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A Revista de Gastronomia da

Gastronomia no Sertão

Pratos criados a partir do mandacaru mostram o potencial do sertão brasileiro

COMIDA EXTREMA Até onde podemos chegar na nossa complexa relação com a comida?

MITOS DA COMIDA Verdades e mentiras sobre alguns pratos, cenas e invenções gastronômicas.

CACHAÇA O passado, o presente e o futuro da marvada mais querida do Brasil.


Angu. al FMU

A Revista de Gastronomia da

Editor-executivo Eduardo Duó Editora de arte Luciana Di Iorio

Conselho editorial Marcelo M. Werdini Cintia Gama Sula Santana

Redação e pesquisa Monica Barizan Criação de logo Lucas Aguiar

Capa

Arte da capa Luciana Di Iorio

Foto da capa Estúdio Gatronômico

Fotografia Luna Garcia



COLABORADORES

ANA MARIA IMHOFF é Mestre em Educação com especialização em Psicologia Organizacional e do Trabalho. Professora de gastronomia. CINTIA GAMA é Doutora em Religião Egípcia pela EPHE – Sorbonne (França). Professora de gastronomia da FMU. CLAUDIO SANTANA PIMENTEL é Doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisador do Grupo Veredas – Imaginário Religioso. EDUARDO DUÓ é bacharel em jornalismo pela PUC-SP com pós-graduação em gastronomia (SENAC-SP). Editor-executivo da ANGU e professor de gastronomia da FMU. HELOIZA LANZA é Mestre em Linguística Aplicada, Educação e Tecnologia pela PUC-SP. Sommelière e professora de gastronomia da FMU. IVO RIBEIRO é bacharel em Filosofia pela USP e sócio do restaurante Tordesilhas. LUNA GARCIA é bacharel em fotografia digital pela Anglia Polythechnic University (Cambridge, Inglaterra). É proprietária do Estúdio Gastronômico. MARA SALLES é chef de cozinha, Sócia-proprietária do restaurante Tordesilhas e pesquisadora da cozinha brasileira. MARCELO DALLAVERDE é formado em gastronomia pela FMU. Chef de cozinha e consultor de restaurantes. MARCELO MALTA WERDINI é Mestre em Hospitalidade pela Anhembi-Morumbi. Chef de cozinha, professor e coordenador dos cursos de Hospitalidade da FMU. PAULO MACHADO é Mestre em Hospitalidade pela Anhembi-Morumbi. Chef de cozinha, é criador e coordenador do Instituto Paulo Machado, em Campo Grande – MS. Professor de gastronomia na FMU.


RICARDO MARANHÃO é Doutor em história pela USP, pesquisador da cozinha brasileira e membro da Academia Brasileira de Gastronomia. SULA SANTANA é Doutora em Ciência da Religião pela PUCSP. Professora de gastronomia da FMU.

COLABORADORES

Alunos

RENATA GIUDICE é bacharel em Nutrição pela USP com especialização em Nutrição Clínica Preventiva. Professora do curso de Gastronomia da FMU.

BEATRIZ GARCIA KÖHLER é aluna do 4º semestre. Bacharel em Fotografia pelo Centro Universitário Belas Artes-SP.

FABRICIO PEREIRA KORASI é aluno do 1º semestre. Doutor em história da arte pela PUC-SP é professor do curso de publicidade Strong Esags, de Santo André.

INGRID AGUILAR é aluna do 4º semestre, trabalha com eventos gastronômicos.

letícia damas é aluna do 4º semestre, proprietária da empresa Bistrô in Home.

LUCIANA DI IORIO é aluna do 2º semestre. Formada em design gráfica pela Panamericana Escola de Arte e Desing.

MONICA BARIZAN é aluna do 3º semestre. Graduada em jornalismo pela FIAAM-FAAM e trabalha como tradutora.


editorial

O QUE, AFINAL, QUE


EREMOS DAS ESCOLAS DE GASTRONOMIA? Por Marcelo Malta Werdini

Entender o atual mercado gastronômico e as expectativas dos jovens do século XXI são os maiores desafios da educação


Food culture São Paulo sempre foi conhecida pela sua ampla oferta de restaurantes. Mas foi a partir dos anos 90 que a cidade viu surgir uma efervescente cena gastronômica. Em poucos anos, a food culture caiu no gosto do paulistano e se transformou numa verdadeira febre.

A comida ficou hype; os chefs, celebridades. Foram abertos restaurantes de vários formatos, lanchonetes vegetarianas, padarias artesanais, confeitarias-boutique e descolados food trucks. O mercado de alimentação crescia e se diversificava a toque de caixa. Mas um fio desse banquete pop continuava desencapado: faltavam profissionais à altura das novas e exigentes demandas do dinâmico e insurgente mercado.

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Em 1999 tinham quatro faculdades de gastronomia; em 2014, eram 112 Para suprir essa carência de profissionais, vimos a explosão de outro boom: o das escolas de gastronomia. O crescimento foi vertiginoso. Censo do MEC aponta que em 1999 existiam apenas quatro faculdades de gastronomia no Brasil; em 2014, 112 cursos eram oferecidos por instituições superiores. Mas qual o perfil que devemos imprimir aos cursos de gastronomia? Que tipo de profissional o mercado de alimentação espera das escolas? Quais as habilidades que realmente faltam aos jovens profissionais e de que maneira as escolas de gastronomia podem suprir essas carências?

Como

Tra Atu dem den

Essa (não um dom

No tes de t “sóc edu pou

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omo formar um chef?

ansformar um jovem em chef num curso de dois anos não é tarefa fácil. ualmente, apenas o domínio técnico não tem sido o suficiente para contemplar as mandas do mercado. Impõem-se também uma nova categoria de conhecimento nominada “habilidades sócio-emotivas”.

as novas habilidades estão basicamente divididas em três eixos: 1. RESILIÊNCIA o desistir nunca, tentar sempre); 2. CRIATIVIDADE (diante de um problema ou de m desafaio); 3. COMUNICAÇÃO (tanto no âmbito interno de uma equipe como pelo mínio das novas plataformas de comunicação, real e digital).

curso de Gastronomia da FMU estamos o tempo todo buscando, stando e implementando novas plataformas pedagógicas com o objetivo claro transformar esse desafio em realidade. Além das habilidades práticas/teóricas e das cio-emotivas”, nosso curso também tem se empenhado em propor novas dinâmicas ucacionais. Inovações multidisciplinares -muitas delas extra-classe- que, pouco a uco, vão sendo introduzidas à grade curricular convencional.

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Novas plataformas pedagógicas A revista ANGU é uma dessas inovações pedagógicas, quando propõe um espaço midiático digital para promover discussões, debates e reflexões sobre o fazer gastronômico contemporâneo. Ações de responsabilidade social como o JANTANDO NA RUA, que leva comida de qualidade a moradores de rua através de um trabalho voluntário que envolve alunos e professores, também. Assim como o ENCONTRO DE HOSPITALIDADE que, com suas palestras e oficinas, procura fazer uma aproximação entre nossos alunos e o mercado de trabalho. A educação contemporânea -e não só a gastronômica- transformou-se numa prática complexa, multifacetada e desafiadora. Trata-se de um verdadeiro working in progress. Um ofício que para transformar precisa antes de tudo transformar-se.

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Uma busca permanente Formatos prontos de modelos pedagógicos consagrados não funcionam mais, não se encaixam na nova dinâmica do século XXI. E um único caminho talvez nunca mais seja encontrado, pois talvez no nosso novo mundo tecnológico os caminhos deverão sempre ser reinventados. O trabalho é árduo, complexo e está longe de encontrar um ponto final. Mas antes de qualquer coisa precisamos todos nós – educadores, agentes gastronômicos e alunos- responder à pergunta que não quer calar, a pergunta que talvez possa dar um rumo para todos nós: O QUE AFINAL QUEREMOS DAS ESCOLAS DE GASTRONOMIA?

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Sumário 16 Na amplidão do mar: uma dieta de 4200 calorias (Monica Barizan) 32 Prato do dia, inseto (Da Redação)

40 Canibalismo e antropofagia (Ingrid Aguilar)

52 Sobrevivendo com o mínimo (Renata Giudice)

COMIDA EXTREMA Até onde podemos chegar na nossa complexa relação com a comida?

60 Doenças bizarras com comida (Da Redação) 66 Alimentos afrodisíacos (Cintia Gama)

84 Tia Nastácia cozinha, mas dona Benta leva a fama (Claudio Santana Pimentel)

92 Feijoada: um prato com mil histórias (Mara Salles) 108 Comida mineira com tempero paulista (Leticia Damas)

120 A Santa Ceia: e se Leonardo da Vinci errou? (Cintia Gama)

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MITOS DA COMIDA Verdades e mentiras sobre alguns pratos, cenas e invenções gastronômicas.


132 O Sertão em letras (Sula Santana)

O SERTÃO BRASILEIRO Gramáticas, ingredientes e novidades na cozinha sertaneja.

140 Os códigos de etiqueta de Lampião (Ana Maria Imhoff) 148 O improvável e premiado vinho do Sertão (Heloiza Lanza)

158 Nova geração de chefs explora as PANCs da caatinga (Paulo Machado) 172 Gastronomia com mandacaru (Eduardo Duó)

CACHAÇA O passado, o presente e o futuro da marvada mais querida do Brasil.

186 Cachaça na alta gastronomia (Fabricio Pereira Korasi)

196 A revolta da cachaça (Ricardo Maranhão) 210 Minha companheira, a cachaça (Ivo Ribeiro)

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Na amplidão do mar uma dieta de 4.200 calorias Por Monica Barizan

Velejador Amyr Klink recebe ANGU para uma entrevista exclusiva e

relata os detalhes da sua

“dieta extrema” em suas expedições pelos sete mares

Foto: Marina Klink

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Navegar é preciso Imagine você, sozinho em um barco a remo, no meio do Oceano Atlântico, praticamente sem comunicação, por livre e espontânea vontade. Muita vontade e organização, planejamento e autocontrole. Foi o que fez o velejador paulista Amyr Klink em 1984, quando deixou o porto de Lüderitz, na Namíbia e atracou em Salvador em cem dias de viagem a bordo da “lâmpada flutuante”, apelido que deu ao seu barco à remo de apenas 5,94m de comprimento com o qual fez a primeira e ainda única feita por um homem só.

Foto: Beatriz Kohler 18 Angu


Emoldurado por remos antigos, cartas náuticas e sextantes, Amyr Klink recebeu a ANGU para uma entrevista em seu escritório em Moema e já foi revelando logo de cara que nunca se deixou abater pelas profecias nebulosas de muitos que já o viam morto, antes mesmo de partir. Não foram poucos nem simples os preparativos para a viagem. Tudo era de suma importância, desde pesquisas e estudos, até viagens a Paris para uma conversa com quem já tinha algum conhecimento para ajudar no sucesso da travessia. Entre cálculos, construção da embarcação e estudos astronômicos, o planejamento da expedição também incluía um item de suma importância: a dieta alimentar para uma aventura tão inusitada.

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Antes de tudo,

a água

“Um dos grandes problemas era como hidratar os alimentos. Não havia como levar enormes quantidades de água potável para cozinhar. A solução foi cozinhar com água do mar. A comida idealizada foi então desidratada sem sal e alinhada para impedir o excesso de salinização na hora da cocção”. O programa alimentar para o feito inédito foi elaborado em parceria com a nutricionista Flora Lys e com a Nutrimental e continha oito tipos de dieta, somando um total de 188 pratos para a viagem que durou 100 dias. Solidão? Não, Amyr não sentiu em momento nenhum. Acompanhado diariamente por gaivotas, dourados e, eventualmente, tubarões intrometidos e perigosos, as ondas, o sol e as estrelas, o velejador não tinha tempo e muito menos disposição para se deixar levar por emoções que poderiam colocar a perder todo seu trabalho e de todos os envolvidos no projeto. Dose de coragem necessária? Segundo Amyr, nenhuma. É preciso competência.

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calorias, muitas

calorias

Foram oito meses na elaboração do cardápio que tinha que ser seguido em ordem cronológica e de acordo com a fase da viagem. Para isso, as refeições foram

acondicionadas em embalagens individuais e numeradas para que não houvesse alteração no balanceamento da dieta que continha 4.200 calorias por dia. Parece muito? Só parece. Amyr remava até dez horas diárias e chegou à Bahia com impressionantes 25 quilos a menos.

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“O cardápio, montado à base de desidratados, foi pensado levando em consideração as necessidades de conservação dos alimentos em temperaturas e umidade extremas, facilidade de preparo, balanceamento nutricional adequado e que ainda mantivesse o sabor, a aparência e consistência iguais aos da comida caseira. ”

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Menus variados para situações extremas Definiram-se premissas no início do planejamento alimentar, como a facilidade de preparo, baixo consumo de água potável para não sobrecarregar o peso da embarcação e a dieta foi dividida em oito tipos específicos. As dietas rápidas foram para os primeiros 25 dias de viagem; na sequência, entraram as normais.

Também foram criados mais cinco menus para situações excepcionais, como diarreia forte, emergência e sobrevivência – para o caso de o fogão não funcionar ou não estar acessível – e também cardápios constipantes, laxantes e contra desidratação.

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Arroz

em um minuto e meio Tudo foi tão bem preparado que Amyr afirma em seu livro “Cem dias entre céu e mar”, Companhia das letras, 33ª edição, que se surpreendeu até com o fogareiro laranja onde o arroz era preparado em um minuto e meio e o feijão em quatro! Segundo ele, gastava mais tempo temperando os pratos do que os preparando. Pratos que o fisgaram pelo estômago. Nos primeiros 25 dias de viagem, os menus eram de produção mais rápida e também mais calóricos pois previa-se que o início da travessia seria mais difícil. Ao fim desse período, Amyr passou direto para a alimentação normal, todas compostas por café da manhã, almoço, jantar e dois lanches. Tudo era anotado e devia seguir a ordem dos cardápios. O que não era utilizado, seja por falta de fome ou por outro motivo qualquer, tinha que ser descartado para cumprir com o planejamento alimentar.

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Botar a m ã o n a m a s s a pra fazer o próprio pão “ A dieta não era pronta. Eu tinha os ingredientes como fermento e farinha para fazer oito ou dez tipos de pães diferentes. A variedade era incrível. Um prato só era repetido a cada duas semanas”.

O relacionamento da comida com Amyr Klink nem sempre é programada. Pode-se dizer que, às vezes, o que ele precisa em termos de nutrição, ele encontra no meio dos Oceanos. Em 1986, Amyr se deparou com um grupo de ativistas ambientais em “uma espécie de missão proibida” no Pacífico, que fotografava testes nucleares em Muroroa. Seguidos de perto, os tripulantes do veleiro não podiam buscar comida em terra firme, pois os responsáveis pelos testes não queriam que divulgassem fotos e informações.

A solução foi levar barrinhas de cerais com eles, alimento até então desconhecido no Brasil. Amyr gostou tanto da novidade que ganhou uma caixa delas dos ativistas e, quando voltou ao Brasil, as apresentou na sede da Nutrimental em Curitiba. Hoje, as barrinhas Nutry, nome sugerido por ele, são líder de mercado no país.

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dieta também incluia

f r u ta s f r e s c a s “Nosso cardápio atual não é composto somente de alimentos desidratados. Proteínas e frutas in natura são alguns dos ingredientes de nossas dietas. Em nossa última viagem à Antártida, conseguimos comer melão fresco no último dia”.

O Paraty II, iat utilizado atualmente por Amyr e sua equipe, é conhecido na Antártida por sua cozinha seis estrelas. Os tripulantes são escolhidos também por suas habilidades culinárias. Todos cozinham a bordo, dando preferência à culinária oriental, como udons por exemplo. Um caldeirão de comida está sempre disponível para aqueles que estão em turno noturno. Durante o dia, funcionam os turnos de cozinha, onde fazem pizzas, quibes e outros pratos. Mesmo assim, os hidratados continuam sendo utilizados, já que não podem confiar totalmente em câmaras frias ou geladeiras para conservação em situações emergenciais. Assim, quase nada é refrigerado.

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Foto: Marina Klink


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King uma paixão Crag

Amyr admite ter fases alimentares maníacas. Apaixonado por tudo que é do mar, incluindo King Crab, aquele caranguejo gigante originário das águas frias dos mares do Norte, confessou ter comprado 500 caixas do produto quando estava em promoção em um supermercado de São Paulo. Planejou seu ataque às gôndolas. Pesquisou e anotou todas as unidades da rede que tinham o caranguejo e à noite, junto com Marina Klink, sua esposa, blogueira, fotógrafa e mãe de suas três filhas, e uma amiga dela, compraram todo o estoque encontrado. Entre deliciosas xícaras de café preparadas e servidas por Marina, criadora do blog “1 café e a conta”, conversar com Amyr por uma hora e meia foi uma experiência e tanto. Navegamos nessa entrevista por projetos, meio-ambiente, família, mares, planos e comida. Afinal, “a grandeza não é onde permanecemos, mas em qual direção estamos nos movendo. Devemos navegar algumas vezes com o vento e outras contra ele, mas devemos navegar, e não ficar à deriva, e nem ancorados”. (Oliver Wendall Holems)

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Foto: AKPE/Amyr Klink


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Prato do dia,

insetos

Menu Insetos – Restaurante Aphrodite (França) ervilhas com bicho-da-farinha

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Em 2013, a FAO, agência para a Agricultura e Alimentação da Organização das Nações Unidas, (ONU), divulgou um relatório afirmando que comer

insetos

pode ajudar a aumentar a nutrição e reduzir a poluição. Segundo a FAO, o consumo de insetos ajudaria no desenvolvimento de crianças subnutridas, já que os insetos são nutritivos, com alto teor de proteína, gordura e minerais.

Da Redação Angu

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“Cardápio” De acordo com o relatório, cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo já complementam suas dietas com insetos. Países como China, Tailândia, Austrália, além de Colômbia e México entre outros, veem os insetos como um ingrediente comum. Comem por gosto, tradição e prazer, não por necessidade nutricional. Consumidos inteiros ou moídos, fritos ou em pasta, a criação de insetos poderia ainda diminuir sensivelmente os danos causados pelo efeito estufa, pois estima-se que a produção de gases por eles seria muito menor. Os porcos, por exemplo, produzem de 10 a 100 vezes mais gases de efeito estufa por quilo do que os vermes da farinha.

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Abacaxi com formiga amazônica ("Formiga dourada") Restaurante paulista D.O.M. ) Alex Atala)


Insetos – um futuro não tão distante Desde a pré-história, os seres humanos alimentam-se de insetos para complementar seu cardápio. Mesmo assim, já existem Apesar do alerta, para a ONU uma das maioempreendedores na área. res dificuldades é introduzir esses animaiziProduções de insetos variados, seja para consumo nhos na dieta ocidental, que torce o nariz e pisa forte nesses seres que nos parecem, de gado ou de seres quase sempre, repulsivos. humanos, já brotam pelo mundo afora, inclusive no Brasil. Lojas online oferecem vários tipos de insetos comestíveis feitos de diversas formas.

A previsão é de que em 2030 cerca de 9 milhões de pessoas terão que se alimentar de insetos, devido à escassez de alimentos e à superpopulação humana. Assim, criamos um “cardápio” especial para aqueles que queiram provar a dieta desse futuro não tão distante. Mas não saia por aí comendo o primeiro inseto que vir pela frente. Muitos são venenosos ou podem causar alergias sérias.

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Formigas são vários tipos consumidos. No

Brasil, a tanajura é a mais conhecida, mas você pode ainda saborear as cortadoras de folhas, que dizem ter sabor entre bacon e pistache (???) e são mais palatáveis quando fritas.

Cupins devem ser preparados como Maria-Fedida tipo de percevejo a carne seca. Ricos em ferro, cálcio, ácidos graxos essenciais e aminoácidos, ainda podem ser defumados ou cozidos em folhas de bananeira.

Larvas brancas amplamente

consumidas na Austrália, possuem gosto de amêndoas e fazem parte tradicional da dieta aborígene.

Gafanhotos (Chapulines)

muito consumidos no Sul México, esse gafanhoto é servido assado e crocante, temperados com limão, sal, guacamole ou pimenta seca em pó.

Gorgulho de palma

encontrado no tronco das palmeiras, medindo cerca de 10cm de comprimento e 5cm de largura, são usualmente fritos devido a seu alto teor de gordura. Entretanto, muita gente os preferem crus.

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muito consumido na Ásia, África e em alguns países da América do Sul. Seu odor forte e nocivo liberado quando sentem medo, impedem que seja comido cru. Para eliminar sua periculosidade, arranque sua cabeça antes de qualquer coisa e depois embeba-os em água e deixe que sequem ao sol.

Bicho da farinha é o único

inseto amplamente criado no Ocidente. São a larva do besouro conhecido como tenébrio, rico em cobre, sódio, potássio, ferro, zinco e selênio.

Tarântula uma iguaria para

cambojanos e venezuelanos, a aranha é, tradicionalmente, frita no óleo quente, com sal, açúcar, alho e pimenta antes de ser vendida inteira. As patas são crocantes, enquanto a barriga é grudenta. O sabor lembra uma mistura de caranguejo com nozes.


Larva de vespa no Japão a iguaria preparada com as larvas de

vespa amarela se chama hachinoko e elas são cozidas no molho de soja e açúcar até ficarem crocantes. Algumas vespas adultas também são inclusas no prato que tem sabor adocicado e crocante.

Cigarra é consumida no Japão, China, Ásia e partes dos EUA e tem

sabor de aspargos. Por viver 17 anos embaixo da terra, a cigarra só sai da toca para reproduzir e morrer e os caçadores as apanham antes que a casca endureça para fritá-las ou salteá-las e consumi-las, já que tem até 40% de proteínas.

Libélula na Indonésia este inseto é consumido cozido ou frito e tem sabor similar ao da concha macia dos caranguejos.

Ovos de formigas colhidos nas plantações de agave (tipo de

cacto) do qual é feita a tequila. Podem ser cozidos ou fritos e consumidos nos tacos e tortilhas. O sabor é amanteigado, lembrando nozes, com a mesma consistência de queijo cottage.

Mandorovás diversos tipos de lagartas são comidas em todo

o mundo, mas este tipo de mandorová, com coloração azul e verde, é considerado uma iguaria em países como Botsuana, África do Sul e Zimbábue. Elas são espremidas, secas no sol ou defumadas e servidas com molhos e ensopados. O sabor é amanteigado.

Grilo tostados e crocantes, são servidos no México com chili e limão, nas ruas da cidade de Oaxaca, como se fossem salgadinhos. O sabor é salgado e apimentado.

Casulo do bicho-da-seda vietnamitas, chineses e coreanos apreciam os casulos fritos ou cozidos e o sabor é semelhante ao de camarões desidratados, mas com uma consistência suculenta.

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Escorpião

é servido como um lanchinho ou um kebab frito em países como Vietnam, Tailândia e China. O sabor lembra camarão com casca.

Piolho com a crocância das amêndoas ou avelãs assadas, lembram o sabor dos caranguejos e lagostins.

Para saber mais: https://www.vice.com/pt_br/article/comi-insetos https://www.facebook.com/ASBRACI/ http://www3.sp.senac.br/hotsites/blogs/ revistacontextos/wp-content/uploads/2015/10/54_ CA_artigo_ed_Vol_4_n_1_15_2.pdf http://pme.estadao.com.br/noticias/noticias,grilo-formigas-e-besouros-enchem-o-prato-derestaurantes-brasileiros,3474,0.htm https://come-se.blogspot.com.br/2013/05/insetosou-com-uma-farofinha-no-caderno.html http://www.clubedascomadres.com.br/culinaria/ pratos-saudaveis-insetos-comestiveis/

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Escaravelhos

o mais comum é o chahui, que se alimenta das vagens de leguminosas que crescem nas árvores mesquite, em meio ao deserto. Tem um sabor amargo, que desaparece quando é bem grelhado e ganha, assim, um sabor quase de peixe.

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Tabu dos tabus, comer

carne humana

é u m a p r át i c a a n c e s t r a

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a l e m mu i tas culturas Por Ingrid Aguilar

Chocante, bizarra e repugnante, a antropofagia e o canibalismo ainda persistem no século XXI

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Uma palavra grega Antropofagia vem do grego anthropo (homem) + phagía (comer), e é a palavra designada às práticas de canibalismo com justificativa cultural praticadas por algumas tribos indígenas. A antropofagia

fazia parte de muitos rituais ao redor do mundo e seus praticantes acreditavam que ao devorar a carne de um inimigo capturado incorporariam também suas energias e forças.

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Índios brasileiros

antropófagos No Brasil, o sentido original da palavra grega também era levado à risca pelos índios da tribo Tupinambá como parte de um ritual de guerra. Eles consumiam a carne dos guerreiros adversários com o objetivo de “absorver a bravura e coragem” do inimigo. Ser comido era considerado uma das formas mais honráveis de morrer, porque significava que o guerreiro era considerado corajoso e tinha o espírito forte.

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Comer carne humana era “normal” até o sec. XIX A antropofagia era uma prática considerada normal até aproximadamente o século XIX. Quando os costumes cristãos se impuseram como a ideologia dominante na cultura ocidental, o canibalismo foi sendo abandonado por todos os povos que entravam em contato com colonizadores, exploradores e comerciantes europeus. Atualmente, o tema virou um tabu quase invisível, sendo tratado como polêmico e digno de espanto e horror.

Diferenças entre canibalismo e antropofagia Apesar de parecerem a mesma coisa, canibalismo e antropofagia não podem ser considerados sinônimos, não são a mesma coisa. Já que o canibal come a carne de um animal da mesma espécie, não necessariamente por motivos culturais. O canibalismo é praticado por necessidades fisiológicas ou disfunções psicológicas (sociopatia/psicopatia). Já a antropofagia tem justificativas culturais, e também encaixa-se em situações que envolvem espécies diferentes, quando por exemplo um tigre devora um humano.

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Bispo Sardinha: canibalismo histórico no Brasil O caso brasileiro de canibalismo histórico mais conhecido é o do Bispo Sardinha e aconteceu durante seu retorno para Portugal. Dom Pero Fernandes Sardinha chegou ao Brasil em 1551 e foi o primeiro bispo a chegar em terras nacionais. Ele tentava evitar qualquer tipo de contato sexual entre portugueses e indígenas, o que gerou um conflito Álvaro da Costa, filho do governador geral à época. Contrariado, bispo Sardinha decidiu voltar à Portugal em 1556 e levar com ele alguns índios da etnia Caetés. Seu objetivo não era nobre, pois os índios lhe serviriam como escravos.

Mas durante a viagem, por motivos ainda nebulosos, os índios caetés se revoltaram e devoraram o bispo e todos os navegantes da caravela.

Barbárie em Olinda Um dos casos de canibalismo mais comentados pela mídia aconteceu em maio de 2008, na cidade de Olinda (PE), e tem o envolvimento de três pessoas: Jorge Beltrão, Isabel Cristina e Bruna Cristina. Moradora de rua, a vítima tinha 17 anos e uma filha de um ano. Ao aceitar viver com os acusados mal poderia imaginar o que o destino lhe reservara. Os assassinos planejavam ficar com a criança depois de matar a mãe. Os três réus foram acusados de terem

guardado a carne da jovem para consumo humano, além de ter ocultado os restos mortais. Jorge e a dupla de mulheres pegaram, respectivamente, 23 e 20 anos de prisão.

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Fígado humano assado servido em prisão no Maranhão

Em 2013, um desentendimento entre seis integrantes de uma facção criminosa do presídio de Pedrinhas, em São Luís (MA) acaba com um caso chocante de canibalismo.

O condenado é torturado, morto a facadas, esquartejado e tem o fígado assado e servido em um banquete. A vítima, identificada como Edson Carlos Mesquita da Silva, teve o corpo dividido em 59 fragmentos e só foi reconhecido por causa de uma tatuagem. Após dividir o corpo em 59 partes, os presidiários jogaram sal no cadáver para retardar a decomposição da carne e disfarçar o odor, depositando os restos mortais em sacos plásticos em lixeiras espalhadas. O fígado foi retirado, assado em fogo na brasa e ingerido pelos três integrantes principais da facção, que também enviaram pedaços a outros presidiários. Angu

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Kuru : a doença de quem come carne humana Em 1950, na Papua Nova Guiné, foi identificada um problema –um tipo de contaminação– por conta da ingestão de carne humana crua. Os membros da tribo Fore comiam carne, órgãos e tecido de humanos que já tinham morrido e, aos poucos, começaram a morrer. Com um pouco de estudo, príons (proteínas presentes em quem tem a doença da vaca louca) foram encontradas no cérebro humano. A doença denominada Kuru foi, pouco a pouco, fazendo com que a tribo fosse abandonando os hábitos canibais até que não existissem mais.

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nibalismo em pleno séc. XXI Atualmente, no século XXI, existe uma tribo chamada Korowai, também localizada na Papua Nova Guiné que mantém suas práticas canibais. Suas justificativas para o costume mantido encaixa-se nos âmbitos culturais e religiosos. Por não acreditarem em doenças e nem na ciência, os índios korowai acham que quando uma pessoa adoece seu corpo está dominado por entidades malignas. Para expurgarem esses “maus espíritos”, acabam devorando a carne da vítima. Mas esse ainda é um caso e isolado. Todas as outras tribos/comunidades que praticavam canibalismo abertamente foram, aos poucos, abandonando seus hábitos e encaixando-se ao padrão ético socialmente aceito nos dias atuais. Angu

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Sobrevivendo com o mínimo

astronomia da fome ou autofagia?

Por Renata Giudice

que devemos riorizar na limentação uando tudo falta quase nada tem?

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Gastronomia de emergência É possível que você já tenha ouvido esta expressão: o melhor tempero para uma comida é a fome. Qual foi o período de tempo mais longo que você já passou sem ingerir nenhum alimento? É possível estabelecer regras para sobreviver com menos desconforto às situações nas quais o Existe uma gastronomia de emergência acesso aos alimentos é em uma ilha deserta? Talvez sim. E nossa extremamente limitado ancestralidade é capaz de ilustrar esta ou inexistente? possibilidade.

Dieta paleolítica A trajetória alimentar do homem remonta a 2,5 milhões de anos e durante 99% do tempo não foi assim que nos alimentamos. Mais do que uma diversidade

de ingredientes e formas de preparo, nossos ancestrais pré-históricos consumiam os alimentos que encontravam: eram caçadores e coletores.

Esta é a justificativa para uma “dieta” que vem sendo adotada por muitas pessoas com objetivos de saúde nos últimos anos: a dieta paleolítica. Esta abordagem alimentar preconiza a inclusão –tanto quanto possível– de alimentos anteriores ao advento da agricultura. Carnes, frutas silvestres e de época, ovos e castanhas são a base desta proposta, em geral adotada para redução de peso e de indicadores de doenças crônicas.

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Jejum para emagrecer Outra abordagem que domina as redes sociais com fins de emagrecimento na atualidade era uma prática comum entre nossos antepassados: o jejum. Os habitantes do período pré-histórico habitualmente consumiam todos os alimentos que conseguissem até a saciedade e/ou até que as fontes alimentares fossem exauridas. Depois, era muito comum alternar este banquete com períodos de jejum que duravam diversos dias. Mas qual é o limite para ficar sem comida? Um artigo publicado em 1973 em uma revista médica escocesa foi registrado em 1971 pelo Guinness:

382 dias sem comer. Um paciente internado para emagrecer foi monitorado em jejum apenas consumindo líquidos não calóricos e suplementos vitamínicos. A ideia era ficar sem comer apenas por alguns dias, mas o resultado foi tão satisfatório que a experiência ultrapassou um ano.

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Como sobreviver em situações emergenciais De acordo com o código internacional de sobrevivência, devemos ficar atentos à regra dos 3: 3 minutos sem ar 3 dias sem água 3 semanas sem comida. Algumas opções podem ser consideradas como alimentos e são encontradas em todas as matas:

Formigas Cupins Rãs Lagartos Gril Gafanhotos

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Frutas e ovos de pássaros Frutas também são opções viáveis e apenas 20% das frutas causam danos ao ser humano. As palmeiras são ótimas fontes de carboidratos e limões fornecem água e vitaminas essenciais para o sobrevivente. Ovos de pássaros podem ser consumidos, especialmente a gema que é rica em gordura. Vale lembrar que proteínas necessitam de hidratação. Evite consumir estes alimentos se não houver água disponível. Se ficar alguns dias sem se alimentar e encontrar comida, procure comer pouco e bem devagar.

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Água e vitamina C Lembre-se que na maioria das vezes, nosso estoque de gordura é suficiente para fornecer energia. O maior risco está relacionado à falta de minerais e principalmente vitamina C, causadora do escorbuto que matou muitos tripulantes de viagens de navio fracassadas.

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Raras Bizarr Choca

Doenças relaci não param de delas podem s 60 Angu


s ras antes Da Redação

ionadas à comida e crescer e muitas ser assustadoras Angu

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Além da anorexia e bulimia Transtornos alimentares são muito comuns e podem afetar pessoas de todas as faixas etárias, classes sociais, raça e cor. Ouvimos com frequência falar sobre bulimia ou anorexia, doenças que, embora não sejam epidêmicas, tem incidência significativa desde meados do século passado.

A Angu resolveu pesquisar doenças realmente raras e desconhecidas e que estão normalmente relacionadas a distúrbios psiquiátricos e infalivelmente à alimentação. Encontramos de tudo um pouco, e muito de inimaginável. Tipo aquela coisa de filme mesmo, como o caso de uma americana de 31 anos que comia espuma de sofá, inclusive quando estava fora de casa, já que levava seu “lanchinho” na bolsa.

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Síndrome de Prader-Willi Causada por um defeito cromossômico, provoca deficiência de habilidade motora, retardamento mental e um apetite inextinguível que pode levalos a comer a si próprios. A série americana CSI apresentou um caso em um de seus episódios, em 2.005.

Pica Neste caso, a pessoa sente uma vontade incontrolável de comer itens não nutricionais e não comestíveis, que podem incluir desde bitucas de cigarro, produtos químicos perigosos e objetos pontiagudos. Renfield, personagem do romance de Bram Stoker, Drácula (1887), era um paciente com problemas mentais que comia coisas vivas (moscas, aranhas, pássaros) acreditando que isso lhe traria maiores poderes de força vital

Ortorexia Essas pessoas têm obsessão por alimentos saudáveis ou “puros” e acabam limitando a variedade de alimentos de suas dietas. O que pode causar deficiência nutricional, perda de peso excessiva e, em casos mais graves, levar à morte.

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Síndrome da Alimentação Noturna É o ataque à geladeira durante a noite. Obesos e obesos mórbidos são os que mais sofrem com esse distúrbio e comem nada ou quase nada durante o dia. Mas,

quando a noite chega, ingerem metade das calorias diárias, preferencialmente em segredo.

Síndrome de Gourmand Distúrbio que pode afetar e muito qualquer conta bancária. Quem tem essa síndrome apresenta apetite anormal e só ingere alimentos finos, caros, iguarias incomuns. Mas, não basta ter esses ingredientes no prato. Essas pessoas acompanham desde a compra, manipulação e empratamento. Acredita-se que esteja relacionado a uma lesão cerebral.

Síndrome de ruminação Sua característica está em levar a comida à boca, mastigar, engolir, regurgitar, levar o alimento para trás da boca e engolir novamente. Esses ruminantes afirmam que o material regurgitado não tem gosto amargo e que devolvem o alimento à boca com um leve arroto.

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Autocanibalismo Enquanto alguns, como Hannibal Lecter, do filme “O Silêncio do Inocentes”, que apreciava comer carne de outros seres humanos,

os que sofrem de autocanibalismo, comem a si próprios. Começam pelos dedos das mãos, língua e por aí vai. Já foram relatados casos de pessoas que comeram a própria pele, com a intenção de modificá-la.

Músculos, cérebro e articulações são afetados pela produção excessiva de ácido úrico, que leva ao que é chamado de lábio compulsivo, fazendo com que a pessoa morda incessantemente os dedos. Infelizmente, em 60% dos casos, seus dentes têm que ser removidos para cessar a mutilação. A condição, que ocorre quase que exclusivamente em meninos, tem sido relacionada a distúrbios de controle de impulso em geral e pode variar de leve a ameaça de vida.

Autovampirismo Esses pacientes têm especial preferência por beberem o próprio sangue e, assim como o vampirismo,

muitas vezes tem relação com excitação e prazer sexual através de mordidas, cortes, sugar ou beber sangue. Desordem predominantemente masculina, geralmente compreende três fases: - Autovampirismo: bebem seu próprio sangue e, muitas vezes, se mordem ou se cortam para fazê-lo. - Zoofagia: nesta fase os portadores comem animais vivos e/ ou bebem seu sangue. As fontes de sangue animal podem vir de açougueiros e abatedouros se não tiverem acesso direto. - Vampirismo: fase final, bebem o sangue de outros seres humanos. Seu suprimento pode ser roubado de bancos de sangue ou hospitais ou podem ser retirados diretamente de outras pessoas. Nos casos mais extremos, podem cometer crimes violentos, incluindo assassinato para alimentar seu desejo.

https://drmarkgriffiths.wordpress.com/2012/03/22/the-bite-of-passion-vampirism-as-a-sexual-paraphilia/ Angu

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Pequeno compêndio de

alimentos afrodisíacos na historia da gastronomia Por Cintia Gama

Talvez um dos maiores e mais antigos mitos da gastronomia, os alimentos

afrodisíacos

ainda despertam interesse e provocam os sentidos

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“afrodisíaco” vem do grego

“aphrodisiakós”

Ao menos desde que o ser humano conhece a escrita temos noticias de afrodisíacos, imaginários ou não, o homem busca alimentos capazes de dar maior potência sexual ou aumentar o desejo de seu parceiro ou parceira. Nesse breve artigo pretendemos mostrar alguns afrodisíacos célebres da história da gastronomia. O termo “afrodisíaco” vem do grego “aphrodisiakós” e é utilizado desde o século I a.C., tendo suas origens no nome de Afrodite, a deusa do amor, da beleza, da ternura e da sensualidade, mas só teria entrado em voga, para descrever alimentos, no século XVIII. Para começarmos pelo Egito Antigo, esse povo acreditava que tanto as cebolas quanto o alface eram alimentos afrodisíacos associados ao deus Amon-Min, vide a cena de oferendas de alface ao deus Amon-Min feita por Ramsés II em Abu Simbel.

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“Comer e fazer amor são atividades tão intensamente relacionadas que, às vezes, se confundem...” (Ferran Adriá)

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bíblia Afrodisíaca Já na Bíblia, há uma referência a um afrodisíaco, no Cântico dos Cânticos, o livro escrito pelo Rei Salomão, o filho do Rei David. No capítulo 7 versículos 13 e 14, fala-se assim de uma raiz com efeito afrodisíaco: “As mandrágoras estão cheirando o perfume. Temos na porta muitas

frutas deliciosas, velhas e novas, que eu tenho guardado para ti, oh meu amor!” Em Roma, o filósofo Apuleio, séc II d.C., teria empregado uma receita afrodisíaca para conquistar a rica viúva romana Pudentilla, uma deliciosa sopa de peixes, conhecida em Marselha como Bouillabaisse. O autor romano foi até acusado de bruxaria pela família da viúva de tão grande o poder da sopinha de peixes. Apicius, autor romano do primeiro livro de cozinha, não deixou de anotar receitas afrodisíacas, dentre elas a receita de lentilhas com frutos do mar (disponível no Receita da velha dessa edição).

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Bouillabaisse


O poder dos peixes Os peixes também eram elogiados por Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) que conta que Saladino, ao tentar testar a pureza e a castidade sexual religiosa dos religiosos. Primeiro teria imposto a eles um regime à base de carne vermelha, o que se mostrou ineficaz, por conseguinte, forçou os religiosos a se alimentarem

apenas de peixes o que teria feito os dervixes ficarem tão excitados que eles teriam corrido atrás das mulheres do harém do sultão. Giovanni Giacomo Casanova (1725-1798), o mais célebre sedutor de todos os tempos, era também um grande adepto de afrodisíacos. Para ele, a chave de todo o sucesso estava no consumo de ostras com champanhe. Reza a lenda que ele teve mais de 132 mulheres, e que além do champanhe e das ostras, ele aumentava o aquecimento de sua casa para que as mulheres tivessem vontade de se despir mais rapidamente. Além disso,

Casanova tinha um joguinho especial em que as pessoas deviam passar as ostras de uma boca para outra. Angu

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A sopa de ninho d

pássaro

Os chineses tinham desde tempos antigos o costume de usar os afrodisíacos medicinais e mecânicos. Eles conheceram o afrodisíaco vegetal usado até hoje, o gengibre. Eles faziam uma geleia que estimulava especialmente as áreas sexuais da mulher. Também usavam outra raiz, a do gen-seng ou ginseng, com os mesmos efeitos. Porém, o mais forte dos afrodisíacos por eles usado é, sem dúvida, a sopa de ninho de pássaro, uma preparação bem temperada que nunca falha, segundo os chineses. Os ninhos são tirados das montanhas perto do mar. Na Europa esta sopa foi sempre muito procurada, chegando a pagar uma fortuna pelo sabor delicioso e exótico que apresenta.

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Alcachofras

calientes

Na época Moderna francesa, acreditava-se que as alcachofras fossem afrodisíacas, bem como a baunilha e o chocolate, todos grandes estimulantes do sexo feminino. Há, inclusive um poema sátiro anônimo que diz:

Al cac ho f r as! Alc ac ho fras! Elas aquecem o corpo e o espírito! Elas aquecem as partes nobres! Catarina de Médici adora alcachofras! Comer alcachofra, dizem, é como ser acariciado. Catarina de Médicis, como o versinho já mostra, teria escandalizado a corte francesa por deixar clara sua paixão por alcachofras. Apreciar tanto um afrodisíaco não era uma atitude muito adequada para uma mulher, ainda mais da alta nobreza. Mas não há registro de queixas por parte do marido, Henrique II.

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“prazer de amor”

“escrito”

Kama Sutra


A literatura tradicional da Índia traz diversas referências aos afrodisíacos. Nunca existiu uma quantidade tão importante de dados como o que se acha no Kama Sutra, por exemplo. Kama quer dizer “prazer de amor” ou “prazer físico” e Sutra é o “escrito”. Um vegetal que era muito usado na Índia, também conhecido na Europa, era a raiz do Kang (grama húngara ou panicum italicum) misturado com mel, segundo outro livro, o Ananga Ranga.

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É o que lhe parece Algumas comidas foram glorificadas como afrodisíacas por serem raras ou misteriosas. Além disso, muitos povos antigos acreditavam na “lei da similaridade”, o que os faziam crer que objetos semelhantes aos órgãos genitais teriam efeitos sexuais. A similaridade do formato do chifre do rinoceronte com o pênis é o que lhe deu a reputação mundial de aumentar o desejo por sexo, uma vez que o próprio formato facilitava a autossugestão. Mas os cientistas explicam que o chifre contém uma porção significante de cálcio e fósforo, e, numa dieta pobre destas substâncias, conduz ao maior vigor físico e possível melhoria do interesse sexual. Pessoas com alimentação deficiente em determinadas substâncias básicas têm diminuição do desejo sexual em qualquer parte do mundo. Seja como for e onde for, no decorrer da história, a busca por afrodisíacos é incessante e em sua maioria das vezes esses são alimentares. Se sua ação afrodisíaca é mítica ou verdadeira, isso não se pode dizer, pois por mais que alguns afrodisíacos sejam testados pela ciência, não se pode esquecer do fator de autossugestão ou placebo desses alimentos.

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Algumas curiosidades: ➚➚ Na Grécia, acreditava-se que os testículos de asno, cozidos ou mesmo pendurados no pescoço dos homens, serviam como amuletos para a virilidade; ➚➚ Os testículos de leão são muitos apreciados na África, por transmitirem força e coragem; ➚➚ No Chile, churrasco com testículos de gado são pratos comuns entre os homens do campo; ➚➚ Catarina, a Grande Imperatriz da Rússia, ganhou fama de sexualmente insaciável. Defendia relações sexuais 6 vezes ao dia e talvez tenha cumprido a prescrição até morrer, aos 77 anos. De manhã, gostava de chá com vodca e omelete de caviar, extremamente afrodisíacos; ➚➚ Os astecas conheciam bem o poder do chocolate: diz-se que Montezuma bebia 50 xícaras de chocolate ao dia para bem servir suas 600 mulheres; ➚➚ Os chineses consideravam o damasco como um símbolo de sensualidade da natureza. É tido como um dos frutos de Eros; ➚➚ Gengibre quente mata a sede, reanima e estimula o cérebro. E na idade madura, despertaria os amores; ➚➚ Segundo Shakespeare, a hortelã, a lavanda e o alecrim seriam grandes estimulantes para homens de meia-idade; ➚➚ O incenso egípcio mais famoso é o Kyphi, uma mistura de 16 ingredientes, dentre eles, açafrão, canela, zimbro, mel e uvas-passas. Foi descrito como “um aroma apreciado pelos deuses”. Era queimado depois do pôr do sol para garantir a volta de Rê, o deus Sol, e também por seu efeito inebriante e afrodisiaco; ➚➚ O chá de jasmim é um maravilhoso auxiliar de Afrodite. A flor é utilizada em incensos, na culinária, como óleo, em perfumes e sachês; ➚➚ Paulina Bonaparte, a irmã de Napoleão Bonaparte, é descrita como ninfomaníaca incorrigível. Sua poção do amor consistia em morangos e champanhe.

Para mais informações aconselho a deliciosa dissertação de Soraya Souza de Albuquerque, da Universidade de Brasília, disponível em pdf. http://bdm.unb.br/bitstream/10483/565/1/2004_SorayaSousaAlbuquerque.pdf

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receita

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da

Velha Por Cintia Gama

Apicius – De re Coquinaria O livro “de re coquinaria” supostamente de Marcus Gavius Apicius (25 a.C. – 37 d.C., sob os Imperados Augusto e Tibério) é um compendio que traz receitas romanas antigas, que havia sido perdido com a queda do Império Romano Ocidental e foi redescoberto no monastério alemão de Fulda, sendo reeditado no século XVI. Apicio ou Apicius era conhecido, sobretudo, por suas excentricidades e por sua enorme fortuna pessoal, a qual ele dilapidou para preparar grandes banquetes. Seu desmedido epicurismo fez com que seus contemporâneos estoicos, Sêneca e Plínio o Velho, o reprendessem e desprezassem. Ele teria sido caso0 com a filha de Lúcio Élio Sejano, prefeito da guarda pretoriana e um dos homens mais influentes de Roma, durante o reinado do imperador Tibério. É desconhecida a data exata de sua morte, mas ela teria ocorrido provavelmente no final do reinado de Tibério. Consta tradicionalmente que Apício teria se sucidado por envenenamento ao ter dilapidado toda sua fortuna.

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Lentilhas com frutos do mar (Apicius “DE re Coquinaria”, livro V)

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200 gr. de lentilles vertes;

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30 ml. de vinho de tinto;

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1 colher de café de mel;

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600 gr. de frutos do mar limpos;

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Uma pitada de azeite de oliva extra virgem;

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2 alhos porós pequenos;

◆◆

Uma pitada de coriandro, menta; alho; sal e pimenta

Ferver as lentilhas em água slagada durante uma hora, acrescentar coriando, menta, alho, sal, pimenta, os alhos porós, vinagre, mel e duas colheres de azeite de oliva, cozinhar até que as lentilhas estejam moles. Fritar com azeite de oliva o alho, o coentro e colocar os frutos do mar aos poucos, acrescentar colheres de água e cozinhar durante 3 minutos Colocar as lentilhas num bowl e sobre as mesmas os frutos do mar.

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TIA NASTÁCIA cozinha

DONA BENTA leva a fama DONA BENTA NUNCA FRITOU UM OVO, MAS NA HORA QUE LANÇARAM UM LIVRO DE RECEITAS FOI SEU NOME QUE ESTAMPOU A CAPA Por Claudio Santana Pimentel

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“Tia Nastácia é o povo”,

diz o menino Pedrinho.

Talvez valha a pena aplicar aqui o que um sambista das

antigas costumava dizer “samba é como passarinho, solto no ar, é de quem pegar”. Assim são as receitas populares: anônimas, sem dono, até que, zás! Vem alguém e se apossa delas. No imaginário infantil de Monteiro Lobato, Tia Nastácia representa o conhecimento dos simples, o saber que nasce da vivência, próximo daquilo que anos depois o antropólogo Claude Lévi-Strauss chamou de bricolage. As receitas de Tia Nastácia são anônimas. Não me recordo nos livros de Lobato que mencionasse sobre ela ser alfabetizada. Provavelmente não fosse, e isso soaria óbvio para ele e seus jovens leitores, aqueles da década de 1930, ou mesmo os que vieram depois. O mundo de Tia Nastácia é um Brasil recém-saído da escravidão, onde a escolarização era oportunidade rara para ex-escravizados e seus descendentes. Não são mencionados filhos ou família.

Tia Nastácia é uma dessas domésticas que, privadas de outras sociabilidades além da família dos patrões, parecem ser parte dela. “Como se fosse da família”. A memória é, junto com a experiência dos anos de forno

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,

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Mulher negra, simples, analfabeta, “o povo”

e fogão, a ferramenta dessa e de tantas outras mulheres que alimentaram este país, sem lhes ter sido dado o direito fundamental do conhecimento das letras. Mesmo seus direitos trabalhistas apenas muito recentemente foram reconhecidos. Assim, o desconhecimento da

escrita relegou Tia Nastácia e gerações de cozinheiras ao anonimato.

Por sua vez, Dona Benta representa para Lobato o mundo letrado. Em seus serões, apresenta aos netos as ciências da natureza. Lê para eles sobre a geografia e a história. Apresenta-lhes Dom Quixote, Hans Staden, os contos de fada... Dona Benta, senhora culta, mãe e avó. Se o espaço doméstico foi identificado com o feminino, em oposição ao espaço público, masculino,

Lobato traz uma subdivisão importante: o ambiente do trabalho, em especial o da cozinha, é o espaço onde se encontra a mulher negra, simples, analfabeta, “o povo”. O ambiente social, da sala, onde se lê e no qual crianças e jovens vão sendo gradualmente apresentadas ao mundo adulto, é regido pela mulher branca, culta e letrada.

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Dona Benta – Comer bem, publicado originalmente pela Companhia Editora Nacional, de Monteiro Lobato, talvez tenha aproveitado o nome da personagem, de maneira a dar credibilidade ao seu receituário; seu público era principalmente donas de casa. Apenas edições mais recentes, como Dona Benta para crianças, de 2005, aproxima o texto culinário do universo infantil, ao apresentar receitas para esse público, associando-as com hábitos de alimentação saudável. Comer bem, entendido como comer de maneira saudável, parece ter sido uma preocupação da obra em suas diversas edições, embora o entendimento sobre esse “saudável” possa ter se modificado ao longo do tempo.

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transformações da cozinha brasileira Em sua dissertação de mestrado, Simões

Dona Benta – Comer bem é um importante documento que permite acompanhar as transformações que a cozinha brasileira – ao menos a cozinha “letrada” e urbana, sobretudo das elites e classes médias – recebeu no decorrer do tempo.

mostra que

Em suas páginas, em suas sucessivas reedições e revisões, percebem-se mudanças de hábito, de gosto e sabor, para a autora, o critério principal da seleção das receitas ali incluídas. E também as transformações em relações aos hábitos da cozinha doméstica e da sociedade urbana, onde o tempo disponível para cozinhar tornou-se escasso. Cabe talvez perguntar, até quando haverá lugar para a cozinha de Dona Benta. Ou ainda, se há tempo para se reescrever o livro anônimo, oral, das receitas do povo, das receitas da memória de Tia Nastácia.

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Sugestões de leitura: DONA BENTA para crianças. Companhia Editora Nacional; Globo: São Paulo, 2005. LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. Globo: São Paulo, 2009. SIMÕES, Renata Silva. Dona Benta – Comer Bem. Uma fonte para a história da alimentação (1940-2003). Dissertação. (Mestrado em História Social). FFLCH, USP. 2008.

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Água no feijão...

feijoada breve percurso de um prato Por Mara Salles

Prato mais simbólico da cozinha brasileira, a feijoada ainda gera polêmica quando se busca suas origens Angu

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Feijão, farinha e carne-seca Se havia uma unanimidade nos relatos dos viajantes estrangeiros interessados em retratar os costumes da nova terra, no início do século XIX, era o interesse na presença do feijão-preto, farinha e carne-seca na alimentação cotidiana no Brasil.

Na época essa mistura já aparecia algumas vezes com o nome de feijoada, e estava na mesa também dos grandes ou pequenos comerciantes, anfitriões dos cronistas. Auguste de Saint-Hilaire, viajando pelo no Brasil entre 1816-1822 relata que “o feijão preto forma prato indispensável na mesa do rico, e esse legume constitui quase a única iguaria do pobre. Se a esse prato grosseiro ainda se acrescenta mais alguma coisa é arroz, ou couve, ou outras ervas picadas.”

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Casa Grande e s e n z a l a Descontadas as diferenças de classe e de raça, a cozinha representaria naquele momento o elo mais estreito entre a casa grande e a senzala. O jeito de comer no andar de cima poderia ser distinto, haveria um pouco mais de variedade, mas sabe-se, não havia assim tanto alimento disponível, capaz de colocar na cesta do patrão ingredientes diferenciados e exclusivos. Portanto não só nos porões se comia feijão preto. Vale lembrar ainda que as vísceras eram bastante apreciadas pelos portugueses, e que não era comida menor; não sobrava assim tanto mocotó para dar consistência às papas dos escravos.

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E como surgiu a feijoada? Um prato tradicional não surge assim da noite pro dia. Ele se constrói ao longo de um processo histórico. É bem diferente de um prato autoral ou um prato “criado” pela mídia. A reflexão que

mais me agrada é que a feijoada teria nascido nessa inter-relação casa grande e senzala, pois, além dos

argumentos anteriores, as mãos que cozinhavam, que acabavam decidindo se entrava ou não mais caldo ou mais farinha no feijão, tanto na senzala quanto na casa grande, eram mãos negras e escravas. E quando é a que a feijoada completa se consolida como prato nacional?

Hotéis e casas de repasto no Rio e em Recife, já em meados do século XIX, anunciavam a feijoada brasileira oferecida em determinados dias da semana. O marketing já apresenta um diferencial à feijoada brasileira como algo repaginado; não seria mais aquela mistura rudimentar do início do século. Esse é o mais provável ambiente onde ela começa a se completar com adereços que pudessem atrair a freguesia.

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Prato modernista Por volta de 1922, feijão, e em particular a feijoada, foram também elementos de exaltação à brasilidade pelo Movimento Modernista, cujo principal ator foi Mário de Andrade e que, junto com outros artistas, escritores e pensadores, defendia um ideal nacional calcado nos valores populares. Como saber quais ingredientes Mário de Andrade teria colocado na surrealista piscina de feijoada construída para o mergulho do seu anti-herói Como imaginá-la daqui a um brasileiro, Macunaíma, há quase quarto de século? Sem orelha? um século atrás? Sem torresmo? Sem banha? Mais importante do que saber Sem Gosto? em que momento da história a laranja entrou ou a língua saiu da receita, é saber que esse prato vigoroso e delicioso, aberto a tantas misturas, a feijoada reflete o nosso próprio caráter miscigenado e agregador que começou desde cedo, com os portugueses se assanhando pelas índias.

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Feijoada à italiana Cabe aqui o relato de um fato que ilustra bem essa tal identidade.

Tempos atrás, uma escritora italiana, apaixonada pelas coisas do Brasil, colou em mim para aprender tim-tim por tim-tim a receita da feijoada, levando o precioso registro para sua terra. Meses depois bateu de volta no Brasil e me relatou com entusiasmo como foi apresentar esse prato tão brasileiro para os italianos, numa casa tradicional romana: “...foi emocionante”, dizia ela, “primeiro os convidados foram recepcionados com caipirinha e torresmos na sala de estar e depois passamos à sala de jantar. Substituí a couve porque não a encontrei por lá, coloquei todas as guarnições em travessas e, como você me orientou, deixei todas as carnes misturadas ao feijão numa grande sopeira no centro da mesa de 12 lugares.” Achei muito gozado!

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Um prato multissensorial Cadê o pagode, o samba, as gargalhadas liberadas pela cerveja e pela cachaça, o espichar desse prazer tarde afora, sem hora marcada pra acabar, beliscando um torresminho aqui, uma couvezinha ali, num entra e sai de cumbucas e de pessoas que se aboletam por todos os cômodos da casa? Cadê essa graça brasileira?

A feijoada não é um bollito italiano, não é cozido português e muito menos um cassoulet. Todos pratos muito bons, obrigada. Mas só ela, apesar de ingredientes tão semelhantes, tem ziriguidum. E carrega uma história própria que é a nossa própria história. Sempre defendi que esse modo tão informal e particular de comermos, somado à gigante diversidade de ingredientes brasileiros, poderia ser a chave pra nossa gastronomia sair do guarda-comidas e ganhar o mundo.

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O que nos falta então? A receita completa eu não tenho, mas como cozinheira experiente posso apostar em ingredientes que combinam muito: profissionalismo, rigor na execução da receita e alegria a gosto. O modo de preparo?

Salve

Misture com jeitinho, bote uma malagueta e não tenha vergonha de ser feliz. 104 Angu


Gonzaguinha, Gonzagão, Villa Lobos, Chico Buarque e Zeca Pagodinho Angu

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Fe

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eijoada completa

Chico Buarque Mulher, você vai gostar: Tô levando uns amigos pra conversar. Eles vão com uma fome Que nem me contem; Eles vão com uma sede de anteontem. Salta a cerveja estupidamente Gelada pr'um batalhão E vamos botar água no feijão. Mulher, não vá se afobar; Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar. Ponha os pratos no chão e o chão tá posto E prepare as lingüiças pro tiragosto. Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão E vamos botar água no feijão. Mulher, você vai fritar Um montão de torresmo pra acompanhar: Arroz branco, farofa e a malagueta; A laranja-bahia ou da seleta. Joga o paio, carne seca, Toucinho no caldeirão E vamos botar água no feijão. Mulher, depois de salgar Faça um bom refogado, Que é pra engrossar. Aproveite a gordura da frigideira Pra melhor temperar a couve mineira. Diz que tá dura, pendura A fatura no nosso irmão E vamos botar água no feijão.

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A COMIDA É MINEIRA,

UAI, MAS TEM CAIPIRA

PAULISTA NESSE

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Por Leticia Damas

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Orgulho regional, a comida mineira nasceu com os caipiras paulistas e chegou às minas gerais nos farnéis dos bandeirantes (MAS NÃO COMENTE ISSO COM UM MINEIRO!) Angu  109


Mais semelhanças do que diferenças Analisando certos pratos mineiros, paulistas mais inteirados em sua cultura e tradição, normalmente os interioranos, que ainda vivem com alguns modos antigos, percebem semelhanças absurdas entre seus pratos. O angu, o frango caipira, a couve,

o doce de leite e as frutas em calda estão no prato do caipira paulista há séculos.

Nota-se que, São Paulo foi colonizado muito tempo antes de Minas Gerais, então, na verdade, a cozinha mineira é a paulista com particularidades. Até o nome do Estado traduz o interesse das pessoas que saíram de suas terras para buscar enriquecimento rápido, principalmente para o Rei - ainda éramos colônia de Portugal.

O próprio termo Cozinha Paulista, dito com a mesma força que cozinha mineira, cozinha baiana e até mesmo cozinha gaúcha, soa como novidade aos ouvidos.

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Comida de tr Os bandeirantes e tropeiros levaram consigo pratos consumidos por estes cantos em suas viagens, além de criarem plantações nos locais onde faziam pouso constante. Esses acampamentos davam origem a pequenos arraiais. Formados por causa da mineração, muitas vezes desapareciam junto com a prospecção ou então davam origem a municípios. Ao contrário dos índios, os brancos não sabiam encontrar comida com facilidade naquelas terras inexploradas por eles.

Portanto, através desta injeção cultural, os mineiros criaram hábitos e aprenderam os pratos paulistas. Porém, os mineiros foram bem mais espertos e criaram um marketing sobre esses pratos, e trouxeram para si o prestígio das iguarias caipiras. Minas só veio a ter sua culinária a partir de 1700. 112 Angu


ropeiro

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Virado à Paulista ou Não por acaso, quando se prova pratos típicos da cozinha paulista primitiva percebe-se no paladar a semelhança dela com a cozinha mineira atual. Comprovam-se essas semelhanças em duas receitas muito parecidas, porém com nomes distintos: o Virado à paulista e o Tutu mineiro.

As diferenças entre os dois estão principalmente na textura: o tutu é mais pastoso, sendo o feijão totalmente batido e misturado à

farinha de mandioca e costelinha de porco. Já no virado, uma parte do feijão é batida e a outra mantida em grãos. Além disso, pode levar farinha de milho e também

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u Tutu Mineiro? de mandioca. Acompanhado, sempre, de bisteca de porco, linguiça, arroz e torresmo ou bacon frito, além da banana, couve e ovo frito.

Diz-se que o Feijão Tropeiro surgiu no farnel sobre o lombo do cavalo, onde se acomodavam feijões e farinha. E foi no balanço do galope que esses dois ingredientes se misturaram e deram origem ao delicioso prato.

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Uma comida esquecida O Virado, felizmente, ainda é achado com facilidade em muitos restaurantes. Porém alguns pratos típicos paulistas não se encontram mais em restaurantes no próprio Estado, como o Cuscuz à Paulista. Também não procure pela Paçoca de carne-seca, ou o Azul Marinho (peixe com banana), o Escaldado de Peixe com Pirão, Arroz com suã (osso da costela do porco) e a Tainha na Brasa. Hoje, essas receitas são preparadas apenas pelas famílias da região.

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A essência é uma comida feita lentamente, com produtos naturais e servida direto da panela, no fogão. Nos primórdios era feita no tucuruva, um fogão improvisado no meio do cupinzeiro; com o passar dos tempos ganhou altura e formato no que é hoje o fogão à lenha. A tão falada comida orgânica e vegetariana, o caipira a come há séculos.

Os assados vêm do moquear (passar a carne no fogo) dos índios. A fritura começou com a chegada da gordura de porco, trazida pelos europeus. E os cozidos surgiram como resultado da “misturança”. A técnica caipira tem a ver com o jeito de cozinhar dos escravos e dos europeus, tudo misturado aos ingredientes e técnicas indígenas.

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F

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Feijão e farinha No caso do feijão há um adendo: por onde passavam ou onde se estabeleciam, plantavam esse cereal. Ao voltarem, os bandeirantes recolhiam o feijão que haviam semeado meses antes e abasteciam-se para não padecer com a fome.

A consideração em relação à dieta diária dos brasileiros ainda no período colonial pode ser percebida, por exemplo, pelo fato dos portugueses não terem restrições à venda desse produto como fizeram com aqueles que interessavam aos seus negócios no mercado externo, caso do açúcar, do tabaco ou mesmo do milho. E foi assim, através do feijão e da farinha dos tropeiros e bandeirantes, que os mineiros absorveram a culinária caipira paulista, transformaram-na e criaram a deliciosa comida mineira.

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o mito da Santa C

Um dos quadros mais famosos de todos que teria sido a última refeição de Jesus da investigação histórica, a cena retrat revelando como um dos maiores m

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Ceia: e se Leonardo

da Vinci errou?

s os tempos, “A Última Ceia” reproduz o com seus apóstolos. Mas sob as lentes tada por Leonardo da Vinci acaba se Por Cintia Gama mitos relacionados à alimentação.

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Arte x história

Jacopo Robusti Tintoreto – A última ceia – 1592 122 Angu


Criticar o estilo artístico, a proporção, a perspectiva e a beleza do afresco da

“Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, no convento da Igreja Santa Marie delle Grazzie (Milão), não é possível. Mas nada nos impede de analisar um possível erro, se é que assim podemos dizer, no que diz respeito à veracidade histórica dessa cena. A representação da cena ou última refeição de Cristo tem antes de tudo um valor pedagógico. Utilizada na Idade Média como um instrumento de luta contra as heresias que rejeitavam a eucarística, essa representação se torna um tema iconográfico maior no Renascimento.

É no século XV, e depois na Contrarreforma, que a ceia ganha um lugar central na arte ocidental. Para isso, basta notar a produção quase industrial de representações de ceias por Tintoreto, em Veneza.

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Um cenário para o jantar A palavra cenáculo não aparece originalmente na Bíblia. Na verdade, essa palavra vem do latim cenaculum, e é utilizada nos textos bíblicos para traduzir algumas palavras hebraicas e gregas. Basicamente, a palavra cenáculo significa algo como “sala de refeições”, ou, de modo mais genérico, “quarto no andar superior de uma casa”.

A palavra cenáculo é derivada do termo latino cena, que significa “jantar” ou “ceia”. Tratava-se de um quarto mobiliado no primeiro andar, onde havia leitos baixos em que os participantes se reclinavam para cear conforme o estilo greco-romano (Mc 14:15; Lc 22:12). É exatamente no que concerne à época da possível ceia e o estilo do cenáculo que vamos “criticar” Leonardo da Vinci e os pintores da Idade Média até os dias de hoje, que acabaram por formatar nossa visão desse jantar.

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Ceia deitada

A cena descrita como última ceia de Jesus, se entre os séculos I a.C. e I d.C. Nesse momen cia ao círculo de influências greco-romanas. O moldes greco-romanos. Em uma refeição des sent

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e é que ela ocorreu mesmo, teria sido realizada em Jerusalém, nto, essa localidade era integrante do império romano e pertenO que nos leva a concluir que essa refeição tenha sido feita nos sse tipo os convivas deveriam estar reclinados em leitos. E não tados em cadeiras em torno de uma mesa. Se esse detalhe passou batido, isso se deve ao fato de que a representação tradicional dessa refeição foi constituída na Idade Média. E nesse período da história, o que se vê representado são banquetes medievais com mesas, cadeiras, toalhas de mesa e os convivas sentados. Na verdade, o que aconteceu foi um grande anacronismo.

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Arte

sob encomenda

Os pintores recebiam encomendas, pedidos com detalhes de como era esperado que suas obras fossem realizadas, e o que se prezava era fazer com que os apóstolos – e até mesmo Jesus – vivessem e portassem roupas da época da pintura. Ou que fossem representados numa imagem idealizada, de um passado mítico, a mesma que foi retomada por Hollywood.

Entretanto, alguns artistas conseguiram se afastar desse estigma, como Nicolas Poussin ou James Tissot, que no século XVIII consegue pintar todos os convivas deitados.

Na Idade Média, podemos ver que a representação ainda oscila entre convivas sentados com mesas retangulares ou reclinados na forma greco-romana, como no mosaico do século VI, de Ravena, ou ainda no afresco Bohêmio de 1080, ambos representando a ceia reclinada.

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afresco Bohêmio de 1080

mosaico do século VI, de Ravena

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Ceia fast food Assim, se compararmos as representações dos banquetes grecoromanos com as últimas ceias pintadas na Idade Média ou no Renascimento, em que todos estão sentados em torno de uma mesa, podemos notar que o que foi pintado e constitui nosso referencial imagético para a tão famosa Santa Ceia nada mais é do que uma refeição medieval ou do renascimento.

Algo como se os artistas de hoje representassem Jesus e seus apóstolos no Mac Donald’s. Dessa maneira, historicamente falando, ao imaginarmos a última ceia, não devemos nos ater às “clássicas” imagens do Renascimento e suas belas cores e luzes, mas sim às representações de Poussin ou Tissot, mais próximas de uma possível “realidade histórica”.

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Nicolas Poussin

James Tissot

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O sertão em letras – e em comidas Por Sula Santana

“... no viver, tudo cabe”: O Grande Sertão, o Sertão, os Sertões.. 132  Angu


..

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O sertão e suas comidas na visão de três dos maiores Guimarães Rosa

Graciliano Ramos

Euclides da Cunha

Foi assim que Guimarães Rosa ao escrever “Grande Sertão: veredas” (1956) apresenta Riobaldo, o sertanejo que vive o sertão em suas Apesar das guerras entre os jagunços, brigas com jagunço e tem o sertão é nesse espaço que Riobaldo, entre como um lugar onde tudo acontece. um tiro e outro, se permite questionar E é misterioso. E é um ambiente em a existência humana que o viver é muito perigoso. Em “Vidas Secas” (1938) trata da vida difícil de uma família sertaneja e nordestina que busca outros lugares para fugir da seca. Compreende o sertão como um local de exclusão. Um ambiente seco e inóspito gestado e construído no sistema capitalista. E tem em Fabiano a representação clara de todas as formas de exclusão.

Euclides da Cunha em “Os Sertões” (1902) retrata a Guerra de Canudos como foco principal do seu roteiro. Mas coloca o sertão como um ambiente onde a própria natureza incita o caminho do sertanejo como um homem forte e bravo em sua existência e onde as estruturas sociais se mantêm rígidas, desqualificando a terra e a população que nela vive, fruto das ideias positivistas que habitavam a mentalidade do século XIX.

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escritores brasileiros O sertão foi apresentado sob vários olhares literários onde cada um encontra maneiras bem distintas de compreendê-lo. Mesmo que aponte os seus sujeitos estereotipados, é a partir da literatura sertanista -ou sertaneja- que tomamos conhecimento da vida e dos acontecimentos ocorridos nesse espaço. E não deixa de ser uma forma de compreensão desse lugar, um lugar muitas vezes tão distante para a maioria das pessoas.

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Geologicamente, o Sertão está inserido numa área de transição entre o agreste seco e o meio norte úmido ocupando uma faixa que ultrapassa o litoral do Rio Grande do Norte, Ceará, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe, e o Estado do Piauí.

Parte importante da ocupação do interior no período do Brasil Colônia, o conceito de sertão foi trazido pelos portugueses, no século XIV. Já utilizavam a palavra sertão ou “certão” para os locais que ficavam distantes de Lisboa, designando “os espaços vazios” que pertenciam à metrópole portuguesa.

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mucunã


Na verdade, em todos os sertões está revelada a realidade

brasileira

Ocupando inicialmente as áreas litorâneas com a plantação e os engenhos de cana-deaçúcar, o sertão que permeava o imaginário português referia-se ao local que se encontrava longe da estrutura de poder estabelecido pela Metrópole. O sertão designava um lugar onde o desconhecido, as feras, os bandidos, os seres místicos e o perigo habitavam. Para aqueles que queriam livrar-se da ordem estabelecida por Portugal era um lugar de fuga, esconderijo, sobrevivência e acolhimento, e durante muito tempo abrigou índios, quilombolas, escravos fugidos, doentes, os “fora da lei”, o local habitado por “bárbaros”. E nesse conceito, o sertão foi criado e conhecido para além de suas próprias terras. Para Fabiano, em “Vidas Secas”, come-se o que sobra da seca, procuram-se raízes de imbu ou sementes de mucunã (leguminosa rica em proteína) ou quando o pouco que recebe do pagamento vai até a cidade comprar mantimento: sal, farinha, feijão e rapaduras e cozinha-se em trempe de pedras feita por sinhá Vitória. A caça fica por conta de Baleia quando encontra preás.

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Sai do sertão e vai para as cidades:

a mandioca, a farinha e a carne seca Euclides descreve as paisagens sertanejas com sua fauna constituída de preás, veados, emas e grande quantidade de pássaros; e a flora, com árvores e vários tipos de cactos, apenas. Em Guimarães esse cardápio alimentar se expande, e insere o gado e o bode como os animais que vão abrir as fronteiras do sertão originando pratos e ingredientes emblemáticos. A buchada de bode e a carne do sol estão presentes e representam o sertão em qualquer lugar do Brasil. A mandioca, o feijão verde e o guandu também estão presentes nos pratos. E não menos importante, a rapadura.

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Na cozinha sertaneja encontramos o caldo de mocotó, o arroz à Maria Isabel, as farofas de carne seca, a carne de sol com pirão de leite, o cuscuz com guisado de cabrito, o escondidinho, o arrumadinho, a paçoca de carne seca, a galinha ao molho pardo ou cabidela, o sarapatel, o mungunzá, o tijolo (doce feito da raiz do umbu), o milho, a mandioca, as farinhas, a pamonha, a rapadura, o milho, paçocas, carne seca e aipins, farofas, rapaduras, melaço, as festas juninas. É pela boca que a comida sertaneja vai ocupar as cidades, consolidandose como parte integrante do cardápio brasileiro. O sertão mantém um cardápio que marca e amplia a vida sertaneja, e como o sertão, perpassa os limites geográficos assentando-se nas mesas das grandes cidades conquistando e apresentando novas propostas de sabores. Além disso, do semiárido saem as melhores frutas para exportação como melão, melancia, goiaba, maracujá, banana e mamão obtidos a partir de técnicas de irrigação modernas. Do Vale do São Francisco, os nossos espumantes. De lá, do meio do nada...

É nessa travessia que se constrói o cardápio sertanejo. Uma comida designada para a sobrevivência. Sai do sertão e vai para as cidades levada na matula como seus símbolos alimentares mais profundos: a mandioca, a farinha e a carne seca. Para saber mais: CUNHA, Euclides. Os Sertões. Nova Fronteira. São Paulo. 2016 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Ed. Record. São Paulo. 2008. ROSA, Grande Sertão: Veredas. Ed. Nova Fronteira. São Paulo. 2015.

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OS

códigos de etiqueta

DE LAMPIÃO E SEU BANDO Por Ana Maria Imhoff

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Famoso pelas atrocidades cometidas Sertão adentro, o bando de Lampião também tinha inúmeras regras de comportamento e etiqueta, inclusive à mesa.

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Folclore n

É o folclore que influencia os hábitos alimentares e as regras de etiqueta à mesa, ou sã inspiram o folclore na alimentação nos dias atuais? Os mitos da comida, tema em foco d também perpassam a etiqueta à mesa, gerando dúvidas e interesse em aprofundar as

São inúmeras as crenças que envolvem

“Não se joga pão f “Vinho

“Farinha no chão é prenúncio de p

Os mitos da comida e o folclore da alimentação são variados e muito complexos como apresentam fortes características religiosas. Para Cascudo (2011) “um tanto aflorada na vastidão temática compreende toda a etiqueta tradicional da mesa, o respeito, que é um v

Ao falar de folclore, pode-se enaltecer aqui o fenômeno do cangaço que se fez pre do século XIX, que trouxe a figura de Lampião e seu bando, tendo sua história mui literatura de cordel ao passar dos anos. Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião – o famoso de todos os cangaceiros. A imagem do cangaceiro é tão controvertida quant sua história real, cruel, mas

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na alimentação!!!

ão as normas de etiqueta que desta edição de nossa revista, as curiosidades neste tocante.

m um momento de refeição:

fora, é corpo de Deus”, derramado é alegria”,

prosperidade e fartura”.

o as suas próprias histórias, e as superstições alimentares, a vestígio religioso inapagável. ”

esente no Brasil nos meados ito contada e reinventada na o Rei do cangaço – foi o mais to a sua personalidade foi na ao mesmo tempo generoso.

O sertanejo “nortista não se

senta armado à refeição! Quando cai comida no chão, do garfo ou da boca, é sinal de familiar passando por necessidades!

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O cangaço, e a etiqueta à mesa

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Muitos são os relatos e representações destas características. No que tange os hábitos alimentares de Lampião e seus seguidores também se apresentam uma série de narrativas que hoje podemos perceber nas regras de etiqueta à mesa. Historiadores relatam que ao sentar à mesa para uma refeição, ele -“chefe” do bando-, não era o primeiro a iniciar sua refeição e comia com as mãos. Ao passo que

os homens de seu bando começavam a alimentação antes a fim de certificar que a comida não estava envenenada, e estes podiam fazer uso de talheres. Relatos atestam que, às vezes, quando Lampião ia sentar-se à mesa para almoçar, levantava-se subitamente e saía com todo o grupo do local; minutos depois chegava uma volante policial em seu encalço. Portanto, comer com as mãos, além de ser mais rápido para situações controversas como a descrita acima, também representava as péssimas condições de vida do sertanejo, manifestadas na fome, na seca e na falta de qualquer tipo de assistência governamental, que secundarizava o uso de qualquer talher.

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Comer com as m Comer com as mãos é uma prática na ingestão de alguns alimentos, e são usados até os dias de hoje. O hábito de comer com

as mãos, ainda em uso no Oriente, é antigo e sempre foi considerado o mais civilizado. Afirma Nalini (2015), quando o garfo chegou à Europa, a Igreja o considerou pecaminoso, porque sua forma lembrava o “forcado” com o qual o diabo aparece na iconografia clássica. O alimento, dádiva divina, não precisava de utensílios para ser levado à boca. Em semelhança nos dias atuais - das ações de Lampião citadas acima, e do referencial divino no ato da alimentação - o anfitrião é quem dá o sinal para que a refeição tenha início, e seu prato é o primeiro a ser feito, atestando que a comida pode ser ingerida. Com relação ao divino, o pão deve ser “rasgado” e comido com a mão, fazendo uma alusão à divisão dos pães do ato religioso. Folclore... mito... Certo ou errado? Não importa! O fato é que os hábitos alimentares estão e estarão sempre cercados de ritos e arraigados de crenças populares.

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mãos

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Por Heloiza Lanza 148 Angu


Da caatinga para o mundo

o improvável e delicioso vinho do

s e r t ã o b ra s i l e i ro Angu

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S

p

O Vale do São Francisco, portanto, é região vinícola brasileira. Você pode estar pensando, mas isso é sertão! Secura, pouca água, muito calor, como assim? 150 Angu


Secura,

pouca água, muito calor Diz o conhecimento popular que as uvas gostam de terras pedregosas para dar bons frutos. As raízes das parreiras buscam seu alimento nas profundezas do solo e os frutos precisam de amplitude térmica, calorzinho durante o dia e friozinho à noite para amadurecer. O clima e terroir ideais são encontrados entre os paralelos 30-50 nos hemisférios norte e sul, onde estão países como Portugal, França, Espanha, Itália, EUA, e Nova Zelândia, Austrália, Chile, Argentina, Uruguai, e o sul do Brasil. No entanto, no Brasil há uma região vitivinícola que foge ao paradigma clima/terroir citado acima. E surpreendentemente em uma região em que poucos acreditariam ser possível, há produção de uvas o ano inteiro! Isso mesmo! Enquanto há apenas uma vindima por ano nas regiões tradicionais como no sul do Brasil, esse lugar, pasme querido leitor, está em pleno sertão nordestino, no meio da caatinga e dos bodes, no vale do submédio do São Francisco, mais precisamente no hemisfério norte, paralelo 8, no sertão da Bahia e Pernambuco, cujo clima é semiárido! Angu

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Tecnologia do

sertão para o mundo Essa curiosidade não é só sua, a viticultura do semiárido tropical é também curiosidade do pessoal dos vinhos e da enologia do mundo todo. Porém, o “pulo do gato”, mais que a terra e o clima sempre seco e quente, a capacidade produtiva das videiras dessa região é determinada pelo manejo. Cada planta gera duas ou mais safras por ano, em ciclos de 120 a 130 dias. A irrigação artificial induz o período de repouso das vinhas que dura de 30 a 60 dias. O solo, abastecido com água do rio São Francisco, apresenta grandes depósitos de sedimentos rochosos e o alto índice de insolação produz uvas com elevado nível de açúcar, resultando em vinhos muito frutados. Portanto, é no meio da caatinga e dos bodes que as vinícolas do sertão chegam a produzir 2,5 safras ao ano, mais do que o dobro das vinícolas do sul do país que atualmente produzem apenas uma safra anual.

Com mais de 300 dias de s hibernação são simulad parreiras, a fim de renová-las pa possível obter as quatro fases da p estações do ano: hibernação, flore 152 Angu


sol por ano, os períodos de dos com choque hídrico nas ara a safra seguinte, sendo parreira, de acordo com as escimento, colheita e poda. Angu

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mas como tudo começou Desde a década de 60 a região do Vale do São Francisco é reconhecida por sua produção de frutas, especialmente uvas de mesa. Tais frutas até hoje representam cerca de 90% da produção de uvas de sobremesa no país, além da produção para vinagre e, desde a década de 80, com a introdução de uvas finas europeias, para a produção de vinhos finos. Ao final da década de 90 o poder público reconhece o potencial do local para a produção de vinhos finos e promove ações institucionais para o desenvolvimento e consolidação da região como Polo Vitivinícola. Desde os anos 2000 o polo está consolidado com a modernização e ampliação das vinícolas já existentes, e com a implantação de novas vinícolas em Pernambuco (Lagoa Grande, Bella Fruta e Ducos) e na Bahia (Ouro Verde dona da Miolo/Lovara). Ainda, vários investidores estrangeiros têm se instalado nesse terroir que vem surpreendendo o mundo do vinho, como a Global Wines (portuguesa dona da Santa Maria detentora das marcas: Rio Sol, Adega do Vale, Vinha Maria e Paralelo 8). Em 2015 a região foi considerada um importante polo produtor de vinhos brasileiros, ocupando cerca de 15% das vendas do mercado nacional. Tais números, somados à produção de vinhos no sul e em outras partes do Brasil, vem fazendo com que o país surja no contexto internacional como novo expoente vitivinícola do Novo Mundo.

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?


Angu

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São 1,3 milhão de litros nos 160 hectares plantados, cujas produções são de uvas Aragonez, Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah, Cabernet Sauvignon, Tempranillo, Moscatel, Chenin Blanc entre outras. Mesmo o Brasil sendo considerado um terroir de vinhos leves brancos espumantes, no Vale do São Francisco também há produção de rosés e tintos potentes que, além do consumo interno, são exportados para Portugal, Inglaterra, Holanda, Estados Unidos, Canadá, Japão. Finalmente, para você pensar um pouco sobre os vinhos do Brasil, se a qualidade dos vinhos brasileiros vem surpreendendo apreciadores pelo mundo afora, então porque não provar os vinhos do Brasil? Certeza que você irá se surpreender. Referências .Academia do Vinho. [http://www.academiadovinho.com.br/]. Acessado em março de 2017

Carta Capital. [https://www.cartacapital.com.br/revista/907/milagre-de-sao-francisco]. *Reportagem publicada originalmente na e .ção 907 de Carta Capital, com o título “Milagre de São Francisco”. Acessado em março de 2017 .Instituto do Vinho do Vale do São Francisco. [http://www.vinhovasf.com.br/]. Acessado em março de 2017

Jornal do Comercio. Sabor JC. Vinho do Novíssimo Mundo. [http://www2.uol.com.br/JC/sites/saborjc2007/vinhos.html]. Acessado .março de 2017

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Quais são as uvas do

São Francisco

e que vinhos são esses?

edi-

o em Angu

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Nov rev

carne de sol de picanha, nata, picles de palma, Chips de macaxeira e palma Vinicius Arruda Danilo Conforme 158 Angu


va geração de chefs nordestinos vela potencial gastronômico das

PANC

Por Paulo Machado e Monica Barizan

Conhecidas mais pelos seus efeitos medicinais, as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) começam a sair do anonimato direto para a mesa do Nordeste Angu

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Plantas “invisíveis” Algaroba, beldroega, as variadas espécies de palmas e frutos do mandacaru, mastruz, serralha, dente de leão, biri-biri, vinagreira, folhas de umbu, bredo e major gomes são algumas das plantas alimentícias não convencionais (PANC) mais conhecidas no universo do Sertão da região Nordeste. Elas nascem espontaneamente, e comunidades indígenas, por exemplo, fazem uso delas há anos. Mas plantas como o caruru, com textura parecida com o espinafre quando refogada, são praticamente invisíveis para nós, que temos olhos destreinados para reconhecê-las. Os maiores aliados para identificar as PANC e assegurar sua comestibilidade são os mateiros e a população local das regiões, transmitindo a cultura por meio da gastronomia. Angu

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Muito mais do que

um remédio Muitas das PANC do Nordeste são utilizadas em receitas para fins medicinais. A receita “leite ferrado”, de João Barreto, chef da região de Galante em Campina Grande (PB) é um exemplo de preparo realizado com uma PANC.

O mastruz é adicionado ao leite que é mergulhado numa panela com pedras superaquecidas e açúcar queimado, sobre o lume de brasas. O resultado é uma doce e energética bebida de sabor peculiar, muito usada para curar anemias e dores de estômago, além de trazer conforto aos adultos que tomavam mastruz com leite e se recordam da infância nos interiores de Pernambuco e Paraíba.

Juci melo

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do “Flor de Mandacaru”


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tilápia, feijão verde crocante, camarão, creme de oiti, flores de Bredo e quiabo e folhas de pitanga caipirinha de Jamelão e cachaça envelhecida na raiz de urtiga Rivandro França Claudemir Barros

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Conhecer para

valorizar É necessário valorizar e difundir o uso das plantas não convencionais, investir em técnicas produtivas e estimular cozinheiros a extrair os sabores dessas plantas, já que elas não são valorizadas a contento. Chefs do Nordeste também fazem uso das PANC, é o caso do grupo fervo, coordenado pela Chef Giovana Nacarato e que promove jantares e palestras com o tema.

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#UmbuPancs O grupo conta com nomes importantes da gastronomia pernambucana como o Chef Claudemir Barros do Wiella Bistrô e Rivandro França do restaurante Cozinhando Escondidinho. E neste ano um grupo de Chefs esteve em Petrolina para realizar o Festival #UmbuPancs, enaltecendo o delicioso fruto sertanejo e as plantas locais. Tudo isso é prova de que as

PANC chegaram ao universo gastronômico para ficar.

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Chefs Giovana Nacarato Thiago das Chagas Sopa de hibisco, pitanga e acerola, bolo de castanha de caju, sorbet de poejo, suspiros de umburana e flores de sabugueiro e manjericão.

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PANCs – a nova onda dos Com certeza você já passou por elas e nem sequer percebeu ou até mesmo as tirou do caminho e, consequentemente, de sua dieta. A partir de agora, pare, observe, identifique-as e em hipótese alguma, as descarte. Estamos falando sobre as plantas alimentícias não convencionais, ou PANCs como foram batizadas pelo biólogo e professor Valdely Ferreira Kinupp para se referir a todas as plantas que possuem uma ou mais partes comestíveis, sendo elas espontâneas ou cultivadas, nativas ou exóticas que não estão

Lambari-da-horta ou peixinho: folhas usadas em chás, pode também ser empanadas e consumidas como aperitivo.

Beldroega: pode ser consumida em saladas, refogada. Tem sabor ácido e crocante e, quando refogada, lembra o sabor do espinafre.

Capuchinha: suas flores são amarelas, vermelhas ou laranjas e suas folhas são muito nutritivas e seu sabor lembra o do agrião.

Trevo de três folhas: pode não dar sorte e ser facilmente encontrado e como o ruibarbo e folhas de beterraba, cacau, entre outros, possui ácido oxálico e não deve ser comido em grandes quantidades, pode ser venenoso.

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chefs brasileiros incluídas em nosso cardápio cotidiano. Estima-se que 10% da flora nativa brasileira sejam comestíveis, algo em torno de 4 a 5 mil espécies de plantas. Apesar de muitas delas sejam classificadas pela população em geral como “wervas daninhas”, muitas apresentam índices nutricionais iguais ou superiores às hortaliças, raízes e frutos que estamos habituadas a comer. Conheça algumas delas que estão sendo usadas por chefs brasileiros, mais especialmente os nordestinos da nova geração, em suas criações gastronômicas.

Caruru: suas folhas são comestíveis, especialmente refogadas. É encontrada especialmente nas regiões Sul e Sudeste do país e também em outros países da América Latina.

Chicória-de-caboclo: muito utilizada para condimentar pratos típicos da Amazônia, como o tacacá, mas que também pode servir como prato principal.

Salicórnia: com esta planta é possível produzir um fito-sal com baixo teor de sódio.

Língua-de-vaca: rica em cálcio, potássio, vitaminas, ferro e fósforo são utilizada como a couve.

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Bananeira: além da banana propriamente dita, esta planta tem outras partes comestíveis que são normalmente descartadas, como o coração ou umbigo. Vitória-régia: além de linda e única, também é chamada de endívia-do-rio. Das flores podemos fazer geleia, das sementes dentro dela, faz-se pipoca, já que tem sabor semelhante ao milho. Pode ser usada também na decoração dos pratos.

Jurubeba: seus frutos e flores podem ser usados para cremes, patês, conservas e chás.

Umbu: muito conhecido no nordeste, é utilizado em vitaminas, doces como a umbuzada, mousses, sorvetes e cremes.

Araruta: seu caule pode ser usado para fazer mingaus, pães e biscoitos.

Uvaia: árvore da Mata Atlântica com frutos bons para sucos além de apresentar atividades antiinflamatória, analgésica, antifúngica, antipirética, hipotensiva, antidiabética e antioxidante.

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Ora-pro-nóbis: muito popular em Minas Gerais, possui vitaminas, minerais e alto teor proteico, cerca de 25% de sua composição. É conhecida popularmente como o “bife dos pobres”.

Jerivá: palmeira de “coquinhos” adocicados.

Sete-capotes: semelhante a uma goiaba, com polpa doce.

Cereja brasileira: frutos muito semelhantes em sabor e cor com a cereja nativa da Europa.

Lírio do brejo: Suas flores são comestíveis e inclusive podem ser consumidas cruas.Sua raiz espessa e rosada, apesar de não ser muito picante, pode substituir o gengibre em diferentes receitas. Ainda é rica em fécula, podendo ocorrer sua extração e posterior utilização na indústria alimentar.Suas folhas podem ser utilizadas para assar carnes e peixes, enrolando-as na carne e colocando-as sobre as brasas. https://viveirosabordefazenda.wordpress.com/2014/11/19/pancs-plantas-alimenticiasnao-convencionais/

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Garoto da capa Chef Marcelo Dallaverde cria prato-conceito inspirado no

mandacaru Por Eduardo Duó

Convidado pela ANGU para desenvolver um prato inédito inspirado no mandacaru, o chef Marcelo Dallaverde aceitou o desafio e criou o surpreendente

LUAR DO SERTÃO

Marcelo Dallaverde tem 28 anos, mas trabalha em cozinha profissional desde os 19. Ficou conhecido nacionalmente por sua participação no último MasterChef. Para muitos, a segunda colocação no reality da Band foi uma injustiça. Durante o programa, o jovem chef mostrou uma incrível capacidade criativa, amplo domínio técnico, agilidade e sangue frio para encarar as provas, os chefs e as câmeras.

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Prata da casa, Marcelo cursou Gastronomia na FMU, onde se formou em 2010. Trabalhou com chefs franceses estrelados no Brasil, como Emanuel Bassolei, Pascal Valero e Erick Jacquin. Mas sua meta mesmo era a cozinha de vanguarda, que foi encontrar no extinto Clos de Tapas. Em seguida, foi para Portugal e estagiou em um restaurante 2 estrelas Michelin, o Belcanto,onde tornou-se chefe de partida.

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Prato inspirado n

retrata a seca, a água e a es Da Redação

Processo criativo de

“Luar do Sertão”

Para criar o prato “Luar do Sertão”, Marcelo Dallaverde se inspirou principalmente na flor do mandacaru, que ele considera um “símbolo de resistência, delicadeza e esperança”.

Com o prato, o chef procurou retratar o sertão a partir de três elementos: a terra, o céu e o próprio mandacaru.

Mandacaru conceitual Dallaverde encontrou o mandacaru numa loja de paisagismo, na av. Bandeirantes, em São Paulo. Mas para compor o prato, o chef preferiu utilizar ingredientes similares aos do cacto na textura e aparência, como o chuchu e o maxixe, usando o mandacaru como referência conceitual e criativa.

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no mandacaru

sperança sertaneja

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ANATOMIA DE UM PRATO Para lembrar o design original do cacto, mandacaru in natura com flor de cravo (similar à flor original, que não foi encontrada no mercado)

Para lembrar a terra do sertão, farofa de pão italiano com alho poró 176 Angu


Para reproduzir o mandacaru, uma flor de chuchu com casca de maxixe desidratado e frito

A noite foi simbolizada através do chuchu confitado com cinzas de alho poró e quiabo salteado Angu 177


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Mandacaru

a planta-símbolo

da caatinga Da Redação

Do solo árido da caatinga, o cacto mandacaru alimenta gado, pássaros e sertanejos e ganha espaço como ingrediente para inusitadas criações gastronômicas Angu

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Flores brancas de uma só noite O mandacaru (Cereus jamacaru), ou cardeiro, planta popularizada em todo o Brasil pela letra da música “Xote das Meninas”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, é uma cactácea nativa do Brasil, cujas floradas brancas que duram uma só noite – desabrocham ao anoitecer e murcham pela manhã – anunciam “o fim da seca” nas regiões mais áridas, em especial na Caatinga nordestina.

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Mil e uma utilidades Abundante nas áreas rurais da Caatinga brasileira, o mandacaru, essa planta espinhenta que alcança até seis metros de altura e sobrevive às secas devido à sua grande capacidade de captação e retenção de água, é importante para a restauração de solos degradados, serve como cerca natural e alimento para os animais, sobretudo nos períodos de longa estiagem.

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Alimento para todo mundo

acarajé de mandacaru

As flores brancas e os frutos do mandacaru, de cor ros sementes pretas, servem de alimento também para as como o periquito-da-caatinga e a gralha-cancã. Como que não faz sombra e depende dos seus espinhos par que perambulam entre suas touceiras em formato de energética bebida de sabor peculiar, muito usada para além de trazer conforto aos adultos que tomavam ma nos interiores de Pernambuco e Paraíba.

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sáceo-violeta, polpa branca e pequenas s pessoas e para as aves da Caatinga, o mandacaru não tem folhas, é planta ra se defender dos animais herbívoros candelabro.O resultado é uma doce e a curar anemias e dores de estômago, astruz com leite e se recordam da infância

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Perigo de extinção A espécie demorou milhões de anos para se adaptar ao Semiárido brasileiro e, daí, para servir de planta ornamental no Brasil inteiro. Sua existência, porém, encontra-se vulnerável pelo desmatamento das áreas de Caatinga. A extinção do mandacaru representará uma perda para o ambiente, para a agricultura, para a economia e para a cultura do povo nordestino.

XOTE DAS MENINAS Luiz Gonzaga e Zé Dantas “Mandacaru, quando flora lá na seca É o sinal que a chuva chega no sertão Toda menina que enjoa da boneca É sinal que o amor já chegou no coração Meia comprida, não quer mais sapato baixo Vestido bem cintado não quer mais vestir jibão”.

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CACHAÇA NA ALTA GASTRONOMIA

Por Fabricio Pereira Korasi

Improvável e inimaginável até há pouco tempo, a harmonização da cachaça com comida ganha espaço na alta gastronomia

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Do balcão dos botecos para as mesas dos restaurantes No universo da alta gastronomia, uma das formas de completar a experiência da refeição é a harmonização do prato com uma bebida. A bebida por excelência escolhida para esse objetivo sempre foi o vinho. Mais recentemente a cerveja também vem ganhando espaço nesse universo da harmonização. E é dentro desse ambiente restrito e exclusivista que a cachaça começa a mostrar suas garras – e potencialidades gastronômicas. Profissional expert na bebida, o cachacista vem demonstrando que é possível, sim, Parte dessa virada se deve ao harmonizar pratos nacio- surgimento de um novo personagem nais e internacionais com no mundo da cachaça: o cachacista – nosso destilado preferido. ou cachacier.

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Cachaçogastronomia Um desses cachacistas mais atuantes do mercado, Jairo Martins cunhou um termo para apresentar essa harmonização entre comida e cachaça: a Cachaçogastronomia, que consiste em usar os variados tipos de cachaça em preparos e harmonizações.

Segundo Martins, “O objetivo não é estabelecer regras e di-

retrizes inflexíveis e cartesianas, mas sim definir alguns princípios de combinações de sabores e atributos para que sejam exploradas, ao máximo, as possibilidades de apreciação da bebida e das iguarias, potencializando os valores de cada um”.

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Cinco cachaças Também conhecido como sommelier de cachaça, os cachacistas buscam harmonizar almoços e jantares, partindo do aperitivo até o digestivo. Chegam a usar até cinco tipos de cachaças, iniciando com as brancas de teor alcoólico mais baixo e evoluindo para as mais envelhecidas e encorpadas, de teor alcoólico mais elevado. Muito semelhante ao que se faz com vinhos. Esse novo profissional é responsável por conhecer a parte da produção agrícola, química e comercial.

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em um único jantar A cachaça brasileira proporciona um grande potencial de harmonização pela enorme variedade de madeiras que são usadas nos processos de envelhecimento da bebida, que irão proporcionar diferentes tipos de cor e gosto.

O que se busca segundo os cachacistas é o equilíbrio, harmonia e realce da combinação comida-cachaça em uma única experiência, potencializando o prazer gastronômico. Esse equilíbrio pode ser feito observando-se o peso da comida versus o corpo da bebida, promovendo sensações e realces, relacionando a melhor parte dos gostos da bebida e da comida. Para se harmonizar cachaça com comida é preciso levar em conta todos os sentidos, pois até a coloração variada da bebida ajuda nesse processo. O cachacier Maurício Maia ressalta que essa harmonização deve ser feita com parcimônia, pois outros elementos dos acompanhamentos devem ser exaltados e se sobrepor ao álcool, deixando outras características do destilado evidentes, mas sem “roubar” a cena do foco principal da experiência: a comida.

Segundo Maia, “é possível combinar a cachaça

até com pratos delicados. Cachaças mais leves e neutras, envelhecidas em madeiras como jequitibá e amendoim, vão bem com ceviche. A madeira combina com o toque cítrico do prato e ressalta a característica do peixe”.

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Acompanhe harmonizações possíveis segundo Jairo Martins : Aperitivos: Caldinhos, ostras ao limão, canapés de salmão e torresmo frito harmonizam com cachaça branca, leve, ligeiramente ácida e resfriada. Caipirinha ou batidas de frutas poderão ser servidas nessa fase da refeição. Entradas: Saladas, vinagrete de frutos do mar, consommés e sopas combinam com cachaças brancas, de médio corpo e com média acidez, levemente resfriadas. Primeiro prato: Peixe, camarão, lagostas, risotos, bacalhau e aves harmonizam com cachaças brancas mais encorpadas e de baixa acidez, servidas na temperatura ambiente. Prato principal: Carnes vermelhas, caças de pena, caças de pelo, assados, caldeiradas, cozido e feijoada combinam com cachaças envelhecidas, aromáticas, tânicas e de corpo leve, servidas na temperatura ambiente. Sobremesas: Doces, bolos, tortas, sorvetes, salada de frutas, queijos e frutas harmonizam com cachaças envelhecidas, frutadas e de médio corpo, servidas na temperatura ambiente. Digestivos: Café, chás e charutos combinam com cachaças encorpadas, envelhecidas pelo menos três anos em madeira que lhes confere fortes notas de especiarias e riqueza de aromas. Licores de cachaça poderão ser servidos.

Referências Bibliográficas 5 dicas para harmonizar comidas e bebidas. Disponível em http://www.huffpostbrasil.com/tania-nogueira/5dicas-para-harmonizar-comidas-e-bebidas_a_21669696/. Acessado em 09/04/2017 Alquimia de sabores. Disponível em http://gq.globo.com/Prazeres/Bebidas/noticia/2014/04/alquimia-de-sabores. html Acessado em 09/04/2017 Cachaçogastronomia, cozinhar e harmonizar com cahcaça. Disponível em http://www.mapadacachaca.com.br/ artigos/cachacogastronomia-cozinhar-e-harmonizar-com-cachaca/ Acessado em 10/04/2017. Combine sua bebida favorita com refeições e acompanhamentos. Disponível em http://www.ilbarista.com.br/ noticias/combine-sua-bebida-favorita-com-refeicoes-e-acompanhamentos-id2.html Acessado em 11/04/2017. Harmonização de cachaça e pratos variados. Disponível em https://www.bebidasfamosas.com.br/blog/ harmonizacao-de-cachaca-e-pratos-variados/ Acessado em 08/04/2017.


A “REVOLTA D

uma história que a histó

Com luta arm a “revolta movime 196 Angu


DA CACHAÇA”

ória não gosta de contar Por Ricardo Maranhão

mada, tomada do poder e uma execução cruel, a da cachaça”, em 1660, no Rio, foi o primeiro ento revolucionário anti-colonialista do Brasil Angu

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CACHAÇA e Os jovens que hoje veem com satisfação garrafas de belos rótulos de cachaça, sendo vendidas e exportadas do Brasil para o mundo, não fazem ideia da carga de repressões e preconceitos que essa nossa bebida deliciosa sofreu das elites e das autoridades durante séculos, desde o início do Brasil. Preconceitos que ainda subsistem: a maioria dos historiadores, e dos nossos intelectuais, quando falam e escrevem nos livros didáticos sobre os “movimentos nativistas” que precederam as lutas

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PRECONCEITO pela Independência do Brasil, não gostam de admitir que o primeiro movimento revolucionário anti-colonialista do Brasil, com direito a luta armada, tomada do poder e uma execução cruel, foi a Revolta da Cachaça, de 1660/1661. Esse movimento que eclodiu no Rio de Janeiro, em primeiro lugar era claramente anti-colonial, pois enfrentou o pilar central do mercantilismo colonialista: o monopólio comercial, com as permissões, proibições e taxas impostas pela metrópole.

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DESDE O COMEÇO Fabricar e consumir cachaça é uma rotina que tem quase a mesma idade do Brasil, embora seja uma lenda dizer que foram os escravos brasileiros que inventaram a “branquinha”. Ela veio de

Portugal, descoberta junto com o início do uso do alambique, mas os lusitanos não lhe deram importância: preferiram o gosto do destilado de mosto do vinho a ‘bagaceira”. Mas quando a colonização açucareira e o alambique chegaram ao Brasil, a coisa mudou muito: a “geritiba” caiu logo no gosto do povo e dos escravos (estes ganhavam uma dose diária na época da safra para trabalhar mais); o mais importante, porém, é que ela virou moeda de troca na costa da África para a compra de escravos.

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VINHO X EIS A QU Montar, nos primeiros tempos da Colônia, um engenho de açúcar era caro, difícil, com muitos equipamentos importados e muitos negros para trabalho. Mas montar uma engenhoca pra fazer “pinga” era fácil e barato, e na vida rural muitos brasileiros passaram a fabricála, apreciando e espalhando cada vez mais seus sabores. Os comerciantes portugueses, assentados nas práticas exclusivistas da Metrópole, logo reclamaram disso: precisavam vender bagaceira e vinho, não admitiam uma concorrente tão boa e barata. As autoridades tentaram várias vezes proibir, inutilmente.

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X PINGA UESTÃO! Só que a partir de 1647 a barra do monopólio português passou a pesar mais: um decreto real, regulamentado em 1649, proibiu a fabricação e o comércio da “cangibrina”, permitindo apenas a usada para intercâmbio de escravos. Como de hábito, o decreto virou letra morta, mas o empenho monopolista cresceu a tal ponto que

em 1659 foi decretada a destruição de todos os alambiques brasileiros e dos navios destinados ao comércio da “birita”.

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A REVOLTA NO RIO DE JANEIRO Algumas autoridades tentaram por em prática a arbitrária política proibitiva, com pouco sucesso. Outras usaram de artifícios autoritários no mesmo sentido: no Rio de Janeiro, o governador Salvador Correia de Sá e Benevides aproveitou o clima tenso para impor novas taxas e impostos sobre os produtores de “parati”. Os fazendeiros dos atuais municípios de São Gonçalo e Niterói, e vários outros da região norte da Baía da Guanabara, se rebelaram abertamente contra as taxas. Depois de alguns meses de reuniões na fazenda de Jerônimo Barbalho, líder dos revoltosos, estes não vacilaram: na madrugada de 8 de

novembro de 1660 atravessaram armados a baía, convocando o povo da cidade pelo toque de sinos e se reuniram diante do prédio da Câmara. Mobilizando 112 senhores de engenho, exigiram o fim da cobrança dos impostos, e a devolução do dinheiro já arrecadado.

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O PODER PELA

CACHAÇA O governador interino Tomé Correia de Alvarenga (Salvador de Sá estava ausente) não ofereceu resistência, e foi destituído e preso.

Além de saquear as casas das famílias Sá e Correia, os revolucionários tomaram o poder. Depois de algumas vacilações e tentativas, elegeram o líder Jerônimo Barbalho como governador. Radical, Jerônimo, além de combater os representantes do governo português e os militares, perseguiu também os jesuítas, aliados de Salvador de Sá. Conseguiu, assim, uma forte oposição, enquanto o governador efetivo organizava a contra-insurreição. Com apoio dos navios da Companhia de Comércio lusitana, das suas forças e barcos com que combatera na Costa africana, Salvador de Sá conseguiu também o valioso apoio de tropas de mamelucos paulistas, depois conhecidos como “bandeirantes”.

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A RESSACA DA REVOLTA Assim, em 06 de Abril de 1661 o Rio de Janeiro amanheceu fortemente cercado, e os revolucionários não tiveram como oferecer resistência. Presos, os líderes da Revolta foram enviados a Portugal para julgamento.

Mas o chefe Jerônimo Barbalho foi executado, decapitado e sua cabeça pendurada em um poste no pelourinho da cidade. A Revolta, apesar de derrotada, deixou uma forte sensação entre as autoridades do Reino de que era muito difícil proibir a “marvada”. A regente Luisa de Gusmão, naquele mesmo ano liberou a produção de cachaça para exportação à África e para uso local.

Mas como o comércio no Brasil continuou crescendo, o Reino finalmente o liberou por completo a partir de 1695. Nesse Não é à toa que, ao longo ano, já se produziam, só de nossa terra e nossa contando as atividades história, a cachaça já tenha não-clandestinas, quase 400 denominações 689 pipas (barril de populares. 450 litros) ao ano (ou cerca de 310 mil litros) espalhados por todo o Brasil.

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Cachaça

companheira de mu

Restaurateur

Ivo Ribeiro abre seu baú de recordações e relata seu relacionamento afetivo com as

marvadas

que marcaram sua vida 210 Angu


uitas horas

por Ivo Ribeiro

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Rebeldia com

cachaça

Quando era bem mais jovem, cabeludo, rebelde, magro, gostava de colar em qualquer boteco pé sujo da cidade, comer um ovo colorido, uns torresminhos ou aqueles mais que suspeitos miúdos que ficavam boiando na vitrine, e tomar uma caninha pra dar uma animada. Cavalinho, Riopedrense, Tatuzinho, Três Fazendas eram as mais comuns.

Nesta época, anos 80, Velho Barreiro e 51 eram chiques, já vinham em embalagens diferen-

ciadas, maiores que as de 600 ml, com fechamento mais eficiente, que controlava melhor a dosagem.

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51 e Velho Barreiro

em grande escala 214 Angu


A 51 foi lançada em 1951, em Santa Cruz das Palmeiras, vizinha de Pirassununga, por dois irmãos palmeirenses que a batizaram inicialmente de Palmeiras 51, em homenagem ao título do Palestra deste ano na Taça Rio; mas a origem do nome parece ser mesmo devido ao ano de nascimento da caninha, que se consagrou como, mas nem sempre é Já a Velho Barreiro é mais exatamente uma boa ideia.

antiga, fundada por imigrantes italianos no começo do século 20 em Piracicaba.

Os rótulos iniciais ainda levavam a marca Tatuzinho, sendo estes lotes provavelmente os primeiros de garrafas de cachaça comercializados no país em larga escala. Claro que os alambiques nos rincões do Brasil já produziam seus cascos artesanais há muito tempo, mas o consumo era mais local e restrito, pouco chegando aos grandes centros.

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Cachaça

ideológica No período efervescente da política pós-ditadura – Diretas Já, Tancredo, Sarney, Titãs, Cazuza, Malvinas – não tinha ideia do que era cachaça artesanal, nem de como eram feitas estas aguardentes mais triviais que tomava costumeiramente, cujo ato tinha sempre um ritual: dava um pouco pro santo, batia o copo no balcão e fazia cara feia, mas encarava como sendo o normal da bebida, que descia rasgando.

“Pinga é assim mesmo, coisa de macho”

Eu começava a estudar numa importante universidade, e, compartilhando um pouco da ideologia e estética vigentes, negava todo comportamento que se assemelhasse ao ‘burguês” ou ao comportado, queria mais era ser marginal, alternativo, diferente; então nada mais coerente do que as pingas, os torresmos e os ovos de cor. E

havia, claro, a questão econômica, uma dose de cachaça custava muito pouco, seis, sete vezes menos que uma garrafa de cerveja, e dava barato, deixava doidão, o que era outro objetivo inevitável.

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Da pinga pra

cachaça

Doses depois, meu paladar se apurou, e hoje, depois de boa litragem, só numa situação de muita esbórnia ou desespero, tomaria uma ou algumas doses de 51 ou Velho Barreiro (aquelas mais antigas acho que nem existem mais). Mas que foram companheiras em

determinado período da minha vida, isso elas foram, e por isso tenho respeito e até um certo apego afetivo com essas canas bravas, mesmo recomendando e bebendo outras.

Dos anos 80 pra cá a situação da cachaça mudou muito, ela cresceu sem perder a sua identidade democrática e popular, saiu só dos botecos mais simples e hoje se encontra em todo lugar. Todo bar e restaurante que se preza tem pelo menos alguns rótulos de qualidade. Mas ainda existe uma pon-

ta, às vezes quase um corpo inteiro, de preconceito contra a mais brasileira das bebidas, assim como contra a pimenta, contra a rapadura, contra a farinha de mandioca, contra tudo que tem uma raiz popular e nacional.

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Barreira

cultural

Um dia no restaurante Tordesilhas um cliente reagiu indignado quando lhe foi oferecida uma deliciosa e caseira conserva de pimentas: “Eu não sou baiano pra comer pimenta.” A frase poderia ter sido: “Eu não sou cachaceiro pra beber cachaça”, ou algo equivalente. Por incrível que pareça, ainda hoje para boa parte dos bem nascidos ou bem situados economicamente, o fato de uma bebida, uma comida, uma prática vir de hábitos populares é como uma doença contagiosa, “coisa de pobre”. Vamos combinar que pensar deste jeito é que é pobre e deve ser doença das bravas, além de revelar grande ignorância. Por outro lado vejo a galera, a moçada mais nova, tomando muita birita ruim, vinho doce, cheio de química, vodka batizada ou de terceira, whisky vagabundo. E isto, definitivamente, não é legal. O Ministério da Saúde adverte, mas eu só recomendo: faça um investimento em você mesmo, conheça, prove, beba cachaça artesanal, tem algumas bem acessíveis no mercado. Mas tome de forma moderada, se puder, se não puder enfie o pé na jaca, só de vez em quando, claro!

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Para finalizar algumas definições e curiosidades sobre a cachaça: Cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de %38 vol. a %48 vol., obtida pela destilação do mosto fermentado da cana-de-açúcar. A cachaça é produzida no Brasil desde o século XVI. Os principais pólos produtores foram Paraty, no litoral do Rio de Janeiro; Januária e Salinas, em Minas Gerais. Hoje se produz boas cachaças em todo Brasil. Diferença entre cachaça artesanal e cachaça industrial: a cachaça artesanal é feita geralmente em pequena escala, em alambiques de cobre e a fermentação é natural, sendo separada e aproveitada somente a parte nobre e pura da cachaça (o coração). A cachaça industrial é produzida em grande escala, são destilarias que produzem em coluna de inox, na fermentação são usados produtos químicos, e não é separada a parte melhor das partes piores, é tudo misturado. Por isso, sensorialmente, ela é mais agressiva, geralmente queima a garganta.

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Um dos diferenciais da cachaça é usar diversas madeiras no seu descanso ou envelhecimento, boa parte delas nativas do Brasil. A cachaça é uma das poucas bebidas no mundo que pode ser apreciada pura, descansada em barris ou envelhecida. As principais madeiras para este uso são: Carvalho, Grápia, Ipê, Jequitibá, Bálsamo, Amburana, Castanheira, Amendoim, Freijó, Ariribá, Sassafraz. A caipirinha é um coquetel brasileiro feito com cachaça, limão, açúcar e gelo. E também é o único coquetel brasileiro registrado (desde 1994) na Associação Internacional de Bartenders (IBA). Ela deve ser feita por maceração, nunca em coqueteleira ou batida em mixer, sempre com o socador apertando delicadamente o limão e o açúcar, depois são acrescentados o gelo e a cachaça. O tipo de cachaça mais indicado para a caipirinha é a branca, mas há quem goste de usar as envelhecidas também. Feita com vodka o nome é caipiroska, não caipirinha. A cachaça é o terceiro destilado mais consumido do mundo. São 4.000 marcas disponíveis no mercado e 40.000 produtores (a grande maioria pequenos). Fonte: Instituto Brasileiro de Cachaça (Ibrac)

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OS MELHORES

TCCs

DO CURSO DE GASTRONOMIA do segundo semestre de 2016 Muitos TCCs apresentados no segundo semestre de 2016 superaram nossas expectativas. Mas três projetos em especial se destacaram pela qualidade da pesquisa e originalidade do tema: MANDACARU – SABORES POSSÍVEIS, de Ana Joanice de Sant’ana ALACOZINHA – COZINHA INFANTIL SEM GLÚTEN E SEM LACTOSE, de Márcia Maria Martins REAPROVEITAMENTO DE ALIMENTOS, de Claudineia de Souza Cabana

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P


Prêmio

âmara Cascudo

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“MANDACARU – SABORES POSSÍVEIS” Ana Joanice de Sant’ana Cacto típico da caatinga, o mandacaru serviu de inspiração para um criativo livro de receitas

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Cacto criativo No livro de receitas “MANDACARU – SABORES POSSÍVEIS”, Ana Joanice de Sant’ana, faz uma pesquisa detalhada sobre o cacto símbolo da caatinga, estudou sua composição nutricional, formas de cultivo e preparo. No final, apresenta vinte receitas originais e criativas feitas a partir da planta.

Mandacaru do quintal Para executar as receitas, Ana cultivou um mandacaru em seu quintal. Depois de preparar a planta, tirando seus espinhos e sua película fibrosa, Ana testou o ingrediente utilizando várias formas de cocção. Assou, fritou, salteou, branqueou e ensopou.

Das entradas às sobremesas Para as receitas, a autora optou por misturar o mandacaru a ingredientes tipicamente brasileiros como quiabo, canjiquinha e coco. O resultado, surpreendente, revelou um ingrediente pouco utilizado na gastronomia e com inúmeras possibilidades. Inclusive surpreendentes sobremesas.

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“ALACOZINHA – COZINHA INFANTIL SEM G Cozinhar para criança -e com criança- não é fácil. Quando não se pode utilizar glúten nem lactose, a tarefa fica ainda mais complicada. “Aprenda a colocar uma pitada de encanto ou uma colher de magia na sua vida. E descubra que essa parte da casa é fábrica de sonho que se conquista”

Projeto multimídia Mais do que um livro de receitas, Márcia desenvolveu um projeto multimídia. Além do produto gráfico, ela também produziu um DVD de qualidade profissional com animação computadorizada, que encanta adultos e, principalmente, crianças - seu público-alvo.

Crianças com a mão na massa Além de propor receitas criativas e deliciosas sem glúten e sem lactose para crianças, a pesquisadora formatou o projeto com o objetivo claro de levar as crianças à cozinha. O resultado não deixa dúvidas. Depois de ver o livro e assistir à animação, o destino é um só: a cozinha!

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GLÚTEN E SEM LACTOSE” Márcia Maria Martins

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A partir do reaproveitamento das sobras da merenda escolar, projeto inovador transformou a qualidade da alimentação em uma creche municipal de São Paulo. Desconforto com o desperdício Auxiliar de cozinha numa creche conveniada à Prefeitura de São Paulo, Claudineia nunca se conformou com o desperdício que testemunhava no seu dia-a-dia. Da comida que ia para o lixo surgiu uma ideia inovadora: por que não otimizar compras e processos para evitar desperdícios e ainda melhorar a qualidade da alimentação das crianças?

Resistência inicial Quando lançou a ideia, a jovem cozinheira logo percebeu que mudar atitudes não é nada fácil. Persistente, não desistiu. Insistiu tanto que a deixaram trabalhar. Os resultados saltaram aos olhos. Tudo passou a ser reaproveitado, cascas, talos, e o volume do lixo diminui em impressionantes 90%.

Comunidade unida O pulo do gato veio com uma horta comunitária, que uniu toda a comunidade escolar: alunos, professores, funcionários. Da horta saem alimentos que antes nem entravam no cardápio, como legumes e hortaliças. A ideia deu tão certo que hoje Claudineia a está implantando em outras três unidades educacionais. 230 Angu

REAP


PROVEITAMENTO DE ALIMENTOS Claudineia de Souza Cabana

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