ID Brasil

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“Mão”, escultura de Oscar Niemeyer localizada no Memorial da América Latina


Soy loco por tí,

AméricaS

Latino, eis um termo múltiplo. Se verificarmos no dicionário Aurélio pode significar: indivíduo da raça latina, dito ou escrito em latim, que diz respeito aos povos descendentes dos romanos, ou incorporados no Império Romano... Mas afinal de contas, o que é ser um “latino-americano”? De onde vem esse termo? A Revista ID, nessa edição de abertura, vai explorar a construção da “latinidade” e mostrar que mesmo depois dos 500 anos de sua descoberta, a América Latina esconde mais segredos, encantos e magias do que já imaginava Colombo quando aportou no Haiti em 1492. Os Estados Unidos, ao despontar como a maior potência da América no século XIX, cunhou a famosa expressão: “A américa para os Americanos”, quando, na verdade, seria “A América para os norte-americanos”. E o que restaria à “outra” América? Somente o título de quintal dos Estados Unidos e a taxação de subdesenvolvimento? É nesse contexto que o termo latino-americano começa a ganhar força como uma tentativa de resistência à supremacia norte-americana. No seu princípio, segundo relata o historiador Aimer Granados Garcia, se utilizava a expressão “Hispanoamérica”, termo criado em meados do século XIX, quando diante de conturbadas lutas para a independência de várias nações, nascia ali uma maior consciência do que constituía a identidade cultural do grupo de países que formavam a antiga América espanhola e que por conta das diversas tentativas de ataque das quais eram objeto desde o momento da Independência, tentavam se mostrar perante à comunidade internacional como países livres e unidos por uma série de interesses e vínculos culturais No entanto, “A América Latina”, surgiu como expressão pela primeira vez através de Napoleão III, durante o tempo que buscou uma aproximação com os americanos. O termo latino viria do fato dos americanos terem uma língua originada do Latim, assim como os franceses do famoso general. A segunda etapa desse processo diz respeito ao momento de criação da ideia de América Latina, mas não de seu nome. Em alguns textos de escritores franceses

há a distinção do continente americano em duas etnias: uma latina e outra saxônica. Ainda nessa fase, os americanos de origem espanhola (hispano-americanos) residentes na Europa (principalmente em Madrid e Paris) passaram a incorporar esta ideia, mas sempre com o termo “latino” servindo de conotação à América de língua espanhola. Ficavam excluídos, assim, os americanos de origem portuguesa e francesa. Por isso, talvez, que historicamente o Brasil nunca tenha se sentido incluso na América Latina, seja por uma questão claramente cultural que perpassa por campos linguísticos, de tradição e história, mas também por diferenças nas colonizações que foram cruciais na constituição das peculiaridades dos dois povos. Os brasileiros, em geral, não se sentem de todo latino-americanos, e sim simplesmente “brasileiros”, pois o processo de colonização, miscigenação e constituição de uma identidade nacional que aconteceu aqui foi totalmente diferente do que ocorreu em qualquer outro lugar. Assim, a denominação América Latina acaba assumindo diversos vieses e torna-se até uma denominação “problemática”, pois com diferentes considerações do que de fato é ser latino americano, tudo acaba sendo uma questão de identificação. Se no senso comum o latino é marcado por cor morena, cabelos e olhos castanhos escuros, gestos e atitudes exagerados e cheios de paixão. A “latino-americanidade” é muito mais que isso, é se auto reconhecer na alteridade, é viver e conviver num universo repleto de co-

res, mas com igual proporção de problemas. É escutar um mesmo idioma e ser repleto de variações que muitas vezes parece até outra língua. O latino americano é antes de tudo um guerreiro. Vai da luta de Che Guevara à superação e espírito positivo de Frida Kahlo, passando pelo mundo extraordinário de García Marquez, bebendo da poesia e lirismo do Chico Buarque, da reflexão de Jorge Luíz Borges e da firmeza da Mercedes Sosa. O latino americano é um ser de arte. A ID inicia aqui um pontapé inicial por essa viagem pitoresca, repleta de descobertas e contradições. Apertem os cintos, a viagem está só começando...

de quase nuvem “OsSorriso rios, canções, o medo

O corpo cheio de estrelas O corpo cheio de estrelas Como se chama amante Desse país sem nome Esse tango, esse rancho Esse povo, dizei-me, arde O fogo de conhecê-la O fogo de conhecê-la

“Soy Loco Por Tí, America”

(Gilberto Gil, Capian e Torquato Neto)

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EDITORIAL Olá, queridos leitores e queridas leitoras! Sejam bem-vindos e bem-vindas à primeira edição da Revista Id. Se você é jovem, universitário ou estudante de ensino médio e tem interesse pela América Latina, permita-me apresentá-lo à nossa publicação. Ao longo de 12 edições, a ID trará até você as principais questões que circundam as identidades nacionais dos principais países dessa tão diversa América, tão próxima ao Brasil, mas muito esquecida por nossa memória. Por isso, esperamos que, de alguma forma, possamos abrir caminho para uma mudança nas relações de nosso país com seus vizinhos, dando mais importância às suas histórias, a seus heróis e, sobretudo, a seus povos. Exploraremos desde as questões mais cotidianas às de maior relevância, sempre lembrando a você qual a importância disso para a constituição das identidades nacionais. Gostaríamos de convidá-los, portanto, a um passeio magnífico pelas páginas que lerão a seguir. Com muito prazer, introduzimos você a essa edição que inaugura nossas atividades falando de um país tão caro aos nossos corações: o Brasil. País de origem e lar dos membros de nossa equipe, o Brasil é um importante protagonista na luta pelo reconhecimento das nações latinas. Ainda que nossa colonização portuguesa nos diferencie em muitos aspectos dos vizinhos de colonização espanhola, essa nação de proporções continentais continua sendo um forte aliado na representação a nível global dos interesses dos povos do Sul, além de compartilhar semelhanças na trágica história das ditaduras no século XX e, ao mesmo tempo, a grande vitória da redemocratização no final dos anos 1980. Sendo assim, não falar de Brasil é ignorar uma porção significativa das forças de resistência contra a dominação do Norte, contra uma hegemonização cultural que desvincula o povo de seu território, de suas práticas e de seus costumes. Por isso, elencamos diversos temas que consideramos fundamentais para uma reflexão profunda sobre nossa identidade brasileira: o Carnaval, o mito da democracia racial, a música e muito mais. Procuramos embasar nossas matérias em autores consagrados nos temas sobre os quais escrevemos, no entanto, sempre atentando para a fluidez da linguagem no tratamento do tema. Para melhorar ainda mais a sua leitura, os designers preparam um projeto gráfico especial para uma rápida assimilação, dando muita atenção às fotografias que iniciam as matérias e à padronização do tamanho dessas últimas. Esperamos que você tenha uma ótima leitura! Da Redação Acesse a página da Revista ID no Facebook para conhecer nossos conteúdos complementares indicados ao fim das matérias apresentadas.

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EQUIPE Os alunos de Comunicação Social da UFRJ construíram essa primeira edição da Revista ID através de muito esforço e da conciliação entre a pluralidade da equipe. Com a união de jovens vindos de diversas partes do Brasil, o projeto se consolidou, tomou forma e chega às mãos de seus leitores permeado pela sensação de dever cumprido e bem realizado. AMANDA CARDOSO Redatora e Revisora Rio de Janeiro, RJ CAROLINE SOARES Redatora e Revisora Vitória, ES DAVI VENTURA Coordenador e Redator São Paulo, SP DOUGLAS NEVES Redator Rio de Janeiro, RJ HELENA MARQUES Redatora Salvador, BA JOÃO GABRIEL BARRETO Editor e Redator Rondonópolis, MT JOÃO PAULO SACONI Redator e Designer Itu, SP LEONARDO BOTELHO Designer Salvador, BA PEDRO SOBRINHO Designer Rio de Janeiro, RJ TERESA RODRIGUES Redatora e Designer Belém, PA


Ă?ndice

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Índios em manifestação contra a construção da Usina de Belo Monte, no estado do Pará


TERRA DEMARCADA,

VIDA GARANTIDA por João Gabriel Barreto

Imagine você, caro leitor, habitante de uma terra pacífica, povoada pelas mais diversas espécies de frutas e animais. Imagine-se em um grupo onde todos se conhecem e o trabalho é dividido, ninguém se sobrecarrega. Você e sua família vivem tranquilamente os seus dias, até que barcos são avistados ao longe; eles se aproximam rapidamente e desembarcam dezenas de pessoas na praia próxima à sua comunidade. O contato inicial é um pouco estranho, pois ninguém se entende, mas nenhuma guerra acontece. Depois, você e todos do seu grupo se juntam para dar início a uma celebração festiva de recebimento dessas novas pessoas. Alguns anos depois, esses novos integrantes passam a ocupar sua terra, até que você é expulso de lá. O que você faria? Pois bem, caro leitor, a estrutura fundiária concentrada é um problema sintomático da questão agrária no Brasil. Que o digam as populações indígenas. De 1500 pra cá, apenas 13% de suas terras originais lhes sobraram (98,5% delas na Amazônia Legal) e o resto foi tomado pelas grandes cidades. Não pretendo ser maniqueísta ao abordar esse assunto, mas é válido refletir sobre as origens do nosso território, da nossa gente e, claro, da nossa identidade. Por isso, caros leitores, bato o martelo dizendo: o Brasil pertencia aos indígenas. Cerca de cinco milhões de nativos habitavam esta terra naqueles tempos antes da chegada dos caras-pálidas. Com o desembarque deles, vieram também as doenças do povo europeu e, assim, a morte de milhares de indígenas. Começou aí o genocídio. Posteriormente, veio a tentativa de escravizar os indíos na extração do pau-brasil. Mais um descaso. Não satisfeitos, os portugueses ainda disputaram por terras na luta pela exportação da cana. Outro marco infortúnio na vida dos indígenas.

Findaram no esquecimento pelo Estado e pelo povo brasileiro. “Como exercer, então, os meus direitos?”, perguntaram-se os índios. E eu lhes respondo: não é possível o exercício de cultura sem um território. Entendendo a terra como um elemento dotado de significado cultural, falamos aqui de um genocídio das tradições indígenas. E os culpados somos nós, caras-pálidas, por não incorporar o patrimônio cultural dos indígenas ao nosso país, por reclamar das intervenções feitas pelas indígenas nas estradas brasileiras, por legar-lhes a eterna dor do abandono. Reproduzimos constantemente discursos exclusivos e não nos atentamos ao passado das populações indígenas e da dívida histórica que nós, homens brancos e mulheres brancas, temos com elas. No entanto, reparem bem no que foi dito: as terras brasileiras pertenciam aos indígenas; agora, não pertencem somente a eles. Há novos atores sociais nessa dinâmica: madeireiros, fazendeiros, pequenos produtores rurais, entre muitos outros. O grande dilema da demarcação de terras hoje é conciliar os interesses entre esses múltiplos atores. Felizmente, muito já foi feito para garantir os direitos indígenas. A Constituição Federal assegura o direito às terras tradicionalmente ocupadas através de decreto da FUNAI. A autarquia é ligada ao Ministério da Justiça e realiza estudos antropológicos no local requisitado, enviando, posteriormente os estudos ao Ministro da Justiça, que decidirá sobre a demarcação. Apenas a FUNAI tem o poder sobre esse processo, excluindo o Ministério Público de realizá-lo também, o que leva à morosidade do sistema. O decreto 1775/96 também legisla sobre a situação e atende ao princípio do contraditório, o qual prevê direito de protesto por outras partes interessadas na demarcação, tais

como os ruralistas. Alguns deles, inclusive, alegam que o Ministério supracitado atende apenas aos interesses dos indígenas, mas se esquecem do passado violento que mencionei para você, caro leitor. Reclamam de prato cheio e ainda querem comer do prato do vizinho. Injusto, não? O que fazer, então, para resolver de uma vez por todas a demarcação das terras? A senadora Kátia Abreu, da bancada ruralista e presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil, apoia que a demarcação das terras deve ser feita assim como a reforma agrária: o governo compra, a preço de mercado, as terras desejadas, indenizando o produtor, e dá à etnia indígena que reclamou as terras. A solução me parece válida para ambas as partes, visto que o produtor não sai prejudicado e os indígenas tem seu pedaço de terra assegurado. O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, fala em cautela no processo de demarcação; mas, permitam-me discordar dele: falta uma forte decisão política, reorganização da FUNAI e recursos realocados para esse órgão. Apenas com terras demarcadas é que poderemos dar um descanso para uma nova luta: o resgate cultural das tradições indígenas no cenário educacional brasileiro. Música, ritos, pinturas, artesanato e mitos fundadores. Quantos deles vocês conhecem? Sabem o nome de pelo menos uma etnia? Deixo, pois, a minha homenagem aos Tapebas, do Ceará, no título de meu artigo. No filme que produziram em 2013, mostram seu descontentamento e sua luta diária com a demarcação de suas terras, impedida pelos interesses econômicos e políticos dos caras-pálidas. Fica aqui o meu mais sincero apoio aos Tapebas e à sua disposição em nunca deixar de lutar. E aí, cara-pálida, vamos entrar na luta também? 5


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BeneficiĂĄria do Programa Bolsa FamĂ­lia carrega seus dois filhos no colo


A fragilização do

patriarcalismo

por Caroline Soares

As mulheres brasileiras foram castigadas com uma herança indesejada do período colonial, que continua enraizada nos núcleos familiares até os dias de hoje: o patriarcalismo. É uma forma de estruturação social caracterizada pela imposição institucional da autoridade do homem sobre a mulher, filhos e subordinados. Antigo, machista e desigual, esse modelo de família e sociedade teve origem na Grécia antiga e se manteve como modelo social vigente e absoluto até o início da Revolução Francesa. A Revolução colocou em cheque a supremacia masculina, já que defendia os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A partir de 1789, então, começaram a emergir movimentos que discutiam o modelo patriarcal. Uma das consequências do patriarcalismo é a visão de uma sociedade dividida entre dominantes e dominados, que influenciou claramente no processo de formação da sociedade brasileira. No Brasil, o patriarcado se consolidou com a figura dos senhores de terras, engenhos e escravos. Exigia-se lealdade dos subordinados, perpetuando, assim, o domínio do patriarca, que tutelava a vida de sua família, trabalhadores e até mesmo de pessoas das redondezas. Desse modo, construía-se uma sociedade de patamares hierarquizados e desiguais. No final do milênio passado já estava em evidencia o questionamento das bases fundamentais do patriarcado, principalmente pelos processos de modificação do trabalho feminino. A inclusão da mulher no mercado de trabalho foi um dos primeiros passos para as próximas conquistas rumo à equidade entre os gêneros. Nesse contexto, destaca-se o movimento feminista. Com a mulher inserida no mercado de trabalho, a ideia do patriarcalismo que legitima o homem como provedor e

protetor da família se desconstrói lentamente. A mulher amplia sua rede social, preparando inconscientemente o terreno para receber as sementes feministas que estavam sendo germinadas na Europa por Simone de Beauvoir e na América Latina pelas mãos de Patrícia Rehder Galvão (a Pagu), Rosário Castellanos, Dionísia Gonçalves e outras centenas de mulheres. Os movimentos sociais, em particular o feminismo, abalam a solidez da família patriarcal. Os novos comportamentos no campo político, econômico, social, cultural e psicológico configuram o enfraquecimento desse modelo familiar. A defesa dos direitos da mulher representa uma extensão do movimento pelos direitos humanos. O movimento feminista é diverso e se adapta às culturas, idades e realidades diferentes. Atrelado a outros movimentos, especialmente os que tratam do direito humano de escolha “a quem amar”, trouxe um novo panorama da identidade sexual e da personalidade para a família. A crise do patriarcalismo, induzida pela interação entre o capitalismo e tais movimentos, passou a ser inevitável e cada vez mais decisiva, obrigando as sociedades a reconstruírem suas instituições patriarcais de acordo com as condições de sua própria cultura e história. O que está em jogo de forma alguma é o desaparecimento da família, mas sim a derrubada dos muros e sua diversificação vinculada à mudança do sistema de poder. As novas famílias não tradicionais (mães solteiras, duas mães, dois pais, entre outras configurações) não possuem a figura do patriarca. Não existe o histórico dominante e dominado. Esses novos arranjos familiares marcam a reconstrução revolucionária da sexualidade e da liberdade. A volta da família patriarcal obsoleta e opressiva como

único modelo de estruturação familiar significaria um retrocesso imenso. Uma questão do cenário atual brasileiro que desestabiliza o modelo patriarcal é o programa governamental Bolsa Família. O capitalismo, associado ao patriarcado, nunca facilitou a vida das mulheres. Em termos financeiros, a história das mulheres costuma aparecer atrelada à dependência financeira de algum homem. O dinheiro do Bolsa Família, que chega às mãos de mulheres pobres Brasil adentro, pode ser considerado uma tentativa de romper com o ciclo de extrema pobreza que as mantém sob o domínio do pai, do marido. O fato de receberem dinheiro em vez de cesta básica, por exemplo, leva essas mulheres a se encontrarem diante de um leque de possibilidades de escolha jamais experimentado. Estamos falando de uma certa liberdade no que se refere aos homens. Pela primeira vez na vida. Pela primeira vez em séculos. O programa coloca a mulher em um patamar mínimo de igualdade para começar a melhorar a vida e traçar seu próprio destino. O Bolsa Família muda não só a situação atual, mas a perspectiva de vida das mulheres, como é retratado no mini documentário “Severinas: novas mulheres do sertão”, de Eliza Capai. As mulheres estão caminhando para se libertarem da servidão ao homem e da miséria. Alguns costumam chamar de revolução feminista do sertão. Se a revolução não acontecer pelas mãos das mulheres, não acontecerá. Que o empoderamento, a emancipação, a liberdade e a autonomia atinjam mais mulheres pelo país. Que atinjam mais mulheres pelo mundo. Saiba mais sobre “Severinas” em nossa página do Facebook.

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Retrato da uni達o entre uma m達o negra e uma m達o branca: a n達o-realidade do Brasil


O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL por Amanda Cardoso

Ao contrário do que grande parte da população brasileira afirma, o Brasil é um país racista. Além do racismo praticado no campo privado, é evidente a existência do racismo institucional que estrutura nossa sociedade, praticado e disseminado por instituições públicas e privadas. Esse fenômeno nada mais é do que uma herança da escravidão. A Lei Áurea concedeu aos negros a libertação das correntes, das senzalas e das chibatadas, mas não os livrou da segregação e do preconceito, que os negava qualquer chance de integração, mantendo-os a margem da sociedade. Se hoje não temos mais os capitães do mato, temos a ação repressora da polícia militar nas favelas e comunidades pobres, habitadas em sua grande maioria por pessoas negras. É comum vermos em noticiários relatos de moradores dessas comunidades acusando a polícia de “chegar atirando” e agir de forma violenta com pessoas sem passagem pela polícia ou qualquer envolvimento com o tráfico de drogas. Não é por acaso, que segundo o Mapa da Violência de 2011, jovens negros são as maiores vítimas dos chamados “autos de resistência”, que dão à polícia a “licença” para atirar sob a justificativa de que o suspeito resistiu à prisão. Também não é raro vermos casos de pessoas negras que foram mortas ou presas por terem sido supostamente confundidas com criminosos. Casos como o desaparecimento do pedreiro Amarildo e o assassinato da auxiliar de serviços gerais, Cláudia Silva Ferreira, são exemplos do extremo a que essa política de extermínio pratica pela polícia dentro de comunidades pobres pode chegar. Além da repressão policial, é notável o abandono e o pouco investimento em políticas públicas para melhorias nesses territórios onde a maior parte da população é negra. São poucas as ações sociais dirigidas a esses locais.

A educação é outro campo onde é notável o reflexo da segregação. Apesar das cotas raciais, os negros ainda são minoria nas salas de aula do ensino superior; bem como também são minoria no ensino médio. A falta de acesso ou o acesso tardio à educação tem como principal consequência o desemprego. Segundo o relatório da ONU publicado em setembro deste ano, no Brasil há mais negros desempregados do que brancos. É impossível falar de preconceito institucional sem citar a questão da representatividade. A TV brasileira até hoje perpetua preconceitos com suas novelas que representam os negros sempre dentro dos mesmos estereótipos: favelado, bandido, empregada, “macumbeiro/a” (o que contribui para o preconceito contra a cultura e religiões de origem africana), entre outros. É raro vermos pessoas negras em papéis de destaque em uma novela em que a história não se passe durante o período da escravidão. Além disso, no Brasil, salvo uma ou duas exceções, não há negros apresentadores de programas de TV ou telejornais. A questão da representatividade não se resume só a televisão. Nas capas das revistas e nos desfiles de moda é raríssima a presença de modelos de pele negra. Esses dados mostram que, apesar de serem maioria na população brasileira, os negros são invisíveis desde que não estejam causando “desordem” pública. E que muitos ainda têm direitos básicos negados por aqueles que deveriam protegê-los e servi-los, deixando claro que o Brasil caminha a passos lentos para se tornar um país verdadeiramente de todos.

Assista ao vídeo “Gritaramme Negra” em nossa página.

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MĂŁe de santo baiana expressa sua fĂŠ na Igreja do Bonfim


um BRASIL DE todos OS DEUSES por João Paulo Saconi

Quando Pedro Álvares Cabral, suposto descobridor do Brasil, aportou no litoral da Bahia visando criar uma futura colônia portuguesa na América, trouxe consigo o Frei Henrique de Coimbra. Muito prestigiado na Igreja Católica, Henrique de Coimbra era considerado um grande missionário por conta de suas expedições para a Índia e para a África. Porém, foi aqui no Brasil que o frade e bispo realizou um feito grandioso que mudaria para sempre a história do país e ditaria os rumos dos costumes de seu povo: celebrou a primeira missa brasileira na Praia da Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, no litoral sul da Bahia. O ato dogmático de Frei Henrique foi de tamanha importância que, mesmo decorrida uma grande fração de tempo desde aquela primeira celebração, grande parte do povo brasileiro ainda cultua a missa como um ritual sagrado recorrente e necessário para a vivência de sua religiosidade. Com a primeira missa, retratada posteriormente no quadro do pintor Victor Meirelles, os portugueses em conluio com Frei Dom Henrique e os outros missionários que o acompanhavam instauraram, no Brasil, a sua primeira instituição religiosa: o catolicismo.

“A Primeira Missa no Brasil”, uma

pintura de Victor Meirelles de Lima

De lá para cá, o catolicismo se expandiu com a catequização dos índios e dos negros africanos pro-

movida pelas missões jesuítas. Assim como os portugueses viram no Brasil uma oportunidade de expansão do seu domínio mercantilista, a Igreja Católica também enxergou no território e no povo recém-descobertos um novo espaço para a disseminação de seus dogmas. Assim foi: nos 514 anos de história do país, o catolicismo consolidou-se como conceito sólido e símbolo da identidade do brasileiro que, logo ao nascer, é batizado por um padre dentro de uma paróquia. Porém, foi a própria estrutura de colonização com a qual a Igreja Católica compactuava que permitiu uma brecha no domínio hegemônico exercido por ela. Sendo a escravidão um pilar necessário para a manutenção do sistema agrário e monocultor do Brasil colonial, foi a partir dela que a resistência tomou forma. Os navios negreiros trouxeram para as terras brasileiras não apenas negros capturados em suas terras de origem, separados de suas famílias e afastados de suas memórias, mas também trouxeram a cultura africana nos porões, intrínseca àqueles que sobreviveram após a viagem transatlântica. Nas senzalas, os negros criaram uma contra-hegemonia eficiente e inteligente para continuar cultuando os deuses de sua religião, mesmo que lhe fossem impostos a língua portuguesa, os nomes bíblicos e os costumes católicos. Ainda catequizado, o negro fez uso dos conhecimentos acerca do catolicismo que lhe foram lecionados para conseguir ocultar dos senhores e capatazes a verdadeira face de sua religião. Des-

sa maneira, surgiram as associações feitas entre os orixás e os santos da igreja católica. Por isso, São Jorge e Ogum são figuras cultuadas através da mesma imagem do cavaleiro empunhando a lança e matando o dragão: hábito que é fruto da resistência da cultura religiosa negra no Brasil. De certa forma, o povo brasileiro constitui esse caráter relacional em sua cultura religiosa, assim como negro construiu durante o período em que foi escravizado e impedido de cultuar sua religião. Ainda que frequente a Igreja Católica motivado pela hereditariedade dos costumes familiares e da tradição, ele não hesita em ser pagão quando lhe convém: possui crenças em superstições que nada tem a ver com os dogmas católicos. Ainda que frequente a missa aos domingos, vá a casamentos e missas de sétimo dia, o brasileiro também pula sete ondas nos primeiros momentos do ano, joga tarô para tentar saber do futuro e deposita flores brancas no mar em oferenda para Yemanjá. Esse sincretismo religioso que permite acreditar em um Deus único, onipresente e onipotente, mas que ao mesmo tempo aceita que se cultuem outras outros deuses e outros hábitos além daqueles que são pregados pelos fundamentos católicos, é marca do brasileiro desde que o primeiro “amém” foi ouvido em terras tupiniquins, na primeira missa de Dom Henrique. A pluralidade étnica que aqui se consolidou com a imigração europeia posterior à escravidão, consolidou ainda mais essa diversidade religiosa que pauta os costumes do brasileiro. 11


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Criança sorri e imita o Cristo Redentor: pose comum entre visitantes do cartão postal


CORDIALIDADE QUE ENCANTA nações por Douglas Neves

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’.” (Sérgio Buarque de Holanda) Brasileiros são reconhecidos como um povo primo de todos os outros povos do mundo. Nascidos no calor dos trópicos e na vastidão de seu território, nós brasileiros acabamos por gerar uma pluralidade cultural tão forte quanto à própria miscigenação racial, criando uma cultura rica em história, costumes, culinária e folclore que é tão diversificada quanto à própria paisagem do país. Constituído por culturas dos mais diversos países, nós brasileiros acabamos nos tornando um povo caloroso, receptivo e hospitaleiro. Características dei-

xadas pela miscigenação cultural ocorrida no decorrer dos anos, a hospitalidade e a cordialidade brasileira, que há muito encantam estrangeiros das mais diversas partes do mundo, vêm sendo importantes motivações para que turistas viajem para o Brasil. A forma íntima de convívio entre nós brasileiros, em que todos parecem amigáveis, é percebida com curiosidade por aqueles que nos visitam em busca do segredo quase mítico da singularidade brasileira. O homem cordial, visto por Buarque de Holanda como algo negativo para a sociedade brasileira, é visto por estrangeiros como algo impressionante, algo que os encanta e deixa-os fascinados pelo jeito passional de se encarar a vida. Toda essa nossa cordialidade e passionalidade acaba por encobrir traços de

nossa herança mais remota, manifestados no nosso jeitinho brasileiro, que há muito encanta, porém também prejudica a nossa imagem. Somos um povo cordial e hospitaleiro, porém marcados por uma dualidade ímpar na forma de encarar a vida e as relações interpessoais. Toda essa nossa informalidade, esperteza, sincretismo, naturalidade perante às adversidades e a acomodação diante de escândalos públicos, estão estritamente ligados com nosso brasileirismo que encanta e fascina visitantes. Cordial ou malandro, extrovertido ou indiscreto, maleável ou corruptível, otimista ou sonhador? Impossível dizer! Essa é a identidade brasileira dúbia e única!

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asil é reconhecido mundialmente por sua vasta biodiversidade e, mais do que isso, teve sua visão ligada a um exotismo ico na Europa e Estados Unidos. Ainda no início da colonização portuguesa, no século XVI, alguns viajantes retrataram adernos de viagens as situações que aqui viviam e as paisagens que admiravam. Em seguida, no século XIX, a pedido rte Real Portuguesa, que acabara de se instalar em solos cariocas, artistas franceses vieram ao Brasil com o objetivo de ar o espaço e retratar o povo local. No entanto, a imagem que esses viajantes e artistas consolidaram do país no exterior de um Brasil selvagem, exótico, que necessitava de um processo civilizatório.

BRASIL

EM FOCO

o assim, a corte portuguesa nunca havia tomado medidas que permitissem que a sua colônia na América pudesse ter strutura suficiente para sua população. Portanto, quando a Corte vem ao Brasil, em 1808, a cidade do Rio de Janeiro, Revista ID promove, em algumas páginas, uma releitura fotográfica do Brasil. Contratastando belezasdonaturais as xemplo, A dobra o número de habitantes repentinamente e D. João, nos anos seguintes, abre o Banco Brasil,e constrói o nuances urbanas que o país apresenta, nossos redatores procuraram uma forma de traduzir em imagens toda a beleza m Botânico, no Rio, funda uma imprensa, cria a universidade de Medicina de Salvador, entre outras facilidades de uso de uma pluralidade que um país continental como o Brasil possui. Com o foco naquilo que temos de mais belo e de mais co. As cidades brasileiras, partir desse momento, começam processo de não expansão e, nos complexo, as lentes daaID registraram, por diferentes lugares,seu imagens que você pode deixar de séculos conhecer,seguintes, uma vez queganham traçam um panorama da identidade brasileira como paraíso de riquezas naturais e como país em emergência iminente. figuração que conhecemos hoje.

e sentido, o êxodo rural provocado pela crescente urbanização do Brasil provocou um inchaço urbano inevitável, em O Brasil é reconhecido mundialmen- de Janeiro, as ocupações de baixo cus- milhões de turistas que visitam os mio da falta desua infraestrutura das cidades. toa, famosas surgemdo nomundo: Rio de as Janeiro, ocupações de baixode custo famosas te por vasta biodiversidade e, maisNãotoàmais favelas. as lhares de quilômetros praiasmais voltam do que isso, teve sua visão ligadadea um O nome deriva de guerra Canudos, famosa a todos anossido à Genipabu, Canoapróxima Queundo: as favelas. O nome deriva Canudos, famosa pela histórica, qual os havia construída ao exotismo histérico na Europa e Estados pela guerra histórica, a qual havia sido brada e Fernando de Noronha. No Rio o da Favela, planta que fazia parte da vegetação local. Assim, quando alguns soldados voltam da guerra para o Rio Unidos. Ainda no início da colonização construída próxima ao Morro da Fave- de Janeiro, não é raro observar turistas favela em referência à original. neiro, instalam-se Morro daalguns Providência batizam o local deque portuguesa, nonoséculo XVI, via- la,eplanta que popularmente fazia parte da vegetação admiram o Pão de Açúcar, enquan-Ainda jantes retrataram em cadernos via- muitas local. Assim, alguns soldados to caminham pelode Aterro do Flamengo, milhões de brasileiros vivem em de favelas, vezesquando marcadas pela violência, pelo tráfico drogas e pelas baixas gens as situações que aqui viviam e as voltam da guerra para o Rio de Janeiro, ou mesmo fazem uma trilha pelo Parções sanitários. paisagens que admiravam. Em seguida, instalam-se no Morro da Providência e que Nacional da Floresta da Tijuca. Em no século XIX, a pedido da Corte Real

batizam popularmente o local de fave-

Mato Grosso, no Centro-Oeste, a cida-

Sendo assim, a Corte Portuguesa nunca

Paulo, cidades que, posteriormente, se

Portanto, ainda que o imaginário coleti-

lasse média brasileira foi bastante favorecida nos anos 1950 a 1970, com a expansão do mercado imobiliário no país, Portuguesa, que acabara de se instalar la em referência à original. Ainda hoje, de de Chapada dos Guimarães chama especialematenção a Rio artistas e São Paulo, que, posteriormente, se tornaram dados identidade nacional brasileira solos cariocas, francesescidades vie- milhões de brasileiros vivem em fave- símbolos a atenção ecoturistas, que buscam ram ao Brasil com o objetivo de estudar las, muitas vezes marcadas pela violênatividades como rapel, rafting, trilhas e o de atração de milhões de turistas todos os anos. Por conseguinte, o Brasil tem uma forte densidade populacional na o espaço e retratar o povo local. No en- cia, pelo tráfico de drogas e pelas baixas acampamentos. No Sul, a neve atrai a o Sudeste, noesses Sul,viajantes o que levou embatessanitários. com a preservação da biodiversidade. Só resta à Mata tanto,ea também imagem que e ar- acondições atenção de turistas brasileiros que Atlântica, conda região ligando ao Nordeste, apenas 7% brasileira do seu território ocupado 1500. O rio Tietê na cidade de tistaslitorânea, consolidaram do paísSul no exterior Já a classe média foi bastante vivemem com as altas temperaturas dos foi a de umajuda Brasildiária selvagem, favorecida nosatentos anos 1950 a 1970, com trópicos o ano todo. Sem lixo esquecer o e nas aulo quase pede aos exótico, paulistanos, que não às leis de preservação ambiental, jogam no rio que necessitava de um processo civili- a expansão do mercado imobiliário no Norte, o nome da Floresta Amazônica fora o zatório. próprio despejo de esgoto não tratado nascom águas do mesmo. país, especial atenção a Rio e São já fala por si só.

udo, o havia Brasil aindamedidas possuique inúmeras riquezas naturais incontáveis, a começar pela floresta tropicalinfluendo mundo, tomado permitissem tornaram símbolos da identidade na- vo digamaior o contrário, fortemente sua colônia os na América cional e polo de atração de ciado pelas representações eurocênazônia.que Noa Nordeste, milhõespudesse de turistas que brasileira visitam os milhares de quilômetros de praias voltam todos os anos a ter infraestrutura suficiente para sua pomilhões de turistas todos os anos. Por tricas do país, o Brasil não é um lugar pabu, Canoa Quebrada e Fernando de Noronha. No Rio de Janeiro, não é raro observar turistas que admiram o Pão de pulação. Portanto, quando a Corte vem conseguinte, o Brasil tem uma forte exótico. Assim como qualquer outro ar, enquanto Aterro mesmo fazem umaSu-trilhapaís pelo Parque por Nacional da Floresta da ao Brasil,caminham em 1808, apelo cidade do Riodo de Flamengo, densidade ou populacional na região é marcado contrastes fortes Janeiro,Grosso, por exemplo, dobra o número deste, também no Sul, o que levouchama a entre a ocupação humana e asque obras buscam a. Em Mato no Centro-Oeste, a cidade deeChapada dos Guimarães a atenção dos ecoturistas, de habitantes repentinamente e D. João, embates com a preservação da biodi- da natureza; é um país urbanizado que, ades como rapel, rafting, trilhas e acampamentos.

nos anos seguintes, abre o Banco do versidade. Só resta à Mata Atlântica, tí- apesar dos problemas com o seu meio Brasil, constrói o Jardim Botânico, no pica da região litorânea, ligando Sul ao ambiente, ainda tenta preservar o que nto, Brasil não é exótico, como pensam os europeus; é um país urbanizado que, apesar dos problemas com o seu meio Rio, funda uma imprensa, cria a univer- Nordeste, apenas 7% do seu território lhe resta e cujo povo faz bom proveito ente, ainda preservar que lheentre resta e ocupado cujo povo bom proveito sua terra! sidadetenta de Medicina de oSalvador, em faz 1500. O rio Tietê nade cidade sua terra! outras facilidades de uso público. As ci- de de São Paulo quase pede ajuda diária Nas páginas seguintes, você poderá desdades brasileiras, a partir desse momen- aos paulistanos, que não atentos às leis frutar de alguns dos mais belos espaços to, começam seu processo de expansão de preservação ambiental, jogam lixo do território brasileiro. Indo além de e, nos séculos seguintes, ganham a con- no rio e nas ruas, fora o próprio despe- uma mera exaltação das obras da natufiguração que conhecemos hoje. jo de esgoto não tratado nas águas do reza brasileira, a Revista ID enfoca seus Nesse sentido, o êxodo rural provoca- mesmo. registros nas contradições entre as mado pela crescente urbanização do Brasil Contudo, o Brasil ainda possui inúme- ravilhas naturais e as nuances urbanas, provocou um inchaço urbano inevitá- ras riquezas naturais incontáveis, a co- características da atualidade, revelando vel, em função da falta de infraestrutura meçar pela maior floresta tropical do a você as melhores imagens das cinco das cidades. Não à toa, surgem no Rio mundo, a Amazônia. No Nordeste, os regiões do Brasil. 14


Teatro Amazonas - Manaus, AM

Monte Roraima - Uiramut達, RR

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Igreja de S達o Francisco - Salvador, BA

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Mirante do Sueste - Fernando de Noronha, PE


Palácio da Alvorada - Brasília, DF

Pantanal Matogrossense - Poconé, MT

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Ponte Estaiada - S達o Paulo, SP

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Favela da Rocinha - Rio de Janeiro, RJ


Jardim Bot창nico - Curitiba, PR

Portal de Gramado - Gramado, RS

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Capitu, personagem da obra de Machado de Assis, representada por atriz brasileira


nas páginas de uma nação por Helena Marques

Canção do exílio Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar sozinho, à noite Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que disfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. (Gonçalves Dias, 1843) Se Gonçalves Dias tivesse escrito a aclamada e famosa Canção do Exílio no século XXI, com certeza para além da natureza e a “magia” do Brasil, mencionaria também a densidade de Machado de Assis, o existencialismo da Clarice Lispector e por quê não a literatura de vanguarda de Nelson Rodrigues? Algo tão peculiar ao Brasil que com certeza seria mencionado em seu exílio. O que começou no início do século XV apenas como uma função catequizadora e de propagação do idioma português em detrimento à multiplicidade de línguas indígenas foi se expandindo e criando diversas “escolas” ao longo

dos séculos. Do barroco, marcado pelas oposições e conflitos, passando pelo arcadismo que traz à tona a atmosfera marcada pela ascensão da burguesia e de seus valores. Chegando no século XIX, temos na primeira metade o Romancismo que é sempre marcado como o movimento ímpar na literatura brasileira. Tendo como plano de fundo acontecimentos que literalmente mudaram o país como a chegada da Família Real em 1808 e a Independência em 1822, o momento traz consigo ares de nacionalismo, retomada dos fatos históricos importantes, idealização da mulher, espírito criativo e sonhador, valorização da liberdade e o uso de metáforas. Clássicos da nossa literatura como o Guarani de José de Alencar, o próprio poema que abre essa matéria, encontrado no livro Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves Dias, e Espumas Flutuantes, de Castro Alves, são exemplos dessa época. Na segunda metade do século XIX, eis que o Realismo habita e faz-se presente nas publicações da época. Com o declínio dos ideais românticos, a literatura marcada pela objetividade, uso de cenas cotidianas, crítica social, visão irônica da realidade entra em cena. É nesse período que grandes obras de nossa literatura, presentes no cotidiano de escolas primárias, secundárias e vestibulares são escritas como: Vítimas Algozes de Joaquim Manoel Macedo, O Cortiço de Aluisio de Azevedo e não podemos nos esquecer de um autor clássico.

“Morro da Favela”, obra de Tarsila do Amaral muito associada a “O Cortiço”

“O todo poderoso do realismo”, ele que é a paixão de muitos professores de língua portuguesa e literatura, criador de um dos maiores mistérios da literatura. Ou você ainda não morre de dúvidas se Capitu realmente traiu Bentinho? Sim, é claro que estou falando do grande Machado de Assis. Falar de um realismo brasileiro sem citá-lo, é a mesma coisa de dissociar o feijão do arroz. O autor que é considerado por muitos críticos o grande nome da literatura nacional, além de Dom Casmurro, citado no parágrafo anterior, escreveu grandes obras da escola como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e O Alienista. Conhecido pelo seu estilo versátil, Machado não se resume ao rótulo de escritor do Realismo, foi poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista, e crítico literário.

O ator Reginaldo Faria caracterizado como Brás Cubas para o cinema Machado de Assis testemunhou a mudança política no país quando a República substituiu o Império e foi um grande comentador e relator dos eventos político-sociais de sua época. No entanto, ficou conhecido como o “pai do realismo” por tê-lo “iniciado” aqui no país com a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas em que retrata a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e o positivismo da época, chegando a criar, inclusive, uma nova filosofia, mais bem desenvolvida posteriormente em Quincas Borba (1891) — o Humanitismo, sátira à lei do mais forte. 21


Em fins do século XIX, o Parnasianismo e Simbolismo estão em voga. O Parnasianismo na busca por temas clássicos, valorizou o rigor formal e a poesia descritiva. Os autores parnasianos usavam uma linguagem rebuscada, vocabulário culto, temas mitológicos e descrições detalhadas. Os principais autores parnasianos são Olavo Bilac (escritor do Hino Nacional), Raimundo Correa, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho. Já no Simbolismo, os escritores usavam uma linguagem abstrata e sugestiva, enchendo suas obras de misticismo e religiosidade. Valorizavam muito os mistérios da morte e dos sonhos, carregando os textos de subjetivismo. Os principais representantes do Simbolismo foram Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens. No início do Século XX entra em cena o Pré-Modernismo, marcado pelo regionalismo, positivismo, busca dos valores tradicionais, linguagem coloquial e valorização dos problemas sociais. Nesse contexto, obras responsáveis por suscitar e abordar de um viés diferente a questão do nacional são escritas. Com destaque para Os Sertões, de Euclides da Cunha, é um misto de literatura com relato histórico e jornalístico em uma resposta realista e pessimista à visão ufanista do Brasil. Monteiro Lobato com o seu Sítio do Picapau Amarelo também recebeu comentários negativos de políticos brasileiros, que se queixaram de que seu trabalho era “antipatriota” e que falando mal do governo para crianças foi “indelicado”.

Ilustração com personagens famosos do Sítio do Picapau Amarelo Lobato respondeu que era importante para ele transmitir o seu espírito crítico através de suas histórias e que as pessoas estavam habituadas a mentir para seus filhos, dizendo que o Brasil era um país realmente maravilhoso. 22

Além dessa polêmica existiram outras, uma relacionada as referências evolucionistas do autor na obra que influiu para a sua proibição em escolas católicas e ao teor racista explicitados por exemplo, quando ele se refere a Tia Anastácia como “mastro de São Pedro que nem uma macaca de carvão” e que “ninguém iria escapar” o ataque de onças “nem Tia Nastácia, que tem carne preta”. Tanto que o Conselho Nacional de Educação afirmou que o livro está em desacordo com a legislação brasileira e que deveria não ser mais utilizado por estudantes ou que seja acompanhado de explicações sobre o conteúdo. No Modernismo, período que começa com a Semana de Arte Moderna de 1922, as principais características são nacionalismo, temas do cotidiano (urbanos), linguagem com humor, liberdade no uso de palavras e textos diretos. Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo, Alcântara Machado e Manuel Bandeira são grandes nomes do movimento.

Foto histórica da Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922 No movimento neo – realista os escritores retomam as críticas e as denúncias aos grandes problemas sociais do Brasil. Os assuntos místicos, religiosos e urbanos também são retomados. Jorge Amado com todo o seu lirismo, vocabulário escrachado e sem medo de retratar a realidade sem pudores é autor de livros que mexeram e mexem com o imaginário popular. Gabriela é sinônimo de feminidade e sensualidade, Quincas Berro D’ Água é o típico “fanfarrão” que quase todos conhecem ou ao menos já ouviram falar e Dona Flor e Seus Dois Maridos traz uma arquétipo de dona de casa e seus devaneios sexuais mesclada a um ar de misticismo e religiosidade típicos da Bahia. Clarice Lispector aparece como o gran-

A atriz Sônia Braga caracterizada como Gabriela em adaptação de nome feminino existente até então em nossa literatura. A menina ucraniana, mas com coração e alma brasileira, destaca-se por livros marcados de singularidades e inovações linguísticas, encabeçando a lista dos que mais incorporaram traços inéditos à literatura nacional. A ficção “clariceana” se concentra nas regiões mais profundas do inconsciente, ficando em segundo plano o meio externo, pois quase tudo se resume à mente das próprias personagens. Clarice nos ensina a “abrir mão de uma terceira perna” como fez G.H em A Paixão Segundo G.H, a identificarmos e nos saborearmos com as nossas “Legiões Estrangeiras” ou porquê não mergulharmos profundamente em nós mesmos numa viagem densa e complexa como em “Água Viva”? Sendo esteticamente realista, Nelson Rodrigues não deixou de inovar tal como fizeram os outros neo-realistas. O autor transpôs a tragédia grega para o sociedade carioca do início do século XX, e dessa transposição surgiu a “tragédia carioca”, com as mesmas regras daquela, mas com um tom contemporâneo. O erotismo está muito presente na obra de Nelson Rodrigues, o que lhe garante o título de realista. Nelson não hesitou em denunciar a sordidez da sociedade tal como o fez Eça de Queirós em suas obras.

Retrato de Nelson Rodrigues, autor recifense do neo-realismo


Esse erotismo realista de Nelson teve sua gênese em obras do século XIX, como “O Primo Basílio”, e se desenvolveu grandemente na obra do autor pernambucano. De personalidade polêmica, isso é claro, também se refletia em sua obra, que foi um sucesso de público e crítica, conseguindo se expandir pelos quatro cantos do país quando adaptada para a TV e o teatro. Como exemplo da série “A vida como ela é” transmitida pelo programa dominical Fantástico, “Os sete gatinhos”, peça de teatro e “Bonitinha, mas ordinária”, filme de grande repercussão e polêmica. Caro leitor, nessa matéria foi feito um passeio pela história da literatura nacional e é possível notar o quanto ela é rica e densa. Então, que tal abandonar o estereótipo que produções literárias e cinematográficas “tupiniquins” são de baixa qualidade? Que tal deixar de lado um pouco de Harry Potter, Jogos Vorazes, Crepúsculo, Cinquenta Tons de Cinza e afins e dar oportunidade para conhecer um pouco mais do que está tão próximo de nós e tão visível aos nossos olhos? Da poesia de Castro Alves as crônicas reflexivas de Martha Medeiros, vale à pena uma “degustação” a nossa cultura! Óculos em mãos, uma luz ambiente legal e um cantinho confortável em casa, no ônibus, no metrô ou na transição de uma aula para outra. Pronto, o ambiente está feito! Concentração e olhos bem atentos, é só agora deixar a imaginação realizar o seu trabalho, boa leitura.

Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá

“Canto de regresso à patria” (Oswald de Andrade)

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A cantora Marisa Monte representando a mĂşsica brasileira nas OlĂ­mpiadas de Londres


MUSICALIDADE BRASILEIRA por Douglas Neves

Desde a bossa nova, nos anos 50, a música brasileira é reconhecida como uma das melhores do mundo, sendo sempre fortemente elogiada pela sua forma poética de fazer música, caracterizada pela sua percussão e energia ímpar. De fato, o Brasil é muito rico em ritmos musicais que aqui se originaram e tornaram-se conhecidos mundialmente. Expressões como “Berço do Samba”, “País do futebol” e “Reino do carnaval” são as mais relacionadas ao Brasil no exterior. Somos um povo extremamente musical e constituído pela musicalidade. Como já declamava Caetano Veloso: “Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo. Até aí, tudo bem, nada mal. Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo. O Brasil tem ouvido musical que não é normal!”. A musicalidade parece fazer parte de nós brasileiros. Somos um povo feito e criado pela música. O escritor Mário de Andrade afirmava em seu livro Ensaio sobre a Música Brasileira: “Cabe lembrar (...) do que é feita a música brasileira, (...) ela provém de fontes estranhas: a ameríndia em porcentagem pequena; a africana em porcentagem bem maior; a portuguesa em porcentagem vasta. Além disso, a influência espanhola, sobretudo a hispano-americana do Atlântico (Cuba e Montevidéu, habanera e tango) foi muito importante”. Em relação ao inicio do século XX, Mario de Andrade afirmava

que a música popular brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça até agora, pois é ela que nos constitui e nos une enquanto nação. O primeiro ritmo musical originalmente brasileiro foi o maxixe, formado a partir de uma mistura entre o “lundu” (termo que significa umbigada e era uma espécie de samba muito sensual praticado nas rodas de escravos) e a “modinha” portuguesa (composição suave, geralmente romântica, tocada na viola e dançada em salões). Com a umbigada do lundu e a poesia da modinha a identidade musical brasileira foi sendo formada. Por volta dos anos 1880 surgia um novo jeito de se fazer música no Brasil, no subúrbio da então capital Rio de Janeiro. Era uma forma mais charmosa e chorosa de se tocar as canções populares vindas da Europa, o que começou a ser chamado de “choro”, que posteriormente deu origem ao samba, ainda no Rio de Janeiro, por volta de 1910, e que depois deu origem a vários subgêneros. Outros ritmos também foram sendo criados por todo o Brasil:

No Nordeste tivemos o surgimento do baião que deu origem ao forró, ritmo que se popularizou e que hoje é símbolo da região Nordeste do país. Temos o frevo, em Pernambuco, ritmo que mistura maxixe com a capoeira, e que em 2012 foi declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade. Na Bahia, temos como maior expres-

são o Axé Music, que foi criado com uma junção do maracatu, reggae e ritmos afro-brasileiros.

Em Minas Gerais, tivemos o surgimento das modas de viola e das “musicas de raiz”, que por sua vez deram origem ao sertanejo. No Rio de Janeiro, temos o surgimento do funk carioca no final da década de 1990 e início dos anos 2000, que depois se popularizou também em São Paulo e que a cada dia tem um forte alcance mundial.

No Norte do país tivemos o surgimento do carimbó, um dos ritmos com maior influência da cultura indígena, vindo a ser considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, e a lambada que teve forte inspiração no carimbó e guitarrada, que posteriormente foi muito difundida na cultura latino-americana e espanhola. Podemos perceber após esta breve análise o quão rica é a cultura musical brasileira: são vários ritmos e várias histórias por trás do surgimento de cada estilo. Podemos afirmar categoricamente, assim como Mário de Andrade e Caetano, que somos um povo musical e que essa musicalidade nos constituiu como nação. 25


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Destaque do carro abre-alas do Salgueiro no desfile da escola em 2014


o rito da inversão por João Paulo Saconi

“O que faz o Brasil, Brasil?” é a questão que o antropólogo carioca Roberto DaMatta procura responder em seu livro nomeado com esta mesma pergunta e lançado em 1984. Para caracterizar o seu país, o autor conceitua o seu povo: para ele, o brasileiro é um indivíduo dividido entre a casa e a rua. A casa representa a pessoalidade, a harmonia, o reconhecimento pessoal e a supercidadania. A rua, por sua vez, é um signo que representa a luta, a indiferenciação dos indivíduos em um local onde não há respeito ou amizade e onde imperam leis impessoais. Dessa maneira, o carnaval é contextualizado por DaMatta como um rito da inversão. Nos quatro dias de momo, o brasileiro quebra a hierarquização a que está habituado entre a rua e a própria casa. Durante esse período, a rua é também casa e torna-se tão confortável que chega a ser palco da transformação de um povo batalhador em um povo festeiro e folião. De uma criança em um super-herói de sua fantasia. De um adulto em criança novamente. De um homem em uma mulher e de uma mulher em homem. O carnaval inverte valores comuns e subverte a lógica do brasileiro e o faz criando uma grande festa popular. Oriundo da cultura portuguesa e praticado pelos escravos brasileiros com o nome de entrudo, o carnaval criou pompa nos bailes elitistas do Rio de Janeiro, enquanto o povo era impedido de praticar seus festejos logo que eles entraram em destaque. Porém, com os ranchos e cordões criados no final do século XIX, o povo pôde voltar às ruas para o seu rito da inversão, contrariando os interesses da elite e pintando mais uma vez as ruas da capital carioca com suas marchinhas e suas danças que, na década de 1920, dariam origem às escolas de samba. Criou-se, então, aquilo que se pode chamar de “o maior espetáculo da Ter-

ra”. É na Rua Marquês de Sapucaí, após o toque da sirene inicial, que as escolas de samba realizam suas apresentações ao longo de 82 minutos de magia carnavalizada e canalizada em forma de fantasias, alegorias e musicalidade. Para contar uma história interessante ao público nas arquibancadas, a indústria do carnaval trabalha um ano inteiro produzindo um desfile repleto de insights e truques que encantam e prendem o olhar. Ainda assim, com todo o seu passado de subversão e transgressão à sociedade estamental, o carnaval é uma instituição em decadência no país. Cada vez mais, a maior festa popular brasileira deixa de ser vista como um reduto cultural e histórico e se torna marcada por suas mazelas. Por conta de questões como a estigmatização da mulher sambista e da utilização do seu corpo como publicidade para a festa e também dos exageros relacionados à utilização descomedida de bebidas alcoólicas e substâncias análogas, o carnaval tornou-se carnavalizado – isso é, dentro da festa da fantasia, o verdadeiro objetivo de celebração popular fantasiou-se com a futilidade do folião excessivo – e perdeu o foco em seus maiores objetivos, tornando-se apenas uma festa “para inglês ver”. Porém, as arquibancadas repletas de turistas e o isolamento do verdadeiro povo no setor um (este possui ingressos gratuitos que são distribuídos pelas próprias escolas às comunidades) não impedem que os desfiles das escolas de samba tragam, em sua essência ainda preservada diante do desfoque já evidenciado, personalidades marcantes e marcadas pelo samba. No mesmo asfalto por onde já desfilaram artistas do naipe de Clara Nunes, hoje desfilam religiosamente Beth Carvalho e Paulinho da Viola. Na mesma festa em que o Príncipe Charles encantou-se com a cinderela negra Pinah, hoje é o público

quem se encanta com as invenções e reinvenções do carnavalesco Paulo Barros. O mesmo espetáculo já idealizado por gênios como Fernando Pamplona e Joãozinho Trinta, hoje é recriado com a maestria semelhante por artistas como Rosa Magalhães, Renato Lage, Alex de Souza e Alexandre Louzada. Foi a partir da obra dos carnavalescos supracitados que a ID iniciou a sua pesquisa editorial para abordar o carnaval nessas páginas. Descobrimos, então, que não fomos os únicos a querer trazer os aspectos da latinidade para um produto tipicamente brasileiro: a escola de samba Vila Isabel, no ano de 2006, sagrou-se campeã do carnaval carioca com o enredo “Soy Loco Por Ti, América - a Vila Canta a Latinidade”. Através das criações do carnavalesco Alexandre Louzada, hoje exercendo o ofício na Portela, a Vila Isabel conquistou um título incontestável e deixou marcas na história do espetáculo ao levar para o desfile a escultura mais alta da história com 14 metros representando Simon Bolívar (recorde quebrado novamente por Louzada, neste ano, com a Portela e um gigante de 18 metros de altura). Com o desfile da Vila Isabel em 2006 em mente e o samba enredo na ponta da língua – e ele diz: “Sangue caliente corre na veia, é noite no Império do Sol. A Vila Isabel semeia sua poesia em portunhol (...)” – ID foi em busca de uma entrevista com Alexandre Louzada, procurando conhecer mais sobre a construção de um desfile de carnaval, em especial o de 2006 em que ele comemorou um campeonato com a latinidade. Trazemos agora ao leitor um depoimento fiel e bem construído de um dos grandes profissionais da maior festa popular brasileira (e latino-americana, num dos desfiles de Alexandre Louzada). ID – Como foi o processo de escolha do enredo sobre a América Latina 27


ideais de Simon Bolívar e uma América única e forte. Imaginei um mosaico de arte e culturas que se mesclassem mostrando as semelhanças entre si. ID – Qual a sua lembrança mais marcante acerca desse desfile?

Carro alegórico representando o México no desfile da Vila em 2006

para o desfile de 2006 na Vila Isabel? Louzada – Olha, havia uma possibilidade de patrocínio oferecida por contatos do Martinho da Vila, vinda da PDVSA (Petróleos da Venezuela, empresa estatal que explora petróleo). Porém, em conversa com o historiador Alex Varela, egresso da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense e que tinha o desejo de trabalhar comigo, ele me falou sobre José Martí contando sobre a Revolução Cubana e outras coisas. Juntos, tivemos a ideia central de falar da América Latina como um todo, falando de sua soberania e tudo que o europeu estragou por aqui. O que me chamou a atenção foi o fato de o Brasil ser um país latino-americano que nunca havia reconhecido a sua latinidade, sendo a única nação que fala português. É também o único país do mundo com espírito “anti-xenófobo”. Pensei que poderia ser ele a unir todos com um só pensamento: a essência dos

Louzada – Acho que o que mais me marcou naquele ano foi o fato de a Vila Isabel ter chegado à concentração inteira. Quando montaram as alegorias, isso causou um verdadeiro espanto a todos que passavam e não acreditavam que era a Vila. Recebi os parabéns de vários artistas, de grandes nomes e presidentes de outras agremiações pelo trabalho. Outro fato marcante foi a minha fala a todo o povo da Venezuela, logo após a sagração da Vila como vencedora do título. Além disso, claro, houve a ousadia de brigar por um samba que misturava palavras em espanhol, que antes do carnaval recebera várias críticas. ID – A Vila trouxe, naquele ano, diversas alegorias marcantes. Entre elas, uma em homenagem ao Méxi-

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ID – Como você enxerga a América Latina no contexto do mundo globalizado atual? Louzada – Ciência política não é uma matéria que domino, mas ainda assim não sou alienado. Penso nessa união proposta nas Revoluções que aqui aconteceram, mas que postas em prática nos mostraram outro cenário. Eram precisos novos líderes que se utilizassem mais dos ideais do que dos interesses. Sei que é utópico, mas como artista, sonhador que sou, acredito nas lideranças que surgem das mentes jovens, esclarecidas e emergentes das instituições de ensino. Educação é a chave e é uma das grandes feridas latino-americanas que precisam ser curadas. Nessa globalização, percebo a sensível mudança. Talvez a Revolução Cultural seja o caminho para sair da pobreza de espírito e vencer a pobreza de fato.

Alegoria da Vila considerada por Louzada a mais bela de sua carreira

Sei que é utópico, mas “como artista, sonhador Escultura de Simon Bolívar com 14m de altura, a maior até aquele ano

“O Esplendor do Império do Sol”, abre-alas da Vila Isabel em 2006

teve a alegoria mais bela já produzida por mim: foi um presépio que representava o Equador todo feito em palhas de diversos tipos.

co e outra referente a Simon Bolívar representado com a maior escultura que já havia passado pela Sapucaí até o momento. Qual a sua alegoria preferida nesse desfile? Louzada – A Vila, na minha opinião,

que sou, acredito nas lideranças que surgem das mentes jovens (...) Educação é a chave. Alexandre Louzada

Ouça ao samba da Vila Isabel de 2006 em nossa página.


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Rapaz joga futebol em Fortaleza com a “Brazuca”, bola oficial da Copa do Mundo no país

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PAÍS DO FUTEBOL

por Amanda Cardoso e Teresa Rodrigues As luzes, a torcida, a emoção de ver o time do coração jogar. Ir ao estádio é uma experiência essencial para grande parte dessa nação apaixonada pelo futebol. Chamado de “The Beautiful Game” em terras estrangeiras (“o lindo jogo”, em tradução livre), o esporte é considerado um legítimo brasileiro de pais ingleses. Vamos aos dados: o futebol brasileiro movimenta R$ 16 bilhões por ano, possui 30 milhões de praticantes (se os futebolistas formassem um país, seria o quinto mais populoso da América Latina), a Seleção Brasileira possui cinco títulos mundiais e o consenso mundial é que o melhor jogador da história é do interior de Minas Gerais. Isso já seria evidência o suficiente para dar ao Brasil a honra de ser considerado o país do futebol, não é?

pentacampeão mundial de futebol, o nosso país já carregava esse “título”. De historiadores a sociólogos, muitos já tentaram responder essa pergunta, analisando a história do futebol brasileiro por diferentes vieses: étnico, históricocultural, social, político. Como era de se esperar, ninguém conseguiu ter a palavra final sobre o assunto. Não que as questões levantadas não sejam importantes, elas apenas são racionais demais. Não há raciocínio lógico que possa explicar o amor do brasileiro por futebol. O esporte arrasta milhares de torcedores fanáticos aos estádios, uniformizados com as cores de seus times do coração da cabeça aos pés, empunhando bandeiras e gritando seus hinos. Não há estudo que possa desvendar o mistério por trás do talento dos brasileiros nos gramados, dos dribles desconcertantes, do “futebol arte” que deixa os adversários comendo poeira dentro de campo, que leva a torcida ao delírio e que transformou jogadores brasileiros em “Fenômenos” e “Reis” conhecidos nos quatro cantos do mundo. “Copa do Mundo é a pátria de chuteiras.”

Pelé em campo, o melhor jogador do mundo nasceu em Três Corações - MG Talvez não seja bem assim. O futebol é um esporte de origem britânica, atualmente os campeonatos e times europeus são os mais famosos e aclamados pelo mundo e o esporte é bem mais rentável na Arábia, um país sem muita tradição futebolística. De fato, são crescentes as contestações sobre o merecimento dessa alcunha por parte do Brasil. Então por que ele seria o país do futebol? A resposta parece simples: o Brasil é o maior campeão de Copas do Mundo. Mas muito antes de se tornar o único

(Nelson Rodrigues) O futebol está entranhado na essência do país de tal maneira que brasileiros escolhem ou herdam seus times da mesma maneira que acontece ao se escolher uma religião. Mesmo aqueles que não são os maiores interessados adotam equipes para chamar de suas; são torcedores não praticantes. Afinal, para ser torcedor muitas vezes também é preciso ter fé. Tudo pode acontecer naqueles 90 minutos de bola em campo. Engana-se quem acha que o futebol se restringe ao que acontece nos campos. Ele está presente na maneira em que nos comunicamos – quem nunca fez algo “show de bola” ou já foi “jogado para

escanteio”? É uma das maiores formas de socialização, pois une pessoas de diferentes classes, raças e credos em prol de uma só causa: torcer pela vitória de um time ou pela derrota do rival. É uma paixão que reúne amigos para as “peladas” do fim de semana, para as apostas nos bolões e para discussões acaloradas em volta de uma mesa de bar.

Abertura da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, realizada em São Paulo A relação passional que toda uma nação mantém pelo esporte certamente foi uma das principais razões pela qual a Copa do Mundo de 2014 tenha sido considerada a “Copa das Copas”. Não era só no campo: era nas ruas pintadas, nos bairros silenciosos quando a Seleção jogava, nos gritos sincronizados de gol que eram replicados por todo o território. Se restava alguma dúvida para quem é de fora, os brasileiros estamparam seu amor pelo futebol para todo o mundo ver. Ainda mais que uma paixão, o futebol é uma herança nacional em seu sentido mais literal. Não é difícil saber chutar uma bola, mas os pequenos brasileiros parecem ter nascido com uma sede de gol. Não é necessário um estudo para concluir que o número de taças é só um detalhe. O Brasil é o país do futebol porque o ama e o vive como nenhuma outra nação.

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Dançarino de gafiera vestindo trajes que caracterizam o “malandro carioca”


estereótipos do nosso brasil por Helena Marques

Não dificilmente escutamos as seguintes expressões: “João tem cara de indiano”, “Pedro parece um alemão”, “Virgínia nem tem cara de mulher brasileira”. Num país com tanta miscigenação, onde sediou e sedia o encontro de várias etnias é impossível não vir a seguinte pergunta em mente: “E brasileiro tem cara de quê?”. No território onde tudo se misturou é até difícil conceber a ideia que ainda assim há um “pré-conceito” formado e reforçado perante as diversas faces do “ser brasileiro”. Há aqueles que perpassam gerações, ou vocês nunca ouviram expressões como: “Todo baiano é preguiçoso”, “Os cariocas são malandros” e “Mineirinho como quieto”? A ID investigou a origem desses estereótipos divulgados incansavelmente e tentou desmistificá-los. Curiosos com o resultado? “O carioca é malandro” Rio é a terra do carnaval, do samba, das lindas mulatas e praias famosas nos mais diversos lugares dos planetas. Se desde os tempos do saudoso Bezerra da Silva, onde a malandragem era assunto presente em várias músicas esse estereótipo já era disseminado, hoje, através de artista contemporâneos como Diogo Nogueira, a ideia de que “malandro é malandro e mané é mané” ainda é reforçada. Mas de onde surgiu tudo isso? O estereótipo do típico malandro brasileiro surgiu na primeira metade do século XX. Carregado de um certo romantismo, foi principalmente imortalizado pelas letras de samba. De acordo com este estereótipo, o malandro habita os guetos, usa chapéu-palheta ou panamá e calça sapatos de cores branco e preta. Veste camisa preta com listras brancas (é sua identidade), detalhes vermelhos ou regata listrada, levando sempre uma navalha no bolso do paletó (e vai para a Barão de Mauá). É boêmio, vive de pequenos golpes, aprecia rodas

de samba e não acredita no trabalho como um modo de vida confiável. No entanto, é sensível e sentimental, além de galante, cavalheiro e um amante invejável. Ok, mas o que isso tem a ver com a identidade carioca de ser? Os primeiros sambistas da Estácio e da Lapa – bairros do centro do Rio – falavam de um certo carioca, aquele meio marginalizado da sociedade, mas que usava terno branco de linho inglês, chapéu de palha, calçado branco e preto, camisas em listras horizontais coloridas, navalha no bolso, que sobrevivia às custas de algum esquema ou golpe. O jogo de cartas, a “gigolagem” (táticas de conquista baratas para usufruir dos bens e do dinheiro das mulheres em geral), pequenos estelionatos, alguma forma de ganhar dinheiro, sem grandes esforços ou em algum emprego formal, fizeram a fama deste carioca descrito nos sambas de Moreira da Silva, Wilson Baptista e Geraldo Pereira, entre outros sambistas da época – anos 1930 e 1940. “Meu chapéu do lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho Em ser tão vadio Sei que eles falam Deste proceder Eu vejo quem trabalha Andar no miserê Eu sou vadio Porque tive inclinação Eu me lembro era criança Tirava samba-canção” (Wilson Baptista) E assim, a figura do malandro foi sendo construída e costurada nos discos de 78 rotações. Compositores dizendo que a malandragem existia, mas querendo se regenerar, eles registram

que o malandro, apaixonado, prometia abandonar aquela vida e a orgia. Porém nos anos de 1940 é que a figura do malandro foi disseminada através de uma personagem de quadrinhos que virou símbolo da malandragem e do carioca no Brasil e no mundo. Criado pelos animadores do Estúdio Disney como parte da estratégia da chamada “Política da boa vizinhança” empreendida pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, o papagaio Zé Carioca passou a representar o Brasil entre os animais falantes que compõem o Universo Disney. O personagem dos quadrinhos mistura a simpatia e a cordialidade que possui nos desenhos animados à malandragem, à esperteza, que, se não chega a se tornar crime, tampouco pode ser considerada ética. Zé Carioca harmoniza o paradoxo de cordialidade e malandragem, não como contradição, mas como condição intrínseca de sua personalidade: sua cordialidade suaviza a malandragem, evitando que ele (e, por extensão, o brasileiro que representa) se torne o vilão da história. Sua malandragem reveste-se de função narrativa – é ela que impulsiona suas desventuras. Mas para quem conhece o Rio, seja ele carioca, fluminense ou até um mero turista que cai de amores por essa terra, sabe muito bem que isso ficou retido ao início do século XX. Não há como negar que o carioca tem uma espécie de “borogodó”, um feeling, um “sex appeal” diferente, mas o estilo “malandro” fica restrito ao uniforme dos dançarinos de gafieira da Lapa ou dos quadrinhos do Zé Carioca. Quer conhecer mais? Que tal disfrutar uma noite de pura boemia nos Arcos da Lapa ou curtir aquele “sambinha” em Santa Teresa? A Cidade Maravilhosa e o Cristo Redentor estão de braços abertos te esperando! Não perca tempo e venha conhecê-los! 33


“Todo baiano é preguiçoso”

A preguiça baiana foi um perfil construído historicamente e reforçado pela mídia, que reproduz os interesses da elite. Desde o século XVI, a elite local depreciava os negros escravos, descritos como desorganizados e sujos, depois como analfabetos e sem conhecimento, e, finalmente, como preguiçosos. A famosa Ladeira da Preguiça, em Salvador, ganhou este nome por ter sido a via de acesso de mercadorias vindas do porto para a cidade, levadas em carretões puxados a boi e empurrados por escravos. Do alto de seus casarões, ao verem os escravos tomando fôlego para subir com sacos de 60 quilos nas costas, as elites gritavam: “Sobe, preguiça! Sobe, preguiça!”. Essa foi uma forma de interiorização da dominação, no período da escravidão. Depois, a depreciação assumiu a forma da exclusão. O mesmo aconteceu com negros, índios e imigrantes nordestinos, nas regiões Sul e Sudeste, quando, a partir da década de 1950, intensificouse a imigração. A imagem de preguiçoso espalhou-se. Chamados genericamente de “baianos”, os imigrantes eram, em sua maioria, mestiços, afrodescendentes, oriundos de fazendas afetadas pela seca e sem qualificação profissional. Após ter sido a capital da colônia, Salvador permaneceu com uma vida econômica, social, política e cultural mais ou menos isolada, até os anos 40 do século passado. Assim, enquanto a Bahia estava em seu lugar, ou seja, não havia migração baiana em grande escala para as regiões sudeste e sul e por outro lado Salvador ainda não havia sido incorporada à dinâmica do capitalismo industrial, essas imagens sobre a preguiça não haviam sido formuladas. Foi no movimento de inserção da Bahia 34

na divisão inter-regional do trabalho – tanto em termos econômicos quanto em termos do mercado de bens simbólicos – que os baianos gradativamente “adquiriram” a fama de serem preguiçosos. Nesse percurso - momento em que a Bahia começou a se projetar também pela via artístico-cultural (através do movimento tropicalista de 1967) e turística – é que a adjetivação da preguiça foi sendo colada à imagem de identidade baiana, legitimando-se no senso comum uma representação de que os baianos fazem “corpo mole”, são folgados, indolentes, não gostam de trabalhar e vivem em festa o ano todo. A indústria do turismo aprendeu a explorar esse filão para atrair multidões de estressados de todos os cantos do país. Quer descansar, vá à Bahia, a terra onde a festa nunca termina e ninguém se preocupa com o relógio. Isso começou nos anos 1960 e foi nessa época que a capital baiana passou por uma grande cirurgia urbana, com o objetivo de incrementar o turismo – e se descobriu que o mito da preguiça tinha apelo delicioso para os forasteiros. Grandes nomes da MPB como os tropicalistas Gal Costa, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil incorporariam, mais tarde, a imagem da preguiça baiana. Quando chegaram no eixo Rio – São Paulo tinham um jeito de dizer que eram diferentes, um falar cantado, arrastado que não pertencia àquele mundo urbano aonde estavam chegando. Nas canções de Dorival Caymmi que ressaltavam o ar particular das terras soteropolitanas havia sempre um tom de “maresia” e descanso. Como “Passar uma tarde em Itapuã” e em “A lenda do Abaeté” mais uma vez os ares de misticismo e folga tomam conta da música: “Diz alguém olhando a lua Pela praia as criancinhas Brincam à luz do luar O luar prateia tudo Coqueiral, areia e mar A gente imagina Quanta a lagoa linda é A lua se enamorando Nas águas do Abaeté”

Os anos passaram, a sociedade brasileira se transformou nos mais diferentes âmbitos, desde o socioeconômico, passando pelo político e ambiental, mas o estigma ainda é propagado aos quatro cantos: o baiano é preguiçoso. Na TV, no cinema, na internet não dificilmente ainda se encontra o personagem “baiano” como uma criatura caricata que se veste de branco dos pés à cabeça e anda reclamando de trabalho. Na “prática” tudo isso é bem diferente. Para os curiosos de plantão, que tal tirar “um dia de folga”, andar pelos casarões seculares do Pelourinho, pelo entorno entre o Mercado Modelo e o Elevador Lacerda para observar o quanto o povo baiano trabalha e tem orgulho de seu trabalho? Logo cedo, por volta das 5h da manhã, as barraquinhas, onde posteriormente haverá artesanatos e lembrancinhas, começam a ser montadas. Caso o amigo leitor esteja ainda mais curioso e decida querer viver um dia como um típico soteropolitano, convido-o, então, para em torno das 5h30 da manhã estar em uma das estações de ônibus da cidade com destino para o centro da cidade e orla marítima para ver o quão o baiano é um povo trabalhador e que a preguiça só fica a cargo de um estereótipo fruto de produções midiáticas preconceituosas. A Bahia é linda, querido leitor da ID, mas sem o produto do trabalho de milhares de pessoas que contribuem para que seu status de paraíso e o 3º lugar mais visitado no Brasil seja mantido, isso seria impossível. Portanto, de preguiçosos, os baianos só possuem a fama.


“O mineirinho como quieto”

Alexandre Pires já deve estar cansado de cantar desde os tempos do grupo “Só Pra Contrariar” os seguintes versos: “Eu não tenho culpa de comer quietinho No meu cantinho boto pra quebrar Levo minha vida bem do meu jeitinho Sou de fazer, não sou de falar” Essa música, que é originalmente da década de 1990, virou um hit por todo o país e reforçou ainda mais esse estereótipo, uma vez que é o próprio mineiro, interpretado por Alexandre, descrevendo a sua “mineiridade”. Data-se que esses modos discretos e gentílicos “típicos” do povo mineiro apareceu pela primeira vez na literatura no início do século XX, através do escritor Alceu Amoroso Lima, em seu livro Voz de Minas. Ele tenta explicar as características dos mineiros escrevendo sobre sua psicologia, sociologia, cultura e espiritualidade, descrevendo o mineiro de maneiras muito variadas. Este livro acaba por ser a síntese do imaginário criado em torno do povo mineiro, sendo referência em várias obras sobre a tal mineiridade. “O gesto acanhado do mineiro, sua sobriedade de modos e de palavras, seu olhar amortecido e discreto, se não dão à sua figura física aquela luminosidade que irradia dos homens exuberantes e extrovertidos, representam a tradução exterior mais autêntica do que é o seu espírito. O mineiro é discreto e econômico até nos modos. Não desperdiça nada. É moderado em tudo, desde o aperto de mão, rápido e sem pressão, até o olhar, que não é nele senão um reflexo remoto dos sentimentos.” (Alceu Amoroso Lima)

culiar do povo. Nesses causos aparecem um senso de humor discreto e também a ideia de que o mineiro come quieto, esconde o jogo, faz-se de desentendido para sobreviver. Fernando Sabino, grande escritor e jornalista mineiro também já dissertou suas considerações perante esse aspecto: “Evém mineiro. Ele não olha: espia. Não presta atenção: vigia só. Não conversa: confabula. Não combina: conspira. Não se vinga: espera. Faz parte do decálogo, que alguém já elaborou. E não enlouquece: piora. Ou declara, conforme manda a delicadeza. No mais, é confiar desconfiando. Dois é bom, três é comício. Devagar que eu tenho pressa.” Assim, a “mineirice” vem sendo disseminada ao longo desse nosso Brasil há um século e é reforçada através dos meios de comunicação em massa, seja através da internet, músicas, televisão, o estereótipo está aí. Mas não há melhor maneira de desmistificar um estereótipo do que “ir à fonte”. Caro leitor da ID, Minas Gerais é o estado brasileiro com o maior número de municípios no Brasil, ao todo são 853, faz divisas com São Paulo, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Em um território tão plural e que recebe influências de tantos locais é difícil acreditar numa homogeneidade de comportamentos tão pura e restritiva, não é mesmo? Portanto, retire as malas do armário, fique de olho nas promoções de passagens aéreas e mãos à obra! O povo, a cultura e o arquétipo mineiro merecem ser desmitificados, essa é a hora!

Os causos mineiros também são reconhecidos como uma característica pe35


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Brasil e suas dimensões continentais representados em meio à América do Sul


o brasil que ninguém viu

por Helena Marques Com dimensões continentais, o Brasil possui diversos colírios aos nossos olhos, do Oiapoque ao Chuí. Em mais de 500 anos de colonização, seja através de belezas naturais ou outras criadas pelo homem, não há dúvidas: O Brasil é mesmo lindo! Mas que tal mudar um pouco o roteiro e optar por um destino menos óbvio? Não que as belas praias do paradisíaco litoral nordestino, a selfie clássica no Cristo, a trilha na Chapada dos Veadeiros, ver a disputa entre Garantido e Caprichoso e ficar “ensopado” diante das Cataratas do Iguaçu saiam de nossas rotas e desejos. Mas que tal explorar locais totalmente inusitados nos cincos cantos o país? A ID elencou nessa edição especial do Brasil cinco locais incríveis desconhecidos do grande público, nas cinco regiões do país. Caro amigo leitor, prepare-se: imagens lindíssimas estarão ao alcance de suas vistas em um “piscar de olhos”. “Na sacada dos sobrados Da velha são Salvador Há lembranças de donzelas Do tempo do Imperador Tudo, tudo na Bahia Faz a gente querer bem A Bahia tem um jeito...” (Caetano Veloso) Se a Bahia é conhecida pela sua energia única, por um dos maiores carnavais do mundo e pelo povo simpático e acolhedor, as suas belezas naturais não se restringem às belas praias de um dos maiores litorais do Brasil, tampouco aos pontos turísticos pra lá de conhecidos como o Pelourinho, o Mercado Modelo e o Elevador Lacerda. O MAM (Museu de Arte Moderna) da Bahia é um dos locais mais bonitos da cidade para ser conhecido e visitado. Localizado no coração da cidade (centro de Salvador), perto dos famosos pontos turísticos enumerados acima, o

MAM parece estar esquecido nos destinos de muitos turistas quando vão à cidade e até mesmo pela população local, que muitas vezes o desconhece pela sua pouca presença na mídia. Com uma privilegiada vista para Baía de Todos os Santos, o lugar possui cinco salas de exibições, consagrando-se como um grande espaço para exposições de artistas nacionais e internacionais, e considerado o principal ambiente para a arte contemporânea no estado e um dos mais importantes do país.

O espaço já foi fazenda, residência de desembargador, indústria de alimentos, depósito de combustíveis e quartel naval durante a 2ª Guerra Mundial. O edifício foi tombado pelo Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1943 e somente passou a sediar o que hoje conhecemos como Museu de Arte Moderna da Bahia a partir de 1963. Onde antigamente era uma senzala, há um café e restaurante muito bacana chamado Solar Café. Ao lado do Solar há um grande jardim chamado Parque das Esculturas. É um caminho de calçadas, escadas e decks de madeira onde estão expostas várias esculturas de artistas baianos e um ótimo lugar para ver o por do sol da Baía de Todos os Santos. Aos sábados tem o “Jazz no Mam”, que conta com apresentações de jazz ao ar livre, na beira do mar custando R$10,00 inteira e R$5,00 meia. Que tal, então, experimentar essa maravilha de lugar?

O Rio de Janeiro continua lindo! Localizado em Botafogo, com vista para o Pão de Açúcar, Baía de Guanabara e Corcovado, o Mirante do Pasmado é um ponto quase desconhecido da cidade do Rio de Janeiro. Cercado por densa vegetação, o que oculta um pouco as cercanias, é um recanto agradável para ver as árvores e pássaros. Apesar de bem localizado, para chegar ao topo do Mirante somente de carro particular ou táxi, pois não existem ônibus, nem outro meio de transporte que leve ao topo. A exceção seria subir caminhando por uma pequena ladeira sinuosa e pavimentada, mas somente se vê tráfego de carros no local e praticamente nada de movimento de pedestres subindo ou descendo. A prudência sugere subir e descer de táxi ou carro particular. O acesso à rampa é pela Rua General Severiano. O local é tranquilo, sossegado e não muito movimentado. A vista fica emoldurada pelo verde da copa das árvores, folhagens e vegetação circundante. Para quem gosta de verde é um prato feito. Entretanto, mesmo com a vegetação da copa das árvores obstruindo a vista em alguns pontos, existe um ganho nisto.

Trata-se de um local diferente, com muita vegetação circundante, o que o torna muito bonito e com um clima muito agradável. Pode-se observar a vegetação e os pássaros tranquilamente. Com vista privilegiada para uma das nove maravilhas do mundo e para o 37


lendário Pão de Açúcar, o Mirante do Pasmado é uma bela escolha para aqueles que querem apreciar os pontos mais famosos do Rio longe das filas e sem nenhum custo por isso. Além de ares bucólicos, em plena capital, a atmosfera tranquila pode ser um belo revigorante para aqueles que buscam fugir do stress diário, apreciar a natureza e não pagar nada por isso. O Rio e o Mirante estão de braços abertos te esperando! Cânions e trilhas combinam com o friozinho em Aparados da Serra O Sul do Brasil, Rio Grande do Sul e Santa Catarina compartilham uma fronteira com atrações singulares: estão lá o maior conjunto de cânions do relevo brasileiro e também as temperaturas mais baixas do país tropical. Em Cambará do Sul, a 180 km de Porto Alegre, é comum fazer frio próximo de 0°C ainda no outono, em maio e junho. O inverno não desaponta quem gosta de ficar tremendo ao ar livre, vendo a paisagem coberta do branco da geada. As caminhadas nas trilhas dos cânions aquecem o corpo tanto quanto o chimarrão, a bebida quente que os sulistas sorvem com cuia e bomba. Dois parques nacionais administrados pelo Instituto Chico Mendes concentram os principais pontos visitados. No Parque Nacional de Aparados da Serra está o cânion de Itaimbezinho, cujos paredões chegam a 720 metros de altura. Rochas cheias de fendas, aliás: em tupi-guarani, “ita” significa pedra e “aimbé”, cortante. Lá as duas trilhas são fáceis para qualquer idade ou preparo físico.

No Parque Nacional da Serra Geral, os contornos ondulantes do cânion da Fortaleza deslumbram os turistas com ânimo para uma subida íngreme. A be38

leza compensa. São vales profundos, como se fossem montanhas com a garganta aberta, numa extensão gigante de 9,5 km. Como em Itaimbezinho, a mata verde se agarra às rochas e as araucárias parecem se equilibrar na beira dos precipícios. Majestosa na vida adulta, com 30 metros de altura, a araucária ou pinheiro-do-Paraná é um dos símbolos da Região Sul.

do Monte Roraima. As incursões ao Monte são feitas caminhando em belíssimas trilhas pela região de savana do Parque Nacional Canaima, na Venezuela. Ida e volta, incluindo roteiros no topo do “tepui“, podem ser programados para demorar de 5 a 7 dias e podem contar com guias ou carregadores indígenas das tribos Pemón e Taurepang.

“Sou da tribo da pedra Sou pop, sou som Sou balanço do norte Sou forte, eu sou Sou Belém, sou do Pará Sou Amazônia Sou Brasil Sou da zoeira” (Joelma Mendes)

“Esse é meu país sem comparação Já tem o formato do coração Todo canto é lindo pra mim tanto faz Quando eu quero mais Eu vou pra Goiás” (João Neto & Frederico)

O Monte Roraima é indecifrável, exótico, primitivo, grandioso e totalmente desafiador. O lugar é uma espécie de elo perdido, é uma amostra real de como foi o começo da vida na Terra. Podemos dizer que por ali o tempo não passou e nem vai passar. É um dos lugares mais antigos do planeta e já era muito antigo ainda na época dos dinossauros. Estima-se que tenha surgido quando ainda estava nas profundezas do mar, há 2 bilhões de anos. Se encontra na tríplice fronteira de Venezuela, Guiana e Brasil e é um dos pontos mais altos do nosso país: possui 2875 metros de altitude e sua área é de aproximadamente 40 km². É acessível apenas pela Venezuela, já que os lados de Brasil e Guiana são visualizados com paredões intransponíveis. A fauna também é marcada por um acentuado endemismo, especialmente entre répteis e anfíbios. Esse ambiente é protegido no território venezuelano pelo Parque Nacional Canaima e no território brasileiro pelo Parque Nacional

Localizado no estado de Goiás, às margens do Lago Serra da Mesa na cidade de Uraçu, o reservatório de Serra da Mesa existe desde 1997 e é formado pelos rios Tocantins, Maranhão, Traíras e Bagagem. É o maior reservatório do Brasil em volume de água, com 54.4 bilhões de m³ e com uma área de 1.784 km². Suas águas são alcalinas, dificultando assim a proliferação de mosquitos, pernilongos e mutucas. O lago é rodeado por morros com elevações que podem alcançar os 1400 metros de altitude, tornando a paisagem exuberante. Possui um clima quente e seco no inverno e quente e úmido no verão.

Há um memorial amplo e com diversas atrações, tendo uma parte coberta com quadros, miniaturas e explicações e uma parte externa com uma vila indígena, área simulada da vida no campo antigamente e uma réplica de uma vila retratando o início de Uruaçu. Que tal abrir mão dos destinos mais conhecidos do Brasil e visitar esse local cheio de cores e sensações diferentes? Sem dúvidas, é uma viagem inesquecível!


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Multidão sai às ruas do Rio de Janeiro para protestar nas “Jornadas de Junho de 2013”


O BRASIL DO AMANHÃ

por João Gabriel Barreto

Caros leitores, vocês puderam apreciar um panorama dos cenários cultural, político e social brasileiros, constituintes da chamada identidade nacional, mas já se perguntaram em qual direção essas situações caminham? O mito da democracia racial, a intolerância religiosa, o problema na demarcação de terras indígenas e várias outras questões foram aprofundadas aqui, na tentativa de não compreendê-la apenas como parte de nossa cultura, mas também passível de adaptações. A Revista ID acredita que problematizá-las é relevante para a tomada de uma posição frente ao exercício da cidadania, a níveis local e global, e ao próprio pertencimento a uma cultura. Acreditamos que uma sociedade se compõe não só de suas tradições, mas também das reinvenções do espaço, das instituições e dos costumes que seus indivíduos incorporam. Nesse sentido, reforçamos a necessidade de se debater constantemente as questões exemplificadas aqui, sempre com a finalidade de restaurar nossas práticas sociais, em vez de legá-las a um mero destino imutável, cristalizado no famoso discurso de que são simples elementos de nossa cultura. No contexto do Brasil, é inevitável comentar o fatalismo enraizado no discurso cotidiano. Contudo, a ID acredita que tudo pode ser mudado e que a história de um país está fadada, não a um destino, mas à disputa constante de hegemonias e ideologias, que lutam por um espaço de visibilidade, contribuindo para a construção de uma identidade brasileira. No entanto, não é raro ouvir que o país está à beira de um abismo, especialmente no que diz respeito ao campo político. Ainda é comum perceber que qualquer acontecimento é motivo para dizer que “é por isso que o Brasil não vai pra frente” ou que “o país vai afundar”. Será mesmo que esse é o futuro que devemos projetar para uma nação? Acreditamos que essa visão

pessimista deve ser superada por uma lógica de construção cooperativa e contínua do povo, ao invés da costumeira crença no imutável. Convidamos, portanto, você a refletir sobre o histórico do Brasil em seus 514 anos de existência: de onde viemos e para onde caminhamos? No aspecto político, fomos de colônia à Monarquia, de República democrática à Ditadura Militar e, de novo, à democracia republicana; desde os primórdios, modelos de organização permeados pela luta de interesses das classes sociais em uma luta ferrenha pelo direito ao poder. Hoje, vê-se no Congresso um corpo conservador, representante dos velhos interesses das tradições brasileiras, dentre os quais os evangélicos, os ruralistas, os coronéis da mídia e os antigos militares autoritaristas. Ainda assim, o que se viu em junho de 2013 foi um momento de percepção da necessidade de reavaliar as instituições, os partidos e o próprio sistema democrático. Embora alguns se aliassem à direita e outros à esquerda, um pedido era uníssono entre os manifestantes: mudança. A ID aprova essa crítica e conclama você, leitor, a fazer parte também desse desejo de transformação. De modo semelhante, não é incomum notar a contrapartida dos movimentos sociais, que prezam pela resistência e pelo princípio de terem seus direitos consolidados. Incluem-se aí as mulheres, os negros, a população LGBTTIQAP+, as comunidades indígenas, entre muitos outros grupos em condições históricas de opressão pela elite brasileira. A ID apoia fortemente a resistência promovida por esses movimentos, levando em conta a situação histórica de opressão que recai sobre tais grupos. Na área das artes e expressões culturais, nunca se viu uma alavancada tão forte do cinema nacional nas telas de dentro e fora do Brasil, bem como o incentivo

às produções teatrais, através dos programas do Estado de fomento à cultura. A cultura popular ganha cada vez mais traços regionais e segue cumprindo seu papel de manter vivas as tradições dos cinco cantos do país. No Rio de Janeiro, por exemplo, o funk já virou patrimônio imaterial. O Carnaval segue movimentando a indústria do turismo e atrai milhões de visitantes todos os anos, curiosos pelos desfiles nos Sambódromos do Rio e São Paulo e pelas festas de rua nas cidades do Nordeste. Não poderíamos deixar de comentar que a inserção do Brasil nas cadeias de produção internacionais e os programas sociais dos últimos 12 anos contribuíram amplamente para a elevação do país a um novo patamar econômico: somos hoje a sexta maior economia do mundo, não nos encontramos no mapa da fome estrutural e construímos uma grande classe média consumidora dos mais variados produtos. Alimentou-se no país, então, um sentimento que há muito tempo não se via: a esperança de mudar, de alavancar o país. Por isso, a Revista ID, ainda que tente fugir dos clichés em seu corpo editorial, endossa o maior deles: a esperança é a última que morre. Assim, caro leitor, convidamos você a uma missão: não a deixe morrer.

“Esperança”. 41


“Podem ter a certeza de que não foi quando descobriu a América, mas sim quando estava a descobri-la, que Colombo se sentiu feliz.” (Fiódor Dostoiévski) 42


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