Procura de um lugar comum Search for a common place
Procura de um lugar comum Search for a common place bairro da encarnação
andreia neves nunes
Rememberance of the Airport, in 9 of April of 1944
Os meus avós maternos, primeiros moradores do bairro em 6 de Julho de 1945, em passeio pelos terrenos do Aeroporto de Lisboa por um fotógrafo desconhecido. My maternal grandparents, fist residents of the neighborhood in July 6, 1945, in a walk by Lisbon Aiport grounds, by an unknown photographer.
Procura de um lugar comum Search for a common place ‘There is a crack in everything, that’s how the light gets in.’ Leonard Cohen Tive o privilégio de crescer num bairro onde podia brincar na rua. Andava descalça no quintal, fazia bolinhos de lama e, no verão, passeava de bicicleta com os meus amigos da rua de trás. Cresci com histórias, histórias da minha avó materna, primeira moradora da casa onde vivi metade da minha vida, histórias da minha ‘avó’ Tina, primeira moradora de 3 casas ao lado, onde passei uma boa parte do tempo da minha infância, onde iniciei também a minha ligação com a fotografia, no laboratório da garagem do meu ‘avô’ Fonseca e tinha a melhor companheira de brincadeiras com a minha ‘tia’ Paula. Na altura, julgava que o bairro era só aquilo, casas normais onde moravam pessoas normais, o mercado, algumas lojas e o cinema/ginásio onde esteve o KITT estacionado nas escadas, porque não havia forma de o levar para o palco. Chegou a saber-me a pouco... Mas afinal eu não conhecia nada. Por vezes é preciso uma vida inteira para aprendermos a ver a nossa paisagem quotidiana. Se calhar não demorei assim tanto, mas precisei de distância. Sou a terceira geração que passou por aquela pequena casa. Já não moro lá, mas ainda posso lá voltar. O Bairro da Encarnação deixou de ser a minha casa, ao mesmo tempo sempre será. Poderá ter sido a redescoberta, o investigar a sua história. Mas também o encontrar o meu autor substituto, alguém que tomasse o meu lugar neste deambular por um espaço que percebi que desconhecia por completo. Através dela tudo me parece novo e especial. Afinal não preciso visitar qualquer local exótico para encontrar algo verdadeiramente fotogénico.
Sempre esteve aqui, à minha volta. Todos os dias que regresso é diferente. Nas suas pequenas imperfeições, na forma como a luz cria novas sombras, na forma como a natureza, sempre tão característica do bairro, evolui. As cores mudam, as folhas caem, flores nascem e morrem, um ciclo constante e em constante mutação. Em 1945 o Bairro abriu as suas portas e possibilitou aos meus avós serem proprietários da sua própria casa, alguns meses antes de nascer a minha mãe. Ter um quintal, ter um pequeno cultivo, coelhos e galinhas e os fetos, que ainda hoje se mantêm no mesmo vaso em que a minha avó os plantou. Será que então, quando ali chegaram tantas pessoas, de tantas origens diferentes, imaginavam o que seria o bairro 75 anos depois? Enquanto crianças a noção de animismo é algo natural em nós. Na cultura Japonesa é uma crença antiga e enraizada, há quem acredite que qualquer objecto pode adquirir uma alma após 100 anos de serviço. As velhas casas do Bairro da Encarnação, as que ainda sobreviveram às profundas mudanças, estão quase a receber a sua. I had the privilege of growing up in a neighbourhood where I could play on the street. I walked barefoot in the backyard, made mud cakes and rode my bicycle with my friends from the back street in the summer. I grew up with stories, stories of my maternal grandmother, first resident of the house where I lived half my life, stories of my ‘grandmother’ Tina, first resident, 3 doors down, where I spent a good part of my childhood, where I also started my connection with photography, in my ‘grandfather’ Fonseca’s garage laboratory and had the best playmate in my ‘aunt’ Paula. At the time, I thought the neighbourhood was just that, normal houses where normal people lived, the market, some shops and the cinema/gym where KITT was parked on the stairs because there was no way to take him to the stage. It always felt short... But in the end, I didn’t grasp it all.
Sometimes it takes a lifetime to learn how to see our everyday landscape. Maybe it didn’t take me that long, but I needed the distance. I am the third generation that passed through that small house. I no longer live there, but I can still go back there. Bairro da Encarnação is no longer my home, but always will be. It may have been the rediscovery, investigating its history. But also finding my surrogate author, someone who would take my place in this wandering through a space that I realized I was completely unfamiliarized with. Through her, everything seems new and special. After all, I don’t need to visit any exotic location to find something truly photogenic. It has always been here, around me. Every day I return is different. In its small imperfections, in the way the light creates new shadows, in the way nature, always so characteristic of the neighbourhood, evolves. Colours change, leaves fall, flowers grow and die, a constant cycle and constantly mutating. In 1945 the neighbourhood opened its doors and made it possible for my grandparents to own their own home, a few months before my mother was born. To have a backyard, to have a small vegetable garden, rabbits and chickens and the fetuses that still remain today in the same pot my grandmother planted them in. Then, when so many people arrived, from so many different origins, did they imagine what the neighbourhood would be 75 years later? As children, the notion of animism is natural to us. In Japanese culture, it is an ancient and ingrained belief, some reckon that any object can acquire a soul after 100 years of service. The old houses of Bairro da Encarnação, the ones that still survived the profound changes, are almost receiving theirs. andreia neves nunes 07 -10 - 2020
bairro da encarnação a história | the history
‘A Encarnação passará a justificar uma romaria. (...) é já um bairro diferenciado cheio de luz, de ar, de alacridade, nos vários tons de rosa, ervilha, azul, vermelho, que pintam de alegria as centenas de vivendas.’ Diário de Lisboa, 27 de Maio de 1944 No seguimento do aumento populacional da cidade de Lisboa, no final do século XIX e primeira metade do século XX, especialmente proveniente de migrações de zonas rurais do país, o tecido urbano da cidade cresce de forma irregular e desordenada, deparando-se com alojamento insuficiente e bairros de lata degradados e sem saneamento. Como resposta, começam a surgir os primeiros projectos de bairros sociais em 1918. Seguindo o modelo inglês de Cidade Jardim e, de forma a trazer um pouco do campo para a cidade, seriam criadas moradias unifamiliares de baixo custo com um pequeno jardim onde os habitantes poderiam ter o seu próprio cultivo. Tal é afirmado pelo Engenheiro Visconde De Almeida Garrett, técnico da DGEMN (Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais) num artigo publicado na revista Brotéria em 1935 “A casa individual tem, quanto a mim, a enorme vantagem de permitir que cada locatário, (...) tenha o seu jardim, onde a par do galinheiro e do estendal da roupa, poderá cultivar as suas flôres, que poderão decorar agradàvelmente o interior do lar.”. O Bairro da Encarnação foi um desses projectos. Com cerca de 47 hectares, foi o maior bairro de casas económicas construído nesse período. Projectado pelo arquitecto e professor de urbanismo, Paulino Montês que, dado a proximidade ao aeroporto, se inspirou na morfologia de uma grande borboleta de asas abertas que poderia ser vista pelos passageiros ao sobrevoar o bairro.
Os terrenos escolhidos para a sua construção localizavam-se na periferia de Lisboa, mesmo junto ao aeroporto. “Por serem maioritariamente constituídas por terrenos de semeadura pouco produtivos, tinham fraco interesse económico, sendo raras as hortas e edificações ligeiras e, por essa razão, toda a área apresentava uma densidade populacional muito baixa.” (Inácio, C. & Barreiro, F., 2012). Para redução de custos toda a rede viária obedecia, sempre que possível, ao relevo do solo. As casas eram simples, sem grandes adornos, espelhando o limite orçamental, mas também os ideais políticos, e morais, do regime do Estado Novo: “(...) para o nosso feitio independente e em benefício da nossa simplicidade morigerada, nós desejamos antes a casa pequena, independente, habitada em plena propriedade pela família”, discurso de Oliveira Salazar a 16 de Março de 1933. Foi oficialmente inaugurado em Maio de 1944 sendo, no entanto, construído entre 1940 e 1946, dada a dificuldade de abastecimento de materiais no decorrer da II Guerra Mundial. Foi aberto concurso em Junho de 1944, estando disponíveis 648 moradias. Estas eram distribuídas mediante a dimensão do agregado familiar e condições financeiras, com rendas baixas e a possibilidade de se tornarem propriedade do arrendatário passados 20 anos. Teve de início pouca afluência, devido à sua localização, longe do centro da cidade, sem o comércio local necessário e a inexistência de transportes públicos na proximidade. Chegaram os primeiros moradores ao Bairro, em Abril de 1945. De início as moradias foram construídas sem muros que delineassem o seu terreno, sendo possível passar através dos quintais para se ir visitar os vizinhos. Passados alguns anos e, normalmente em conjunto com o vizinho do lado, os muros foram surgindo, mas o companheirismo e sentido comunitário mantinha-se: “Na parte de trás das moradias, quase toda a gente tinha algumas árvores de fruto, assim como parreiras, tomateiros, pimenteiros, alfaces, couves e outras espécies hortícolas. Era para muitos a primeira experiência neste domínio; para outros, oriundos de áreas agrícolas, constituía um privilégio poder manter aqui a continuidade de uma certa ligação à terra. Os mais experientes ajudavam os
menos experientes com os seus conselhos e por vezes com a oferta de sementes ou de variedades particularmente adequadas às características dos terrenos.” n/a Ao longo do tempo os muros foram crescendo, algumas casas remodeladas, aumentadas, por vezes simplesmente demolidas para criar espaço a novas construções de melhor qualidade, actualizadas. Ocasionalmente anulando quase na totalidade o jardim que tanto identificou o bairro, para se ter uma casa maior, tão grande quanto possível. Os vizinhos nem todos se conhecem, já não se encontram diariamente no mercado nem conhecem o senhor da drogaria. Mas por tantas pessoas que saem do bairro, há tantas gerações que se mantêm e o espírito do bairro prevalece, para além da mudança, na sua memória e na sua evolução.
‘Encarnação will now justify a pilgrimage. (...) it is already a different neighborhood full of light, air, alacrity, in the various shades of pink, pea, blue, red, which paint the hundreds of houses with joy. ’ Diário de Lisboa, May 27th, 1944 Following the increase in population in the city of Lisbon, at the end of the 19th century and the first half of the 20th century, specially as a result of migrations from rural areas of the country, the urban fabric of the city grows irregularly and disorderly, with insufficient accommodation. and degraded slums without sanitation. As an answer, the first projects of social housing started to appear in 1918. Following the English model of Garden City and, in order to bring a little of the countryside to the city, low-cost single-family houses would be created, with a small garden where the inhabitants could grow their own crops. This is stated by the engineer Visconde De Almeida Garrett, technician of the DGEMN (DirectorateGeneral for National Buildings and Monuments) in an article published in Brotéria magazine in 1935 “The individual house has,
in my opinion, the enormous advantage of allowing each tenant, (...) to have their garden, where, alongside the chicken coop and the clothes line, they can grow their flowers, which can decorate the interior of the home pleasantly.”. Bairro da Encarnação was one of those projects. With about 47 hectares, it was the largest neighborhood of social housing built in that period. Designed by the architect and professor of urbanism, Paulino Montês who, given the proximity to the airport, was inspired by the morphology of a large butterfly with open wings that could be seen by passengers flying over the neighborhood. The land chosen for its construction was located on the outskirts of Lisbon, right next to the airport. “Since it is mostly made up of low-yielding sowing land, it had little economic interest, with farms and light buildings being rare and, for that reason, the entire area had a very low population density.” (Inácio, C. & Barreiro, F., 2012). To reduce costs, the entire road network obeyed, whenever possible, to the relief of the soil. The houses were simple, without great adornments, reflecting the budget limit, but also the political and moral ideals of the Second Republic regime: “(...) for our independent character and for the benefit of our tempered simplicity, we rather wish the small, independent house, inhabited in full ownership by the family ”, speech by Oliveira Salazar on March 16, 1933. It was officially inaugurated in May 1944, however, it was built between 1940 and 1946, due to the difficulty of supplying materials in the course of World War II. Applications were opened in June 1944, with 648 houses available. The houses were distributed according to the size of the household and financial conditions, with low rents and the possibility of becoming the property of the tenant after 20 years. There was little affluence at first, due to its location, far from the city center, without the necessary local commerce and the lack of public transport nearby. The first residents arrived in the neighborhood in April 1945. At first the houses were built without walls to outline the property, making it possible to pass through the yards to visit
neighbors. A few years later, and usually together with the nextdoor neighbor, walls began to emerge, but the companionship and community sense remained: “At the back of the houses, almost everyone had some fruit trees, as well as vines, tomatoes, peppers, lettuce, cabbages and other vegetable species. It was for many the first experience in this field; for others, coming from agricultural areas, it was a privilege to be able to maintain the continuity of a certain connection to the land here. The more experienced helped the less experienced with their advice and sometimes with the supply of seeds or varieties particularly suited to the characteristics of the land. ” Over time the walls grew, some houses remodeled, enlarged, sometimes simply demolished to create space for new buildings, better quality, updated. Occasionally canceling almost entirely the garden that identified the neighborhood so much, to have a bigger house, as big as possible. Not all neighbors know each other, they no longer go to the market every day, nor do they know the drugstore clerk. But for so many people who leave the neighborhood, there are many generations that remain and the spirit of the neighborhood prevails, beyond the change, in its memory and evolution.
bibliografia | bibliography Inácio, C., & Barreiro, F. (2012). O Bairro da Encarnação e as Antigas Quintas dos Olivais (2nd ed.). Imprensa Municipal. Terceiro, C. (2013). De Social a Privilegiado: Narrativas de Bairro Sociais em Lisboa [Master’s thesis]. https://fenix.tecnico.ulisboa.pt/downloadFile/395146019172/Tese_ final%20Carla%20Terceiro.pdf https://www.jf-olivais.pt/historia-da-freguesia/
1970 João Carapucinha (avô | grandfather)
título | title
Procura de um Lugar Comum | Search for a Common Place Bairro da Encarnação fotografia | photography
Andreia Neves Nunes edição & layout | editing & layout
Andreia Neves Nunes, Bruno Pelletier Sequeira design gráfico | graphic design
Andreia Neves Nunes tipo | type
Auto-Publicação | Self Publish 2021, Lisboa - Portugal técnica | type of printing
Impressão Digital | Digital Print Gráfica99 - Gabinete de Artes Gráficas Lda. tiragem | copies
20 exemplares numerados e assinados pela autora 20 copies, numbered and signed by the author © 2019-21 FRAGMA photography collective © das imagens, textos e traduções: a autora of the images, texts and translations: the author wearefragma.com/a2n publicado por / published by
Dedico este livro a quem sempre me acompanhou, embora algumas já tenham partido, continuam sempre comigo. Este projecto não teria sido possível sem a incessante ajuda e apoio de Bruno Pelletier Sequeira e o Atelier de Lisboa.
I dedicate this book to the ones who have always accompanied me, though some have already parted, they will always be with me. This project would not have been possible without the relentless help and support of Bruno Pelletier Sequeira and Atelier de Lisboa.