UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA MESTRADO EM CULTURA E SOCIEDADE DISCIPLINA: COM 556 – CULTURA E SOCIEDADE NO BRASIL PROF. MILTON MOURA MARÇO DE 2010
Cabrochas, “indigestas” e outras bossas1 A representação social da mulher dos anos 30 no samba de Noel Rosa
Andreia Santana2 Aluna especial do Mestrado em Cultura e Sociedade RESUMO Noel Rosa é considerado “cronista” social dos anos 30, período em que houve grandes transformações históricas e econômicas no Brasil e no samba, com a sua mudança do caráter festivo original e elevação a gênero musical emblemático da brasilidade3. O sistema agrário e o modo de vida rural cederam espaço cada vez maior à industrialização e urbanização dos costumes, afetando a configuração dos papeis sociais, sem, contudo, alterar as relações de gênero vigentes até então. As mudanças no contexto histórico e econômico do período provocaram alterações também no status da mulher na sociedade, embora sua representação ainda seguisse a tradição patriarcal. O objetivo do presente artigo é mostrar de que forma, um compositor atento ao seu tempo como Noel Rosa, pródigo em sambas protagonizados por mulheres4, registrou de forma paradoxal as mudanças e “continuidades” na representação feminina nos anos 30.
PALAVRAS-CHAVE: música, mulher, samba, identidade, Noel Rosa. O fim da escravidão no Brasil, no último quarto do século XIX, acelerou a substituição gradativa da sociedade de base econômica agrária, vigente desde o início da colonização, por um contexto de urbanização já ensaiado a partir da segunda metade dos anos 1800 e que culminaria com um impulso à industrialização nos anos 30 do século XX. O impacto dessa alteração econômica gerou uma troca na concentração do poder, saído do domínio dos fazendeiros para o dos industriais e comerciantes, favorecendo o surgimento de classes sociais que estavam além da relação servil entre escravos e senhores de engenho. Com a produção de bens industrializados, fez-se necessário o incentivo ao consumo e para consumir era preciso ter recursos, surgindo a partir daí a figura do trabalhador assalariado e uma necessidade de qualificação técnica para o exercício de funções mais complexas que aquelas inerentes à agricultura. A educação ganhou incentivo, pois esse contingente de trabalhadores precisava ser educado para suas novas funções. As alterações econômicas e sociais, por sua vez, afetaram também a organização da família brasileira e, consequentemente, a vida das mulheres da época, que tiveram novos papéis a desempenhar nesse contexto social, inclusive no que diz respeito à necessidade de instrução.
“As mulheres saíram progressivamente da reclusão no lar para trabalhar em fábricas, lojas e escritórios. Essa mudança de comportamento alterou a sua postura no mundo exterior” (CERDEIRA, 2004). Embora por necessidade econômica -, não que a luta feminista iniciada ainda no século XIX tenha menos valor no período -, a mulher antes reclusa e confinada ao mando apenas dentro de casa, com “os negros da casa”, ganhou o direito de estudar e trabalhar fora. Por outro lado, os valores patriarcais herdados do sistema colonial continuavam a vigorar, regulando o comportamento dessas mesmas mulheres e mostrando-lhes qual era o “seu lugar” na sociedade. “A imagem de ser frágil e necessitado de proteção, sob o domínio dos sentimentos, atuando na intimidade e presa aos cuidados com a prole, ganha outros contornos, fazendo dela um ser em construção, na busca de seu desenvolvimento e realização de potencialidades. Os caminhos traçados pela evolução marcam, contudo, continuidades ao lado de rupturas”. (BIASOLIALVES, 2000). Ao lado das habilidades “de berço” que se esperava de uma mulher ainda nos anos 30 e que faria dela uma “boa candidata” para o casamento, tais como obediência, submissão, decoro, castidade e prendas domésticas; surge também a necessidade que esta mulher seja capaz não somente de cuidar da casa, mas gerenciar o lar, tanto no que diz respeito a apoiar os filhos nas tarefas escolares, “formando os homens do futuro”, e por isso ela precisava ter instrução; quanto na administração do salário do marido para as despesas que garantiriam a sobrevivência de todos. “Isto, não porque ela seja um sujeito de direitos e deva lhe ser assegurada a igualdade, mas porque se espera dela competências que melhor promovam a educação dos filhos e a própria vida doméstica, que façam dela o suporte adequado para o sucesso profissional de seu esposo”. (BIASOLI-ALVES, 2000). A mãe do compositor carioca Noel Rosa, nascido e criado no bairro de Vila Isabel, à época zona de classe média, no Rio de Janeiro, era professora, enquanto o pai, comerciante. Para efeitos da linha argumentativa construída neste artigo, a origem do artista é de grande importância, por mostrar que o ambiente em que ele foi educado é justamente este que Biasoli Alves denomina “continuidades e rupturas” na condição e representação da mulher na sociedade entre o final do século XIX e os anos 30 do século XX, o mesmo período em que o samba praticado na casa das “tias baianas” inicia sua profissionalização e institucionalização como símbolo nacional. Época também do auge das composições do artista e do reconhecimento do sambista enquanto profissional da indústria do entretenimento. “Os caminhos trilhados pelo samba – mais especificamente pelo samba carioca – estão conectados ao contexto mais geral do desenvolvimento industrial capitalista. (...) Como música popular industrializada, sua expansão girou, e nem poderia ser diferente, na órbita do crescimento da indústria do
entretenimento ou, como queira, da indústria cultural. Para tanto jogaram um papel decisivo a própria urbanização e a diversificação social experimentada pelo Brasil nas primeiras décadas do século XX”. (PARANHOS, 2003). Educado por uma mãe professora, ou seja, por uma mulher que trabalhava e era instruída, Noel Rosa também vivia num bairro considerado “classe média”, onde os valores sociais, apesar de todo o impulso de modernização, seguiam a cartilha da tradição patriarcal, ao menos no que diz respeito a educação das meninas e a uma mulher “saber onde é seu lugar”. Mesmo conquistando – mais por força das circunstâncias econômicas - o direito de estudar e trabalhar, a liberdade feminina ainda não era total e havia locais e atitudes não condizentes com o comportamento que se esperava “das moças de família”. Até os anos 30, mulher solteira e virgem, ao menos no ambiente em que Noel foi educado, não saía sozinha de casa a não ser acompanhada de um parente mais velho. O direito ao voto, reconhecimento máximo de cidadania em uma sociedade democrática, também é deste período A diferenciação das mulheres em categorias que incluíam desde a senhora de sociedade até as donas-de-casa, passando pelas denominações “moça de família” e “mulheres de vida livre” se mantém até depois dos anos 50, ao menos nos ambientes de classe média. Se por um lado, após a abolição e substituição gradativa da sociedade agrária pela industrial ocorre uma mudança na estratificação social por classe, com toda a divisão pós-industrial entre burguesia e operariado e, para efeitos dos mitos de origem do samba, entre o “trabalhador otário” e o “malandro boa vida”; por outro, a divisão social baseada no sexo se mantém, com as mulheres, mesmo instruídas e trabalhadoras, ocupando posição de inferioridade em relação aos chefes – homens - da família. “A abolição tem significados diferentes para as mulheres brancas da camada senhorial e para as negras escravas. A mulher negra ganha a liberdade formal que não possuía, ascendendo na esfera social juntamente com o ex-escravo, permanecendo, porém, numa posição inferior a este. Enquanto o ex-escravo passa a ser considerado cidadão e, consequentemente, adquire o direito de votar, tanto a mulher negra como a branca ficam à margem desse processo. Portanto, a mulher branca sofre uma descensão social com relação ao homem negro”. (CERDEIRA, 2004). Malandro regenerado Noel Rosa, branco, com seus valores de “moço de boa família”, não era originário do morro, mas também não era totalmente membro da fina flor da alta sociedade. Apesar de ter a vantagem da educação em boas escolas e até um curso universitário que ele abandonou, o que na época o colocava acima dos jovens como os sambistas do Estácio de Sá, bairro suburbano de classe operária, e também do morro, local por excelência associado aos negros, pobres e marginalidade, transitava livremente por esse outro lado da fronteira social demarcada na esteira da industrialização e que ainda trazia ecos das castas coloniais; e convivia com os sambistas e malandros, “entre o morro e a cidade”. Segundo Napolitano, sem entender essa dicotomia entre o mundo de Noel e o mundo do morro, por tabela, do samba, é difícil apreender o significado da obra do autor e sua
contribuição para a diluição das fronteiras sociais do samba e a partir daí, sua emblematização como símbolo do Rio de Janeiro e, posteriormente, da brasilidade. “(...) chamo atenção para a necessidade do samba incorporar outros grupos e classes sociais, promovendo assim um deslocamento relativo de suas fronteiras raciais e sociais. Esse avanço em direção a outros territórios encontra a sua figuração simbólica mais acabada nas relações Estácio - Vila Isabel e na parceria Ismael Silva – Noel Rosa. (...) Noel Rosa lançaria uma ponte entre bairros e segmentos sociais diversos, e transitaria muito à vontade entre os bambas do Estácio”. (NAPOLITANO, 2000). Vivendo ao mesmo tempo em dois mundos antagônicos à sua época, mas, segundo Paranhos, “integrando-se mimeticamente aos sambistas do morro”, era de se esperar que a visão de mundo de Noel Rosa fosse paradoxal. O conflito entre a pobreza marginalizada do morro, a situação intermediária da classe operária do Estácio, que o atraia, e os “bem nascidos” de Vila Isabel, que ele aparentemente rejeitava a ponto de recusar tornar-se doutor de anel no dedo, permeiam suas composições. Paradoxal era a própria relação do artista com a malandragem, a qual ele confere status de boemia, inclusive rejeitando o malandro típico a la Wilson Batista. Segundo Fenerick, o malandro de Noel se aproximava mais do boêmio freqüentador de botequins do que propriamente da marginalidade. A reabilitação do malandro, “capricho de rapaz solteiro”, na visão do compositor, passa ainda pela visão da mulher da sua época, que segue a mesma tendência de conflito entre a “cabrocha que dança maxixe, joga no bicho e dá bolacha”, de quem parece falar com admiração; e a “menina dos olhos castanhos, que reside lá na serra, bem juntinho de Deus”. Nas canções que fala da mulher, o compositor abre espaço tanto para aquelas que viviam no morro, a cabrocha e a mulata que sabem dançar e dar bolacha quando preciso, quanto para as que faziam parte do universo suburbano, como as matronas, donas-de-casa e fofoqueiras. Sem esquecer às virgens casadoiras meninas de olhos castanhos, as trabalhadoras que atendiam “ao apito da fábrica” e as “decaídas”, como as “damas do cabaré”. A mulher, em análise de Fenerick citando sambistas da época de Noel e palavras do próprio compositor, é a grande responsável por essa “reabilitação do malandro”. É por causa dela que ele está em conflito entre continuar na vadiagem ou entrar no mundo do trabalho e na responsabilidade da relação estável, tornando-se o pai de família provedor dos filhos e da companheira. “Antes a palavra samba tinha um único sinônimo: mulher. Agora já não é assim. Há também o dinheiro, a crise. O nosso pensamento se desvia também para esses gravíssimos temas. O problema da vida, seriamente agravado com nossas manias de complicar as coisas mais simples, teria de imprimir novos rumos para o samba. Agora o malandro se preocupa no seu samba, quase tanto com o dinheiro como com a mulher. A mulher e o dinheiro, afinal, são as únicas coisas sérias desse mundo”. (Noel Rosa, em entrevista ao jornal O Globo, em 1932, apud FENERICK, 2007).
A mulher de Noel e seus contemporâneos, por sua vez, tanto podia reabilitar o malandro quanto derrubá-lo, principalmente quando traia o empenho dele em se “emendar”, seja porque ela mesma “queria mais era viver na orgia” (Ó Seu Oscar, Wilson Batista e Ataulfo Alves), ou porque não agüentando a vida de privação ao lado do malandro incorrigível, ameaçava largá-lo por um partido melhor, como em Fiquei Sozinha, composição de Noel Rosa e Adauto Costa, de 1931: “Fiquei sozinha, Abandonada, implorando o teu perdão Fiquei sozinha, Desesperada com a tua ingratidão Seu teu perdão, amor, Eu vivo a padecer Sem ter o que comer Sem um vintém para beber Oh, vem depressa, vem! Isso não é papel Se não voltares Eu arranjo um coronel Sem a tua companhia Não posso resistir Vendo o prazer fugir Sem um lugar para dormir Pra me vingar de ti Farei o que puder Não é assim Que se despreza uma mulher” Em Fiquei Sozinha, Noel Rosa, “vestindo a pele de uma mulher” conta uma malsucedida historia de amor entre o malandro que não “bota vintém em casa” e não compartilha o seu prazer, o da orgia, com a companheira; enquanto ela, provavelmente após cair na “lábia” do malandro e com ele ir morar, fica em casa a cuidar dos afazeres domésticos. Considerado um cronista do seu tempo, as relações de gênero nas canções de Noel Rosa seguem o padrão tradicional do patriarcalismo ainda vigente e da inferioridade da mulher em relação ao homem. Se entre as classes mais elevadas o homem e a mulher pobres se igualam na falta de status e em não possuir vintém ou o prestigio que o dinheiro confere numa sociedade industrial e capitalista; entre os pobres, a mulher ainda é inferior ao homem e dependente dele para sobreviver. Daí a necessidade em arrumar o “coronel” que banque suas contas, na ausência daquele que deveria prover seu sustento. “Em suas canções de amor, Noel desce das alturas do poeta derramado para o chão do homem comum”.5 Este “homem comum” do compositor engloba tanto o malandro, ou boêmio como ele preferia, que não se regenera, quando aquele que, tal qual o Seu Oscar de Ataulfo e Wilson Batista, após fazer de tudo pela amada, ainda assim, é trocado pelo coronel, ou por qualquer outro que ofereça mais conforto. A ele, após ser traído e
abandonado, mesmo pagando-lhe as contas, resta chorar suas mágoas em sambas como Julieta (Noel Rosa e Eratóstenes Frazão): “Julieta, não és mais um anjo de bondade como outrora sonhava O teu Romeu Julieta, tens a volúpia da infidelidade E quem te paga as dívidas sou eu... Julieta, tu não ouves meu grito de esperança Que afinal, de tão fraco não alcança as alturas do teu arranha-céu Tu decretaste a morte aos madrigais e constróis um castelo de ideais No formato elegante de um chapéu Julieta, nem falar em Romeu tu hoje queres Borboleta sem asas, tu preferes Que te façam carícias de papel Nos teus anseios loucos, delirantes Em lugar de canções queres brilhantes Em lugar de Romeu, um coronel!” Castigo para as ingratas O mundo em que Noel Rosa viveu era mais misógino que o atual e a relação de homens e mulheres pautada no mando dos primeiros e na obediência das segundas. Mesmo quando transgrediam, as mulheres do período pagavam o preço da audácia e perdiam o “lugar” de respeito, sendo então confinadas no estigma de “decaídas”. E decaída era tanto a dama do cabaré quanto a esposa adúltera, que pelos padrões da época, se equivaliam, embora em certas situações, a dama do cabaré tivesse a profissão como álibi para o “mau comportamento”. Na visão de Noel, enquanto a primeira – a dama do cabaré – por sua liberdade e vida boêmia, que a igualava aos homens nesse aspecto, merecia o amor do compositor, à segunda - à esposa traidora – restava o castigo ou a indiferença. Em 1936, ele escreveu Dama do Cabaré, segundo seus biógrafos, inspirado em Ceci, uma dançarina de boate, que ele viu se apresentar uma vez no boêmio bairro da Lapa e por quem se apaixonou: “Foi num cabaré na Lapa Que eu conheci você Fumando cigarro, Entornando champanhe no seu soirée Dançamos um samba, Trocamos um tango por uma palestra Só saímos de lá meia hora Depois de descer a orquestra”. Da dama do cabaré, ele parece esperar ingratidão, já que em outro trecho da música, lamenta-se dela tê-lo rejeitado, não entrando no táxi que ele a oferecia, sendo que também parece compreender os motivos da rejeição. “Criada” no ambiente das boates, a dama do cabaré sabe que o amor do boêmio é inconstante:
“Em frente à porta um bom carro nos esperava Mas você se despediu e foi pra casa a pé No outro dia lá nos Arcos eu andava À procura da Dama do Cabaré Eu não sei bem se chorei no momento em que lia A carta que recebi, não me lembro de quem Você nela me dizia que quem é da boemia Usa e abusa da diplomacia Mas não gosta de ninguém”. A companheira traidora, porém, não merece a mesma indulgência por parte do compositor. A rancorosa letra de Com Mulher Não Quero Mais Nada, de Noel Rosa e Sylvio Pinto, mostra que a ingratidão da amada era uma ofensa que deveria ser paga com a indiferença e, por tabela, com a estigmatização de todas as mulheres em perigos ambulantes. Elas deveriam ser evitadas sob pena de provocar desilusão. A partir da injúria sofrida, todo ideal de amor, associado ao ideal de mulher, deixava de fazer sentido, “porque amor não dá futuro”: “Com mulher não quero mais nada Minha sina está traçada Neste mundo que me causa horror O que me faz ficar doente É mulher na minha frente A fazer enredos de amor Eu tenho fama de filósofo amador Quem diz que ama nunca sabe o que é o amor Amar jurando nunca foi jurar amando É por isso que eu juro Que o amor não dá futuro”. Da mesma forma que a mulher considerada orgulhosa demais, muito dona de si, em busca de igualdade no relacionamento, merecia do compositor a ironia e a lembrança de que a ordem “natural” das coisas não era parceria no amor e sim a submissão dela, como mostra este trecho da letra de Deixa de Ser Convencida, de Noel Rosa e Wilson Batista, de 1935: “E no picadeiro desta vida Serei o domador, Serás a fera abatida” As pérolas machistas do repertório de Noel Rosa são Mulher Indigesta e O Maior Castigo Que Eu Te Dou. Nas canções, além de afirmar que mulher gosta de apanhar ou que merece um tijolo na testa, mais ainda, que o que ela “merece é entrar no açoite”, o Poeta da Vila também se coloca na posição de vitima das provocações desta mulher de tão difícil trato. As implicâncias, que a tornam indigesta, mesmo para ele, que “é muito calmo”, ultrapassam o limite do suportável e um “corretivo” seria o ela estava
inconscientemente pedindo, como a criança que apronta para ser castigada, como forma de chamar atenção dos pais. A mulher indigesta, na visão de Noel, seria associada a um golpista, capaz de “arrancarlhe três dentes de platina e ir vender no dentista”. Era o mesmo tipo de mulher “interesseira” – por exigir do boêmio mais do que suas camisas para lavar - que fez Mário Lago e Ataulfo Alves suspirarem de saudades de Amélia. Já em O Maior Castigo...a associação da mulher é mais com a imaturidade, ela é aquela que faz pirraça, que o tira do sério com o objetivo de ter mais atenção do que ele está disposto a conceder-lhe. Nas palavras do próprio Noel, malandragem era coisa de rapaz solteiro, mas isso não significa que ao se casar, eles deixariam a boemia sem protestos ou no mínimo, sem achar uma grande “aporrinhação” ouvir diariamente cobranças da parceira. O próprio compositor, que se casou em 1934, tinha fama de deixar a mulher Lindaura em casa para bater ponto nos botequins e encontros de sambistas: “O maior castigo que eu te dou É não te bater Pois sei que gostas de apanhar Não há ninguém mais calmo Do que eu sou Nem há maior prazer Do que te ver me provocar Não dar importância A sua implicância Muito pouco me custou Eu vou contar em versos Os teus instintos perversos É este mais um castigo Que eu te dou O maior castigo... A porta sem tranca Te dá carta branca Para ir onde eu não vou Eu juro que desejo Fugir do seu falso beijo É esse mais um castigo Que eu te dou”. Vale lembrar que, até os anos 30, as mulheres eram consideradas legalmente incapazes, daí serem proibidas de comprar imóveis, administrar os próprios bens (no caso das herdeiras) ou mesmo abrir uma caderneta de poupança, ficando totalmente à mercê do marido, que não só a protegia do mundo como administrava seu dinheiro. A diferença de uma mulher para uma criança era pouco mais que a estatura, pois ambas precisavam de tutela. Mesmo trabalhando fora, a mulher ainda não era um sujeito de direito, mas um sujeito “com a identidade em formação”, como afirma Biasoli Alves.
Liberdade vigiada e ciúme Embora houvesse uma necessidade econômica para a entrada da mulher no mercado de trabalho, poucos eram os homens que se sentiam confortáveis com essa “igualdade” de direitos. Que uma viúva pobre ganhasse com o que sustentar os filhos de forma “decente”, era até esperado, “antes trabalhar honestamente do que prostituir-se”, como acontecia desde o período colonial até o começo do século XX, período em que as opções para as mulheres, principalmente as pobres e sem dote para o casamento, restringia-se ao bordel. No tempo de Noel, uma moça, ao se casar, precisava ter em mente que não havia opção entre marido e emprego, muito menos conciliação dos dois. “É do marido, dos filhos e dos pais (sogros, tios, tias) idosos que ela deve se ocupar”. (BIASOLI ALVES, 2000). A entrada da mulher no mercado não passou despercebida ao compositor, que assim, dava voz a uma inquietação dos homens da época. Ao sair para trabalhar, a mulher mudava o foco da atenção, não era dele e nem da casa que ela cuidaria, mas das obrigações na fábrica ou no escritório. Pior, não era a ele que ela deveria obediência, ao menos enquanto durasse a jornada, mas ao gerente, ao chefe da repartição. Além de sair do confinamento doméstico, sujeitando-se aos olhares – e à cobiça – de outros homens que não o companheiro, a mulher também receberia ordens de outro homem que não os seus “tutores legais” (pais, irmãos, marido). O poder sobre ela mudava diariamente de mãos, mesmo que temporariamente. A questão financeira também pesava. Poucos eram os homens da época que aceitavam ser sustentados por uma mulher, com exceção dos que ganhavam a vida no agenciamento de prostitutas. Até os típicos malandros, que viviam de biscates e pequenos golpes, tinham orgulho de patrocinar “os luxos” de suas companheiras, como enfeites e cortes de tecido para o vestido. Daí ressentirem-se quando as “ingratas”, mesmo depois dele arrumar o barraco para ela, os abandonavam por outro capaz de oferecer mais conforto. A mágoa provocada no companheiro, pela saída da mulher de casa, é o tema de Três Apitos, música de Noel que além de refletir os conflitos de gênero do período, também sintetiza as mudanças sócio-econômicas: “Quando o apito da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você Mas você anda Sem dúvida bem zangada Ou está interessada Em fingir que não me vê Você que atende ao apito de uma chaminé de barro Porque não atende ao grito Tão aflito Da buzina do meu carro Você no inverno Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé no agasalho Nem no frio você crê Mas você é mesmo artigo que não se imita Quando a fábrica apita Faz reclame de você Nos meus olhos você lê Que eu sofro cruelmente Com ciúmes do gerente Impertinente Que dá ordens a você Sou do sereno poeta muito soturno Vou virar guarda-noturno E você sabe porque Mas você não sabe” Com Três Apitos, Noel resume em uma única canção quase todos os conflitos do homem dos anos 30: o medo por essa independência que as mulheres adquiriam na esteira da industrialização; a nostalgia dos “bons tempos” aliada ao desejo de modernização; e a entrada dos bens de consumo no cotidiano de uma sociedade que só há pouco tempo havia se “desruralizado”. O cotidiano marcado pela opinião alheia, que vitimava tanto o homem quanto a mulher -, nesse caso não importava muito se no morro, em Vila Isabel e ou no subúrbio -, a maledicência, “o que os outros vão pensar” ou “o que andam dizendo de mim”, era tema recorrente em composições como Dona Aracy e Mentiras de Mulher. Em Dona Aracy, uma marcha carnavalesca, a ironia de Noel ataca impiedosamente as fofoqueiras de plantão, dando a elas um pouco do próprio veneno. Também se volta contra a ostentação das falsas ricas, com jóias penhoradas, e a hipocrisia das matronas, em um ataque direto aos chamados valores da classe média. Valores estes, que faziam parte da origem do artista e da sociedade onde ele nasceu, mas que o atraia menos do que o modo suburbano de viver na comunidade do Estácio: “Dona aracy! dona aracy! Quero saber: Como anda isso por aí? Como vai o seu malhado? Seu marido em certidão Inda está desconfiado (inda está desconfiado) Que é lesado pelo irmão. (...) Como vão as suas jóias? Tão bonitas, eu não nego Não passavam de pinóias (não passavam de pinóias) Davam dez tostões no prego”.
Já em Mentiras de Mulher, embora o alvo direto seja a fofoca, aqui afirmada como um hábito exclusivamente feminino, a letra não deixa de demonstrar a preocupação de Noel e de seus contemporâneos com a reputação dos sambistas, principalmente porque havia interesse em integrar a indústria cultural representada pelo rádio e pelos discos gravados. O samba se profissionalizava e os sambistas queriam ascender e ganhar dinheiro com sua arte, daí muitos da geração de Noel recusarem a alcunha de “vagabundos” que se escondia nas entrelinhas do termo “malandro”. Logo, dizer que o sambista tem horror ao batente (e compor não era uma forma de trabalho?) e que ele era “fingido e malvado”, são “mentiras de mulher”. A mulher aqui usada como metáfora da opinião do senso comum sobre os sambistas e seu mundo paradoxal: “São mentiras de mulher, Pode crer quem quiser. Que eu tenho horror ao batente, E não sou decente, Poder crer quem quiser, Que eu sou fingido e malvado, E até que sou casado, São mentiras de mulher”. O compositor, embora fosse adepto da boemia, buscava separar a figura do malandro daquela que marginalizava tanto o sujeito quanto a expressão cultural a ele associado, o samba. O malandro/boêmio de Noel usava gravata e tinha modos refinados, sua arma era a ironia. Ao demonstrar que samba era “coisa de bamba”, mas não de malandro “marginal” com navalha no bolso e tamanco, Noel também enfatizava que o samba não era exclusividade do morro, “visto que Vila Isabel e Estácio de Sá não eram morro e faziam samba”. “Associar o malandro ao samba, ou mesmo tomar o malandro como sinônimo de sambista implica em reforçar a imagem do samba como sendo um legítimo “produto do morro”, uma vez que o senso-comum da época acreditava que os morros do Rio de Janeiro fossem habitados exclusivamente por malandros.” (FENERICK, 2007) Conclusões As mulheres das canções de Noel Rosa podem ser interpretadas como o espelho por onde o compositor observava o comportamento da sociedade de seu tempo. Da mesma forma que “as mentiras da mulher” colocavam em xeque a reputação do sambista, associando-o à marginalidade, era ela também quem reabilitava o malandro e o inseria na nova ordem vigente, a do trabalho, do capital e da industrialização. Na boca das mulheres que protagonizaram algumas de suas letras, Noel colocou a cobrança social para que samba, marginalidade, morro e pobreza deixassem de ser sinônimos. Daí essas mulheres sempre implorarem ou exigirem aos seus amados que largassem a orgia e se estabelecessem na vida. Ou então, cruelmente abandonassem aqueles que não conseguiam ganhar status e dinheiro, trocando-os por outro melhor sucedido e mais adaptado ao sistema capitalista.
Não é à toa que muitas letras do compositor tinham a expressão “te troco por um coronel”, referência que apesar de usar uma figura típica do Brasil agrário que cedia lugar ao Brasil industrial, aqui é metáfora para a riqueza que as promessas de modernização e da entrada do país na era da urbanização pareciam trazer. Paralelo a isso, Noel Rosa não deixou de colocar em suas letras toda a carga da tradição patriarcal que subsistia em meio ao boom do progresso. Não eram menos traumáticas as alterações na economia e no modo de vida do que eram nos costumes arraigados e herdados de um tempo em que as mulheres serviam meramente de adorno e objeto sexual, não sendo necessário até o começo do século XX que fossem sequer instruídas, bastando serem bonitas, femininas, servis, recatadas e boas parideiras. As relações de gênero nas letras do compositor são marcadas pela tradição cultural e religiosa, que associa a mulher ao pecado e a malícia e que demarcam para ela, mesmo quando protagonista da canção, um lugar abaixo daquele ocupado pelo homem. Ao referir-se à mulata fuzarqueira, Noel não está cantando a realidade das casadoiras e donzelas, como faz em Menina dos Olhos Meus, mas canta a mulher do morro, ou do subúrbio, que é “artigo raro, sabe sambar e dar rasteira”. Último resquício de uma malandragem que ele a princípio parece admirar – a letra de Dona do Lugar não deixa de ser uma homenagem à “Iaiá de Ioiô”, ou seja, a preferida do bamba, que se conhece nos trejeitos e no modo de pisar -, mas que renega pela necessidade de separar a imagem artística do samba da ideia de uma “cultura marginal”. Ainda assim, embora sua realidade econômica seja diferente daquela da menina dos olhos do artista e também não goze do privilegio de ser o bibelô como a dona do lugar ou a dama do cabaré, a mulata fuzarqueira precisa saber “o seu lugar”, que é na cozinha “preparando a gordura” para o seu malandro, e não na gandaia, igualando-se a ele. Da mesma forma, a “cabocla marvada”, que leva dois homens a brigar e morrer por ela, é depreciada pelo artista, que não se furta ainda de cantar sua decepção ao se deparar com a Ingênua que não percebe que ele era um sonhador e por isso “não entendeu o seu amor” e muito menos perdoa a “convencida” que busca parceria na relação. A dualidade das letras de Noel Rosa sobre a mulher marca o jogo social no qual o compositor e outros sambistas de sua geração estiveram envolvidos e do qual muitas vezes fizeram parte conscientemente. Embora continuassem machões, precisavam da força de trabalho feminina. Apesar de apregoarem aos quatro cantos que eram bambas, não estavam imunes ao preconceito contra a malandragem e evitavam ser associados à vertente “marginalizada” do samba. Mesmo querendo a liberdade da vida boemia, também acalentavam o desejo de fazer parte da indústria, colhendo suas benesses. Se a década de 30 pode ser considerada como a época de transição do Brasil agrário para a industrialização e o salto da modernidade que se “concretizaria” décadas depois, as letras de Noel sobre a mulher estão no cerne da construção de uma identidade feminina que mais de 70 anos depois do seu tempo culminaria tanto nas “lígias” da bossa nova quanto nas “cachorras” do pagode baiano. Mas isso é assunto para outro artigo!
NOTAS: Trabalho de conclusão da disciplina COM 556 – Cultura e Sociedade no Brasil.
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Jornalista formada pela Faculdade de Comunicação da UFBA; Master em Jornalismo Digital pelo IICS / Universidade de Navarra e editora do portal A TARDE On Line. “Na galeria de ícones nacionais, a invenção social do Brasil como terra do samba representa uma imagem que perdura até os dias de hoje, atravessando os tempos apesar de todos os contratempos no terreno da música popular brasileira”. (PARANHOS, 2003). 3
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Para elaboração do artigo foram selecionadas 18 composições de Noel Rosa com temática feminina, seja com a mulher “protagonista” ou “antagonista” na canção. Ou ainda, uma “idealização” do compositor com base na sociedade do seu tempo. As canções escolhidas para o estudo foram: Cabrocha do Rocha, Cidade Mulher, Com Mulher Não Quero Mais Nada, Dama do Cabaré, Deixa de Ser Convencida, Dona Aracy, Dona do Lugar, Fiquei Sozinha, Ingênua, Julieta, Mardade da Cabocla, Menina dos Meus Olhos, Mentiras de Mulher, Morena Sereia, Mulata Fuzarqueira, Mulher Indigesta, O Maior Castigo Que Eu Te Dou e Três Apitos. As letras encontram-se reproduzidas no Anexo. 5
João Máximo, em verbete do Dicionário Cravo Albim da MPB sobre Noel Rosa.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA NAPOLITANO, Marcos. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 20, nº 39, p.167-189. 2000 PARANHOS, Adalberto. A Invenção do Brasil como terra do samba: os sambistas e sua afirmação social. História, São Paulo (22) 1: 81-113. 2003. BIASOLI-ALVES, Zélia Maria Mendes. Continuidades e Rupturas no Papel da Mulher Brasileira no Século XX. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, São Paulo, v. 16, nº 3, p.233-239. Set-Dez 2000. CERDEIRA, Cleide Maria Bocardo. Os primórdios da inserção sociocultural da mulher brasileira. Revista Eletrônica Unibero de Produção Científica. Universidade Ibero-Americana. Edição de Março de 2004. FENERICK, José Adriano. Noel Rosa, o samba e a invenção da música popular brasileira. Revista História em Reflexão. v. 1 nº 1, UFGD – Dourados. Jan-Jun 2007.
PESQUISA NA INTERNET Noel Rosa. Verbete no Dicionário Cravo Albim da MPB. Acessado em 11/01/2010. Link: http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_A&nome=Noel+Rosa Noel Rosa. Verbete no ClicMusic Uol. Acessado em 11/01/2010. Link: http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/ver/noel-rosa
Noel Rosa. Verbete na Wikipedia. Acessado em 11/01/2010. Link: http://pt.wikipedia.org/wiki/Noel_Rosa Noel Rosa – Letras de Música. Portal Terra. Acessado em 18/01/2010. Link: http://letras.terra.com.br/noel-rosa-musicas/
ANEXO: As letras de Noel Rosa utilizadas neste estudo: Cabrocha do Rocha (Noel Rosa e Sílvio Caldas)
Eu tenho uma cabrocha Que mora no Rocha E não relaxa. Sei que ela joga no bicho, Que dança maxixe, Que dá muita bolacha. Tenho um filho macho Com cara de tacho E além disso é coxo. Ele me faz de capacho, Qualquer dia eu racho Este carneiro mocho. Cidade Mulher (Noel Rosa - 1936)
Cidade de amor e aventura Que tem mais doçura Que uma ilusão Cidade mais bela que o sorriso, Maior que o paraíso Melhor que a tentação Cidade que ninguém resiste Na beleza triste De um samba-canção Cidade de flores sem abrolhos Que encantando nossos olhos Prende o nosso coração
Cidade notável, Inimitável, Maior e mais bela que outra qualquer. Cidade sensível, Irresistível, Cidade do amor, cidade mulher. Cidade de sonho e grandeza Que guarda riqueza Na terra e no mar Cidade do céu sempre azulado, Teu Sol é namorado Da noite de luar Cidade padrão de beleza, Foi a natureza Quem te protegeu Cidade de amores sem pecado, Foi juntinho ao Corcovado Que Jesus Cristo nasceu Com mulher não quero mais nada ( Noel Rosa e Sylvio Pinto)
Com mulher não quero mais nada Minha sina está traçada Neste mundo que me causa horror O que me faz ficar doente É mulher na minha frente A fazer enredos de amor Eu tenho fama de filósofo amador Quem diz que ama nunca sabe o que é o amor Amar jurando nunca foi jurar amando É por isso que eu juro Que o amor não dá futuro (Com mulher...) Dama do Cabaré (Noel Rosa – 1936)
Foi num cabaré na Lapa Que eu conheci você
Fumando cigarro, Entornando champanhe no seu soirée Dançamos um samba, Trocamos um tango por uma palestra Só saímos de lá meia hora Depois de descer a orquestra Em frente à porta um bom carro nos esperava Mas você se despediu e foi pra casa a pé No outro dia lá nos Arcos eu andava À procura da Dama do Cabaré Eu não sei bem se chorei no momento em que lia A carta que recebi, não me lembro de quem Você nela me dizia que quem é da boemia Usa e abusa da diplomacia Mas não gosta de ninguém Foi num cabaré na Lapa... Deixa de ser convencida (Noel Rosa e Wilson Baptista -1935)
Deixa de ser convencida Todos sabem qual é Teu velho modo de vida És uma perfeita artista, eu sei bem, Também fui do trapézio, Até salto mortal No arame eu já dei. E no picadeiro desta vida Serei o domador, Serás a fera abatida Conheço muito bem acrobacia Por isso não faço fé Em amor, em amor de parceria (Muita medalha eu ganhei!) Dona Aracy - Marcha (Noel Rosa)
Dona aracy! dona aracy! Quero saber: Como anda isso por aí?
Como vai o seu malhado? Seu marido em certidão Inda está desconfiado (inda está desconfiado) Que é lesado pelo irmão. Como vai a sua filha? Qua namora no porão Se a senhora não estrilha (se a senhora não estrilha) Quero uma apresentação. Como vão as suas jóias? Tão bonitas, eu não nego Não passavam de pinóias (não passavam de pinóias) Davam dez tostões no prego. Que foi feito do renato? Que malvado, que troféu Que pisava no meu sapato (que pisava no meu sapato) E cuspia no meu chapéu. Dona do Lugar (Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves - 1932)
(Chegou...) Chegou a dona do lugar Chegou... Pelo modo de pisar Se vê que é Iaiá de Ioiô Lá vem ela, lá vem ela Com o Ioiô do seu lado Arrastando a chinela Dizendo samba raiado Quando ela pega a sambar Com o seu sapateado Todos ficam a gritar Dando viva ao Cais Dourado E essa bela Iaiá Não acredita em muamba Ela tem uma patuá Que é todo o nosso samba Vou pedir, vou implorar A meu Senhor do Bonfim
Pra fazer essa Iaiá Se apaixonar por mim Fiquei Sozinha (Noel Rosa e Adauto Costa - 1931)
Fiquei sozinha Abandonada, implorando o teu perdão Fiquei sozinha, Desesperada com a tua ingratidão Seu teu perdão, amor, Eu vivo a padecer Sem ter o que comer Sem um vintém para beber Oh, vem depressa, vem! Isso não é papel Se não voltares Eu arranjo um coronel Sem a tua companhia Não posso resistir Vendo o prazer fugir Sem um lugar para dormir Pra me vingar de ti Farei o que puder Não é assim Que se despreza uma mulher Ingênua (Noel Rosa / Glauco Vianna - 1928/1930)
Talvez eu lhe diga um dia Toda a melancolia de um coração Todo este sofrimento Que agora experimento Nesse infeliz momento De tão acerba dor Que crueldade! Eu era um sonhador Ela não entendeu meu amor Qual a razão Por que minha paixão Não a pode comover?
Somente o Criador sabe do amor Que consagrei a quem tanto amei À hora propricia Em que a malícia dela se apoderar Com meu violão direi então O meu pensar e se ainda Essa ingênua linda Não me compreender Eu, já descrente, direi que ela É inocente até morrer... Julieta (Noel Rosa)
Julieta, não és mais um anjo de bondade como outrora sonhava O teu Romeu Julieta, tens a volúpia da infidelidade E quem te paga as dívidas sou eu... Julieta, tu não ouves meu grito de esperança Que afinal, de tão fraco não alcança as alturas do teu arranha-céu Tu decretaste a morte aos madrigais e constróis um castelo de ideais No formato elegante de um chapéu Julieta, nem falar em Romeu tu hoje queres Borboleta sem asas, tu preferes Que te façam carícias de papel Nos teus anseios loucos, delirantes Em lugar de canções queres brilhantes Em lugar de Romeu, um coronel! Mardade de Cabocla (Noel Rosa - 1931)
No arraiá do Bom Jesus A gente vê uma cruz Que chama logo atenção Quem fincou foi siá Chiquinha A caboca mais bonita Que pisou no meu sertão Essa moça era querida Que por ela davam a vida Os cabocos do rincão Dois home se apaixonaram E um dia quando se oiaram Tiveram a mesma intenção
Tendo duas viola apostada E também a namorada Lá na festa do arraiá Zé Simão indignou-se Nos repentes intrapaiou-se Perdeu pro Chico Ganzá Perdendo a viola amada E também a namorada Não disse mais nada, não Foi manhãzinha encontrado Com um punhá bem enterrado Pro riba do coração Menina Dos Meus Olhos ( Noel Rosa e Lamartine Babo)
Menina dos olhos castanhos, Que reside lá na serra, Bem juntinho de deus... Tu és a menina dos meus olhos, Estou cego de saudade Pelos olhos seus. A serra não precisa de luar, É iluminada pela luz do teu olhar, Até o próprio sol resolveu não brilhar Pra não perder (pra quem?) pro teu olhar! Teus olhos abusaram do clarão Parecem fogos dominando a multidão Um rasgo de luz teu olhar produziu Foi o olhar (de quem?) do meu brasil Mentiras de Mulher (Noel Rosa)
São mentiras de mulher, Pode crer quem quiser. Que eu tenho horror ao batente, E não sou decente, Poder crer quem quiser, Que eu sou fingido e malvado, E até que sou casado, São mentiras de mulher. (bis)
Quando n o reino da intriga, Surge uma briga, Por um motivo qualquer, Se alguém vai pro cemitério, É porque levou a sério, As palavras da mulher. (bis) Esta mulher jamais se cansa, De fazer trança, Na mentira é um colosso, Sua visita tão cacete, Que escrevi no gabinete: "Está fechado para almoço". (bis) Esta mulher, de armar trancinha, Ficou magrinha, Amarela e transparente, Quando vai ao ponto marcado, De um encontro combinado, Dizem que ela está ausente.... Morena Sereia (Noel Rosa/ José Maria de Abreu - 1936)
Morena sereia Que à beira-mar não passeia Que senta na praia e deixa a praia cheia De lindos castelos de areia Cuidado criança Que qualquer dia um tufão Derruba estes teus castelos de esperança E enche de areia o teu coração Se algum dia tu souberes Que o teu nome eu escrevi Entre mais de dez nomes de mulheres Terás certeza que te amei mas te esqueci Mulata Fuzarqueira (Noel Rosa)
Mulata fuzarqueira, artigo raro Que samba de dar rasteira E passa as noite inteira em claro Não quer mais saber de preparar as gordura
Nem usar mais das costura O bom exemplo já te dei Mudei a minha conduta Mas agora me aprumei Mulata fuzarqueira da gamboa Só anda com tipo à toa Embarca em qualquer canoa Mulata, vou contar as minhas mágoa Meu amor não tem R Mas é amor debaixo d'água Não gosto de te ver sempre a fazer certos papel A se passar pros coronel Nasceste com uma boa sina Se hoje andas bem no luxo É passando a beiçolina Mulata, tu tem que te preparar Pra receber o azar Que algum dia há de chegar Aceita o meu braço e vem entrar nas comida Pra começar outra vida Comigo tu podes viver bem Pois aonde um passa fome Dois podem passar também Mulher Indigesta (Noel Rosa)
Mas que mulher indigesta!(Indigesta!) Merece um tijolo na testa Essa mulher não namora Também não deixa mais ninguém namorar É um bom center-half pra marcar Pois não deixa a linha chutar E quando se manifesta O que merece é entrar no açoite Ela é mais indigesta do que prato De salada de pepino à meia-noite Essa mulher é ladina Toma dinheiro, é até chantagista Arrancou-me três dentes de platina E foi logo vender no dentista O Maior Castigo Que Eu Te Dou (Noel Rosa)
O maior castigo que eu te dou É não te bater Pois sei que gostas de apanhar Não há ninguém mais calmo Do que eu sou Nem há maior prazer Do que te ver me provocar Não dar importância A sua implicância Muito pouco me custou Eu vou contar em versos Os teus instintos perversos É este mais um castigo Que eu te dou O maior castigo... A porta sem tranca Te dá carta branca Para ir onde eu não vou Eu juro que desejo Fugir do seu falso beijo É esse mais um castigo Que eu te dou Três Apitos (Noel Rosa)
Quando o apito da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você Mas você anda Sem dúvida bem zangada Ou está interessada Em fingir que não me vê Você que atende ao apito de uma chaminé de barro Porque não atende ao grito Tão aflito Da buzina do meu carro Você no inverno Sem meias vai pro trabalho Não faz fé no agasalho Nem no frio você crê Mas você é mesmo artigo que não se imita Quando a fábrica apita Faz reclame de você Nos meus olhos você lê Que eu sofro cruelmente Com ciúmes do gerente Impertinente Que dá ordens a você
Sou do sereno poeta muito soturno Vou virar guarda-noturno E você sabe porque Mas você não sabe Que enquanto você faz pano Faço junto ao piano Estes versos pra você