. O controle social desses recursos pode de fato ser facilitado pelos processos de avaliação. Nesse sentido, a avaliação ganha um sentido político divulgando avanços e precariedades da área. Entretanto esse processo não pode se sobrepor aos objetivos primeiros da pesquisa, sob risco de induzir ao erro a percepção da sociedade sobre os reais resultados que a área vem apresentando. Não se enganem! A pesquisa na área de arquitetura e urbanismo representa a possibilidade de conseguirmos provocar pequenos deslocamentos na equação desigual de nossa sociedade. As pesquisas de nossos mestres, nas últimas quatro décadas, já possibilitaram alguma luz sobre o desenvolvimento de políticas públicas e de programas que impactaram diretamente nossas cidades. Pesquisas que fortaleceram argumentações junto a movimentos sociais, promotores, políticos, vereadores, deputados, senadores. Os debates sobre a realidade são fundamentais para transformá-la ou questioná-la. A pesquisa tem uma importante função social que não pode ser diminuída por um processo avaliativo que imprime sobre alunos e pesquisadores valores equivocados de como se destacar entre seus pares e conquistar editais de fomento. O trabalho acadêmico busca garantir o processo democrático. Não existe democracia sem entendimento das contradições de uma determinada realidade. O mercado não tem interesse em revelar as contradições: ele se alimenta delas. A política partidária apresenta versões da realidade, posicionando-se frente aos diferentes entendimentos. A pesquisa acadêmica não pode se reduzir a um fantoche conduzido por um processo avaliativo. Sem conclusão. A questão, aparentemente burocrática e de resposta única, se mostra mais interessante e essencial a um país que busca quebrar velhas visões de uma suposta realidade. JONATHAS MAGALHÃES PEREIRA DA SILVA | Pontifícia Universidade Católica de Campinas | Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologia | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Rod. Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086-900, Campinas, SP, Brasil | E-mail: <jonathas. silva@puc-campinas.edu.br>.

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RESEARCH? FOR WHAT? FOR WHOM? I am writing to open a debate. I am writing without researching any quantitative data; without specifying scholarly authors; without certainties. I raise a doubt, a seed of curiosity that can be creative or not. If the reader has already answered the questions, I invite you to stop reading immediately and waste no more time. Engage in reading the juicy articles, fruit of hard research. Now, on the other hand, if you, reader, have already asked yourself these forbidding questions without going any further, either by sheer laziness or fear of being discovered for having these daring thoughts, which may even result in the contemporary phenomenon known as bullying, I recommend you isolate yourself from everyone and read this editorial without being noticed. Finally, if the reader is simply curious and the question arouses a certain mood for debate, read with no fear; no harm will come to you. I apologize for dwelling in the introduction of this small editorial. I just wanted to emphasize that, regardless of the reader type, this text is not intended to answer the posed questions. This requires further research. Ah! So I have already answered the first question? No. I do not think so. What is certain is that apparently no worthy research can be conducted without first clearly stating the questions. This ‘apparent certainty’ is what encourages research: doubts about reality. A research questions what is presented to us as ‘reality’. Some of the many faces of ‘reality’ are revealed in the process. It is difficult for the researcher to realize that the results obtained are, in most cases, only one side of this ‘reality’. Okay! We can philosophically understand the reasons for researching. But we must beg the question: “and in practice?” What is the purpose of research currently conducted by researchers in graduate programs in architecture and urbanism? The recent academic practice of pursuing predetermined production rates is questionable, as the real purpose of their existence is forgotten. Articles and texts are produced simply to obtain and ensure positive scores to graduate programs. The system becomes more sophisticated when assessing an allegedly “qualitative” assessment when counting the number of citations of the article. At every attempt to measure the academic products more effectively, the production process at the university responds with new strategies to ensure good scores. Even graduate students, who face Scientific Initiation, are soon co-opted by the evaluation process. Some apply for Scientific Initiation aiming to guarantee a good score before applying to exchange programs. Master and doctoral students learn from their

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advisors how to cite and be accepted in the journals and in some graduate programs students are under threat of not receiving the title if they do not have any published articles. Anything to perfect a system of evaluation that demands production, but not necessarily research. I am not defending purist research that is above the understanding and evaluation of men. I question the focus of the concern. Shouldn’t the understanding of our socioeconomic, spatial, historical and cultural reality, in the case of research in architecture and urban, be the focus of concern in the research process? Shouldn’t values passed on to graduate, undergraduate students, and researchers be discussed? What are we constructing on the long term? Would that be well filled out Curriculum Lattes, but at the same time emptied of content? We handle public resources that support our research. Social control of these resources can actually be facilitated by the evaluation procedures. In this sense, evaluation gains a political sense disclosing advances and precariousness of the field. However, this process cannot cloud the first objectives of research under the risk of misleading society’s perception of the actual results that the field is presenting. Make no mistake! Research in the field of architecture and urbanism represents the possibility of achieving small changes in the unequal equation of our society. The research of our masters, over the past four decades, has shed some light on the development of public policies and programs that directly impacted our cities. Research strengthens the arguments of social movements, prosecutors, politicians, councilors, MPs, senators. Debates about reality are imperative to transform or question reality. Research has an important social role that cannot be reduced by the evaluation process that imposes misguided values on students and researchers on how to ​​stand out among their peers and be awarded grants for publication. The academic job is to ensure the democratic process. There is no democracy without understanding the contradictions of a given reality. The market has no interest in revealing the contradictions: it feeds on them. Political parties have versions of reality, positioning themselves against different understandings. Academic research cannot be reduced to being a puppet conducted by the evaluation process. Inconclusive. The issue, apparently bureaucratic and singly answered, proves more interesting and essential to a country that seeks to break free from old visions of an alleged reality. JONATHAS MAGALHÃES PEREIRA DA SILVA | Pontifícia Universidade Católica de Campinas | Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologia | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Rod. Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086-900, Campinas, SP, Brasil | E-mail: <jonathas. silva@puc-campinas.edu.br>.

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¿INVESTIGAR? ¿PARA QUÉ? ¿PARA QUIÉN? Escribo para abrir un debate. Escribo sin investigar datos cuantitativos; sin atenerme a sabios autores; sin tener certezas. Traigo para el debate la duda, germen de la curiosidad que puede ser creativa o no. Caso el lector ya tenga sus respuestas a las preguntas, lo invito a interrumpir inmediatamente la lectura y no perder más tiempo. Ataque los jugosos artículos, frutos de sudadas investigaciones. Por otro lado, caso el lector ya haya hecho a sí esas prohibidas preguntas sin nunca haberlas explorado, sea por pura flojera o miedo de descubrirse frente a tales pensamientos traumáticos, que pueden incluso resultar en contemporáneo fenómeno conocido como bulling, recomiendo que se aísle de todos y lea el presente editorial escondido, sin ser notado. Por fin, caso el lector haya quedado simplemente curioso e la pregunta le despierta cierto ánimo para el debate, léalo sin miedo; mal no le hará. Disculpe me alongar en la introducción de este ya pequeño editorial. Sólo me gustaría reforzar que, independientemente del lector-tipo, el presente texto no se propone a concluir las cuestiones lanzadas. Para eso necesitaríamos una investigación más profundizada. Ah!!! ¿Entonces ya respondimos a la primera pregunta? No. Creo que no. Lo cierto es que, aparentemente, no se hace una investigación que se aprecie, sin que las cuestiones estén adecuadamente elaboradas. Esta “certeza aparente” es lo que fomenta la investigación: duda sobre la realidad. La investigación cuestiona lo que se nos presenta como “realidad”. Algunas de las varias faces de la referida “realidad” se revelan en el proceso. Lo difícil es que el investigador se dé cuenta de que los resultados obtenidos son, en la gran mayoría de las veces, solamente un lado de la tal “realidad”. Ok! Hasta se pueden entender, filosóficamente, las razones de investigar. Pero cabe la cuestión: ¿y en la práctica? ¿Para qué sirve la investigación realizada actualmente por investigadores de los cursos de posgrado en arquitectura y urbanismo? Se cuestiona aquí la reciente práctica académica que, por correr detrás de índices de producción preestablecidos, olvida el real objetivo de su existencia. Se generan artículos y textos por el simple hecho de que estos suman y garantizan buenas notas a los programas de posgrado. Se sofistica el sistema al hacer una evaluación supuestamente “calitativa” al momento en que se pasa a contar el número de citaciones del artículo. A cada tentativa de medir con más eficiencia los productos académicos, el proceso productivo en la universidad responde con nuevas estrategias para garantizar la buena puntuación.

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Incluso los alumnos de graduación, que enfrentan una Iniciación a la Investigación Científica, son luego cooptados por el proceso evaluador. Algunos se candidatean para la Iniciación a la Investigación Científica, objetivando garantizar una buena puntuación en el proceso de solicitud de intercambio. Los que hacen maestría y doctorado aprenden con sus orientadores como citar y ser aceptados en los periódicos, siendo que en algunos cursos son amenazados de no recibir su título caso no tengan ningún artículo publicado. Todo para perfeccionar un sistema de evaluación que provoca la producción, pero no necesariamente la investigación. No se hace aquí la defensa de una investigación purista que está arriba del entendimiento y evaluación de los hombres. Lo que cuestionamos es el foco de las preocupaciones. El entendimiento de nuestra realidad — socioeconómica, espacial, histórico-cultural, en el caso de las investigaciones en arquitectura y urbanismo — ¿no debería ser ese el foco de las preocupaciones en el proceso de investigación? ¿Los valores pasados para los graduandos, posgraduandos e investigadores no deben ser debatidos? ¿Qué estamos, de hecho, construyendo a largo plazo? ¿Será Currículos Lattes, muy bien rellenados y, simultáneamente, vaciados de contenidos? Trabajamos con recursos públicos en apoyo a nuestras investigaciones. El control social de esos recursos puede de hecho ser facilitado por los procesos de evaluación. En ese sentido, la evaluación gana un sentido político divulgando avances y precariedades del área. Sin embargo, ese proceso no puede sobreponerse a los objetivos más importantes de la investigación, bajo el riesgo de inducir al error la percepción de la sociedad sobre los reales resultados que el área viene presentando. ¡No se engañen! La investigación en el área de arquitectura y urbanismo representa la posibilidad de conseguir provocar pequeños desplazamientos en la ecuación desigual de nuestra sociedad. Las investigaciones de nuestros maestros, en las últimas cuatro décadas, ya posibilitaron alguna luz sobre el desarrollo de políticas públicas y de programas que impactaron directamente nuestras ciudades. Fueron investigaciones que fortalecieron argumentaciones junto a movimientos sociales, promotores, políticos, concejal, diputados, senadores. Los debates sobre la realidad son fundamentales para transformarla o cuestionarla. La investigación tiene una importante función social que no puede ser disminuida por un proceso evaluador que imprime sobre alumnos e investigadores valores equivocados de cómo destacarse entre sus pares y conquistar edictos de fomento. El trabajo académico trata de garantizar el proceso democrático. No existe democracia sin entendimiento de las contradicciones de una determinada realidad. El mercado no tiene interés en revelar las contradicciones: él se alimenta de ellas. La política partidaria presenta versiones de la realidad, posicionándose frente los diferentes entendimientos. La investigación académica no puede reducirse a un fantoche conducido por un proceso evaluador.

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Sin conclusión. La cuestión, aparentemente burocrática y de respuesta única, se muestra más interesante y esencial a un país que busca quebrar viejas visiones de una supuesta realidad. JONATHAS MAGALHÃES PEREIRA DA SILVA | Pontifícia Universidade Católica de Campinas | Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologia | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Rod. Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086-900, Campinas, SP, Brasil | E-mail: <jonathas. silva@puc-campinas.edu.br>.

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DESENHOS DE PROSPECÇÃO PARA PROJETOS URBANOS: CENTRO POPULAR DO JARDIM ÂNGELA, SÃO PAULO – 1988 CLAUDIO MANETTI

Em 1988 fui convidado a participar, como aluno especial, da cadeira de “Projeto Urbano”, proferida pelo arquiteto-urbanista e professor José Cláudio Gomes, no curso de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Foi um imenso prazer poder frequentar a FAU-USP, no convívio com colegas antigos e recentes, sob a batuta daquele que havia sido, em 1983, meu orientador no Trabalho de Graduação Interdisciplinar (TGI), hoje Trabalho Final de Graduação (TFG). A proposta do curso abria a questão de compreensão da cidade e das formas de interação entre o arquiteto e o espaço urbano, à procura dos lugares de interesse, tendo à frente a premissa do projeto. O objeto do estudo foi o contexto do largo ou centro popular do Jardim Ângela, localizado no vetor sudoeste da cidade de São Paulo. A região fora se consolidando com a ocupação de trabalhadores que chegaram a São Paulo a partir da década de 1960. Pressões sobre as áreas do manancial de Guarapiranga, assim como as formas de ocupação tendentes a autoconstruções em loteamentos clandestinos, fizeram com que a região fosse um potencial objeto de estudos e pesquisas, tanto em razão de seu conjunto de problemas quanto de suas perspectivas de maturação. Importante dizer que naquele ano o centro popular do Jardim Ângela já continha a gênese da significativa centralidade de hoje. Algumas ruas ainda não tinham nome, e as principais avenidas como a do M’Boi Mirim e Guavirutuba eram “estradas”. A paisagem também refletia a incipiente ocupação habitacional dos bairros periféricos em sua configuração inicial, e ainda não havia os grandes comércios atraídos pela força da concentração de fluxos e coesão de interesses que dão sobrecarga à vitalidade do lugar. Apesar dos grandes problemas da região, de ontem e de hoje, não há dúvida sobre a importância do largo do Jardim Ângela no contexto político, econômico e social, e sua dimensão regional. Por isso, era importante um meticuloso estudo das aproximações entre as escalas do território e as relações com a forma urbana. Como sempre, fui buscar nos passeios as revelações e as pistas das maravilhas escondidas na cidade, desde os compartimentos geomorfológicos até os movimentos corriqueiros dos bairros. Aliando percursos aos trabalhos de escritório, fui compreendendo a força do desenho como ferramenta dialética nas relações de descoberta dos contextos que pudessem refletir indícios do espírito do lugar — revelar as riquezas das relações humanas no espaço. Os desenhos tentam desvelar conteúdos e algumas formas de investigação sobre as potencialidades adormecidas — quanto a interesses de usos e espaços —, e se entrecruzam num processo de prospecção

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de unidades urbanas e arquitetônicas. Redescobri-los, hoje, retoma a questão do manejo de possibilidades de intervenção (teoria e prática do projeto), do respeito ao lugar e das lembranças das aulas inspiradas do professor Cláudio Gomes, confirmando alguns caminhos que já se abriam, porque lá já estavam. CLAUDIO MANETTI | Pontifícia Universidade Católica de Campinas | Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologia | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Rod. Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086-900, Campinas, SP, Brasil | E-mail: <claudiomanetti@uol.com.br>.

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PROSPECTIVE DRAWING FOR URBAN DESIGNS: POPULAR DOWNTOWN AREA OF JARDIM ÂNGELA, SÃO PAULO – 1988 CLAUDIO MANETTI

In 1988, I was invite to participate, as a guest student, in the course “Urban Design”, delivered by the architect-urbanist and professor José Cláudio Gomes, at the postgraduate program of the School of Architecture and Urbanism at the Universidade de São Paulo(FAU-USP). It was an huge pleasure to attend FAU-USP, together with old and new colleagues, under the instruction of my former advisor, back in 1983, for the Undergraduate Interdisciplinary Paper (TGI); nowadays known as Undergraduate Final Paper (TFG). The aim of the course was to understand the city and forms of interaction between the architect and urban space seeking for places of interest, taking forward the premise of the project. The object of study was the square or popular downtown area of Jardim Ângela, located in the southwest quadrant of the city of São Paulo. The region was consolidate with the occupation of workers who came to São Paulo in the 1960’s. The pressure at the areas of the Guarapiranga’s river wellspring, as well as the forms of land’s occupation with self-make houses on illegal settlements, made the region a potential object of study and research, both because of its set of problems and perspectives for development. It is important to point out that in 1960, the popular downtown area of Jardim Ângela already presented the genesis of the significant centrality of the present day. Some streets still had no name, and the main avenues such as the M’Boi Mirim and Guavirutuba were ‘roads’. The landscape also reflected the incipient housing occupancy of a suburb during its initial organization, and there was still no dense commercial areas attracted by the force of concentration of flows and cohesion of interests that overload the vitality of the place. Despite major problems in the region, past and present, there is no doubt about the importance of the Jardim Ângela square within the political, economic and social context, and its regional dimension. Therefore, it was important to conduct a thorough study on the approximation between the scales of the territory and relation with the urban shape. As usual, strolling along the square I searched for clues of the hidden wonders of the city, from the geomorphological compartments to the everyday activity of the neighborhoods. Combining walks and office work, I gradually understood the power of design as a dialectical tool in relation with the context of discovery that could shed light on the evidence of the spirit of the place — reveal the riches of human relations with space. The pictures attempt to unveil some content and ways to research dormant potentialities — regarding the interest of use and space — that intertwine in a prospecting process of urban and

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architectural spaces. Nowadays, by rediscovering them, I restate the issue on the management of intervention possibilities (theory and design practice), the respect for the place and the remembrance of the classes of Professor Claudio Gomes, which confirm some paths that have opened because they had already been present. CLAUDIO MANETTI | Pontifícia Universidade Católica de Campinas | Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologia | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Rod. Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086-900, Campinas, SP, Brasil | E-mail: <claudiomanetti@uol.com.br>.

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DISEÑOS DE PROSPECCIÓN PARA PROYECTOS URBANOS: CENTRO POPULAR DEL JARDim ÂNGELA, SÃO PAULO – 1988 CLAUDIO MANETTI

En 1988 fui invitado a participar, como alumno especial, de la asignatura de “Proyecto Urbano”, proferida por el arquitecto-urbanista y profesor José Cláudio Gomes, en el curso de posgrado de la Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la Universidade de São Paulo (FAU-USP). Fue un inmenso placer poder frecuentar la FAU-USP, en el convivio con compañeros antiguos y recientes, bajo la batuta de aquel que había sido, en 1983, mi orientador en la Tesis de Fin de Curso. La propuesta del curso abría la cuestión de comprensión de la ciudad y de las formas de interacción entre el arquitecto y el espacio urbano, a la búsqueda de los lugares de interés, teniendo por delante la premisa del proyecto. El objeto del estudio fue el contexto de la plaza o centro popular del Jardim Ângela, ubicado en el vector sudoeste de la ciudad de São Paulo. La región se fue consolidando con la ocupación de trabajadores que llegaron a São Paulo a partir de la década de 1960. Presiones sobre las áreas del manancial de Guarapiranga, así como las formas de ocupación tendientes a autoconstrucciones en parcelaciones clandestinas, hicieron con que la región fuera un potencial objeto de estudios e investigaciones, tanto en razón de su conjunto de problemas como de sus perspectivas de maduración. Es importante decir que en aquel año el centro popular del Jardim Ângela ya contenía la génesis de la significativa centralidad de hoy. Algunas calles todavía no tenían nombre, y las principales avenidas como la del M’Boi Mirim y Guavirutuba eran “carreteras”. El paisaje también reflejaba la incipiente ocupación habitacional de los barrios periféricos en su configuración inicial, y aún no había los grandes comercios atraídos por la fuerza de la concentración de flujos y cohesión de intereses que dan sobrecarga a la vitalidad del lugar. A pesar de los grandes problemas de la región, de ayer y de hoy, no hay duda sobre la importancia de la plaza del Jardim Ângela en el contexto político, económico y social, y su dimensión regional. Por eso, era importante un meticuloso estudio de las aproximaciones entre las escalas del territorio y las relaciones con la forma urbana. Como siempre, fui a buscar en los paseos las revelaciones y las pistas de las maravillas escondidas en la ciudad, desde los compartimientos geomorfológicos hasta los corrientes movimientos de los barrios. Aliando recorridos a los trabajos de oficina, fui comprendiendo la fuerza del diseño como herramienta dialéctica en las relaciones de descubierta de los contextos que pudiesen reflejar indicios del espíritu del lugar — revelar las riquezas de las relaciones humanas en el espacio. Los diseños tratan de desvelar contenidos y algunas formas de investigación sobre las potencialidades adormecidas — cuanto a intereses de usos

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y espacios — y se entrecruzan en un proceso de prospección de unidades urbanas y arquitectónicas. Redescubrirlos, hoy, retoma la cuestión del manejo de posibilidades de intervención (teoría y práctica del proyecto), del respeto al lugar y de los recuerdos de las clases inspiradas del profesor Cláudio Gomes, confirmando algunos caminos que ya se abrieron, porque ya estaban allá. CLAUDIO MANETTI | Pontifícia Universidade Católica de Campinas | Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologia | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Rod. Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086-900, Campinas, SP, Brasil | E-mail: <claudiomanetti@uol.com.br>.

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Configura a extensão da Rua Carlo Rossi (antiga Rua 2), em direção a norte (Vila Remo — Córrego do “S”), importante ligação entre o largo do Jardim Ângela e o sistema de conexões dos bairros de cima (vermelho). Experimentação do deslocamento da Avenida do M’Boi Mirim (a leste da cota 820 para a cota 805), que vai configurar o alargamento do espaço da praça central na cota 820. Observa-se a relação de arremate do espaço de referência do centro e sua dinâmica na transição com as bordas dos bairros predominantemente habitacionais. No quadrante leste, onde se situa o vale do córrego do Guavirutuba (afluente do Guarapiranga), entende-se que é importante marcar sua estrutura de chegada ao centro do Ângela, onde está a formação em “anfiteatro” das cabeceiras do córrego. Esse ponto é um importante marco de transição dos caminhos do leste para o centro. Já se nota o alinhamento das edificações e as primeiras idealizações de novos usos pertinentes ao centro e aos bairros. A norte, na inflexão do eixo da Avenida Comendador Santana e a “escapada” da M’Boi Mirim, observa-se a possibilidade de um espaço de referência, tanto na marcação do eixo da M’Boi como também na enunciação de uma “porta” de entrada a norte. The picture shows Carlo Rossi street (previously known as Street 2) toward the north (Vila Remo — “S” stream), which is an important link between the Jardim Ângela square and the connection system of the neighborhoods above (red). Experimentation to displace the Avenue M’Boi Mirim (to the east from level 820 to level 805) that will set the enlargement of the central plaza at the level 820. Note the complement relationship between the reference space in the downtown area and its dynamics in transition with the limits of the predominantly residential neighborhoods. In the east quadrant, where the valley of the stream Guavirutuba is located (affluent of Guarapiranga), it is important to point its arrival structure in the downtown area of Ângela, where the “amphitheater” of the headwaters of the stream forms. This place is an important boundary in the transition paths from the east to the downtown area. The alignment of the buildings and the first idealizations of new uses related to the downtown area and neighborhoods can be noted. To the north, the inflection axis of Avenue Comendador Santana and the “escape” from M’Boi Mirim, where can be seen a possible reference space, both in the axis of M’Boi as in the enunciation of an entrance “door” to the north.

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Nesse desenho já surge a possibilidade de uma abertura do eixo do Guavirutuba como um alinhamento para liberação das margens do córrego e a investigação sobre as ocupações precárias. Aparecem, também, as articulações entre espaços livres e construções que poderão dar o ordenamento entre os vazios e os cheios na definição da nova praça. Nota-se que há uma investigação sobre a extensão do eixo do Guavirutuba, deslocado a oeste, na tentativa de antecipação do vale, vencendo a topografia e enunciando sua presença já na M’Boi Mirim. In this drawing arises the possible opening of the axis of Guavirutuba as an alignment to release the stream margins and investigate precarious settlements. Can be noticed, also, the arrangement between the open spaces and buildings that could provide order between the empty and occupied spaces when designing the new plaza. Note that a study is being conducted on the extension of the axis of Guavirutuba, displaced to the west, in an attempt to exceed the valley, overcoming topography and announcing its presence in M’Boi Mirim.

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Nesse desenho a M’Boi Mirim ainda corta a potencialidade de uma praça mais ampla na cota 820, por extensão dos fragmentos de pisos não incorporados a um só. Começa, no entanto, a surgir a força de um conjunto arquitetônico de arremate frontal de leste, como um anteparo edificado que configura o que depois se consolidará como um “embasamento” do centro (uma acrópole tímida). Os amarelos correspondem às quadras habitacionais existentes, enquanto a quadra marrom, a sul, se configura como um elemento intruso na divisão dos principais caminhos, podendo adquirir o sentido de um bloco de interesses distintos daqueles preexistentes no contexto da praça ou dos bairros lindeiros. Aqui ainda se mantém a obstrução da Avenida Comendador Santana, cujo experimento do desenho desloca sua força para a Rua 2 (hoje Rua Carlo Rossi). In this drawing M’Boi Mirim still prevents a potentially broader plaza at the level 820 by floor fragments not incorporated into one piece. The strength of an architectural eastern front finishing complex begins to arise, a bulkhead that will later become the “foundation” of the downtown area (a timid acropolis). The shades of yellow relates to the existing housing blocks, while the brown block, to the south, appears as an intrusive element in the division of the main roads, and may acquire the meaning of a block of distinct interests from those preexisting blocks within the context of the plaza or the bordering neighborhoods. However, the Avenue Comendador Santana is still obstructed; in the experimental design its strength is displaced to the street 2 (at present Street Carlo Rossi).

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Aqui acontece uma inversão de situações. A praça se desloca para leste entre a M’Boi Mirim e a rua Rubens (hoje Rua José Maria Escriva de Balaguer) na cota 800. A Rua 2 (Carlo Rossi) se mantém em linha, na continuidade de busca com o sistema norte dos bairros de cima (em vermelho). Surge um alinhamento edificado entre a rua 2 e a nova praça, definindo uma “moldura” que constitui a frontalidade da nova praça e a reconfiguração da calha da nova via. Entre a praça deslocada e as novas possibilidades de uso a oeste, existem algumas tênues ligações de pedestres. Ao norte, no entanto, nota-se a presença de um elemento circular arrematando as junções viárias de cima e as duas portas de conexão com o largo. É como que uma “rótula” de recepção dos usuários do largo, com possibilidade de usos múltiplos e intensos. As quadras de baixo (sul) indicam possibilidades de outros usos, assim como seu ordenamento indica nova condição de “antessala” para quem chega pelos caminhos metropolitanos do sudoeste. In this picture, a reversal of situations occurs. The plaza is displaced eastward between the streets M’Boi Mirim and Rubens (at present Street José Maria Escriva de Balaguer) at the level 800. Street 2 (Carlo Rossi) remains aligned, in search for the north system of the upper neighborhoods (in red). Aligned buildings appear between Street 2 and the new plaza, defining the “frame” that constitutes the frontality of the new plaza and the rearrangement of the gutter of the new road. Between the displaced plaza and the new possibilities of use to the west, there are some tenuous pedestrian connections. To the north, however, note the presence of a circular element connecting the upper road junctions and the two connection ports with the square. It is a kind of reception “roundabout” for the users of the square, with possible multiple and heavy uses. The lower blocks (south) indicate other possible uses, as well as its arrangement suggests a new “anteroom” for those arriving from the southwest.

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O desenho contém a amplitude dos caminhos ao norte (Rua 2 — Carlo Rossi e Comendador Santana) ordenados em um duble de vias, considerando desde já a importância de interligação com Campo Limpo (região mais a norte) e a diluição de concentração de fluxos na M’Boi Mirim. A intensidade de fluxo na antiga estrada do M’Boi Mirim se dá por ser esta a única via com desenho contínuo e regular na região. Sua configuração deriva do caminho original indígena (M’Boi Mirim = Cobra Pequena) sobre as cumeeiras (divisores de água), e seu uso intensificado se mantém pelas dificuldades da malha regional instalada sobre a geografia recortada do entorno. A grande praça retorna para a direita do eixo viário. O vale do Guavirutuba se abre buscando recuperação hídrica pela importância no sistema Guarapiranga, detectando a necessidade de recuperação habitacional para as áreas afetadas. Agora o desenho mostra a afirmação do “giro” de ocupação no acesso norte do largo, bem como a concentração de edificações alinhadas entre o largo e os vales do leste. Em vermelho se vê a possibilidade de conexão da Avenida Comendador Santana passando em desnível pela M’Boi e conectando o trecho leste das bordas do bairro. The drawing contains the extents of ways to the north (Street 2 — Carlo Rossi and Comendador Santana) arranged in a double route, considering the importance of interconnection with Campo Limpo (region further north) and the dissolution of the concentration of flow in M’Boi Mirim. The intensity of flow on the old road M’Boi Mirim occurs because it is the only continuous and regular route in the region. Its arrangement is derived from the original Indigenous path (M’Boi Mirim meaning little snake) on the ridges (watershed), and its use is intensified due to the difficulties in maintaining the regional network on the jagged geography of the surroundings. The large plaza turns back to the right of the road axis. The valley of Guavirutuba opens itself in an endeavor to recover the water flow due to the importance of the Guarapiranga system, detecting the need to recover the dwellings of the affected areas. The drawing shows the affirmation of settlement “rotation” in the northern access of the square and the concentration of aligned buildings between the square and the eastern valleys. In red, can be seen the possible connection of the Avenue Comendador Santana passing through M’Boi in a different level connecting the eastern stretch to the edges of the neighborhood.

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Aqui o vale do Guavirutuba adquire feição de alinhamento de usos para suprir as carências dos bairros do leste, permitindo a recuperação do córrego. A grande praça se mantém ampla e contígua, recebendo edificações e usos públicos de caráter social e político, com possibilidades de atividades culturais próprias daquela região. As ocupações de borda entre a praça e os bairros do leste se mostram fortes para a definição do arremate entre o centro popular e os bairros. Ensaiam-se aqui algumas transposições diretas que seriam descartadas nas fases subsequentes. Nota-se o espaço de organização do que seria posteriormente a proposta do “teatro popular” a norte, no ponto de inflexão dos caminhos de entrada naquele setor. The Guavirutuba valley acquires a feature of alignment of uses to meet the needs of the eastern neighborhoods, allowing the recovery of the stream. The large plaza remains widespread and contiguous, receiving buildings and public uses of a social and political nature, enabling cultural activities in the region. The fringe settlements between the square and the eastern neighborhoods strongly define the connection between the popular downtown area and the neighborhoods. Some direct transpositions had been planned, but were discarded in subsequent phases. The organization of the space that would be the propose of a “popular theater’ can be noticed to the north, at the point of inflection of entry paths in that sector.

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O desenho revela a leitura dos caminhos e configurações entre a geografia e a ocupação para as primeiras apreensões dos lugares. Surgem as relações do centro de bairro com o córrego Guavirutuba a leste, a linha de interesse de delimitação entre o centro configurado e as bordas (em azul), e o deslocamento da M’Boi Mirim à direita para ampliação do espaço da praça. Os conteúdos arquitetônicos adquirem o peso da interlocução entre os espaços abertos, as transições entre as amplitudes de concentração da comunidade aos lugares de passagem. São as edificações que pontuam a praça, assentadas na cota 820, que definem a concentração de atividades ligadas aos grandes fluxos, enquanto o bloco de uso misto (serviços, pequenos comércios e habitações), alinhado ao novo desenho da M’Boi Mirim — esta deslocada para a cota 805 em mergulho aberto para sua retomada à frente — vai configurar o que na ocasião se chamava de “embasamento” do largo. Entre o largo e a edificação propõe-se que as interligações sejam feitas por pontes como contiguidade dos percursos da praça, passando por sucessivas transições até os domínios da cobertura do bloco, como um belvedere popular que expande o piso 820. As habitações estão voltadas para leste em direção às amplitudes da paisagem do Guarapiranga. Nesse edifício habitacional, ganham ênfase algumas relações apreendidas nos percursos de visita ao bairro. Lá estão as lajes de domínio da população, as áreas de serviço com os tanques de lavar roupa, os vasos de plantas e os espaços onde se conjugam as relações da família no trabalho cotidiano das casas por extensão das cozinhas. Dormitórios e salas estão a leste, voltados para as paisagens do Guarapiranga, sem obstruções na perspectiva do vale do Guavirutuba. The drawing reveals the reading of the paths and arrangements between the geography and settlements for the first understanding of the place. The relation between the center of the neighborhood with the Guavirutuba stream to the east appears, the line of interest of demarcation between the downtown area and edges (in blue), and the displacement of M’Boi Mirim to the right to expand the space of the plaza. The architectural contents acquire the weight of dialogue between the open spaces, the transition between the broad concentrations of the community to the places of passage. The buildings that surround the plaza, placed at the level 820, define the concentration of activities related to great flow, while the block for mixed use (services, small businesses and homes) aligned to the new design of M’Boi Mirim — is displaced to the level 805 will open to resumption further ahead — becoming what at the time was called the “foundation” of the square. Between the square and the building, interconnections using bridges are proposed as contiguity of the pathways of the plaza, passing through successive transitions until the domains of the coverage of the block, as a popular belvedere that expands its floor to the level 820. Dwellings face the east toward the landscape of Guarapiranga. In this residential building, the seized relations in the visits to the neighborhood gain emphasis. There are the roofs, domain of the population; the service areas with washing tanks, the potted plants and spaces where families interact during their daily housework as an extension of the kitchens. Bedrooms and living rooms face east, facing the landscapes of Guarapiranga, without any obstruction from the perspective of the Guavirutuba valley.

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Cortes esquemáticos: Conjunto e Largo do Jardim Ângela. Schematic sections: Complex and Jardim Ângela Square.

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A CIDADE EM MOVIMENTO: PRÁTICAS INSURGENTES NO AMBIENTE URBANO THE MOVEMENT IN CITIES: RISING PRACTICES IN THE URBAN ENVIRONMENT | CIUDAD EN ACCIÓN: LAS ACTIVIDADES CRÍTICAS EN EL ENTORNO URBANO CARLOS HENRIQUE MAGALHÃES DE LIMA

RESUMO Este artigo aborda a importância e a influência dos coletivos urbanos nos espaços públicos das cidades brasileiras. Parte‑se do pressuposto de que formas coletivas de ação derivam de um conjunto de contradições manifestas no espaço físico e existencial das cidades. O desenvolvimento dessas coletividades está relacionado a diversos campos, desde os movimentos sociais aos estudos sobre arte urbana; por isso, como forma de realizar um estudo detido e vertical, esta análise será desenvol‑ vida em duas seções. A primeira se dá a partir de um breve percurso conceitual em torno dos novos coletivos urbanos e de novas formas de ação na cidade. A segunda é resultado da análise dos limites e possibilidades implicados na atuação de dois coletivos: o Opavivará!, que desenvolve trabalhos de arte e intervenção urbana, e o Ônibus Hacker, movimento de ação política pela difusão de saberes. Parte‑se da premissa de que formas associativas de intervenção urbana ampliam o repertório de leituras sobre os lugares, podendo ser vinculadas às disciplinas do urbanismo. Espera‑se que a discussão em torno do tema revele demandas difundidas por esses grupos organizados, o que poderá contribuir para a construção de aparatos críticos e de projetos no campo do urbanismo, capazes de auxiliar em processos alternativos de produção das cidades. PALAVRAS‑CHAVE: Coletivos urbanos. Cultura urbana. Teoria dos movimentos sociais.

ABSTRACT The aim of this article is to discuss the importance and influence of urban collectives in public spaces of Brazilian cities. It begins from the perspective that collective forms of action results from a set of contradictions manifested in the physical and existential space of cities. The development of these communities is related to several fields from social movements to studies on urban art. Thus, in order to conduct a vertical in‑depth study, the analysis will be developed in two sections. The first part provides a brief con‑ ceptual view of the new urban social movements and new forms of action in the urban matrix. The second is an analysis of the limitations and possibilities of two collectives: The Opavivará! (art and urban intervention) and Ônibus Hacker (political movement

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to disseminate knowledge). This section begins with the premise that associative forms of urban intervention serve to expand the repertoire of understanding about places and can therefore be connected to disciplines of urbanism. We expect that the discussion reveals the multicultural demands of these organized groups. Thus, it may contribute to the development of critical apparatus and projects in the field of urbanism capable of assisting alternative processes in the development of cities. KEYWORDS: Urban collective. Urban art. Social movement theory.

RESUMEN En este artículo se analiza la importancia e influencia de colectivos urbanos en el espacio público de las ciudades brasileñas. Se parte de la perspectiva de que las formas de acción colectivas se derivan de una serie de contradicciones que se manifiestan en el espacio exis‑ tencial de las ciudades. El desarrollo de estas comunidades se relaciona con varios campos, con el fin de realizar un estudio en profundidad vertical y el análisis se desarrollará en dos secciones. La primera parte de un breve recorrido conceptual en torno a los nuevos movimientos sociales urbanos y nuevas formas de acción en la matriz urbana. La segunda se refiere a los límites y posibilidades de estos colectivos analizada desde dos de ellos: Opavivará! (arte e intervención urbana) y Ônibus Hacker (la acción política mediante la divulgación de los conocimientos). Se parte de la premisa de que las formas asociativas de intervención urbana sirven para ampliar el repertorio de lecturas sobre los lugares y por lo tanto pueden estar vinculadas a las disciplinas del urbanismo. Se espera que la discusión en torno al tema revele amplias demandas multiculturales de estos grupos organizados, que pueden contribuir a la construcción de dispositivos críticos en el campo del urba‑ nismo, capaces de ayudar en los procesos alternativos para la producción de las ciudades. PALABRAS CLAVE: Colectivo urbano. Arte urbano. Teoría de los movimientos sociales.

INTRODUÇÃO A DIMENSÃO DOS COLETIVOS URBANOS NA ATUALIDADE As décadas recentes foram marcadas pelo desenvolvimento de fenômenos que ampliaram o entendimento sobre a cidade. Na esteira de pensadores como Castells (2011), o espaço urbano é antes a difusão de um sistema de valores e comportamentos, denominado cul‑ tura urbana, sendo a urbanização entendida como produção social das formas espaciais, o que confere caráter processual e aberto ao arranjo complexo e intrincado que é a rede urbana. Essa é uma questão que leva a pensar sobre a diversidade de sujeitos que parti‑ cipam da produção urbana e, também, sobre posição que eles ocupam em uma situação histórica. Sendo assim, caberia perguntar como os modos de pensar e agir desses sujeitos podem revelar aspectos do cotidiano, bem como as possibilidades de sua transformação.

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Longe de ser elementar, a resposta a essa questão permite várias abordagens. Uma possibilidade se dá em torno das formas de associação coletiva e das ações espa‑ ciais críticas, em que não apenas a dimensão física mas a própria imaterialidade dos processos são fundamentais para compreender o espaço das cidades naquilo que res‑ tringe ou possibilita, ou seja, nos modos de apreensão de seus espaços e na abertura que oferece para apropriação. O surgimento de novos agentes sociais e de mobilizações que permeiam a história urbana recente dá mostras do conjunto de contradições presentes na cidade. Nesse con‑ texto, os coletivos urbanos surgem como modos de organização capazes de criar culturas defensivas diante de situações‑problema vivenciadas no espaço urbano. Portanto, qual seria o papel dessas ações críticas no campo de forças que configura as cidades de hoje? Este artigo coloca em tensão a dimensão cotidiana das cidades e as práticas inter‑ ventoras de coletivos urbanos. Entende‑se que essas manifestações críticas são resultado de contextos mais amplos, como as transformações proporcionadas pelos movimentos sociais urbanos. No entanto, o que se propõe aqui é uma leitura sobre os possíveis nexos entre a prática crítica e a o campo do urbanismo, com o intuito de desenvolver a hipótese de que o processo de constituição das cidades não ocorre apenas a partir de relações de natureza física, daí a necessidade de refletir sobre as ações dos sujeitos na vida urbana. Entende‑se que as demandas discursivas dessas ações podem ajudar a compre‑ ender suas possíveis direções, pois esses movimentos são tanto o resultado das contra‑ dições urbanas quanto o espelho da experiência na cidade, revelando possíveis desvios e desigualdades na condução de políticas públicas ou práticas de governo. Permeia este trabalho a intenção de construir uma leitura das demandas expressas nas ações coletivas, indagando se elas podem contribuir para os aparatos críticos e os projetos no campo do urbanismo, auxiliando processos alternativos de produção urbana.

A DIMENSÃO DOS MOVIMENTOS URBANOS Atualmente, a comunicação de massa e a difusão da informação na sociedade em rede contribuíram para ampliar sensivelmente as formas associativas. A movimentação solidá‑ ria de grupos — empenhados na redistribuição de recursos e na afirmação da diversidade de vida —, é exemplo desse contexto de emergência, em que as práticas críticas e ativistas são modificadas na sociedade de informação, apontando um horizonte de transformações calcadas numa política de equidade. O cenário dessas ações críticas se situa hoje num contexto complexo, pois a difusão em rede é acompanhada por cisões que, aos poucos, perdem seu aspecto de dualidade. Para Santos (2001), não há um princípio único de transformação social na contempo‑ raneidade, sendo muitas as faces de dominação e resistência, tanto quanto de agentes envolvidos nessa disputa. Desse modo, os movimentos urbanos atuais se colocam contra a perspectiva totalizante desenhada desde a modernidade, abrindo outras abordagens, uma

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vez que “na ausência de um princípio único, não é possível reunir todas as resistências e agências sob a alçada de uma grande teoria comum” (SANTOS, 2001, p.28). Nesse contexto, os coletivos urbanos não dirigem suas ações apenas à redistribui‑ ção de recursos, mas também a modos de vida que tenham como suporte a liberdade e o reconhecimento. Gohn (2010) considera que os coletivos urbanos têm contribuído para organizar e conscientizar a sociedade, apresentado demandas construídas em torno de práticas de pressão/mobilização. Esses movimentos “[…] não são apenas reativos, movi‑ dos só pelas necessidades (fome ou qualquer forma de opressão), pois podem surgir e se desenvolver também a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência” (GOHN, 2010, p.16). Para Castells (2010), numa situação em que o conceito de cultura teve suas noções multiplicadas, os coletivos urbanos encontram na sociedade em rede e na flexibilidade de ação seus principais focos de mobilização — considerando que a noção de rede é capaz de “articular a heterogeneidade de múltiplos atores coletivos em torno de unidades de referências normativas, relativamente abertas e plurais” (SCHERER‑WAREN, 2008, p.515). A simultaneidade da rede não só permite trocas horizontais e dispersas, mas tam‑ bém favorece novas formas associativas. Para Santos, o caráter simultâneo da rede foi possível graças aos milagres da ciência, sendo capaz de articular novas solidariedades e “[…] a possibilidade de um acontecer solidário, malgrado todas as formas de diferença, entre pessoas, entre lugares” (SANTOS, 2005, p.256).

DEFININDO A AÇÃO INSURGENTE NA CIDADE Como forma de efetuar uma abordagem detida e vertical, será dada atenção às estratégias e práticas espaciais que se desenvolvem em torno do espaço público, considerado este como lugar da expressão de valores da sociedade. As ações de coletivos urbanos tendem a modificar a ambiência e a programação dos espaços públicos — mais do que a esfera pública, entendida como uma dimensão menos restrita. A soma desses coletivos tende a adquirir uma direção e a se converter em movimentos mais abrangentes, que extrapolam as esferas locais. A falta de consenso permeia os estudos e as próprias escolhas dos coletivos urba‑ nos, de modo que a leitura que se segue será feita a partir do caráter critico de suas intervenções. Entende‑se que essas ações coletivas estão vinculadas a relações con‑ textuais mais amplas, como a dos Movimentos Sociais Urbanos, que “[…] atuam no interior de um tipo de sociedade, lutando pela direção de seu modelo de investimento, de conhecimento, ou cultural” (SCHERER‑WAREN, 2005, p.18). No entanto, será dada ênfase às intervenções recentes de natureza crítica, independentemente de sua escala de articulação. Para Sansão (2014), as ações temporárias podem deixar marcas permanentes na cidade e mudar a percepção dos lugares; nesse sentido, talvez possam também mudar o modo de concebê‑los.

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Essas questões estão relacionadas à prática crítica em seu sentido espacial, ou seja, à impressão deixada por grupos e indivíduos nos espaços urbanos. Para Hirsh e Miessen (2012), essa prática crítica está relacionada também ao alargamento das fron‑ teiras disciplinares observado em décadas recentes, o que levanta questões sobre os limites tectônicos e materiais do que é, de fato, o espaço construído da cidade. Testar as fronteiras e limites das disciplinas que lidam com o espaço é parte do que subsidia as discussões dos coletivos urbanos aqui analisados. O caráter restritivo e excludente, pelo qual se delibera sobre as atividades que são permitidas na cidade, é fundamental para se pensar o caráter desestabilizador dessas ações, centradas na abertura de possibilidades e espaços de imaginação. Trata‑se de pensar no caráter público dos espaços, seus limites e possibilidades, dado que, quanto mais abertas e intensas forem as interações nos espaços livres, mais efetiva será sua transformação. Pensar a programação dos lugares é refletir sobre o espaço relacional que se cria. Para Doron, o que estes lugares públicos tem em comum é “[…] a ausência de um programa definido, […] a impossibilidade de atribuir um termo con‑ creto abre espaço para usos informais, o que desestabiliza a identidade desses lugares”1 (DORON, 2007, p.220, tradução minha). Propõe‑se pensar aqui na ação desses coletivos a partir de dois casos referenciais. O primeiro se refere à intervenção temporária do coletivo de arte Opavivará!, no Rio de Janeiro, que propõe ocupações livres como forma de resistência. Em seguida, serão anali‑ sadas as ações do coletivo Ônibus Hacker e o empenho de seus integrantes na reconquista do espaço, a partir de incursões físicas e virtuais. Entende‑se que esses movimentos ado‑ tam diferentes estratégias — sejam artísticas ou políticas —, como forma de ativar a vida urbana em suas múltiplas dimensões.

O OPAVIVARÁ! NO RIO DE JANEIRO O Opavivará é um coletivo de arte e intervenção urbana do Rio de Janeiro, que desenvolve ações em espaços públicos, galerias e instituições, propondo dispositivos relacionais que proporcionem experiências coletivas. Desde 2005, o grupo vem refletindo sobre a rua como lugar de mediação entre público, espectador e obra. Entre maio e junho de 2012, o Opavivará! ocupou a Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, transformado‑a em espaço doméstico, com estruturas que reproduziam cômodos como cozinha, lavanderia, mesas e cadeiras, disponíveis para qualquer tipo de interação. A Praça Tiradentes é um espaço histórico da cidade e vinha sofrendo um “processo de degradação2” (BORDE, 2006, p.7), não muito diferente do que se vê no centro de outras grandes metrópoles. Essa intervenção se caracteriza por buscar a redefinição do público contra o encolhimento de seus domínios, por meio de uma atitude contrastante. As cadeiras, mesas e a cozinha coletiva inscrevem um signo privado no lugar público, devolvendo o

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sentido de interação e convívio para a praça, por meio de uma manifestação ritual. “É cozinhando que a gente se entende” torna‑se o lema desse trabalho, que reúne símbolos e relações em torno de uma cozinha, conferindo a ela um aspecto humano e político. As propostas do Coletivo Opavivará! criticam o declínio de experiências coletivas, do sentido da vida pública e das concepções estreitas sobre lugares. A ambiência pro‑ gramada, presente em diversos projetos urbanos contemporâneos — com interações e posições definidas e projeções estabelecidas para os sujeitos —, pode ser desfeita pela situação ativista (ou artística) interventora. Para Arrabal (2011), esse é um modo de con‑ ceber uma “cartografia autônoma” em que o cidadão não seja mero espectador, mas possa propor um território de liberdade. Esse território autônomo, resultante da tensão entre espectador e cidade, tam‑ bém está presente na intervenção Desvende‑se, cujo tema também é a transformação recente do Rio de Janeiro, resultado da forma pouco inclusiva pela qual o capital privado se associa às instâncias de governo. Com inspiração nos blocos de carnaval, paradas e cortejos, o grupo realizou uma ocupação em movimento, com o intuito de desvendar os espaços da cidade que estão em plena metamorfose, caso da região portuária da cidade. Assim, a intervenção desperta o olhar do público para uma dimensão crítica e afetuosa desse território complexo. Esses temas se desdobram em outras intervenções do coletivo. A obra Cangaço — realizada no Rio de Janeiro, em 2013 <http://opavivara.com.br>, trouxe um conteúdo crítico para a praia, geralmente entendida como lugar de distração e convívio. Diversas cangas foram dispostas nas areias do Arpoador, com mensagens que ressoavam as mani‑ festações de junho de 2013, ocorridas em diversas cidades brasileiras. Com clareza e des‑ pojamento, os temas das ruas migraram para a praia, por meio de uma atitude contrastante com aquela paisagem de descanso e lazer.

ÔNIBUS HACKER, ATIVISMO CONECTADO É incontestável que o contexto das ações críticas é marcado pela descentralização e frag‑ mentação proporcionadas pela sociedade da informação. Essa forma de ativismo pode ser associada a diversas definições, como a noção de “tecnopolítica”, entendida pelo grupo Data‑ nalysis15M como o “[…] uso tático e estratégico de dispositivos tecnológicos para a comu‑ nicação, organização e ação coletiva” (TECNOPOLÍTICA…, 2013, p.40). A tecnopolítica não coincide com o ciberativismo, por não estar restrita à esfera digital; manifesta‑se como uma tomada do espaço público físico, digital e midiático, capaz de orientar ações tanto nas redes como nas cidades. As redes, nesse sentido, não apenas possuem um papel de construir e coordenar, mas propiciam um impulso transformador da própria natureza dessas ações criticas e sociais. Este termo descreve, em larga medida, a atuação do coletivo Ônibus Hacker. O Ônibus Hacker é um laboratório móvel em que hackers de especialidades diver‑ sas embarcam com um desejo comum: ocupar cidades brasileiras com ações políticas3.

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De maneira semelhante, o filósofo Lévy (1999) prevê a articulação entre o desenvolvi‑ mento urbano e novas formas de inteligência coletiva, capaz de resultar em novos padrões espaciais derivados dessas interações, dada sua capacidade de fortalecer as redes de par‑ ticipação e parceria. As intervenções do Ônibus Hacker são construídas em torno de palestras sobre cultura digital e software livre, que acontecem simultaneamente a oficinas sobre trans‑ parência na divulgação de dados, mapeamento e cartografia, práticas de compartilha‑ mento digital, dentre outros temas. São ações que mostram como a diversidade urbana pode ser um fator essencial para a construção de saberes e de ações compartilhadas e práticas cotidianas que favoreçam a conformação do território por meio de redes de informação e diálogo.

COLETIVOS URBANOS PELA TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO A transformação dos modos de constituição do espaço em favor da coletividade pode alte‑ rar as camadas de discurso escondidas entre práticas e convivências. Nos dois exemplos abordados neste estudo foi possível identificar ao menos duas questões que permeiam demandas recorrentes no campo do urbanismo: - Contra o declínio dos espaços públicos abertos. Observam‑se nas cidades brasileiras ciclos de ascensão e declínio, em que a substituição de usos é um processo comum, que faz parta da vitalidade urbana. No entanto, quando essa situação é ocasionada pela au‑ sência de políticas públicas ou por práticas de governo pouco participativas, o resultado é a subtração desse domínio público e das formas de convívio que ele proporciona. Diante desse cenário, surgem vozes que se colocam contra modelos de cidade pouco abrangen‑ tes e inclusivos, e que valorizam as áreas urbanas livres não apenas como espaço de uso apaziguado, mas como lugar de apropriação política, em sua esfera simbólica ou cotidiana. - Pela mobilidade das ideias. A possibilidade da troca de saberes permeia as formas de sociabilidade nos espaços públicos. Os estágios crescentes de especialização, bem como as formas pouco abertas de concepção dos projetos urbanos de hoje, tendem a ex‑ cluir pequenas comunidades em favor de cidades “vendáveis”, com maior capacidade de atrair investimentos e gerar riqueza. Essa mediação entre global e local já foi proposta por inúmeros autores. Para Sassen (2006), ainda que as chamadas cidades globais apresen‑ tem grande homogeneidade e clivagens diversas, existem mais particularidades do que se possa imaginar na microescala urbana, especialmente no que diz respeito à preservação do caráter público do ambiente construído. Nessa conjuntura, a cidade se torna o ambiente profícuo da disseminação e da troca, como um espaço em que a ação solidária pode proporcionar o realinhamento de mentalidades em favor da equidade. Nesse sentido, mostra‑se promissora a vinculação entre o campo do urbanismo e as áreas correlatas, por auxiliar a construção de métodos e formas de abordagem do projeto urbano e sua gestão.

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A CIDADE INSURGENTE: OS MOVIMENTOS COMO FORMA DE AÇÃO POLÍTICA A análise acerca dos movimentos sociais abre espaço para se questionar o caráter centra‑ lizador com que são conduzidas as políticas públicas de planejamento. Aqueles grupos de indivíduos se multiplicam em metrópoles do Brasil e do mundo, reivindicando autonomia para segmentos que muitas vezes ficam à margem dos ciclos de desenvolvimento. São inúmeras as atividades e os modos de intervenção que lançam novas leituras em face dos espaços de programação mais rigorosa. Os edifícios e a cidade se tornam lugares da manifestação de demandas escondi‑ das, de sistemas latentes que não encontram espaço na lógica da cidade formal. Coleti‑ vos como Opavivará! e Ônibus Hacker buscam inserir elementos de imprevisibilidade e interação mútua, ou, ainda, promover o descolamento do olhar para espaços ociosos, que estejam em desacordo com a ótica do trabalho e da produção. Nesse sentido, pode‑se pensar o urbanismo como campo ligado aos aspectos de representação e reconhecimento, dentro de uma dinâmica maior dos conflitos sociais, relacionada aos sujeitos e às suas “[…] condições intersubjetivas de integridade” (HON‑ NETH, 2003, p.269). Os ativistas e os grupos organizados de empreendimentos artísti‑ cos são resultado da cultura urbana de massa e da proliferação de ferramentas tecnoló‑ gicas que fizeram surgir novas abordagens acerca das cidades, o que redefine em parte a atuação do arquiteto e do urbanista. Essa leitura possui pontos de convergência com outras análises. Harvey (2000) utiliza a expressão “arquiteto rebelde em ação” para descrever um agente coletivo dotado de grande capacidade e empenhado na transformação social. Para Harvey (2000), essas ações transformadoras, orientadas em uma longa fronteira de práticas políticas rebel‑ des, deve acontecer em diversas escalas da vida pública para que a sociedade seja alte‑ rada por meio de atitudes colaborativas. Esse arquiteto rebelde nasce na certeza de que a forma arquitetônica não deriva (ou não deveria derivar) apenas de uma abordagem técnica, mas de uma negociação contínua entre interações mutáveis no trabalho de campo e a sociedade. Talvez resida aí um dos limites dessas abordagens: na interseção entre as instân‑ cias e os agentes, na construção de um campo epistemológico suficientemente aberto para se adaptar ao cenário instável das dinâmicas urbanas. Dada a diversidade de vozes empenhadas na afirmação de diferentes modos de vida, muitas abordagens sobre o espaço urbano acabam se tornando frágeis, diante de seu aspecto totalizante e redutor. Além do uso de espaço público e da mobilidade de ideias, a construção de uma metodologia compartilhada com áreas diversas poderá evidenciar desvios ou levantar questionamentos sobre outros temas, como a constituição de identidades coletivas e participação em processos decisórios, tal qual descrito por autores como Healey (2012). Esse um caminho possível para a construção de cidades mais abran‑ gentes e inclusivas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram debatidas neste trabalho intervenções que levantam a possibilidade de partici‑ pação e diálogo entre coagentes, que poderão se reconhecer em ações interventoras, discutir alternativas e transformar o uso de espaços públicos. Deve‑se pensar que esses confrontos resultantes da capacidade de mobilização podem se materializar em diversas formas, construindo uma inserção crítica mais significativa dentro do tecido social. As coletividades urbanas, assim como os movimentos e práticas ativistas, relativi‑ zam a questão dos lugares e de sua apropriação pelos sujeitos. Entende‑se que os proces‑ sos de subtração da vida pública, tanto quanto de degeneração urbana, estão assentados em pautas pouco inclusivas, na contramão da alteridade, considerada esta uma das prin‑ cipais características da condição urbana. No contexto contemporâneo, a pluralidade de vozes demanda não apenas que o urbanismo se vincule a aspectos materiais, normativos e jurídicos, mas que incorpore em sua estrutura de projeto e planejamento as nuances reveladas pelos diversos movimentos que ecoam na cidade. A partir desta análise, podem surgir estratégias para a prática urbanística fundada na produção de mudanças graduais e sucessivas, empenhadas na participação dos dife‑ rentes atores desse processo, avessos ao caráter totalizante dos grandes planos. Estraté‑ gias que possam ampliar o envolvimento das comunidades locais, formulando espaços produtivos para o âmbito público.

NOTAS 1. Em seu texto sobre espaços de indeterminação, Doron afirma: “Underlying all these spaces is the lack of a definite program; […], the impossibility of enforcing it exclusively opens the space to infor‑ mal uses, a situation that destabilizes the identity of these places” DORON, G. Transgressive Urban Space. In: FRANCK, K.; STEVENS, Q. Loose space: Possibility and diversity in urban life. London: Routledge, 2007. p.219‑220. 2. Em sua tese sobre a atualidade dos vazios urbanos e seu impacto no tecido urbano do Rio de Janeiro, Andrea Borde discorre: “A noção de degradação está relacionada, no urbanismo, à destituição de qualidades físicas, formais e funcionais de uma edificação ou conjunto urbano. As suas causas incluiriam desde as perversas consequências da especulação imobiliária até a presença de segmentos sócio econômicos de mais baixa renda cujos hábitos estabeleceriam uma contraposição com aqueles das elites. Esta noção deve ser, no entanto, questionada uma vez que ela tem sido utilizada usualmente para justificar ações de renovação urbana, de expulsão da população e outras tantas ações que se contrapõem à existência da desejada diversidade e equidade urbanas”. In: BORDE, A. Vazios urbanos: perspectivas contemporâneas. 2006. Tese (Doutorado) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 3. “Por política, entendemos toda apropriação tecnológica, todo questionamento e exercício de direitos”. Disponível em: <onibushacker.org>. Acesso em: 3 abr. 2013.

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Recebido em 29/4/2013, reapresentado em 14/5/2014 e aprovado em 16/6/2014.

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CARLOS HENRIQUE MAGALHÃES DE LIMA | Universidade Federal do Rio de Janeiro | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Programa de Pós‑Graduação em Urbanismo | Av. Reitor Pedro Calmon, 550, Prédio da Reitoria, 5º andar, sala 521, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, 21941‑901, Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E‑mail: <grao.ds@gmail.com>.

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PRÁCTICAS COTIDIANAS DE LOS ADULTOS MAYORES EN EL CONTEXTO FAMILIAR LATINOAMERICANO EVERYDAY LIFE PRACTICIES OF ELDERLY PEOPLE IN THE FAMILIAR LATIN AMERICAN CONTEXT | PRÁTICAS COTIDIANAS DO IDOSO NO CONTEXTO FAMILIAR LATINO-AMERICANO PAMELA QUIROGA

RESUMEN En un contexto de envejecimiento reciente y en vía de aceleramiento en los países de América Latina, los estudios relativos a las prácticas cotidianas de las perso‑ nas mayores se hacen indispensables para aprehender las nuevas necesidades en términos de políticas sociales y ordenación del territorio que atenderán a esta población cada vez más numerosa. Este artículo propone una introducción sobre el análisis de las prácticas cotidianas de los adultos mayores — que traducen las movilidades cotidianas y residenciales — y de la influencia que éstas tienen bajo el conjunto familiar. Queremos, a través de este enfoque, destacar las diferencias o incluso las desigualdades que emanan de las prácticas cotidianas de los individuos que componen la población estudiada en un contexto urbano. El proceso de enve‑ jecimiento supone una pérdida de autonomía progresiva y formas de dependen‑ cias que tienen que ser observadas para comprender las prácticas diferenciadas entre individuos. El papel de la familia, principalmente en los países de América Latina, es fundamental para comprender las diferentes estrategias residenciales y cotidianas que serán adoptadas, de manera constreñida o voluntaria, por los adultos mayores. PALABRAS CLAVE: Adultos mayores. Desigualdades. Familia. Prácticas cotidianas.

ABSTRACT Within the context of recent and accelerated aging of the population in Latin American countries, studies related to the everyday life practices of elderly people have become essential to tackle the new needs in terms of social policies and territory planning that will be applied to this increasing population. The aim of the article is to analyze everyday life practices of the elderly people — including daily and residential mobility — and the influence that these have on the family unit. The advantage of this approach consists of emphasizing the differences or even the disparities that derive from the everyday life practices of the individuals who compose the sample population in an urban context. The aging process supposes a progressive loss of autonomy and the development of forms of dependence that have to be observed to understand the different practices among

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individuals. The role of the family, particularly in Latin American countries, is funda‑ mental to appreciate the residential and daily strategies, in a restricted or voluntary way, adopted by the elderly. KEYWORDS: Elderly people. Disparities. Family. Everyday life practices.

RESUMO No contexto de envelhecimento recente e acelerado da população nos países de América Latina, os estudos relativos às práticas cotidianas dos idosos tornam‑se indispensáveis para apreender as novas necessidades em termos de políticas sociais e ordenamento do território que responderão às demandas dessa população cada vez mais numerosa. Este artigo propõe uma introdução sobre a análise das práticas cotidianas dos idosos — traduzidas pelas mobilidades cotidianas e residenciais —, e sua influência sobre o grupo familiar. Com esta abordagem, procura‑se realçar as diferenças ou mesmo as desigualdades que compõem a população estudada num contexto urbano. O processo de envelhecimento supõe uma perda de autonomia progressiva e formas de dependência que devem ser observadas para entender as práticas diferenciadas entre os indivíduos. O papel da família, principalmente nos países de América Latina, é fundamental no desenvolvimento das diferentes estratégias cotidianas e residenciais que serão desenvol‑ vidas, de forma voluntária ou constrangida, pelos idosos. PALAVRAS‑CHAVE: Idosos. Desigualdades. Família. Práticas cotidianas.

INTRODUCCIÓN En América Latina, se comprueba un envejecimiento de la población a su vez reciente y extremadamente acelerado. Los estudios relativos a las prácticas cotidianas de los adultos mayores son indispensables para identificar las nuevas dinámicas urbanas, las nuevas necesidades en términos de ordenamiento del territorio y las expectativas de esta pobla‑ ción cada vez más numerosa. El lugar de residencia así como las movilidades cotidianas son factores que están estrechamente vinculados a las estrategias desarrolladas por los habitantes y a sus condiciones de vida. Así, el análisis de las movilidades cotidianas y residenciales permite retratar de forma individual y colectiva las evoluciones de las prác‑ ticas de los individuos en su trayectoria de vida así como permite la identificación de las desigualdades socio‑espaciales existentes en el territorio. Pero pocos son los estudios que dedican un análisis minucioso de las diferentes prácticas de movilidad de las personas de la tercera edad que pondrían en relieve las desigualdades existentes dentro de este grupo de edad. En el marco de mi tesis, que focaliza su analisis en las movilidades urbanas y las prácticas residenciales de las personas mayores en la ciudad de Recife (Brasil), vemos que la familia constituye una de las variables más importantes para justificar las estrategias residenciales y la movilidad cotidiana de los adultos mayores.

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La pérdida de autonomía, el sentimiento de soledad, la viudez o las rupturas en el ciclo de vida proporcionan ciertas dificultades a los adultos mayores que deben adaptarse a nuevas situaciones de dependencia física, moral o económica. En este contexto, los adultos mayores encuentran refugio en la cercanía, ya sea geográfica o afectiva, de sus familias. Hoy en día y según la Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL) son alrededor de 24% <http://celade.cepal.org/cgibin/RpWebEngine.exe/Porta lAction?&MODE=MAIN&BASE=MADRID&MAIN=WebServerMain.inl> los hoga‑ res compuestos de por lo menos un adulto mayor en las ciudades de América Latina. La convivencia corresponde a una práctica social para responder a los problemas ligados a la dependencia de las personas adultas pero también para evitar ciertas formas de aisla‑ miento. En el proceso de envejecimiento, la primera forma de aislamiento aparece en el momento de la jubilación donde el individuo se aleja de la sociabilización profesional. Luego, a medida que el tiempo avanza, problemas de salud colocan al adulto mayor en situación de pérdida de autonomía, limitando así sus desplazamientos y por lo tanto cam‑ biando o reduciendo sus prácticas cotidianas. Finalmente, es en la última etapa de la vida que las personas tienen mayores probabilidades de ver su red social reducirse cuando se trata de cercanos de la misma generación, puesto que, como ellos, sufren de una degra‑ dación de la salud que los llevan al aislamiento o porque las personas mayores conocen con más frecuencia el fallecimiento de sus queridos. Cuando los adultos mayores se ven expuestos a un aislamiento social, la familia de estos últimos puede jugar un rol a favor de su integración o reintegración a través de un acompañamiento y un apoyo cotidiano. Es importante destacar además que las situaciones vividas por los adultos mayores son diversas y variadas y veremos cómo, a través de estas diferencias, se crean desigualdades entre los individuos del mismo grupo de edad. En efecto, el envejecimiento no es vivido de la misma forma por todos los individuos que conocen condiciones de vida contrastantes y por ende dificultades de diversas índoles. Coutrim (2010, p.49) subraya entonces que: […] nas sociedades contemporâneas convivem lado a lado as diversas velhices: a velhice dos pobres, dos ricos, as camadas medias, os inválidos, dos que mantem sua autonomia, do trabalho e a do lazer, a rural e a urbana, a excluída e a inserida na luta pelos direitos, a de homens e a das mulheres, dos asilados e dos chefes de domicilio, e assim por diante.

Algunos autores marcan la voluntad de definir grupos de edades dentro de la cate‑ goría de la población definida como “personas de edad” porque como lo subrayamos ante‑ riormente, es una clase que aumenta y que se extiende cada vez más, lo que proporciona inevitables diferencias y desigualdades dentro de una población mucho más compleja y heterogénea. Estos grupos de edad permitirían atribuir a cada individuo, según su edad, las actividades que desarrolla o no cotidianamente. Grupos de edad ya fueron propuestos

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por Gimbert y Godot (2010), en un contexto europeo, quienes evocan los “seniors” que tendrían entre 50 y 75 años y que estarían bien incluidos en la vida social y económica a través de las actividades profesionales o gracias al tiempo libre otorgado por la jubila‑ ción; las personas de la “tercera edad” que serian los individuos entre 75 y 85 años y que comenzarían a experimentar una degradación de su estado de salud y por ende, a cono‑ cer situaciones de vulnerabilidad más o menos importantes; y las personas que tendrían más de 85 años entrarían en el grupo de los de la “gran edad”. Este último grupo estaría compuesto por personas que están perdiendo su autonomía física, sicológica o cognitiva, lo que restringiría sus prácticas en un espacio próximo del lugar de residencia. Estas divisiones poblacionales están fuertemente determinadas por el contexto de cada país, particularmente en la calidad de vida de los habitantes que condiciona la esperanza de vida de cada población. Así, diferentes variables como la edad, el contexto, pero también el sexo, el estado de salud o las características de las redes sociales de los individuos pueden determinar la presencia de desigualdades entre las prácticas de los adultos mayores. Que‑ remos aquí poner de relieve la importancia que tiene la familia de las personas de edad en sus prácticas cotidianas y en sus relaciones al espacio, sin perder de vista las otras variables explicativas que pueden inducir prácticas diferenciadas entre los individuos. Veremos cómo las desigualdades aparecen entre los individuos mayores a través de sus prácticas según las afinidades o no que tengan con su red social, según la proximidad espacial de sus cercanos (en convivencia con ellos o no, próximos del lugar de residencia de miembros de la familia o no) y según el tipo de apoyo que se instaura entre los individuos.

LA FAMILIA, UN FACTOR EXPLICATIVO DE LAS PRÁCTICAS RESIDENCIALES EN AMÉRICA LATINA Dentro de las redes sociales, (que incluyen las relaciones familiares, de amistad, de vecin‑ dad, de trabajo, etc.) subrayamos el papel fundamental de la familia que ocupa un lugar primordial en América Latina. Esta realidad influye de manera notable en las prácticas residenciales de los latinoamericanos. Un estudio realizado en Bogotá muestra una fuerte concentración geográfica de los lugares de residencia de los miembros de una misma familia: entre 80 y 84% de los parientes de los entrevistados vivían en la misma localidad (DUREAU, 2002). Sunkel (2007, p.3) evoca el “familismo” en América Latina donde “la familia se constituye como un pilar clave del régimen de bienestar latinoamericano”. Esta cohesión familiar sería, asimismo, una “estrategia de auto‑protección” de las familias en un contexto de pobreza y donde las políticas sociales no responderían a las necesidades de los individuos (SUNKEL, 2007). Vervaeke (1992), va más lejos sugiriendo que las familias jugarían un papel importante en la composición de la población urbana. Esta hipótesis parece coherente cuando estudios comprueban que la elección de una nueva vivienda se hace preferente‑ mente a proximidad de la anterior ya que los habitantes valorizan los recursos presentes

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en el territorio que sean de orden material (servicios y comercios) o afectivos (presencia de miembros de la familia) (DELAUNAY & DUREAU, 2003). Desde un punto de vista socio‑espacial, las desigualdades existentes en el territorio podrían consolidarse si, como lo evocan estos autores, el factor explicativo preponderante de los motivos de movilidad residencial se basaría en el acercamiento familiar, manteniendo así cierta homogeneidad social, y por ende efectos segregativos, en los fragmentos que componen las ciudades latinoamericanas. La tendencia del acercamiento familiar se refuerza aún más al integrar el proceso de envejecimiento, cuando se observa una disminución de las movilidades. Si el deseo de proximidad se hace tangible en el proceso de envejecimiento, es porque a medida que se avanza en el tiempo, las prácticas y movilidades de las personas de edad se focalizan fundamentalmente en los alrededores más próximos de la vivienda. Más que un deseo, la cercanía familiar se vuelve una necesidad cuando los adultos mayores entran en una fase de pérdida de autonomía y cuando el acceso a las instituciones especializadas o a los servi‑ cios asistenciales para estos habitantes se extiende apenas para la población acomodada. Así, la proximidad geográfica de la familia será buscada y necesaria cuando el adulto mayor se encuentra en una situación de aislamiento (sea social o geográfico). A pesar que el apoyo hacia los adultos mayores en pérdida de autonomía sea necesario, observamos que el acercamiento familiar no constituye una ventaja a sen‑ tido único; cada miembro de la familia podrá encontrar en el acercamiento familiar un apoyo moral, económico, afectivo o material, según las necesidades de cada uno, como lo veremos a seguir.

CUANDO LA PROXIMIDAD SE VUELVE CONVIVENCIA La voluntad de querer acercarse cada vez más de la familia se traduce también por dife‑ rentes formas de convivencias en las cuales los adultos mayores son los alojados y en otros casos donde son ellos quienes acogen a miembros de su familia. En efecto, la realidad familiar latinoamericana produce una organización bastante peculiar del hogar en el cual se encuentran con frecuencia composiciones intergeneracionales complejas. Según un estudio realizado por Sunkel (2007) los hogares con familias extensas1 representaban un poco menos del cuarto de las familias latinoamericanas en la década del noventa. Nos interesaremos aquí en los hogares donde figura la presencia de uno o varios adultos mayores y veremos cómo estas convivencias influyen en las prácticas socio‑espaciales de la población estudiada.

CONVIVENCIAS FAMILIARES BAJO IMPOSICIÓN Las convivencias familiares pueden ser el fruto de una elección individual o colectiva pero pueden sugerir también mudanzas bajo imposición en las movilidades residenciales, como lo evoca Le Breton (2005) en el contexto francés, donde las personas se ven obliga‑

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das a realizar estas mudanzas que son la consecuencia de alguna dificultad. Conscientes de una pérdida de autonomía, los adultos mayores deben someterse a situaciones que implican un grado, más o menos fuerte, de dependencia con respecto a terceros para rea‑ lizar algunas prácticas cotidianas. De esta forma, la convivencia con otros miembros de la familia se revela una de las opciones, cuando las hay, para remediar con los problemas ligados a la dependencia. Las consecuencias de estas prácticas constreñidas pueden lle‑ var a cabo situaciones conflictivas entre la o las personas de edad acogidas y los miembros de la familia que los acogen. Ferreto (2010) observa, por ejemplo, que las personas de edad tendrían un grado de estrés causado por el miedo de ser rechazado afectivamente por sus cercanos, creyendo que su presencia seria una carga para la familia. En efecto, las situaciones de dependencia crean un sentimiento de inseguridad para los adultos mayores que disfrutaban anteriormente de cierto control en sus condi‑ ciones de vida. El adulto mayor se siente entonces en una situación de debilidad que no domina y que está determinada por sus parientes. Cuando hay convivencia, el papel de jefe del hogar que algunos adultos mayores tenían en el hogar anterior, puede verse substi‑ tuido por un miembro del hogar en el cual fue acogido. Esta substitución de papeles altera las prácticas cotidianas de las personas de edad. Vemos por ejemplo que los adultos mayo‑ res pueden experimentar mudanzas de vivienda bajo constreñimiento durante el período en que son acogidas por los miembros de la familia. Mudanzas en que la opinión de las personas de edad no tiene mayor peso cuando éstas son las más sensibles a los cambios. En efecto, el constreñimiento puede causar un malestar que explicaría las tendencias de repliegue, el aislamiento o la degradación del estado de salud de los adultos mayo‑ res (TORRE, 2010; CAMARGOS et al., 2011). Podemos observar situaciones inversas cuando las familias al querer sobreproteger a los mayores llegan a construir formas de asis‑ tencia excesiva que al fin y al cabo aíslan, una vez más, a estos individuos (MOTTA, 2011). Así, las convivencias bajo imposición pueden ser vividas de forma diferenciada por los adultos mayores según el tipo de relación que se observa con la familia, según el papel desempeñado en la residencia anterior y en la actual, o según el grado de dependencia de éstos. De cualquier modo, estas nuevas convivencias inducen nuevas prácticas cotidianas por parte de los adultos mayores y de los miembros de la familia que comparten la residencia.

LAS VENTAJAS DE LAS CONVIVENCIAS FAMILIARES EN EL APOYO MUTUO Aunque la convivencia puede ser sufrida por algunos, es también una estrategia frecuen‑ temente aplicada por las familias latinoamericanas para responder a las necesidades afec‑ tivas, materiales, funcionales o instrumentales de los individuos. Como ya lo subrayamos, los hogares intergeneracionales son una de las caracterís‑ ticas de la población latinoamericana y muchas veces, esta convivencia se establece sobre una base afectiva fuerte que puede ser vivida por las personas mayores como una solución

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a la soledad y a la pérdida de autonomía. A medida que estos individuos avanzan en el pro‑ ceso de envejecimiento, la probabilidad de confrontarse a situaciones de soledad es mayor, puesto que los hijos se casan y salen de casa y las situaciones de viudez aumentan a medida que transcurre el tiempo. Camarano et al. (2004) subrayan que frente a los hombres, las mujeres mayores son más numerosas en experimentar la soledad puesto que tienen mayores probabilidades de quedarse viudas. Según los datos estadísticos de la CEPAL, la relación de feminidad2 para la clase de los de 60 años o más se estima a 115 mujeres para cada 100 hombres en los países de América Latina. Pennec (2006) observa, en el contexto euro‑ peo, que los adultos mayores buscan consuelo en el seno de su familia y es a partir de ese momento que las afinidades entre las mujeres se observan, más precisamente entre madre e hija, a través del fuerte apoyo mutuo, en todas sus dimensiones, que desenvuelven coti‑ dianamente. ¿Estas afinidades favorecerían entonces la integración familiar de las adultas mayores en detrimento de los hombres en la misma situación? si las formas de convivencias aportan bienestar a las personas mayores que experimentan situaciones de soledad debemos preguntarnos si estas convivencias son accesibles a todos y bajo cuales condiciones. Las convivencias pueden también ser el resultado de estrategias económicas, como el ejemplo de los allegados en Santiago de Chile, para aliviar los costos durante una fase de transición residencial (PAQUETTE‑VASSALLI, 2001). Así, la convivencia con los parientes puede ser un refugio provisorio económico mientras se busca una residencia fija por ejemplo. Mas allá de constituir un provecho individual, las convivencias pueden ser beneficiosas para todos cuando se opera un acuerdo común entre los miembros del hogar. En este caso, podemos observar el papel importante que desempeñan los abuelos en el cuidado de los nietos cuando los padres de éstos trabajan o se encuentran fuera de casa. Si bien observamos la presencia de estas prácticas dentro de los hogares socialmente diversificados, vemos que para las familias de bajos recursos, estos tipos de apoyo son esenciales cuando se consideran las dificultades económicas en las cuales viven. Así, el apoyo mutuo permite esquivar un costo, que sea para el pago de un jardín infantil o de una niñera, un costo que generalmente estas familias no pueden asumir. Es importante subrayar que la ayuda entre personas de edad y adultos es mutua pero de diferente naturaleza ya que si los primeros pueden aportar una ayuda económica al hogar, como lo veremos a seguir, los adultos, ellos, pueden encarnar una asistencia a su vez funcional (lavarse, vestirse, caminar, acostarse, etc.) e instrumental (ayuda para las tareas del hogar, para hacer las compras, para la gestión de los ingresos, etc.) para las personas de edad que ven su propia autonomía afectada (SAAD, 2004). Generalmente, las situaciones de dependencia son las consecuencias de la degradación del estado de salud de los individuos. Una vez más, observamos desigualdades entre hombres y mujeres, siendo estas últimas desfavorecidas puesto que presentan mayores debilidades físicas, particularmente sometidas a las enfermedades crónicas y mentales, que sus compañeros (BELO, 2011). Sin embargo, en Brasil observamos que la proporción de mujeres mayores

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jefes del hogar aumenta progresivamente mientras que la proporción de mujeres viviendo con hijos u otros parientes disminuye. Según el Instituto de Brasileiro de Geografia e Esta‑ tística (IBGE), entre las personas de 60 años o más, 19,0% eran mujeres mayores jefes del hogar en 1991 y 23,2% en 2000 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000). Según Camarano (2003) esto refleja mejores condiciones de vida de las mujeres mayores con respecto a la dependencia familiar, una hipótesis reforzada por los datos del Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2000) que indican que entre los adultos mayores viviendo solos en 2000, 66,9% eran mujeres.

CUANDO LOS ADULTOS MAYORES ACOGEN A SUS PARIENTES: ¿CONVIVENCIA POSITIVA O NEGATIVA? Si bien observamos degradaciones del estado de salud de los adultos mayores que impli‑ can situaciones de dependencia y apoyo de la familia como lo vimos, la mayoría de los adultos mayores siguen asumiendo la jefatura del hogar. Los hogares con jefatura de un adulto mayor representaban el 18,8% del total de los hogares latinoamericanos según la CEPAL y alrededor de 4 sobre 5 de estos hogares tienen como jefe del hogar un adulto mayor. Así, podemos deducir que serían mayoritariamente los miembros de la familia quienes serían acogidos por los adultos mayores y no la situación contraria. Constatamos que en Brasil por ejemplo, la población de mayor edad oriunda de las clases bajas disfruta a veces de mejores condiciones económicas que los adultos en edad activa gracias al sistema de seguridad social brasileño que garantiza ingresos mínimos a los adultos mayores. El peso de los ingresos percibidos por los adultos mayores contribuía en promedio a 58,5% de los ingresos de su hogar (CAMARANO et al., 2004). Además, al llegar al último ciclo de vida, los adultos mayores presentan mayores probabilidades de haber adquirido una estabilidad residencial a través del acceso a la propiedad de su residencia. Así, las personas de edad pueden prestar asistencia económica y material a las generaciones más jóvenes cuando el mercado de trabajo, la educación y las relaciones afectivas3 se revelan débiles (CAMARANO & GHAOURI, 2003; CAMARANO et al., 2004; LOPES, 2006; COUTRIM, 2010). Siguiendo con el ejemplo brasileño, el 54,5% de los adultos mayores jefes de hogar convivían con por lo menos uno de sus hijos en 2000 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000). Cuando son los adultos mayores quienes acogen a miembros de la familia, aceptan al mismo tiempo una responsabilidad adicional que implica transformaciones en sus prác‑ ticas cotidianas. La convivencia puede a su vez ser positiva, como lo vimos anteriormente, pero puede también perjudicar las condiciones de vida de las personas de edad cuando implican sacrificios. Un ejemplo clásico es la convivencia con uno o varios nietos en que las personas de edad tenderán a dar prioridad a las necesidades de éstos en la gestión de sus ingresos (en el pago de la escuela por ejemplo) perjudicando así, sus propias necesi‑ dades (CAMARANO et al., 2004) (como por ejemplo comprar remedios).

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EL AISLAMIENTO DE LOS ADULTOS MAYORES: CAUSAS Y CONSECUENCIAS Como bien vimos, las convivencias intergeneracionales representan situaciones recur­ rentes, pero observamos sin embargo en Brasil, el aumento de los hogares unipersonales para la población de edad avanzada (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2007). Camarano y El Ghaouri (2003) subrayan que el aumento de los hogares unipersonales podría estar asociado a la fragmentación familiar, a los cambios de prácticas familiares queriendo reducir la promiscuidad dentro del domicilio o entonces optando por costumbres más individualistas en detrimento del apoyo familiar. ¿Cuáles son entonces las verdaderas condiciones de vida de las personas de edad viviendo solas? Existe la hipótesis que sostiene que las personas mayores viviendo solas permanecerían con un buen estado de salud y con ingresos que les permitiesen subvenir a sus necesida‑ des. Estas personas serían capaces de realizar sus actividades y sus prácticas cotidianas de manera independiente (CAMARGOS et al., 2011). La segunda hipótesis, que contradice esta última, propone un esquema más severo que consiste en que la consecuencia del aislamiento se debería a un rechazo familiar sin considerar el estado de salud del indivi‑ duo. Las rupturas familiares como los divorcios o las separaciones vividas durante la vejez tendrían repercusiones particularmente negativas para los adultos mayores que estarían menos acompañados por sus familias, sobre todo en el caso de los hombres (CAMARGOS et al., 2011). En este caso, y si los individuos están en pérdida de autonomía, las condicio‑ nes de vida se revelan más difíciles para los que no cuentan con un apoyo afectivo, físico y material que sus cercanos podrían concederles. En este contexto, las redes sociales extra familiares como los amigos o los vecinos serían el principal apoyo de las personas mayores viviendo solas. La familia representa entonces una variable ineludible en el análisis de las prácti‑ cas urbanas de las personas de edad; según una encuesta realizada por Saboia (2004) en un contexto brasileño, la familia constituía el primer parámetro indicado por los encues‑ tados (aproximadamente el 40,0%) para cualificar “las buenas cosas de la vida”, seguido por la religión con 12,5%.

CONSIDERACIONES FINALES En el proceso de pérdida de autonomía, los adultos mayores se enfrentan con dificultades que implican situaciones de dependencia. La particularidad del contexto implica que la familia interviene de manera a aliviar las carencias relativas al proceso de envejecimiento. Sin embargo, hemos visto que las estrategias de acercamiento familiar no benefician úni‑ camente a las personas mayores sino que permiten alentar las relaciones afectivas entre parientes y desarrollar una ayuda mutua que, lejos de excluir al adulto mayor, creerán una fuerte cohesión en el núcleo consanguíneo. Si bien evocamos aquí los diferentes tipos de convivencia entre los adultos mayores y sus familias, poco sabemos sobre las condiciones de convivencia y las organizaciones y/o

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sacrificios que éstas implican para los adultos mayores y los miembros de la familia invo‑ lucrados. Asimismo, pocos estudios se interesan sobre los 3% de adultos mayores que en 2000 vivían solos en América Latina CEPAL <http://celade.cepal.org/cgibin/RpWebEn‑ gine.exe/PortalAction?&MODE= MAIN&BASE=MADRID&MAIN=WebServerM ain.inl>, sobre las dificultades que enfrentan diariamente, sobre las prácticas espaciales que desenvuelven y sobre las fuentes de apoyo que solicitan. Estudios entonces acentua‑ dos son necesarios para aprehender las necesidades diversas de una población en proceso de envejecimiento cuyos individuos presentan condiciones de vida poco homogéneas.

NOTAS 1. Las familias extensas se refieren a las familias compuestas por el padre o la madre o ambos, con o sin hijos, y otros parientes. 2. Expresa la cantidad de mujeres por cada 100 hombres en cada zona de residencia. 3. En este caso podemos evocar las separaciones, los divorcios o los desacuerdos familiares.

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PAMELA QUIROGA | Universidad Rennes II | Laboratorio Espaces et Sociétés | Departamento de Geografia | Place du recteur Henri Le Moal, CS 24307, 35043, Rennes, Francia | E‑mail: <quiro‑ gapamela@hotmail.com>.

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Recibido el día 23/10/2013 y aceptado para su publicación el 25/3/2014.

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PRÁTICAS CRÍTICAS NO ESPAÇO URBANO: TRISHA BROWN, DUANE MICHALS E BERNARD TSCHUMI CRITICAL PRACTICES IN URBAN SPACE: TRISHA BROWN, DUANE MICHALS AND BERNARD TSCHUMI | PRÁCTICAS CRÍTICAS EN EL ESPACIO URBANO: TRISHA BROWN, DUANE MICHALS Y BERNARD TSCHUMI MARIANA DOBBERT TIDEI, DAVID MORENO SPERLING

RESUMO O artigo inscreve‑se no campo de estudos sobre “estética e cidade”, trazendo à luz simi‑ laridades entre algumas práticas críticas de apropriação do espaço urbano realizadas nos anos 1970 na arquitetura, na dança e na fotografia. Para tanto, toma como objeto obras da coreógrafa Trisha Brown, do fotógrafo Duane Michals e do arquiteto Bernard Tschumi. A partir da constituição de um breve contexto histórico e cultural e da leitura de seus trabalhos, o estudo foca questionamentos disciplinares e horizontes críticos dessas práticas, delineando aspectos comuns. Dentre eles, tem‑se a investigação acerca dos acontecimentos cotidianos no espaço urbano e a construção de relações dialéticas entre estrutura e acontecimento, como forma de introdução de aspectos políticos nas linguagens. Em seguida, o texto analisa os desdobramentos das práticas desses autores e os coloca em perspectiva com o contexto atual, em que ações nas artes e na arquitetura procuram confrontar a conformação de consensos na produção do espaço urbano. PALAVRAS‑CHAVE: Acontecimento. Cidade. Estética. Práticas críticas.

ABSTRACT The article is placed in the “aesthetics and city” studies. It sheds light on the similari‑ ties between some critical practices of urban space appropriation that occurred in the 1970s in the field of architecture, dance, and photography. For this purpose, the works of the coreographer Trisha Brown, the photographer Duane Michals, and the archi‑ tect Bernard Tschumi are the object of our study. After a brief historical and cultural analysis and reading of their works, we highlight some disciplinary inquiries and critical horizons of these practices and points some mutual aspects. Among them, we investi‑ gated everyday events in the urban space and the construction of dialetical relationships between event and structure as ways to introduce political aspects into aesthetics. Then we analyze the unfoldings of these authors’ practices and place them in perspective with the present context, in which actions in art and architecture make the effort to confront the constitution of consensus in the production of urban space. KEYWORDS: Events. City. Aesthetics. Critical practices.

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RESUMEN El artículo se inscribe en el ámbito de estudio sobre “estética y ciudad”, trayendo a la luz las similitudes entre algunas prácticas críticas de apropiación del espacio urbano realizadas en la década de 1970 en la arquitectura, la danza y la fotografía. Para eso, toma como objeto obras de la coreógrafa Trisha Brown, del fotógrafo Duane Michals y del arquitecto Bernard Tschumi. Desde la creación de un breve contexto histórico y cultural y de la lectura de sus trabajos, el estudio se centra en las cuestiones disciplina‑ rias y horizontes críticos de estas prácticas, destacando aspectos comunes. Entre ellos se encuentra la investigación de los acontecimientos cotidianos en el espacio urbano y la construcción de relaciones dialécticas entre estructura y acontecimiento como formas de introducir aspectos políticos en los lenguajes. A continuación, el texto analiza los desarrollos de las prácticas de estos autores y los pone en perspectiva con el contexto actual, en el que acciones en las artes y la arquitectura buscan hacer frente a la confor‑ mación de consensos en la producción del espacio urbano. PALABRAS CLAVE: Acontecimiento. Ciudad. Estética. Prácticas críticas.

O “ENTRE” COMO CAMPO DE AÇÃO Interessa a este artigo o espaço de proposição crítica comum à arte e à arquitetura con‑ temporâneas, a partir do qual vêm construindo interlocuções entre si. Nesse sentido, recorre‑se a um momento‑chave de constituição de um campo comum entre arte e arquitetura, a virada dos anos 1960 e 1970, em que o posicionamento crítico frente aos processos que se desdobraram nos campos político, social e cultural, esteve em pauta em diversas instâncias culturais, como reação às sociabilidades espetacularizadas e voltadas ao consumo. Como recorte desse campo, adotou‑se uma tática metonímica de apreensão de formas de ação latentes no período e de compreensão crítica da expansão dos estatutos disciplinares. Foram tomadas para análise algumas obras da coreógrafa Trisha Brown, do fotógrafo Duane Michals e do arquiteto Bernard Tschumi, grifando certas similaridades entre suas práticas. Os três moravam em Manhattan, Nova Iorque, e compartilhavam da mesma cena artística em ebulição nos anos 1970 em Downtown, Soho e Greenwich Village, mas não tiveram contato entre si que sejam atualmente conhecidos1. Neste estudo, o que os aproxima são similaridades processuais e o potencial de alteridade existente em suas práticas híbridas, em movimento nas margens dos seus campos disciplinares, tecendo intertextualidades com outros campos do conhecimento. A partir da contextualização do trabalho desses agentes e de uma breve análise de obras — Roof Piece (BROWN, 1975a), Chance meeting (MICHALS, 1988), The Manhat‑ tan Transcripts (TSCHUMI, 1994a) —, são apontadas algumas transversalidades entre suas práticas, as quais podem ser inseridas em todo um cenário de circulação de ideias

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que, em perspectiva, ainda traz questões ao presente e reverbera em modos de atuação da arte e da arquitetura. Em sintonia, de certa maneira, com um contexto de revisão das práticas críticas e das proposições das neovanguardas arquitetônicas e artísticas, conformado pela circu‑ lação de novas publicações e pela organização de exposições no Brasil e no mundo sobre esse período2, presente estudo resgata o trabalho desses agentes, tendo em perspectiva a interrogação sobre a possibilidade de constituição de um campo de proposição crítica entre arte e arquitetura na atualidade. Objetiva‑se, portanto, tomar proximidade com as operações táticas desses agentes e saber como elas se processaram, antes que tomá‑los como exemplos paradigmáticos. Michel de Certeau, filósofo e autor de A invenção do cotidiano (2007), contribui para o entendimento do potencial da prática de tais agentes, ao apostar na transgressão da realidade pelo homem comum, quando questiona as superestruturas, de dentro do sistema. Haveria nas práticas cotidianas a possibilidade de reinvenção do real, valendo‑se de formas de apropriação e subversão do que é “oferecido”. Tais ações seriam práticas apropriacionistas dos “consumidores”. Ele observa a potencialidade de, ao consumir, o sujeito agir astutamente, de maneira silenciosa e quase invisível, frente às representações impostas, centralizadas e espetacularizadas pelos sistemas de “produção” (televisiva, urbanística, comercial etc.). Assim, por meio de pequenos gestos de desvio cotidianos, o então “consumidor” passivo tornar‑se‑ia um “usuário” ativo. Ao se posicionar criticamente à disciplinarização da sociedade, Certeau dá visibilidade às ações cotidianas, às apropriações realizadas pelos sujeitos, e descobre aí possibilidades de ações intersticiais, de subversões dentro da própria lógica sistêmica, chamadas de “ações táticas”: […] gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações poli‑ mórficas, achados alegres, poéticos e bélicos (CERTEAU, 2007, p.104).

Para Certeau, a ação tática de invenção do cotidiano é uma possibilidade de alte‑ ridade, tendo como autor o homem comum, por meio de suas práticas dentro da cultura. O filósofo diferencia a ação tática da ação estratégica. Para ele, a primeira constitui uma força de ação fragmentada, não homogênea, centrada nos modos de operação dos indi‑ víduos e, portanto, mais ágil, enquanto a segunda estaria vinculada a um lugar e a uma infraestrutura. Assim, nas maneiras de fazer, consumir, narrar, construir, dançar, entre outras, existe um potencial de subversão a ser explorado. Com essa perspectiva, os usuários do espaço urbano ganham força propositiva, assim como suas operações táticas possibilitam uma resistência frente às estruturas. É sob essa perspectiva que este estudo analisa as práticas de Trisha Brown, Duane Michals e

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Bernard Tschumi. Como outros artistas do período, os três estabeleceram narrativas dis‑ sonantes das previamente estabelecidas e, por meio de operações táticas, reinventaram maneiras de fazer (pensar e agir) e buscaram novas formas de habitar o espaço, tensionan‑ do construções subjetivas e imaginários urbanos, bem como suas reciprocidades. Brown, Michals e Tschumi inserem‑se no contexto mais alargado dos movi‑ mentos contraculturais de questionamento das lógicas econômicas e de ampliação de seu domíni,o ignorando o bem‑estar social — com destaque para os eventos de grande repercussão deflagrados em maio de 1968 na França. Passava‑se a sentir a crise das “grandes narrativas”, as quais por muito tempo organizaram o todo social, os modos de reprodução das sociedades e as formas majoritárias de pensamento e representação nas ciências e nas artes. Em concomitância, ou mesmo após as irrupções sociais e ar‑ tísticas do período, diversos autores procuraram dar conta do fenômeno, apresentando análises que vão desde as rupturas internas às linguagens (Julia Kristeva, Roland Bar‑ thes) e os conceitos filosóficos (Jacques Derrida, Gilles Deleuze) até as implicações entre estética e economia política (David Harvey, Fredric Jameson, Perry Anderson, Luc Boltansky e Ève Chiapello). Colocava‑se como questão a possibilidade de reativação dos modos de pensar e fazer científico, filosófico e artístico. Na superação dos limites disciplinares, pelo diá‑ logo ou pelo choque interdisciplinar, na abertura ao que acontecia nas margens de cada disciplina, residia grande parte da aposta crítica que se formava. Outra característica que marca as manifestações desse espaço‑tempo é a contaminação entre polos até en‑ tão tomados como distintos da cultura, como os limites entre alta cultura e a chamada cultura de massa ou popular. Algumas questões mais gerais, no entanto, estavam comu‑ mente em pauta, como a (re)definição dos significados das práticas culturais e a busca por engajamento social. No campo da arte, os estatutos do artista e da obra, o papel do público e a delimita‑ ção dos espaços institucionalizados (museus, teatros, academia etc.) estavam postos em questão, aproximando as práticas artísticas da vida cotidiana e, por extensão, do espaço urbano. Buscava‑se uma reinserção em um contexto social amplificado, que dialogasse naquele momento com as transformações culturais em curso. Influenciaram ativamente o cenário intelectual dos anos 1960‑70 os livros de Eco Obra Aberta (1962), e Barthes O prazer do texto (1973), ao recolocarem sobre novas bases o conceito de autoria e os processos de produção de significado. De maneira geral, traziam uma questão semelhante, partindo da defesa de que a obra não tem um significado intrín‑ seco e autônomo, e que o posicionamento do espectador/receptor constitui um elemento gerador de significações. A arquitetura, por sua vez, passava por uma crise de sentido, com questionamentos de diversas ordens acerca dos dogmas da teoria modernista. Estavam em revisão as práticas funcionalistas e a necessidade de uma “ruptura radical” com a história, ao mesmo tempo

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que se buscava a redefinição da própria disciplina, que passaria a se movimentar entre a defesa de uma essência perdida (a investigação formal autônoma) e a procura de uma reinserção política e social (práticas críticas em uma condição de heteronomia). Dentro desse processo de revisão, havia ainda a busca pela intertextualidade com outras áreas do conhecimento (SPERLING, 2008). Algumas posições foram então reformuladas com relação à cidade, que deixou de ser tomada como espaço voltado a um funcionamento mecânico eficiente, e passou a incorporar uma dimensão cultural e simbólica. O lugar, no sentido fenomenológico, ganhou força nesse período; deslocava‑se assim a ênfase conferida ao “plano” para uma relação com o espaço no sentido “existencial”, valorizando a sua percepção sensorial e simbólica. As questões relativas à individualidade do corpo e do lugar vieram tensionar a ênfase conferida ao homem‑tipo e à “máquina de morar”, parâmetros da funcionalidade e racionalidade do espaço. Diante desses novos posicionamentos em relação ao sujeito e ao par arquitetura‑ci‑ dade, outra movimentação se fez presente: a emergência de entrecruzamentos entre arte e arquitetura, como constructos que poderiam produzir criticamente a realidade urbana: abria‑se um campo extenso para experimentações de microrresistências (as “operações táticas”, como definiria posteriormente Certeau). A aposta de transformação social, segundo essa perspectiva, traçava‑se para além da ideologia do plano (na arquitetura) e da obra (na arte), e as operações táticas dos usu‑ ários do espaço passaram a adquirir maior relevância no processo de revisão das constru‑ ções socialmente impostas pelas superestruturas. É nesse sentido que interessam aqui tais entrecruzamentos entre arte e arquitetura: olhar de perto esse processo, em obras de Trisha Brown, Duane Michals e Bernard Tschumi, que ocupavam um espaço em contra‑ posição ao da arte institucionalizada e em diálogo com as transformações urbanas daquele período. Estar na cidade e apropriar‑se dela cotidianamente tornou‑se uma questão tática.

TRISHA BROWN: O CORPO, ENTRE O MOVIMENTO COREOGRAFADO E O GESTO “ENCONTRADO” A coreógrafa Trisha Brown trouxe como questões centrais a reinserção social da dança e a busca pela ressignificação da prática, dentro de um coletivo de artistas do qual fazia parte. Junto de outros dançarinos como Steve Paxton, Yvonne Rainer, Debora Hay, David Gordon, Judith Dunn, Lucinda Child e Ruth Emerson, ela desenvolveu um trabalho de quebra nas formas de comportamento, a partir de uma revisão do que era a dança. A pró‑ pria ideia do “coletivo” era algo a chamar atenção, que rompia com o trabalho hierárquico e a divisão de funções entre coreógrafo e dançarinos, dentro do próprio processo de criação em dança. Esse grupo informal, que ficou conhecido como Judson Dance Theather, era caracterizado pelo ambiente de troca e experimentação, e tinha como ponto de encontro a Judson Memorial Church, uma igreja protestante no Greenwich Village em Nova Iorque.

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Vale resgatar, para situar a dança naquele momento, que durante o período de formação, Trisha Brown, assim como sua geração, foi introduzida à “dança moderna” que predominava nas instituições culturais e universidades nos Estados Unidos. Uma significativa particularidade da Judson Dance Theather foi a de ser formada por dançarinos que haviam frequentado os estúdios de Merce Cunningham em Nova Ior‑ que nos anos 1960, quando então foram introduzidos por Robert Dunn às “Composições de Música Experimental” de John Cage. Dunn separava “composição” de coreografia ou técnica, e estimulava os dançarinos a dispor seu material por meio de procedimentos ale‑ atórios. Segundo a historiadora e crítica de arte Roselee Goldberg (a mesma que realizou parceria com Tschumi no início dos anos 1970, em Londres): Aos movimentos naturais, esses dançarinos agora adicionaram ‘acaso’ como um dispositivo estrutural, e o modelo de Duchamp de material ‘encontrado’ — nesse caso, ‘som encontrado’ e ‘movimento encontrado’ —, como método para inventar novas formas de dançar. Dialogando com Cage eles também separaram música de movimento permitindo a cada um uma atenção separada, com isso focavam ainda mais na condição dos corpos, e movimentos e na relação entre ambos (GOLD‑ BERG, 2006, p.147).

A formação desse coletivo de dançarinos descende, portanto, desses estúdios em que eram relacionados sons experimentais a movimentos improvisados. Nesse tom de investiga‑ ção sobre o corpo e o movimento, libertado da coreografia e do texto, ou seja, das narrativas “teatralizadas” ou dramatizações, é que se centrava a investigação do grupo da Judson. Por meio da dança, eles buscavam a libertação dos códigos, condutas e hábitos antropológicos inscritos no corpo. Realizavam assim investigações sobre a anatomia do corpo e do movimento, explorando gestos que fugissem ao programado, incorporando a ideia de gesto “encontrado” nos movimentos cotidianos. Nesse processo, o significado da dança se ampliava ao universo dos movimentos, o simples caminhar poderia ser conside‑ rado dança, e a distinção entre dançarinos e não‑dançarinos era desfeita. Existia também na dança uma aposta na revolução comportamental e na construção subjetiva de um novo olhar sobre o mundo. Nesse sentido, a dimensão do corpo tomava força como resistência à institucionalização da arte e, ainda, como desejo de vinculação das ações aos espaços onde acontecia a vida. A partir da ativação dos corpos, emergia uma pluralidade de expressões no meio artístico, que envolvia por vezes processos colaborativos entre dançarinos, coreógrafos, artistas plásticos, músicos, expandindo os limites disciplinares. Surgia uma variedade de intervenções artísticas efêmeras e experimentais, nas quais os artistas se valiam de meios diversos e transitavam entre ambientes distintos, até o espaço urbano. A coreógrafa, imersa nesse contexto, estabelecia relações:

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Brown cresceu em maturidade artística em meados dos anos 1960, quando a arte visual e a performance estavam em calorosa colaboração e às vezes eram indistin‑ guíveis umas das outras. Os happenings como os de Robert Rauschenberg e Claes Oldenburg desfizeram as distinções entre escultura e teatro, e foram realizados no tempo real e no espaço do espectador. Estas performances romperam com a boca de cena, assim como a pintura tinha rompido a sua estrutura, para confrontar o especta‑ dor no espaço dele ou dela. Do mesmo modo, com o trabalho da jovem Brown, que se apresentou em várias peças de Rauschenberg (KERTESS, 1998, p.127).

Um denominador comum a essa atividade plural do meio artístico nesse espaço‑tempo da Nova Iorque dos anos 1960‑1970, marcado pela presença dos happe‑ nings e performances, eram os bairros do Soho e Greenwich Village, na região central (Downtown) de Manhattan. A área passava por um processo de abandono e desvaloriza‑ ção em consequência de transformações urbanas e crise financeira, e, portanto, oferecia baixos custos de aluguel, favoráveis às galerias do circuito alternativo e aos lofts, espaços amplos encontrados nas antigas fábricas, lugares para viver e trabalhar, além dos bares e cafés em que se encontravam os artistas. Nesse contexto de efervescência, Trisha Brown manteve contato estreito com diversos artistas, destacando‑se, dentre outros, Gordon Matta‑Clark. Ambos chega‑ ram a influenciar‑se mutuamente, ao tocarem na importância da dimensão do corpo para a experienciação do espaço urbano. Introduziram de maneira similar, cada um em seu trabalho, a noção de instabilidade ao significado da arquitetura, dando ênfase ao processual no âmbito da construção (Matta‑Clark) e do corpo (Trisha Brown) e, nessa direção, recorreram a happenings e performances como meios para elaborar a questão (DISERENS, [1993]). Durante seu percurso, Trisha Brown desenvolveu táticas que a levariam a uma abordagem que buscava no cotidiano subsídios para as performances que realizava no cir‑ cuito alternativo das artes. Com o intuito de desnaturalizar as circunstâncias físicas e ins‑ titucionais para a ocorrência da dança e libertar‑se dos limites que a caixa cênica inscrevia sobre o corpo, deslocou sua atividade para o espaço urbano, apropriando‑o como palco. Ao atuar nas ruas, nos telhados e estacionamentos de Manhattan, passou a estabelecer outra forma de relação com o público. Roof Piece (1971) (Figura 1) é uma performance que toma como cenário alguns telhados de Manhattan, tendo como pano de fundo os edifícios e o efeito escultórico das caixas d’água que compõem o skyline da região ao sul da rua Houston. A performance começa com a artista realizando movimentos improvisados, que remetem a um sinalizador de trânsito estabelecendo comunicação com os outros performers, os quais “reproduzem” o movimento instruído pelo primeiro. Em seguida, este interrompe o movimento e sinaliza para o dançarino seguinte, localizado em outro telhado, para que dite as regras da próxima

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FIGURA 1 – Trisha Brown — Roof Piece, 1971. Foto de: Babette Mongolte. Fonte: (BROWN, 1975).

sequência, mantendo o mesmo padrão de movimentos seriados. Esse fluxo de informação é passado de um dançarino a outro e se reproduz por nove quarteirões da região do Soho. Um diálogo se deu entre os dançarinos, que se distinguiam na paisagem pela dis‑ posição nos telhados, pela sucessão de gestos em cadeia e pela cor vermelha de seus trajes, organizando o acontecimento no tempo e no espaço. Outro diálogo se teceu com o ambiente urbano e com público da performance, composto por espectadores formais (que sabiam de antemão do acontecimento) e incidentais (pessoas da vizinhança, colhidas de surpresa). Um evento irrompeu nos telhados do Soho, na quadrícula de Manhattan: por meio da dança, os movimentos prescritivos cotidianos agregaram, ainda que por alguns minutos, outra lógica à vida urbana automatizada. Brown testou nesse trabalho como movimentos improvisados apareciam à dis‑ tância e eram transformados pela transmissão sucessiva entre os dançarinos. O que se desdobrava era próximo a um “jogo de siga o mestre”, em que um performer ditava a regra para os outros, que a reproduziam segundo sua apreensão fragmentada pela distância e improvisavam a partir do lapso de informação desvanecida, dando continuidade à sequ‑ ência. Ao optar por regras de jogo que estabeleciam algumas diretrizes à performance, algo desenvolvido nas pesquisas dentro do Judson, Trisha Brown libertava o corpo dos códi‑ gos e condutas inscritos na dança moderna, por meio da coreografia, abrindo espaço ao improviso. Codificação e decodificação, regra e ruído, programa e incidente são os pares de polos que atuavam nesse trabalho.

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DUANE MICHALS: A IMAGEM, ENTRE O INSTANTÂNEO E O ESTÚDIO Duane Michals trouxe novas questões para a fotografia: explorou‑a em seu limite para dar corpo a reflexões sobre a própria ontologia da fotografia e de sua relação com o sujeito que a frui. Ao aproximá‑la da literatura e do cinema para construir pequenas narrativas inscritas no espaço‑tempo do cotidiano, pretendia retirá‑la do campo de uma linguagem autônoma e estabelecer um diálogo mais estreito com os acontecimentos urbanos. A contribuição de Duane Michals ao universo da fotografia e da arte contempo‑ rânea reside, em grande medida, na peculiaridade com que questionou — assim como outros o fizeram a seu modo — a redução do produto do ato fotográfico ao registro da realidade. A sua resposta específica esteve na investigação da linguagem fotográfica aberta ao que está além da imagem, além do referente, e que é disparado pelos processos de montagem. A partir da consciência sobre o processo fotográfico como a sucessão de escolhas de um sujeito que pode definir a cena a ser fotografada, os equipamentos, o enquadramento, a iluminação e o material a ser editado, a fotografia passou a ser vista como constructo. De uma “mensagem sem código”, como a fotografia era vista anteriormente (segundo Barthes) (1973), ela era interpretada como um registro objetivo do real, ela passaria a ser vista como a representação de uma visão de mundo, que por vezes escapa ao campo perceptivo do ser humano, algo que Walter Benjamin chamaria de “inconciente ótico” (BENJAMIN, 2000). Tacca esclarece algo significativo do processo de concepção da obra Michals: Duane Michals é um fotógrafo principalmente atrelado ao código fotográfico, um articulador das possibilidades instaladas no dispositivo fotográfico. Suas séries foto‑ gráficas ou mesmo alguns instantâneos são sempre uma inserção no mundo da narrativa propriamente fotográfica e da significação imagética na montagem, nas quais nada é fortuito ou insignificante. E mesmo quando o fortuito é aprisionado no tempo fotográfico torna‑se tão explícito que engana‑nos na sua relação com outros elementos da narrativa, e somente o fotógrafo pode‑nos dizer o que foi fortuito na fotografia. Em algumas fotografias o próprio Duane Michals diz que aconteceu um acaso, mas devemos entender esse acaso dentro de um jogo lúdico propiciado pelo fotógrafo dentro do próprio código (TACCA, [1999], online).

Em particular, interessam a este estudo as obras em que Michals constrói narra‑ tivas por meio de sequências fotográficas — já que a fotografia autônoma, por vezes, não é suficiente para expressar suas ideias, que se situam no campo das experiências e dos acontecimentos no tempo. Ao criar narrativas, Duane Michals constrói acontecimentos no espaço‑tempo urbano, dando visibilidade a micronarrativas/microdiscursos que se tecem na vida cotidiana. Insere em tais narrativas o inusitado, a ilusão e o desejo, provo‑ cando a curiosidade para o que está além do visível, para o que está latente e se inscreve

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como potência. Assim, desperta a sensibilidade e a interpretação do leitor, convidado a ser também autor. O emprego de sequências para dar a noção de movimento não é, no entanto, algo que tenha se originado com Duane Michals. O procedimento fora desenvolvido por Eadweard Muybridge no século XIX, quando estudava formas de representação objetiva do movimento. Foram seus estudos que, mais tarde, possibilitaram a invenção do cinema. Michals, contudo, reemprega o uso da fotografia sequencial em um momento em que a indústria cinematográfica já está consolidada, não mais como recurso científico para apreensão do que não se deixa ver sem mediação técnica, mas como aparelho sensível que permite a sugestão de intervalos entre o concebível, o visível e o imaginável. As narrativas ou foto‑sequências são fotografias/cenas encadeadas que possibili‑ tam a articulação de um evento no tempo. Duane Michals decompõe os acontecimentos em cenas justapostas, em um processo similar à decupagem na edição de um filme. No entanto, nas imagens, altamente calculadas e montadas, parece residir um caráter docu‑ mental inerente à fotografia. Ainda que sejam montadas e encenadas, as imagens são bastante próximas ao que se presencia no espaço urbano, gerando a ilusão de se assistir ao acontecimento e estabelecendo uma ambiguidade entre fato e ficção. Nesse sentido, a ideia de acontecimento no tempo é transmitida a partir de frag‑ mentos de momentos, o que torna mais tátil a apreensão do acontecimento quadro a quadro. As sequências falam muito pelo não dito, pelos intervalos e cortes entre uma cena e outra. É o olhar do observador, passeando pelas distintas cenas, que conduz ao movimento. O tempo é dado pelo leitor, assim como o modo de leitura. Com essa técnica, Michals exige uma postura ativa do leitor, trazendo‑o assim para o processo de construção da obra. Incorporando esses processos, parece pretender (como outros artistas do período e, mais especificamente, aqueles aqui focalizados) a dissolução das barreiras entre artista e público, assim como os limites entre arte e vida. A inscrição manual de textos ou títulos nas fotografias depois de reveladas acres‑ centa outra camada de leitura e tempo à imagem. O signo verbal auxilia na construção de narrativas, assim como assume a fragilidade da imagem como portadora de significado. Com essas articulações imagem‑imagem e imagem‑texto, o autor tece intertextualidades com o cinema, que podem ser notadas pela estrutura quadro a quadro, e com a literatura, quando amplia os significados atrelados à linguagem fotográfica. Dessa forma, ele conduz o leitor a construir narrativas, preservando sua condição processual aberta, em sintonia com as formulações do período: o significado é algo em constante construção e recons‑ trução pelo leitor/agente. Essas narrativas são, portanto, uma aposta na construção de outras realidades pos‑ síveis, por meio das quais Duane Michals convida o leitor a despertar de certos automatis‑ mos do dia a dia, da vida regrada e programada, para que se possa sonhar novos caminhos e tecer novos percursos.

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Chance Meeting (1970) (Figura 2) é uma narrativa composta por seis fotografias, cujo título já sugere uma chave de leitura: um “encontro acidental” entre dois homens. A primeira imagem dessa foto‑sequência revela dois homens em trajes formais e semelhan‑ tes, que caminham em um beco seguindo sentidos opostos. O lugar é banal, estreito, entre blocos de edifícios de tijolos avermelhados, por onde se acessam os prédios pelas laterais e onde se encontram as escadas de emergência. A primeira imagem apresenta o contexto: não há presença de pessoas, a não ser ambos. Em seguida, a imagem demonstra uma aproximação, quando os corpos se tangen‑ ciam. A cena expressa um momento de tensão quando o homem do qual se pode ver o rosto olha para o outro enquanto se cruzam, mas não é possível ver se houve alguma troca de olhares, se ambos trocaram palavras ou se simplesmente seguiram seus percursos. No momento seguinte, o homem que vem em direção ao leitor volta o olhar para trás, como se quisesse confirmar algo. Mais adiante, um gesto com as mãos faz pensar que algo se passou, como se quisesse verificar algo, ou tivesse a expectativa de um encontro. Haveria

FIGURA 2 – Duane Michals — Chance Meeting, 1970. Fonte: (LIVINGSTONE, 1997).

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lhe escapado alguma coisa? Ou reconhecido o outro por quem tinha passado? No enqua‑ dramento final resta somente o outro protagonista, que até então havia permanecido de costas para a câmera. Ele para e volta o olhar para trás, evidenciando uma defasagem temporal. Algo ficou em suspenso. Haveria ele percebido a posteriori o que houve? A sequência insere o leitor em uma narrativa sobre a possibilidade de um aconte‑ cimento, um evento em suspenso, um encontro possível sugerido pela presença de dois homens que, durante o momento em que se cruzam em um beco estreito, traçam um per‑ curso íntimo de encontros de corpos. Uma das leituras que se abrem sugere uma conotação homoerótica latente, quando poderia ser notado um tom autobiográfico no que diz respeito às próprias experiências de Duane Michals, dos encontros e desencontros vividos. Duane Michals articula a narrativa explorando o evento em uma situação cotidiana dentro de um universo fictício, mas que se confunde com o real. A foto‑sequência retrata um encontro em um beco de Manhattan, um lugar banal, e extrai daí uma potencialidade, o encontro acidental. Os vazios e interrupções entre os quadros são os elementos que alavancam a ação do leitor para a construção da narrativa, disparada pela introdução do título “um encontro acidental” como chave de leitura.

BERNARD TSCHUMI: O ESPAÇO, ENTRE AS ESTRUTURAS E OS ACONTECIMENTOS O arquiteto Bernard Tschumi interessa a este estudo na medida em que aborda a arquite‑ tura a partir de sua inquietação quanto ao papel que ela ocupa na sociedade contemporâ‑ nea. É de particular interesse a produção de “projetos teóricos”/manifestos, com os quais esteve envolvido no início de sua carreira, antes que começasse a desenvolver projetos reais ou arquitetura da edificação. Entre aproximadamente 1970 e 1981, influenciado pelos movimentos contestatórios de maio de 1968 na França e pelas práticas situacionis‑ tas, desenvolveu um percurso ativista e provocativo dentro do universo da arquitetura, a partir do qual se dispôs a investigar as possibilidades de, por meio dela, alavancar/disparar mudanças políticas ou sociais. Ao mesmo tempo em que se interessava por insurgências políticas no ambiente urbano, nutria um fascínio pela cena artística daquele período, desde a arte conceitual à performance, de tal forma que buscava conciliar uma contrapartida política a uma ação inventiva, que se valia de táticas do campo da arte. Com esse objetivo, envolvia‑se também no desafio de repensar o sentido da arquitetura, assim como os artistas o faziam com a arte. A proximidade de Tschumi com o meio artístico passou a se dar já nos seus pri‑ meiros anos de atuação profissional, justamente pelo fato de esse meio estar envolvido em um debate cultural mais amplo, do qual, de maneira geral, se afastavam as discussões a respeito da arquitetura. Estas, capitaneadas pela Escola de Veneza e pelo Instituto de Arquitetura e Estudos Urbanos de Nova Iorque, se voltavam — de modos distintos —, à autonomia disciplinar. A opção de Tschumi se deu por uma prática crítica, distante tanto do meio acadêmico institucionalizado, quanto do métier pragmático de escritório atrelado

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às condicionantes impostas pelo poder político e econômico, e mais próxima às dimensões dos acontecimentos urbanos que envolvessem a inserção da vivência cotidiana. Bernard Tschumi, em seu texto “Architecture and Transgression”, passou a apostar na incorporação das contradições inerentes à disciplina, afirmando que “a arquitetura [...] se fortalece exatamente por sua posição ambígua entre a autonomia cultural e o compro‑ misso, entre a contemplação e o hábito” (1976, p.6 apud NESBITT, 2006, p.71)3. Par‑ tindo para uma visão da arquitetura que nega a sua autonomia, Tschumi (1975) afastou‑se da arquitetura como forma e propôs uma série de questionamentos sobre a ontologia do espaço, em seu texto Questions of Space: The Pyramide and the Labyrinth. Um constructo mental ou algo que se experiencia? Segundo o próprio autor, utilizar a palavra “espaço” para se referir à arquitetura foi uma tática usada para conseguir abarcar uma conotação empírica e sensual, assim como social e política. O termo possibilitou um afastamento de tradições e preconceitos relacio‑ nados à arquitetura, assim como permitiu situar a discussão em um território estendido, que envolvesse o cinema, a dança, a fotografia e a música, entre outras artes. Tomando a noção de evento como acontecimentos que extrapolam as formas programadas de ação (SPERLING, 2008), dado que vinha observando nos conflitos urbanos das metrópoles europeias, Tschumi afirmou, naquele momento, que uma determinada arquitetura não possui um significado em si, algo que somente pode ser atribuído pelo uso, substituindo o binômio “forma segue a função” por uma relação disjuntiva entre espaço e evento. O confronto inerente à arquitetura entre espaço e uso e a inevitável disjunção dos dois termos significa que a arquitetura é constantemente instável, constantemente à margem de mudança. É paradoxal que três mil anos de ideologia arquitetônica tentaram afirmar o seu extremo oposto: que arquitetura diz respeito à estabilidade, solidez, fundação (TSCHUMI, 1996, p.19).

Tschumi chegou, então, à conclusão de que os espaços arquitetônicos em si eram neutros, e que a dimensão política estaria nos usos que são feitos deles (TSCHUMI, 1996). A neutralidade a que o arquiteto se referia dizia respeito não à forma arquitetônica em si, mas ao significado que é construído numa instância fenomenológica, social e polí‑ tica, a partir da relação do corpo com o espaço: Vários precedentes apontavam, no entanto, para o extraordinário poder dos inci‑ dentes, de pequenas ações amplificadas milhares de vezes pela mídia para assumir o papel do mito revolucionário. Nesses casos, não era a forma da arquitetura que importava (se era contextual ou modernista), mas o uso (e o significado) que a ela era atribuído (TSCHUMI, 1996, p.8).

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Em “The Manhattan Transcripts” (1977‑1981) (Figura 3), projeto teórico cons‑ tituído por quatro manifestos — “The Park”, “The Street”, “The Tower” e “The block” —, Tschumi investigou o desdobramento de acontecimentos distintos no espaço urbano de Manhattan, exercício que foi fundamental para o desenvolvimento de dispositivos a serem reempregados posteriormente como estratégias/táticas de projeto. Durante a pro‑ dução dos “Transcripts”, chegou a outra forma de notação arquitetônica, na qual absorve técnicas advindas do cinema construtivista, da fotografia, da dança e da música, artes por meio das quais incorporou a noção de “acontecimento” como chave para a arquitetura. Em cada episódio de The Manhattan Transcripts são desenvolvidas interpretações arquitetônicas da cidade de Manhattan que ficam entre o real e a fantasia, a partir do desdobramento de acontecimentos em estruturas espaciais paradigmáticas: o parque, a rua, a torre e o bloco (TSCHUMI, 1994a). Nessas transcrições, as táticas‑chave para exploração dos limites da arquitetura são o seu tensionamento em direção à experiência do espaço e a sua relocação como algo que está em constante processo. Em “The Park”, é narrada, por meio de um sistema de notação sequencial tripartite (dirigido a espaços, movimentos e acontecimentos), a ocorrência de um assassinato no Central Park em Nova Iorque. Tschumi toma como ponto de partida situações e espaços reais para compor a narrativa imaginária de um assassinato. Introduz assim um programa (ações no espaço) que não é de ordem funcio‑ nal para compor o enredo: o assassinato traduz o que foge ao controle do espaço programado. O Manifesto foi composto por 24 sequências (uma analogia aos fotogramas, sequências de imagens que compõem um filme), cada uma delas constituída por 3 enquadramentos (enumerados 1, 2, 3 repe‑ tidamente): o primeiro sempre revela uma fotografia indicial — que dirige as ações (acontecimentos), o segundo apresenta um desenho de uma planta (espaços), e o terceiro é composto por diagramas de movimento dos protagonistas principais (movimentos). Somente juntos eles definem o espaço arqui‑ tetural do parque.

FIGURA 3 – Bernard Tschumi — Manhattan Transcripts 1: The Park, 1978. Composto por 24 painéis de 33cm x 68cm. Fonte: Tschumi (1994a).

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Os primeiros enquadramentos revelam, por meio da fotografia, indícios de que se trata de uma zona limítrofe entre o Central Park e a cidade, algo que pode ser mais bem visualizado por meio da planta arquitetônica que delineia o limite entre as quadras regulares e o traçado sinuoso do parque. Com os diagramas de movimento, é possível tomar conhecimento dos percursos envolvidos na trama, que são distintos, mas seguem na mesma direção: da 72nd Street ao Central Park, ou seja, da cidade ao parque. Em seguida, a imagem do lago e da vegetação, associada à planta arquitetônica, indica que se está no parque. Em paralelo, os diagramas de movimento seguem percursos mais soltos, diferentemente do que era possível na cidade. Os quadros seguintes focam movimentos de pernas e braços de uma mulher em posição de corrida e, em seguida, de um homem. Percebe‑se, então, tratar‑se de uma perseguição que se intensifica, pois ambos estão em um vetor linear da planta baixa. Os movimentos, agora paralelos, indicam que os corpos quase se tocam. O traçado do parque começa a perder definição e sofrer transformações, que remetem a uma desestabilização da ordem. A fotografia de uma textura, talvez um muro de pedras, indica um caminho sem saída. Os diagramas são de movimentos atônitos, aleatórios, de aproximações e distan‑ ciamentos, apresentando relações conflitivas e de indiferença ao desenho do parque, até que, enfim, encontram‑se em um único ponto. Vê‑se a imagem de um corpo caído no chão e, no diagrama de movimento, somente o contorno de um corpo estático assassinado. As plantas, que antes situavam espacialmente as ações, agora fazem parte dos instrumentos de investigação, na tentativa de recomposição da cena do crime para que o assassino seja encontrado. Nesse momento, as plantas aparecem e desaparecem gradual‑ mente (fade‑in/fade‑out), conforme técnicas utilizadas na edição de filmes, como meio de incorporar o tempo, o movimento e as ações no espaço. Nos próximos blocos, nota‑se a investigação do assassinato. Os diagramas de movi‑ mento são substituídos pela busca por pistas que expliquem o incidente. As fotografias mostram pessoas, ou talvez detetives, que analisam o corpo e procuram por pistas. Cír‑ culos na grama indicam objetos encontrados e prováveis vestígios. Coordenadas situam a disposição das pistas encontradas, onde anteriormente se encontrava a representação da planta do parque. Em seguida, sobre o mapa, dedos de alguém que investiga o ocorrido e os possíveis percursos. Algumas questões começam a ser esclarecidas e alguns locais do Central Park são destacados: Cherry Hill, a esplanada, o lago, Cleopatra´s Needle, o passeio, a fonte, a alameda. Aos poucos, à medida que as pistas são encontradas, reaparece a planta arqui‑ tetônica do parque. As informações do mapa do parque são confrontadas com as pistas encontradas. Um gráfico que remete à notação musical, no qual linhas soltas são sobre‑ postas a outras tensionadas, indica que algo precisa ser ajustado/afinado. Em determinado momento, o processamento de informação é interrompido. A imagem de uma construção em chamas, seguida por um lapso na planta do parque e o

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cessar do diagrama de movimentos, faz pensar que algumas pistas foram apagadas. No entanto, nos quadros seguintes nota‑se um retorno à ordem, e as pistas voltam a fazer sen‑ tido. No quadro dos diagramas estão localizados os vestígios do ocorrido: espelho, parede queimada, corda, equipamento de segurança e deterioração. Um suspeito é então capturado, enquanto a representação espacial ganha terceira dimensão, indicando outro nível de informação. A impressão digital do quadro seguinte confirma que encontraram o assassino, as informações estão claras nos quadros que com‑ põem a sequência. No entanto, algo desestabiliza a ordem, podendo‑se observar uma tentativa de fuga do assassino: homem, escadaria e diagramas de movimento em tensão. Quando então acontece a recaptura, nota‑se a sua imobilização. Os últimos enquadra‑ mentos revelam a fachada de um edifício comum, cuja planta rebate a fachada, num espaço homogêneo e compartimentado que se entende ser a prisão. O quadro onde apa‑ reciam os diagramas agora é vazio, indicando a ausência de movimentos. Ao longo da investigação arquitetural por parte dos leitores/detetives, pode‑se per‑ ceber que, sob a disjunção, espaços e eventos podem relacionar‑se seja por conflito, seja por indiferença, seja ainda por reciprocidade: a arquitetura pode ser hostil ou afetuosa ao movimento dos corpos. E ambos se qualificam mutuamente. O caráter agressivo e vio‑ lento que Tschumi usou para compor o enredo/ou os relatos programáticos, foi assimilado das táticas do absurdo utilizadas pelas vanguardas artísticas (dadaístas e surrealistas), no intuito de desnaturalizar a visão sobre a arquitetura, ao mesmo tempo que retirou a nota‑ ção arquitetônica do campo da abstração e a aproximou daquilo que acontece nos espaços.

PONTOS DE CONTATO Trisha Brown, Duane Michals e Bernard Tschumi estiveram imersos em um processo de revisão dos próprios fazeres, que refletia um desejo, nos anos 1970, de transgressão da realidade tal qual estava estruturada. As questões em comum encontradas nas obras de tais agentes podem ser pontuadas da seguinte forma: a noção de “prática crítica”, como forma de ação reflexiva e política; a intenção de crítica disciplinar, refletida em movi‑ mentos de tensionamento dos limites disciplinares; a investigação de outros espaços de ação, pelo entendimento de que a variável espacial das ações tem uma dimensão política; a incorporação do espaço cotidiano, como modo‑chave de reintrodução do corpo e das dinâmicas da vida na arte e na arquitetura; a alteração da relação artista‑obra‑espectador, pela criação de “obras abertas” a serem completadas pelo sujeito que “lê” o trabalho; a construção tática de relações dialéticas entre estrutura e acontecimento, como forma de introdução de aspectos políticos nas linguagens. Seus anseios podem ser alinhavados aos de outros artistas daquele período, que viam no engajamento da arte perante os acontecimentos em ebulição, a possibilidade de uma alteridade. Com esse intuito, a primeira limitação a ser enfrentada era a discipli‑ narização do saber. Contra ela, passaram a rever as origens e os limites dos seus campos

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de atuação. E, nesse processo, olharam para fora, para o que era feito em outras áreas, tecendo intertextualidades com outros fazeres e ampliando os diálogos com o meio no qual estavam inseridos. Operaram, nesse sentido, de forma resistente aos movimentos funcionalizados e prescritivos que organizavam a vida social. Tais artistas buscaram reinventar a experiên‑ cia cotidiana por meio de suas práticas, explorando novas linguagens, lugares e relações, bem como valendo‑se de meios distintos e microrresistências como tática de subversão (CERTEAU, 2007). Arquitetura, arte e experiência urbana mesclaram‑se nesse processo de aproxima‑ ção com o espaço cotidiano e com a dinâmica da vida na cidade de Nova Iorque. Para os três agentes, a cidade, os seus cenários e os acontecimentos que nela tomam (e podem tomar) lugar, passaram a ser os temas a serem investigados. Seus trabalhos constroem situações em que as ruas, os becos, os edifícios e o parque da cidade são “ativados” por acontecimentos, pelo imprevisto, pelo improvável, pelo irrepetível. Compondo o tom mais geral de crítica às instituições, os agentes focalizados nesta pesquisa buscaram atuar igualmente junto a lugares não oficiais de discussão teórica sobre a arquitetura, ou de ocorrência e exposição da arte, como as Galerias alternativas PS1 e Max Protetch (Tschumi e Brown) Ungderground Gallery (Michals), ou ainda ocu‑ pando espaços não habitados, como os telhados (Brown). Os três agentes exploraram, por meio de suportes distintos, a relação entre o corpo, o tempo e o espaço. Brown explorou a relação entre corpo e movimento, dialogando com suas potencialidades e/ou tensionando suas restrições, bem como revendo hábitos antro‑ pológicos inscritos no corpo, por meio da dança. Em suas foto‑sequências, Michals articu‑ lou meticulosamente, quadro a quadro, situações que envolviam os habitantes da cidade em contextos comuns do cotidiano. Tschumi, no âmbito da arquitetura, procurou, por meio da incorporação da noção de acontecimento, sensibilizar a disciplina em relação ao corpo que ocupa e ressignifica os espaços. Brown, Tschumi e Michals, como outros artistas, investigaram novas posturas do então receptor, partindo do pressuposto de que a obra não tem um significado intrínseco e autônomo, mas está em constante processo de construção. De receptor da obra, o público era convidado a participar e elaborar um significado a partir da própria experiência. Havia uma aposta de transformação de comportamento do público, ou seja, em (re)situar os sujeitos/atores sociais. Ao se aproximar do universo dos happenings e performances, Trisha Brown levou o corpo do dançarino a um diálogo com o espaço urbano, assim como, a partir de uma visão ampliada sobre o dançar, que se expandia em direção a movimentos realizados no cotidiano, borrou as fronteiras entre dançarinos e não‑dançarinos, atores e espectadores. De outra maneira, Duane Michals também pretendeu inserir o público em uma situação participativa e o (re)sensibilizou para um olhar crítico para o mundo. Por meio

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de foto‑sequências, construiu/encenou situações no espaço urbano, que deveriam ser interpretadas além do recorte do enquadramento, além da imagem e além do que poderia ser visto. Igualmente, suscitou um questionamento sobre as formas de representação consumidas socialmente, ao construir sequências que oscilam entre o real e a ficção. Bernard Tschumi, em The Manhattan Transcripts, desenvolveu outra forma de notação, que incorpora a noção de acontecimentos no espaço e suscita uma atitude ativa no leitor, incitando‑o a decifrar as transcrições arquiteturais de Manhattan. Deslocou a vinculação (histórica) do entendimento sobre a arquitetura como estrutura, para sua compreensão como acontecimento, o que implica entendê‑la para além da ideologia do plano e do programado, como algo que está em constante processo de construção a partir das ações dos usuários. Nota‑se, entre esses agentes, uma ênfase dada ao processo, o que implicava uma ampliação das práticas artísticas em direção ao universo da experiência e da vivência. De certa maneira, todos lidavam com construção de situações: Trisha Brown com happenings no contexto urbano; Duane Michals com foto‑montagens/narrativas que exploravam a potência da imprevisibilidade dos acontecimentos em espaços banais da cidade; e Bernard Tschumi com projetos arquitetônicos que criavam situações de fricção entre espaços e eventos. Aspecto relevante que comparece nos trabalhos de Brown, Tschumi e Michals é a maneira como lidaram com a ideia do acaso, do inesperado, do evento. A abertura a esse elemento que excede o controlável foi incorporada como tática nos projetos/narrativas, com intuito de tensionar relações que extrapolem as estruturas enrijecidas e disciplinató‑ rias, de romper os padrões que definem as ações e os comportamentos: formas de dançar, de olhar o mundo, de fotografar, de se orientar no espaço urbano etc. No entanto, é preciso entender como esses agentes lidaram com a ideia de acaso em seus processos. Pois o que se nota não é uma posição contrária ao “projeto”, mas sim a vinculação do plano, da coreografia e da imagem a totalidades pré‑existentes à experi‑ ência. Nesse sentido, eles procuraram articular, cada qual a partir de circunstâncias e procedimentos orquestrados, um espaço onde o acaso pudesse ocorrer. Contribuindo para entender esse processo dialético entre o orquestrado/progra‑ mado/projetado e o acaso/imprevisto/inaudito que se encontra nos trabalhos desses três agentes, vale citar Jacques Derrida, em Without Alibi: Será possível pensar, o que é chamado pensamento, em um único e mesmo tempo, no que acontece (que nós chamamos de um acontecimento) e o programa calculável de uma repetição automática (que nós chamamos uma máquina). Para isso, será necessário no futuro (e não haverá futuro exceto nesta condição) pensar em ambos, o acontecimento e a máquina como dois conceitos compatíveis ou mesmo indisso‑ ciáveis. Nós seremos capazes um dia a, em um único gesto, juntar o pensamento sobre o acontecimento ao pensamento sobre a máquina? (DERRIDA, 2002, p.72).

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Os trabalhos de Trisha Brown, Duane Michals e Bernard Tschumi, de algum modo, apresentam‑se como tentativas dessa junção entre máquina e acontecimento, de que fala Derrida. De modo um tanto similar, os três agentes abrem frestas em suas nar‑ rativas corpo‑espaço‑temporais para a ocorrência de acontecimentos. E a máquina, no trabalho de cada um deles, pode receber outro nome: coreografia para Brown, estúdio para Michals e programa para Tschumi. Brown propõe uma “regra do jogo”, que utiliza para orientar os movimentos dentro da dança, e, quando essa máquina “falha”, surge a circunstância do improviso. Michals constrói metodicamente suas foto‑sequências e deixa nelas inscrita uma ausência, com intervalos que remetem a acontecimentos em suspensão. Tschumi, por meio do choque entre programa e espaço, apresenta encontros/conflitos que criam certa instabilidade, atuando como desprograma no universo da arquitetura. O teor de incompletude, bem como a pressuposição do outro no papel de interpretante, amplia as possibilidades de significado, de deslocamento, de evento, que alinhava o trabalho desses atores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Segundo a conhecida leitura que faz Frederic Jameson sobre a contemporaneidade em A Virada Cultural (1998), a indiferenciação entre os campos da economia e da cultura tem seus prenúncios nos próprios anseios depositados nos movimentos contraculturais dos anos 1960, passando a se efetivar na década seguinte pela incorporação das sensibilidades que ainda lhe eram externas e pela mercadificação das ações e dos objetos transformados em bens culturais. A partir dos anos 1980 e 1990, passa a estar imbricada, em toda a reali‑ dade, por meio da ascendência definitiva da “cultura popular” e da amplificação dos meios digitais de criação, divulgação e comunicação. Por esse ângulo, os anos 1970, período em que atuaram criticamente Brown, Michals e Tschumi, teriam abrigado movimentos e contramovimentos, ações críticas vinculadas à sensibilidade de 1968 e o início da ampliação dos ideais do sistema econô‑ mico em direção às sensibilidades (i) materiais. Ações críticas conviveram, dessa forma, com novas institucionalizações das práticas. As trajetórias dos agentes aqui envolvidos vieram, de certo modo, se institucio‑ nalizar um pouco mais tarde. Em Trisha Brown, nota‑se um recolhimento ao trabalho desenvolvido dentro da própria companhia de dança e ao espaço do teatro, que tem como marco o espetáculo “teatral” “Glacial Decoy”, em 1979 (em colaboração com Robert Rauschenberg). Esse momento representa uma proximidade maior da coreó‑ grafa com o trabalho desenvolvido dentro das artes visuais, quando passa a coreogra‑ far para um público formal, desenvolvendo espetáculos para exibição internacional. É relevante notar que, em paralelo a esse “recolhimento”, suas experimentações iniciais vêm sendo resgatadas em todo o mundo (“Year of Trisha”, Walk Art Center, Minneapolis,

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2008; “Tate Modern Live: Trisha Brown Dance Company Early Works”, Tate Modern, 2010; Festival Panorama, Rio de Janeiro, 2010; “Roof Piece Performances at the High Line”, Nova Iorque, 2011). Por sua vez, a trajetória de Duane Michals não passou por grandes desvios, uma vez que sempre atuou duplamente entre uma arte “autoral” e outra que atendesse a demandas externas. Expôs nos últimos anos no Museum of Modern Art (MoMA) e no International Center of Photography, ambos em Nova Iorque; no Odakyu Museum, em Tóquio; na Natio‑ nal Gallery of Canada, em Ontário; e no Centre Pompidou, Paris. Enquanto Tschumi sempre esteve vinculado ao ensino universitário como forma de delimitação de um campo de investigação, sua atuação passou a englobar, anos após os projetos para o Parc de La Villete (1982‑1998) e Le Fresnoy (1991‑1997), certo pragma‑ tismo vinculado ao cotidiano de seu escritório — inserido no star system da arquitetura já na segunda metade da década de 1980. É possível perceber esse afastamento em relação aos seus pressupostos ini‑ ciais, por exemplo, na série Event‑Cities, três livros publicados (TSCHUMI, 1994b, 2000, 2005), nos quais descreve processos de projeto. De uma abordagem crítica da arquitetura que se baseava no potencial dos acontecimentos urbanos, pautada pela tríade espaço, evento e movimento, sua atuação passa a ser conduzida por conceitos que permeiam uma realidade pragmática da arquitetura, como a ênfase dada, por exemplo, no livro Event‑Cities 3, à relação entre conceito, contexto e conteúdo. Em seu último livro, Architecture Concepts: Red is not a color (2012), Tschumi retoma a estratégia da colagem entre prática teórica e produção projetual para reapresentar sua obra. Enquanto isso, em paralelo, seus trabalhos experimentais iniciais vêm figurando em exposições de destaque: “Dreamland, Architectural Experimentations since the 70s” (2008) e “9 + 1 Ways of Being Political: 50 Years of Political Stances in Architecture and Urban Design” (2013), ambas no MoMA. Contudo, desde os anos 1990, em paralelo aos rumos marcados por certa institu‑ cionalização que tomaram Brown, Michals e Tschumi, é possível observar uma retomada da reflexão e da investigação empírica de práticas críticas. Em termos práticos, enquanto na esfera artística dá‑se uma reaproximação com a cidade, o ressurgimento de coletivos e do ativismo político, na arquitetura, bem como a retomada teórica dos anos 1960‑1970, convive com um contexto mais geral de tensão entre o consenso das práticas alinhadas com o sistema econômico e a valorização dos espaços públicos e das cidades. É notável que o novo espírito do capitalismo incorporou grande parte das energias liberadas pelos acontecimentos de 1968, marcando a crítica artística dos anos 1960 e 1970. Segundo os autores, passa a não fazer mais sentido a exigência de liberação, autenticidade e autonomia, dentro de um novo contexto em que a sociedade capitalista passou a se articular de maneira interconectada, de certa forma flexível, “livre”, “autên‑ tica” e “autônoma”.

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Diante de tais circunstâncias, como seria possível pensar em práticas estéticas crí‑ ticas, que se ponham a atualizar a revisão das estruturas sociais como estão estabelecidas? O que se conhece é a lógica dos jogos de movimentos e contramovimentos, de cooptações e desvios, e que não cabe ao presente restituir táticas pretéritas, tal e qual foram utilizadas, mas “inventar o cotidiano”. O que se vê também é que as apostas parecem ainda estar colo‑ cadas sobre as microrresistências, as pequenas heterogeneidades, os desvios, as brechas, os intervalos e os microchoques. Cabe, assim, em cada situação, repropor as formas de atuação. Se a questão da jun‑ ção dos “pensamentos sobre as máquinas” aos “pensamentos sobre os acontecimentos” ainda parece desdobrar‑se em experimentações na arte e na arquitetura — talvez como ressonância das apostas colocadas naquele período —, caberia investigar os modos situa‑ dos historicamente, pelos quais essas junções ainda apresentam efetividades. AGRADECIMENTOS Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo a concessão de bolsa de pesquisa que originou este artigo (Processo nº 2010/15601‑1).

NOTAS 1. O que se sabe é que Bernard Tschumi tinha grande proximidade com a cena artística de Nova Iorque e que sua teoria de arquitetura encontrou abrigo em periódicos de arte como Artforum e Studio International, assim como as práticas artísticas eram referência para o seu pensamento sobre a “experiência do espaço”. Em uma palestra proferida em 1978, Tschumi cita os trabalhos de Bruce Nauman, Vito Acconci e Trisha Brown, dentre outros. Tschumi, Bernard. January 1, 1978. “Ber‑ nard Tschumi Part One.” In: Southern California Institute of Architecture. Media Archive. Available from: <http://sma.sciarc.edu/video/bernard‑tschumi‑one‑of‑two/>. Cited: Feb. 19, 2013. Para uma aproximação entre Tschumi e a cena artística Londrina (KAJI‑O’GRADY, 2008). 2. Como manifestação desse momento de revisão crítica em relação à arquitetura podem ser cita‑ dos, dentre outros, os livros: Hays, K.M. Architecture theory since 1968. Cambridge: MIT Press, 2000; Lang, P.; Menking, W. Superstudio: Life without objects. Milan: Skira, 2003; Schaik, M. van; Mácel, O. (2005). Exit utopia: Architectural provocations 1956-76. Munich: Prestel, 2005; Ihaau-Tu D.; Knabb, K. (Ed.). Situationist international anthology. Berkeley: Bureau of Public Secrets, 2007. Citam-se ainda as exposições “Superstudio. Life Without Object (1966-1978)” (Zeeuws Museum e De Vleeshal, Holanda, de setembro a novembro de 2004); “The International Situationist: 1957-1972” (no Central Museum Utrecht, de dezembro de 2006 a março de 2007, e no Musée Tinguely, Suíça, de abril a agosto de 2007), com contribuições de Gior‑ gio Agamben e Philippe Sollers; “Archigram”, na 29ª Bienal de Arte de São Paulo (2010); “9+1 Ways of Being Political: 50 Years of Political Stances in Architecture and Urban Design”, no Museum of Modern Art, New York, 2013. O mesmo vem ocorrendo em relação às práticas artísticas do período, com o interesse renovado por artistas como Robert Smithson, Gordon Matta-Clark, Dan Grahan e Vito Acconci, dentre outros. Igualmente, pode-se considerar como participante desse contexto a retomada, no Brasil e no exterior, da obra de Hélio Oiticica e Lygia Clark, com tantas outras publicações e exposições. 3. Tschumi, B. Architecture and Transgression. Oppositions 7, 1976.

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Studio International, n.977, p.136-142, 1975. TSCHUMI, B. The Manhattan transcripts. London: Academy Editions, 1994a. TSCHUMI, B. Event-cities (Praxis). Cambridge: MIT Press, 1994b. TSCHUMI, B. Architecture and disjunction. Massachusetts: MIT Press, 1996. TSCHUMI, B. Event-cities 2. Cambridge: MIT Press, 2000. TSCHUMI, B. Event-cities 3: Concept vs. context vs. content. Cambridge: MIT Press, 2005. TSCHUMI, B. Architecture concepts: Red is not a color. New York: Rizzolli, 2012

MARIANA DOBBERT TIDEI | Universidade de São Paulo | Instituto de Arquitetura e Urbanismo | Núcleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas | Av. Trabalhador Sãocarlense, 400, 13566‑590, São Carlos, SP, Brasil | Correspondência para/Correspondence to: | E‑mail: <mariana. tidei@gmail.com>.

Recebido em 11/2/2014 e aprovado em 26/5/2014.

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DAVID MORENO SPERLING | Universidade de São Paulo | Instituto de Arquitetura e Urbanismo | Núcleo de Estudos das Espacialidades Contemporâneas | São Carlos, SP, Brasil.

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DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL: DE PARADIGMA A MITO 1

URBAN SUSTAINABLE DEVELOPMENT: FROM PARADIGM TO MYTH | DESARROLLO URBANO SOSTENIBLE: DE PARADIGMA A MITO ANDRÉ LUIZ PRADO

RESUMO O artigo discute o paradigma do “desenvolvimento urbano sustentável” e das “cidades sustentáveis”, analisando epistemologicamente o conceito mais amplo de “desen‑ volvimento sustentável” do qual eles derivaram. Através de uma revisão quanto às origens desse conceito e do contexto em que isso ocorreu, são assinalados alguns pontos chave para uma discussão sobre o que está por trás da construção desse modelo para o planejamento das cidades: a quem ele serve e para quais propósitos. As discussões ambientais urbanas se veem cada vez mais obstruídas pela chegada desses conceitos, dentro dos círculos acadêmicos e fora deles. As disputas ideo‑ lógicas e disciplinares que foram criadas com a tentativa forçada de convergência trazida por esses conceitos são solucionadas pela adoção de uma crescente impre‑ cisão que eles carregam, de modo a não comprometer seu caráter consensualista. Por outro lado, as disputas políticas na cidade são desmontadas com a ajuda desses conceitos, já que eles serão capazes de garantir os recursos para as gerações futuras, equilibrando os interesses econômicos, ambientais e sociais, constituindo assim uma ideia capaz de desmontar todas as resistências e colocar‑se como mito salvador. PALAVRAS‑CHAVE: Cidades sustentáveis. Conflitos socioambientais urbanos. Desenvolvimento urbano sustentável. Modernização ecológica.

ABSTRACT The aim of the article is to discuss the paradigms of “urban sustainable development” and “sustainable cities” in an endeavor to analyze epistemologically the broader concept of “sustainable development” from which they derive. Through a review of the origins of the concept and the context in which they occurred, some key points are highlighted to discuss what is behind the construction of this model for city planning: whom does it serve and for what purposes. Urban environmental discussions have been increasingly obstructed by the arrival of these concepts within the academic circles and beyond. The ideological and disciplinary disputes that were created with the forced attempt of convergence brought by these concepts are solved by the adoption of an increasing inac‑ curacy that they carry, so as not to compromise their consensualist character. On the

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other hand, out of the theoretical dimension, political disputes in the city are removed with the help of these concepts, since they will be able to assure the resources for future generations, balance economic, environmental and social interests, ideas that could remove all resistance and be considered a savior myth. KEYWORDS: Sustainable cities. Urban social and environmental conflicts. Urban sustainable development. Ecological modernization.

RESUMEN El artículo analiza los paradigmas de “desarrollo urbano sostenible” y “ciudades sosteni‑ bles”, tratando de analizar epistemológicamente el concepto más amplio de “desarrollo sostenible”, de que se derivan. A través de una revisión cuanto a los orígenes de este concepto y el contexto en que se produjo, se destacan algunos puntos clave para una discusión acerca de lo que está detrás de la construcción de este modelo para la plani‑ ficación de la ciudad: a quien sirve y para qué fines. Discusiones ambientales urbanos se encuentran cada vez más obstaculizados por la llegada de estos conceptos dentro de los círculos académicos y más allá. Las disputas ideológicas y disciplinarias que se crearon con el intento de convergencia forzada causada por estos conceptos se resuelven mediante la adopción de una imprecisión creciente que llevan, a fin de no poner en peligro su carácter consensualista. Por otra parte, las disputas políticas de la ciudad se eliminan con la ayuda de estos conceptos, ya que será capaz de obtener los recursos para las generaciones futuras, el equilibrio de los intereses de todos los aspectos económicos, ambientales y sociales, lo que puede eliminar resistencias y ser presentado como un mito salvador. PALABRAS CLAVE: Ciudades sostenibles. Conflitos socioambientales urbanos. Desarrollo urbano sostenible. Modernización ecológica.

INTRODUÇÃO Na recente história da civilização ocidental capitalista industrial, poucas foram as ideias que conseguiram uma adesão tão forte, em tão pouco tempo e em tamanha escala, como foi o caso da noção de “desenvolvimento sustentável”. No prazo de uma década, esse conceito conseguiu se espalhar e se enraizar entre os mais diferentes grupos sociais e tornou‑se parte integrante da vida cotidiana contemporânea. No campo das discussões urbanas, dentro e fora do ambiente acadêmico, a ideia de “desenvolvimento susten‑ tável” passou a ocupar nos últimos anos um espaço muito significativo, o que torna importante discutir seus pressupostos e tentar entender seus efeitos, hoje já com algum distanciamento histórico. Este artigo se propõe a essa tarefa e a tentar entender, em relação ao planejamento das cidades, a quem esse conceito atende prioritariamente e para quais propósitos.

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De saída, podem ser levantadas três razões para a eficiência do termo como cons‑ trução ideológica e retórica: os pressupostos que carrega em defesa de certos ideais nobres e altruístas, como a preocupação com os recursos naturais para as próximas gerações; a preservação de animais ameaçados de extinção nos mais remotos cantos da Terra; o bem‑estar de todos os povos, contra os quais seria moralmente inadmissível qualquer argumento contrário; a imprecisão e a generalidade que engendram um processo pode‑ roso, em que cada indivíduo ou grupo social consegue se apropriar da ideia, projetando os valores simbólicos que mais lhe convêm; os meios propícios, graças à rápida evolução dos sistemas de comunicação ocorrida no mesmo período em que essa ideia foi elaborada, e que teve na rede mundial de computadores seu maior exemplo, favorecendo um processo de aceleração das trocas de informação.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Antes de discutir propriamente o conceito de “desenvolvimento sustentável”, é necessário atentar para o fato de que ele se situa dentro de uma noção maior, absolutamente natu‑ ralizada por meio de processos históricos que moldaram a sociedade ocidental industrial capitalista: a própria noção de “desenvolvimento”. Há um senso comum em torno dessa ideia que a coloca como algo sempre virtuoso, como se “desenvolver” significasse neces‑ sariamente “melhorar”. Isso faz com que se pense sempre que algo em “desenvolvimento” é algo que esteja “melhorando”. A expressão “desenvolver” tem vários significados, entre os quais “caminhar para um estágio mais avançado” e “progredir” (HOUAISS & VILLAR, 2001, p.989), o que pode ser aplicado a uma cidade, por exemplo, sem necessariamente indicar que ela “me‑ lhorou” em sentido amplo. A ideia de “desenvolvimento” compreende complexas situa‑ ções, que não podem ser resumidas a uma noção geral de “melhoria”. Admitindo‑se, que a noção de “desenvolvimento” possa conter a noção de “melhoria”, mas não somente ela, a pergunta passa a ser: a quem interessa criar a ideia de que as coisas caminham rumo a uma condição de melhoria? Peet e Watts (1996) defendem que o esforço do desenvolvimento é uma forma de colonização cultural com eficiência única, motivo pelo qual a habilidade em fazer “as coi‑ sas melhorarem” (mesmo que aparentemente) é a mais importante forma para conquistar ou manter o poder. É possível afirmar, portanto, que a noção de “desenvolvimento” surgiu como parte integrante do modo de produção capitalista industrial, em sua necessidade de expansão constante, condicionando‑nos a ela. O conceito de “desenvolvimento sustentável” ganhou notoriedade, num primeiro momento, através do documento “Nosso Futuro Comum”, de 1988, elaborado pela (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1992) da Organização das Nações Unidas (ONU), e que ficou conhecido como “Relató‑ rio Brundtland”. O Relatório não foi responsável pela criação do conceito — já utilizado

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no meio científico e acadêmico desde a conferência de Estocolmo em 1972, e até antes2 —, mas foi responsável por dar‑lhe força política (COSTA, 2008). O termo foi defini‑ tivamente consagrado quatro anos mais tarde, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, que ficou conhecida como Rio‑92. A partir do período situado entre o final dos anos de 1980 e o começo dos anos de 1990, o conceito sofreu um rápido processo de divulgação e consolidação e, na última década do século passado, já podia ser considerado um valor universal ampla‑ mente aceito e discutido. Com a universalização do conceito graças ao contexto de adesão à defesa do meio ambiente, passaram a ser elaborados, tanto em escala global quanto local, discursos e práticas relacionados à “questão ambiental”, legitimados por esse conceito. A adoção do termo “desenvolvimento sustentável” passou, desde então, a conferir caução e legitimi‑ dade a qualquer discurso e prática envolvendo questões ambientais, além de sempre evocar o consenso (CARNEIRO, 2005). Alguns autores consideram que o consenso criado em torno do termo revela exata‑ mente sua imprecisão, mais do que sua clareza (COSTA, 2000). Os consensos constru‑ ídos a partir do conceito de “desenvolvimento sustentável” em todos os níveis e escalas alimentaram, nos últimos anos, um processo pelo qual diferentes grupos sociais passaram a interiorizar as mais diversas facetas da questão pública sobre o meio ambiente. Esse fenômeno é considerado por alguns autores como um processo de ambientalização da consciência social (BEZERRA, 2005). O Relatório Brundtland consolidou a definição de “desenvolvimento sustentável” como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibili‑ dade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1992, p.46). Essa definição traz consigo a generalidade e a imprecisão já apontadas e levanta algumas outras considerações. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que ela surgiu num contexto da crise ambiental iniciada a partir dos anos de 1960 e que teve como consequência ações coordenadas em escala global, organizadas para discutir a “questão ambiental”, como a Conferência de Estocolmo em 1972. Essa conferência teve importante papel para difundir a ideia de crise ambiental em escala global, enfatizando, entre outros aspectos, a crescente escassez de recursos naturais, como água potável e combustíveis fósseis (MEADOWS et al., 1972), conforme discutido anteriormente. Desde então, a ideia de lutar contra a possibilidade de recursos naturais serem completamente extintos passou a fazer parte da agenda ambiental, por meio de uma visão de “racionalidade ou parcimônia no uso de recursos naturais”. Nesse período, entre o final dos anos de 1960 e o início dos anos de 1970, surgiram importantes pesquisas sobre a utilização de combustíveis alternativos para veículos, em função da crise do petróleo, e, no caso específico da arquitetura e urbanismo, passaram a

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ser pensadas estratégias para a construção de edificações que consumam menos energia elétrica e água, assim como para o planejamento de cidades menos agressivas ambiental‑ mente3. A ideia de que seria possível manter o desenvolvimento econômico mundial de uma maneira mais cuidadosa em relação aos recursos naturais fez convergir os interesses de um mundo estruturado ainda em torno das forças produtivas capitalistas, e, portanto comprometido com a ideia de desenvolvimento, porém, a partir daquele momento, preo‑ cupado com o meio ambiente. Para Escobar: […] o discurso do desenvolvimento sustentável propõe a reconciliação de dois an‑ tigos inimigos — o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente — sem ajustes significativos nos sistemas de mercado. A reconciliação é resultado de operações discursivas complexas envolvendo o capital, representações da natureza, gestão e ciência. No discurso do desenvolvimento sustentável, a natureza é reinven‑ tada como meio ambiente para que o capital, não a natureza ou a cultura, possam ser sustentados (ESCOBAR, 1996, p.49, tradução nossa)4.

Alguns autores que ajudaram a consolidar o conceito do “desenvolvimento susten‑ tável”, como Sachs (1993), enxergavam‑no de forma mais otimista, vendo nele a possibili‑ dade de um desenvolvimento “mais sensível ao meio ambiente”, como uma alternativa ao desenvolvimento tradicional, que, por consequência, poderia ser chamado de “insensível” à essas questões. Para ele, o “desenvolvimento sustentável” seria ainda um caminho inter‑ mediário estabelecido no debate ambiental no início dos anos de 1970, capaz de conciliar o desenvolvimento econômico e preservação ambiental, situando‑se entre “o pessimismo da advertência dos malthusianos a respeito do esgotamento dos recursos e o otimismo da fé dos cornucopianos a respeito dos remédios da tecnologia” (SACHS, 1993, p.30). O “desenvolvimento sustentável” — que Sachs ainda preferia chamar de “ecodesenvolvi‑ mento”5, usando um termo que fora utilizado na convenção de Estocolmo em 1972 e nos anos seguintes — deveria ser colocado em prática em cinco dimensões: sustentabilidade social, econômica, ecológica, espacial e cultural. É importante ressaltar que, no contexto do final dos anos de 1980, a discussão ambiental que ganhava força com a introdução desse conceito conciliador passava por mudanças significativas graças à incorporação de novos atores na sua construção. Até então, a discussão em torno dos problemas ambientais urbanos articulava‑se entre agên‑ cias estatais de um lado e entidades ambientalistas de outro. Desse momento em diante, com a força que essas discussões passaram a ter no cenário político, econômico, social e cultural, como lembram (VIOLA & LEIS, 1992), somaram‑se ao debate outros atores: o socioambientalismo de organizações não governamentais e movimentos sociais que incorporam a discussão ambiental à sua atuação, as instituições científicas e de pes‑ quisa ambiental e, ainda, uma reduzida fatia do empresariado que começava a rever seus

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processos produtivos com base no modelo “sustentável”. O dilema que se apresentava naquele momento para a ideia de “desenvolvimento sustentável” está diretamente ligado à sua característica de fazer convergir dimensões distintas e mais atores com diferentes interesses. Para Viola e Leis, naquele momento o conceito se situava entre: […] a necessidade de continuar ampliando e consolidando suas bases de susten‑ tação político‑social, a fim de transformar‑se numa alternativa realista ao modelo de desenvolvimento dominante, e a necessidade de dar uma forte base científica a suas políticas, a fim de que também sejam realistas, ainda a risco de contradizer os pressupostos ideológicos de alguns setores de sua base político‑social (VIOLA & LEIS, 1992, p.79).

Cada uma das três dimensões — econômica, ambiental e social —, que formam o tripé conceitual do “desenvolvimento sustentável” tem suas racionalidades e seus projetos próprios. A convergência de dimensões tão distintas como essas, que constantemente colocam‑se como antagônicas, jamais poderia ser considerada um esforço fácil. Apesar disso, a construção ideológica de uma alternativa conciliadora que conseguisse encontrar o consenso entre esses pensamentos tão distintos foi muito bem sucedida. Para uma discussão sobre como isso foi possível, é preciso separar o conceito de “desenvolvimento sustentável” como inicialmente proposto e os discursos criados em torno da ideia. Ou seja, é preciso distinguir, de um lado, um conceito teórico, historicamente construído por certos grupos, sob certos pressupostos e com certos objetivos, e, de outro lado, as diferentes representações discursivas construídas a partir daquele conceito, formando um conjunto amplo. Acselrad (2009) elenca as principais matrizes discursivas construídas a partir do conceito do “desenvolvimento sustentável”: a matriz da eficiência, que pretende combater o desperdício da base material do desenvolvimento, estendendo a racionali‑ dade econômica ao “espaço não mercantil planetário”; a matriz da escala, que defende um limite quantitativo ao crescimento econômico e à pressão que ele acaba exercendo sobre o meio ambiente e os recursos naturais; a matriz da equidade, que propõe uma ligação direta entre ecologia e justiça social; a matriz da autossuficiência, que prega um caminho de desvinculação de economias nacionais e sociedades tradicionais em relação aos fluxos do mercado mundial como estratégia apropriada para assegurar a capacidade de autorregulação comunitária das condições de reprodução da base material do desen‑ volvimento; a matriz ética, que coloca a apropriação social do mundo material no debate sobre valores (bem/mal), tentando associar as formas de uso dos recursos naturais à continuidade da vida no planeta. Ressalta‑se que essas diferentes matrizes discursivas só puderam ser acomodadas dentro de um único conceito por sua característica de absoluta vagueza. O conceito, a

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despeito de vários esforços no campo teórico no sentido de tentar operacionalizar suas intenções, é desde sua origem um conceito mais aberto, mais vago, porque nasceu com a missão de conciliar campos distintos e até antagônicos. Para que se tornasse amplamente aceitável, foi preciso que esse conceito perma‑ necesse vago em termos analíticos. Barbier concorda, atestando que: […] o conceito de Desenvolvimento [Econômico] Sustentável é difícil de se com‑ preender analiticamente. Tendo em conta que se está tentando descrever as carac‑ terísticas ambientais, econômicas e sociais de um processo contínuo, a dificuldade reside em chegar a uma definição universalmente aceitável que também seja analiti‑ camente precisa. Nesse sentido, a precisão é sacrificada em nome da aceitabilidade (BARBIER, 1987, p.101, tradução nossa)6.

Isso quer dizer que o enfraquecimento científico do termo está diretamente asso‑ ciado à necessidade de seu fortalecimento em outra direção, como mostram Viola e Leis (1992, p.77), para os quais “o amplo espectro de suas significações tende a fortalecê‑lo politicamente muitas vezes à custa do enfraquecimento de seus conteúdos científicos”. Os mesmos autores, entretanto, ressalvam que essa característica permanente de um consensualismo baseado numa ampla gama de possibilidades significativas não deveria necessariamente levantar suspeitas sobre os atores envolvidos na discussão ambiental que dele fazem uso. Para eles: A polissemia e eventual falta de qualificação científica do conceito, tal como ele aparece em alguns debates nacionais e internacionais, não autoriza a levantar sus‑ peitas contra aqueles que utilizam o conceito, já que seu uso vem demonstrando que abre (em vez de fechar) a possibilidade de convergência e consolidação do ambien‑ talismo como movimento multissetorial complexo (VIOLA & LEIS, 1992, p.92).

Nesse sentido, mesmo concordando com Viola e Leis no sentido de evitar uma demonização do conceito e, principalmente, de quem dele faz uso, é importante perceber que, se nos últimos anos ele esteve muito mais “abrindo” do que “restringindo” as possibi‑ lidades de convergência na discussão ambiental, ele também passou por um processo de consolidação política e de esvaziamento científico. As disputas teóricas em busca da legitimação de diferentes interpretações do “desenvolvimento sustentável” tornam sua construção conflituosa, ainda que seu obje‑ tivo seja o consenso. Os conflitos expõem “diferentes práticas e formas sociais que se pretendem compatíveis ou portadoras de sustentabilidade”, como afirma Acselrad (2009, p.45). Se a disputa dentro do campo ambiental favorece a manutenção de um caráter excessivamente amplo e razoavelmente impreciso do termo “desenvolvimento sustentá‑

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vel”, esse caráter, por sua vez, favorece grupos sociais e agentes de fora desse campo e que fazem uso da expressão para atender a seus propósitos. Dada sua falta de precisão, o termo é capaz de universalizar interesses individuais, já que seu significado muda conforme a necessidade, como um caleidoscópio conceitual. As argumentações em defesa da “sus‑ tentabilidade ambiental” podem trocar radicalmente de escala, indo dos interesses locais para os globais, do presente para o futuro, do gesto imediato aos efeitos de longo prazo, ora em nome do equilíbrio biosférico, ora do patrimônio, da qualidade de vida e do bem comum (ACSELRAD, 2000). Além disso, o “desenvolvimento sustentável” traz uma constante orientação para o futuro, a começar pelo próprio título do relatório que lhe deu origem7. Nesse sentido, o conceito aproxima‑se mais da lógica das práticas em que certos efeitos considerados desejáveis são levados a acontecer. Essa implicação faz com que Acselrad (1999, p.81) o classifique como uma “causalidade teleológica”, na medida em que “a causa é definida pelo fim; a ordem de sequência dos acontecimentos está embutida na condição antece‑ dente definida como causa. É sustentável hoje aquele conjunto de práticas portadoras da sustentabilidade no futuro”. A construção ideológica para sustentar uma ação no presente com base em uma hipótese sobre o futuro traz consigo, obviamente, inúmeros problemas conceituais. Apesar disso, é muito mais razoável acreditar não ser possível reconstruir o presente com base em supostas exigências do futuro (ACSELRAD, 1999).

DESENVOLVIMENTO URBANO SUSTENTÁVEL A ideia geral, levada para as discussões urbanas na forma de um “desenvolvimento urbano sustentável”, pode ser considerada, já de saída, uma contradição em termos, como aponta Costa (2000). Isso porque o termo tenta conciliar o que é, para mui‑ tos, inconciliável: o crescimento da cidade e sua qualificação ambiental, unificando o campo das análises de desenvolvimento urbano com o campo das análises ambientais. Essa aproximação entre as disciplinas foi amadurecida ao longo de muitos anos, durante os quais os estudos ambientais dentro das competências do planejamento urbano per‑ maneceram restritos a nichos técnicos, enquanto os estudos urbanos dentro do campo das ciências ambientais praticamente inexistiam (COSTA, 2000). A tradição do plane‑ jamento urbano no Brasil, construída a partir dos anos de 1970 no extinto Serviço Fede‑ ral de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), traz uma forte marca do setorialismo, tanto na discussão e elaboração das políticas urbanas como na gestão das ações práticas 8. Questões ambientais urbanas, como o saneamento das cidades, foram durante muito tempo tratadas em termos de eficiência com base numa racionalidade técnico‑cientí‑ fica, muito mais do que em termos ambientais, entendidos numa visão mais ampla e sistêmica. Uma visão integrada entre as diversas questões ambientais urbanas ainda é pouco comum no universo do planejamento urbano estatal brasileiro, marcado pelo “setorialismo”9. Por isso, em termos institucionais, o conceito de “desenvolvimento

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urbano sustentável” sempre esbarrou na divisão política e administrativa em que são acomodadas as principais questões ambientais e urbanas. Os entraves técnicos e buro‑ cráticos têm garantido que esse conceito não seja colocado à prova. Mas os pontos de conflito que impedem que o conceito de “desenvolvimento urbano sustentável” seja materializado vão muito além das limitações administrativas e técnicas. Em primeiro lugar, há limitações disciplinares que se colocam de plano. Costa (2000) crê existir um ponto cego de enormes proporções, causado pela hostilidade de longa data do movimento ambientalista em relação à própria existência das cidades. Os estudos sobre as cidades e as análises urbanas surgem, em certa medida, como legitimadoras de um pro‑ cesso de modernidade e industrialização que se inicia no século XIX e avança por todo o século XX. Como uma reação, os estudos ambientais surgem na segunda metade do século XX, combatendo a ideia do progresso ilimitado presente como marca da modernidade. O “desenvolvimento urbano sustentável” propõe a convergência não entre dois pensamentos diferentes, mas principalmente, entre pensamentos antagônicos. Por que então esses dois campos de estudo, ambiental e urbano, passaram a tentar estabelecer um ponto de contato? Retomando a discussão anterior sobre o conceito geral de “desenvolvimento sustentável”, é preciso lembrar que essa construção social se dá num momento em que o sistema produtivo precisou se ajustar a um novo cenário mundial, marcado pelas pressões ligadas à questão ambiental. Nesse contexto, por meio das grandes convenções que estabeleceram os marcos políticos do “desenvolvimento sustentável”, surge o consenso de que qualquer pensamento sobre o desenvolvimento urbano teria que ter a chancela da “sustentabilidade”. As cidades precisavam se tornar “cidades sustentáveis” em função da reestruturação pela qual o sistema econômico mundial passou nas últimas décadas. No modelo de “desenvolvimento urbano sustentável”, as questões ambientais foram incorporadas e podem ser discutidas desde que não comprometam o desenvolvimento urbano. O conceito de “desenvolvimento urbano sustentável” pode ser considerado um discurso amplamente incorporado ao campo do planejamento urbano nas últimas duas décadas. Aceslrad (1999) mostra que um dos principais motivos para a incorporação desse discurso no planejamento urbano é a competitividade por investimentos e planejamentos estratégicos, que perpassa grande parte das discussões sobre gestão urbana. A compe‑ tição entre as cidades para atrair investimentos, fenômeno que ocorre em escala global desde o final do século passado, e a questão da “sustentabilidade ambiental” podem ser consideradas os dois principais eixos temáticos das discussões urbanas no início deste século (OLIVEIRA, 2001). Esses dois campos de discussão estão diretamente ligados, já que, em um cenário mundial de competição acirrada para atrair fluxos de capital e gerar empregos, o “desenvolvimento sustentável” é um modelo útil para tornar as cidades mais “atraentes”. Trata‑se, usando os termos de Oliveira (2001), de uma adaptação das cidades à inevitável competição por recursos e à inevitável preservação do meio ambiente. Por essas razões, o discurso do “desenvolvimento urbano sustentável” tem sido largamente

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incorporado aos discursos hegemônicos da política e da economia, para inserir as cidades nessa competição global. Uma cidade que tenha sua imagem associada a um meio ambiente “saudável” dá um passo à frente na competição com outras regiões também dependentes da entrada de capitais externos, o que determina a utilização da retórica ambientalista, em especial do discurso do “desenvolvimento sustentável” como estratégia para obtenção de legitimidade (BEZERRA, 2005). O uso do termo na competição entre as cidades evidencia, mais uma vez, a importância de sua falta de clareza, como mostra Oliveira (2001, p.200), para quem “as cidades mais competitivas não parecem ser as mais sustentáveis, por mais flexível que possa ser nossa interpretação do significado de sustentabilidade”. O Banco Mundial tem sido um dos grandes incentivadores da incorporação do discurso do “desenvolvimento urbano sustentável” para a promoção de “cidades sustentáveis”. A preocupação das agências internacionais de financiamento de políticas urbanas se dá no sentido de garantir a despolitização dos processos de desenvolvimento, bem como um “desenvolvimento urbano sustentável” em que a dimensão econômica seja norteadora das questões sociais e ambientais. Mais uma vez, o tripé econômico‑social‑ambiental mostra desproporção enorme de forças entre seus três apoios. Com o pretexto de que “a sustenta‑ bilidade da cidade é contemplada na exigência de que os atores econômicos assumam a res‑ ponsabilidade total dos efeitos negativos que possam exercer sobre a cidade” (OLIVEIRA, 2001, p.186), as tomadas de decisão nos processos engendrados pelo “desenvolvimento urbano sustentável” são colocadas nas mãos daqueles atores que detêm poder econômico. Dessa forma, uma visão de que as cidades devam ser gerenciadas à maneira das empresas foi incorporada às discussões sobre o planejamento urbano, diretamente conec‑ tada ao conceito de “desenvolvimento urbano sustentável”. Essa visão de “gestão urbana” (urban management) propõe uma regulação que corrija as distorções provocadas pelo mercado, a partir de agentes ligados ao próprio mercado. Como argumenta Costa (2008), os atores centrais dessa “gestão urbana”, as instâncias onde são tomadas as decisões e as estratégias utilizadas constituem, antes de tudo, um problema das cidades atuais. A aplicação da ideia de “desenvolvimento sustentável” aos discursos e práticas ligados ao fenômeno urbano, na forma de “desenvolvimento urbano sustentável”, ampliou as limitações e contradições que o termo original trazia. O “desenvolvimento urbano sus‑ tentável” não só é uma contradição em termos pelos conflitos inerentes à tentativa de fazer convergir os olhares do campo das análises e planejamento urbano com aqueles oriundos das disciplinas ambientais, mas também, e talvez principalmente, pelas contradições que a própria ideia de “sustentabilidade” contém e que são explicitadas no território urbano. A construção da cidade não se faz pela convergência de interesses econômicos, sociais e ambientais, mas sim, pelo constante conflito entre eles. O “desenvolvimento urbano sustentável” materializa e evidencia o verdadeiro cará‑ ter da “modernização ecológica”. Esse é nome que recebe o conjunto de estratégias surgi‑

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das a partir da década de 1990, com viés neoliberal, com o objetivo de desfazer o impasse trazido pela questão ambiental, sem em nenhum momento considerar sua articulação com os problemas sociais. Leff explica o contexto em que essa ideia nasce: […] os princípios ambientais, antes de enraizar‑se em um processo de democracia social e de transformação produtiva para eliminar a exploração do homem e da natureza, estão sendo assimilados pelos poderes estabelecidos, os que medeiam a mudança social. O poder manipula o sentido do conceito antes que este tenha transformado as relações de poder (LEFF, 1994, p.388, tradução nossa)10.

O quadro geral que se configurava era o de um fortalecimento das políticas neolibe‑ rais, tanto nos países centrais do capitalismo como em países em desenvolvimento, como o Brasil. Acselrad explica melhor a ideia de “modernização ecológica” e sua vinculação com as políticas neoliberais que se espalharam pelo mundo capitalista no final do último século: A estratégia de modernização ecológica é aquela que propõe conciliar o cresci‑ mento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colabo‑ ração e no consenso. Além de legitimar o livre‑mercado como melhor instrumento para equacionar os problemas ambientais, esta concepção procurou fazer do meio ambiente uma razão a mais para se implementar o programa de reformas liberais (ACSELRAD et al., 2009, p.14).

A noção de que as cidades deveriam ser mais “sustentáveis” está ligada diretamente ao conceito de “modernização ecológica”. Uma cidade “sustentável” é aquela que “para uma mesma oferta de serviços, minimiza o consumo de energia fóssil e de outros recursos materiais, explorando ao máximo os fluxos locais, satisfazendo o critério de conservação de estoques e de redução do volume de rejeitos” (ACSELRAD, 2009, p.54). Combater desper‑ dícios, promover reciclagem, modernizar os processos produtivos são ações que atestam a eficiência ecológica dos setores produtivos aos olhos do grande público, mas funcionam, de fato, para garantir um aumento da eficiência econômica, o que permite que essas empresas (ou cidades) se ajustem num cenário de maior competitividade e de crises internacionais. A “modernização ecológica” está ligada diretamente à matriz da eficiência, construída no discurso do “desenvolvimento urbano sustentável”, com base na ideia de “gestão racional dos recursos naturais”. Dessa forma, a discussão ambiental torna‑se uma oportunidade de negócios para a cidade, em vez de uma restrição a eles (ACSELRAD, 2009). A “modernização ecológica” aplicada ao desenvolvimento das cidades tem uma relação direta com o consumo e com a maneira pela qual ele estrutura a sociedade capi‑ talista. Isso ocorre principalmente de duas formas: no discurso que legitima a venda de

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um produto como “sustentável” e, de maneira mais radical, na própria mercantilização da natureza. No primeiro caso, o conceito de “desenvolvimento urbano sustentável” ajuda a vender mercadorias, atribuindo a elas uma chancela de legitimidade ecológica que cons‑ titui um adicional no valor de troca mais do que propriamente no valor de uso. Graças à comunicação do consumo, passa a ser explorado pelos que vendem e exigido pelos que consomem. No território urbano de hoje, as construções sustentáveis (Green Buildings) e os condomínios sustentáveis são exemplos do discurso do “desenvolvimento sustentável” transformado em objeto de status e consumo, peças de marketing imobiliário (BUENO, 2011). Da mesma forma, as certificações que garantem uma suposta qualidade ambiental aos empreendimentos imobiliários e às ações de intervenção urbana criadas na esteira do chamado “planejamento estratégico” constituem uma espécie de “maquiagem verde” (LYNCH, 2001), tornando‑os mais atraentes para o mercado. No segundo caso, tem‑se a situação em que a própria conservação da natureza passa a ser vantajosa para os processos de acumulação de capital, dentro dos mecanis‑ mos de desenvolvimento urbano. Nessas situações, a natureza perde seu valor coletivo para potencializar renda diferencial (COSTA, 2006). Mas “natureza” é um termo amplo. Interessaria ao capital produtivo a conservação da natureza num sentido amplo? Acselrad (2004) mostra que o processo de apropriação mercantil da natureza cria uma separação entre o que seria uma “natureza natural”, digna de ser preservada dos apetites do capital, e uma “natureza ordinária”, que pode ser consumida sem nenhum problema. Obviamente, interessa a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais em situações em que essa conservação não comprometa os processos produtivos capitalistas, já que a natureza, ao lado do espaço e da força de trabalho, faz parte das condições gerais de produção. Nesses casos, a “modernização ecológica” pode ser vista como um lado mais pragmático, ou menos biocêntrico, do “desenvolvimento sustentável”. Nesse cenário, os problemas ambientais são considerados quanto à possibilidade de geração de vantagens econômi‑ cas, e nunca associados aos problemas sociais. Esse parece ser o ponto chave que, ao mesmo tempo, qualifica o uso dessas estratégias pelo mercado e pela visão ligada à “gestão urbana”, mas as torna pouco aplicáveis a situações que não atraiam o interesse do capital, como, por exemplo, as áreas urbanas degradadas no aspecto socioambiental. Acselrad atesta essa afirmação, já que para ele: O desperdício, considerado principal problema ambiental pelo pensamento domi‑ nante, faz com que empresas e governos tendam a propugnar ações da chamada ‘mo‑ dernização ecológica’, destinadas essencialmente a promover ganhos de eficiência e a ativar mercados. Agem exclusivamente dentro da lógica econômica, atribuindo ao mercado a capacidade institucional de resolver a degradação ambiental. Nenhuma referência é feita à associação dentre degradação ambiental e injustiça social (AC‑ SELRAD, 2000, p.8).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante reafirmar que não se pode retirar do “desenvolvimento sustentável” seus inegáveis méritos na construção de um debate, nos níveis global e local, sobre o meio ambiente em relação à produção do espaço urbano. Tampouco pode ser‑lhe retirado o mérito de ter influenciado diretamente na elaboração do arcabouço jurídico urbano no Brasil e em várias partes do mundo, o que representou enorme avanço. Mas, mais importante ainda do que esses reconhecimentos, é preciso entender o conceito de “desenvolvimento sustentável” como uma tentativa de minimizar a degra‑ dação ambiental gerada pelos processos produtivos, sem nenhuma pretensão de refor‑ mulá‑los. A inclusão de certos critérios impostos pela discussão ambiental a esses pro‑ cessos representou apenas mais uma externalidade que poderia ser — e foi — absorvida pelos mercados. As teorias da economia neoclássica já mostravam que problemas sociais, e agora ambientais, podem ser considerados problemas derivados de falhas do mercado (externalidades) e constituem resultados indesejáveis que tendem a ser resolvidos pelo próprio funcionamento do sistema, de forma espontânea ou induzida. A abordagem neo‑ clássica da economia em relação à questão ambiental não produziu nenhum pensamento novo. Apenas incorporou essa nova variável em seus esquemas tradicionais baseados no individualismo, no mercado e na máxima eficiência. A cidade criada ou recriada hoje com o título de “cidade sustentável” pode até trazer alguns avanços ambientais, mas é essencialmente a mesma cidade de meio século atrás. Passado um quarto de século de sua criação, a noção de “desenvolvimento sustentável” mostra‑se cada vez mais intangível e inatingível — deslocando esse conceito, no campo do planejamento urbano, da condição de paradigma para a posição de mito.

NOTAS 1. Artigo elaborado a partir da tese de A.L. PRADO, intitulada “Ao fim da cidade: conjuntos habita‑ cionais nas bordas urbanas”, Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. 2. Alguns autores (CARNEIRO, 2005; SOUZA, 2010) alegam que o termo surgiu alguns anos antes da Conferência de Estocolmo, em 1972. Ambos reconhecem, contudo, que o termo só ganhou notoriedade com o Relatório Brundtland. 3. O livro “The Autonomous House”, de 1975, de Brenda e Robert Vale, é um marco no campo da “ar‑ quitetura sustentável”, assim como o livro “Design with Nature”, de 1967, escrito por Ian McHarg, representou um importante avanço para o planejamento de cidades ambientalmente corretas VALE, B. e VALE, R. (1975), McHARG (1992). 4. “[…] the sustainable development discourse purposes do reconcile two old enemies — economic gro‑ wth and the preservation of the environment — without significant adjustments to the market system. This reconciliation is the result of a complex discursive operation involving capital, representations of nature, management, and science. In the sustainable development discourse, nature is reinvented as environment so that the capital, note nature and culture, may be sustained” (ESCOBAR, 1996, p.49).

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5. Os dois termos hoje não significam exatamente a mesma coisa, segundo alguns autores. MONTIBEL‑ LER‑FILHO (2001, p.45) defende que o “ecodesenvolvimento” volta‑se ao atendimento das necessida‑

des básicas da população, através da utilização de tecnologias apropriadas a cada ambiente e partindo do mais simples ao mais complexo, enquanto o “desenvolvimento sustentável” enfatiza o papel de uma política ambiental e a responsabilidade com os problemas globais e com as futuras gerações. 6. “[…] the concept of Sustainable Economic Development is a difficult one to grasp analytically. Given that one is attempting to describe the environmental, economic and social features of an ongoing process, the difficulty lies in arriving at a universally acceptable definition that is also analytically precise. More often than not, precision is sacrificed for acceptability” (BARBIER, 1987, p.101). 7. O relatório chamou‑se “Our common future”; em português, “Nosso futuro comum”. 8. Sobre a evolução do setorialismo no Planejamento Urbano no Brasil (MONTE‑MÓR) 2007. 9. Raquel Rolnik considera o setorialismo o maior entrave no campo do urbanismo hoje no Brasil (ROLNIK, 2008). 10. […] los princípios ambientales, antes de arraigarse em un processo de democracia social y de trans‑ formación productiva para eliminar la explotación del hombre e da la naturaleza, están siendo asimi‑ lados por los poderes establecidos, lo que mediatiza el cambio social. El poder manipula el sentido del concepto antes de que éste haya transformado lãs relaciones de poder (LEFF, 1994, p.388).

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Unicamp, 1992. p. 73‑102.

ANDRÉ LUIZ PRADO | Universidade Federal de Minas Gerais | Escola de Arquitetura | Departa‑ mento de Projetos | R. Paraíba, 697, Funcionários, 30130‑140, Belo Horizonte, MG, Brasil | E‑mail: <andreluizprado@ig.com.br>.

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Recebido em 20/9/2013, reapresentado em 20/2/2014 e aprovado em 1/4/2014.

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PLANEJAMENTO E SOCIALISMO: NOTAS PARA UMA BIOGRAFIA INTELECTUAL DO URBANISTA RAYMOND UNWIN PLANNING AND SOCIALISM: NOTES FOR AN INTELLECTUAL BIOGRAPHY OF THE URBAN PLANNER RAYMOND UNWIN | PLANIFICACIÓN Y SOCIALISMO: APUNTES PARA UNA BIOGRAFÍA INTELECTUAL DEL PLANIFICADOR URBANO RAYMOND UNWIN LUIZ AUGUSTO MAIA COSTA

RESUMO Desconhece‑se que haja na historiografia brasileira estudo exclusivamente dedi‑ cado à obra de Raymond Unwin. A pertinência de um estudo como esse se deve à conhecida existência de um fluxo de ideias propagadas a partir das obras de Unwin e de seu sócio Barry Parker, que reverberaram aqui no Brasil, sobretudo em São Paulo. Esse influxo de ideias e proposições alimentou o debate que acabou por conformar um campo do saber erudito paulista acerca da produção do espaço construído no estado. Buscou‑se, nesse artigo, focar esforços para compreender as bases ideológico‑políticas do arquiteto, relacionando‑as por um lado com o contexto político inglês do período e, por outro, com o próprio desenvolvimento da “ciência” do planejamento. Este estudo defende que concepções éticas, esté‑ ticas e ideológicas constituíam a base do pensamento arquitetônico‑urbanístico de Unwin, de modo que se busca delinear relações entre suas concepções e os reformadores sociais ingleses do período. PALAVRAS‑CHAVE: Inglaterra. Planejamento urbano. Raymond Unwin. Socialismo.

ABSTRACT A Brazilian historiographical study exclusively devoted to the work of Raymond Unwin is unknown. The relevance of such a study is due to the known existence of flow of ideas influenced by the work of Unwin and his partner Barry Parker, which reverberated in Brazil particularly in São Paulo. This influx of ideas and propositions fueled the debate that would eventually create a field of scholarly knowledge in São Paulo regarding the production of built space in the state. Our endeavor is to focus our efforts to understand the political ideologies of Unwin, relating them to the English political context of the period of the 1920s on the one hand and, on the other, to the actual development of the science of planning. We will argue that the ethical, aesthetic, and ideological views constituted the basis for Unwin’s architectural‑urban thinking. To this end we will seek to establish relationships between Britain’s social reformers and Unwin. KEYWORDS: England. Urban planning. Raymond Unwin. Socialism.

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RESUMEN Se desconoce que haya en la historiografía brasileña un estudio dedicado exclusi‑ vamente a la obra de Raymond Unwin. La relevancia de un estudio de este tipo se debe a la existencia conocida de un flujo de ideas propagadas a partir del trabajo de Unwin y su compañero Barry Parker, que repercutió en Brasil, especialmente en São Paulo. Este influjo de las ideas y las proposiciones alimentó el debate que finalmente conformó un campo de conocimiento erudito de São Paulo sobre la producción del espacio construido en el estado. En este artículo se trató de enfocar esfuerzos para comprender las bases ideológico‑políticas del arquitecto relacionándolas, por un lado con el contexto político inglés de la época, y por otro, con el propio desarrollo de la “ ciencia” de la planificación. Este estudio defiende qué concepciones éticas, estéticas e ideológicas constituían la base del pensamiento urbano‑arquitectónico de Unwin, de modo que se trata de delinear relaciones entre sus concepciones y los reformadores sociales ingleses de la época. PALABRAS CLAVE: Inglaterra. Urbanismo. Raymond Unwin. Socialismo.

INTRODUÇÃO Raymond Unwin (1863‑1940) nasceu na vila de Whiston, em Yorshire, tendo crescido em Oxford. Filho de William Unwin e Elizabeth Sully, pouco se sabe sobre sua vida pes‑ soal. Filho caçula, Unwin sopesou entrar para a Igreja Anglicana, mas abandonou essa possibilidade ao se aproximar das questões sociais, que acabaram por constituir o esteio de suas posturas futuras, tanto pessoais como profissionais. Ao abrigo dos conselhos de cônego Samuel Barnett, sua primeira grande influência, tornou‑se um socialista militante convicto e ativo (CURL, 2006; COLUMBIA ENCYCLOPEDIA, 2014). Raymond estudou na Magdelen College School, conceituada escola ligada à Uni‑ versidade de Oxford. Aos 21 anos, tornou‑se aprendiz de engenharia e arquitetura, tendo se dedicado à área. Interessou‑se ainda pela sociologia, tendo sido inspirado pelas teorias de reformadores sociais, tais como Arnold Toynbee, Edward Carpenter, John Ruskin e William Morris. Ao longo de sua vida, concomitantemente ao exercício de sua profissão, Unwin contribuiu regularmente com artigos para jornais socialistas. Em 1884, ele estava em Chesterfield, norte da Inglaterra, para onde foi a fim de tornar‑se aprendiz de engenheiro da Staveley Coal and Iron Company. Em 1885, encontrava‑se em Manchester, onde teria conhecido William Morris, e tornou‑se primeiro‑secretário da Liga Socialista de Manchester, fundada por este último. Desse período, destaca‑se seu papel de militante socialista, tendo escrito artigos para jornal e proferido palestras sobre o tema (CRICK, 1994). Em 1887, retornou a Chesterfiel para trabalhar como chefe dos projetistas na mesma Staveley Coal and Iron Company, onde atuou como engenheiro e arquiteto. A partir de 1890 passou a planejar também as vilas operárias da Companhia.

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Dessa época, destacam‑se dois fatos importantes para o seu percurso profissional: primei‑ ro, associou‑se à Sheffield Socialist Society, fundada por iniciativa de Edward Carpenter, em 1886; e, segundo, começou a trabalhar em conjunto com Barry Parker, que, além de seu amigo e primo, tornou‑se, anos mais tarde, seu cunhado (DAY, 1981). Os dois arquitetos ingleses, desde 1891, acalentavam a ideia de trabalhar em con‑ junto. Entretanto, foi só a partir de 1896 que a longa e profícua parceria teve início. Em colaboração, publicaram alguns clássicos da urbanística mundial, tais como The art of building a home: a collection of lectures and illustrations, de 1901 (UNWIN & PARK, 1901); Cottage plans and common sense, em 1902; e o artigo Cottages near a town exhibit, em 1903. Ainda em conjunto, a partir de 1902, planejaram a cidade‑modelo de New Earswick Village, perto de York. Um ano depois, projetaram a primeira cidade‑jardim para Ebenezer Howard: Letchworth (OTTONI, 1996). Já à época, Unwin se inseria na controvérsia então existente entre cidades‑jar‑ dim e subúrbios‑jardim, defendendo que estes últimos eram uma forma válida de ordenação e controle da expansão das cidades existentes, proporcionando boa quali‑ dade de vida para seus moradores. Críticas a esse expediente não faltaram, uma vez que os “puristas” da concepção howardiana viam a proposta como uma traição ao modelo teórico daquele. A despeito das censuras e coerente com o que defendiam em seus escritos, Unwin e Parker projetaram Hampstead Garden Suburb (1905‑1914), nos arredores de Londres. Essa obra foi tão impactante que suas características in‑ fluenciaram a elaboração de projetos tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos da América (E.U.A.). Exemplo disso foi o desenvolvimento da concepção de neigh‑ borhood unit, elaborada por Clarence A. Perry, e a criação de Radburn, no estado de New Jersey, em 1929 (DAY, 1981). Em 1909, Unwin publicou sua obra‑prima Town Planning in Pratice (com ilustra‑ ções de Parker) (UNWIN, 1920) que exerceu forte impacto sobre a urbanística mundial da época e garantiu a seu autor o lugar de um dos maiores expoentes do urbanismo inglês do início do século XX. Um ano depois, como membro honorário do Royal Institute of British Architects, participou da comissão organizadora da Town Planning Conference, que teve lugar em Londres entre 10 e 15 de outubro de 1910. A conferência conseguiu reunir os mais importantes urbanistas da época, como Rudolf Eberstadt, Albert Brinck‑ mann, Augustin Rey, Louis Bonnier, Thomas Mawson e Stanley Adshead, além de Joseph Stübben, Daniel Burnham, Eugène Hénard, Patrick Geddes, Ebenezer Howard e Ray‑ mond Unwin, entre outros de uma lista imensa de urbanistas paradigmáticos do período (ROYAL INSTITUTE OF BRITISH ARCHITECTS, 1911). Ao evento esteve presente o urbanista paulistano Victor da Silva Freire (COSTA, 2005). Completando o conjunto de textos seminais escrito pela dupla de arquitetos, tem‑se Nothing gained by overcrowding que, publicado em 1912, exerceu grande influência no desenvolvimento de habitações com ocupação de baixa densidade, tanto na Inglaterra

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como no resto do mundo. Igualmente, é enorme a relação de textos mais curtos e menos famosos escritos por Unwin. Entre 1911 e 1914, Raymond Unwin ocupou uma das primeiras cadeiras de Town Planning na Universidade de Birmingham. Ainda no ano de 1914, foi nomeado Chief Town Planning Inspector of the Local Government Board. Antes, porém, em 1913, foi um dos fundadores do Town Planning Institute, tendo sido presidente da instituição no perío‑ do de 1915 — 1916 (CURL, 2006; COLUMBIA ENCYCLOPEDIA, 2014). Durante a Primeira Guerra Mundial dirigiu a divisão de habitação do Ministry of Munitions, tendo tido a oportunidade de projetar as cidades que cresciam ao redor das indústrias de armamento. Posteriormente, ocupou o cargo de arquiteto‑chefe de habitação do Ministério da Saúde. Em 1922, tornou‑se consultor do New York Regional Plan, nos E.U.A. Unwin se aposentou do serviço público inglês em 1928 e, entre 1929 e 1933, atuou como conselheiro técnico do Greater London Regional Town Planning Committee; de 1931 a 1933, foi presidente do Royal Institute of British Architects; nesse entremeio, em 1932, recebeu o título de “Sir”, conferido pela Coroa Inglesa. No ano seguinte, trabalhou como consultor do Presidente dos E.U.A., Franklin D. Roosevelt, no New Deal — série de programas socioeconômicos implementados naquele país entre 1933 e 1937. Em 1936, foi nomeado professor na Columbia University, cargo que ocupou até morrer em Lyme, Connecticut. Unwin recebeu muitos títulos, como os das universidades de Praga, Toron‑ to, Manchester e Harvard, as quais lhe conferiram diplomas honorários (CURL, 2006; COLUMBIA ENCYCLOPEDIA, 2014). Essa sucinta biografia apresenta Raymond Unwin de forma sumária. Para se com‑ preender o alcance de sua obra, seria preciso investigar as várias facetas que ela adquiriu ao longo dos seus 77 anos de vida. Não é possível abranger, no curto espaço de um artigo, toda a gama de questões e nuances de sua obra. Daí que a seguir serão abordadas suas bases ideológicas, as quais alicerçam todas as questões tratadas por ele no âmbito da ar‑ quitetura e do urbanismo.

RAYMOND UNWIN: SEUS IDEAIS Grosso modo, duas são as entradas que possibilitam apreender o pensamento e a obra de Raymond Unwin: a reforma social e a questão da habitação para “o homem comum” inglês na era vitoriana. Essas duas questões são mais que complementares: estão embrincadas de forma indissolúvel no processo que acabou por delinear o Urban Planning mundial e, em particular, o anglo‑saxônico. Preeminentes atores sociais do período exerceram papel relevante na constituição do pensamento de Unwin, bem como na formatação de suas atividades profissionais, en‑ tre os quais se destacam Samuel Augustus Barnett, Arnold Toynbee, Edward Carpenter, John Ruskin e William Morris.

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Cônego anglicano inglês, Samuel Augustus Barnett (1844‑1913) foi um reforma‑ dor social extremamente ativo, cujas propostas e ações transcenderam a Inglaterra, re‑ percutindo em toda a Europa e E.U.A. Barnett era intimamente ligado ao movimento de reforma urbana inglesa do século XX, sobretudo no que concerne à questão da habitação. Atuando em áreas altamente adensadas — nas quais as condições de habitabilidade eram precárias —, ele se empenhou em organizar as comunidades dessas áreas em “Sociedades de Caridades”, que se voltariam para a produção de moradias de boa qualidade, destina‑ das à classe operária. Propunha que tais assentamentos promovessem uma melhoria na qualidade de vida dos trabalhadores, no que se refere tanto às condições físicas como à melhoria da educação e nível cultural dos moradores. Seu estratagema era criar moradias universitárias perto das casas dos operários, fazendo com que estudantes e trabalhadores residissem próximos e, assim, mutualmente se ensinassem e aprendessem (TILL, 2013). Dentro desse espírito é que, em 1884, em Londres, foi constituído o Toynbee Hall, primeira residência universitária concebida nesses moldes, cujo fundador e primeiro di‑ retor foi Barnett. Consta que, quatro anos depois, em 1888, Jane Addams, importante reformadora social norte‑americana, visitou o Toynbee Hall, levando a experiência para os E.U.A. e dando origem a um estabelecimento cuja missão era seu similar: Hull House, em Chicago (HALL, 2005). A história do Toynbee Hall remete ao ano de 1875 quando, patrocinado por Ar‑ nold Toynbee, Barnett e sua esposa Henrietta fizeram a primeira de muitas viagens ao distrito de Whitechapel, em Londres. Ressalta‑se que Henrietta exerceu um papel relevante na produção do espaço construído na Inglaterra, tendo sido a mentora do subúrbio jardim de Hampsted. Arnold Toynbee (1852‑1883), economista inglês, lecionava história econômica no Balliol College, em Oxford; contudo, mais que suas análises sobre economia, foi seu com‑ promisso social que o tornou famoso. Toynbee era um defensor apaixonado das questões sociais, sobretudo aquelas referentes à condição do trabalhador da época. Irresignado com a situação de degradação, sofrimento e pobreza em que os trabalhadores se encontravam, ele via nos sindicatos a possibilidade de superação desse estado de coisas. Consta que o economista percorreu diversas cidades industriais proferindo conferências destinadas à sensibilização e conscientização dos trabalhadores. Dentre as muitas localidades por ele visitadas, destaca‑se particularmente a dos trabalhadores de Whitechapel, aos quais se associou, chegando inclusive a providenciar alojamentos e livrarias para eles. Arnold Toyn‑ bee morreu aos 30 anos. Em sua memória, os Barnetts ergueram o complexo de habitação social Toynbee Hall em Whitechapel. Situado em East End de Londres, o prédio original do Toynbee Hall foi projetado por Elijah Hoole e construído entre 1884 e 1885. Atualmente, só uma parte do edifício neogótico ainda existe (LOOKING…, 2013). O papel desempenhado pelos Barnetts e Toynbee na vida e obra de Unwin foi pro‑ fundo e duradouro; entretanto, eles não foram os únicos a exercê‑lo. Outra influência

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decisiva foi a de seu amigo Edward Carpenter (1844‑1929). Socialista, filósofo, poeta e ativista gay inglês, Carpenter foi um homem singular, que manteve estreitos laços com as principais figuras internacionais de sua época. Entre seus feitos, destaca‑se sua contundente participação na fundação da Sociedade Fabiana1 (PENCH, 1988) e do Partido Trabalhista Britânico. Suas principais ideias sobre a sociedade foram divulgadas no seu livro Civilisation: its cause and cure and other essays, publicado em 1889. Nele, defende a ideia de que as sociedades, ao longo de sua existência (pois ele acreditava que as mesmas “nasciam”, se desenvolviam e “morriam”), passam por uma determinada for‑ ma de doença: a civilização. A cura para tal mal estaria em uma associação mais estreita de seus membros com a terra, e em um maior desenvolvimento da “natureza interior” do homem (CARPENTER, 2013). Ainda que tais posições estivessem em sintonia com as ideias desenvolvidas por outros intelectuais da época, ele se distanciava destes pelo componente mítico de suas posições, o que leva alguns autores a denominá‑las “socia‑ lismo místico” (TSUZUKI, 1980). Daqui se extraem duas concepções muito caras a Unwin em particular, e à urbanís‑ tica do período em geral. A primeira é a ideia de uma sociedade em crise, doente que, por extrapolação, levaria a uma cidade igualmente em crise e igualmente doente. A segunda é a ideia de que a cura dessas sociedades passaria primeiro por uma reformulação interna das mesmas, e que a referida “cura” estaria atrelada, no mínimo, a uma compatibilização entre a vida da cidade e do campo, ou, nos termos de Carpenter, atrelada a uma volta à ter‑ ra. Se a primeira concepção acabou por desembocar no delineamento das duas ciências da cidade então em gestação, a segunda atrela‑se a modelos ideais de cidade/sociedade, que, no caso, podem ser relacionadas às propostas das cidades‑jardim de Ebenezer Howard. Outro ponto de contato entre Unwin e Carpenter era a Igreja Anglicana. Enquanto o primeiro pensou em entrar para ela e manteve estreita relação com o cônego Barnett, o segundo tornou‑se pastor em 1868. Foi aí que, sob a influência de Frederick Denison Maurice, ministro da Igreja e líder do movimento dos Socialistas Cristãos, Carpenter to‑ mou o partido da causa operária. Seu período nessa instituição durou pouco. Não muito depois de seu ingresso, ele desenvolveu forte repúdio ao que qualificava de falsidade da so‑ ciedade vitoriana, o que, segundo consta, o fez deixar a Igreja em 1874 (TSUZUKI, 1980). Após, Carpenter dedicou‑se a ministrar aulas, voltadas sobretudo para a classe tra‑ balhadora. No entanto, acabou por constatar que elas eram mais frequentadas pela classe média — que não tinha muito interesse no que ele estava a dizer —, do que pelos trabalha‑ dores, que eram afinal seu público alvo. Frustrado ao ver seus intuitos de democratizar o ensino universitário para os mais pobres ir por água abaixo e, ao mesmo tempo, mais radical em suas convicções, em 1883 Carpenter entrou na Social Democratic Federation (SDF), época e que se mudou para a cidade de Sheffield. Provavelmente, foi quando conheceu William Morris e dele tornou‑se amigo. Ao certo, o que se sabe é que em 1884 ambos dei‑ xaram a SDF para ingressar na Socialiste League, fundada no ano anterior (CRICK, 1994).

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Antes, porém, ainda em 1883, Carpenter, sob o influxo do livro England for All, de Henry Hyndman2 e de Morris, se predispôs a fundar uma sociedade na cidade de Sheffield, que fosse a afiliada local da SDF. A ideia foi abandonada quando da cisão da SDF e da subsequente criação da Liga Socialista. Em 1886, essa socieda‑ de se configurou como a Sheffield Socialist Society, uma das primeiras organizações socialistas da Inglaterra (CRICK, 1994), constituída como sociedade independente e, em 1887, Raymond Unwin se afiliou a ela. A relação entre ele e Carpenter pode ser apreendida quando dá a seu primeiro filho o mesmo nome do amigo, Edward, e o convida para padrinho do garoto, o que indica o grau de proximidade entre as concep‑ ções ideológicas dos dois, na vida pessoal e profissional (CURL, 2006; COLUMBIA ENCYCLOPEDIA, 2014). No final da década de 1880, Carpenter estava cada vez mais “atraído” pela vida junto à natureza. Foi nesse contexto que, sob a influência de John Ruskin, desenvolveu suas principais ideias socialistas. Opondo‑se radicalmente à industrialização da era vito‑ riana, ele propunha uma comunidade utópica na qual o futuro adquiriria a forma de um comunismo primitivo. Não se sabe ao certo, como se deu o encontro de Carpenter com Ruskin, embora seja conhecido que o encontro deste com Unwin deu‑se por iniciativa do arquiteto‑ urbanista. A despeito de John Ruskin (1819‑1900) ter tido uma vida intelectual muito ativa, com uma produção vasta que se estendia por campos tão diversos como poesia, geolo‑ gia, botânica e economia política, entre outros, é como crítico social e, sobretudo, como crítico de arte e desenhista que ele é mais conhecido. O legado que deixou repercute até hoje, sendo imprescindíveis os seus trabalhos sobre a relação da arte e arquitetura com a história, a memória e o patrimônio (HARRISON, 2010). Era um duro crítico do capita‑ lismo e da divisão do trabalho na produção industrial, que, na confecção dos artefatos por partes, subtraía toda a dignidade do trabalho e do trabalhador. Daí que ele via nos objetos industrializados uma degradação tanto formal quanto moral. Nesse contexto, é fácil com‑ preender o porquê de sua produção intelectual ser antes de qualquer coisa uma imbricada relação entre estética e ética. O pensamento de Ruskin vinculava‑se ao movimento literário, estético e ideológi‑ co conhecido como Romantismo, que sobrepunha a sensibilidade subjetiva e emotiva à razão. Em 1851, ele se tornou defensor e patrono da Irmandade Pré‑Rafaelita, uma das fontes inspiradoras do Movimento Arts & Crafts. Mais conhecido simplesmente como Pré‑Rafaelita, esse grupo de artistas ingleses, fundado em 1848 e organizado ao modo de uma confraria medieval, era constituído sobretudo por pintores. Eles se antagonizavam abertamente com a arte acadêmica, que seguia a tradição da pintura ocidental, forjada a partir da obra do pintor renascentista italiano Rafael Sanzio, ao mesmo tempo que busca‑ vam devolver à arte a sua pureza e honestidade que acreditavam existir na arte gótica. Daí advogarem um revival medievalista (BARRINGER et al., 2012).

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William Morris (1834‑1896), designer, pintor, escritor e ativista social, foi um dos criadores do Movimento Arts & Crafts e, sem dúvida, o mais famoso de seus expoentes. Nascido em família rica, Morris estudou em Oxford, onde conheceu seus amigos e cola‑ boradores de toda a vida — Dante Gabriel Rossetti, Edward Burne‑Jones, Ford Madox Brown e Philip Webb, todos membros da irmandade Pré‑Rafaelita —, e onde entrou em contato com a obra de John Ruskin (BARRINGER et al., 2012). Assim como Ruskin, Morris era radicalmente contrário ao mundo egresso da Revo‑ lução Industrial; como aquele, via no período gótico a excelência da arte, sobretudo aquela ligada à arquitetura e às artes decorativas. Rechaçando os objetos fruto da manufatura industrial, produtora de artefatos que reputava de baixa qualidade, ele propunha o retorno ao artesanato. Aqui, sua intenção era mais que aferir qualidade, beleza e dignidade aos objetos assim produzidos: era também aferir os mesmos atributos ao artesão que os pro‑ duzia. A grande contradição (e frustração) de Morris foi o descompasso entre seu desejo de criar objetos a preços acessíveis para as classes menos favorecidas e o fato de, ao invés disso, produzir objetos extremamente caros cujo acesso só era possível aos mais abastados (MacCARTHY,1994). Ao deixar Oxford, Morris foi trabalhar em um escritório de arquitetura, onde ficou clara a sua preferência pelas artes decorativas. A despeito disso, ele e Webb conceberam e construíram a famosa Red House. Presente de Morris a sua esposa, a casa foi projetada em 1859, por ele em parceria com Philip Webb. As pinturas murais e os vitrais foram conce‑ bidos por Edward Burne‑Jones, e a decoração interna ficou a cargo de Morris e da esposa. A construção é tomada por muitos como modelo exemplar da arquitetura produzida pelo Movimento Arts & Crafts. Em 1861, juntamente com Ford Madox Brown, Edward Burne‑Jones, Charles Faulkner, Dante Gabriel Rossetti, Marshall PP e Philip Webb, Morris fundou a firma Morris, Marshall, Faulkner & Co., que perdurou com esse nome até 1875. O objetivo da empresa era criar, fabricar e vender artigos artesanais relacionados com as artes decora‑ tivas — isto é, todo tipo de objeto voltado para a casa: mobiliário, tecido, tapetes, vitrais e pinturas, entre outros. Sendo seus fundadores egressos da Irmandade Pré‑Rafaelita, a empresa se pautava tanto na estética como no modo de produzir medieval. A partir de 1875 até 1949, quando foi fechada, a empresa funcionou com a epígrafe de Morris & Co. Seu período de maior influência ocorreu durante as décadas de 1880 e 1890, auge do Movimento Arts & Crafts (MacCARTHY, 1994). Ainda no campo das artes, em 1877, Morris e outros membros da Irmandade Pré‑Ra‑ faelita fundaram a Society for The Protection of Ancient Buildings. A sociedade intentava se opor ao modo como a arquitetura antiga estava sendo tratada na Inglaterra vitoriana. Ele de‑ fendia que os edifícios antigos fossem protegidos, mas não restaurados, a fim de que sua his‑ tória fosse preservada e eles fossem transformados em patrimônio cultural. Como resultado indireto de sua atuação no campo da preservação, em 1894 foi fundada a National Trust3.

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Sua atuação como ativista social nada deixou a desejar a sua atuação no campo das artes. Tomado como um dos fundadores do Movimento Socialista na Inglaterra, Morris trabalhou diretamente com Eleanor Marx, filha de Karl Marx, e com Friedrich Engels no processo que desencadeou aquele movimento. Apesar de errática, sua atuação politica sempre foi constante. Data de 1879 o início de sua atuação política de forma mais ativa, quando se tornou tesoureiro da Liga Nacional Liberal. Dois anos depois abandonou defi‑ nitivamente o Partido Liberal e se atrelou à política do movimento socialista. Já com essa orientação ideológica, em 1883 filiou‑se à Federação Democrática, que veio a se tornar, um ano depois, a Social Democratic Federation. Trabalhando ativamente em conjunto com os lideres do partido, Morris acabou se tornando coautor do Manifesto da Federação Social Democrata (CRICK, 1994). À época, a SDF era controlada por seu fundador, Henry Hyndman. Dado o gênio deste, no início do ano de 1885, foi fundada a Liga Socialista, parte dissidente da Federa‑ ção. Morris desempenhou um papel relevante em sua organização, sendo apontado como um dos seus financiadores. O influxo de Morris sobre Unwin pode ser apreendido de for‑ ma imediata pelo fato de este ter sido eleito, em 1886, primeiro‑secretário da Liga, da qual era membro. Por essa época, Morris proferia palestras e discursos propagando a causa por clubes e salas de aula na Inglaterra e Escócia, como também pelas ruas de Londres. Não raro, esses pequenos comícios tornaram‑se alvo de repressão policial. Daí que o direito dos trabalhadores à voz tornou‑se o principal foco da SDF. Nesse contexto foi criado o jornal Commonweal, do qual Morris era editor e um dos principais colaboradores, tornando‑se esse o principal veículo de divulgação de seus ensaios e poemas. Nesse jornal foi publicada sua obra mais conhecida, Notícias de Lugar Nenhum, sob a forma de capítulos. Nele, Mor‑ ris descreve uma sociedade socialista, onde todos trabalham por puro prazer. Os objetos aí produzidos são confeccionados de tal forma que tanto o processo como seu resultado são belos e, depois, são distribuídos gratuitamente (MacCARTHY,1994). Em 1889, a Liga Socialista, que nunca fora ideologicamente coesa, viu sua ala anar‑ quista tomar a liderança da organização (CRICK, 1994). Morris foi então destituído do cargo de editor do Jornal. Desiludido, no ano seguinte retirou‑se da Liga que havia ajudado a criar. A partir de então, sem voltar a ter o mesmo entusiasmo, continuou a escrever artigos e a mi‑ nistrar palestras objetivando difundir a causa socialista. Na historiografia política britânica, William Morris figura como um dos maiores representantes do que os ingleses chamam de “socialismo libertário” (CRICK, 1994). Certamente, o Movimento Arts & Crafts é um fator de ligação do percurso intelectual e profissional de Ruskin, Morris e Unwin, mas não é o único.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A principal conclusão a que se chega neste artigo é que, na obra de Raymond Unwin, a questão da reforma urbana — que problematizava a habitação do homem comum — era antes uma questão ética‑estética do que um estratagema para mitigar os efeitos danosos provocados pela Revolução Industrial, espacializados na caótica cidade industrial.

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Em sua trajetória profissional a ação prática e propositiva, tanto conceitual como projetual, estava imbricadamente ligada a sua vida pessoal. Foi nas concepções socialis‑ tas que ele alicerçou o que construiu tanto na vida privada como na vida pública, donde emana a coerência existente em todos os aspectos de sua vida. Nele, teoria e prática estão em profunda simbiose. Dessa forma, pode‑se afirmar que, na obra de Unwin, o planejamento estava antes de qualquer coisa a serviço da difusão e das melhorias sociais propostas pelas concepções socialistas da época. Não era o caso de simplesmente dar solução à questão habitacional, vista como um dos propulsores das mazelas que os urbanistas, então nascentes, tinham que enfrentar. Isto é, não era “apenas” uma questão técnica, era antes fazer da habitação um ente que fosse capaz de ressignificar o conceito vigente de “morar”. É nesse sentido que um dos seus livros mais famosos — The art of building a home — refere‑se à constru‑ ção de um lar (home) e não apenas de uma casa‑habitação (house), associando a questão habitacional a uma concepção de sociedade e a uma proposição ética. Da mesma forma, seu atrelamento à estética Pré‑Rafaelita e, por consequência, ao Movimento Arts & Crafts não é uma mera questão formal; não é uma questão que passa apenas pela discussão do belo. É antes uma crítica ao modo de produção no capitalismo industrial e à sociedade vitoriana. Ao retornar ao modo produtivo do medievo, Unwin busca restabelecer a relação simbiótica que existia no passado entre o ato de conceber e produzir, dignificando o trabalhador‑artesão. Unwin, assim como Camillo Sitte, tinha na estética um dispositivo de apreensão e crítica da sociedade na qual estava inserido, de modo que a dimensão estética estava a serviço de uma concepção moral. Logo, ética e es‑ tética formavam o vetor de manifestação da crítica socialista empreendida no pensamento e obra de Raymond Unwin, alicerçando sua concepção de cidade e arquitetura.

NOTAS 1. Fundada por cientistas, escritores, políticos e intelectuais em 1888, a Sociedade Fabiana era uma organização política britânica de esquerda, opositora das ideias de Karl Marx, visto que negava a luta de classes. Seus membros eram tidos como socialistas utópicos, acreditavam que se passaria do capitalismo para o socialismo por meio de sucessivas reformas operadas dentro do sistema, não existindo assim razão para a Revolução Socialista. Para eles, o estratagema a ser usado a fim de obter êxito era a educação e a propaganda ideológica. Em 1902, The Fabian Society publicaria o texto de Unwin intitulado Cottage plans and common sense. 2. Henry Mayers Hyndman (1842‑1921), escritor e político inglês, foi fundador da Federação Social Democrata e depois, em 1916, do National Socialist Party. 3. National Trust for Places of Historic Interest ou Natural Beauty ou, como é mais conhecida, Natio‑ nal Trust foi fundada em 1895 por três filantropos ingleses (Octavia Hill, Sir Robert Hunter e Canon Hardwicke Rawnsley) e está em funcionamento até os dias atuais. A entidade, desde sempre, esteve preocupada com o impacto que o desenvolvimento industrial descontrolado causa ao meio natural e construído, agindo no sentido de preservar as riquezas edificadas do país.

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LUIZ AUGUSTO MAIA COSTA | Pontifícia Universidade Católica de Campinas | Faculdade de Arquite‑ tura e Urbanismo | Programa de Pós‑Graduação em Urbanismo | Rod. Dom Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086‑900, Campinas, SP, Brasil | E‑mail: <luiz.augusto@puc‑campinas.edu.br>.

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Recebido em 9/5/2014, reapresentado em 10/9/2014 e aprovado em 10/10/2014.

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O NEW URBANISM E A LINGUAGEM DE PADRÕES DE CHRISTOPHER ALEXANDER THE NEW URBANISM AND THE PATTERN LANGUAGE OF CHRISTOPHER ALEXANDER | EL NEW URBANISM Y EL LENGUAJE DE PATRONES DE CHRISTOPHER ALEXANDER DANILA MARTINS DE ALENCAR BATTAUS

RESUMO O New Urbanism, movimento urbanístico que se desenvolveu na década de 1990 nos Estados Unidos, incorporou, dentre suas práticas, alguns pressupostos presen‑ tes em referências anteriores como, por exemplo, em projetos de autoria do arqui‑ teto Christopher Alexander. Nesse sentido, o presente estudo propõe‑se analisar as semelhanças existentes entre os projetos de novos bairros e recuperação de áreas degradadas do New Urbanism e as formulações teóricas de Alexander na Linguagem de Padrões. Assim, este trabalho analisa, de um lado, a obra A Pattern Language, de 1977, que reúne componentes estabelecidos pelo autor como padrões que asse‑ guram o êxito de projetos e a interlocução entre arquiteto e usuário, e, de outro, os pressupostos do New Urbanism e sua aplicação em projetos apresentados por Peter Katz no livro The New Urbanism: toward an architecture of community, de 1994. Introduz‑se uma breve reflexão sobre a atuação profissional de Christopher Alexan‑ der, no que diz respeito a processos participativos e padrões de escala das cidades, por ele apontados e, na sequência, discutem‑se os princípios do New Urbanism, o que permite, portanto, a contextualização das semelhanças e assimetrias entre ambas as teorias e realizações. PALAVRAS‑CHAVE: Christopher Alexander. Linguagem de padrões. New urbanism.

ABSTRACT The New Urbanism was an important movement in urban planning in the United States in the 1990s that incorporated, among other practices, some presuppositions present in previous references such as, for example, the projects of the author and archi‑ tect Christopher Alexander. The aim of the article is to analyse the similarities between the projects for new neighbourhoods and the recovery of degraded urban areas in New Urbanism and the theoretical ideas of Alexander in the Pattern Language. On one hand, we will analyze some components established by Alexander in his the book A Pattern Language (1977), such as patterns that can provide better results and the rela‑ tionship between architects and users; on the other hand, the presuppositions of New Urbanism and its application in some projects discussed by Peter Katz’s book The New

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Urbanism: toward an architecture of community (1994). We begin by briefly discussing the professional development of Christopher Alexander regarding the participatory pro‑ cesses and some patterns of city scale that he established. Next we discuss the principles of New Urbanism that allows the analysis of the similarities and asymmetries between both theories and experiences. KEYWORDS: Christopher Alexander. Pattern language. New urbanism.

RESUMEN El New Urbanism, movimiento que se desarrolló en la década de 1990, en los Estados Unidos, incorporó, en sus prácticas, algunos supuestos presentes en las referencias ante‑ riores, por ejemplo, en los proyectos del arquitecto Christopher Alexander. Por lo tanto, tratamos de analizar las similitudes existentes entre los nuevos barrios y recuperación de áreas degradadas del New Urbanism y las formulaciones teóricas de Alexander en el Lenguaje de Patrones. Esto se hace a través del estudio del libro A Pattern Language, 1977, que reúne a los componentes establecidos por Alexander como normas que garan‑ tizan el éxito de los proyectos y un mejor diálogo entre el arquitecto y el usuario, así como el conocimiento de los supuestos del Nuevo Urbanismo y su aplicación en los proyectos presentados por Peter Katz en el libro The New Urbanism: toward an architecture of community, de 1994. Se propone, como introducción, una breve reflexión sobre la prác‑ tica profesional de Christopher Alexander, con respecto a los procesos de participación y patrones de escala de las ciudades, designados por él y, siguiente, discute los principios del “Nuevo Urbanismo”, permitiendo asì la contextualización de las similitudes y asi‑ metrías entre teorías y logros. PALABRAS CLAVE: Christopher Alexander. Lenguaje de patrones. New urbanism.

CHRISTOPHER ALEXANDER E A ARQUITETURA PARTICIPATIVA O contexto internacional da Arquitetura e Urbanismo, na segunda metade do século XX, foi composto por profissionais que muito se aproximaram dos mecanismos de parti‑ cipação popular, de variada natureza. Dentre eles, destacam‑se: Lucien Kroll, autor de importantes processos participativos, como o conjunto de moradia estudantil “La Meme”, na Universidade de Louvain (Bélgica), com os conceitos de “arquitetura aberta” e “partici‑ pativismo”; Ralph Erskine, com o projeto “Byker”, empreendimento com a participação do usuário1; e Christopher Alexander, cuja notoriedade internacional se deu, especialmente, em razão de sua predileção pelo envolvimento dos usuários em processos de projeto e construção de comunidades. Christopher Alexander nasceu em Viena, Áustria, em 1936. Com os pais, arqueó‑ logos clássicos, mudou‑se para a Inglaterra no início da Segunda Guerra Mundial (1938). Cresceu em Oxford e, segundo Grabow (1983), graduou‑se em Matemática e, nos anos

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seguintes, tornou‑se arquiteto pela Universidade de Cambridge. Na década de 1950 mudou‑se para Harvard, Estados Unidos da América (EUA), com o intuito de aperfeiçoar sua formação profissional. Seu primeiro livro, Community and Privacy: towards a New Architecture of Humanism (ALEXANDER & CHERMAYEFF, 1966), apresenta ferra‑ mentas para a constituição de uma Nova Arquitetura, voltada às necessidades humanas das comunidades (GRABOW, 1983). Tratava‑se do início de suas reflexões sobre essa arquitetura, pois, em toda sua car‑ reira profissional, Alexander defendeu o apego a projetos que correspondessem às expec‑ tativas e necessidades dos usuários. Di Biagi (2002) expõe a análise de Pier Giorgio Gerosa sobre o livro Notes on the Synthesis of Form (ALEXANDER, 1964), o qual observa que o postulado de Alexander firmou‑se na ideia de que a forma deveria satisfazer os requisitos do contexto em que se insere qualquer edifício. No ano de 1965, publicou o texto A City is not a Tree (ALEXANDER, 1965), difun‑ dido em diferentes países, como Israel, Holanda, Espanha, Inglaterra, entre outros. Nesse artigo, indubitavelmente, Alexander demonstrou sua clara postura em relação à arquite‑ tura moderna, ao formular severa crítica ao modelo de cidade funcional defendido por arquitetos modernos. Para ele, as cidades possuíam características naturais, essenciais à vida de seus habitantes e, portanto, não deveriam ser concebidas com “a simplicidade estrutural de uma árvore”, nem tampouco distorcer a concepção real do que é uma cidade, com sua complexidade estrutural natural e sua realidade social. Em se tratando de processos participativos, a contribuição de Christopher Ale‑ xander constitui uma referência, ao se contrapor ao planejamento urbano modernista e ligar‑se ao Advocacy Planning2. Alexander respondeu pela autoria de processos partici‑ pativos referenciais como a experiência de reformulação do campus da Universidade de Oregon (Eugene, EUA). Os princípios que pautaram esse projeto, bem como os métodos adotados durante o processo de interlocução entre a equipe de profissionais e os usuá­­ rios do campus, compõem uma de suas importantes obras bibliográficas, The Oregon Experiment (ALEXANDER et al., 1975). Nesse livro, o arquiteto descreve sua visão do que seriam os parâmetros ideais para os procedimentos de diagnóstico de problemas e potencialidades do local, de inter‑relação com funcionários, docentes, diretores e alunos, enfim, de elaboração e finalização de projetos. Alexander, inclusive, demonstra o valor da participação dos usuários do campus no processo de projetos, por meio de desenhos esquemáticos em mapas e outras formas de ilustração, por eles realizados. Para Christopher Alexander, a participação dos usuários nos processos de projeto é a primeira condição para o bom êxito da atuação profissional do arquiteto. Segundo ele, essa participação está diretamente relacionada aos meios de interação dos usuários com os elementos componentes do projeto, a partir do repertório arquitetônico, construção e outras experiências em processos participativos. Como ferramenta de entendimento, para que os usuários possam apreender as prerrogativas e componentes dos projetos ela‑

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borados pelos arquitetos, Alexander propõe uma sintetização de conceitos básicos da Arquitetura, que ele denomina Linguagem de Padrões (QUEIROZ, 2004). Para Alexander et al. (1977), é necessário, em primeiro lugar, observar os compo‑ nentes do meio ambiente, tidos como por ele como “coisas fundamentais”, às quais deno‑ mina “padrões”. Conjuntamente, considera importante que se compreendam os proces‑ sos generativos desses padrões (as suas “fontes”) essencialmente como linguagens. Desse modo, o autor aponta ser possível utilizar‑se de um processo comum para a produção de “edifícios vivos”, porém de forma não mecânica. Tais padrões foram amplamente investigados por Alexander e sua equipe, no Cen‑ ter for Environmental Structure (CES), em Berkeley/Califórnia/EUA. Os resultados com‑ põem o livro A Pattern Language, publicado originalmente pela editora Oxford University Press e traduzido para outros idiomas, dentre os quais, recentemente, o português (ALE‑ XANDER et al., 2013). A linguagem de padrões é uma extensa obra que reúne um conjunto de 253 padrões, como referenciais ideais para serem utilizados nos processos de projeto de edificações, áreas externas e comunidades, como será comentado adiante. O livro constitui‑se de uma com‑ pilação de parâmetros projetuais estabelecidos pelo arquiteto e sua equipe, com o intuito principal de auxiliar a interlocução entre profissionais e usuários de edificações e empreen‑ dimentos urbanísticos em processos participativos. O currículo de Alexander compreende outras importantes experiências em pro‑ cessos participativos na Arquitetura e Urbanismo. Em Mexicali (México), por exemplo, o arquiteto implementou seus métodos na construção de um assentamento comunitário, realizado em 1976, por meio de mutirão. O livro The Production of Houses (ALEXAN‑ DER et al., 1985), também de sua autoria, conta a história de Mexicali, onde as famílias construíram suas casas, a partir do pressuposto de que os empreendimentos habitacionais podem ser melhores, desde que os padrões de controle sejam profundamente mudados. Na década de 1980, Christopher Alexander desenvolveu outro significativo pro‑ cesso participativo junto a uma comunidade universitária no Japão, cuja descrição e comentários completos estão expressos em recente livro do autor, The Battle for the Life and Beauty of the Earth (ALEXANDER et al., 2012). Trata‑se do projeto de um campus universitário em Eishin, que abrigaria uma instituição sediada em Tóquio e que desejava ampliar suas instalações para um novo espaço. Muitas foram, além dessas, as contribuições de Christopher Alexander no cená‑ rio da Arquitetura e do Urbanismo Participativos. No contexto latino‑americano, proje‑ tou ainda um assentamento comunitário no Peru. Na proposta desenvolvida pelo arqui‑ teto e sua equipe, era grande a ênfase social no processo de construção das moradias, com plena participação dos usuários e diferentes tipologias que melhor se adequassem às suas necessidades, além da proposição de espaços coletivos que promovessem sua maior integração.

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No Brasil, Alexander introduziu o projeto do Loteamento São Carlos II, também denominado “Conjunto Participação”, na cidade de São Carlos (SP), na década de 1980. Todavia, foi incipiente sua presença no processo, pois não houve continuidade da partici‑ pação do Center for Environmental Structure. Conforme citado anteriormente, A Linguagem de Padrões abordou elementos de concepção projetual abarcando desde aqueles referentes aos espaços públicos e de uso coletivo, até aqueles especificamente aplicáveis ao edifício. Nesse sentido, analisam‑se alguns desses padrões, em particular aqueles observados em projetos congruentes aos que contemplam empreendimentos do New Urbanism.

O NEW URBANISM NO CONTEXTO NORTE‑AMERICANO A segunda metade do século XX reuniu inúmeras experiências urbanísticas relevantes, sobretudo algumas de construção de comunidades, conforme ideário fortemente difun‑ dido na Europa e nos Estados Unidos. É oportuno ressaltar que os preceitos da Arquite‑ tura e Urbanismo Participativos introduzidos por Christopher Alexander consolidaram uma faceta característica de algumas dessas comunidades: o envolvimento e participação dos usuários nos processos de projeto e implantação de assentamentos comunitários. Dentre as experiências de configuração espacial ou tipológica de novas comuni‑ dades, cita‑se o movimento do New Urbanism, engendrado por profissionais arquitetos e outros segmentos ligados ao desenho e planejamento urbanos, nos Estados Unidos, com a proposição de novos assentamentos ou recuperação dos pré‑existentes. No entanto, é necessário atentar para as reais aproximações entre as contribuições de Alexander para as comunidades e as produções dos “novos urbanistas”. Embora o movimento tenha incorporado boas práticas projetuais de Christopher Alexander, não é possível verificar em tais processos os preceitos de participação e envol‑ vimento de usuários, nem tampouco a destinação de novos assentamentos habitacionais e de uso misto a todas as classes sociais. Destaca‑se a análise de Todd W. Bressi apresentada por Katz (1994) sobre aspectos do New Urbanism, como o fato de que tais projetos resul‑ taram em “oportunidades habitacionais” para um extrato social limitado, perpetuando a dependência de iniciativas governamentais que contemplassem a população de baixa renda e com necessidades especiais. A sequência de Congressos do Novo Urbanismo, realizados em território norte‑americano, anualmente, de 1993 a 1996, constituiu uma trajetória de construção das ideias que, em tese, fundamentaram projetos de novos bairros e intervenções em áreas degradadas. Do último evento, o IV Congresso realizado na Carolina do Norte/ EUA, em 1996, resultou a Carta do Novo Urbanismo, um documento assinado por 266 participantes, contendo os 27 princípios apontados como “boa prática” na elaboração de empreendimentos urbanos. De acordo com Macedo (2007, online), esses princípios eram autoexplicativos e foram classificados em grupos equivalentes às escalas territoriais: a)

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região; b) bairro, setor e corredor; e c) quadra, rua e edifício, semelhantemente à aborda‑ gem feita por Alexander na Linguagem de Padrões. Katz (1994) apresenta significativos projetos dos novos urbanistas, analisados por diferentes autores e sob aspectos distintos. Todd W. Bressi, neste livro, observa que tais projetos redescobriram características importantes de antigas comunidades norte‑americanas: a constituição da vizinhança e as áreas destinadas ao pedestre. Esses “novos espaços” iriam rediscutir elementos esquecidos nas décadas anteriores, como os espaços públicos usados cotidianamente, a realização de atividades rotineiras “a pé” e o uso misto, entre outros. Todd W. Bressi formula sua análise do Novo Urbanismo, especialmente, a par‑ tir dos antecedentes urbanísticos nas cidades norte‑americanas ao longo do século XX. Assim, analisa a realidade das “metrópoles”, que, a partir da década de 1920, foram cons‑ truindo um cenário de congestionamento viário, poluição atmosférica e segregação socio‑ espacial, promovendo a ocorrência dos “subúrbios‑dormitório”. O autor lembra ainda que, concomitantemente, ocorria a ascensão da classe média e o uso do automóvel como meio de deslocamento eficiente, incentivado pela construção de vias de ligação entre o centro e o subúrbio. Em contrapartida, porém, essa classe em ascensão buscava, como ambiente ideal para viver, bairros com espaços verdes, amplos quintais e qualidade de vida compatível com suas aspirações. Segundo o autor, portanto, estava “em marcha” o Novo Urbanismo, com ações que convergiriam para essas expectativas, no intuito de se priorizar os interesses públicos em detrimento dos privados. Nesse sentido, os projetos em questão incorporam as referências anteriores da Unidade de Vizinhança, particularmente aqueles empreendimentos como “Seaside”, desenvolvidos pelo escritório DPZ, empresa norte‑americana com expressiva atuação no Novo Urbanismo, liderada por Andres Duany e Elizabeth Plater‑Zyberk. Na visão de Bressi, os espaços públicos contemplados pelas experiências dos novos urbanis‑ tas possuíam um “foco cívico”, na medida em que os projetos eram ilustrados com aspec‑ tos gráficos humanizados e qualidade de apresentação primorosa, inclusive (alguns deles) com desenhos que remetiam a pequenas vilas europeias inspiradoras. Na concepção de Vincent Scully (KATZ, 1994), os novos urbanistas também pre‑ conizaram uma “arquitetura de comunidade”, baseada no envolvimento e cooperação dos indivíduos que viveriam nesses subúrbios, porém, a partir da lei. O autor reforça que o que garante a liberdade dos membros de uma comunidade é a lei, enquanto o que os une é a Arquitetura; conclui que o desejo dos cidadãos norte‑americanos, naquele momento, era viver em comunidade, assegurados por implementos acessíveis a todas as classes sociais, e não somente àquelas contempladas pelos projetos do Novo Urbanismo. Nesse sentido, nota‑se a distinção entre o sentido de “comunidade” presente no New Urbanism e aquele preconizado por Christopher Alexander, para quem os mem‑ bros integrantes dos assentamentos deveriam estar envolvidos em todo o processo

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de projeto e execução de suas comunidades, e não somente em sua gestão. Quanto à participação dos usuários, as ideias de Alexander se assemelham mais aos movimen‑ tos do Community Development e Community Architecture, iniciados na Inglaterra na década de 1940 e posteriormente reverberados no continente americano. Entretanto, como dito anteriormente, é possível identificar, em propostas do New Urbanism, características físicas que reafirmam padrões espaciais propostos por Christopher Alexander no livro A Pattern Language (ALEXANDER, 1977), o que permite cotejar ambas as experiências. Alexander e seus colaboradores apresentam, na obra A Pattern Language (ALE‑ XANDER et al., 1977), um sumário da linguagem, classificando 253 padrões em escalas de análise, como: regiões, cidades, espaços identificáveis de comunidades, conexão de comunidades, centros locais, grupos sociais, espaços abertos, entre outros grupos liga‑ dos especificamente às características das edificações. Dentre tais escalas, Alexander classifica padrões componentes das cidades, elementos estes que foram empregados nos projetos do New Urbanism e, destarte, serão objeto de estudo deste artigo. Um dos padrões apontados por Christopher Alexander aborda as áreas de trans‑ porte local (padrão 11) e enfatiza a significativa liberdade e as oportunidades que os carros proporcionam às pessoas — destacando, por outro lado, que eles destroem drasticamente o entorno e “matam toda a vida social”. Segundo Alexander et al. (1977), essas áreas de trânsito local devem salvar‑se dos danos causados pelos veículos motorizados. O ideal seria que houvesse áreas onde se utilizasse apenas o “não transporte”, como bicicleta, táxi e pedestrianismo, e que o automóvel privado fosse usado apenas para sair desta distância, como atualmente tem‑se buscado nas cidades de pequeno e grande porte. Se cada pessoa que conduz um carro ocupa um espaço muitas vezes maior do que quando está a pé (o autor justifica esse dado com cálculo de valores), isso quer dizer que as pessoas se distanciam mais entre si. O uso do carro, portanto, tem o poder de dispersar e manter as pessoas isoladas. Por outro lado, Alexander demonstra as virtudes, segundo ele sem precedentes, do automóvel: flexibilidade, privacidade, deslocamentos diretos, sem transbordos e ime‑ diatez, elementos não contemplados pelo transporte público. Alexander et al. (1977) pro‑ põem, nesse sentido, o seguinte sistema: 1) para deslocamentos locais, a utilização de bicicletas, triciclos, scooters, carrinhos de golfe etc.: com baixo custo e pouca velocidade, ocupam pouco espaço e propiciam contato direto entre o usuário e o entorno; 2) para percursos longos, a utilização de carros e outros veículos, que possam ser fabricados de modo a serem menos poluentes. Assim, Alexander sugere a subdivisão da cidade em áreas de 1,5 a 3km de largura, circundadas por vias de circulação mais intensa, em cujo interior se dê o transporte local, de modo que os veículos motorizados impactantes entrem e saiam sem causar incômodos.

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Décadas à frente da Linguagem de Padrões, observa‑se nos projetos dos novos urba‑ nistas a aplicação dos conceitos relativos ao transporte local, o que se pode constatar nas figuras abaixo, referentes aos Projetos de Playa Vista (Figura 1) e Laguna West (Figura2)3: ‑ observa‑se a mesma estrutura viária, com vias locais “secundárias” que coletam o fluxo e o conduzem às vias maiores ou estruturais; ‑ o desenho do sistema viário prioriza o “transporte local”, propiciando ao pedestre a circulação segura e livre de conflitos com outras modalidades de deslocamento; ambas as propostas asseguram a circulação de veículos de baixo custo e pouca velocidade. Para resolver os conflitos entre automóveis e a tranquilidade do pedestre, o autor sugere ainda a construção de vias locais “em laço” (padrão 49), capazes de diminuir a velo‑ cidade dos carros e os fluxos intensos, incorporadas por Alexander e sua equipe no projeto do Peru (Peruvian), citado anteriormente. Alexander comenta que os cul de sac também são uma alternativa possível — embora, do ponto de vista social, segregadora. O arquiteto ainda observa que é necessário outro caminho para o pedestre, além do cul de sac, salientando que se devem traçar vias locais em laços, que impossibilitem aos carros, cujo destino não esteja no próprio laço, utilizá‑los como atalho. De acordo com esse padrão, cada laço deveria atender no máximo

FIGURA 1 – Playa Vista: ênfase à qualidade para o pedestre. Fonte: Katz (1994, p.189).

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FIGURA 2 – Laguna West e a estrutura viária que prevê “áreas de transporte local” Fonte: Katz (1994, p.19) e análise da autora.

a 50 casas, assim como deveria ser estreito, com largura entre 5 e 6m, alternativa projetual que muito se aproxima da estrutura viária dos projetos do New Urbanism. Outro padrão apontado por Alexander como meio para minimizar os conflitos entre pedestres e veículos são os “cruzamentos em T” (padrão 50), os quais são incorporados pelos novos urbanistas em suas propostas. Nesse padrão, Alexander aponta a substituição dos cruzamentos convencionais de vias implantadas em “grelha” ou quadrangulares, com dezesseis pontos de colisão, por cruzamentos no formato de “T”, que resultam em apenas três pontos. Para o autor, essa alteração garante a diminuição dos riscos de acidentes de veículos e, consequentemente, dos conflitos entre eles e o pedestre. Ainda no tocante ao transporte, na Linguagem de Padrões, sugere‑se o padrão 20 — “micro‑ônibus” como a ligação adequada entre as linhas expressas de ônibus e trens, até os bairros, para que não sejam distantes os pontos das pessoas, atendendo inclusive às que não possam dirigir. Trata‑se de veículos de poucos lugares, servidos por meio de comunicação com um posto central e outros micro‑ônibus, com parada a cada 200 metros ao longo das vias maiores. Alexander et al. (1977) pondera ainda que, na década de 1970, existiam sistemas de micro‑ônibus que atendiam a chamadas telefônicas e realizavam deslocamentos pontuais a baixo custo. A partir da chamada, um computador detectava o micro mais próximo e o acionava, como em Batávia, New York, onde o sistema era o único meio de transporte para uma população de 16.mil habitantes.

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Da mesma maneira que Alexander apontara a necessidade de transporte público nas comunidades, que permitisse maior liberdade aos trajetos, por meio de veículos menores e mais ágeis, também as diretrizes de meios de transporte propostas pelo New Urbanism apresentam semelhante sistema de transporte público em veículos leves, como na cidade de Portland/Oregon/EUA, por exemplo. O padrão 12, intitulado “comunidades de 7.000 habitantes” é outro exemplo carac‑ terístico de bairros propostos pelo New Urbanism. Segundo Alexander, em comunidades de 5.000 a 10.000 habitantes, há pouca participação ativa da população, de modo que sua potencial influência sobre o governo local, em prol de seus direitos, vem de um grupo autônomo, capaz de gerir seus próprios recursos. Fala‑se da ideia de que pequenas comunidades podem ser menos propensas à cor‑ rupção, citando‑se Sófocles, que dizia ser insuportável viver se não fosse em uma comu‑ nidade assim, com liberdade de agir. Cita‑se também o exemplo de Thomas Jefferson, que imprimiu a democracia norte‑americana ao delegar ao “povo” o poder de governar, argumentando que se considerava suscetível ao erro e que, portanto, seria perigoso entre‑ gar o poder a um grupo de pessoas; nesse sentido, o seu slogan “Divida o país em distritos”. Alexander et al. (1977) identificam dois fatores que promovem a separação entre o governo e os cidadãos: o tamanho da comunidade política, ou seja, quanto maior ela for, mais distantes estarão os cidadãos do poder; e a localização “invisível” do governo, fora do domínio da vida cotidiana da maioria da população. Nesse sentido, ele aponta a consti‑ tuição de Conselhos Locais que funcionem como um “coração político”, por serem parte essencial de uma comunidade. Assim como Christopher Alexander argumenta ser necessária a previsão de limite para a quantidade de habitantes nas comunidades, visando à coesão e articulação dos grupos e à sua efetiva participa‑ ção na gestão dos espaços, também os projetos dos novos e reabilitados subúrbios, contidos no livro de Peter Katz, demonstram semelhante dire‑ triz projetual. A Figura 3 ilustra essa configuração territorial que expressa a limitação na quantidade de mora‑ dores, prevista na comunidade de Kentlands3:

FIGURA 3 – Plano para a comunidade de Kentlands. Fonte: Katz (1994, p.31).

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Essas diretrizes relativas às comunidades de pequeno porte são abordadas, ainda, no padrão 14, denominado “vizinhança identificável”, em que Alexander afirma que “evi‑ dências antropológicas” indicam que uma população menor do que 1.500 pessoas — ainda que muitos autores falem em 500 —, é mais capaz de se organizar e cuidar de seus próprios interesses. Menciona, ainda, que a superfície territorial das comunidades também não deve ser grande, mas com poucos quarteirões e, no máximo, de 300 metros. É importante, também, o controle do tráfego nas vias, pois a identidade dessas vizinhanças deve estar protegida do tráfego pesado. No que diz respeito aos locais aptos a promover o vínculo pessoal dos moradores com o meio em que vivem, Alexander afirma que não há como as pessoas manterem suas “raízes espirituais” e sua conexão com o passado, se o seu ambiente não sustentar essas raízes. Experiências do autor com as comunidades levaram a concluir que os lugares que estabelecem vínculos das pessoas com seu passado e suas raízes devem ser preservados, assim como deve ser realçada sua importância. Trata‑se da consciência coletiva e, por‑ tanto, se destruídos tais espaços, podem‑se criar feridas incuráveis nas comunidades. Nesse sentido, Alexander estabelece o padrão 24 — “lugares sagrados” —, e sugere um levantamento junto às pessoas acerca de quais lugares as fazem sentir‑se ligadas a sua história, ao passado; indica, portanto, que se deve mapeá‑los e tratá‑los com cuidado para que sejam destacados e valorizados e nunca sejam violadas as raízes. Em intervenções dos novos urbanistas para a reabilitação de setores urbanos pré‑exis‑ tentes, verifica‑se a manutenção de determi‑ nados espaços ou elementos construídos que, de alguma maneira, remetem ao passado e à identidade do lugar, como se pode constatar na Figura 4, em Highland District3. Como observa Alexander em relação ao padrão 24, as pessoas necessitam desses locais como referência de sua presença na comunidade. Os espaços públicos, na concepção dos novos urbanistas, também se aproximam de outros dois padrões apontados na Linguagem

FIGURA 4 – Elementos remanescentes da “Missão Tumacacori” (século XVII) existentes em Highland District. Fonte: Katz (1994, p.201).

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de Padrões de Alexander: “pequenas praças públicas” (padrão 61) e “locais públicos externos” (padrão 69). Alexander considera que, nas ruas e bairros das “cidades moder‑ nas”, poucos lugares propiciam conforto para se desfrutar de horas livres, “à toa”. Desse modo, comenta que todas as faixas etárias necessitam despender algum tempo em atividades de lazer “passivo”, e que as pessoas buscam lugares para isso, cada uma em local diferente, de acordo com as características próprias do bairro. Assim, aventa a hipótese de que os moradores possam definir a instalação de locais ao ar livre, bem como de seus usos. Conforme citado anteriormente, na visão de Todd W. Bressi, os projetos do New Urbanism redescobrem a importância dos espaços públicos no cotidiano das comunida‑ des. Destacam‑se os espaços previstos em Orange Tree Courts4 e na comunidade de South Brentwood Village4 (Figuras 5 e 6): Segundo Alexander, os arquitetos e urbanistas construíam praças desmedidas nas cidades modernas, com planos de bom aspecto, mas que acabavam “mortas”. Todavia, se fossem pequenas, na sua concepção, concentrariam melhor e mais pessoas, com exceção de grandes praças em centros urbanos com altas densidades. Nota‑se, na obra A Pattern Language (ALEXANDER et al., 1977, p.230), o intento de se aplicarem os padrões por ele estabelecidos na configuração de assentamentos habi‑ tacionais visando a sua consolidação como “comunidade”. Nesse prisma, o autor analisa que é importante haver um processo de autogestão nas comunidades, de modo que qual‑ quer membro possa participar de projetos comuns (padrão 45 — Corrente de Projetos Comunitários). Aponta 5 requisitos para esse padrão: 1) lugares que permitam que alguém fale ao público, uma vez que as manifestações espontâneas e a liberdade de expressão são essenciais à vida coletiva; 2) espaço mínimo, equipado de máquina de escrever, copiadora, telefone etc., para uso gratuito, porém com limite de tempo; 3) comunidades próximas e não dispersas, em “encruzilhadas comunitárias”; 4) comunidades visíveis e desprovidas de muros, para que todos possam comparti‑ lhar das atividades, diferentemente dos edifícios governamentais; 5) oficinas com alguns serviços necessários à comunidade e estáveis, como lavan‑ deria, barbearia e café. Semelhantes características estão presentes na proposta do New Urbanism apre‑ sentada por Katz (1994) para a revitalização de Jackson‑Taylor4, que contempla o uso do solo misto, para a vitalidade e conveniência do cotidiano dos moradores locais (Figura 7). Objetivou‑se promover a circulação de pessoas nesses setores para atender às necessida‑ des rotineiras dos moradores da comunidade. Levando em conta os projetos acima descritos, considera‑se que existem notáveis semelhanças entre os projetos do New Urbanism e a Linguagem de Padrões de Christo‑ pher Alexander, cuja obra fora publicada na década de 1970. Alguns dos novos urbanistas

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FIGURA 5 – Pequenos espaços públicos próximos às moradias desenhados para Orange Tree Courts. Fonte: Katz (1994, p.163).

FIGURA 6 – Espaços públicos “vivos” projetados para a comunidade de South Brentwood Village. Fonte: Katz (1994, p.48).

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eram contemporâneos de Ale‑ xander e, em suas intervenções, resgataram elementos projetu‑ ais positivos daquele arquiteto, a partir dos Congressos do Novo Urbanismo, na década de 1990. Contudo, é válido reite‑ rar que os padrões estabelecidos por Alexander e seus parceiros do Center for Environmental Structure representam intuitos diferentes daqueles dos novos urbanistas, no que diz respeito ao envolvimento das comunida‑ des nos projetos e na perspectiva de democratização dos espaços FIGURA 7 – Plano para revitalização e Projetos Comunitários de Jackson-Taylor. Fonte: Katz (1994, p.192).

de uso público, bem como de acesso à moradia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim como os projetos dos New Urbanism aqui analisados, outras experiências de cida‑ des e comunidades durante os séculos XIX e XX demonstraram semelhanças com as ideias concebidas por Christopher Alexander a respeito dos espaços de uso comum, hierarqui‑ zação do sistema viário e priorização da circulação de pedestre. No que tange ao referido movimento, pôde‑se constatar que muitos desses compo‑ nentes urbanísticos perduraram além do período em que Christopher Alexander e equipe formularam a Linguagem de Padrões e a incorporaram em diferentes projetos. Por outro lado, não se observam presentes, nos projetos do New Urbanism, características primor‑ diais da obra de Alexander, como a participação do usuário em todo o processo de produ‑ ção do ambiente construído, ou a busca por ferramentas eficazes de comunicação entre profissionais e leigos. Entende‑se, portanto, que uma contribuição efetiva de ambas as experiências seria a adoção de diretrizes projetuais assertivas, como as que Alexander incorpora na Lingua‑ gem de Padrões e em processos participativos de assentamentos destinados à população de baixa renda. Nessa perspectiva, espera‑se que outras “boas práticas” sejam reproduzi‑ das na Arquitetura e no Urbanismo, permitindo, assim, estudos análogos dessas experi‑ ências e amplas reflexões a seu respeito.

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AGRADECIMENTOS Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo 501409/2012‑2).

NOTAS 1. Trata‑se da parceria com Vernon Gracie na produção do Byker, bairro residencial situado na peri‑ feria da cidade de Newcastle, Inglaterra, construído por um processo participativo em larga escala, entre 1973 e 1978 (COMERIO, 1987). 2. Advocacy Planning se traduz como um tipo de planejamento ou urbanismo participativo, ins‑ tituído em prol de determinadas causas, como intervenções urbanas que alterem significativa‑ mente o modo de vida de moradores, bem como as características físicas, econômicas ou sociais do local. Em situações desse tipo, faz‑se necessário apoio técnico compatível com a natureza do problema, por meio da participação de profissionais das diversas áreas, como urbanistas, soci‑ ólogos, ambientalistas, advogados, entre outros, somada a subsídios de órgãos de planejamento urbano. Pode‑se dizer que alguns tipos de profissionais, nesse caso, atuam como “advogados” do planejamento (BATTAUS, 2005). 3. Playa Vista (1989): Los Angeles, Califórnia. Autoria de Maguire Thomas Partners, área de 440Ha. Compreende uma sequência de vizinhanças com uso misto, abrangendo vias, espaços públicos e parques. Laguna West (1990): Região Metropolitana de Sacramento, Califórnia. Projeto de Peter Calthorpe (Calthorpe Associates). Consiste em uma comunidade com 3.400 unidades, centro cívico e comercial, com diversidade de gabarito e densidade populacional, além de um lago com 26 Ha e boulevares diagonais. Kentlands (1988): Gaithersburg, Maryland. Projeto de Andres Duany e Elizabeth Plater‑Zyberk. Resultou de estudos de “design charette”. Inclui 6 vizinhanças com usos diversos e tipologias habi‑ tacionais variadas, em 144Ha. Highland District (1990): Tucson, Arizona. Plano dos arquitetos Elizabeth Moule e Stefanos Polyzoides para uma “vila acadêmica” de 7Ha junto à Universidade do Arizona. Incorporou edifícios baixos, com densidade compatível com o número de estudantes locais. O plano ainda considerou a eficiência energética e o clima desértico. 4. Orange Tree Courts (1998): Riverside, Califórnia. Plano de Bretteville & Polyzoides; versão mo‑ dificada por Moule & Polyzoides. Incorporou edificações existentes do início do século XX e previu áreas de estacionamento, escritórios e comércio, além de 74 unidades de moradia em aproxima‑ damente 2Ha. South Brentwood Village (1991): Brentwood, Califórnia. Projeto de Calthorpe Associates. Comuni‑ dade de uso misto e 500 moradias, em com área de 57Ha. Jackson‑Taylor (1991): vizinhança em San Jose, Califórnia. Plano de Calthorpe Associates O uso do solo foi intencionalmente definido como misto. Cerca de 1.600 unidades residenciais foram arranjadas em 30Ha com escritórios, indústrias e outras atividades.

REFERÊNCIAS ALEXANDER, C. Notes on the synthesis of form. Cambridge: Harvard University Press, 1964. ALEXANDER, C. A city is not a tree. Architectural Forum, v.122, n.1, p.58‑62, 1965. ALEXANDER, C.; CHERMAYEFF, S. Community and privacy: Toward a new architecture of huma‑ nism. Harmondsworth: Penguin, 1966. ALEXANDER, C. et al. The oregon experiment. New York: Oxford University Press, 1975.

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University Press, 1985. ALEXANDER, C.; NEIS, H.; ALEXANDER, M. M. The battle for the life and beauty of the earth. New

York: Oxford University Press, 2012. ALEXANDER, C.; ISHIKAWA, S.; SILVERSTEIN, M. Uma linguagem de padrões: A pattern language. Porto Alegre: Bookman, 2013. BATTAUS, D.M.A. Desenvolvimento de comunidade: processo e participação. 2005. Tese (Doutorado

em Arquitetura e Urbanismo) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. COMERIO, M.C. Design and Empowerment: 20 years of community architecture. Revista Built Environment, v.13, n.1, p.15‑28, 1987. DI BIAGI, P. I classici dell’urbanistica moderna. Roma: Donzelli Editore, 2002. GRABOW, S. Christopher Alexander: The search for a new paradigm in architecture. Boston: Oriel Press, 1983. KATZ, P. The new urbanism: Toward na architecture of community. New York: McGraw Hill, 1994. MACEDO, A.C. A carta do novo urbanismo. Vitruvius, São Paulo, mar. 2007. Disponível em: <http://

www.vitruvius.com.br>. Acesso em: 29 abr. 2013. QUEIROZ, M. O experimento com a escola de música da UFBA: um processo participativo utilizando a linguagem de padrões de Christopher Alexander. Cadernos PPG‑AU/UFBA, v.3, n.1, 2004. Dispo‑ nível em: <http://www.ufba.br>. Acesso em: 22 maio 2012.

Recebido em 23/10/2013, reapresentado em 20/2/2014 e aprovado em 14/4/2014.

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DANILA MARTINS DE ALENCAR BATTAUS | Universidade de São Paulo | Instituto de Arquitetura e Urbanismo | Grupo de Pesquisa em História e do Urbanismo | Av. do Trabalhador Sancarlense, 400, 13566‑590, São Carlos, SP, Brasil | E‑mail: <dmalencar@hotmail.com>.

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DAS RETÓRICAS DO MODERNO NACIONAL AO RECONHECIMENTO DE BRASÍLIA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL FROM NATIONAL MODERN RHETORIC TO THE RECOGNITION OF BRASíLIA AS CULTURAL HERITAGE | DE LA RETÓRICA DE LO MODERNO NACIONAL AL RECONOCIMIENTO DE BRASÍLIA COMO PATRIMONIO CULTURAL ALBA NÉLIDA DE MENDONÇA BISPO, ANA CLARA GIANNECCHINI

RESUMO A proposta deste artigo é compreender como e quando a arquitetura moderna emerge como patrimônio cultural no Brasil, a partir da identificação de diferentes discursos e atuações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937, cor‑ respondente ao atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Algumas hipóteses sugerem que o reconhecimento da arquitetura moderna como patrimônio cultural está diretamente relacionado aos seguintes fatores: a busca de afirmação da arquitetura moderna como linguagem oficial na chamada “Era Vargas”; a presença de intelectuais modernos naquele Instituto; a necessidade de autoconsagração dos arquitetos modernos, ao preservar suas próprias obras; a emergência de preservação de obras significativas como ícones da arquitetura moderna brasileira. Nesse contexto, é possível identificar diferentes argumentações que buscam legitimar a preservação de exemplares da arquitetura moderna brasileira como patrimônio nacional: retórica de afirmação do moderno nacional; retórica da consagração; retórica da perda; retórica estética versus critério de ancianidade. Essas diferentes argumentações podem ser identificadas na atuação de intelectuais que promoveram as primeiras ações de pre‑ servação do patrimônio moderno brasileiro, sobretudo através de tombamentos, como nos casos da Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha (tombada em 1947) e da Catedral Metropolitana de Brasília (tombada em 1967). Como contraponto temporal e conceitual, aborda‑se o caso do tombamento do Plano Piloto de Brasília (em 1990), correspondente a uma etapa posterior de atuação do Instituto, na qual se diluem os dis‑ cursos anteriormente formulados, dando espaço a novas argumentações no processo de reconhecimento do valor cultural da arquitetura e do urbanismo modernos. PALAVRAS‑CHAVE: Arquitetura moderna. Arquitetura nacional. Brasília. Patrimônio cultural.

ABSTRACT From the identification of different discourses and actions of the current Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, created in 1937, the purpose of this paper

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is to understand how and when modern architecture emerges as a cultural heritage in Brazil. Some hypotheses suggest that the acknowledgment of modern architecture as a cultural heritage is directly related to the following factors: the search for affirmation of modern architecture as the official language during the so‑called the “Vargas age”; the presence of modernist intellectuals in Institute; the need for self‑acknowledgement of modern architects to preserve their own works; the emergence of significant works as icons of Brazilian modern architecture. Within this context, it is possible to identify different arguments that seek to justify the preservation of icons of Brazilian modern architecture as national heritage: affirmation rhetoric of modern national; rhetoric of consecration; rhetoric of loss; aesthetic rhetoric versus criterion of age. These different arguments can be identified from the action of modernist intellectuals who promoted the first actions of preservation of modern Brazil, particularly the establishment of heri‑ tage sites such as the Church of São Francisco de Assis da Pampulha (heritage site in 1947) and the Metropolitan Cathedral of Brasília (heritage site in 1957). As a temporal and conceptual contrast, we discuss the case of the establishment of the heritage site of the Pilot Plan of Brasília (1990), which corresponds to a later period of operation of Institute, during which previously formulated discourses give rise to new arguments in the process of recognition of the cultural value of modern architecture and urbanism. KEYWORDS: Modern architecture. National architecture. Brasilia. Cultural heritage.

RESUMEN El propósito de este trabajo es entender cómo y cuándo la arquitectura moderna surge como patrimonio cultural en Brasil, a partir de la identificación de los diferentes dis‑ cursos y actuaciones del Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, creado en 1937, que corresponde al actual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na‑ cional. Algunas hipótesis sugieren que el reconocimiento de la arquitectura moderna como patrimonio cultural está directamente relacionada con los siguientes factores: la búsqueda de la afirmación de la arquitectura moderna como lenguaje oficial en la lla‑ mada “Era Vargas”; la presencia de intelectuales modernos en aquel Instituto; la necesi‑ dad de autoconsagración de los arquitectos modernos, para conservar sus propias obras; la aparición de obras importantes para la preservación como íconos de la arquitectura moderna brasileña. En este contexto, es posible identificar diferentes argumentos que tratan de legitimar la conservación de muestras de la arquitectura moderna brasileña como patrimonio nacional: retórica de afirmación de lo moderno nacional; retórica de la consagración; retórica de la pérdida; retórica estética frente criterio de antigüedad. Esas diferentes argumentaciones se pueden identificar en la actividad de los intelec‑ tuales que promovieron las primeras acciones para conservar el patrimonio moderno de Brasil, principalmente a través de preservación, como en el caso de la Iglesia de São Francisco de Assis da Pampulha (preservada en 1947) y la Catedral Metropolitana

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de Brasilia (preservada en 1967). Como contrapunto temporal y conceptual, aborda el caso de la preservación del Plan Piloto de Brasília (1990), que corresponde a una etapa posterior del funcionamiento del Instituto, en la que se diluyen los discursos formulados anteriormente, dando lugar a nuevos argumentos en el proceso de reconocimiento del valor cultural de la arquitectura y del urbanismo modernos. PALABRAS CLAVE: Arquitectura moderna. Arquitectura nacional. Brasília. Patrimonio cultural.

RETÓRICA DE AFIRMAÇÃO DO MODERNO E DA IDENTIDADE NACIONAL No Brasil, a arquitetura moderna emerge como patrimônio cultural já nos primeiros anos de atuação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Ins‑ tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)1, criado em 1937. A criação de um órgão federal para constituir e preservar o patrimônio nacional, contribuindo para a formação de um sentimento de identidade nacional coincide, não por acaso, com a instauração do Estado Novo e a afirmação do movimento moderno na década de 1930. O governo nacionalista e autoritário de Getúlio Vargas estabelece a modernização do país como principal meta e constitui um conjunto de símbolos nacionais, sobretudo visando mobilizar as massas. Nesse contexto marcado pela forte centralização política e tentativa de unificação cultural, sobretudo através da idealização de uma nação brasileira para o imaginário coletivo, grande parte dos funcionários do recém‑criado IPHAN é com‑ posta por intelectuais modernos que aproveitam a oportunidade de se aliar ao governo federal para fazer prosperar a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo modernos como uma linguagem nacional. O governo Vargas explicita contradições estilísticas do imaginário das elites — contradições marcadas por um forte antagonismo entre forças conservadoras, represen‑ tadas pelos estilos chamados “neo” (neocolonial, neomarajoara etc.), e forças progressis‑ tas, representadas pelo modernismo incipiente. De fato, a produção moderna brasileira apoia‑se no referencial formal dos Cinco Pontos da Nova Arquitetura de Le Corbusier (planta livre, fachada livre, pilotis, teto‑jardim e janelas em fita), mas congrega materiais e formas diferenciados, procurando incorporar características de austeridade, leveza e simplicidade, estabelecendo uma conexão entre a linguagem colonial e a moderna. Desse modo, a arquitetura moderna brasileira destaca‑se pela liberdade plástica e pelo emprego de materiais próprios nos quais se utilizam referências da linguagem colonial, como a parede caiada, a pedra rústica, o mosaico português, o elemento vazado, a azu‑ lejaria, entre outros. A afirmação da identidade nacional revela‑se, portanto, através da conjunção entre modernidade e tradição, em meio à busca de uma legítima produção moderna e brasileira. Nesse contexto de conflito e experimentação, o progressista Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, promove e apoia oficialmente a adoção da arqui‑

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tetura moderna como linguagem nacional. Em busca de uma nova arquitetura que fosse legitimamente moderna e brasileira, distingue‑se como um marco a construção da sede do Ministério da Educação e Saúde (1936‑1945), no Rio de Janeiro. A consolidação da arquitetura moderna como linguagem oficial, entretanto, dá‑se ao longo da trajetória política de Juscelino Kubitschek (JK), que impulsiona o desenvolvi‑ mento do modernismo brasileiro, primeiramente como prefeito de Belo Horizonte, com a construção do conjunto da Pampulha (1942‑1944), projetado por Oscar Niemeyer, e, pos‑ teriormente, quando se torna presidente e promove a construção de Brasília (1957‑1960) como nova capital do país. Ao explorar a potencialidade dos arquitetos modernos, JK contribui para concretizar a imagem desenvolvimentista e moderna do país e promove a consolidação do moderno, que culmina na implantação do Plano Piloto de Brasília.

RETÓRICA DA CONSAGRAÇÃO Da experimentação à consolidação da arquitetura moderna brasileira, o modernismo se afirma como linguagem a partir dos anos 1930 e se consagra ao longo das décadas de 1940 e 1960, inclusive internacionalmente, com a exibição do Pavilhão Brasileiro, projetado por Lucio Costa e Niemeyer na Feira Mundial de Nova Iorque de 1938‑40, da exposição e publicação do catálogo Brazil Builds, organizados pelo Museu de Arte Moderna (MoMA) de New York em 1943, e dos números especiais dedicados ao Brasil nas revistas europeias The Studio (1943), L’Architecture d’Aujourd’hui (1947, 1952, 1960, 1964), Architectural Forum (1947), The Architectural Review (1954), Nuestra Arquitectura (1960) e Zodiac (1960)2. Nacionalmente, a consagração se processa particularmente com o tombamento de bens da arquitetura, urbanismo e paisagismo modernos. O momento em que as primeiras obras modernas começam a ser reconhecidas como patrimônio nacional coincide com o período em que Lucio Costa dirige a Divisão de Estudos e Tombamentos do IPHAN (DET) de 1937 até 1972, conforme Quadro 1. Vale ressaltar que todas as obras supracitadas são concebidas no “período clássico”3 da arquitetura moderna brasileira. Tal padrão é compreensível, considerando que grande parte dos técnicos e gestores da chamada fase heroica4 do IPHAN são intelectuais parti‑ cipantes dos movimentos de vanguarda artística, notadamente marcados pelos ideais de pensamento do Movimento Antropofágico e pelo modernismo como produção técnica e estética. Entretanto, para alguns autores, os primeiros tombamentos de obras modernas consagram um universo muito específico do modernismo brasileiro, caracterizado por uma hegemonia estética que desconsidera outros exemplares expressivos da diversidade cultural do país. Para Rubino (1996), Lucio Costa e o grupo de intelectuais ligados à vanguarda arquitetônica moderna que compunham o IPHAN, como Alcides da Rocha Miranda, José de Souza Reis e Renato Soeiro, “fizeram do tombamento uma instância de auto‑

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quadro 1 – Obras modernas tombadas entre 1937‑1972.

Obra

Local

Autoria (ano)

Período de construção

Livro de tombo (ano da inscrição)

Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha

Belo Horizonte

Niemeyer (1942)

1942‑43

Belas Artes (1947)

Ministério da Educação e Saúde (MES), atual Palácio Gustavo Capanema

Rio de Janeiro

Lucio Costa, em colaboração de Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Carlos Leão e Ernany de Vasconcelos (1936‑1937)

1937‑43

Belas Artes (1948)

Estação de Hidroaviões, atual Instituto Histórico e Cultural da Aeronáutica

Rio de Janeiro

Escritório de Atílio Correia Lima, em colaboração de Jorge Ferreira, Renato Mesquita, Renato Soeiro e Tomás Estrela (1937)

1937‑38

Belas Artes (1957)

Parque do Flamengo

Rio de Janeiro

Afonso Eduardo Reidy; paisagismo de Burle Marx (1961)

1961‑65

Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (1965)

Catetinho

Brasília

Niemeyer (1956)

1956

Histórico (1959)

Catedral Metropolitana de Brasília

Brasília

Niemeyer (1958)

1958‑63

Belas Artes (1967)

Fonte: Elaborado pelas autoras (2013). Montado com base em consulta (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2012).

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consagração — pois este é sempre uma medida de proteção e consagração —, ao inscrever suas próprias obras. E ao inscrever os marcos modernos criados por eles, deixaram de lado obras do mesmo período ou do período imediatamente anterior” (RUBINO, 1996, p.105). Cabe esclarecer que os primeiros arquitetos modernos do país se formam na década de 1930, na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, então capital do país, de modo que os principais expoentes da chamada Escola Carioca reúnem‑se em torno de um repertório teórico e formal singular. Entretanto, o modernismo brasi‑ leiro se desenvolve, paralelamente, em diferentes expressões, sendo possível destacar a produção paulista, sobretudo com as obras de Gregori Warchavchik, em São Paulo, na década de 1920, e a produção pernambucana, com as obras do arquiteto Luiz Nunes, em Pernambuco, na década de 1930. […] se por um lado o Brasil foi pioneiro na preservação de exemplares da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo modernos, por outro se preocupou quase que exclusiva‑ mente com a salvaguarda de edifícios e sítios representativos somente de uma das ver‑ tentes da arquitetura moderna brasileira: a escola carioca. Assim, as ações do IPHAN com relação à preservação do patrimônio edificado moderno têm, até o momento, se concentrado nas obras realizadas entre as décadas de 1920 e 1960 por Niemeyer, Costa, Reidy, M.M.M. Roberto e Burle Marx (ANDRADE JÚNIOR et al., 2009, p.5).

Contudo, a autoconsagração não parece ser a principal motivação desses primeiros tombamentos de bens modernos, mas, sim, o caráter de emergência da salvaguarda ou a retórica da perda5.

RETÓRICA DA PERDA Numa análise dos discursos adotados pelos agentes da preservação do patrimônio nacio‑ nal, Gonçalves (2002) destaca a legitimidade das práticas de conservação, restauração e preservação do patrimônio cultural, decorrentes do processo de perda, degradação ou descaracterização de bens, associado à substituição ou eliminação de valores. A nortear essas práticas está uma concepção moderna de história em que esta apa‑ rece como um processo inexorável de destruição, em que valores, instituições e objetos associados a uma “cultura”, “tradição”, “identidade” ou “memória” nacional tendem a se perder […]. Na medida em que esse processo é tomado como um dado, e que o presente é narrado como uma situação de perda progressiva, estruturam‑se e legitimam‑se aquelas práticas de colecionamento, restauração e preservação de “patrimônios culturais” representativos de categorias e grupos sociais diversos (GONÇALVES, 2002, p.23).

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Dois casos emblemáticos ilustram como a retórica da perda justificou a preserva‑ ção de obras consideradas ícones da arquitetura moderna brasileira: a Igreja da Pampulha e a Catedral de Brasília. A Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, projetada por Niemeyer em 1942, após cinco anos do início das obras, estava ameaçada de abandono por parte dos proprie‑ tários e possivelmente seria demolida. Diante da obra ainda inconclusa, Lucio Costa propôs o tombamento preventivo da igreja, a fim de garantir a preservação de um legítimo exemplar da arquitetura do século XX. A justificativa apresentava‑se, portanto, como uma medida de precaução a fim de garantir que a obra não fosse destruída e conseguisse ser concluída. A preocupação com a boa execução da obra, o uso de seus espaços e bens móveis integrados, bem como o estado de arruinamento e descaso frente às características estético‑espaciais desse exemplar moderno, especialmente, é o que motiva a proposta do tombamento preventivo. Costa enfatiza: […] que o valor excepcional desse monumento o destina a ser inscrito, mais cedo ou mais tarde, nos Livros do Tombo, como monumento nacional, e que portanto seria criminoso vê‑lo arruinar‑se por falta de medidas oportunas de preservação, para se haver de intervir mais tarde no sentido de uma restauração difícil e onerosa […]6 (PESSOA, 1999, p.67).

Já no caso do tombamento da Catedral de Brasília, inicialmente, o Ministério da Cultura e Educação encaminhou ao IPHAN um projeto de lei que propunha o seu tomba‑ mento e, paralelamente, disponibilizava os recursos públicos necessários para conclusão da obra. No momento do pedido, embora já estivesse erguida a estrutura da igreja, as obras estavam paralisadas devido às dificuldades de execução das vedações. Diante da obra ainda inconclusa, Costa posicionou‑se contra o tombamento federal: Tratando‑se de uma igreja ainda em construção, não vejo como inscrevê‑la no Livro do Tombo Histórico ou Artístico, pois não se pode antecipar o juízo póstero a ponto de tombar a coisa antes de ela sequer existir. Seria a inversão completa da ordem natural do processamento que a lei prevê (Grifos de Lucio Costa), (PESSOA, 1999, p.183).

Porém, em 1967, o diretor do IPHAN, Renato Soeiro — apoiando‑se numa resolu‑ ção precedente do Conselho Consultivo a favor do tombamento do Parque do Flamengo, tombado ainda durante as obras de implantação —, acatou o pedido de tombamento da Catedral (Figura 1), tendo como justificativa o excepcional valor artístico da obra. A circunstância de se tratar de obra ainda em construção não poderia constituir razão para impedir ou desaconselhar o tombamento […] quer pela importância

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singular que a silhueta da estrutura da Catedral já assumiu definitivamente na paisagem urbana de Brasília (CARVA‑ LHO, 2005, p.190)7.

Nas primeiras ações desenvolvidas pelo IPHAN, notadamente, a emergência de salvaguarda contribuiu para acelerar a tomada de medidas legais de preservação, de modo que, sob ameaças de aban‑ dono, demolição, descaracterização ou degradação, o tombamento funcionava como um ato emergencial de preservação. Sob a eminência da perda, portanto, o tombamento também foi adotado para preservar obras modernas, sobretudo a partir de um discurso que pro‑ curava destacar os atributos estéticos daqueles bens.

RETÓRICA ESTÉTICA VERSUS CRITÉRIO DE ANCIANIDADE 8 FIGURA 1 – Catedral de Brasília. Fonte: Pessôa et al. (2006, p.225). Fotografia: Marcel Gautherot [s.d.].

Nos primeiros anos de atuação do IPHAN, a maioria dos bens tombados (modernos ou não) foi inscrita no Livro de Belas Artes, pois “a constituição do patri‑

mônio no Brasil foi realizada a partir de uma perspectiva predominantemente estética” (FONSECA, 2005, p.114). O fato é que, em função do perfil profissional preponderante no corpo técnico do SPHAN, em que predominavam os arquitetos, o critério de seleção de bens com base em sua representatividade histórica, considerada a partir de uma história da civilização material brasileira, ficou em segundo plano em face de critérios formais e a uma leitura ditada por uma determinada versão da história da arquitetura no Brasil — leitura produzida pelos arquitetos modernistas, que viam afinidades estruturais entre os princípios construtivos do período colonial e os da arquitetura modernista (FONSECA, 2005, p.110).

Entretanto, para além da discussão sobre a arquitetura moderna entendida como “Belas Artes”, é preciso ponderar que a maioria dos bens modernos não era inscrita no Livro Histórico, especialmente em face da inaplicabilidade do critério de ancianidade, pois a ausência de um distanciamento temporal interferia na análise da obra em seu contexto contemporâneo. Embora a atribuição do valor histórico seja facilitada pelo distanciamento tem‑ poral, o critério de ancianidade não é exclusivo para admitir o valor cultural de uma

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obra, pois sua relevância para a história da humanidade está condicionada à avaliação crítica do momento de inflexão que tal artefato representa em seu contexto histórico. Nesse sentido, a História contemporânea valoriza mais o processo ou o encadeamento histórico do que as datações. O caso do tombamento do Plano Piloto de Brasília, par‑ ticularmente, ilustra o conflito entre o critério estético e o de ancianidade no processo de valoração patrimonial.

O PLANO PILOTO DE BRASÍLIA COMO CONTRAPONTO TEMPORAL E CONCEITUAL O processo de reconhecimento do Plano Piloto de Brasília como patrimônio cultural ilustra um momento posterior na trajetória do IPHAN, no qual o valor histórico preva‑ lece sobre o estético, especialmente a partir da década de 1980, em uma perspectiva que considera particularmente os processos de formação, consolidação e expansão das cidades como patrimônio cultural. Nesse sentido, o tombamento de Brasília se insere no contexto de redemocratização do país, do fortalecimento dos poderes locais, do crescimento desordenado das cidades e do acirramento da especulação imobiliária nos grandes centros urbanos. É por iniciativa do recém‑ingresso governador do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira, que em 1986 se inicia um processo de articulação interno, com a Fundação Pró‑Memória/Ministério da Cultura, e externo, com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), para reconhecimento de Brasília como patrimônio mundial, fato inédito à época, considerando a proximidade temporal do bem. A inscrição na Lista do Patrimônio Mundial surge então como resposta às pressões por modificações no Plano Piloto, especialmente pelo aumento de gabarito que se anun‑ ciava nas superquadras. Conforme historia o Processo de Tombamento 1305‑T‑90 do Conjunto Urba‑ nístico de Brasília, o dossiê de candidatura do sítio, elaborado pela equipe do GT‑Bra‑ sília9, apresenta uma proposta de proteção bastante detalhada para a proteção da cidade, incluindo não só o Plano Piloto concebido por Lucio Costa, mas também as antigas fazendas, acampamentos e cidades‑satélite. Entretanto, essa proposta é considerada adequada “apenas para ‘uso interno’, […] não interessando à UNESCO, preocupada apenas com a proposição urbana e arquitetônica original” (CAMPOFIO‑ RITO, 1989, online). Considerando a urgência do momento, é publicado o Decreto Distrital 10.829/1987, (BRASIL, 1987), a partir de uma minuta elaborada por Ítalo Campofiorito, então presi‑ dente da Fundação Nacional Pró‑Memória (atual IPHAN), e acordada com Lucio Costa, que havia definido os elementos essenciais do Plano Piloto. Esse decreto incorpora as recomendações de Lucio Costa contidas no documento Brasília Revisitada (COSTA, 2009), em que o criador da cidade faz uma apreciação da obra modificada pelo uso, reto‑ mando os seus aspectos “definitivos” e admitindo complementações, deixando claro, por‑

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tanto, que o valor da cidade não se reconhecia no dado abstrato do projeto, mas naquele enriquecido pela perspectiva histórica. Dois anos após a proteção distrital e internacional, recorre‑se ao tombamento federal, considerando que “a legislação preparada pelo Governo do Distrito Federal […] não será suficiente para barrar a cobiça imobiliária e os preconceitos desavisados que vão ameaçar o que é essencial em Brasília […]” 10. No caso dessa cidade, portanto, o tombamento federal tem papel complementar na sua preservação, mas as etapas desse processo de reconhecimento revelam debates entre as polaridades estética e histórica na valoração do bem. O relator do processo, Eduardo Kneese, remonta à importância histórica de transposição da capital para o interior do Brasil, argumento defendido desde a pri‑ meira Constituição de 1824, e retoma as justificativas do reconhecimento distrital e da UNESCO, destacando os elementos estéticos e históricos do sítio como valores essenciais do plano piloto11. Kneese destaca Brasília como “grande monumento histórico nacional” e “grande monumento artístico nacional”, ressaltando não apenas os aspectos urbanísticos, arquitetônicos e monumentais (Figura 2), mas as particularidades das superquadras, praças e parques. Contudo, por uma decisão tomada durante a própria reunião do Conselho12, o bem é inscrito apenas no Livro Histórico, privilegiando uma visão histórica da produção cultural e considerando a dificuldade de se avaliar o valor artístico de bens recentes de modo isento.

FIGURA 2 – Vista aérea do Plano Piloto de Brasília. Fonte: Alba Nélida de Mendonça Bispo (2012). Fotografia: Alba Nélida de Mendonça Bispo (2012).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS No que concerne ao reconhecimento do patrimônio cultural moderno no Brasil, as questões supracitadas e o contraponto estabelecido com o caso de Brasília permitem concluir que a valoração do Plano Piloto de Brasília resulta de um processo mais parti‑ cipativo, incluindo governo local, universidade, organismos internacionais, Ministério da Cultura e IPHAN, envolvendo uma maior gama de atores e interesses. O reconheci‑ mento responde a ameaças, mas já não reflete a necessidade de afirmação do moderno como linguagem nacional, como nos primeiros tombamentos instituídos pelo IPHAN. No caso do Plano Piloto de Brasília, particularmente, pode‑se dizer que a argumen‑ tação em favor do tombamento retoma, em parte, os discursos de valorização do patrimô‑ nio moderno que evocam uma retórica da afirmação da identidade nacional, sobretudo ao reconhecer o valor destss bens como obra de arte e valorizá‑los como legítimos símbolos e monumentos nacionais. Se a implantação do Plano Piloto idealiza uma imagem de nação forte, moderna e desenvolvida, o reconhecimento de Brasília como patrimônio cultural consagra a cidade moderna como marco alegórico da identidade brasileira, especialmente como monumento nacional. O tombamento do Plano Piloto, portanto, idealiza‑se nota‑ damente sob uma retórica estética na qual o modernismo brasileiro é reconhecido como singular e excepcional, bem como sob uma retórica da perda, sobretudo devido às ameaças derivadas da forte especulação imobiliária. A ideia de tombar o objeto antes mesmo de sua finalização não se aplica a Brasília, como no caso da Catedral, uma vez que a jovem cidade encontrava‑se ainda na década de 1980 em plena construção, atada a seu destino de crescer, adaptar‑se e consolidar‑se. Por fim, ao longo do tempo, presencia‑se uma revisão dos critérios de patrimonialização de artefatos modernos, não fundamentalmente estéticos, mas já históricos. No caso de Brasília, os critérios pressupõem inclusive a transformação do objeto tombado. O sentido do tombamento, ao contrário do que faz supor o entendimento ordinário, é inserido no cerne dos processos da dinâmica e do planejamento urbano, passando a ser percebido mais como ato de controle que de impedimento. Essa é, a propósito, a perspectiva atual que orienta os processos contemporâneos de valoração e preservação do patrimônio cultural. O alargamento do conceito do patri‑ mônio presenciado nas últimas décadas no Brasil, no qual se associam a arquitetura e o urbanismo modernos, contribuíram decisivamente para essa mudança de postura.

NOTAS 1. Considerando as diversas denominações que o órgão federal responsável pela identificação, documentação e preservação do patrimônio cultural brasileiro teve desde a sua criação, em 1937, neste trabalho optou‑se por utilizar a sigla atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio‑ nal (IPHAN), independentemente do período abordado.

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2. Ver levantamento bibliográfico de Alberto Xavier [s.d] mencionado em Segawa, 1999, p.107. 3. Cavalcanti (2001) chama o período entre 1928 e 1960 de “período clássico” da arquitetura moderna brasileira. 4. A chamada fase heroica do IPHAN corresponde ao período de 1937 até 1967, conforme divisão metodológica adotada por Fonseca (2005). 5. Conforme conceitua Gonçalves (2002). 6. Parecer de tombamento da Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, elaborado por Lucio Costa e datado de 8/10/1947 (PESSOA, 1999, p.67). 7. Parecer de Renato Soeiro, constante no Processo de Tombamento nº672‑T‑62, f.22. (CARVALHO, 2005, p.190). 8. O termo “ancianidade” é originalmente apresentado em Riegl, A. Le culte moderne des monu‑ ments: son essence et sa genèse. Paris: Seuil, 1984. 9. A equipe que ficou conhecida por Grupo de Trabalho para a Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Brasília (GT‑Brasília) era composta por representantes do Ministério da Cultura, Universidade de Brasília e Governo do Distrito Federal. 10. Processo de Tombamento 1305‑T‑90 do Conjunto Urbanístico de Brasília (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 1990, p.1). 11. Os critérios de inscrição de Brasília na Lista do Patrimônio Mundial envolvem o argumento de “representar uma obra‑prima do génio criador humano” (critério I) e “representar um exemplo excecional de um tipo de construção ou de conjunto arquitetônico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre um ou mais períodos significativos da história humana” (critério IV). 12. Transcrição da ata da 138ª Reunião do Conselho Consultivo de 9/3/1990, constantes nas p.378 e 400 do Processo de Tombamento 1305‑T‑90 do Conjunto Urbanístico de Brasília.

REFERÊNCIAS ANDRADE JUNIOR, N.V.; ANDRADE, M.R.C.; FREIRE, R.N.C. O IPHAN e os desafios da preservação

do patrimônio moderno: a aplicação na Bahia do Inventário Nacional da Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo Modernos. In: Seminário Docomomo Brasil, 8., 2009, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos… Rio de Janeiro: Docomomo Brasil, 2009. p.1‑28. Disponível em: <http://www.doco‑ momo.org.br/seminario 8 pdfs/142.pdf>. Acesso em: 30 set. 2011. BRASIL. Governo do Distrito Federal. Decreto nº 10.829, de 14 de outubro de 1987. Regulamenta

O Art. 38 da Lei N° 3.751 de 13 de Abril de 1960, no que se refere à preservação da concepção urbanística de Brasília. Diário Oficial do Distrito Federal, Brasília, DF, 23 out. 1987. CAMPOFIORITO, Í. Brasília revisitada. Revista Eletrônica do IPHAN, v.2, n.1, 2005. Disponível em:

<http://labjor.unicamp.br/patrimonio/print.php?id=101>. Acesso em: 29 set. 2011. CARVALHO, C.S.R. Preservação da arquitetura moderna: edifícios de escritórios no Rio de Janeiro

construídos entre 1930 - 1960. 2005. Tese (Doutorado) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. CAVALCANTI, L. Quando o Brasil era moderno: guia de arquitetura 1928‑1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. COSTA, L. Brasília revisitada, 1985‑1987: complementação, preservação, adensamento e expansão

urbana. In: LEITÃO, F. (Org.). Brasília 1960 2010: passado, presente e futuro. Brasília: Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, 2009. p.69‑77.

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FONSECA, M.C.L. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil.

Rio de Janeiro: Iphan, 2005. GONÇALVES, J.R.S. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. PESSÔA, J. Lucio Costa: documentos de trabalho. Rio de Janeiro: Iphan, 1999. PESSÔA, J. et al. (Org.). Moderno e nacional. Niterói: UFF, 2006. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Arquivo Noronha Santos.

2012. Disponível em: <http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm>. Acesso em: 30 set. 2012. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Processo nº 1305‑T‑90:

dossiê de tombamento do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Brasília. Brasília: Arquivo da Superintendência do Distrito Federal, 1990. 1 CD-ROM. RUBINO, S. O mapa do Brasil passado. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Cidada‑ nia, v.1, n.24, p.97‑105, 1996. SEGAWA, H. Arquiteturas no Brasil 1900‑1990. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1999. 224p.

ALBA NÉLIDA DE MENDONÇA BISPO | Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional | Escritó‑ rio Técnico de Tiradentes | R. da Câmara, 124, Centro, Tiradentes, MG, Brasil | Correspondência para/Correspondence to: A.N.M. BISPO | E‑mail: <bispo.alba@gmail.com>.

ANA CLARA GIANNECCHINI | Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional | Assessoria de Relações Internacionais | Brasília, DF, Brasil.

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Recebido em 3/5/2013, reapresentado em 11/3/2014 e aprovado em 10/6/2014.

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PROCESSO DE FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL DE PEQUENAS CIDADES: o caso de Serro SOCIAL AND SPATIAL FORMATION PROCESS OF SMALL TOWNS: THE CASE OF SERRO, BRAZIL | PROCESO DE FORMACIÓN SOCIO‑ESPACIAL DE PEQUEÑAS CIUDADES: EL CASO DE SERRO, BRASIL KELLY DINIZ DE SOUZA, TERESA CRISTINA DE ALMEIDA FARIA, ÍTALO ITAMAR CAIXEIRO STEPHAN

RESUMO Este artigo visa contribuir para o debate sobre os processos de formação socioes‑ pacial e de produção do espaço urbano de pequenas cidades, a partir da análise do núcleo urbano colonial mineiro, com o propósito de explicitar o modo como se deu a formação da cidade de Serro, no estado de Minas Gerais. Nesse sentido, as análises aqui arroladas se direcionaram para o resgate do processo histórico de constituição dessa aglomeração, tendo por recorte temporal o período compreendido do século XVIII ao presente. Neste artigo, foram destacados os aspectos que balizaram a for‑ mação da cidade, enfatizando as relações econômicas, políticas, sociais e simbólicas que contribuíram para a ocupação do espaço. Para se compreender esse processo, o trabalho abordou, ainda, a cidade contemporânea, cuja expansão nos séculos XX e XXI vem ocorrendo por meio de parcelamentos “legais” e “ilegais”. A partir da iden‑ tificação das características desse processo e dos agentes e interesses que nele esti‑ veram presentes, pôde‑se observar que a paisagem urbana de Serro caracteriza‑se tanto pela “concentração” correspondente à ocupação inicial, linear e contínua, quanto pela “dispersão” que marcou sua expansão urbana a partir do século XX. PALAVRAS‑CHAVE: Núcleo urbano colonial. Pequenas cidades. Produção do espaço urbano. Serro.

ABSTRACT From the analysis of the colonial urban nucleus of Minas Gerais, the aim of this article is to contribute to the debate about the social and spatial formation processes and production of urban space of small towns with the purpose of explaining how the city of Serro, Minas Gerais was developed. In this sense, the objective of the analy‑ ses was to recover the developmental historical process of the conglomeration with the research timeframe being the eighteenth century up to the present time. In this paper, aspects that served as landmarks for this nucleus have been delimited to high‑ light economic, political, social and symbolical relationships that have contributed to the occupation of space. To understand this process, the study also analyzed the contemporary city, whose expansion in the twentieth and twenty‑first centuries has

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occurred by “legal” and “illegal” allotments. From the identification of the features of this process, agents and interests involved, we could observe that the urban landscape of Serro is characterized both by “concentration”, corresponding to the initial, linear and continuous occupation, and “dispersion”, which marked its urban sprawl in the twentieth century. KEYWORDS: Colonial Urban Nucleus. Small towns. Production of urban space. Serro.

RESUMEN Este artículo pretende contribuir para el debate sobre los procesos de formación socio‑espaciales y de producción del espacio urbano de las ciudades pequeñas, a partir del análisis del núcleo urbano colonial de Minas, con el fin de dejar explicito cómo se dio la formación de la ciudad de Serro, en el estado de Minas Gerais. En este sentido, los análisis aquí inscritos fueron dirigidos al rescate del proceso histórico de la forma‑ ción de dicha agrupación, y el marco de tiempo está comprendido del siglo XVIII hasta nuestros días. En este artículo, fueron subrayados los aspectos que guiaron la formación de la ciudad, con énfasis en las relaciones económicas, políticas, sociales y simbólicas que contribuyeron para la ocupación del espacio. Para entender este proceso, el estudio también se dirigió a la ciudad contemporánea, cuya expansión en los siglos XX y XXI se ha producido a través de subdivisiones “legales” e “ilegales”. A partir de la identificación de las características de este proceso y de los actores e intereses que estaban presentes en el mismo, se pudo observar que el paisaje urbano de Serro se caracteriza tanto por la “concentración”, que corresponde a la ocupación inicial, lineal y continua; como por la “dispersión”, que marcó su expansión urbana a partir del siglo XX. PALABRAS CLAVE: Núcleo urbano colonial. Pequeñas ciudades. Producción del espacio urbano. Serro.

INTRODUÇÃO Para a compreensão do processo de formação do espaço urbano é preciso conhecer as transformações que foram ocorrendo nas atividades humanas e como estas influen‑ ciaram na organização e no desenvolvimento da cidade e, principalmente, na relação espaço‑sociedade. Nesse sentido, estudos sobre processos de formação urbana configu‑ ram um campo de análises que permite visualizar as relações entre o aspecto temporal, associado à organização e integração social, e o aspecto espacial, materializado nos assen‑ tamentos humanos, nos caminhos e nas divisões administrativas. De acordo com Endlich (2009), é preciso considerar que as formações socioespa‑ ciais delineiam‑se em conformidade com a organização da produção, constituindo refe‑ rências concretas dos modos como as relações sociais se realizam. Entretanto, a produção do espaço não deve ser vista apenas no sentido econômico:

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Muito embora, nos marcos do capitalismo, a produção do espaço se dê sob o signo de uma sobrevalorização do econômico no próprio imaginário, é fundamental res‑ gatar a importância e as especificidades do poder e do simbólico (CARLOS et al., 2011, p.13).

Dentro desse contexto, os aspectos econômico, social, político‑administrativo e simbólico, quando confrontados à materialidade do espaço, oferecem melhor compreen‑ são sobre como se constituíram social e territorialmente essas aglomerações. Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investigar o processo de formação socio‑ espacial da cidade de Serro, a partir das alterações do espaço e das relações históricas entre o núcleo inicial e suas áreas de expansão, tendo como referência sua contribuição para o estudo sobre a formação do espaço urbano de pequenas cidades1 dentro do con‑ texto do ciclo da mineração. O trabalho se propõe, ainda, a contribuir para a reflexão de como a leitura da ima‑ gem urbana, enquanto suporte material, condiciona e é condicionada pelo planejamento urbano, além dos desafios de planejar o crescimento de uma cidade de pequeno porte com um relevante patrimônio urbano protegido.

CIDADE: ORIGEM E INTERAÇÃO COM O ESPAÇO Segundo Santos (1985, p.53), para se compreender a organização espacial e sua evolução, é necessário interpretar a relação dialética entre estrutura, processo, função e forma, que permite a compreensão da totalidade social em sua espacialização: “como os homens organizam sua sociedade no espaço, e como a concepção e o uso que o homem faz do espaço sofrem mudanças”. Para o autor, uma determinada forma é criada para atender a uma ou várias funções, e não há função sem a sua forma correspondente. Contudo, apenas forma e função não são suficientes para se compreender a organização espacial; faz‑se necessário o entendimento de como os objetos, em sua organização, estão inter‑relacionados, ou seja, sua estrutura, e como essa estrutura se transformou — o processo. Na tentativa de sistematizar o processo de estruturação de pequenas cidades a partir do ciclo colonial, foram identificados aspectos essenciais à sua compreensão: o econômico, o político‑administrativo, o social e as questões referentes às manifestações simbólicas e culturais. O ponto inerente ao fator econômico manifestou‑se, no início da ocupação, com o desenvolvimento do mercado. A cidade se configurou como o lugar por excelência para a concentração do excedente produtivo e para a realização de trocas comerciais. Desempenhava, pois, uma função de suporte às necessidades da produção e do con‑ sumo, cujas relações econômicas — ditadas pela atividade da mineração —, foram os motores de produção de novas espacialidades e relações de poder. A mineração foi,

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assim, a atividade motora da configuração espacial das Minas desde o final do século XVII. Ali, como postulado por Reis Filho (2000), a cidade, e não o campo, foi a forma inicial de organização do espaço, no qual o homem encontrou meios adequados para sua sobrevivência e desenvolvimento. A população das minas reunida nas proximidades de seus locais de trabalho, era toda ela urbana. Era uma nova fase que se iniciava. De retaguarda rural, o Brasil passava a apresentar regiões de intensa vida urbana (REIS FILHO, 2000 p.79).

A descoberta das minas de ouro do Ivituruí se deu por volta de 1701/1702, por bandeirantes paulistas, e, nesse contexto, às margens dos antigos córregos, logo surgiram os ranchos que deram origem aos primeiros povoados. Destes, mais tarde, surgiu a cidade de Serro (MINAS GERAIS, 1980b). Como em outros núcleos antigos, o povoado se instalou em sítio acidentado, apre‑ sentando traçado com características de acentuada irregularidade, que foi mantido com o tempo. No seu desenvolvimento físico, não foi verificada intervenção suficientemente forte que lhe conferisse uma fisionomia diferente da de outros centros mineradores. As primeiras vias adaptaram‑se, desse modo, às condições topográficas mais favoráveis, sem intenção de ordenação geométrica, organizando‑se como ligações entre os pontos de maior importância no núcleo, geralmente associados a pequenos arraiais. No caso serrano. No princípio os arraias eram dois: o de Baixo, como até hoje se diz, o qual vinha das lavras no Lucas até pouco abaixo do Vasa Canudos e o Arraial de Cima que era na Praia. Este era maior, o oficial, o que foi feito Vila do Príncipe (SILVA, 2008, p.35) (Figura 1).

A análise morfológica dessa primeira etapa do desenvolvimento do conjunto urbano permitiu identificar em Serro uma formação típica do tecido urbano. Como ocorreu em outros núcleos de Minas Gerais quando do ciclo da mineração, a vila se conformou linear‑ mente ao longo dos antigos caminhos, acompanhando o terreno de topografia acidentada e os cursos d’água.

FIGURA 1 – Croqui da estrada‑tronco, com representação dos primeiros arraiais da Vila do Príncipe. Cotas altimétricas entre 910 e 1000m [direção norte‑sul]. Elaborado por Kelly Diniz de Souza (2013). Fonte: Prefeitura Municipal de Serro (2006).

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Uma das principais características das cidades de origem portuguesa é a relação do traçado urbano com as características físicas do território em que se implanta. Essa relação observa‑se quer nos critérios de localização e de escolha do sítio, quer no modo como suas sucessivas fases de desenvolvimento e o desenho dos espa‑ ços urbanos se articulam com as características físicas e ambientais (TEIXEIRA, 2012, p.39).

Somado aos aspectos econômicos, a cidade sempre foi o local onde o poder político‑administrativo foi exercido e onde os embates sociais se realizaram com maior ímpeto, sendo, portanto, o espaço das manifestações do Estado. As cidades coloniais brasileiras traduziam, assim, o objetivo do empreendimento colonizador e, consequentemente, espelhavam as funções que lhes foram atribuídas no processo de exploração do território. A abordagem inerente ao aspecto social materializou‑se nas relações sociais em sua dimensão espacial. Tal enfoque aponta para a idéia de que a sociedade, ao produzir‑se, o faz num espaço determinado, como condição de sua existência, mas através dessa ação, ela também produz, consequentemente, um espaço que lhe é próprio e que, portanto, tem uma dimensão histórica com especificidades ao longo do tempo e nas diferentes escalas e lugares do globo (CARLOS, 2011, p.53).

Os caminhos que interligavam os arraiais tornaram‑se estradas, fortalecendo a institucionalização do espaço desses núcleos em razão do comércio e dos eixos de abaste‑ cimento. Assim, o solo caracteriza‑se como espaço não apenas da produção, mas também da reprodução, marcado pela ordenação e normatização urbanas. O período de 1720 a 1750 foi marcado pela consolidação das povoações, com o entrelaçamento dos arraiais, seguindo o processo característico da formação urbana das vilas do ouro. Essa conurbação deu origem ao povoado que foi elevado à categoria de vila em 1714, sob o nome Vila do Príncipe. Ainda no século XVIII, além do ouro, foram descobertas lavras de diamante na região. Para defender os interesses do Império, foi criada em 1720 a Comarca do Serro Frio, sediada na Vila do Príncipe, com território desmembrado da antiga Vila de Sabará, abrangendo uma área da qual fazia parte todo o norte‑nordeste do estado. A importância político‑administrativa adquirida a partir da elevação à condição de sede de Comarca […] conferiu condições ao Serro para um rápido desenvol‑ vimento. E a consolidação de sua forma urbana já seria uma realidade menos de quatro décadas após sua elevação à condição de Vila (REIS, 2012, p.68).

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A terceira etapa de desenvolvimento, entre 1750 e o final daquele século, caracte‑ rizou‑se pela consolidação do seu traçado e expansão. Nessa fase, os caminhos duplica‑ ram‑se em paralelas que, interligadas por becos íngremes, constituíram a malha urbana. A hierarquia dos espaços urbanos podia ser definida a partir das características topográficas do sítio, da ordem geométrica do traçado urbano, do perfil das ruas, da articulação das ruas e das praças e de sua relação com outros componentes da malha urbana, da estrutura de quarteirões e loteamento, ou a partir da relação do traçado urbano com a arquitetura (TEIXEIRA, 2012, p.73) (Figura 2).

A vila prosperou com a dinâmica da mineração, de modo que, já no “século XVIII, as atividades econô‑ micas e as camadas sociais urbanas estavam constitu‑ ídas” (Reis Filho, 2000, p. 57). Entretanto, como apontado pela Fundação João Pinheiro (MINAS GERAIS, 1980b), em prin‑ FIGURA 2 – Panorama parcial da cidade de Serro. Vista da área de ocupação inicial, com a Igreja Matriz no centro da imagem. Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (2012).

cípios do século XIX, já estava em franca decadên‑ cia a mineração na região. A cidade foi, a partir de então, perdendo sua importância regional e sua capacidade de se adequar às novas exigências da

sociedade, em face da falta de alternativas econômicas que servissem para incremen‑ tar seu desenvolvimento, até entrar em decadência. Seu espaço econômico se meta‑ morfoseou de modo a se adaptar ao novo contexto nacional que emergia. Um manto de ruralidade se estendeu sobre a região e, como indica Reis (2012), a partir do declínio da mineração se observou a mudança dos pequenos mineradores para outras áreas do município, onde passaram a desenvolver atividades agropecuárias, que se tornaram a base da economia local. Se o declínio da produção aurífera, iniciado na segunda metade do século XVIII, não significou estagnação econômica da vila, pelo menos em sua sede ele ocasionou um “congelamento” da paisagem. Por mais próspera e rentável que se tenha apresentado a nova atividade econômica, a agropecuária não tinha como corolário o aumento populacio‑ nal, nem o desenvolvimento ou as transformações urbanas. Ainda que a economia tivesse se diversificado, os valores básicos da população pouco se alteraram. A produção do meio urbano relaciona‑se, ainda, às questões simbólicas e culturais, cuja manifestação estava expressivamente vinculada às evocações religiosas, uma vez que, durante o período colonial, Estado e Igreja Católica mantiveram‑se unidos. Nas Minas setecentistas, a Igreja assumira diversos papéis fundamentais para a instalação e dinâmica de redes urbanas, tendo atuado concretamente na produção e organização desse espaço, assim como na ocupação e divisão administrativa do território.

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Enquanto nunca houve uma codificação colonial portuguesa, as normas e procedi‑ mentos eclesiásticos eram claramente estabelecidos. As implicações urbanísticas desse fato podem ser decisivas, pois às vagas determinações civis contrapunham‑se recomendações expressas do clero que interferiam no desenho urbano (MARX, 1991, p.11).

Assim, desde seu surgimento, os núcleos coloniais expressavam as determinações eclesiásticas, não contrapostas nem canalizadas por instrumentos do poder temporal, mas aceitas pela importação de costumes e práticas do reino (MARX, 1991). Nesse contexto, a Igreja foi essencial para o estabelecimento de novas centralidades e, como consequência, para a atração de fluxos regulares e eventuais de pessoas. A construção de várias igrejas no curso do século XVIII viria atuar como fator de maior adensamento urbano da vila, porquanto a edificação de cada templo propiciava sempre o agenciamento do local onde se erguia e dos respectivos entornos, com o natural surgimento de novos logradouros e novas casas (MINAS GERAIS, 1980a). Já o século XIX assistiu ao surgimento de duas novas áreas: o núcleo de Gâmbia, cuja ocupação inicial estava diretamente vinculada ao movimento de alforria e libertação dos escravos, e os arredores do morro onde foi implantado o cemitério municipal, assim desencadeando o processo de ocupação das regiões oeste e sul da vila. Nessa nova fase, ainda que a malha urbana tivesse começado a alcançar a encosta até então parcialmente ocupada, era possível identificar a manutenção da formação linear do tecido urbano (Figura 3).

FIGURA 3 – Croquis de evolução da mancha urbana de Serro — Ciclo da Mineração. [Início do séc. XVIII: fase de formação e conurbação dos antigos arraiais. Meados do séc. XVIII: consolidação. Segunda metade do séc. XVIII: primeira expansão urbana]. Elaborado por Kelly Diniz de Souza (2014). Fonte: Prefeitura Municipal de Serro (2006).

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A partir da independência do Brasil, com a instalação de pequenas fábricas de ferro e a maior ativação comercial da vila, sua economia foi dinamizada, assegurando sua ele‑ vação à categoria de cidade em 1838, com a denominação de Serro, permanecendo como centro jurídico e administrativo de toda uma ampla região (MINAS GERAIS, 1980a). No entanto, a falta de modernização e de novas alternativas econômicas fez com que a cidade perdesse capacidade para competir, frente às mudanças ocorridas no país. A partir da era republicana, o Serro não conseguiu se incorporar à rede ferroviária e se isolou dos novos padrões de transporte e desenvolvimento. O município então passou por um longo período de estagnação que, entretanto, propiciou a permanência de sua fisionomia característica dos séculos XVIII e XIX (Figura 4).

Expansão urbana nos séculos XX E XXI: A cidade contemporânea A reprodução do espaço recria, constantemente, as condições gerais a partir das quais se realiza o processo de reprodução do capital, do poder e da vida humana, sendo, portanto, produto histórico e ao mesmo tempo realidade presente e imediata (Carlos, 2011). Na contemporaneidade da urbanização brasileira, verifica‑se um amplo processo de reestruturação caracterizado pela “explosão” das tradicionais formas de concentra‑ ção urbana e pela emergência de novas formas espaciais […]. Na escala intraurbana, o fenômeno da “dispersão urbana” está alterando a morfologia urbana tradicional, gerando novas centralidades e novas periferias (Soares, 2006, p.347).

No longo período de estagnação vivido após a decadência da mineração, Serro experimentou, entre os anos de 1950 e 1980, uma nova fase de expansão, em decorrên‑

FIGURA 4 – Vista aérea da cidade de Serro. Manutenção do traçado viário com vias adaptadas às condições topográficas, sem ordenação geométrica. Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional (2012).

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cia, principalmente, da migração de parcela da população rural para o distrito‑sede, que passou a ocupar as encostas que circundam o núcleo antigo. O crescimento demográfico se intensificou nesse período, e a população do distrito‑sede praticamente triplicou, pas‑ sando de 13,14% para 37,61% o percentual de pessoas residentes na cidade (Tabela 1).

TABELA 1 – Evolução populacional da cidade de Serro entre os períodos censitários de 1950 a 1991.

População

Censo demográfico Município

Cidade

%

1950

28.512

3.746

13,14

1960

28.9293

7.681

26,55

1970

17.579

6.963

39,60

1980

17.863

6.719

37,61

1991

19.443

7.865

40,45

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (1956, 1960, 1973, 1981, 1991, 2010).

Estudos da Fundação João Pinheiro apontam que O número de prédios existentes, que em 1812 […] era de 546, não passará de 913 em 1954 […] só vindo a atingir o total de 1.101 no ano de 1977. Esta cifra revela um certo crescimento urbano nos últimos vinte anos, mas se trata de expansão verificada principalmente nas periferias da cidade, com a construção de habitações bastante modestas. A maior parte da população continua condensada no núcleo his‑ tórico, que […] ainda preserva autêntica a fisionomia do Serro dos séculos passados (MINAS GERAIS, 1980a, p.26).

As principais transformações em sua paisagem urbana ocorreram a partir de então, quando a cidade passou a se expandir por meio de parcelamentos ilegais2 (Figura 5), ocu‑ pados por grande número de casas de médio a baixo padrão construtivo, como “resultado de um processo de urbanização que segrega e exclui” (MARICATO, 2000, p.155). Ainda no século XX foram parcelados os primeiros loteamentos, ao longo das vias de comunicação, tendo como eixo de expansão o sentido oeste, região em que seriam aprovados outros parcelamentos, confirmando o local como área potencial para uma nova centralidade. Nesse contexto, materializou‑se a nova fase da urbanização brasileira, em que a produção e reprodução do espaço têm por base a expansão do desempenho do capi‑ talismo, e em que as cidades se redefinem através “de sua explosão, da extensão das

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FIGURA 5 – Vista panorâmica de Serro. Expansão da cidade pelas encostas adjacentes ao núcleo antigo. Fonte: Fotografia de Kelly Diniz de Souza (2012).

periferias; enfim, da construção de um novo espaço” (CARLOS et al., 2011, p.13). Essas áreas abrigam parte significativa da população, de tal modo que, no início do século XXI, o núcleo antigo de Serro configura‑se como a menor parcela da cidade. Ao longo do século XX, constata‑se nas cidades uma inversão da relação entre o centro antigo e sua periferia, esta última passando a representar, em superfície e população, a parcela maior da aglomeração. Tal inversão ocorre não apenas nas grandes metrópoles e nas capitais, mas alcança também cidades menores (PANE‑ RAI, 2006, p.13).

Nas últimas cinco décadas, o tecido urbano de Serro se expandiu ao longo das encostas que emolduram o núcleo antigo e ao longo das vias de comunicação, em um crescimento em forma de “tentáculos” (Figura 6). A análise morfológica dessa fase do desenvolvimento da cidade permitiu observar que a expansão urbana orientada pelos interesses imobiliários, ocorreu ao longo das vias de comunicação, caracterizando‑se pelo traçado reticulado e ortogonal, como os novos parcelamentos “legais”. Entretanto, nas áreas ocupadas pela população de renda mais baixa, que ilegal‑ mente foi tomando as encostas ao longo do conjunto inicial, o tecido urbano procurou se adaptar ao relevo acidentado, apresentando um traçado mais orgânico como ocorre no núcleo antigo. Verificou‑se, ainda, que, apesar da lenta expansão urbana, os novos parcelamentos pressionam para que novas áreas, antes rurais, tornem‑se urbanas. Apesar de o ritmo atual das transformações urbanas nas cidades pequenas se apresentar mais lento do que o observado nas grandes cidades, e apesar de estar menos

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FIGURA 6 – Croqui de expansão urbana de Serro. Elaborado por Kelly Diniz de Souza (2013). Fonte: Prefeitura Municipal de Serro (2006).

sujeito às especulações do capital imobiliário, estas ocorrem, em menor escala, em função da conformação de oportunidades em determinados momentos. Essas modi‑ ficações estão assim mais associadas ao ritmo de vida dos habitantes, ou seja, há uma aproximação maior entre o tempo da vida e as transformações na paisagem urbana. “Nessa perspectiva as relações sociais se realizam e produzem, em sua prática, o espaço da vida” (CARLOS, 2001, p.34). Diante desse contexto, observa‑se que a expansão do Serro segue o comportamento urbano de uma pequena cidade. Entretanto, devido à recente descoberta de jazidas de minério de ferro na região, espera‑se uma perturbação nesse padrão de desenvolvimento, com significativo crescimento da demanda por novas áreas urbanas. A mineração, que foi a atividade motora responsável pela configuração espacial serrana no século XVIII, pode ser mais uma vez, no século XXI, a produtora de novas espa‑ cialidades. Nesse sentido, a consolidação dessa economia deve resultar na ampliação do tecido urbano que, caso não venha a ser tratado de modo adequado pelo poder público, fatalmente propiciará o surgimento de áreas carregadas de contradições socioespaciais.

A CIDADE CONTEMPORÂNEA: FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL E PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO A complexidade que envolve as políticas urbanas aponta a necessidade da leitura do território, como modo de compreender sua dinâmica e buscar estratégias de interven‑ ções mais adequadas para a cidade contemporânea. Essa leitura pode ser entendida a partir do conhecimento integrado entre os processos históricos e urbanos, revelados através das interações entre as escalas espaciais e da interdependência entre os aspectos econômico, político‑administrativo, social e as questões referentes às manifestações simbólicas e culturais. Esses processos de formação socioespacial podem ser distintos, mas é possível um diagnóstico integrador do território urbano por meio de categorias de análise do espaço geográfico, como as indicadas por Santos (1985): forma, estrutura, processo e função, e do entendimento de suas relações.

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Todos esses fatores fazem pensar em novas práticas socioespaciais para o território urbanizado, em que a leitura da imagem urbana, enquanto suporte material, condiciona e é condicionada pelo planejamento urbano. Nesse sentido, a formação socioespacial, a regulação urbanística e a preservação estão intimamente relacionadas. Como esclarece Castriota, Em termos urbanísticos, isso se traduz na questão da integração entre o planeja‑ mento macro — o Plano Diretor —, e o planejamento para as chamadas “áreas históricas”, o plano especial demandado por elas. Esse desafio deve ser respondido mediante estratégicas de “contaminação”: trata‑se de impregnar o Plano Diretor com a idéia da conservação; e de impregnar o “plano especial para as áreas históricas” com a idéia da dinâmica urbana (CASTRIOTA, 2004, p.55).

Desse modo, os conjuntos de interesse cultural, assim como a cidade de Serro, apontam um condicionante particular que interfere nos planos e na gestão urbana: a pre‑ servação do patrimônio cultural edificado constitui mais um parâmetro a ser considerado na regulamentação administrativa territorial das cidades preservadas. O planejamento das áreas urbanas e o planejamento físico/territorial devem acolher as exigências da conservação do patrimônio arquitetônico e cultural e não consi‑ derá‑las de uma maneira parcial ou como elemento secundário (ARAÚJO et al., 2002, p.131).

Com efeito, deve ser ressaltada a importância de se pensar a gestão das cidades com relação ao patrimônio cultural, não apenas a partir de uma perspectiva humanística, mas também socioambiental, como uma estratégia de reorientação de determinados pro‑ cessos urbanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreende‑se a cidade como uma produção socioespacial que expressa a capacidade do homem em apropriar‑se constantemente do território. Nesse sentido, as formas de uso e apropriação do espaço urbano resultam da ocupação inicial do lugar e da maneira como a sociedade se organizou social e espacialmente para se desenvolver e se reproduzir. Desse modo, as novas demandas econômicas e políticas necessitam e se materializam nas novas demandas espaciais. Verificou‑se que a paisagem urbana de Serro apresenta as duas características básicas de crescimento urbano: a concentração e a dispersão. A primeira marca a gênese e a consolidação da cidade nos séculos XVIII e XIX, caracterizada pela continuidade e linea‑ ridade do tecido urbano. Essa organização espacial acumula formas herdadas do passado

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que, embora tenham sua origem vinculada a outros propósitos, permanecem no presente porque puderam ser adaptadas às necessidades atuais, sem alterações significativas, apre‑ sentando, ainda, uma funcionalidade efetiva em termos econômicos e, sobretudo, um valor simbólico que justifica sua permanência. Por outro lado, a dispersão marca a expansão urbana a partir do século XX, carac‑ terizada por uma nova organização espacial, com a “explosão” das tradicionais formas de concentração do tecido, acompanhada pela diferenciação desses espaços, decorrente do modo como se dá o uso do solo. Essa produção do espaço é uma expressão espacializada do processo de reprodução do capital, que se verifica simultaneamente à geração de novas centralidades e novas periferias. Pôde‑se perceber, nos dados investigados, a maneira como os aspectos relativos à estrutura, processo, função e forma permitem compreender a totalidade social em sua espacialização. Nesse sentido, o intuito de estudar os processos locais de urbanização é vislumbrar além da descrição de padrões espaciais, procurando analisar as relações entre as formas desses espaços e os processos históricos que modelaram os grupos sociais. Acredita‑se que, quando diagnosticado o processo de produção do espaço de uma cidade, ainda que de pequeno porte, maiores serão as possibilidades de acerto no seu planeja‑ mento e preservação.

AGRADECIMENTOS À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão de bolsa e suporte às atividades de pesquisa da primeira autora.

NOTAS 1. Partindo dos trabalhos de Santos (1982), a conceituação de “pequena cidade” está vinculada à existência de uma dimensão mínima a partir da qual as aglomerações urbanas deixam de servir às necessidades da atividade primária para servir às necessidades inadiáveis da população, com espe‑ cializações do espaço. Não se trata, portanto, de “buscar definições a partir de um número mínimo […] para ser cidade, mas de encontrar […] o limite mínimo de ‘complexidade das atividades urbanas capazes de… garantir ao mesmo tempo um crescimento auto‑sustentado e um domínio territorial’” (FRESCA, 2010, p.28). 2. A dualidade legal‑ilegal define‑se, segundo Costa (2006), a partir do aparato jurídico formal em que, conforme a regulação urbanística, a cidade legal é aquela construída pelos agentes formalmen‑ te instituídos, mercado ou poder público, e que traz consigo uma determinada ordem, usualmente fruto de um projeto, resultando em uma urbanização completa. A ilegalidade define‑se, assim, a partir dessa antítese. 3. A redução da população entre os censos demográficos de 1960 e 1970 ocorreu em virtude da Lei Estadual nº 2.764 de 30/12/1962, que emancipou distritos serranos, dando origem aos municípios de Alvorada de Minas, Santo Antônio do Itambé e Serra Azul de Minas (MINAS GERAIS, 1962).

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KELLY DINIZ DE SOUZA | Universidade Federal de Viçosa | Centro de Ciências Exatas e Tec‑ nológicas | Departamento de Arquitetura e Urbanismo | Av. Peter Henry Rolfs, s.n., Campus Viçosa, 36570‑000, Viçosa, MG, Brasil | Correspondência para/Correspondence to: K.D. SOUZA | E‑mail: <kelly.diniz@ufv.br>.

TERESA CRISTINA DE ALMEIDA FARIA | Universidade Federal de Viçosa | Departamento de Arquite‑ tura e Urbanismo | Programa de Pós‑Graduação em Arquitetura e Urbanismo | Viçosa, MG, Brasil.

ÍTALO ITAMAR CAIXEIRO STEPHAN | Universidade Federal de Viçosa | Departamento de Arquitetura e Urbanismo | Programa de Pós‑Graduação em Arquitetura e Urbanismo | Viçosa, MG, Brasil.

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Recebido em 30/9/2013, reapresentado em 29/5/2014 e aprovado em 30/6/2014.

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A REORGANIZAÇÃO DO SETOR DE OBRAS PÚBLICAS EM SÃO PAULO: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DO ENGENHEIRO PAULA SOUZA, 1869‑1891 THE REORGANIZATION OF THE PUBLIC WORKS DEPARTMENT IN SÃO PAULO: AN ANALYSIS THROUGH THE PROFESSIONAL TRAJECTORY OF THE ENGINEER PAULA SOUZA, 1869‑1891 | LA REORGANIZACIÓN DEL SECTOR DE OBRAS PÚBLICAS, EN SÃO PAULO: UN ANÁLISIS DE LA TRAYECTORIA PROFESIONAL DEL INGENIERO PAULA SOUZA, 1869‑1891 CRISTINA DE CAMPOS

RESUMO Durante o século XIX a província/estado de São Paulo iniciou a institucionalização do setor de Obras Públicas, pois se ressentia da falta de uma repartição técnica para tratar das obras públicas em geral. Nas décadas finais do século XIX, o setor foi reorganizado para incorporar novas funções, como, por exemplo, a fiscalização das empresas prestadoras de serviços públicos e a encampação dos serviços de sanea‑ mento. Embora a reorganização do setor de Obras Públicas tenha sido identificada por vários autores, este artigo pretende revisitar tal processo através da trajetória de um engenheiro que participou ativamente daquela transformação, mais espe‑ cificamente na transição entre o Império e a República. Dessa forma, o objetivo do presente trabalho é analisar a reorganização do setor de Obras Públicas paulista através da trajetória profissional de Paula Souza em três momentos: em 1869, ao as‑ sumir a Inspetoria Geral de Obras Públicas da Província; em 1890, ao ser nomeado para organizar a Superintendência de Obras Públicas; e em 1891, ao ser convocado para elaborar um plano de saneamento para a capital. Tendo como fio condutor a trajetória profissional do engenheiro Paula Souza, espera‑se contribuir para o en‑ tendimento da reorganização do setor de Obras Públicas, fundamental para o fun‑ cionamento de serviços públicos básicos assim como para o desenvolvimento das atividades produtivas. PALAVRAS‑CHAVE: Estado de São Paulo. Infraestrutura. Setor de obras públicas. Trajetória profissional.

ABSTRACT During the nineteenth century, the province/state of São Paulo initiated the process of institutionalization of the Public Works department because it lacked technical staff to handle public works in general. In the late nineteenth‑century decades, the Public

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Works department was reorganized to introduce new functions, such as the supervision of companies providing public services and the expropriation of sanitation services. The reorganization of the Public Works was identified by different authors; however, the purpose of this article is to revisit this process through the actions of an engineer who actively participated in this transformation, particularly the transition between the Empire and Republic. The aim is to analyze the reorganization of Public Works department in São Paulo through the professional trajectory of the engineer Paula Souza at three distinct moments: when he was appointed Inspector‑General of public works of the province in 1869; when appointed as the Superintendent of public works in 1890; and when invited to plan the sanitation services of São Paulo city in 1891. Using the professional trajectory of engineer Paula Souza as a guideline, we expect to contribute to the understanding of the reorganization of the Public Works department, which was vital to the functioning of basic public services as well as the development of productive activities. KEYWORDS: State of São Paulo. Infrastructure. Public works. Professional career.

RESUMEN Durante el siglo XIX la provincia/estado de São Paulo inició la institucionalización del sector de Obras Públicas, la falta de una técnica en el tratamiento de las obras públi‑ cas en general demandaba esta necesidad. A finales del siglo XIX, el sector de Obras Públicas es reorganizado para incorporar nuevas funcionalidades, como por ejemplo, la supervisión de las empresas prestadoras de servicios públicos y la expropiación de los servicios de saneamiento. Esta reorganización del sector de Obras Públicas ha sido analizada por diferentes autores, sin embargo, el propósito de este artículo es revisar el proceso a través de la trayectoria de un ingeniero que participó activamente en esta transformación, pero específicamente en la transición del Imperio a la República. El objetivo es analizar la reorganización del sector de Obras Públicas de São Paulo a tra‑ vés de la trayectoria profesional de Paula Souza que será divida en tres momentos: en 1869 al tomar posesión como inspector General de Obras Públicas de la Provincia, en 1890, cuando fue designado para organizar la Superintendencia de Obras Públicas y en 1891 cuando es llamado para preparar un plan de saneamiento de la capital paulista. Teniendo como hilo conductor la trayectoria profesional del ingeniero Paula Souza, se espera contribuir a la comprensión de la reorganización del sector de Obras Públicas, fundamental para el funcionamiento de los servicios públicos básicos, así como para el desarrollo de actividades productivas. PALABRAS CLAVES: Estado de São Paulo. Infraestructura. Sector de obras públicas. Trayectoria profesional.

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INTRODUÇÃO Ao assumirem o governo paulista em 1889, os novos governantes da República tinham como uma de suas metas a reorganização das instituições herdadas do Império, dentre as quais se destaca o setor de Obras Públicas. O sucesso das exportações de café para o mercado interna‑ cional trouxe novos desafios à gestão pública, como a abertura de outras frentes de produção, a expansão da malha ferroviária e o crescimento de várias cidades do estado. Para as questões territoriais, necessitava‑se demarcar as fronteiras da ex‑província, assim como promover a produção de conhecimento científico sobre as terras paulistas para favorecer as atividades ligadas à agricultura (COSTA, 2003). Para as questões urbanas, o setor de Obras Públicas era fundamental, pois dizia respeito ao controle de novas edificações, arruamentos, fiscalização e controle das empresas concessionárias de serviços públicos. Além disso, era imperativo o desenvolvimento de uma legislação que organizasse o espaço urbano em suas mais diversas atividades, como pode ser visto, por exemplo, no Código Sanitário paulista de 1894. O engenheiro civil Antonio Francisco de Paula Souza teve sua trajetória profissio‑ nal marcada pela atuação em instituições públicas dessa natureza. Formado em Enge‑ nharia pela Escola Politécnica do Grão‑Ducado de Baden, na Alemanha, Paula Souza de‑ senvolveu uma profícua carreira com trabalhos nas esferas pública e privada, em projetos de saneamento e ferrovias — obras de infraestrutura que constituíam campos de atuação profissional dos engenheiros da época. O envolvimento de Paula Souza com as Obras Públicas data do ano de 1869, quan‑ do foi nomeado diretor da Inspetoria Geral de Obras Públicas da então província de São Paulo. A partir do advento da República, destacou‑se por sua atuação em repartições vol‑ tadas à gestão das Obras Públicas. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é analisar como ocorreu a reorganização do setor de obras públicas através da trajetória profissional do engenheiro Paula Souza. Assim, este artigo analisa o período compreendido entre 1869 e 1891, quando o engenheiro, incumbido de reorganizar o setor de Obras Públicas, ocupou diferentes cargos que definem três momentos: em 1869, ao assumir a Inspetoria Geral das Obras Públicas da Província de São Paulo; em 1890, ao ser nomeado para organizar a Superintendência de Obras Públicas do governo estadual; e em 1891, ao ser comissiona‑ do para integrar a Comissão de Estudos das Várzeas da Capital. Como referenciais teóricos, este estudo toma autores que identificam as trajetórias profissionais como um instrumento de análise de eventos ou de processos sociais mais amplos. O pioneiro trabalho de Andrade (1992) sobre o engenheiro Francisco Saturnino de Brito demonstra que, a partir da análise histórica de uma trajetória profissional, é possível compreender o desenrolar de planos urbanísticos e de projetos políticos mais amplos. Igualmente, a reflexão de Cerasoli (2014, p.300) aponta que “as trajetórias profis‑ sionais, recuperadas por meio de uma abordagem aberta e não‑linear, descortinam outras possibilidades de interpretação, ao considerar as relações e tensões que perpassam a vida profissional” do personagem estudado.

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Nesse sentido, a análise da trajetória profissional não‑linear de Paula Souza per‑ mite considerar tais relações e tensões, em especial as relações sociais mantidas pelo engenheiro, responsáveis por sua inserção no setor de obras públicas. As relações sociais são construídas por agentes sociais (indivíduos, grupos), cuja interação influi diretamen‑ te na produção do espaço territorial e urbano. No caso específico da produção social do espaço, no estado de São Paulo e na capital, percebe‑se que essa interação constitui uma verdadeira teia de relações sociais que permitiu a Paula Souza ascender junto ao setor de Obras Públicas. Sua interação com os membros do Partido Republicano Paulista foi uma teia de relação social tão bem consolidada que, somada à sua competência profissional, permitiu sua permanência no centro das decisões políticas por quase trinta anos. Assim, pretende‑se revelar como a trajetória profissional e social de Antonio Fran‑ cisco de Paula Souza permite entender e analisar a reorganização do setor de Obras Pú‑ blicas do governo estadual paulista, nos primeiros tempos da transição entre monarquia e República. Na condição de diretor da Inspetoria Geral de Obras Públicas, o engenheiro estava incumbido de reorganizar e dirigir a repartição, cargo para o qual lhe valeram os laços familiares e políticos. Nos primeiros tempos da República, permaneceu na Superinten‑ dência de Obras Públicas, com a função de reorganizar o setor de Obras Públicas do estado, a convite do governador Prudente de Moraes. Por fim, quando integrante da Comissão de Saneamento das Várzeas da Capital, suas iniciativas que reverberaram por todo o estado.

A INSPETORIA GERAL DAS OBRAS PÚBLICAS DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 1868 Antes de se dedicar à engenharia, o jovem Paula Souza realizou diversas visitas e estágios ligados à área. Entretanto, esses trabalhos de campo foram bruscamente interrompidos com a notícia do falecimento de seu pai, obrigando‑o a retornar ao Brasil logo após a conclusão da graduação. Em São Paulo, as alianças políticas e familiares garantiram ao jovem um emprego público: o de Inspetor Geral das Obras Públicas da Província de São Paulo, em 1868. Entretanto, a institucionalização das Obras Públicas em São Paulo iniciara‑se dé‑ cadas antes. Segundo Beier (2013), o Ato Adicional de 1834, ocorrido após a abdicação de D. Pedro I, fora fundamental para a instauração do poder das províncias. Com auto‑ nomia para governar e dispondo de recursos tributários, as elites regionais aproveitaram o momento para vincular sua ação política ao aparelho do estado. Com a máquina estatal em seu benefício, a elite paulista tratara de dotar o estado de repartições voltadas ao atendimento dos problemas que emperrassem sua atividade econômica. Imbuídas desse ideal, surgiram as primeiras iniciativas de criação de uma repartição de Obras Públicas na província de São Paulo, onde uma das queixas mais recorrentes era a ausência de estradas e a péssima condição de tráfego das poucas que existiam. A criação do Gabinete Topográfico (1835‑1849) estava atrelada a essa necessida‑ de de organizar uma repartição provincial de Obras Públicas, além do ensejo de formar

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quadros técnicos para executar projetos, levantamentos e obras (BEIER, 2013). Nesse propósito de institucionalizar as Obras Públicas é que, em 1844, a Assembleia Legislativa criara a Diretoria de Obras Públicas. Beier, citando Eudes Campos, relata que essa dire‑ toria surgira com uma estrutura ambiciosa e alto número de funcionários, com atividades restritas à capital. Em 1845, a Assembleia resolveu dividi‑la em quatro seções e reduzir sua estrutura (BEIER, 2013). Mesmo com a existência da Diretoria de Obras Públicas, os serviços ainda não es‑ tavam estruturados nem conseguiam atender às demandas dos setores mais dinâmicos da economia paulista. A província ainda se ressentia da falta de pessoal técnico qualificado para levar à frente um programa mais amplo de infraestrutura. A Diretoria de Obras Pú‑ blicas passou por vários percalços nos anos seguintes, sendo novamente organizada pela Lei nº 51, de 15 de abril de 1867, que autorizava a província “a estabelecer na capital uma repartição central de obras públicas” (PINTO, 1903, p.260). No âmbito desse processo de institucionalização é que o governo provincial criou a Inspetoria Geral das Obras Públi‑ cas, “especialmente encarregada da direção, construção e fiscalização das obras públicas” de São Paulo (PINTO, 1903, p.260). Para ocupar a nova repartição, o presidente da província, Conselheiro Joaquim Saldanha Marinho, nomeou o jovem Antonio Francisco de Paula Souza (SÃO PAULO, 1868). A leitura do relatório elaborado por ele revela que, ao assumir a função, deparou‑se com uma repartição completamente despreparada para tarefa de tamanho vulto. A Inspe‑ toria não dispunha dos recursos financeiros necessários para contratação de mais pessoal nem para a compra de instrumental para os trabalhos. Mesmo com problemas dessa ordem, Paula Souza logo iniciou os trabalhos da nova repartição, como os levantamentos das condições das estradas da província (SÃO PAULO, 1869). Os trabalhos durante a gestão de Paula Souza concentraram‑se, em um primeiro momento, no levantamento das estradas, questão de primeira ordem e constantemente reivindicada pela população. O engenheiro pretendia realizar estudos mais amplos sobre o território paulista, com a elaboração de uma carta corográfica (SÃO PAULO, 1869), mas a queda do gabinete liberal, ao qual estava vinculado, fez com que ele pedisse demissão do cargo. Sua atuação na Inspetoria foi breve, mas extremamente profícua, pois evidenciou para ele as dificuldades enfrentadas pelo setor de Obras Públicas na província. O jovem dedicou‑se aos seus estudos práticos e, a partir de 1870, retomou os trabalhos principalmente com clientes particulares, só voltando ao setor público após proclamada a República.

A SUPERINTENDÊNCIA DE OBRAS PÚBLICAS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1890‑1891 Com a proclamação da República, formou‑se em São Paulo o governo provisório estadual sob a forma de um triunvirato, composto por Prudente de Moraes, Francisco Rangel Pes‑ tana e Joaquim de Sousa Mursa (CASALECCHI, 1987). Sob o sistema federativo, com

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plenos poderes e um orçamento próprio, caberia a Prudente de Moraes a organização do novo arranjo institucional da ex‑província. A primeira repartição a sofrer reformulações foi a de Obras Públicas. Eram notórias entre os paulistas as irregularidades e a ineficiência que cercavam o órgão, responsável pela manutenção e construção de estradas, pontes e prédios públicos. Estava sob sua gerência a fiscalização dos trabalhos realizados pelas empresas prestadoras de serviços públicos, através dos engenheiros fiscais. Para o gover‑ nador, o setor de obras públicas do estado deveria ser completamente remodelado, tendo em vista as novas obrigações que agora lhe caberiam (SÃO PAULO, 1890). Assim, por Decreto de 27 de dezembro de 1889, foi criada a Superintendência de Obras Públicas de São Paulo (SOP), órgão que concentrava em seu interior todos os serviços relativos às obras públicas. A ela competiam as seguintes atribuições: direção e fiscalização de todos os serviços de obras públicas do estado; fiscalização das companhias ferroviárias; demarcação e divisão das terras públicas; inspeção das colônias do estado; e fiscalização do levantamento dos trabalhos da Comissão Geográfica e Geológica do Estado (SÃO PAULO, 1890). A pedido de Prudente de Moraes, as atribuições e obrigações da SOP foram organizadas pelo engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza, sendo‑lhe conferida em seguida a direção dos trabalhos da repartição. Sua entrada para a SOP marca sua segunda incursão no setor público, porém agora como colaborador do novo regime, auxi‑ liando no aparelhamento do Estado republicano. Paula Souza participou ativamente do movimento republicano e da própria formação do Partido Republicano Paulista (PRP). Pela sua correspondência pessoal, verifica‑se que o seu círculo de convívio político era composto por pessoas como Bernardino de Campos, Francisco Glicério e outros. No‑ vamente, foi essa rede de relações sociais que promoveu seu ingresso na administração pública, sob a égide da República. Como já mencionado, nos tempos da província, o setor de obras públicas estava vinculado ao governo provincial como uma repartição responsável pela realização das obras públicas. Para abranger todo o território paulista, ao final da década de 1880, a Repartição de Obras Públicas estava dividida em seis seções territoriais, cada uma contando com a su‑ pervisão de um engenheiro, auxiliado por um corpo técnico (SÃO PAULO, 1887). Dentro das seções territoriais, o engenheiro era o responsável pela totalidade das obras públicas executadas pelo governo: manutenção de estradas, pontes e prédios públicos (cadeias, câ‑ maras municipais, igrejas). As obras podiam ser executadas por meio de administração, con‑ corrência, contrato ou comissões específicas. Entretanto, a maioria dos trabalhos consistia, para as cidades do interior, em manutenção de pontes, estradas e prédios públicos; e, para a capital, em melhoramentos urbanos que pretendiam conferir à cidade um novo aspecto, com a construção de aterros, pontes, saneamento de várzeas e calçamento de ruas. Assim, no final do Império, a repartição não tinha suas ações guiadas por um pla‑ no; pelo contrário, era visivelmente voltada para atender aos imprevistos que surgissem

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no cotidiano. Por último, ressalta‑se que a repartição de obras públicas provincial era direcionada exclusivamente para o setor de obras, inexistindo uma interlocução com outros assuntos que também diziam respeito a seu rol de atribuições, como ferrovias e serviços urbanos administrados por empresas privadas. Essas outras atribuições encon‑ travam‑se espalhadas dentro da estrutura de governo e eram de competência direta do presidente da província. Ciente de que as instituições que compunham o Estado deveriam refletir novos tempos e uma nova forma de condução da máquina pública, ao assumir a direção da Superintendência Paula Souza promoveu uma reorganização do setor de obras públicas. Primeiro, agrupou dentro de uma única repartição todas as competências do setor que estavam dispersas pela estrutura de governo, reunindo quatro seções — obras, ferrovias, empresas prestadoras de serviços e a Comissão Geográfica e Geológica —, que deveriam atender ao estado como um todo. A forma como foi estruturada a Superintendência sugere que essas seções man‑ teriam uma constante interlocução, pois se perseguia o objetivo de alavancar o desenvol‑ vimento do estado de São Paulo, sendo imprescindível o funcionamento harmônico das seções. Contudo, não foi possível averiguar se tal funcionamento ocorreu de fato. Cada uma das quatro seções reportava‑se à diretoria e esta remetia ao governa‑ dor o desenvolvimento dos trabalhos, assim como lhe encaminhava pedido de verbas e discutia com ele outros assuntos de interesse. Esse funcionamento da SOP por meio de seções assemelha‑se muito à divisão de trabalho utilizada pelas empresas ferroviárias, o que sugere a transferência para o Estado de um modelo de organização e administração do setor privado. Seguindo estruturação similar, cada uma das seções era composta por um engenheiro ou outro profissional, seguido por um corpo de auxiliares, geralmente engenheiros. Quanto ao recrutamento desses profissionais, conforme relatório de Paula Souza, foram procurados indivíduos que dispusessem de certa experiência profissional na área de Engenharia (SÃO PAULO, 1890). A estruturação da nova repartição foi significativa, mas não podia ser colocada em prática antes de se finalizarem os trabalhos do governo anterior. Antes de enveredar pelo novo caminho, era preciso resolver uma série de pendências que envolvia obras e empresas prestadoras de serviços públicos. Assim, ao assumir a diretoria da SOP, Paula Souza organizou e catalogou o arquivo da antiga repartição de obras, deparando‑se com a falta ou a inoperância de aparelhos de engenharia, que emperravam o desenvolvimento dos trabalhos. Como parte do aparelhamento da nova instituição, providenciou a compra de cinco cleps1 pequeno modelo, um cleps grande modelo e aparelhos fotométricos para a fiscalização do serviço de iluminação pública. Como o uso do cleps não era comum entre os engenheiros nacionais, Paula Souza escreveu um pequeno guia com instruções que facilitassem seu uso, mais tarde transformado no livro Elementos de Taqueometria, publi‑ cado em 1895 (SÃO PAULO, 1890).

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A terceira seção foi um dos setores em que houve acúmulo de serviço. A seção era responsável pela fiscalização das empresas ferroviárias e de serviços urbanos. Além da análise dos contratos em andamento — alguns turbulentos, como o da Companhia Can‑ tareira e Esgotos —, acumulavam‑se pedidos de concessão de ferrovias e serviços públicos gerados pela euforia financeira do Encilhamento. Para ilustrar o que foi dito, em 1890 o Estado mantinha contrato de prestação de serviços urbanos com um total de sete empresas: a Cantareira e Esgotos (rede de água e esgotos de São Paulo); a Companhia de Gás (iluminação a gás em São Paulo); a Companhia de Águas e Esgotos de Campinas; a Companhia responsável pela construção do Viaduto do Chá; e as empresas de transportes urbanos (Companhia Carris de Ferro de Santo Amaro, Bonds do Ipiranga, Ferro Carril). Segundo Paula Souza, os serviços relativos à iluminação a gás vinham correndo sem maiores embaraços, assim como as empresas ferroviárias, ressaltando somente a necessi‑ dade de se estudarem as bases do novo contrato que em breve seria refeito com algumas alterações (SÃO PAULO, 1890). Também as empresas ferroviárias vinham cumprindo rigorosamente os contratos, sem apresentar maiores óbices à SOP. A responsabilidade fiscal da superintendência abarcava duas classes de empresas ferroviárias: as que reque‑ riam garantias de juros por parte do governo e as que se expandiam por conta própria. Os números trazidos por esse relatório, um total de 1.573,5 Km de caminhos de ferro fisca‑ lizados pela SOP, são significativos para evidenciar que o setor de transportes era um dos que mais se expandiam em São Paulo. Dentre os contratos celebrados com empresas concessionárias de serviços públi‑ cos, o que mais inspirava cuidados era o ligado ao saneamento, por apresentar baixo retor‑ no aos investidores, corroborando afirmação de Bueno (1994) de o setor não se mostrar lucrativo para a iniciativa privada, restando ao Estado a tomada desses serviços. Assim, por exemplo, em Campinas, embora as obras de abastecimento se encontrassem com andamento regular, o mesmo não acontecia com a de esgotos, há pouco principiadas, o que inspirava maior atenção por parte dos técnicos da SOP. Na capital, a situação dos serviços de saneamento era pior ainda, com o crescente descontentamento da população em relação aos serviços de saneamento precários oferecidos pela Companhia Cantareira. Pela correspondência pessoal de Paula Souza2 percebe‑se que ele era convocado ao gabinete do governador para discutir os rumos da Companhia Cantareira. Paula Souza e o arquiteto Ramos de Azevedo eram sempre consultados; a pauta referia‑se à renovação dos contratos da companhia. Paula Souza defendia a encampação dos serviços pelo Es‑ tado, devido às irregularidades da empresa, também responsável pela construção da rede de esgotos, na qual usava maiores porosos, impróprios para escoamento. O engenheiro era de opinião de que tais serviços deveriam ser dirigidos pelo Estado, o que finalmente foi acatado pelo governo, com a encampação dos serviços da companhia em 18923. Sob a responsabilidade da SOP, a Companhia Cantareira passou a ser denominada Repartição

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Técnica de Águas e Esgotos (RTAE), cuja estruturação contou com o auxílio do engenhei‑ ro Theodoro Sampaio (COSTA, 2003). Das quatro seções que formavam a SOP, a única que manteve a mesma ordem de trabalhos foi a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (CGGSP), sob a direção de Orville Derby. A subordinação da CGGSP à SOP baliza duas significativas parcerias profissionais feitas por Paula Souza: com o geólogo Derby, que se envolveria em outros empreendimentos, como a Comissão de Exploração da Ferrovia de Coxim e a Escola Politécnica; e com o engenheiro Theodoro Sampaio, no plano de saneamento da capital e do interior, na estruturação da RTAE e também na Escola Politécnica (COSTA, 2003). Sobre a manutenção da estrutura organizacional da CGGSP, é pertinente observar que essa comissão era o elemento estruturador da SOP, na medida em que consubstan‑ ciava a nova diretriz almejada para as obras públicas em São Paulo, pautadas em ações de planejamento urbano e territorial que consolidassem a implantação do complexo cafeeiro. Esse era o objetivo da comissão: aliar conhecimento científico à lógica de expansão dos negócios do café (COSTA, 2003, 2005; BERNARDINI, 2006). Além das competências atribuídas a cada uma das seções, coube ao diretor da SOP de‑ liberar acerca de “serviços diversos”, em sua maioria, pendências herdadas do governo anterior. Outros trabalhos conduzidos por Paula Souza diziam respeito às metas do PRP dentro do governo estadual. São elas: ‑ estudo da base de contrato entre o governo e a Companhia São Paulo — Rio Claro Railway, para o prolongamento de Araraquara a Jaboticabal. Contrato assinado em 10 de janeiro de 1890; ‑ estudo da base de contrato entre o governo e a São Paulo Railway Company, para abertura da nova Rua do Bom Retiro (construção de passagem superior no prolongamento da Rua Bom Retiro, abertura do prolongamento da Rua Brigadeiro Raphael Tobias e da Rua Senador Florêncio de Abreu); ‑ desapropriação de terrenos de propriedade particular, onde se instalou a Estação do Cruzeiro, das companhias Estrada de Ferro Central e Minas‑Rio; ‑ revisão do contrato celebrado entre a Intendência de Rio Claro e a Boaventura Clapp, para um sistema de esvaziamento mensal de fossas fixas, por meio de aparelhos pneumáticos, como medida para conter o avanço da febre amarela. Sobre essa questão, o parecer da direção da SOP afirma a necessidade de se estabelecer “um serviço completo de saneamento”, a ser realizado naquela municipalidade a cargo do próprio município; ‑ estudos sobre o arrendamento da fábrica de ferro de Ipanema, em Sorocaba; ‑ construção de uma estação central para todas as linhas de companhias ferroviárias que cruzam ou terminam na capital São Paulo; ‑ assentos diversos ligados à construção do monumento do Ipiranga; ‑ estudo da proposta de troca do novo quartel de Polícia do estado (obra tocada por Ramos de Azevedo) pelo o do 10º Regimento de Cavalaria, do governo federal;

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‑ estudos para a implantação da Escola Normal (desde o plano de estruturação do ensino ao projeto do edifício); ‑ Comissão de Estudos das Várzeas da capital, com vistas a atenuar os efeitos das enchentes, em parceria com o engenheiro Theodoro Sampaio (SÃO PAULO, 1890, p.223). Tomando‑se por base esses projetos e o desenvolvimento dos trabalhos das seções, entende‑se que, com a criação da SOP, pretendia‑se alargar o raio de atuação do setor de obras públicas do estado, abrangendo questões relativas às redes de água e esgotos, circulação e saneamento. Essa constatação leva a endossar as conclusões de Bernardini (2006) e Costa (2003, 2005), para os quais se operava uma mudança nas bases do poder público estadual: a “exploração e ocupação dos novos territórios e a expansão da malha ferroviária por todo o oeste de São Paulo” cedem lugar à “estabilização da ocupação e [do] desenvolvimento efetivo de núcleos administrativos, com esforço de retomada da aplica‑ ção dos recursos em atividades intrinsecamente urbanas” (BERNARDINI, 2006, p.15). Entretanto, apesar de ser a SOP a repartição que impulsionou essa nova linha de atuação dirigida à infraestrutura urbana, não foi a ela que coube o desenvolvimento de tais trabalhos. No decorrer da década de 1890, a SOP esteve inserida em uma estrutura maior, tendo sido a responsável exclusiva pela direção e fiscalização de todas as obras públicas do estado de São Paulo: pontes, pontilhões, edifícios públicos em geral, estradas de ferro, carris urbanos, iluminação a gás e serviços de águas e esgotos da capital (antiga Companhia Cantareira) (SÃO PAULO, 1893). Essa estrutura maior será, na verdade, a Secretaria dos Negócios da Agricultura4, órgão que direcionará as ações do Estado volta‑ das ao desenvolvimento urbano e que acabará por absorver a SOP. Alguns pesquisadores indicam que os trabalhos da SOP em seus primeiros anos, sob a direção de Paula Souza, concentraram‑se basicamente em duas linhas de atuação, pautadas na questão sanitária e na construção de prédios públicos (CAMPOS NETO, 2000; COSTA, 2005). A essas duas linhas de atuação que se confirmam de fato, podem‑se também atribuir ao engenheiro os esforços pela reorganização do setor de Obras Públicas e das atribuições do Estado junto ao órgão.

A COMISSÃO DE SANEAMENTO DAS VÁRZEAS DA CAPITAL, 1891 A várzea do Carmo, nas últimas décadas do século XIX, passou a ser alvo de reflexão dos administradores da cidade de São Paulo. O local apresentava um duplo risco para a cida‑ de: um perigo para a saúde, pelas constantes enchentes, águas estanques e lixo que lá se acumulavam; e uma ameaça aos bons costumes de uma cidade que pretendia civilizar‑se. A várzea reunia, em suas águas, lavadeiras, carroceiros, escravos e toda uma gama de indivíduos que, por seus modos e linguajares, tornavam‑na um logradouro impróprio à população paulistana branca e endinheirada da época (SANTOS, 1998). Segundo o relatório de 1890, para resolver o problema foi realizado um con‑ curso para as obras de saneamento e embelezamento da várzea do Carmo, ao qual se

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apresentaram duas empresas interessadas: a de Miranda e Malfatti; e a de Pennaforte Mendes de Almeida e J. Evaristo Alves Cruz. A princípio, a Câmara Municipal de São Paulo decidiu‑se pelo projeto de Miranda e Malfatti, criticado por parte da imprensa paulistana, em especial pelo jornal O Correio Paulistano. Argumentava o jornal que o projeto possuía pontos pouco esclarecidos, como os gastos com o saneamento da área. Um ponto específico incomodava o jornal: a doação de um logradouro público para exploração por particulares; os editoriais defendiam a permanência da várzea como um local público. Prudente de Moraes interveio, declarando que o saneamento da várzea seria, a partir de então, responsabilidade única e exclusiva do governo do estado. O governador ainda argumentava que, pela proximidade com a região central, a várzea constituía área natural de expansão urbana da cidade. O governador anulou o concurso, baseando‑se na premissa de que serviços de tal natureza somente poderiam ser realizados pela adminis‑ tração pública, e não por particulares. Ele também comunicou que havia comissionado para os trabalhos os engenheiros Antonio Francisco de Paula Souza e Theodoro Sampaio (SÃO PAULO, 1890). De forma clara e explícita, o governo paulista propunha um amplo programa de “saneamento” físico e social (SANTOS, 1998; OLIVEIRA, 2005), deixando a área em condições de ser ocupada e livre daquela população marginal que a frequentava e não se enquadrava dentro dos moldes sociais requeridos. Estava‑se, enfim, liberando uma gran‑ de porção de terra que se prestaria à expansão urbana da capital paulista. A escolha dos dois profissionais para encabeçar a comissão reflete que o Estado estava empenhado em criar uma solução definitiva para o problema da várzea, já que os estudos estavam sendo confiados a profissionais que se baseariam em métodos e conhecimentos científicos para elaborar o projeto mais adequado aos problemas enfrentados. Theodoro Sampaio era o chefe interino da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo — órgão que reunia em si todos os elementos necessários para proceder aos estudos dentro dos objetivos requeridos pelo Estado —, e vinha ganhando muito prestígio profissional naquela função. Antonio Francisco de Paula Souza era sempre requisitado para emitir pareceres junto ao governo estadual em assuntos ligados a obras públicas, além de ser o responsável pela SOP. A participação de Paula Souza restringiu‑se mais aos trabalhos de levantamento das várzeas e de determinação, junto com Sampaio, das obras que deveriam ser encetadas para o saneamento das várzeas paulistas e de outras obras que acreditava ser de igual im‑ portância. O principal ponto de aproximação entre ambos era a concordância de que tais trabalhos deveriam ser realizados única e exclusivamente pelo Estado, longe dos interes‑ ses particulares e das especulações mercantis. A expertise técnica era relevante, mas não se pode negligenciar o fato de que a escolha de Paula Souza para a Comissão também teve inclinação política; afinal, ele era membro do PRP e responsável pela SOP.

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Os trabalhos de levantamento e elaboração dos projetos foram realizados ao longo de 1890. Os estudos, financiados com uma verba especial de R$14:500$000, foram feitos com o pessoal da CGGSP e da SOP, sendo concluídos e entregues ao governo estadual em novembro de 1891 (SÃO PAULO, 1890). Entretanto, Paula Souza não permaneceu até o final dos trabalhos. Ao término dos trabalhos de campo, segundo relato de Sampaio constante nesse mesmo relatório, o engenheiro ausentou‑se da cidade — devido ao em‑ prego oferecido pelo Banco União para explorar o trecho de Uberaba a Coxim —, mas não sem antes assentar um “plano de comum acordo” para o saneamento das várzeas. Coube a Theodoro Sampaio dirigir os trabalhos de escritório e redigir o texto final do relatório apresentado ao governador (SÃO PAULO, 1890). Nesse relatório, o plano apresentado pelos engenheiros não era um simples estudo de canalização dos rios, drenagem de solos úmidos e proteção contra enchentes. O plano foi além, pois contemplava a realização de uma série de obras que o relatório chama de “aformoseamento”, ou seja, de embelezamento. Tais melhoramentos estéticos seriam feitos logo após as retificações de cunho sanitário, complementando as reformas e confe‑ rindo um novo aspecto àquelas áreas. No tocante às obras de saneamento, os dois engenheiros concluíram que o pro‑ blema de inundação das várzeas de São Paulo era uma simples questão de canalização do rio Tietê com a construção de diques marginais, e do enxugo da várzea do Carmo com a implantação de drenos e galerias (SÃO PAULO, 1891). A retificação do Tietê se faria pela construção de um largo canal que facilitaria o escoamento de suas águas, e com diques marginais que impediriam o transbordamento do rio para a parte baixa da cidade. Para o Tamanduateí, propuseram a regularização de seu curso e a construção de diques margi‑ nais, que teriam implicações diretas no tecido urbano, pois abrigariam “novas avenidas em grande extensão e largura”, permitindo a ocupação de parte daqueles terrenos antes alagadiços (SÃO PAULO, 1891, p.65). Além das várzeas do Tamanduateí e Tietê, a comissão indica que deveria passar por intervenções similares, de caráter urgente, a várzea do Anhangabaú. Considerando‑a como ameaça à saúde pública da cidade, propõem para aquele local um projeto de melho‑ ramentos que atendessem às normas de higiene e também aos meios de transportes e ao embelezamento da região. A extensão dos projetos contemplaria o ribeirão de sua foz (no Tamanduateí) até o tanque do Saracura (no Bexiga). Quanto às obras de embelezamento, os engenheiros destacaram que os novos ar‑ ruamentos — surgidos com os diques marginais construídos ao longo dos rios —, seriam convertidos em amplas avenidas que deveriam ser arborizadas. Para a várzea do Carmo, recomendavam que a área acomodasse um imenso jardim, ao mesmo tempo que abrigaria os novos edifícios públicos, como o mercado municipal. Os terrenos adjacentes ao jar‑ dim, não ocupados por esses equipamentos, seriam entregues à iniciativa privada, com a incumbência de criação de loteamentos. Dentre as obras recomendadas no relatório da

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comissão, salientam‑se a remoção/incineração do lixo urbano e um sistema de tratamento das águas servidas. Para o lixo, a solução aconselhada foi o assentamento de uma linha de carris eco‑ nômica, ao lado dos diques marginais da canalização. No tocante aos esgotos, a Comissão frisou que o despejo in natura feito no rio Tietê necessitava ser interrompido quando as obras de canalização fossem concluídas. Porém, o apelo maior feito pelos engenheiros foi pela conclusão das obras de esgotos, sob a concessão da Companhia Cantareira e Esgotos. Indicaram a necessidade de se construírem grandes galerias que deveriam terminar em poços, por detrás dos diques marginais e em nível inferior ao rio, e inteiramente abrigados das enchentes. Nesses poços, seriam as águas e materiais fecais depurados e arremessa‑ dos ao rio por meio de bomba, após desinfecção (SÃO PAULO, 1891). A entrega do relatório final ao governador do estado teve um impacto decisivo no rumo das políticas de saneamento paulista. Os resultados apresentados foram suficientes para convencer as autoridades quanto à imperativa realização das obras de retificação esboçadas no plano. Pode‑se afirmar que o lançamento do plano foi um divisor de águas na história ambiental paulista, uma vez que desencadeou uma ampla ação estatal voltada para o saneamento, tendo como primeiro impacto a criação da Comissão de Saneamento, em 1892, responsável pela criação de sistemas de águas e esgotos em várias cidades do in‑ terior paulista. Como segundo impacto, destacam‑se as significativas transformações na paisagem natural da capital e de outras cidades do interior.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo analisou a reorganização do setor de Obras Públicas de São Paulo no período de transição do Império para a República, sob a condução do engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza. O setor de Obras Públicas como uma repartição provincial/estadual teve sua primeira tentativa de organização em 1844, mas foi somente nas primeiras décadas do século XX que viria a conquistar estrutura mais consolidada e efetiva. Nesse processo, a trajetória profissional de Paula Souza revelou que o Estado foi estabelecendo e definindo as competências das Obras Públicas. A institucionalização do setor revela as tentativas do Estado de regular a vida social por meio da definição de regras (leis, decretos, códigos), atuando ainda como árbitro entre a esfera pública e a privada. Por outro lado, esta análise permitiu conhecer como o setor também foi determinante na execução de medidas que produziram transformações substanciais no espaço, sobretudo para o restabelecimento do controle sanitário no estado de São Paulo em fins do século XIX. Pelo estudo da trajetória do engenheiro, foi possível descortinar a relação do Esta‑ do com a iniciativa privada: nem sempre este atuou com neutralidade, tendo em alguns momentos claramente intercedido em favor de interesses particulares. Outro questio‑

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namento levantado foi a inserção de pessoas nos quadros públicos por meio das relações partidárias e familiares: cargos oferecidos aos correligionários ou parentes, mecanismo que visava garantir a manutenção dos interesses do grupo ao qual estavam vinculados e sua permanência no poder. As questões levantadas pelo estudo da reorganização do setor de Obras Públicas através da trajetória do engenheiro Paula Souza são atuais, na medida em que a socie‑ dade brasileira debate a importância de um Estado mais transparente e voltado aos interesses públicos. Por último, salienta‑se a importância dos estudos que utilizam o enfoque metodo‑ lógico em trajetórias profissionais. Tal abordagem é enriquecedora ao revelar os meandros do poder e o funcionamento de seus órgãos e, consequentemente, seus desdobramentos na produção social do espaço.

NOTAS 1. Trata‑se de um instrumento geodésico para cálculo de área através da obtenção de ângulos. 2. A correspondência pessoal de Paula Souza está sob a guarda do Setor de Obras Raras da Biblioteca Mário de Andrade, na cidade de São Paulo. 3. Sobre a encampação da Companhia Cantareira e Esgotos, ver Campos (2005) e Bernardini (2007). Este último autor, em sua tese de doutorado, revela a existência de uma articulação política para não lesar os acionistas da empresa, que pertenciam ao mesmo círculo de relações políticas (e familiares) dos membros do governo paulista. 4. A Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas é que se tornará a res‑ ponsável pelas Obras Públicas do Estado. A criação de uma Secretaria de Viação e Obras Públicas ocorrerá somente em 1927. Sobre aquela Secretaria, sua estruturação, funcionamento e os motivos de seu desdobramento na Secretaria de Viação e Obras Públicas, Bernardini (2007).

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CRISTINA DE CAMPOS | Universidade Estadual de Campinas | Instituto de Geociências | Programa de Pós‑Graduação em Política Científica e Tecnológica | R. Pandiá Calógeras, 51, Cidade Universi‑ tária Zeferino Vaz, 13083‑870, Campinas, SP, Brasil | E‑mail: <campos@ige.unicamp.br>.

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Recebido em 29/8/2013, reapresentado em 16/6/2014 e aprovado em 22/7/2014.

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POLÍTICA DE MOBILIDADE, MERCADO DE TERRAS E A NOVA LÓGICA DE EXPANSÃO NA CURITIBA METRÓPOLE: INCLUSÃO DO EXCLUÍDO? MOBILITY POLICY, LAND MARKET AND THE NEW LOGIC OF EXPANSION IN CURITIBA: INCLUSION OF THE EXCLUDED? | POLÍTICA DE MOVILIDAD, MERCADO DE TIERRAS Y LA NUEVA LÓGICA DE EXPANSION EN CURITIBA METRÓPOLI: ¿INCLUSIÓN DEL EXCLUIDO? SYLVIA RAMOS LEITÃO

RESUMO A lógica da expansão urbana na Curitiba Metrópole transformou‑se ao longo das duas últimas décadas. O primeiro movimento de expansão veio atrelado à valoriza‑ ção imobiliária do centro em direção à periferia, expulsando a população de baixa renda para cada vez mais longe, num processo de periferização imposto pela lógica classista centro‑periferia. O segundo movimento adveio da política de mobilidade de caráter inclusivo, com a extensão da Rede Integrada de Transporte à periferia segmentada. O maior impacto daí decorrente foi a mobilidade social das classes de mais baixa renda, graças ao incremento salarial propiciado pelos movimentos pen‑ dulares do cidadão metropolitano ao emprego no centro da metrópole. O terceiro movimento de expansão se deu por uma lógica de inclusão do excluído, lógica essa peculiar à Curitiba Metrópole, da qual resultou o acesso à metrópole pelo cidadão dela anteriormente excluído. A acessibilidade urbana possibilitou a permanência do cidadão metropolitano na nova localização produzida, que nada mais é do que o bairro popular agora conectado a todos os pontos da Curitiba Metrópole. Por meio de pesquisa empírica, constatou‑se que o maior número de localizações produzidas, nos últimos quinze anos, no cone leste da metrópole referia‑se à lógica de inclusão do excluído, o que veio revelar um fenômeno — a tendência de homogeneização dos preços da terra graças à homogeneização da acessibilidade urbana. Em última instância, a lógica da inclusão do excluído veio legitimar as ideologias da qualidade de vida e do pertencimento à Curitiba Planejada. PALAVRAS‑CHAVE: Curitiba. Expansão urbana. Mobilidade urbana.

ABSTRACT The logic of urban expansion in city of Curitiba has suffered over the last two decades. The first urban expansion movement was tied to the increase in real estate values ​​from the center towards the suburbs, driving the low‑income population to increasingly farther suburbs in a process imposed by the center‑suburb logic. The second urban

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movement came from the mobility policy of inclusiveness, with the expansion of the Integrated Transport Network to the sub‑divided suburb. The biggest impact was on social mobility of the lower income classes thanks to income increase brought about by the commuting of citizens to downtown employment. The third urban expansion movement occurred by the logic of inclusion of the excluded, a peculiar logic to Curi‑ tiba, which resulted in access to the metropolis of the previously excluded metropoli‑ tan citizens. Urban accessibility enabled the permanence of the metropolitan citizen in the new developed location, which is nothing more than the popular neighborhood now connected to all areas of the city. Through empirical research, it was found that the largest number of locations developed in the last fifteen years in the eastern part of the metropolis referred to the logic of inclusion of the excluded, which has revealed a phenomenon — the tendency of homogenizing land prices thanks to the homog‑ enization of urban accessibility. Ultimately, the logic of inclusion of the excluded legitimizes the ideologies of quality of life and of belonging to Planned Curitiba. KEYWORDS: Curitiba. Urban sprawl. Urban mobility.

RESUMEN La lógica de la expansión urbana en Curitiba Metrópoli se ha convertido en las últi‑ mas dos décadas. El primer movimiento de expansión vino ligado a la valorización del inmueble desde el centro hacia la periferia, expulsando a la población con los ingresos más bajos a cada vez más lejos, en un proceso de periferización impuesto por la lógica clasista centro‑periferia. El segundo movimiento vino de la política de movilidad de carácter inclusivo, con la extensión de la Red Integrada de Transporte orientado a la periferia. El mayor impacto debido a eso fue la movilidad social de las clases de menores ingresos, gracias al aumento de los ingresos propiciado por los movimientos pendulares del ciudadano metropolitano a los puestos de trabajo en el centro de la metrópoli. El tercer movimiento de expansión se produjo por una lógica de inclusión de los excluidos, peculiar a Curitiba Metrópoli, que muestra el acceso a los ciudadanos metropolitanos anteriormente excluidos. De la accesibilidad urbana viene la posibilidad de permanencia del ciudadano metropolitano en la nueva ubi‑ cación producida, que no es más que el barrio popular ahora conectado a todos los puntos de Curitiba Metrópoli. A través de la investigación empírica, se encontró que el mayor número de lugares producidos en los últimos quince años en el cono Este de la metrópoli, se refirió a la lógica de la inclusión de los excluidos, que ha revelado un fenómeno — la tendencia de homogeneización de los precios de la tierra gracias a la homogeneización de la accesibilidad urbana. En última instancia, la lógica de la inclusión de los excluidos viene legitimar ideologías de la calidad de vida y de perte‑ nencia a una Curitiba planeada. PALABRAS CLAVE: Curitiba. Expansión urbana. Mobilidad urbana.

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A FORMAÇÃO DA METRÓPOLE SEGMENTADA NA TRANSIÇÃO DA IDEOLOGIA DA CURITIBA PLANEJADA À CURITIBA ECOLÓGICA Em Curitiba, a conformação da metrópole se inicia tardiamente em relação ao marco institucional da criação das regiões metropolitanas no Brasil, em 1973. O fenômeno da conurbação com os municípios lindeiros é impulsionado em meados dos anos setenta, motivado tanto pela alteração do perfil produtivo — com a implantação da Cidade Indus‑ trial de Curitiba, em 1974 —, como pelo intenso fluxo migratório desencadeado pela geada negra que extinguiu os cafezais no norte do Paraná. Em termos de dinâmica de ocupação do território, é importante ressaltar que, na década de 1970, a malha urbana de Curitiba, até então compacta, ultrapassa a BR 116 que até então a limitava. Os municípios de São José dos Pinhais e o distrito de Pinhais (em Piraquara) já apresentam faixas urbanizadas ligadas à malha de Curitiba na porção leste. Também a oeste, a implantação das áreas industriais em Curitiba e Araucária teria induzido uma nova ocupação (PARANÁ, 1999). Entretanto, é na década de oitenta que o fenômeno se intensifica. Alguns muni‑ cípios da região metropolitana de Curitiba alcançam patamares de crescimento nada desejáveis, entre 1980 e 1991: enquanto o núcleo cresce a uma taxa de 2,28% ao ano, a periferia cresce a 6,40% ao ano, sendo considerada uma uma das mais altas taxas de cres‑ cimento do país nesse período. De acordo com Ultramari e Moura (1994, p.10), a expan‑ são da mancha urbana em Curitiba caracterizou‑se pelo extravasamento da periferia em direção às cidades vizinhas, o que determinou a formação de uma metrópole segmentada. Segundo Mautner, é imprescindível esclarecer que a periferia é a base de um processo de produção do espaço urbano: [...] é de fato de fato o lugar onde vivem os mais pobres, é socialmente segregada, e o preço da terra é baixo, porém, ao mesmo tempo, é um local mutante, sempre repro‑ duzido em novas extensões de terras, enquanto velhas periferias são gradualmente incorporadas à cidade, ocupadas por novos moradores e reorganizadas pelo capital (MAUTNER, 1999, p.253).

Porém, torna‑se imprescindível evidenciar nesta análise que a metrópole segmen‑ tada forma‑se à sombra das sucessivas ideologias de planejamento urbano na cidade cen‑ tral — a Curitiba Planejada do sistema de transporte coletivo e a Curitiba reificada pela qualidade de vida, sob o valor maior do pertencimento à Capital Ecológica do país. No início dos anos 1970, Curitiba inicia a implantação maciça de seu Plano Dire‑ tor, 1966, cujo protagonista maior é o transporte coletivo. Sob o princípio de priorização do transporte coletivo sobre o individual, altera‑se radicalmente a estrutura urbana da cidade — de um modelo radial concêntrico para um modelo linear. Nesse novo modelo estabelecem‑se corredores estruturais, com a integração do transporte coletivo ao sistema viário e ao uso do solo: os ônibus passam a circular em canaletas exclusivas para reduzir o

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tempo de viagem, em um sistema trinário de vias. Ao longo do trinário, nas duas quadras por ele definidas, a verticalização passa a abrigar a alta densidade por meio de um plano massa, enquanto o embasamento das torres fica destinado ao comércio e serviços gerais, garantindo‑se assim a extensão das funções da área central ao longo dos corredores de transporte coletivo. Como impacto de toda essa reestruturação urbana, da qual decorre o alto incre‑ mento de potencial construtivo na cidade, ocorreu uma elevação substancial do valor da terra urbana, condicionando assim um movimento das camadas de mais baixa renda para as franjas do aglomerado urbano. De outro lado, tanto Curitiba como os municípios me‑ tropolitanos absorveram significativos contingentes populacionais de baixa renda, frente à acentuação da crise econômica nacional. Essa lógica de expansão excludente, de caráter classista centro‑periferia, é característica da urbanização brasileira: a periferização vem a reboque dos investimentos nas áreas centrais e produz novas tipologias de localizações no território — uma série de “vilas e jardins” isolados, frutos de uma urbanização dispersa. Em 1978, é concluído o primeiro Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Curitiba, a partir das diretrizes da Política Nacional de Desenvolvimen‑ to Urbano. Na década de 1980, Curitiba passa da faixa de 1 milhão de habitantes para 1,3 milhão, a uma taxa de crescimento de 2,34% ao ano. No mesmo período, a região metropo‑ litana cresce a uma taxa de 3,36%, fazendo emergir municípios periféricos, consolidando assim sua área metropolitana. Nessa fase, os contrastes entre a área central estruturada e a periferia desestrutu‑ rada se agravam ainda mais com a implantação da Rede Integrada de Transporte (RIT). A ampliação da acessibilidade e da mobilidade, conferida pela tarifa única, beneficia sobremaneira o cidadão curitibano que, além disso, passa a contar com um sistema de transporte eficiente em termos de regularidade e custos. O cidadão experimenta, mais uma vez, a defasagem de acesso à cidade planejada, primeiramente pela dependência das linhas metropolitanas não integradas, seguida pela acumulação dos custos de duas tarifas — a metropolitana e a da RIT —, para chegar ao emprego no centro da metrópole. Em função do processo de abertura política, as cidades brasileiras passam a viven‑ ciar a experiência da (re)democratização das questões urbanas, reclamada agora pelos movimentos sociais urbanos. Nesse período, a ideologia da cidade planejada — sob o discurso da cidade humanizada e eficiente, vigente por doze anos consecutivos —, rearti‑ cula‑se agora sob a variável da participação, em uma perspectiva democratizante. Emerge, então, o discurso da cidade participativa, quando a oposição assume a prefeitura por duas gestões seguidas (LEITÃO, 2002). Porém, em concomitância com a nova Constituição Federal (BRASIL, 1988), que dentro de uma agenda de reforma social trata da política urbana — no sentido de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade — emerge, no início dos anos noventa, uma nova ideologia de planejamento urbano em Curitiba, ideologia esta des‑

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colada da política urbana em curso no país. Como marca indelével da terceira gestão de Jaime Lerner como prefeito, Curitiba passa de cidade planejada a Capital Ecológica do país. Calcada nos valores da sustentabilidade, do pertencimento e do empresariamento urbano, passa a apostar fortemente no city marketing para atrair novos investimentos ante a economia global. A visibilidade necessária para alavancar tal estratégia vem alicerçada na noção de qualidade de vida urbana, sustentada por três pilares: um programa munici‑ pal de reciclagem de resíduos sólidos, a ampliação do sistema de áreas verdes urbanas e a qualificação do sistema de transporte coletivo. Assim, vê‑se, de um lado, a criação de novos ícones urbanos associados a uma nova geração de parques implantados graças à recuperação de antigas áreas degradadas ou à transferência de potencial construtivo em prol da manutenção de extensas áreas verdes na cidade, viabilizada por ações coordenadas entre Estado e mercado imobiliário. À medida que foram implantados mais oito parques e cinco bosques municipais, Curitiba incorpo‑ rou quase três milhões de metros quadrados de áreas verdes urbanas. O cenário resultante da Capital Ecológica contabilizou duas premiações interna‑ cionais em 1990. O primeiro deles foi concedido pelo International Institute for Energy Conservation, em razão da melhoria na eficiência energética global, graças ao modelo do sistema integrado de transporte, que priorizava o transporte coletivo sobre o indivi‑ dual, possibilitando economia de combustível e diminuindo a emissão de gases tóxicos na atmosfera. A segunda premiação, considerada o Oscar do meio ambiente, foi outorgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) durante o Congresso Mundial de Autorida‑ des Locais para um Futuro Sustentável, pelo programa Lixo que não é lixo.

DA METRÓPOLE SEGMENTADA À CURITIBA METRÓPOLE: ENTRE A EXPANSÃO DO CAPITAL E A EXPANSÃO DA REDE INTEGRADA DE TRANSPORTE As alterações no modo de produção, alavancadas com a globalização, têm rebatimentos tanto na configuração das redes de cidades, como no processo de estruturação interna das metrópoles também no Brasil. Ao fazer seu sucessor à frente da prefeitura de Curi‑ tiba, Lerner assume sua primeira gestão no governo do Estado do Paraná, em 1994. Tem então início um novo projeto de desenvolvimento industrial, alicerçado na atração de investimentos do setor automobilístico para o Paraná. Como resultado desses esforços políticos são implantadas as montadoras Renault, Audi e Chrysler na Região Metropo‑ litana de Curitiba — nos municípios de São José dos Pinhais as duas primeiras, e em Campo Largo a última. Ao vencer disputas pela implantação de montadoras estrangeiras, Curitiba alcança um novo patamar no cenário do desenvolvimento econômico nacional (LOURENÇO, 2000). O dinamismo do setor terciário nessa fase é constatado por Firkowski, ao apontar a expansão do setor de serviços e a configuração de um novo cenário. Até 1995, existiam apenas três hipermercados na região, ao passo que entre 1995 e outubro de 2002 foram

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inaugurados mais 13. Quanto à expansão de shoppings, a dinâmica intensificou‑se a partir de 1995: até 1990 existiam 7 shoppings, já em 2001 totalizavam 19. Com relação à rede hoteleira e de flats, houve uma alta taxa de crescimento após 1995, com a participação crescente das grandes redes mundiais: de 65 estabelecimentos em 1990, passaram para 129 em 2002 (FIRKOWSKI, 2001). Segundo Harvey (2005), o dinamismo do capitalismo hoje torna instáveis as con‑ cepções de urbano e de cidade, não por insuficiência conceitual, mas pelo próprio con‑ ceito ter de refletir as relações mutantes entre forma e processo. Ressalta o autor que o empreendedorismo enfatiza muito mais a economia política do lugar do que a do território. A construção do lugar ou a melhoria das suas condições pode ter um impacto maior ou menor do que o território específico em que os projetos se localizam (HARVEY, 2005). Também encontra apoio na reflexão de Gunn (1999) sobre “a mídia na guerra dos lugares”. Ele ressalta o conceito de boosterismo, concebido em termos da promoção e marketing de lugares, apontando a visão de Mike Davis, para quem o boosterismo adquire seu potencial de instrumentação econômica somente por conta de seu poder cultural e ideológico de criar imagens e promover mitos, como em Los Angeles (GUNN, 1999). Em meados dos anos noventa, as demandas reprimidas da metrópole segmen‑ tada tornam‑se cada vez mais visíveis em função do contraponto da qualidade de vida na cidade central. Disso decorrem novos investimentos em transporte, porém dessa vez na escala intraurbana, apontando uma lógica de expansão de caráter inclusivo para o cidadão metropolitano até então excluído. Lojkine (1981), ao analisar a cidade como um sistema produtivo — no qual produção e consumo são inseparáveis —, ressalta como tema central os conflitos de interesses de classe. Assim, a política urbana, em nome dos interesses do capital monopolista, faria concessões marginais às classes dominadas (LOJKINE, 1981).

REDE INTEGRADA DE TRANSPORTE METROPOLITANA: ACESSIBILIDADE E CONSOLIDAÇÃO DA CURITIBA METRÓPOLE Em 1996, por delegação do Governo do Estado, a Urbanização de Curitiba S/A (URBS) passa a controlar o transporte de toda a região metropolitana, o que permite que a rede de transporte de Curitiba seja integrada em escala intraurbana. Até 1983, as linhas metro‑ politanas ligavam apenas fisicamente a sede dos municípios a Curitiba; após 1983, foram reestruturadas a partir de terminais nas sedes dos municípios e vinham até o Terminal Guadalupe no centro de Curitiba. Em 1966, a extensão da RIT para a área metropoli‑ tana expande inicialmente a integração físico‑tarifária para os municípios de Almirante Tamandaré, Pinhais e São José dos Pinhais. Desde então, intensifica‑se a integração entre a RIT e os sistemas urbanos da área conturbada, atingindo hoje 59 linhas em 12 municí‑ pios. A operação do sistema é privada, sendo que dela participam 10 empresas urbanas e 18 metropolitanas. Desde então, cabe à URBS a tarefa de gerenciar tecnicamente o sistema, além de propor a tarifa, gerir a receita e remunerar as empresas.

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Desse modo é que se configura a aqui denominada Curitiba Metrópole, definida pelos deslocamentos intraurbanos por meio da integração via RIT. Disso deriva uma mul‑ tiplicidade de novas localizações, abarcando bairros populares anteriormente segregados pela falta de acessibilidade e mobilidade urbanas. É a lógica da expansão pela inclusão, por meio da rede integrada de transporte, de tal forma que os fenômenos de polariza‑ ção e dependência constituem‑se a partir das localizações das classes sociais no espaço e da dinâmica de seus deslocamentos pendulares moradia‑trabalho. Sendo Curitiba o principal polo gerador de empregos e, por isso, o principal destino dos deslocamentos, destaca‑se mais uma vez a importância da acessibilidade conferida pela integração da rede metropolitana de transporte. Nesse sentido, torna‑se fundamental analisar os impactos da acessibilidade à rede de transporte, como a possibilidade de múltiplos deslocamentos e a redução dos custos com a tarifa única. Quanto ao poder estruturador do transporte coletivo, à medida que a mancha urbana vai se compactando, “jardins” e “vilas” desconectados cedem lugar a “bair‑ ros” estruturados e integrados pelo transporte. Deve‑se pontuar nesse processo a emer‑ gência das novas centralidades urbanas nos municípios‑ dormitórios, como em Colombo e em Pinhais, onde a extensão da RIT propiciou a entrada de capital com atividades do setor terciário, até então ausentes por ali. As centralidades conformam‑se a partir dos bairros que, pela presença dos terminais metropolitanos, passam a apresentar alto grau de acessibilidade urbana, bem como a acessibilidade à própria metrópole (LEITÃO, 2010). As dimensões da integração metropolitana via RIT podem ser evidenciadas pelos seguintes dados: na Curitiba Metrópole, o município que apresenta maior grau de depen‑ dência do polo é Pinhais, com uma proporção de 28,93% da população deslocando‑se para o polo, seguido de Almirante Tamandaré com 27,51%, Colombo com 25,25% e Piraquara com 22,37% (PARANÁ, 2001). Em 1997, ao realizar estudos sobre as condições de pobreza no Paraná e em Curi‑ tiba, Moura (1998, p.65) aponta como se sustenta a imagem da cidade de Curitiba: […] o espaço que prometia acesso a facilidades, oportunidades e à diversidade transforma‑se num espaço de privação e de exclusão, palco de tensões sociais e de violência. Essa constatação torna evidente que as características que ainda permi‑ tem a imagem de ‘cidade‑modelo’ ou ‘cidade de primeiro mundo’ atribuída a Curi‑ tiba são sustentadas pela pobreza de seus municípios periféricos e de sua própria periferia interna.

As alterações recentes na estrutura intraurbana da Curitiba Metrópole, oriundas da expansão do capital e da extensão dos meios de consumo coletivo à periferia conurbada, impactaram profundamente os valores de uso da terra urbana, produzindo novas localiza‑ ções no território. Segundo Lefebvre (2001, p.6):

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A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a gene‑ ralização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná‑las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso, embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso.

AS NOVAS LOCALIZAÇÕES NA CURITIBA METRÓPOLE: ENTRE A POLÍTICA DE MOBILIDADE E A DINÂMICA DO MERCADO DE TERRAS O processo de produção das novas localizações na Curitiba Metrópole foi interpretado nesta pesquisa à luz de três lógicas, consideradas essenciais para apreensão do fenômeno recente de expansão urbana (de 1996 a 2009): (i) a lógica da exclusão, a partir da correlação entre o mercado de terras e a apropriação do território pela renda; (ii) a lógica da inclusão, a partir da correlação entre a expansão da mancha de ocupação urbana, o acesso à rede integrada de transporte (RIT) e a apropriação do território pela renda; e (iii) a lógica da inclusão do excluído, resultante da produção e apropriação das novas localizações intraur‑ banas na periferia da Curitiba Metrópole, a partir da correlação entre o mercado de terras e a expansão da rede integrada de transporte (LEITÃO, 2010, p.112). Sobre a metodologia de pesquisa adotada, encontrou‑se em Harvey (1980) a fun‑ damentação teórica necessária à interpretação da correlação entre a forma espacial e os processos sociais. Segundo o autor, a “única estrutura conceitual adequada para entender a cidade é a que inclui e se edifica ao mesmo tempo sobre as imaginações sociológica e geográfica” (HARVEY, 1980, p.14). Como objeto de pesquisa, tomou‑se a relação entre a Curitiba Metrópole e o cidadão metropolitano, sob a dialética da produção social do espaço urbano, sua estruturação e sua apropriação. O recorte espacial adotado foi deno‑ minado “cone leste da Curitiba Metrópole”, definido por um ângulo que parte da área central da cidade em direção a leste, englobando as áreas conurbadas dos municípios de Colombo, Pinhais e São José dos Pinhais. Esses municípios correspondem à área conur‑ bada com maior número de viagens metropolitanas por meio da rede integrada de trans‑ porte. Como recorte temporal, adotou‑se o período compreendido entre 1996 e 2009, que corresponde à metropolização da RIT até a data da pesquisa. Algumas dificuldades foram encontradas: a defasagem do censo demográfico do IBGE de 2000 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2001) em relação à data da pesquisa; e a amplitude do universo de pesquisa devido à extensão do período estudado, equivalente a treze anos. Como acertos, apontam‑se: o apoio teórico da produção das localizações intraurbanas de Villaça (1998) o método de espacialização dos fenômenos, a partir de Harvey (1980) e a escala de análise da metrópole, a partir dos bairros, com apoio em Campos Filho (1989). Ainda como acerto, registra‑se a coinci‑ dência cronológica entre os relatórios de evolução da RIT Metropolitana elaborados pela URBS e a pesquisa imobiliária realizada pelo Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento do Mercado Imobiliário e Condominial (INPESPAR) vinculado ao Sistema do Sindicato

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da Habitação e Condomínios (SECOVI‑PR) e complementada pela autora segundo a mesma metodologia. Para complementar a amostra da evolução histórica do preço da terra no cone leste, foram pesquisados 176 lotes ofertados para a venda em Colombo, 270 lotes em Pinhais e 446 lotes em São José dos Pinhais, constantes no jornal de maior veiculação na metrópole. O resultado da pesquisa levou às conclusões que seguem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A ideologia da Capital Ecológica vem apregoando, desde o início dos anos noventa, a qualidade de vida advinda do planejamento urbano — associada ao verde e ao transporte coletivo, ícones em Curitiba —, e também o imperativo do cidadão pertencer ao seu lugar. Todavia, o território da Capital Ecológica se constitui apenas do centro de uma metrópole segmentada, na qual a periferia se encontra bastante descolada da anunciada qualidade de vida, ou seja, excluída. A Capital Ecológica vem a ser, na verdade, a reificação da ideologia de planeja‑ mento anterior — a Curitiba Planejada dos anos setenta e oitenta, que privilegiava o trans‑ porte coletivo sobre o individual — e que, ao ser exaltada pelo marketing urbano, alcançou a visibilidade necessária à atração de investimentos voltados à produção. Desse modo, o empresariamento urbano logrou êxito e, com ele, mais uma vez o planejamento — dessa vez dito estratégico, porém em nenhum momento participativo —, passa a ser glorificado. A contradição maior que se instala nesse momento é que a população da periferia segmentada, tal qual a da cidade central, passa a legitimar a ideologia da Capital Ecológica. Porém, as razões que conduziram essas “duas Curitibas” a legitimar a nova ideologia, são realmente, o que as diferem. Na cidade central, a Capital Ecológica é marcada pela renovação da imagem, asso‑ ciada a uma nova geração de ícones urbanos. Entre eles, destacam‑se novos parques urba‑ nos e espaços culturais que, na verdade, acabam por acarretar a produção de uma série de novas localizações urbanas. A qualidade de vida materializada por meio de tais ícones, além de inserir o território na rede de cidades efetivamente industrializadas — destaque‑se aí a vinda maciça das indústrias automobilísticas —, alcança também a visibilidade necessá‑ ria para atrair o capital de um setor terciário superior. Assim, ao reforçar a imagem de uma metrópole progressista, produz‑se uma série de novas localizações na cidade central, com movimentação e deslocamentos das elites, em razão de novos valores de uso, gerados pelo mercado imobiliário. Assim, a terra mais valorizada na cidade central agrava a exclusão na periferia segmentada, num movimento que reproduz a lógica classista centro‑periferia, movimento esse que caracteriza a própria metrópole. Em contraponto à cidade central, os investimentos estatais na periferia metropo‑ litana vêm sendo maciçamente dirigidos à oferta de condições gerais de produção. Como consequência, à medida que emergem novas localizações — sejam áreas industriais ou eixos logísticos —, altera‑se também a estrutura intraurbana, que agora atinge efetiva‑ mente a escala de metrópole.

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É desse modo que a Capital Ecológica se concretiza para o cidadão metropolitano, a reboque da expansão da rede integrada de transporte: a acessibilidade à metrópole deriva da ampliação efetiva da acessibilidade urbana, do que vem a emergir o pertencimento. A política de mobilidade urbana inclusiva, além da integração física pela gama de possibili‑ dades de deslocamento no território da metrópole, traz também a integração tarifária. Os custos das distâncias mais longas são subsidiados pelos custos das distâncias mais curtas e, com uma única passagem, pode‑se circular dentro do sistema durante o dia todo. Decorre que, a par da industrialização recente e da dinamização do setor de comér‑ cio e serviços, a expansão do trabalho assalariado com carteira assinada é constatada pelo crescimento de 25,9% entre os empregados e de 65% entre trabalhadores domésticos. Isso se deve em grande parte à pendularidade propiciada pela rede integrada de transporte, cuja dimensão de inclusão pode ser traduzida na proporção de usuários da RIT metropoli‑ tana que realiza movimento pendular por motivo de trabalho: hoje equivalente a um terço do total dos usuários. Diante do exposto, advém o conceito que aqui se propõe — o da expansão urbana pela lógica de inclusão do excluído —, um conceito ao mesmo tempo sociológico e econô‑ mico, mas que só pôde ser apreendido pela relação espaço‑tempo contida na mobilidade intraurbana. A nova lógica de expansão urbana possibilitou ao cidadão metropolitano a mobilidade social, atrelada à política de mobilidade urbana inclusiva. A mobilidade urbana, associada primeiramente à expansão da empregabilidade na cidade central, é seguida do incremento salarial ofertado no município de moradia. Mais do que isso, o caráter redistributivo da criação das múltiplas localizações na periferia possibilitou, por sua vez, o consumo da própria localização produzida. O cidadão até então excluído — ou expulso pela valorização fundiária, ou migrante em busca de emprego —, passa à condição de consumidor dos novos valores de uso da terra urbana, produzidos socialmente. Dadas a regularidade e a eficiência do sistema de transporte, o cidadão tem agora maior domínio sobre o tempo dos seus deslocamentos, o que em última instância incre‑ menta substancialmente os níveis de qualidade de vida. Diante de tudo isso, pertencer à metrópole significa agora pertencer também ao seu bairro: a acessibilidade via RIT transformou os bairros populares segmentados em múltiplas localizações intraurbanas. Assim, a legitimação da Capital Ecológica pelas classes da periferia advém da ação do Estado em promover as condições de reprodução da força de trabalho pela oferta de um dos meios de consumo coletivo, qual seja, o do transporte integrado. Inclusão do excluído é também um conceito econômico, verificado em período mais recente na homogeneização dos preços da terra, decorrente da acessibilidade na Curitiba Metrópole: consiste na redução dos intervalos de preço entre as novas localiza‑ ções produzidas na periferia e as localizações mais privilegiadas. Em última instância, a

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homogeneização de preços da terra possibilita ao cidadão metropolitano, pela apropriação do valor de troca de sua localização, transferir sua moradia para mais perto da área central, passando a assumir maior controle sobre o tempo dos seus deslocamentos. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Fede‑

ral, 1988. CAMPOS FILHO, C.M. Cidades brasileiras: seu controle ou o caos. São Paulo: Nobel, 1989 (Coleção

Cidade Aberta). FIRKOWSKI, O.L.C. A nova territorialidade da indústria e o aglomerado metropolitano de Curitiba. 2001. Tese (Doutorado em Geografia) — Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. GUNN, P. A mídia na guerra dos lugares: a experiência tucana no Ceará. In: DÉAK, C.; SCHIFFER, S.

(Org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999. p.145‑168. HARVEY, D. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980. HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2000. Brasília: IBGE, 2001. LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. LEITÃO, S.R. Inclusão do excluído? Política de mobilidade e dinâmica do mercado de terras na expansão da Curitiba Metrópole. 2010. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. LEITÃO, S.R. O discurso do planejamento urbano em Curitiba: um enigma entre a prática e a cidade

real. 2002. Dissertação (Mestrado em Estruturas Ambientais Urbanas) — Faculdade de Arquite‑ tura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. LOJKINE, J. O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981. LOURENÇO, G.M. Retaguarda institucional das transformações econômicas no Paraná. Análise Conjuntural, v.22, n.11‑12, p.2‑9, 2000. MAUTNER, Y. A periferia como fronteira de expansão do capital. In: DÉAK, C.; SCHIFFER, S. (Org.).

O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999. p.245‑259. MOURA, R. Planejamento e segregação sócio‑espacial na Região Metropolitana de Curitiba. Expe‑

rimental, n.4/5, p.57‑69, 1998. PARANÁ (Estado). COORDENAÇÃO DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA. Metrópolis em revista. Curitiba: Comec, 1999. PARANÁ (Estado). COORDENAÇÃO DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA. Plano de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Curitiba: documento para discussão. Curi‑ tiba: Comec, 2001. ULTRAMARI, C.; MOURA, R. Metrópole: grande Curitiba: teoria e prática. Curitiba: Ipardes, 1994. VILLAÇA, F. Espaço intra‑urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998.

SYLVIA RAMOS LEITÃO | Pontifícia Universidade Católica do Paraná | Escola de Arquitetura e Design | Curso de Arquitetura e Urbanismo | R. Imaculada Conceição, 1155, Prado Velho, 80215‑901, Curitiba, PR, Brasil | E‑mail: <sylvia.leitao@pucpr.br>.

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Recebido em 26/5/2014 e aprovado em 30/6/2014.

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O ENIGMA DO CAPITAL E AS CRISES DO CAPITALISMO De David Harvey São Paulo: Boitempo Editorial, 2011

RESENHA | SONIA ROHLING SOARES INTRODUÇÃO O texto de David Harvey analisa as crises na evolução do capitalismo, explicando o processo pelo qual o capital realimenta sua expansão e acumulação, sempre com novos arranjos temporais e espaciais. A questão central do livro é o entendimento da representatividade do fluxo do capital. Harvey identifica os mecanismos pelos quais o capitalismo sobrevive; expli‑ cando os determinantes da crise de 2008, o autor estuda as condições necessárias para a acumulação do capital e como estas têm superado antigas barreiras. Ao tratar do entendimento de como o poder do capital formata o mundo, Harvey argumenta em defesa das ideias de Karl Marx. Para tanto, o autor realiza um profundo diagnóstico sobre as inter‑relações entre as “esferas de atividades” humanas, as quais devem ser pensadas de forma interdependente. Harvey contextualiza e apresenta as esferas de atividade na trajetória evolutiva do capitalismo. O autor mostra as razões para a propensão do capital a crises, assim como os riscos que a reprodução do capital representa para a vida do planeta, fundamentado na tese central de que o capitalismo — modo de produção voltado para a acumulação e o lucro —, necessita de contínua expansão e inovação. Pensa o desenvolvimento capitalista inicialmente, sem considerar sua orga‑ nização espacial evolutiva na dinâmica geográfica e seus impactos e constrangi‑ mentos ambientais. O estudo dos “riscos sistêmicos” traduz as contradições funda‑ mentais da acumulação de capital. O autor conclui que o capital nunca resolve sua tendência a crises.

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AS ESFERAS DE ATIVIDADE O capital se movimenta em busca de lucro, por meio de diferentes esferas de atividade. Segundo Harvey, as esferas de atividade são as seguintes: tecnologias e formas de organização; relações sociais; arranjos institucionais e administrativos; processos de produção e trabalho; relações com a natureza; reprodução da vida cotidiana e da espécie; e “concepções mentais do mundo”. O autor conceitua a formação das crises em termos de tensões e antagonismos que surgem entre as diferentes esferas de atividade. O capital não pode circular ou acumu‑ lar‑se sem tocar em cada uma ou em todas as esferas de alguma forma. A dinâmica geográfica que surge da esfera da reprodução da vida cotidiana é simul‑ taneamente autônoma e profundamente afetada por suas relações com as outras esferas.

A GEOGRAFIA DA ACUMULAÇÃO DO CAPITAL E A DESTRUIÇÃO CRIATIVA DA TERRA As conexões entre a urbanização, a acumulação do capital e a formação de crises são ana‑ lisadas por Harvey cuidadosamente. Desde seus primórdios, as cidades dependeram da disponibilidade de alimentos e trabalhos excedentes. O desenvolvimento geográfico desigual é fundamental para sua reprodução. Por outro lado, os capitalistas não podem seguir barreiras geográficas de qualquer espécie — nem espacial nem ambiental —, e estão engajados em uma luta perpétua para burlá‑las ou transcendê‑las. Harvey analisa como a acumulação de capital impacta as cidades e como a segre‑ gação se reproduz no espaço urbano, avaliando que a geografia do desenvolvimento e da subsequente crise tem sido desigual. A paisagem geográfica é igualmente moldada por uma perpétua tensão entre as economias de centralização, de um lado, e os lucros poten‑ cialmente maiores que vêm da descentralização e da dispersão, por outro lado. A produção do espaço em geral e da urbanização em particular tornou‑se um grande negócio no capitalismo, sendo um dos principais meios de absorver o excesso de capital. Ao longo da história tem havido uma tendência para a redução geral das barreiras espaciais e a aceleração da acumulação de capital. O autor aponta dois grandes processos de destruição criativa na história da huma‑ nidade: um é a reconstrução de Paris por Haussmann, outro é a Segunda Guerra Mundial seguida pelas intervenções de Moses em New York. O autor evidencia que atualmente a urbanização da China é parcialmente a fonte primária de estabilização do capitalismo mundial como epicentro de um processo de urbanização que se tornou global, ajudado pela integração mundial dos mercados financeiros. A destruição criativa da terra é entendida no texto de Harvey como produção e reprodução da geografia através dos principais agentes sistêmicos — o Estado e o capital. Os capitalistas e seus agentes se envolveram na produção de uma segunda natureza, a pro‑ dução ativa de sua geografia, da mesma maneira como produzem todo o resto: como um

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empreendimento especulativo, muitas vezes com a conivência e a cumplicidade, senão com a ativa colaboração do aparelho do Estado. A reorganização drástica da paisagem geográfica da produção, da distribuição e do consumo, com as mudanças nas relações de espaço, não é apenas uma ilustração dramá‑ tica da tendência do capitalismo para a aniquilação do espaço no decorrer do tempo, mas também implica ataques ferozes de destruição criativa. Existe um campo de contradições dentro da tendência de criar um mundo sem barreiras espaciais. Segundo Harvey as estratégias políticas, diplomáticas, econômicas e militares mobilizadas pelo aparelho de Estado em seu próprio interesse constituem a lógica ter‑ ritorial. Essas estratégias objetivam controlar e gerenciar as atividades da população no território e acumular poder e riqueza dentro das fronteiras do Estado. A lógica capitalista, por outro lado, coloca em foco a maneira pela qual o poder do dinheiro flui por e dentro do espaço na busca da acumulação sem fim. Essa lógica é mais processual e molecular do que territorial. O desenvolvimento geográfico desigual é fun‑ damental para a reprodução do capitalismo. No entanto, os capitalistas não podem seguir barreiras geográficas — nem espaciais nem ambientais —, e estão engajados em uma luta perpétua para burlá‑las ou transcendê‑las.

OS PROTAGONISTAS DA TRANSFORMAÇÃO Há tempos o sonho de muitos no mundo é que uma alternativa à (ir)racionalidade capi‑ talista possa ser definida e alcançada racionalmente por meio da mobilização das paixões humanas na busca coletiva de uma vida melhor para todos, trabalhando incessantemente para produzir um futuro diferente do que anuncia o capitalismo. O desenvolvimento desigual das práticas capitalistas ao redor do mundo tem pro‑ duzido movimentos anticapitalistas por toda parte, gerando descontentamentos diferen‑ tes em comparação com a agitação antineoliberal das lutas que ocorrem em boa parte da América Latina. O problema central é que, na totalidade, não há movimento anticapitalista sufi‑ cientemente unificado e decidido capaz de desafiar de modo adequado a reprodução da classe capitalista e a perpetuação do seu poder no cenário mundial. A primeira lição que deve ser aprendida é que um capitalismo ético, sem exploração e socialmente justo que beneficie a todos é impossível. Enfim, esclarecer o enigma do capital, tornando transparente o que o poder político sempre quer manter opaco, é crucial para qualquer estratégia revolucionária.

SONIA ROHLING SOARES | Universidade Federal de Santa Catarina | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Pós‑Graduação em Arquitetura e Urbanismo | Campus Trindade, Caixa Postal 476, 88040‑900, Florianópolis, SC, Brasil | E‑mail: <sonia_rohling@hotmail.com>.

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Recebido em 30/6/2014 e aprovado em 5/8/2014.

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O ENIGMA DO CAPITAL E AS CRISES DO CAPITALISMO De David Harvey São Paulo: Boitempo Editorial, 2011

RESENHA | SONIA ROHLING SOARES INTRODUÇÃO O texto de David Harvey analisa as crises na evolução do capitalismo, explicando o processo pelo qual o capital realimenta sua expansão e acumulação, sempre com novos arranjos temporais e espaciais. A questão central do livro é o entendimento da representatividade do fluxo do capital. Harvey identifica os mecanismos pelos quais o capitalismo sobrevive; expli‑ cando os determinantes da crise de 2008, o autor estuda as condições necessárias para a acumulação do capital e como estas têm superado antigas barreiras. Ao tratar do entendimento de como o poder do capital formata o mundo, Harvey argumenta em defesa das ideias de Karl Marx. Para tanto, o autor realiza um profundo diagnóstico sobre as inter‑relações entre as “esferas de atividades” humanas, as quais devem ser pensadas de forma interdependente. Harvey contextualiza e apresenta as esferas de atividade na trajetória evolutiva do capitalismo. O autor mostra as razões para a propensão do capital a crises, assim como os riscos que a reprodução do capital representa para a vida do planeta, fundamentado na tese central de que o capitalismo — modo de produção voltado para a acumulação e o lucro —, necessita de contínua expansão e inovação. Pensa o desenvolvimento capitalista inicialmente, sem considerar sua orga‑ nização espacial evolutiva na dinâmica geográfica e seus impactos e constrangi‑ mentos ambientais. O estudo dos “riscos sistêmicos” traduz as contradições funda‑ mentais da acumulação de capital. O autor conclui que o capital nunca resolve sua tendência a crises.

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AS ESFERAS DE ATIVIDADE O capital se movimenta em busca de lucro, por meio de diferentes esferas de atividade. Segundo Harvey, as esferas de atividade são as seguintes: tecnologias e formas de organização; relações sociais; arranjos institucionais e administrativos; processos de produção e trabalho; relações com a natureza; reprodução da vida cotidiana e da espécie; e “concepções mentais do mundo”. O autor conceitua a formação das crises em termos de tensões e antagonismos que surgem entre as diferentes esferas de atividade. O capital não pode circular ou acumu‑ lar‑se sem tocar em cada uma ou em todas as esferas de alguma forma. A dinâmica geográfica que surge da esfera da reprodução da vida cotidiana é simul‑ taneamente autônoma e profundamente afetada por suas relações com as outras esferas.

A GEOGRAFIA DA ACUMULAÇÃO DO CAPITAL E A DESTRUIÇÃO CRIATIVA DA TERRA As conexões entre a urbanização, a acumulação do capital e a formação de crises são ana‑ lisadas por Harvey cuidadosamente. Desde seus primórdios, as cidades dependeram da disponibilidade de alimentos e trabalhos excedentes. O desenvolvimento geográfico desigual é fundamental para sua reprodução. Por outro lado, os capitalistas não podem seguir barreiras geográficas de qualquer espécie — nem espacial nem ambiental —, e estão engajados em uma luta perpétua para burlá‑las ou transcendê‑las. Harvey analisa como a acumulação de capital impacta as cidades e como a segre‑ gação se reproduz no espaço urbano, avaliando que a geografia do desenvolvimento e da subsequente crise tem sido desigual. A paisagem geográfica é igualmente moldada por uma perpétua tensão entre as economias de centralização, de um lado, e os lucros poten‑ cialmente maiores que vêm da descentralização e da dispersão, por outro lado. A produção do espaço em geral e da urbanização em particular tornou‑se um grande negócio no capitalismo, sendo um dos principais meios de absorver o excesso de capital. Ao longo da história tem havido uma tendência para a redução geral das barreiras espaciais e a aceleração da acumulação de capital. O autor aponta dois grandes processos de destruição criativa na história da huma‑ nidade: um é a reconstrução de Paris por Haussmann, outro é a Segunda Guerra Mundial seguida pelas intervenções de Moses em New York. O autor evidencia que atualmente a urbanização da China é parcialmente a fonte primária de estabilização do capitalismo mundial como epicentro de um processo de urbanização que se tornou global, ajudado pela integração mundial dos mercados financeiros. A destruição criativa da terra é entendida no texto de Harvey como produção e reprodução da geografia através dos principais agentes sistêmicos — o Estado e o capital. Os capitalistas e seus agentes se envolveram na produção de uma segunda natureza, a pro‑ dução ativa de sua geografia, da mesma maneira como produzem todo o resto: como um

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OS PROTAGONISTAS DA TRANSFORMAÇÃO Há tempos o sonho de muitos no mundo é que uma alternativa à (ir)racionalidade capi‑ talista possa ser definida e alcançada racionalmente por meio da mobilização das paixões humanas na busca coletiva de uma vida melhor para todos, trabalhando incessantemente para produzir um futuro diferente do que anuncia o capitalismo. O desenvolvimento desigual das práticas capitalistas ao redor do mundo tem pro‑ duzido movimentos anticapitalistas por toda parte, gerando descontentamentos diferen‑ tes em comparação com a agitação antineoliberal das lutas que ocorrem em boa parte da América Latina. O problema central é que, na totalidade, não há movimento anticapitalista sufi‑ cientemente unificado e decidido capaz de desafiar de modo adequado a reprodução da classe capitalista e a perpetuação do seu poder no cenário mundial. A primeira lição que deve ser aprendida é que um capitalismo ético, sem exploração e socialmente justo que beneficie a todos é impossível. Enfim, esclarecer o enigma do capital, tornando transparente o que o poder político sempre quer manter opaco, é crucial para qualquer estratégia revolucionária.

SONIA ROHLING SOARES | Universidade Federal de Santa Catarina | Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | Pós‑Graduação em Arquitetura e Urbanismo | Campus Trindade, Caixa Postal 476, 88040‑900, Florianópolis, SC, Brasil | E‑mail: <sonia_rohling@hotmail.com>.

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Recebido em 30/6/2014 e aprovado em 5/8/2014.

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|189 Agradecimentos | Acknowledgements | AGRADECIMIENTOS A revista Oculum Ensaios contou com a colaboração de especialistas ad hoc para a avaliação dos trabalhos submetidos em 2014: A Adriana Marques Rossetto – UFSC Alessandro Filla Rosaneli – UFPR Alexandre Suárez de Oliveira – Unesp Angélica Patricia Camargo Sierra – Universidad Piloto de Colômbia Altair Rosa – PUC-PR B Beatriz Regina Dorfman – PUC-RS C Carolina Maria Pozzi de Castro – UFSCar

R Ricardo Marques de Azevedo – USP Ricardo Siloto da Silva – UFSCar S Samira Kauchakje – PUC-PR Sidney Piochi Bernardini – UNIP Sidney Tamai – Unesp T Thêmis da Cruz Fagundes – UFSC

D Danilo Volochko – UFMT E Eduardo Rocha – UFPel Eneida Maria Souza Mendonça – UFES Elvira Maycotte Pansza – Universidad Autónoma de Ciudad Juarez – México Eulalia Portela Negrelos – USP/São Carlos F Fabíola Castelo de Souza Cordovil – UEM Francisco de Assis Comaru – UFABC G Maria Gabriela Caffarena Celani – Unicamp J Juan Antonio Zapatel Pereira de Araujo – UFSC José Francisco Bernardinho Freitas – UFES L Lauro Luiz Francisco Filho – Unicamp Leandro Marino Vieira Andrade – UFRGS Lívia Izabel Bezerra de Miranda – UFCG Luiz Guilherme Rivera de Castro – Mackenzie Lucia Zanin Shimbo – USP/São Carlos Luciana de Oliveira Royer – USP M Marcelo da Rocha Silveira – UnB Maria Alice Junqueira Bastos – Mackenzie Maria de Lourdes Pinto Machado Costa – UFF P Paula Santoro – USP Pedro Manuel Rivaben de Sales – Associação Escola da Cidade Pedro Paulo Palazzo – UnB

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