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Populismo de esquerda e a construção de uma nova hegemonia

David Moreno Montenegro Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) E-mail: davidmoreno@ifce.edu.br

Resumo: Publicado pela editora Verso, em Londres, e depois pela Editora Siglo XXI, na Argentina, em 2018-2019, a obra Por un populismo de izquierda, da cientista política belga Chantal Mouffe, traz importantes reflexões sobre os processos políticos em curso nas sociedades ocidentais. Com os olhos voltados para a experiência europeia, diante do cenário de aprofundamento da crise capitalista e da emergência de movimentos e formas de organização de contestação ao establishment, Mouffe propõe uma instigante reflexão sobre as possibilidades de construção de uma nova hegemonia, surgida das fraturas do neoliberalismo e a partir do desenvolvimento do que denomina estratégia populista de esquerda. Compreender o arsenal conceitual mobilizado pela autora, a força de seu argumento e alguns limites é o objetivo desta resenha.

De saída, uma advertência: no pensamento de Mouffe, populismo não se confunde com uma ideologia que possui conteúdo programático definido, ou mesmo um regime político. Trata-se, com efeito, de um modo de fazer política, que, a depender da conjuntura histórica, pode assumir diversas formas ideológicas e marcos institucionais, precipitados em uma sociedade mergulhada num momento populista Nesse sentido, cabe a pergunta: O que marca contextos mais propensos para o desenvolvimento de estratégias políticas populistas? De acordo com Mouffe, o momento populista pode ser identificado com o aumento das pressões por transformações sociais, políticas e econômicas, com base em demandas sociais insatisfeitas, capazes de desestabilizar a hegemonia dominante. Em tempos assim, abre-se espaço para a contestação da legitimidade do bloco histórico que exerce sua hegemonia, com risco de desarticulação de suas frações organizativas. Desse modo, tem-se a possibilidade do surgimento de um novo sujeito de ação coletiva – o povo – capaz de contestar, desarticular e superar uma determinada ordem social considerada injusta. Feitas essas considerações, passemos para sua leitura do mundo contemporâneo.

O regime político atual, preponderante no Ocidente, tem recebido várias denominações: democracia representativa, democracia constitucional, democracia liberal etc. Porém, a autora destaca que é possível identificar, em sua base, uma tensão profunda entre duas tradições distintas: por um lado, o liberalismo político, que reivindica o Estado de Direito, a divisão entre os poderes e a liberdade individual. Por outro, a tradição democrática, que traz como ideias centrais a igualdade e a soberania popular. Essa relação entre a lógica liberal e a lógica democrática na conformação das democracias liberais, no limite de dimensões inconciliáveis, é o que Mouffe denomina de “paradoxo democrático”. Nesse contexto, o neoliberalismo opera como elemento de desestabilização, na medida em que possui uma forma específica de articular o liberalismo político com o capital financeiro. A hegemonia neoliberal, nas últimas décadas, vem promovendo o aniquilamento da possibilidade de relação/tensão entre os princípios liberais e valores democráticos, o que permitia o embate entre projetos distintos de sociedade, mesmo diante da impossibilidade de síntese. Com a destruição dos valores democráticos (igualdade e soberania popular), esgotam-se as possibilidades de os cidadãos exercerem seus direitos, uma vez que a democracia é reduzida à mera defesa do livre mercado.

Dessa forma, os espaços institucionais, possíveis de serem ocupados pelos cidadãos na tentativa de influenciar os rumos da sociedade (parlamento e instituições do Estado), têm seu poder de decisão reduzido drasticamente. As eleições não oferecem, assim, a possibilidade concreta de decidir sobre alternativas reais de projetos políticos, passando a política a ser efetivamente uma forma de “administração da ordem estabelecida”, sendo a soberania popular decretada obsoleta. Isso é o que Mouffe denomina pós-política. Por outro lado, as mudanças nas formas de gestão da política, com o abandono da soberania popular, vêm acompanhadas de uma nova forma de regulação do capitalismo profundamente financeirizado. Transformações nas regulações do trabalho com flexibilização e precarização de imensos contingentes de trabalhadores, privatizações, políticas de austeridade fiscal, desindustrialização e incremento de maior tecnologia com extinção de atividades laborais são exemplos de transformações do capitalismo contemporâneo, que têm gerado pauperização e precarização em diversas sociedades, com maior efeito no sul global.

O que impera, agora, segundo a autora, é a visão individualista, que celebra a sociedade de mercado e o empreendedorismo individual. Assim, a pós-política, aliada ao fenômeno da oligarquização (e a destruição do ideal de igualdade), define o atual cenário de contestação antissistêmica, de deterioração das bases de sustentação da democracia liberal, com aumento vertiginoso das desigualdades sociais e econômicas. Por isso, a abertura de brechas para a expressão política de movimentos populistas reivindicatórios torna-se mais constante. Quando inclinados ao campo da direita, tendem a defender a reconstrução da “soberania nacional”. Entretanto, reclamam o país para os “verdadeiros nacionais”, defendendo igualdade para uma categoria de “povo”, que acaba por excluir imensos contingentes, geralmente grupos de pessoas que são entendidas como “ameaça” à “verdadeira identidade nacional”, quase sempre imigrantes, negros e LGBTQIA+.

Nesse sentido, para Mouffe, a construção de uma resposta no campo da esquerda possui o desafio de gerar um movimento de aglutinação da diversidade de lutas sociais. A orientação política deve ser recuperar, aprofundar e ampliar a democracia, construindo uma estratégia capaz de envolver as demandas sociais e que represente a “vontade coletiva”. Para isso, é fundamental criar fronteira política que oponha o “povo” aos donos do poder, responsáveis pelas diversas formas de opressão – os representantes das “oligarquias”. A construção de uma nova fronteira política seria necessária para erguer outra ordem hegemônica, com amparo no consenso popular, reorientando a energia disruptiva das populações espoliadas, suas insatisfações e frustrações em uma direção de contestação das forças representantes do consenso neoliberal em crise. Para tanto, esse consenso deve ser buscado de forma ativa, através da ação efetiva não somente no plano econômico, mas também no político e ideológico, para fundar uma “democracia radical e plural” em uma nova ordem hegemônica, com procedimentos democráticos mais enraizados nas demandas populares.

Contudo, para a radicalização da democracia, alguns aspectos devem ser observados. Primeiro, não se pode esquecer de que não há lutas inerentemente “emancipadoras” ou “essencialistas” que estejam livres de tomar sentidos opostos, a depender das condições históricas, sociais, econômicas etc. Segundo, é importante reafirmar que a noção de “povo” não pode ser tomada como um dado sociológico a priori, uma construção empírica preexistente. Pelo contrário, o enfoque não essencialista da estratégia populista de esquerda deve considerar que o “povo” é uma construção política e discursiva, necessitando, assim, de uma articulação performativa. Construir um povo, dessa maneira, implica expressar a vontade coletiva mediante uma cadeia de equivalência que abrigue a multiplicidade de demandas sem resultar no apagamento e supressão das diferenças – que, de outro modo, cairia no erro de culminar na criação de uma falsa identidade monolítica.

Por fim, há uma dimensão que a autora destaca como fundamental: a questão dos afetos. É central para a estratégia populista de esquerda compreender que os processos de reconhecimento social passam pela construção de discursos e afetos que, articulados, produzem formas específicas de identificação. Essas identificações, por sua vez, são cruciais para toda e qualquer estratégia de natureza política, pois são os motores da ação. Aqui, anoto alguns elementos para debate com a perspectiva da autora, quando considerado o necessário trabalho de construção de alternativas à política de exclusão e espoliação das maiorias sociais, no capitalismo contemporâneo. Inicialmente, caberia problematizar qual o alcance da proposta de uma estratégia populista de esquerda, nos marcos da democracia liberal, em países que sequer completaram seus processos de construções nacionais, inscritos nas periferias do capitalismo e mergulhados em uma lógica de dependência estrutural de suas economias.

No limite, caberia questionar o próprio desenvolvimento conceitual da autora ao considerar o liberalismo econômico e seu duplo, o liberalismo político, como instâncias que resguardariam seguro distanciamento e aparente independência. A autora chega ao ponto de reivindicar as bases institucionais deste último para serem aprofundadas radicalmente por uma proposta crítica ao neoliberalismo, na chave de um populismo de esquerda. Essa questão pode assumir contornos mais complexos quando consideramos países em que escravismo e colonialismo – com seus legados mais sensíveis no racismo, patriarcalismo e desigualdades sociais – são estruturais. Além disso, a proposta de Chantal Mouffe parece subestimar, a partir de receio primário de sua análise incorrer em um determinismo econômico, a força estrutural do capitalismo, que deriva da consolidação e sacralização da propriedade privada sua solidez material e ideológica. Não abordar essa questão estrutural pode gerar o equívoco de conferir à esfera da política certa aura autorreferencial, limitando as possibilidades de construção de novos horizontes. Para além desses sumários pontos destacados, os tempos que atravessamos exigem a leitura, a análise e o debate dessa obra.

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