Elias e David Salgado
História e Memória Judeus e Industrialização no Amazonas
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Copyright © 2015 by Elias e David Salgado Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998 “História e memória: Judeus e industrialização no Amazonas” Autores Elias e David Salgado Coordenação editorial Elias Salgado Adaptação, copidesque e revisão de texto Tova Sender Projeto gráfico, arte e diagramação Eddy Zlotnitzki Este livro é parte do projeto Judeus na industrialização do Amazonas EQUIPE: Coordenação: Elias e David Salgado Entrevistadores: David Salgado, Dina Paula Santos Nogueira e Elias Salgado Fotógrafo: Ricardo Oliveira Cinegrafista: Valério Bezerra dos Santos Jr. – Close Digital CAPA: Refinaria Isaac Sabbá (REMAN), construída pelo empresário Isaac Benayon Sabbá em 1957. Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Salgado, Elias História e memória : judeus e industrialização no Amazonas / Elias e David Salgado. – Rio de Janeiro : Amazônia Judaica, 2015. Bibliografia. ISBN 978-85-918755-0-4 1. Depoimentos 2. Entrevistas 3. Industrialização – Amazonas - História 4. Judeus – Amazonas – História I. Salgado, Elias. II. Título 15- 00875
CDD – 305.892408113
Índices para catálogo sistemático: Participação judaica na industrialização : Amazonas : Estado : História e memória 305.892408113 2015 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA AMAZÔNIA JUDAICA www.amazoniajudaica.org portal200anos@gmail.com
Dedicatórias Dedicamos este trabalho à nossos avós, Lázaro Salgado ( Eliezer Elmaleh) e Sime Alves (Elbaz) Salgado, de abençoada memória, que cruzaram o mar, vindos das longíquas terras de Marrocos e por aqui aportaram para deitar suas longas raízes, trazendo na bagagem, milhares de anos de tradição e cultura. À nosso amado pai, David Salgado z”l. À nossa adorada mãe, Vidinha; a nossos queridos irmãos, Alegria, Jamila, Eliezer, Salomão e Moisés. Às nossas mulheres virtuosas, Simone e Mariza e a nossos maiores tesouros, nossos filhos: Tamara e Luna; Ishai, Uriel e Sime.
Também o dedicamos com carinho, à nossa terra natal e à nossa tão querida e saudosa Kehilá de Manaus, onde tudo começou para nós e lugar no mundo de onde vem e onde sempre estará nossa querência e essência. E à honrada memória do Prof. Samuel Benchimol, mestre inspirador e pioneiro nos estudos da presença judaica na Amazônia. Assim como à todos os milhões de imigrantes e seus descendentes, que ajudaram a construir esta complexa e apaixonante nação chamada Brasil.
Elias e David Salgado
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ÍNDICE PREFÁCIO
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A TÍTULO DE INTRODUÇÃO
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1ª PARTE: DO UNIVERSO DA HISTÓRIA
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2ª PARTE: DO UNIVERSO DA MEMÓRIA – (ENTREVISTAS / DEPOIMENTOS):
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SAUL BENCHIMOL
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MOYSÉS BENARRÓS ISRAEL
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FRANK BENZECRY
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MOISÉS SABBÁ
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JAIME BENCHIMOL
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PREFÁCIO
Q
uando fui surpreendido pelo convite dos irmãos Elmaleh ( Salgado) para prefaciar um livro sobre o papel dos judeus na industrialização do Estado do Amazonas, imediatamente recorri a algumas obras sobre a economia local e seus desdobramentos. Mas quando tive em minhas mãos o texto do livro `História e Memória, judeus e industrialização no Amazonas`, e me debrucei sobre as trajetórias descritas, decidi imediatamente abandonar as fontes nas quais buscava embasamento, e me deixei levar por aqueles sinceros e emotivos relatos. E percebi então que esta nova iniciativa destes incansáveis irmãos teria, por si só, muito a nos dizer. Iniciemos então pelo título principal do livro: História & Memória. Este título remete a uma discussão antiga, mas ainda muito recorrente no âmbito acadêmico, principalmente dentre os historiadores. O que seriam as fontes históricas? Somente documentos e relatos oficiais? Ou os relatos de outros setores da sociedade, e suas documentações quase nunca citadas de forma oficializada não teriam também valor histórico? A construção histórica ou da memória de determinados setores da sociedade, nem sempre tão evidentes, não contribuiriam também para um entendimento mais acertado de determinado tempo histórico e sua contextualização? Nesta discussão cabe também ressaltar que muitos grupos sociais tiveram sua história escrita por pesquisadores externos. Porém, com a revisão do fazer histórico e antropológico, muitas vezes os próprios nativos passaram a escrever suas próprias narrativas, acreditando que estas seriam mais legitimas, do que a maneira como estes grupos
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foram previamente, ou muitas vezes oficialmente representados. Seguindo estes passos este trabalho minucioso não se ateve somente em contabilizar quais os produtos resultantes deste processo de industrialização. Não ficando restrito a quantos barris de petróleo foram produzidos, quantas arrobas de castanha ou de borracha foram exportadas. A história e/ou memória da implantação da indústria no Estado do Amazonas é contada de forma humana, dando voz e emoção, carne e osso à narrativa dos protagonistas judeus na construção deste processo. Também através da construção desta narrativa podemos ter um longo apanhado da história do Estado do Amazonas, que quase sempre está relegada a um plano secundário no âmbito da historiografia nacional. Os discursos dos interlocutores remetem desde a chegada dos primeiros judeus marroquinos encarregados de comercializar os produtos manufaturados ingleses por toda bacia do rio Amazonas, descrevendo assim a fase extrativista que culminou no Ciclo da Borracha. E as narrativas seguem descrevendo as adversidades dos primeiros imigrantes, os surtos de febre amarela que dizimavam vilas inteiras, a quebra do ciclo gomífero, o longo período de crise econômica, o êxodo de alguns em busca de melhores oportunidades, a permanência de outros que persistiram em suas atividades com produtos amazônicos. E no correr da história e da memória destas famílias surgem os usos e costumes de uma Manaus que não existe mais. Toda essa riqueza de informações da vida cotidiana do inicio do século XX nós é regalada de brinde ao acompanharmos
a trajetória deste processo de industrialização. As rádios, os clubes de recreação e bailes da tradicional família manauara, o carro alegórico da fábrica de cerveja que era o mais enfeitado do carnaval, ou ainda, lembranças sombrias como o surgimento do Movimento Integralista em Manaus, e a disseminação de violentas campanhas antissemitas, reflexo de um ressentimento profundo por conta do sucesso econômico e intelectual de alguns destes judeus que davam os primeiros passos para a implantação da indústria no Amazonas. Como o caso de Isaac Sabbá, um homem descrito como de estatura pequena, mas de um empreendedorismo de longo alcance. Que por conta de sua desenvoltura e diversidade na área dos negócios, que incluía desde a fabricação de pregos, preservativos para a Johnson&Johnson, e até mesmo a criação de uma usina de petróleo e gás liquefeito, amealhava a antipatia de muitos, mas também fora reconhecido internacionalmente pelo seu empreendedorismo como o Barão de Mauá do Amazonas. Ou ainda, Samuel Benchimol que venceu o jornalista José Lindoso em uma acirrada disputa pela Cátedra de Economia Política da Universidade de Direito do Amazonas. Restando somente ao oponente apoiar-se no antissemitismo e nas ideias integralistas, para desqualificar Benchimol, já que não conseguira superá-lo intelectualmente. Estes são alguns exemplos muito ilustrativos de duas personalidades judaicas que não somente deram os primeiros passos para a industrialização do Estado do Amazonas, mas souberam principalmente compreender o universo amazônico e suas potencialidades, assim como, conectar a Amazônia com outros mercados, a pesar da falta de estrutura e das longas distâncias. O livro se encerra na década de setenta do século passado, descrevendo a implantação da Zona Franca de Manaus, no intuito de gerar novas oportunidades e tentar consolidar um parque
industrial na região. No entanto, o livro não termina dessa forma, somente descrevendo a saga de sucesso de grupos comerciais judaicos na implantação da indústria no Estado do Amazonas. O último depoimento contido no livro traz uma análise lúcida, que foge aos conteúdos apologéticos e celebrativos que muitas vezes recheiam estas publicações. Ressaltando primeiramente que a industrialização do Estado do Amazonas é realmente pequena se comparada a outros estados brasileiros, e que embora a história do comércio e da indústria amazonense se misture a história e a memória de muitas famílias judaicas, os judeus não foram os únicos participantes deste processo, que também foi protagonizado por outros grupos étnicos. Ressaltando ainda, uma certa preocupação nos rumos que a industrialização irá tomar futuramente no Amazonas, para que o Estado não permaneça como um grande parque de montagem que pode a qualquer momento tornar-se obsoleto. Portanto senhores leitores, recomendo a todos vocês que se deleitem com este pequeno livro, que nos traz um conteúdo diverso e inusitado. Para os que já conhecem ou fizeram parte desta história, fica então o legado da memória. Para os que ainda não conhecem este lado tão particular da história do Brasil, permitam então que estas memórias convertam-se também em fatos históricos. Tenham todos, uma excelente leitura.
Wagner Bentes Lins, Antropólogo. Autor da tese de doutorado pela USP, “A mão e a luva”: judeus marroquinos em Israel e na Amazônia; similaridades e diferenças na construção das identidades étnicas
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A TÍTULO DE INTRODUÇÃO
“O passado é, por definição, um dado que coisa alguma pode modificar. Mas o conhecimento do passado é coisa em progresso, que ininterruptamente se transforma e se aperfeiçoa.” (Marc Bloch, in “Introdução à História”)
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presente trabalho tem como objeto central retratar, sob a perspectiva da História e da memória, a participação do elemento judaico no processo de industrialização do Amazonas; uma viagem no tempo ao universo histórico do tema em questão, por meio de uma vasta pesquisa bibliográfica, documental e iconográfica, bem como de uma profunda incursão no universo da memória de descendentes dos pioneiros e protagonistas, em entrevistas/depoimentos exclusivos e inéditos, realizados e transcritos pela nossa equipe, revivendo um tempo especial e uma experiência ímpar no plano pessoal e coletivo. O período histórico central de abrangência vai do início do século 19 até os anos setenta do século passado, período em que se deram as principais iniciativas e os acontecimentos de caráter irreversível que criaram os alicerces definitivos para a implantação do setor industrial existente na região. Ainda na fase inicial de elaboração deste projeto, conversando com nosso grande amigo Joel Bogdanski, conceituado economista e executivo do Banco Itaú, comentamos com entusiasmo a respeito da nossa pesquisa
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sobre a participação judaica na industrialização do Amazonas. O velho Joel, brilhante economista e dono de uma veia irônica invejável, retrucou: “Mas, que industrialização?” Ironias à parte, não é nossa intenção avaliar e julgar o nível de industrialização a que chegou o Estado do Amazonas, e sim, entender como ela se deu, e qual a contribuição do elemento judaico nesse processo. O tema propõe também revisitar o Amazonas do tempo que já não existe, conhecer mais e entender as nossas raízes e as múltiplas faces do diversificado mosaico amazônico, em especial, o de origem judaica. Nossa proposta é abordar o tema sob dois prismas: na 1ª parte faremos uma breve explanação histórica dos principais momentos da formação econômica do Amazonas e seu processo de industrialização, focalizando, em particular, a participação dos judeus. Na 2ª parte apresentaremos, de forma minimamente editorada, as entrevistas realizadas pela nossa equipe com industriais judeus no seu próprio universo de trabalho, visando captar as suas memórias diretas e indiretas, bem como a sua experiência, versão e opinião sobre o tema tratado e os fatos a ele relacionados, a partir da participação das suas respectivas famílias. Aqui, não apenas a industrialização será objeto da memória, mas também o tempo vivido, o Amazonas daquele tempo, a experiência pessoal, familiar, comunitária e coletiva. Para tanto, tivemos o privilégio de receber o apoio de cinco grandes judeus amazônidas, para que pudéssemos realizar o antigo sonho de contar parte de uma grande saga bicentenária – a participação dos judeus na industrialização do Amazonas. Na verdade, usamos um belíssimo artifício – deixamos que eles mesmos nos contassem a sua parte e de seus antepassados nesse marcante capítulo da História do Povo Judeu e dos povos da Amazônia, e depois, transformamos os seus relatos no fio condutor da narrativa de uma epopeia, em que cinco narradores contam, à sua maneira, cada um a sua parte, que até então parecia ser só deles, e que agora passa a ser de todos nós. Isso, por duas razões: ou porque também somos parte direta ou indireta dessa história, ou porque a generosidade e o altruísmo dessas testemunhas nos permitirá, a partir deste registro, conhecer mais e preservar para a posteridade a história de todos nós.
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Teatro Amazonas, 1905. (Foto: George Huebner)
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1ª PARTE
Fachada do templo atual da Sinagoga Shaar Hashamaim, em Belém do Pará
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DO UNIVERSO DA HISTÓRIA
S
e traçarmos uma linha do tempo da formação econômica do Amazonas desde os seus primórdios, da primeira metade do século 19 até os dias atuais, contaremos mais de 200 anos de História, o que remete ao mesmo tempo da chegada dos judeus à região. Dito de outra maneira, os judeus estão presentes no Estado do Amazonas desde antes da sua independência como província, e a história dessa presença se confunde com a própria história econômica do Estado. O final dessa linha do tempo é o momento presente, e a nossa proposta é conduzir o leitor em uma viagem ao passado, para que possa conhecer, no contexto da História, qual foi o papel desempenhado pelos judeus – principalmente por aqueles judeus que se estabeleceram na região – na formação econômica do Amazonas e, em particular, no seu processo de industrialização Judeus da Amazônia: 200 anos de uma comunidade singular Não é raro ouvir que o povo judeu é um dos mais intrigantes e singulares povos da História. As razões para tal afirmação são diversas: a
sua longevidade, as características ímpares de sua configuração cultural, religiosa, nacional e geográfica, as adversidades que lhe foram impostas. A saga dos judeus da Amazônia é um capítulo igualmente singular; e é sobre ela que apresentaremos a seguir, com um relato histórico parcial, aqueles que foram, no nosso entender, alguns dos fatos mais relevantes dessa trajetória bicentenária. A presença judaica na Amazônia tem início em torno de 1810, o que pode ser comprovado com a fundação das duas primeiras sinagogas do Brasil Império: Shaar Hashamaim (1824 ou 1826) e Essel Abraham (1829)1, na cidade de Belém do Pará, bem como as sepulturas encontradas no primeiro cemitério judaico daquela cidade, o da Avenida Soledade, fundado em 1848. A sepultura mais antiga, datada de 27 de Sivan (maio/junho) 1. Infelizmente, não há registros de fundação das sinagogas. As informações baseiam-se em cronistas paraenses da época e na tradição oral da comunidade local, fato que não surpreende, já que eram instaladas em residências particulares, como foi o caso de Abraham Acris, fundador da Shaar Hashamaim. (Ver Reginaldo Heller, Judeus do Eldorado, Rio de Janeiro, E-papers/Amazônia Judaica, 2010) HISTÓRIA e MEMÓRIA | 15
Portão de entrada do primeiro cemitério israelita do Brasil, Cemitério da Soledad, em Belém
Interior da Sinagoga Shaar Hashamaim.
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de 1848, é de Mordechai Hacohen. O primeiro pedido de naturalização e de licença para comerciar de que se tem notícia, solicitado no ano de 1823, é do judeu marroquino José Benjó. A citação é do Prof. Samuel Benchimol z”l em seu livro Eretz Amazônia – Os judeus na Amazônia (1998). Ele atribui a informação a Bentes, Abraham, 1987:347, o qual transcreve citação de Manoel Ingberg. Outra citação bem antiga encontra-se no Jornal Kol Israel (Voz de Israel), editado pelo Major Eliezer Levy, na edição de 8 de dezembro de 1919. Informa que a primeira licença para comerciar, dada pelo Governo Imperial do Grão-Pará e assinada pelo Marechal Francisco D’Andrea, em 4 de julho de 1838, foi concedida à firma de um comerciante judeu marroquino, Simão Benjó, para a abertura de uma loja no Largo do Pelourinho. Logo a seguir, novas licenças concediam os mesmos privilégios às firmas de judeus marroquinos: Bendalak & Cia; Ana Fortunato; Salomão Levy & Irmão; Fortunato Cardoso; Duarte Aflalo, entre outros.
Major Eliezer Levy, ativista comunitário em Belém do Pará e criador do jornal Kol Israel (A Voz de Israel), primeiro jornal judaico da
A imigração e os seus vários porquês Dos tempos mais remotos aos atuais, os homens têm-se deslocado de um lugar para outro com tal frequência e intensidade que seria difícil encontrar, nos dias de hoje, um grupo populacional que não seja resultado do encontro de vários povos. Nunca, no entanto, tantas pessoas se deslocaram para lugares tão distantes de suas terras natais em um espaço de tempo tão curto quanto no período das grandes migrações internacionais. Entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do XX, dezenas de milhões de europeus, asiáticos e africanos deixaram para trás familiares, amigos e pertences para recomeçar suas vidas em países distintos, com hábitos, climas e línguas desconhecidos. O Brasil recebeu cerca de quatro milhões desses imigrantes. Em um país com uma visão pouco positiva sobre suas origens históricas, eles passaram a ser vistos como agentes civilizadores, empreendedores e, por que não dizer, branqueadores. (GRINBERG e LIMONCIC, 2010, p. 23)
Amazônia
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Cartão postal da Booth Line, uma Entre esses imigrantes, milhares eram judeus, e entre eles, estavam os judeus de Marrocos que imigraram para a Amazônia. Assim, a imigração marroquina para a Amazônia ao longo do século 19 “[...] integra-se no quadro geral das migrações que se iniciaram com os grandes descobrimentos e que experimentaram maior intensificação a partir da emancipação de ex-colônias nas Américas, África e Oceania. Os grandes fluxos migratórios estão intimamente relacionados à construção de novos estados nacionais, às crises econômicas e às guerras.” (HELLER, 2010, p. 165) Quais teriam sido as razões específicas que motivaram a saída daqueles judeus marroquinos em direção à Amazônia brasileira? Os estudiosos do tema apresentam causas diversas, complementares entre si e, definitivamente, não contraditórias. Samuel Benchimol (1998) afirma que as causas da emigração se evidenciam por dificuldades de sobrevivência nos “melahs” (bairros judeus), traduzidas por pobreza, superpopulação e epidemias de cólera e peste bubônica, como as de 1790 e 1818, às quais acrescenta o apedrejamento de judeus vivos e mortos, a destruição de sinagogas, perseguições e sofrimentos. Reginaldo Heller dá maior ênfase à emigração com o objetivo de buscar fortuna 18 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
das principais companhias de navegação que faziam o circuito Europa–Marrocos– Belém
em regiões mais promissoras, como era o caso da Amazônia, o chamado “Eldorado Verde”, e aponta que a escolha recaiu sobre essa região por um fator singular: “[...] a ocorrência de elementos constituintes da identidade do judeu sefardita marroquino, como a memória ibérica e a língua.” (idem) De acordo com estudos e pesquisas, outros fatores que motivaram essa imigração foram: 1. A criação de escolas da Aliança Israelita Universal em Marrocos. Segundo Benchimol, as escolas da Aliança Israelita em Tânger e Tetuan tiveram papel importante na educação e preparação de judeus, retirando-os da pobreza e ignorância em que viviam em Marrocos e estimulando-os a emigrar para outros países que pudessem oferecer melhores oportunidades para viver e manter as suas tradições judaicas. (BENCHIMOL, 1998, pp. 53-54) Com o apoio e a formação oferecida por aquelas escolas, o emigrante judeumarroquino, ao se transferir para a Amazônia, já era um homem ou mulher educados para o trabalho e para vencer na vida. A Aliança Israelita Universal de Marrocos ajudou a preparar os futuros líderes judeus da Amazônia, que se
Turma de alunos da Aliança Israelita Universal no Marrocos, século XIX
tornaram exportadores, viajando para o exterior para fechar negócios e assistir a congressos e exposições, pois dominavam fluentemente o inglês e o francês. Na época da crise da borracha, quando os exportadores ingleses, alemães e franceses abandonaram Manaus e Belém, coube aos judeus marroquinos brasileiros substituí-los nessas funções, fornecendo à sociedade local a liderança econômica e social necessária para sobreviver nas décadas de depressão e débâcle da borracha. (idem) 2. A abertura dos portos às nações amigas em 1808, e os dois tratados assinados entre Portugal e Inglaterra em 19 de fevereiro de 1810: o primeiro de Comércio e Navegação, e o segundo, de Aliança e Amizade. HISTÓRIA e MEMÓRIA | 19
3. O fim da Inquisição, em 1821. 4. A Constituição Imperial de 1824 em seu artigo número 5 estabeleceu a religião católica como religião oficial, embora todas as outras religiões fossem permitidas, desde que em cultos domésticos ou particulares em casas destinadas para isso, sem forma externa ao templo. 5. A primeira Constituição Republicana em 1890 e seu Decreto 119 de 7 de janeiro do mesmo ano, que aboliu a união legal entre Igreja e Estado, e instituiu o princípio de plena liberdade de culto . Nessa época, vivia-se o pleno apogeu do ciclo da borracha, e os judeus marroquinos que, desde 1810, estavam emigrando para a Amazônia, receberam novo incentivo e alento para continuar emigrando, pois o novo estatuto político permitia que as sinagogas saíssem da semiclandestinidade para se organizarem como templos de estudo, oração e reunião da comunidade judaica. Não só as sinagogas passaram à legalidade total, como também os imigrantes que já se encontravam no país, muitos deles, de forma ilegal. Para estes, a nova Constituição previa uma anistia e os convocava a se naturalizarem. E assim, com a movimentação que tem início com a abertura dos portos em 1808 e o novo comércio, começam a chegar ao Brasil e também à Amazônia, no porto de Belém, os primeiros judeus, principalmente de origem marroquina, envolvidos com a navegação e o comércio, e toda a burocracia consular que se estabelece como desdobramento dessa nova atividade. É aí que tudo começa. É em torno do ano 1810 que vamos encontrar os pioneiros dessa grande epopeia histórica, a imigração judaica para a Amazônia, que já completou dois séculos. Três gerações da família SiqueiraBenchimol, de Manaus
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O Prof. Samuel Benchimol (1998) divide a história da presença judaica na Amazônia em quatro gerações, baseando-se na sua participação nos ciclos da economia local, conforme a seguir: — A primeira das quatro gerações: os pioneiros, a partir de 1810, que se dirigiram para o interior da floresta para comerciar com as drogas do sertão e participar na economia do Ciclo da Borracha. — A segunda geração: participou do auge do Ciclo da Borracha até o seu declínio na primeira década do século 20. — A terceira geração: vivenciou o êxodo do interior para Belém e Manaus. — A quarta geração: o tempo dos doutores e profissionais liberais. O Prof. Benchimol destaca também a contribuição dessas gerações para
Típicos imigrantes judeus marroquinos: Jacob Benzecry, Samuel Levy e Isaac Benchimol. Data desconhecida o crescimento econômico nos períodos que compreendem: — O 1º e 2º Ciclos da Borracha – 1880 a 1912 e 1942 a 1945, respectivamente — O Declínio da Economia da Borracha – 1913 a 1941 — A 1ª e 2ª fases da Zona Franca – 1957 a 1967 Quem eram aqueles pioneiros judeus? Os pioneiros provinham, em sua maioria, de Marrocos Espanhol (Tetuan e Ceuta), e falavam espanhol e haquitia (dialeto que mesclava o hebraico, espanhol e árabe); de Marrocos Francês (Casablanca); de Marrocos Árabe (Fez, Rabat e outras vilas do interior), onde habitavam os “toshabim” (nativos), chamados de “forasteiros” pelos “megorashim” (expulsos de Espanha e Portugal em 1492 e 1497, respectivamente), sendo que parte deles já estava ali estabelecida durante séculos, desde o período do Segundo Templo de Jerusalém, mais de 2000 anos antes, e também resultante de processos de conversão ao judaísmo por parte HISTÓRIA e MEMÓRIA | 21
Carregamento de borracha, o “ouro negro”. Seu ciclo de exploração e geração de riquezas foi uma das principais causas da vinda dos judeus marroquinos para a Amazônia
da população berbere. Havia também uma outra corrente que se estabeleceu em Belém e Manaus, de origem francesa (Alsácia e Lorena), alemã e britânica (Gibraltar). Benchimol assinala uma característica peculiar desse processo: A principal característica desse movimento migratório residia no fato de que, ao contrário da maioria das outras correntes, ela foi uma migração familiar, integrada da mulher e dos filhos, o que assegurava o caráter doméstico e gregário da vida judaica milenarmente presa aos valores culturais e religiosos centralizados em torno das comunidades, que procuravam criar como forma de assegurar a continuidade de sua própria cultura e tradição. (ibid., 1994, p. 9) A crise Gomífera A Amazônia brasileira se destacava como o maior produtor mundial de borracha, e o grande boom deste ciclo produtivo se deu entre os anos noventa do século 19 e a primeira década do século 20, tendo atingido seu ano de pico em 1910, quando foram exportadas 38.547 toneladas de borracha, ao preço de 25,25 milhões de libras esterlinas. Esse boom durou mais de 50 anos e fez deslocar 22 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
cerca de 300.000 nordestinos imigrantes, sobretudo a partir de 1877 e 1888, em virtude da seca. Durante esse período, a Amazônia foi povoada, também, por grande número de europeus e migrantes portugueses, espanhóis, italianos, franceses, ingleses, alemães, além de sírio-libaneses chegados no final do século XIX. No entanto, depois dos cearenses e portugueses, a maior contribuição, tanto quantitativa quanto qualitativa, proveio dos sefaraditas marroquinos. (ibid., 1998, p. 105) Em sua grande maioria, aviados por algum judeu próspero de Belém e Manaus, os judeus foram para o interior. Muitos desses pioneiros começaram como empregados, balconistas, gerentes de depósito, donos de flutuantes, guarda-livros, e terminaram sua carreira como seringalistas e Coronéis de Barranco. É interessante observar como aqueles judeus regatões praticavam uma atividade que pode ser perfeitamente comparada à de clienteltchic (ambulante, prestamista), praticada pelos judeus ashkenazitas oriundos da Europa Central e Oriental, com a diferença de que estes comerciavam pelas ruas e os sefaraditas, pelos rios, isso, sem manter contatos entre si. (SALGADO, set. 2000) A partir de 1911 tem início o período de colapso e estagnação e o advento da crise da borracha. Dá-se, então, uma enorme onda migratória do interior rumo às capitais Belém, Manaus e até Rio de Janeiro e São Paulo. Em consequência dessa crise, ocorre também um grande número de falências entre as empresas ligadas à produção e à exportação da borracha. Com a decadência da economia da borracha, muitas firmas estrangeiras abandonaram a Amazônia, mas, ao contrário destas, muitos judeus marroquinos permaneceram na região, lutando e incentivando a produção, a colheita e a comercialização dos produtos naturais no país e no exterior. Assim, com o declínio da economia gomífera e a crise se estabelecendo,
os judeus marroquinos que viviam no interior do Estado iniciaram o êxodo para as capitais Manaus e Belém. Abandonaram seus seringais, castanhais, regatões, flutuantes, casas de comércio, sítios e fazendas, pois esses negócios de nada valiam na atual configuração econômica de crise. Estruturação da Comunidade de Manaus Os judeus falidos e empobrecidos começaram a chegar a Manaus entre 1930 e 1950, aumentando a comunidade judaica local para 250 famílias. Eram oriundos de Itacoatiara, Parintins, Maués, Borba, Humaitá, Porto Velho, Guajará-Mirim, Fortaleza do Rio Abuanã, Tefé, Coari, Tarauacá e Iquitos; além de cidades do Pará como Alenquer, Óbidos, Santarém e Belém. Benchimol pontua: “Os judeus que haviam saído do interior do Acre, Guaporé, Roraima e Amazonas se concentraram em Manaus, aonde vieram aumentar a população empresarial judaica da cidade, que até então girava em torno de poucas empresas tradicionais como B. Levy & Cia e outras que faliram ou entraram em decadência no período anterior.” (1998, p. 117) A partir desse êxodo, a comunidade de Manaus passa por um momento de organização e criação de suas principais instituições, como a seguir: — Cemitério Judaico de Manaus, inaugurado em 12 de setembro de 1928. Infelizmente, o primeiro a ser enterrado foi o filho de Isaac José Peres,
fundador do cemitério e prefeito de Itacoatiara de 1926 a 1930. — Sinagoga Beth Jacob, fundada pelos exilados do interior. — Comitê Israelita do Amazonas, em 15 de julho de 1929, tendo Raphael Benoliel como seu primeiro presidente. — Sinagoga Rebi Meyr, fundada por Jacob Azulay. Em 18 de janeiro de 1962, as duas Sinagogas foram fundidas com o novo nome: Sinagoga Beth Jacob / Rebi Meyr. Na Sinagoga de Manaus encontra-se um Sêfer Torá de mais de quatrocentos anos, possivelmente, ainda do período da Inquisição em Portugal, quando alguns judeus seguiram para o Marrocos levando-o consigo, e depois, trouxeram-no para Itacoatiara no Amazonas, no início do século 20, onde havia uma próspera comunidade judaica. Com o êxodo desses judeus para a capital, o Sêfer Torá foi trazido para Manaus. — Clube Azul e Branco, fundado em 1940 por David Israel, dando início à vida social comunitária. Foi transformado, posteriormente, no Grêmio Cultural e Recreativo Sion. — Clube A Hebraica, fundado em 1976 na gestão do então presidente do Comitê Israelita do Amazonas, Samuel Isaac Benchimol. A comunidade judaica de Manaus contou com um jornal chamado Folha Israelita, que funcionou de
Avenida Eduardo Ribeiro, principal via da cidade de Manaus, no início do século XX
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Isaac José Perez, prefeito de Itacoatiara, AM, de 1926 a1930 e responsável pela fundação do Cemitério Israelita de Manaus
1949 a 1962. Não existia mais nenhum exemplar desse jornal, até que o pesquisador David Salgado, após inúmeras buscas, encontrou os originais microfilmados na Biblioteca Nacional da Universidade Hebraica de Jerusalém. De acordo com Salgado, esses exemplares “[...] podem servir de fonte de pesquisa histórica inédita da comunidade israelita de Manaus. São mais de dez anos do judaísmo em Manaus e redondezas.” (SANTOS, 2010) A partir de 1930 desponta na área pública do Amazonas o judeu Rubem Salgado, que ingressa na Fazenda do Estado na função inicial de Inspetor de Rendas. Exerceu inúmeros cargos de confiança na administração Álvaro Maia, entre eles o de Diretor da Fazenda do Estado, 1° Secretário de Finanças, e Delegado Regional da S.A.V.A. No ano de 1945, após inúmeras pressões políticas, Rubem Salgado deixa suas funções, radicando-se no Rio de Janeiro. Somente em 1951 retoma seu cargo na Fazenda, do qual se aposentou definitivamente em 1954. Em entrevista concedida a Elias Salgado, o Prof. Samuel Benchimol relatou que Rubem Salgado foi o primeiro judeu de importância pública no Amazonas e que “podia, com o seu poder, transformar-se e também transformar um comerciante em milionário da noite para dia.” (SALGADO, 2000).2 Após o declínio da borracha, outros produtos passaram a constituir a base da economia regional entre 1920 e 1940, principalmente, a extração da castanha e a criação de gado bovino. Entre a 3ª e a 4ª geração, houve um período de prosperidade para a comunidade judaica. De 1925 a 1940, inúmeras empresas de exportação e importação de produtos regionais negociavam em Manaus.
2. Samuel Benchimol refere-se às atribuições do cargo de Rubem Salgado na S.A.V.A (Superintendência de Abastecimento do Vale do Amazonas) e ao fato de que aquele era um período de racionamento (II Guerra Mundial). 24 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
Revigoramento: a Segunda Guerra Mundial e a lenta retomada Vale destacar também o período da II Guerra Mundial, quando o Brasil entra no conflito e firma com os EUA os Acordos de Washington que, entre inúmeras consequências, estabelece o monopólio da borracha, visando a participação do país no esforço de guerra. O referido Acordo criava o Banco de Crédito da Borracha, controlador do monopólio e financiador da produção, e a S.A.V.A., que coordenava o abastecimento, ou seja, o racionamento. Nesse período, que foi efêmero, alguns empresários conseguiram se
Rubem Salgado, um dos primeiros judeus de importância pública no Estado do Amazonas. Ocupou diversos cargos executivos, entre eles, o de Diretor da Fazenda do Estado, a partir dos anos 30
Sefer Torá com mais de 400 anos, guardado na Sinagoga Beit YacobRebi Meyr, de Manaus
capitalizar e seguir em frente. Porém, com o fim da guerra, os EUA abandonam o apoio, e o Banco de Crédito da Borracha entra em crise. Nesse momento, alguns empresários, entre os quais Isaac Benayon Sabbá, Isaac Benzecry, Samuel Benchimol e outros, resolveram começar a investir em outros segmentos. Passaram a diversificar seus negócios criando indústrias de beneficiamento de borracha, de castanha, com automatização do descascamento, indústrias de juta, e culminando com a criação da Copam (Companhia de Petróleo da Amazônia) de Isaac Sabbá, inaugurada oficialmente em 03 de janeiro
de 1957 pelo presidente Juscelino Kubitschek. Com a sua fundação, a economia local obteve um grande impacto positivo – foi o primeiro grande empreendimento industrial de toda a Amazônia. E assim, em paralelo à derrocada final da borracha que parecia irreversível, foi apenas uma questão de tempo, começou a ter um revigoramento da economia e da atividade econômica, por conta dessa diversificação e da visão de determinados empresários que resolveram realmente dar uma reviravolta na história e buscar outros nichos de mercado, inclusive, do ramo exportador. É nesse momento que Manaus, em particular, passa a viver com seus próprios recursos. Surgiram empreendimentos que foram verdadeiras alavancas dessa virada, dessa guinada que Manaus conseguiu dar. Surge o Hotel Amazonas, o turismo revigora, e a cidade retoma seu ritmo. Flashes de uma Manaus que ficou no tempo A jornalista e historiadora Etelvina Garcia, memória viva e grande estudiosa da economia e história do Amazonas e, em particular, da cidade de Manaus, ao falar da cidade no pós-guerra e em seu período de revigoramento (termo utilizado por ela), discorda com veemência da afirmação de que Manaus não passaria de um “porto de lenha”. Para provar sua posição, faz uma análise embasada da retomada econômica e do vigor que ela promove na vida econômica, cultural e social da cidade: os concursos de miss, os cinemas, as confeitarias, o rádio – Rádio Baré (“Voz da Baricéia”), Rádio Difusora e Rádio Rio Mar; a criação da Faculdade de Economia; os jornais – “O Jornal”; os clubes – Ideal, Rio Negro, Bancrévea, Sheik, Bares; e a Faculdade Livre de Direito e de Economia. A professora Etelvina exemplifica todo esse fervor sociocultural mencionando o concurso para a cátedra de Economia Política da Faculdade de Direito, em 1954, disputado por José Lindoso e Samuel Benchimol: “Toda a cidade acompanhou com entusiasmo. Havia de um 26 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
O jornal Folha Israelita registrava as inúmeras indústrias e empresas judaicas de Manaus no início dos anos 50
Rua Henrique Martins, início do século XX. Nos anos 40-50 passa a ser conhecida como a “rua dos judeus” devido à grande quantidade de residências e empresas de judeus que ali existiam
lado os simpatizantes de Lindoso e de outro, os do Professor Samuel. Imaginem a Rua Henrique Martins, onde moravam D. Mimi com José Lindoso, e três casas depois, D. Lily Benchimol, mãe do Professor Samuel.” (Entrevista concedida ao Programa Viva Memória, TV Cultura Amazonas, 17/07/2011) O pós-guerra, a Zona Franca em Manaus Com o estabelecimento da ZFM em 1967, foram criadas muitas empresas cujos proprietários e sócios eram de origem judaica, destacandose, entre todos, o empresário e industrial Isaac Benayon Sabbá, que no início dos anos sessenta construiu a Companhia de Petróleo da Amazônia – COPAM, inaugurada em 3 de janeiro de 1957 pelo Presidente Juscelino Kubitschek. A influência desta refinaria para a economia do interior amazônico se fez notar logo em sua fase de teste, em setembro de 1956, quando os preços dos produtos ficaram mais baratos: gasolina 21%, querosene 28%, óleo diesel 58%. Nos anos setenta, já com um conglomerado de 41 empresas, o grupo I. B. Sabbá empregava diretamente cerca de 6.000 pessoas, o que representava estatisticamente 5% da população urbana de Manaus. Com a criação da Usina Vitória
de beneficiamento de castanha, Isaac Sabbá abriu o mercado operário com carteira assinada e vantagens previdenciárias também para as mulheres. Outras importantes figuras do empresariado amazonense despontaram neste período. Destacamos , também, os nomes de: — Issac Jacob Benzecry: importante exportador de produtos amazônicos e fundador da fábrica Beneficiadora de Produtos da Amazônia Ltda. Em associação a Abraham Pazuelo, fundou a firma Benzecry & Pazuello, transformada posteriormente em CIEX – Comércio, Indústria e Exportação Ltda, exportadora de produtos regionais beneficiados. — Jacob Samuel Benoliel: tornou-se dono da Drogaria Universal, grande líder empresarial, presidente da ACA entre 1931 a 1944, e Cônsul Honorário de Portugal. — Isaac Israel Benchimol: idealizador da empresa Benchimol & Irmãos, hoje, o Grupo Bemol – Fogás. Vivenciou o crescimento e a decadência da borracha, antes de acompanhar o sucesso de seus filhos. O Judaísmo amazônico na atualidade Passados mais de 200 anos de uma imigração HISTÓRIA e MEMÓRIA | 27
que estabeleceu em plena selva amazônica cerca de 1000 famílias oriundas dos “melahs” de Marrocos, e que deixou profundas raízes até hoje na região e em seus milhares de descendentes residentes ali e espalhados pelo resto do país, seja por meio dos marcos judaicos comunitários que estabeleceram para dar continuidade à sua religião e cultura milenares, e que até hoje têm sabido preservar, seja por meio da sua substancial contribuição ao desenvolvimento do nosso país, da região amazônica e das demais localidades para onde migraram em fase posterior. São industriais, comerciantes, profissionais liberais de todo tipo, educadores, professores, pesquisadores, artistas, escritores, trabalhadores de diversas áreas da economia regional e nacional. O legado deixado por aqueles pioneiros é
Linha de montagem de indústria na Zona Franca de Manaus
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vasto: uma comunidade em Belém com cerca de 450 famílias, em Manaus com cerca de 250, Rondônia e Macapá e outras localidades do interior, somando mais algumas dezenas. Para o sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), migraram
Casamento coletivo na comunidade. Manaus, 31/03/2009
outras dezenas, e em Israel, já são mais de 300 descendentes. Há também o caso peculiar dos chamados “hebraicos da Amazônia”, na verdade, descendentes de relacionamentos interétnicos daqueles imigrantes, que alguns pesquisadores dizem totalizar mais de 50.000 pessoas, havendo aqueles que afirmam que podem chegar a mais de 250.000; uma identidade muito peculiar, síntese desse encontro singular entre o imigrante judeu marroquino e a floresta amazônica e seus demais povos.
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2ª PARTE
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DO UNIVERSO DA MEMÓRIA
“A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes”. (Michael Pollak in “Memória e Identidade social”)
* Nossos cinco entrevistados – Saul Benchimol, Moysés Benarrós Israel, Frank Benzecry, Moisés Sabbá e Jaime Samuel Benchimol – deram seus depoimentos a equipe de entrevistadores, formada por David Salgado, Elias Salgado e Dina Nogueira, em entrevistas realizadas em Manaus, nos meses de outubro e novembro de 2011. HISTÓRIA e MEMÓRIA | 31
Capítulo 1
Meu nome é Saul Benchimol, filho de Isaac Israel Benchimol e Nina Siqueira Benchimol, nascido em 14 de agosto de 1934, em Manaus. Meu pai nasceu numa localidade chamada Aveiros, no Tapajós, em 1888. Estudei o primário no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, hoje localizado na rua Joaquim Nabuco. O secundário estudei no Colégio Estadual do Amazonas. Terminei o curso em 1952. Comecei a faculdade de Direito em 1952, na única universidade que existia no Estado do Amazonas, e concluí o curso em 1957.
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Saul Benchimol “Então, quando o impacto da libertação chegou, foi que conseguimos começar a criar os primeiros movimentos comerciais, e depois, os industriais. Aí começou o processo industrial universal – porque eu reconheço dois tempos: a gênese industrial amazonense brasileira e a gênese do processo universal que se deu com o advento da Zona Franca da Amazônia, e que ocorreu numa época em que o mundo estava tentando a globalização”.
F
iz “application” para ir para os Estados Unidos, e fui agraciado com uma bolsa de estudos para a Universidade do Novo México. Primeiro, passei por um período de adaptação de quase um mês na universidade do Texas, e depois fui para a Universidade do Novo México. Lá estudei muito, e consegui concluir o
meu mestrado em um ano. Nesse meio tempo, me candidatei para a Universidade de Yale e também consegui a bolsa concedida pelo Fund Right Commission, uma fundação para dar educação aos países amigos etc etc. E fui estudar em Yale. Acontece que Manaus havia passado por uma transformação, e meu irmão Israel, que era o mais HISTÓRIA e MEMÓRIA | 33
Uma rua do melah de Marrakesh
velho, decidiu que ia embora para o Rio de Janeiro com a esposa, Gimol, e os filhos, Isaac, Salomão, Eliezer e Nina. O filho mais velho, Salomão, já havia se dirigido com a mulher ao Rio de Janeiro. Na verdade, houve um processo de migração das comunidades judaicas do Norte do Brasil para o Rio de Janeiro. A sinagoga Shel Guemilut Hassadim era praticamente desses “retornados”.
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Imigração marroquina para o Norte do Brasil Os judeus saíram da Espanha em 1492 e foram todos para o Marrocos. Lá viviam numa condição paupérrima, se alguém disser que tinha dinheiro no Marrocos, pode descartar, porque não está falando a verdade. Eram todos pobres, querendo sair do estágio da miséria. O que acontecia é que não havia muitas oportunidades porque não havia liberdade religiosa. Foi quando o Brasil
O porto de Tanger, no Marrocos
começou a ensaiar uma liberdade religiosa, principalmente depois da vinda de D. João VI para o Brasil e, posteriormente, de outras pessoas que professavam religiões diferentes, o que não era permitido. Era catolicismo ou nada. E além disso, havia a Santa Inquisição. A situação era muito difícil. Quando os judeus sentiram uma mudança por esses lados, com a independência do Brasil, o fim da escravatura, a agitação para a República, então começaram a ensaiar uma vinda para o Brasil. E vieram para o Brasil. Todos eles, o meu pai e a minha mãe eram de Tânger, originalmente. E aí eu quero fazer uma diferenciação importante, porque no Marrocos havia os chamados “forasteiros”, que eram os judeus que já viviam ali mais de mil anos, e havia os judeus que vieram da Espanha. Então, eram dois tipos de judeus, e os dois grupos eram distintos entre si, inclusive na
pronúncia de falar hebraico e de meldar (rezar). Era uma das características deles. Nós, da família Benchimol, meus pais, somos espanhóis, somos judeus sefaradim do Marrocos que viemos para o Amazonas. Formação das primeiras comunidades Bem, esses judeus vieram para o Brasil e se estabeleceram no Pará, e depois foram galgando o interior até chegar em Manaus. E chegaram até Iquitos. Como consequência, foram invadindo os rios, e chegaram até Porto Velho. Então, vejam o que aconteceu – o fenômeno: esse pessoal foi para esses interiores. E como eles falavam espanhol, não tinham dificuldade de entender o português, e isso facilitou a vida deles porque eles entendiam os caboclos. É um negócio muito fácil. Esses judeus construíram pequenas comunidades, essas comunidades sofreram um processo de HISTÓRIA e MEMÓRIA | 35
Interior da Sinagoga Shel Guemilut Hassadim no Rio de Janeiro, da qual fazem parte judeus de origem marroquina e oriundos da Amazônia
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esvaziamento, porque primeiro houve a dispersão, depois houve a concentração, porque quando essas comunidades começaram a ganhar algum dinheiro, a ter um certo poder de compra, os filhos e as mulheres quiseram ir para Manaus e Belém. Por que Manaus e Belém? Porque tinham condições de estudar, manter os filhos numa universidade, num colégio. Com isso, houve um processo de concentração das comunidades. Os primórdios da família Benchimol no Norte do Brasil Os primeiros da nossa família a chegar, vieram a Belém, e então, foram “encaminhados” para o Tapajós, Aveiros. A questão do “encaminhamento” existia; era um parentesco, uma amizade, alguém que sempre ajudava: “Você vai comprar couro para mim no Coari.” Então, foram para Aveiros, mas essa história de Coari é muito interessante; eles iam para Coari comprar couros (“cueros”) de jacaré, ariranha, gato maracajá, e não havia proibição de matar, era “free”, livre para matar esses animais. E com isso, eles ficavam lá no interior e ganhavam algum dinheiro. Eram todos comerciantes, compradores de produtos da selva: castanha, couro, borracha, era isso que eles faziam. Como eles tinham um pouco mais de habilidade por terem vivido já no Marrocos, e por falarem português e espanhol, tudo ficava mais fácil. E meu pai também falava francês, pois estudou na Alliance Israélite Universelle de Tanger, Marrocos. Bem, então nós temos esse quadro.
Isaac Israel Benchimol, patriarca da família Benchimol de Manaus, grande ativista e dirigente, durante décadas, do Comitê Israelita de Manaus
Isaac Israel Benchimol Meu pai nasceu em Aveiros, um pequeno vilarejo no Rio Tapajós. Quando ele nasceu, o pai dele, Israel Isaac, morreu, possivelmente de malária. Está enterrado em Santarém. A minha bisavó, Thomazia Essucy, pegou os meninos (meu pai tinha um irmão) e disse: “Não serão educados aqui”, e os levou para o Marrocos. Lá em Tânger, ela possuía algum recurso, não era muito, mas era algum recurso, e conseguiu que os meninos fossem estudar na Alliance Israélite. Ali eles estudaram, e o meu pai fez um curso de guardalivros. Mais ou menos bem orientados para a vida. Então, o que aconteceu? Meu pai foi para o Marrocos. E o que aconteceu aqui no Brasil? A mãe dele, Robilda, se casou com um senhor chamado José Benoliel, e tiveram 8 filhos, que são meio-irmãos do meu pai, todos judeus. E quando meu pai chegou ao Brasil, a mãe dele estava com toda essa filharada, não estava bem de situação, e meu pai teve que trabalhar HISTÓRIA e MEMÓRIA | 37
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Ketubá (certidão de casamento religioso) de Isaac e Nina (Lili) Benchimol,
Os noivos, Isaac Israel Benchimol e Nina Siqueira
elaborada e assinada pelo chazan Lázaro Salgado (Eliezer Elmaleh)
para sustentar esses irmãos. Ramiro e José, que eram os últimos, eram praticamente filhos do meu pai, Moisés, também. Bem, meu pai então passou a trabalhar, e conseguiu trabalhar muito bem. Com isso, ele abriu os olhos de alguém com boa visão, e que resolveu oferecer ao meu pai uma posição de gerente de seringal lá no Abunã. Foi aí que meu pai foi para Abunã. Bem, tem um intermédio aqui: meu pai se casou uma vez com uma prima dele, que era irmã desses Bentes, do Elias Bentes, do coronel etc. E ela veio a morrer na gripe espanhola, em 1918. Acho que seu nome era Sara. Viúvo, meu pai veio para Manaus e se engraçou da minha mãe, Nina Benchimol, “Lili”, como era chamada, filha de Raphael Siqueira e Lice Siqueira; a minha avó era Lice. Meus pais se casaram em Manaus, em 1919. Não sei quem oficiou o casamento religioso*. Também não acho que tenha sido numa sinagoga, mas talvez na casa de alguém. A Licita tem a ketubá. Primórdios da vida comunitária em Manaus Os judeus já se reuniam e havia um líder, um
chazan, um oficiante. Chamava-se Israel e vinha de Itacoatiara. Era o pai da mulher do David “Curica” (Israel). Esse chazan não era Cohen; e vivia em Itacoatiara. Em Manaus não havia liderança comunitária. A liderança comunitária começou em 1926 ou 1927, quando Isaac Peres perdeu o filho. Isaac Peres, prefeito de Itacoatiara. Bem, a
* Nota do Editor: A Sra. Alegria Salgado Bohadana, hoje residente no Rio de Janeiro, em entrevista a David Salgado (outubro/2011) informou que a comunidade de Manaus, por essa época, ainda não existia, não tinha sinagoga, e que os judeus se reuniam esporadicamente. HISTÓRIA e MEMÓRIA | 39
Autorização concedida por Isaac Israel Benchimol a seu filho mais velho, Israel Siqueira Benchimol, para criar sociedade comercial por sua livre iniciativa
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O chazan Eliezer Elmaleh (Lázaro Salgado), uma das lideranças religiosas pioneiras na formação da kehilá de Manaus
comunidade tinha um terreno, onde hoje é o Hospital Getúlio Vargas, em frente ao cemitério Aquele terreno era da comunidade judaica, naqueles idos. E morreu o filho do Peres, o engenheiro – foi uma desgraça – e não havia onde enterrar, a não ser no cemitério “goi”, não judaico. Então foi proposta uma troca dessa área do cemitério São João Batista pela área que tínhamos em frente ao Hospital Getúlio Vargas, que ainda é do Estado, até hoje. Então, essa troca foi feita, e nós ficamos com aquele corredor que é o cemitério judaico de hoje. Isso foi o que aconteceu, foi em 1926/27, quando começaram os enterros no nosso cemitério. Existia um terreno, existia uma comunidade em semente, alguma organização, alguma liderança, mas tudo muito incipiente. Manaus era uma vila, esse negócio de cidade é uma piada... Eliezer Elmaleh (Lázaro Salgado), casado com Dona Sime Alves, era um “rabino”, um chazan. Na
casa dele eram formados minianim, e é muito provável que foi ele quem celebrou o casamento dos meus pais. O nome do oficiante consta da ketubá. Será possível obter essa informação pela ketubá*. Eliezer Elmaleh veio de Tefé, assim como a minha mãe. Minha mãe nasceu em Tefé, em 1900. Folha Israelita: jornal da comunidade O fundador da Folha Israelita foi o Sr. David Israel, em 1949, um jornalista comunitário. Era uma pessoa muito inteligente, e eu nutria uma admiração muito grande por ele, pelo trabalho que ele fazia. Ele pegava os jornais, levava, entregava, cobrava as mensalidades, os anúncios. Era um trabalho insano, sem existir praticamente nada. David Israel era um defensor intransigente do Estado de Israel. Ele tem méritos e mais méritos, e eu fico satisfeito em reviver parte da Folha Israelita neste documento, é justo e meritório. Como também poderia haver uma matéria com o
* Nota do Editor: Realmente, ao examinarmos cópia da ketubá de Isaac e Nina Benchimol constatamos que o oficiante da cerimônia e certamente o autor do documento foi Eliezer Elmaleh (Lázaro Salgado). HISTÓRIA e MEMÓRIA | 41
Chegada dos primeiros tanques de GLP da FOGÁS, em 1956
Terminal de envasamento Manaus
David “Curica” (era assim que nós o chamávamos). Grande parte da memória, da história da nossa comunidade se queimou, e o achado da Folha Israelita trouxe de volta parte dessa história perdida, a questão do presidente do Comitê Israelita do Amazonas, que estava sendo esquecido, o Bemuya, pai do Abrahão, terceiro presidente da lista. Pressão antijudaica Para falar desse tema, precisamos entrar na Amazônia. Já estamos na Amazônia; meu pai já está casado com a minha mãe, já tem oito filhos: Israel, Raphael, Samuel, Robine, Alice, Alberto, Saul e Benjamim. Então, estamos vivendo em Manaus. Vivendo em Manaus, mas com uma parada em Belém. Em 1925, com a crise completa da borracha, meu pai foi 42 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
praticamente à falência, vindo lá do Abunã, perdeu o emprego, perdeu tudo. Então, ele foi para Belém, não para Manaus. E a minha mãe foi para Belém, e foi quando nasceu o meu irmão Alberto, em 1932. O Alberto nasceu em Belém do Pará e o Samuel e todos os meus irmãos estudaram no Colégio Progresso, que era o que havia de melhor àquela altura em Belém. Meu pai começou a trabalhar lá, e não se deu muito bem; então, resolveu voltar para o Amazonas, para Manaus, onde passou a ser contador da firma Tadros & Cia, de uns libaneses, liderados pelo velho José Tadros. Eles eram aviadores. Então, o que foi que aconteceu? Meu pai começou a criar a família. Como uma escrita não dava para fazer tudo, meu pai pegava escritas por fora, trabalhava à noite, domingos e feriados para suplementar o salário e para poder criar os filhos. Foi quando Israel ficou maiorzinho, e meu pai resolveu comprar, de sociedade com Hanan (José), uma farmácia, na Henrique Martins. Aí brigaram, José Hanan enganou o papai. Cada um conta a sua história. Separaram-se e venderam a farmácia. Nessa altura, Israel tinha casado com a Gimol, que é filha do velho Salomão Levy, e foi trabalhar em compra e venda de mercadoria por conta própria, e em 1942, fundou a Benchimol Irmão & Cia Ltda em sociedade com o Samuel. Foi meu pai que fez essa sociedade e foi ele que escreveu o contrato social. Daí por diante, era comprar e vender, comprar e vender. Foi no tempo da Segunda Guerra Mundial, e houve uma falta generalizada de alimentos na Amazônia, inclusive de pão, porque não tinha farinha de trigo. O Samuel havia terminado a Universidade de Direito e ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade de
Miami em Oxford, Ohio. Então, enquanto estudava, começou a trabalhar, a vender farinha de trigo de Kansas para Manaus. Compra aqui, vende ali, e começou a ganhar dinheiro. Como começamos a ganhar dinheiro, despertou o ódio – porque enquanto não se ganhava dinheiro, não havia ódio contra os judeus, principalmente, contra a família Benchimol. Então nós sofremos uma campanha muito séria, liderada por Archer Pinto, que era o dono do O Jornal. Foi uma campanha muito feia, muito grande e muito feroz. Isso ocorreu por volta de 1946, 1947*. Sempre existiu o sentimento antijudaico. A campanha foi muito séria, tão séria que abalou a estrutura da família, que continuou lutando. Era uma coisa de louco, era manchete todo dia no O Jornal chamando a gente de ladrão. Qualquer pessoa pode ir à Biblioteca Pública e pegar o O Jornal da época para constatar isso. O Integralismo estava em toda a parte. Todos eram integralistas e, na verdade, isso representava um sentimento, como sempre houve o sentimento antijudaico. Nossas populações judaicas que viveram no interior sofreram esse sentimento. Quando houve a Cabanagem, também ocorreu um movimento antijudaico muito sério. Processo de industrialização do Amazonas Se o tema tratado aqui é o processo de industrialização, a FOGÁS não é representativa desse processo. A FOGÁS é consequência do movimento do senhor Isaac Benayon Sabbá, a quem na verdade eu considero, eu, no meu entender, o grande introdutor do processo da industrialização judaica no Amazonas. Isso aí se deve a um fenômeno natural, o que eu chamo de empreendedorismo. Acontece que foi criada uma
* Nota do Editor: Há uma narrativa de Rubem Salgado, que na época estava na diretoria da SAVA (Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico). Samuel Benchimol foi entrevistado por Elias Salgado em setembro de 2000 sobre a questão do Integralismo na Amazônia. Ele declarou que de fato existiu um Movimento Integralista pequeno. José Lindoso foi citado como um dos líderes estudantis simpatizantes do Integralismo favorável ao Eixo. Em depoimento a Elias Salgado, no Rio de Janeiro, no mesmo ano, Rubem Salgado, afirma que a família de Artur Virgílio, antepassado do atual prefeito de Manaus de mesmo nome, seria uma das famílias que o perseguia quase que diariamente, na imprensa, a ponto de ele pedir demissão do cargo, e só anos depois foi readmitido na Fazenda. Tudo isso está neste contexto. .
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Imagem histórica da primeira frota FOGÁS
mente, isso tudo vinha do desejo de crescer. E foi essa mente judaica que resolveu desabrochar depois, durante a Segunda Guerra Mundial. Quando estourou a Segunda Guerra Mundial, o Brasil ficou numa situação privilegiada, porque os japoneses cortaram os suprimentos da borracha asiática e, consequentemente, tinha que voltar para a Amazônia. Isso significava reativar os seringais nativos da Amazônia e para isso precisava de dinheiro. E o governo americano resolveu gastar esse dinheiro com uma empresa chamada Harbour Development Corporation, que foi a responsável pela reativação da atividade da borracha. Então, o que ela fez? Ela veio para Manaus, construiu o aeroporto de Manaus – o Aeroporto de Manaus é uma consequência da Segunda Guerra Mundial, construído pelos americanos. Manaus não tinha aeroporto. Bem, então foi feito o aeroporto e com isso houve uma abertura, uma expansão da visão amazônica. O que aconteceu foi que os judeus, como tinham um certo 44 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
discernimento, passaram a ser os intermediários na compra e venda da borracha, e serviram de apoio aos americanos. E então, abriu-se o leque. O que é que os judeus viram nessa abertura de leque? O senhor Isaac Sabbá tinha capitalizado algum dinheiro; o irmão dele, Jacob Sabbá, que também é parte do processo, também capitalizou, e resolveram a industrialização da borracha na Amazônia para poder fazer sernambí para vender aos Estados Unidos, para poder fazer pneus de automóveis, aviões etc.... Então, essa era a função, e várias fábricas foram compradas aqui no Brasil, feitas no Brasil para produzir látex – não era bem látex, era sernambí o que nós vendíamos. Bem, com isso, o que foi que aconteceu? A Harbour tinha um hospitalzinho, e fundaram também o Banco da Borracha. Tinha uma vasta atividade no Amazonas. Na verdade, o Banco da Borracha era o banco que comprava a borracha para vender para os americanos – só podia vender para os americanos. Tinham o monopólio. Bem, com isso, essa turma
capitalizou, ganharam alguns trocados e ficaram numa posição de superioridade. E aí eu faço uma chamada: nós, judeus, passamos a ser a elite social do Estado do Amazonas. E por que isso aconteceu? Porque com o desaparecimento do ciclo da borracha, a maioria das outras etnias foi embora do Amazonas, e aí não tinha como fazer uma elite novamente, rapidamente, não é? Ascenderam aqueles que estavam logo abaixo, que éramos nós. Subimos, não porque queríamos, mas porque fomos guindados a assumir a liderança econômica e social, pois a essa altura, estava entrando uma nova leva de pessoas que eram os imigrantes nordestinos – os cearenses. Todo mundo era cearense, aqui na Amazônia, podia ser do Rio Grande do Norte ou Pernambuco, que era tudo cearense. Então, essa era a situação, nós fomos guindados sem querer. Como o Sr. Isaac Sabbá tinha uma inteligência e um horizonte maior de visão, ele enxergou que o método que nós fazíamos para transportar gasolina e querosene era bem rudimentar: a gasolina ia para Belém e era posta em galões de vinte litros, e de lá, vinha para Manaus. Não eram nem balsas, naquele tempo, eram aquelas coisas terríveis com um perigo desgraçado, não sei como chegavam, furava a metade, estragava a metade. Então, isso aí era um negócio bem rudimentar. Foi quando Isaac Sabbá disse: Por que não colocamos uma refinaria de petróleo na Amazônia? E mandou fazer um estudo para comprar uma refinaria, a menor refinaria que pudesse ser feita, que era a refinaria de 5.000 barris por dia. Ele se juntou com os judeus de São Paulo, os Levy, e deu duas diretorias na COPAM, na refinaria de Manaus, e com isso foi possível fazer a refinaria. Ele conseguiu com o governo brasileiro (Conselho Nacional de Petróleo) a permissão de construir a refinaria de petróleo de Manaus, antes da Lei do Monopólio, e com isso, foi um negócio espetacular, nós tínhamos uma concessão. Manaus passava a ser uma cidade de importância vital porque
tinha uma refinaria. Daí o nosso crescimento em detrimento de Belém. Hoje eu já nem falo em Belém, pois ela está muito atrás. Hoje nós somos a sétima cidade, Belém é a décima primeira, então, não tem mais o que disputar com Belém. A disputa entre Manaus e Belém já foi muito grande. Surgimento da FOGÁS Quando o senhor Isaac Sabbá fez a refinaria, o Samuel anteviu que, com a refinaria em Manaus, haveria produção de GLP, Gás Liquefeito de Petróleo. Então, o Samuel foi falar com o velho Issac, e ele disse que não tinha interesse no GLP. Então, o Samuel disse: “Se o senhor não tem, eu tenho.” Assim, quando foi feita a refinaria de Manaus, em 1956, nós já tínhamos aprovado. Primeiro quem aprovou não fomos nós, foi o pessoal da GASONIA, que aprovou primeiramente uma companhia distribuidora de gás aqui no Amazonas. Eles foram os pioneiros por dois meses. Conseguiram a permissão. Permissionários, porque na verdade isso não é concessão, é uma permissão. Nós somos permissionários de serviços públicos. O governo dá uma permissão para que você performe um serviço público no nome dele, mas com seu nome. E nós fizemos a FOGÁS, em 1956. Como não tínhamos um lugar, compramos um terreno ali onde é hoje aquele depósito grande da BEMOL, e ali fizemos um parque de armazenamento de gás. Para conseguir essa permissão, começamos comprando gás da Cia Paulista de Gás, e trazíamos de navio até Manaus, já cheios, em bujões de 300kg. Era só comercializar. Isso era para mostrar ao governo brasileiro que nós já tínhamos uma empresa de comercialização. Então, no momento em que o governo autorizou sermos permissionários de serviços públicos, fomos junto com a refinaria, que começou a produzir GLP, e ela mesmo engarrafava – ela tinha uma planta de engarrafamento que engarrafava para a FOGÁS e para a GASONIA, de acordo com as HISTÓRIA e MEMÓRIA | 45
Jonathan Benchimol, filho de Saul Benchimol, diretor superintendente da FOGÁS
cotas dadas. Como tínhamos a quantidade maior de clientes, ficamos com a maior parte do market share do mercado. Acho que isso aí, no princípio, se deveu muito ao Israel, meu irmão mais velho, que morreu. Ele era um homem muito ativo, e levava no carro dele os botijões, instalava e fazia tudo. E nós também compramos umas caminhonetes usadas – F 1 Ford, horrorosas. Colocando os pingos nos is Vou explicar qual é a origem desse negócio: quando estourou a guerra, tinha que tratar borracha, e nesse tempo, os judeus foram para a borracha. Então, teve a Usina Labor, que era do velho Isaac Sabbá, ali no Educandos, usina de borracha, a Usina Estrela, do Jacob Sabbá, que era na Ilha de Monte Cristo, e esse pessoal é que na verdade fazia o serviço da borracha, e tinha o Grupo J. G., que fazia um pedacinho do processo, mas só que os portugueses não estavam muito interessados nisso, enquanto nós, judeus, que não tínhamos outra oportunidade, estávamos interessadíssimos em realizar a “revolução” porque queríamos ganhar dinheiro para ter reconhecimento social. Os judeus foram preponderantes em todo esse início de processo industrial, porque preponderância, para mim, é ter a idéia originária. Então, o que é preponderância? A preponderância do senhor Isaac Sabbá de criar uma companhia para fazer compensados. Essa aí foi uma 46 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
ideia brilhante, trazer para Manaus a COMPENSA; depois vieram outras, mas ele foi o que trouxe antes. A borracha, eles é que trouxeram, os couros de jacaré, na verdade, os judeus foram os responsáveis pela fabricação de couro de jacaré na Amazônia – nesse aspecto, está o Isaac Benzecry, que fez em associação com o Juan Arduíno e outros judeus, e o velho Salomão Levy, que se associou com judeus argentinos. Havia um problema muito grande que era o peito do jacaré, que é ósseo, então, era preciso desbastar o peito para aproveitar essa parte do couro, que poderia render algum dinheiro. No início, não se aproveitava o peito, depois, passou-se a aproveitar, mas era muito trabalhoso, e por fim, também não interessou mais. Era só a cauda, a parte posterior e as patas. A família Pazuelo. O velho Abraham Pazuelo era uma boa pessoa, mas nunca foi um visionário, porque para ser pioneiro, precisa ser visionário. Por isso eu dou glórias ao Sr. Isaac Sabbá, porque ele era um visionário, ele enxergou mais que um palmo além do nariz. Digo isso porque estudei Economia e sei que empresário é aquele que tem uma visão cujo horizonte precisa ser maior, que é capaz de transformar... A morte do cisne Vamos à questão da refinaria com a chegada dos militares ao poder, já nos anos sessenta, e o que aconteceu com a refinaria. Primeiramente, existiu um sentimento nacionalista muito grande que limitou a capacidade de expansão, ainda antes dos militares. Então, quer dizer, eu não vou só culpar os militares, eles, na verdade, fizeram “a morte do cisne”, mas o processo era um processo nacionalista do tipo de não permitir a expansão da Refinaria de Manaus, e que culminou com a aquisição da mesma, que foi uma barbaridade... O Geisel era um bom... mamzer. Não sei detalhes dessa situação, porque nunca foi contado. O Samuel fez parte disso. O fato é que existia uma refinaria particular, e se a
deixassem crescer, ela poderia suprir o mercado amazônico e possivelmente parte do Nordeste. E por que os militares não fizeram isso ao tomar a refinaria? Os nacionalistas não permitiram. Primeiro, o movimento nacionalista brasileiro criou o monopólio estatal, mas existiam duas ou três refinarias privadas – uma no Amazonas, uma no Rio Grande do Sul, a Ypiranga, e uma no Rio de Janeiro, Manguinhos. Eram as três refinarias que estavam fora do contexto do monopólio estatal. Então, no momento em que não me deixam crescer, cortam as minhas asas, e é como cortar as asas de um passarinho para que ele não possa voar. Um empresário quer voar, mas tem que ter espaço para poder voar. Quando chegou a revolução, aí foi fácil, o papagaio já não voava mais, então deu asas para que esse movimento pudesse fazer a liquidação da refinaria. Agora, a atrocidade foi o modo como foi feito. Associação Comercial do Amazonas Naquela época, que estamos chamando de período da incipiência industrial ou gênese industrial, não existia uma federação das indústrias. O que existia era a Associação Comercial do Amazonas, da qual foi presidente por muito tempo o velho Paulo Jacob Benoliel. O nome dele era Jacob Benoliel. Acontece que ele havia trabalhado na drogaria cujo fundador foi o Paulo Levy. Como ele não queria mudar de nome, adotou o nome do ex-sócio e passou a se chamar Jacob Paulo Levy Benoliel. Ele era português de nascimento, e foi cônsul de Portugal durante 30 anos, ou mais. A Associação Comercial era a entidade representativa da classe dos empresários e não havia distinção entre comércio e indústria. Nas diretorias da Associação Comercial do Amazonas sempre estiveram presentes membros da comunidade judaica, desde 1900. Elite amazonense O Clube Ideal era representativo da elite amazonense. Havia o Clube Ideal e o concorrente, HISTÓRIA e MEMÓRIA | 47
Vista aérea da planta de produção da FOGÁS de Manaus na atualidade
que não era do mesmo quilate. Chamava-se Rio Negro, e era frequentado pelos judeus “forasteiros”, “segunda classe” de judeus. O preconceito era grande entre os judeus “forasteiros” e os judeus “megorashim”, pela diferença de origem: um grupo é originário do Marrocos desde sempre, e o outro, é composto pelos egressos da Espanha. SUFRAMA – Superintendência da Zona Franca de Manaus Tudo o que falamos até agora é parte de um processo histórico. Belém era predominante e com isso levou todas as instituições políticas e financeiras que poderiam ter feito o desenvolvimento do Amazonas. Na verdade, isso cerceou o desenvolvimento, não diretamente, mas a aquisição de empréstimos pelo Amazonas, 48 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
facilitando para o Pará. Acontece que lá, uma maioria de empresários – entre aspas, quero dizer, na verdade, eram vigaristas que tomavam dinheiro do governo, não faziam nada, iam à falência e com isso criou-se um mecanismo na história: para você aprovar um empréstimo, tinha que pagar aos economistas paraenses para eles fazerem o projeto, e se não fosse feito por eles, não seria aprovado. Então, era preciso ter inteligência e, inclusive, nisso o Samuel teve uma participação muito grande – conseguir separar a Amazônia. Presta atenção nesse negócio, isso é um fato muito importante: criou-se, então, a Amazônia Ocidental e a Oriental. Com isso, foi preciso acordar o processo, e a SUFRAMA é o produto desse seccionamento. A Zona Franca foi instalada, e o Estado do Pará pensou que não fosse nada.
Não se preocuparam em cercear isso também. E o resultado foi que o desenvolvimento da Amazônia disparou. Participei, inclusive, das primeiras entrevistas sobre a criação da SUFRAMA – o registro disso deve constar do A Crítica ou outro jornal da época. Nessas reuniões, eu dizia que na verdade a Zona Franca era o fruto da liberdade da comercialização na Amazônia, porque liberdade é um negócio muito importante. Então, quando o impacto da libertação chegou, foi que conseguimos começar a criar os primeiros movimentos comerciais, e depois, os industriais. Aí começou o processo industrial universal – porque eu reconheço dois tempos: a gênese industrial amazonense brasileira e a gênese do processo universal que se deu com o advento da Zona Franca da Amazônia, e que ocorreu numa época em que o mundo estava tentando a globalização.
Atual linha de produção da FOGÁS. Envasamento com alta tecnologia
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Capítulo 2
“Nasci em Manaus, em 10 de fevereiro de 1924. Tenho o secundário completo e o pré-politécnico. Eu queria estudar Engenharia Química na Mackenzie de São Paulo, mas o Getúlio Vargas nacionalizou as instituições, e a Mackenzie deixou de ter seu diploma reconhecido no Brasil. Acabou que aprendi um pouco de química nos livros e na prática, com a minha atuação na refinaria de petróleo, a Refinaria de Petróleo de Manaus – COPAM, fundada por Isaac Sabbá.”
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Moysés Benarrós Israel “Em todos os momentos em prol do desenvolvimento da indústria, a “colônia” judaica esteve sempre presente. Por exemplo, os Benzecry, os Sabbá, os Serfaty, que também possuíam indústrias, meu próprio pai, que criou indústrias de sabão. E finalmente, chegamos até a instalar a Refinaria de Manaus, que trouxe uma nova fase de progresso e que colocou o petróleo como ponto de referência, {...}”
Como me apresento Antes de tudo, devo dizer que não fui influente no processo de industrialização no Amazonas. Fui um auxiliar de Isaac Benayon Sabbá, participando de tudo o que ele promoveu, ajudando-o como uma espécie de aprendiz, nada mais.
O
livro dos 50 anos da FIEAM (Federação das Indústrias do Estado do Amazonas) é um excelente guia para relatar a respeito da presença dos empresários judeus nesse processo. Quando esse livro foi feito, trouxeram todas as diretorias da FIEAM, desde a fundação. São 50 anos! Muitos membros das diretorias já se foram, foram subindo apressados, e eu fiquei
aqui para contar essa história. Abrahão Sabbá e eu somos citados no livro. Também o velho Simões, da família da Coca-Cola. Ah, como esse tempo era bom! O Petrônio Augusto Pinheiro, que faria agora 90 anos, era mais novo do que eu. Francelino Menezes, conhecido como “Peço a palavra”, porque nas reuniões, sempre que havia uma oportunidade, ele interrompia e dizia: “Peço a palavra.” Ele adorava HISTÓRIA e MEMÓRIA | 51
fazer um discurso. Até o presidente J. K., presidente na época em que inauguramos a refinaria, consta do livro. Há uma referência ao Sr. Isaac Sabbá, que aparece como capa da revista Visão, mas que apareceu também na Paris Match e na Time. O filho dele deveria ter feito uma “memorária” do trabalho do pai, ofereceram até uma sala na sede da FIEAM. Há também anúncios das indústrias da época, das primeiras décadas do século 20: a XPTO, fábrica de cerveja, cópia de uma fábrica na Alemanha. Em época de carnaval, o carro alegórico da fábrica de cerveja era o maior, mais bonito, mais caprichado, mais animado, e eram as filhas da família Miranda Correia, proprietários da cervejaria, que iam no carro, todo enfeitado, jogando porta-copos como brinde. Havia também os saltos da marca Coroa, do Grupo J. G. Araújo, que foi o primeiro salto de borracha. Padarias, a era dos panificadores. A do Simões. Uma imagem bem antiga da cidade de Manaus como era quando se formou. O Barão de Mauá, que criou a Companhia de Navegação do Amazonas, a primeira companhia de vapores da região. Ele tinha uma briga com o Imperador Pedro II, e um dia, para fazer as pazes, o Imperador disse: “Está bem. Você vai vender as ações do Banco do Brasil para a Coroa, e eu lhe dou a obrigação de criar uma companhia de navegação na Amazônia.” Foi a primeira vez que tivemos aqui navios a vapor, fundada pelo Barão de Mauá, por imposição do Imperador Pedro II. E consta também a B. Levy, empresa judaica. Possuíam vapores e faziam uma linha de navegação. Tinham um vapor que se chamava Alegria, que era o nome da mulher do proprietário da empresa que, aliás, foi o meu padrinho. A Peres Sabbá, que foi a primeira empresa na qual o Sr. Isaac Peres, que foi uma personalidade de grande valor, se associou ao Sr. Jacob Sabbá e ao Sr. Isaac Sabbá. Mais tarde, este saiu, e fundou a sua própria empresa, a I. B. Sabbá. Nunca voou num Catalina? No livro consta a foto do primeiro Calatina chegando a Manaus. Era um avião anfíbio, tinha rodinhas que eram baixadas e podia pousar em aeroportos, e onde não havia 52 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
aeroporto, era na água que ele pousava; recolhiamse as rodinhas, e os flutuadores ajudavam a mantêlo sobre a água. O Leopoldo Peres, que idealizou a Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), e Pereira da Silva, que trabalhou pela Zona Franca. Assinatura do contrato da criação da refinaria (Refinaria de Manaus) com a Sudam. Foto do senhor Isaac Sabbá e do Waldyr Bouhid, superintendente da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia). Naquele tempo, todos usavam roupa branca. Foto do presidente da Petrobras, Janary Nunes com o nosso secretário executivo na companhia de petróleo, Júlio Souza e eu. E uma foto em que apareço me equilibrando, com as pernas abertas, como um dançarino. O Arthur Amorim, que era o engenheiro técnico, formado no MIT (Massachusetts Institute of Technology), assistindo, lá nos EUA, à confecção das peças da refinaria. E o senhor Isaac Sabbá, no
O primeiro catalina da Panair do Brasil chega a Manaus
Abraham Sabbá, primeiro presidente da Federação das Industrias do Amazonas — FIEAM
jantar de inauguração, com o Presidente Juscelino. Isaac Sabbá era baixinho, magrinho, mas tinha uma cabeça maior do que o corpo todo. Esse é o acervo da FIEAM. Da refinaria, tivemos algum material doado, que eu fiz doar, foi bom, porque se não... O arquivo pessoal do senhor Isaac Sabbá, não sei que fim levou, e foi por isso que havíamos oferecido fazer uma sala de memória na Federação. Judeus na Federação das Indústrias Esta foi a composição da primeira diretoria da FIEAM: o primeiro presidente foi o senhor Abraham Sabbá, e o primeiro 1º vice-presidente, fui eu. Abraham Sabbá foi presidente por quatro mandatos consecutivos. Outros judeus que participaram também de outras diretorias foram: Jacob Sabbá, Jacob Ezaguy, Elias e Frank Benzecry. Íamos trocando, para não ficarmos sempre as mesmas pessoas. Eu sempre gostei do Conselho
Fiscal porque é onde se trabalha menos, mas apesar de aparentemente ser o menos trabalhoso, no fim, trabalha-se igual. Uma pequena biografia Sou Moysés Benarrós Israel, filho de Salomão Benarrós Israel e Carlota Benayon Israel, originários do Pará. Meu pai e minha mãe se casaram jovens, HISTÓRIA e MEMÓRIA | 53
Fábrica de cerveja da família Miranda Corrêa — destaque industrial e sociocultural na vida de Manaus nas primeiras décadas do século XX 54 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
ele com 21 anos e ela, com 20, e depois, mudaramse em 1922 para Manaus. Depois que minha mãe chorou e fungou durante trinta noites inteiras, meu pai perguntou o que havia com ela, e ela disse que nada. “Mas você está chorando durante trinta noites, é por saudades do seu pessoal?” Ela respondeu: “É.” “Você quer que eu mande buscálos?” “Quero.” Então, meu pai mandou buscar. Eu sempre achei que ele não era bom da bola, porque com 21 anos se casou com uma, e levou oito. Assumiu oito, pois minha mãe tinha seis irmãos, com ela, sete, e mais a mãe, num total de oito. Nem sei como ele resolveu aquela situação... Nasci em Manaus, em 10 de fevereiro de 1924. Tenho o secundário completo e o pré-politécnico. Eu queria estudar Engenharia Química na Mackenzie de São Paulo, mas o Getúlio Vargas nacionalizou as instituições, e a Mackenzie deixou de ter seu diploma reconhecido no Brasil. Acabou que aprendi um pouco de química nos livros e na prática, com a minha atuação na refinaria de petróleo, a Refinaria de Petróleo de Manaus – COPAM, fundada por Isaac Sabbá. Iniciei minha carreira como boy, na empresa de representação de meus tios Jacob e Isaac Sabbá. Quando meu pai morreu, minha mãe ficou com a empresa dele sem saber o que fazer. Ela chamou os irmãos e disse: “Tenho aqui um escritório de representações montado, e meu gerente vai acabar se tornando o dono, porque não sei nada do negócio. Eu queria ver se podemos fazer um acordo: eu transfiro o negócio para vocês, e vocês me dão uma renda mensal para criar o meu filho.” E o acordo foi feito. Com 18 anos, fui emancipado. Acho que meu tio Isaac acreditou ter atrapalhado a minha carreira, deixando que eu interrompesse os estudos para trabalhar, e como compensação, me fez sócio. Na época, eu tinha só 18 anos, e minha mãe teve que fazer um documento de emancipação para negócios. Fui um negociante precoce, não na inteligência, mas na idade.
A origem da família Depois da Inquisição, boa parte dos judeus expulsos da Espanha passou a viver no Marrocos. Séculos depois, o Marrocos foi dividido e colonizado pela França e pela Espanha. A maior parte dos judeus vivia no Marrocos espanhol. Um de nossos ancestrais, meu bisavô, era do Marrocos francês. Então, tem um ramo marroquino-francês nessa história – o ramo Sabbá – que acabou vindo para Cametá, no Pará, no Rio Tocantins, e lá começou a trabalhar, e então, nasceram os filhos brasileiros. Atualmente, sabemos que somos a quinta geração no país, porque esse ancestral, que tinha a nacionalidade francesa por ser do Marrocos francês, fez uma petição ao Imperador solicitando a nacionalidade brasileira, e ela foi concedida. A resposta veio da Igreja, pois naquela época, no século 19, os chamados registros civis eram de responsabilidade da Igreja. Então, o pároco mandou resposta com boas referências, “professando a religião judaica” etc etc. Isso valia para ele e para todos os filhos que meu bisavô tinha naquela época. Bom, um deles, Primo Sabbá, casou com uma portuguesa de nome Fortunata, que se tornou a sogra do meu pai. Ela veio de Portugal com 14 anos para casar com um brasileiro. Era assim que eles faziam naquela época, mandavam buscar as esposas. Os primeiros anos em Manaus Então, meu pai assumiu essa família toda, mas minha avó, mãe da minha mãe, era muito trabalhadora, e em dois anos, tomou conta da situação, e deve ter brigado muito com o genro... Meu pai chegou a Manaus como representante de uma fábrica de cigarros de Belém, a fábrica Terezita, da família Serfaty, também de origem judaica. No dia em que ele foi pedir aumento de salário ao patrão, alegando que havia se casado e que tinha novas responsabilidades, o patrão disse: “Oh! Momito” – o nome dele era Salomão, virou Salomito, e depois, Momito – “você quer HISTÓRIA e MEMÓRIA | 55
ganhar mais? Então passe a ser meu agente, e eu dou a você a representação em Manaus. Trabalhe, e assim poderá ganhar o quanto quiser.” E ele acreditou na oportunidade, ou não sabia o que o esperava... Depois, criou um escritório de representação, e foi se desenvolvendo. Trabalhou com uma série de produtos, desde brinquedos do Japão até chá da Índia, e exportava peles, couro de animais etc. Eu me lembro que não havia ainda juta, mas havia a malva, uma fibra parecida. Quando eu saía da escola, ia para o escritório e lá esperava para ir para casa com meu pai, e havia aqueles fardos imensos de malva, e eu adorava subir naquela “montanha”. Aos 8 anos, comecei a ter aulas de datilografia na escola que ficava em frente à empresa. A professora de datilografia mandava me pegar no colégio, e eu ficava batendo à máquina até as seis da tarde, e o Morluf Cohen, que era o responsável pelos couros e gêneros recebidos, vinha me pegar para me levar até o escritório, e dali, eu ia para casa com meu pai. A coisa era toda certinha, o “moleque” não tinha chance de andar sozinho. Vida comunitária Meu pai era presente na vida comunitária judaica, aliás, toda a família, minha mãe também gostava, todos eles. Esse senhor 56 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
Refinaria de Manaus, símbolo máximo da ousadia empresarial pioneira de Isaac Sabbá e da gênese industrial no Amazonas
Morluf, que tomava conta do depósito, era professor de hebraico, de forma que ele logo se entrosou com a comunidade e com 8, 10 anos, comecei a aprender hebraico com ele para “fazer os tefilins” (o Bar-Mitzvá). Nesta época, havia uma só sinagoga. Depois houve uma briga, e a comunidade se separou e passou anos assim, dividida (parece que judeu gosta de uma briguinha). Eu frequentava a sinagoga chamada “de los ricos”, e a outra, era conhecida como a “de los pobres”. Mais tarde, o velho Isaac Benchimol conseguiu juntar as duas numa só, quando se construiu a atual, em 1962. Antes, era uma sinagoga na Praça da Saudade, e a outra, perto da antiga estação de bondes, na Sete de Setembro. As brigas continuavam e eu acabei por deixar de frequentar, porque um dia assisti a uma discussão tão acalorada, que eu pensei: vão chegar aos tapas, aqui dentro. Fiquei assustado, achei que aquilo estava errado, fui embora e nunca mais voltei para rezar como eu sempre fazia, pois minha mãe mandava ir rezar todo sábado e “depois vai tomar a bênção do teu padrinho”. Mas quando eu saí, não voltei a frequentar como antes, e decidi que a religião estava no coração, na cabeça, e eu não precisava assistir àquelas cenas de briga por causa de entoação, se lia com o alef com o “o” mais longo, ou não. Depois, quando meu pai morreu, eu estava com 11 anos, e voltei à sinagoga por causa do kadish, a reza dos mortos, e passei a frequentar novamente, mas fiquei uns dois anos com medo de ir à sinagoga. A relevância judaica na economia do Amazonas Acredito que houve, sim, uma relevância judaica na construção da economia do Estado do Amazonas, porque quem dominava o comércio e a exportação era J. G. Araújo, e dominava também os aviamentos para o interior, tinha uma navegação forte, tinha os armazéns de distribuição, e uma loja só de ferragens, uma drogaria que se chamava Rosas
(nome de um dos sócios) e cinco mil cabeças de gado, o que era uma coisa grande naquele tempo. Portanto, durante toda a época da borracha, J. G. Araújo deteve o domínio da situação. Quando veio a crise e a economia caiu um pouco, começaram a surgir pequenas firmas exportadoras de proprietários judeus, e que trouxeram muito desenvolvimento: meus dois tios, Jacob e Isaac Sabbá, que no início trabalhavam juntos (do final dos anos vinte até 1939), criaram a segunda fábrica de lavagem de borracha em Manaus (a primeira foi fundada por J. G. Araújo, e fabricava o salto Coroa, a que me referi anteriormente). Então, esses “judeusinhos” que apareceram, o Jacob e o Isaac, foram montando usinas de borracha: a primeira foi em sociedade com o senhor Isaac Peres, a Peres Sabbá, que trouxe um capital, e então eles fundaram a usina na Ilha de Monte Cristo. A terceira foi do meu tio Isaac Sabbá, da qual eu já era sócio, chamava-se Usina Labor e ficava lá no Alto do Bode, no Educandos. Depois, Moisés Ezaguy colocou outra, em Itacoatiara. Isaac Benzecry não entrou em borracha, ele entrou em castanhas e depois, na juta. Então, entramos na juta, fizemos a Brasiljuta em conjunto com o Adalberto Vale, uma fábrica grande, moderna, que veio toda da Inglaterra e foi montada aqui. Então, esses foram homens que impulsionaram, criaram etc. O meu tio Isaac era de uma inteligência surpreendente; ele pegava as coisas no ar, resolvia com uma rapidez incrível. Sabia, sentia o mercado. Mas ele não queria saber de estudar. Quando criança, era um guarda civil que o levava para a escola – minha avó pagava por esse serviço. Já meu tio Jacob, adorava estudar, lia muito, escrevia muito bem, enquanto o Isaac entendia de negócios. Foi o Jacob quem teve a ideia de criar o Banco do Estado do Amazonas – BEA – com o apoio de Gilberto Mestrinho, e foi o primeiro presidente da FIEAM; ele conseguiu ajudar muita gente a desenvolver a indústria da região. O Antonio de Andrade Simões, que hoje tem a Coca-Cola, precisou de dinheiro para ampliar a HISTÓRIA e MEMÓRIA | 57
O presidente Juscelino Kubitschek corta a fita e inaugura oficialmente a REMAN
Isaac Sabbá discursa na inauguração da Refinaria de Manaus sua padaria, solicitou ao banco e conseguiu, pois na época o banco recolhia todo o dinheiro do Estado e tinha muito para emprestar. Quando Arthur Reis assumiu o governo do Estado (1964), ele prestigiou muito o banco, obrigou que todos os recolhimentos fossem feitos pelo banco, e ainda pedia aos outros para fazerem depósitos; os outros bancos não gostavam disso, pois perdiam clientes. O Banco do Estado do Amazonas, por sua vez, trouxe muito desenvolvimento à indústria. A Zona Franca de Manaus nasceu também da cabeça do meu tio Isaac Sabbá. Ele sabia que havia uma zona franca em Letícia, na Colômbia. Então, tudo isso foram ideias geradas por esses industriais que obtiveram o reconhecimento d as lideranças que atuavam naquele 58 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
tempo. E por falar em lideranças e reconhecimento, a CNI (Confederação Nacional da Indústria) tinha dois representantes locais que receberam medalha de Honra do Mérito Industrial. O primeiro, foi meu tio Isaac, e o segundo, fui eu. E para não ficarem só judeus, veio um árabe depois, o José Miguel Nasser. Na realidade, essa gente tinha vontade de servir, ajudar. O Isaac Benzecry tinha usinas de castanha e timbó, um produto que servia para a pesca, que deixa o peixe embriagado. A convivência entre árabes e judeus A convivência com árabes era muito boa, muito fraterna, até que chegaram os palestinos e trouxeram com eles, não aquele ódio criado, eu diria, aquele “ódio induzido”. Passou-se a temer o terrorismo; naquele tempo houve um atentado a sinagoga em Buenos Aires, uma referência ao atentado terrorista na sede da AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina), que deixou dezenas de mortos, judeus e não judeus. Nessa parte, houve um isolamento, mas quando eram os sírios e libaneses, ou seja, com as gerações que antecederam esses fatos, a convivência era muito fraterna, aliás, quase sempre nos associávamos, eu mesmo fui sócio do Daou, do Roberto.
Com a comunidade local – ser judeu entre outros Nunca tive problemas pelo fato de ser judeu. Sou descendente de estrangeiros, mas sou brasileiro, bem como meus filhos. O judeu tem fama de só querer ganhar dinheiro, até porque, como não podia ser proprietário de terras ou exercer determinadas profissões, acabava se tornando comerciante. Aos judeus só restou a alternativa de compra e venda de mercadorias e, com o ganho, alguns se tornaram banqueiros também (exemplo dos Rothschild, na Europa), e passaram a financiar governos, e isso os tornou conhecidos como “os donos do dinheiro”, não porque fossem mais espertos do que os outros, mas porque eram levados a ir para esse campo. Trabalho social Trabalhei durante muitos anos na Santa Casa e na Casa Dr. Fajardo com Waldomiro Lustosa, um grande incentivador. Esse cidadão era assim: o leite acabava na Casa Dr. Fajardo; eu ligava para ele: “Waldomiro, manda duas caixas de leite, porque acabou.” E ele não mandava duas, mandava dez. Havia também o FISE (Foundation for Social and Economic Initiatives), um programa de alimentos para ajudar à pobreza, criado pelos EUA. A Dona Helena Fagundes veio a Manaus com
Industriais destacados com a Ordem do Mérito da CNI: da esquerda para a direita: Moysés Israel, Isaac Sabbá e José Nasser
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Interior da extinta sinagoga Rebi Meyr, na Rua 7 de setembro, fundada por Jacob Azulay. Era a sinagoga dos toshabim, mais a incumbência de ser a agente do FISE, não sabia o que fazer e pediu a conhecida como “la minha ajuda. Nessa época, eu dava uma ajudinha na LBA – Legião Brasileira esnoga de los pobres” de Assistência, hoje extinta. Houve uma época em que as esposas dos Presidentes da República presidiam a LBA. Na época do Jânio Quadros, ele não quis, e resolveu que seriam os industriais que tomariam conta, depois, quando veio o João Goulart, voltou a ser como antes, e eu dizia: “Agora é que está bom, porque a minha patroa é bonita.” (A esposa do Goulart, Maria Tereza, era uma mulher muito bonita) Então, começou a chegar essa ajuda americana – era a Aliança para o Progresso e o FISE, e a Dona Helena nos procurou na LBA para “fazer esse servicinho” e nós a ajudamos por muito tempo. O IEL (Instituto Euvaldo Lodi) é o elo entre a indústria e a escola, e eu também trabalhei lá por 12 anos.
Uma trajetória comum de muita luta e muito sucesso É interessante observar na trajetória desses empresários judeus, que a maioria começa a trabalhar muito cedo e em condições adversas e posições simples, para aos poucos, ir galgando patamares rumo ao sucesso. Eu trabalhei desde os 11 anos e não parei; férias, para mim, só quando eu viajava a negócios. Sábados e domingos eram dias de férias, então eu ia passear, conhecer as cidades, mas tirar férias na praia por trinta dias, nunca aconteceu, porque nunca foi preciso, nunca senti falta, gosto muito de trabalhar. 60 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
Prédio da extinta sinagoga Beit Yaacov, na Praça da Saudade, fundada pelos megorashim e conhecida como “la esnoga de los ricos”
Tem uma passagem do Lindenberg, nosso diretor de exportações na I. B. Sabbá, que um dia encaminhou uma carta ao meu tio Isaac solicitando férias, e nela, fazia loas ao Getúlio Vargas por ter criado as férias, dizendo ser aquilo importante etc. Meu tio ficou possesso: “Eu pensava que esse cara queria trabalhar, e agora vem com essa carta. Isso é conversa fiada.” E não aceitou. Meu mestre em exportação Gherard Lindenberg era pai de dois meninos que deram muito trabalho. Um deles está na Alemanha, e o outro, em Manaus. Uma neta dele é muito dedicada, muito inteligente, e trabalha no Check Up Hospital. Uma vez eu estava lá, e ela começou a vir me visitar todos os dias, porque ela é da área da cardiologia. Um dia, ela encontrou a minha sobrinha no corredor, e a minha sobrinha comentou comigo: “Essa menina foi colega dos meus filhos. Ela ia todos os dias para a escola com eles.” No passado, elas moravam uma em frente à outra. Eu disse: “Pois é. Outro dia eu estava conversando com ela, e descobri que ela é neta do Lindenberg – o avô dela foi quem me ensinou a trabalhar em exportação, porque ele era o chefe da carteira, e me ensinou outras tantas coisas mais.”
Moysés Israel recebe a Medalha do Pacificador. Manaus, agosto de 2000
A criação da FIEAM No Brasil inteiro estavam criando federações de indústrias, e o Estado do HISTÓRIA e MEMÓRIA | 61
Cópia da Ata de Fundação da FIEAM. Manaus, 03/08/1960
Amazonas ainda não tinha uma. Trabalhávamos dentro da Associação Comercial, que cobria também a área industrial. Então, o meu tio Abraham Sabbá, um dos irmãos de minha mãe, o penúltimo deles, tinha tendências políticas, gostava de política, tinha as suas idéias. Viveu um período em São Paulo e lá era ligado ao PTB. Viu que estavam se formando várias federações, e achou que também poderia formar a do Amazonas. Procurou o presidente, que na época era o João Goulart, e conseguiu a carta, coisa que não era fácil, mas como àquela altura ele ficou mais próximo do Jango, teve mais facilidade e trouxe a carta. Assim criamos a FIEAM e meu tio Abraham foi o primeiro presidente, mas três meses depois, como foi eleito deputado, em 03 de outubro de 1962, tivemos que substituí-lo por um 62 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
tempo, até que entrou o Simão , e eu cheguei ao Conselho Fiscal – “Assim eu tomo conta de vocês todos.” Recentemente, enviaram um presente para cada diretor. Costumava ser uma cesta de Natal, mas a diretoria conseguiu de uma empresa do Distrito Industrial um televisor que vale R$1500,00 por R$500,00, e achou de mandar. E eu fiz uma carta para eles nos seguintes termos: “O seu mimo é muito bonito, porém, excessivo; é muita despesa”, e mandei devolver. Afinal, não trabalhamos aqui por presentes, trabalhamos por dedicação. A comunidade judaica e a região amazônica Penso que os membros da comunidade judaica sempre procuraram fazer um pouco pela cidade de Manaus e pelo Estado do Amazonas. Meus
Moysés Israel e seus filhos David, Joy e Janeth em coquetel oferecido pela FIEAM pela passagem dos seus 90 anos
tios trabalhavam com esse objetivo. Há pouco, contei um episódio sobre o bacalhau; isso foi invenção do meu tio Jacob. Como eu disse, ele lia muito, e descobriu que o nosso pirarucu poderia ser transformado em bacalhau, e assim foi feito. Comprávamos pirarucu, lavávamos, salgávamos com sal inglês, que não absorvia umidade, cada manta era separada por uma folha de papel vegetal, ia numa caixinha tal qual o bacalhau que chegava da Europa, e se chamava “Bacalhau Interventor”. Meu tio Jacob criou esse nome porque era o tempo das interventorias no período do Estado Novo. Vendíamos muito para o Nordeste e, em determinado momento, fomos solicitados a não usar o nome bacalhau “porque a espécie não se assemelha sequer ao bacalhau...” Acho que a qualquer momento, esse nosso bacalhau de hoje vai ter o mesmo problema...
Em todos os momentos em prol do desenvolvimento da indústria, a “colônia” judaica esteve sempre presente. Por exemplo, os Benzecry, os Sabbá, os Serfaty, que também possuíam indústrias, meu próprio pai, que criou indústrias de sabão. E finalmente, chegamos até a instalar a Refinaria de Manaus, que trouxe uma nova fase de progresso e que colocou o petróleo como ponto de referência, levando a todas as atuais investigações nessa área e, na minha opinião pessoal, estamos montados sobre uma bacia de petróleo desde o Peru, onde se tem extraído petróleo, até Marajó. Vamos constatar isso num futuro não muito distante e espero ainda estar vivo, ajudando para que isso aconteça.
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Capítulo 3
Sou Frank Benzecry, filho de Isaac Benzecry e Gimol Benzecry, conhecida como Dona Santinha. Nasci em 29 de setembro de 1941, na Rua dos Andradas, Manaus, onde hoje funciona a Casa dos Colchões. Com dois anos de idade, mais ou menos, nós nos mudamos para a casa da Ferreira Pena, uma casa muito bonita, onde nasceu a Janet, minha irmã, um ano depois. Estudei o curso primário em Manaus, o secundário no Rio de Janeiro e a faculdade em Manaus, faculdade de Economia. Desde cedo, comecei a trabalhar com meu pai.
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Frank Benzecry Este depoimento me lembra o meu pai, e sempre me emociono quando falo dele. Meu pai já morreu há 20 anos... e parece que foi ontem. Ele é uma pessoa muito especial; aqueles que conviveram com ele ficaram marcados pelo exemplo, pelo carinho, pelas qualidades que ele transmitiu ao longo da vida, e que procuramos seguir.
A
família do meu pai era de dez irmãos, sete homens e três mulheres. Minha avó, mãe do meu pai, já nasceu no Brasil, em Cametá. Meu pai nasceu em Belém. Eram já brasileiros mais de uma geração. Meu avô paterno veio do Marrocos para o Pará ainda garoto, com 11 ou 12 anos. Veio de Tetuan com um irmão dele, o
tio José. Logo em seguida, vieram os pais do meu avô. Meu tio José era mais velho, maior de idade, e meu avô era garoto, mas veio acompanhando o irmão. Quando os pais deles chegaram e começaram a trabalhar e a se firmar, não durou muito, deu febre amarela e vieram a morrer. HISTÓRIA e MEMÓRIA | 65
Jacob Messod Meu avô, aos cuidados do irmão e de outras pessoas amigas, teve uma formação religiosa muito boa. Pode-se dizer também que ele era um autodidata, porque escrevia bem, falava bem, era bem desembaraçado. Acho até que uma das primeiras usinas de castanhas-do-pará foi fundada por ele. Jacob Messod Benzecry, meu avô, não era um homem muito próspero, ele se virava. Tinha uma família muito grande e precisava sustentar todo mundo. E mesmo naquela época, não era fácil. Origem Parnaíba, destino Manaus Meu pai sempre teve uma aspiração por liberdade e independência, e começou a trabalhar muito cedo, saiu de casa ainda menor de idade e foi para o Nordeste. Viveu no Nordeste por muitos anos e fez muitos amigos. Formou um patrimônio naquela ocasião, foi a Belém, pegou minha mãe, casou com minha mãe, e voltou para lá. Por esses azares da vida, a coisa deu errado por lá. Ele trabalhava com couro, houve um enfraquecimento do mercado, a aproximação da Segunda Guerra Mundial... Isso foi por volta de 1936, 1937. Já havia a retração do mercado e uma série de fatores que desfavoreciam o negócio dele. Então, ele pegou as coisas dele e veio para Manaus. Isso foi mais ou menos em 1935. Quando ele saiu de Parnaíba, onde morava, pegou o Fred para “batizar”, com seis meses. 66 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
Benzecry, sua esposa Esther Lancry Benzecry e seus dez filhos
Lá na Parnaíba, Piauí, ninguém fazia esse serviço. Aquilo era uma preocupação, o fato da criança já estar com seis meses e ainda não ter feito o BritMilá. Chegando a Belém, foi feito o Brit-Milá, e ele resolveu vir para Manaus. E deixou algumas dívidas por lá. Segundo ele, chegou a Manaus com o dinheiro dos móveis, das coisas da casa que ele havia vendido. Chegou, instalou-se precariamente, e trabalhou. Os irmãos dele estavam em Belém. O único irmão que o acompanhou foi o tio Abraham. O tio Abraham ficou com ele na Parnaíba, mas quando meu pai saiu de lá, acho que o tio Abraham foi para o Ceará, porque ele tinha se casado com uma mulher do Ceará, também de origem judaica. Depois, o tio Abraham veio para Manaus, quando meu pai já estava mais firmado. Em 1941, eu nasci, e em 1944, nasceu a Janet. Entre Manaus e o Rio de Janeiro Nasci na Rua dos Andradas, em Manaus. Estudei o curso primário em Manaus, e o ginasial, no Rio de Janeiro, porque naquela época, meu pai pretendia ficar morando no Rio de Janeiro, mas depois voltamos para Manaus. Ele tinha os negócios dele em Manaus, mas o tio Elias olhava a parte do curtume, e a CIEX se expandia muito. O Sr. Abraham Pazuelo, que era sócio dele, teve que sair da sociedade para formar sua própria firma. Então, meu pai começou a se dedicar muito à CIEX, mas mantinha a intenção de morar no Rio de Janeiro e lá desenvolver os negócios. Ele pretendia atuar, no Rio de Janeiro, em duas atividades: construção civil, que ele iniciou, e exportação de café, que era o que ele entendia bem. E para auxiliar o pessoal em Manaus, meu pai contratou o Elias Bentes, executivo de primeiríssima ordem. Os Bentes são muito brilhantes. No entanto, parece que houve algum desentendimento entre o Elias Bentes e o Benjamin, e o Elias mandou uma carta para o meu pai pedindo que ele voltasse a Manaus, porque
ele, Elias, iria entregar a empresa de volta (o Elias também tinha uma promessa de participação nos negócios). Com isso, meu pai voltou para Manaus; não ficou no Rio de Janeiro. Aí, ficamos quatro anos no Rio de Janeiro, e depois ficamos com meus avós paternos, na casa dos meus pais, na Avenida Atlântica, em Copacabana (meu avô foi morar lá). Meus avós já moravam no Rio; saíram de Belém e foram para o Rio. Meu pai não foi o único a vir para Manaus, ele trouxe, primeiramente, o tio Benjamin, e depois, o tio Elias. Meu pai educou vários irmãos: tio Teco, tio Elias, tio Benjamin. Tio Elias era engenheiro químico, e tio Teco, médico (essa já era a primeira geração pós-borracha, com os primeiros profissionais liberais). O tio Elias veio, então, trabalhar no curtume, que era melhor para o ramo dele: parte de química, de cal... O curtume se desenvolveu muito, e segundo meu pai, era um dos melhores negócios do Amazonas. Alguns anos depois, ele disse: “Vem todo mundo para Manaus”, e aí, nós voltamos para Manaus, onde eu fiz a faculdade. Projetos O desejo do meu pai era que eu fosse estudar nos EUA, mas eu não queria sair de Manaus, e comecei a trabalhar. Na faculdade, e já trabalhando, eu tirava minha hora de folga sempre para estudar. Eu estudava à noite, e durante o dia, trabalhava. Também tinha o período em que eu folgava, e estudava mesmo, estudava na faculdade, estudava uma parte da manhã, e às vezes, uma parte da tarde, trabalhando, acompanhando na usina as coisas, no escritório. Meu pai sempre priorizou o trabalho e a educação. Nos períodos de férias, ele queria que eu fosse estudar nos EUA. Aliás, ele queria que eu fosse morar lá, mas como eu não queria ir, eu passava um período lá no escritório do meu tio Bernardo, casado com a irmã do meu pai. Era uma espécie de trainee, acompanhando os negócios, como os negócios se desenvolviam, como as coisas HISTÓRIA e MEMÓRIA | 67
aconteciam nos EUA, visitando fábricas. O maior mercado consumidor dele, eu diria que era o europeu, e em segundo lugar, o americano. Depois, a coisa se inverteu. Ainda assim, meu pai queria que eu fosse para os EUA e não, para a Europa. Os EUA sempre foram uma referência para tudo. O americano é muito prático, e eu diria que o melhor ensino do mundo é deles. Atualmente, por exemplo, os japoneses, os chineses, os coreanos que residem em Manaus, todos eles mandam os filhos estudarem nos EUA... Não é à toa. Eu diria que existe uma tendência da elite intelectual, cultural, do Amazonas, que está voltada para esse polo. Cada vez mais, alunos nossos vão para os EUA estudar. Pelo menos, na minha família, já foram dois filhos do Jaime com a Anne, o Davis já mandou um, e está mandando outro agora. Eu, pessoalmente, mandei o Davis e mandei a Helen. É uma formação especial; numa das visitas que fiz à Helen nos EUA, fui à biblioteca da universidade onde ela estudava, e fiquei impressionado com a informatização, com a facilidade de pesquisa, coisa que nós não tínhamos aqui, e não sei se atualmente já temos. A possibilidade de você se desenvolver num país como esse, com essas condições, é um diferencial muito grande. Outros grupos da elite intelectual da região Norte, grupos não judaicos, também fazem esse tipo de opção. 68 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
Isaac e Gimol Benzecry (D. Santinha), e familiares
Acho que em questão de educação, o judeu se destaca porque olha para a educação com outros olhos, seja em Manaus, no Rio de Janeiro ou nos EUA. A quantidade de prêmios Nobel ganhos em relação à quantidade de pessoas, o judeu é um número ínfimo no mundo inteiro, e no entanto, a quantidade de prêmios Nobel que existe é muito grande, talvez não seja a maioria mas, proporcionalmente, é a maioria. Uma comunidade, duas sinagogas Meu pai sempre foi à sinagoga, toda semana. Sempre houve um shabat festivo na casa dele. Desde pequenininho – que eu me entendo – isso sempre acontecia. E essa é uma das razões da continuidade do judaísmo. A formação religiosa dele veio do meu avô, que era um homem extremamente religioso. Eles estudavam, os irmãos deles meldavam (rezavam) com muita desenvoltura. Eu, infelizmente, não faço isso, mas seguimos o exemplo dele, fazemos todas as páscoas, fazemos o shabat. Em 1941, quando eu nasci, a comunidade era muito pequena, mas já havia o cemitério e duas sinagogas. Minha formação foi com Jacob Azulay. Antes dele, quem me ensinava era Eliezer Cohen, que veio do baixo Amazonas. Depois, parece que o Sr.
Interior da atual sinagoga de Manaus, a Esnoga Beit Yaacov-Rebi Meyr, inaugurada em 18 de janeiro de 1962
Eliezer ficou doente, e o Sr. Jacob continuou. Fiz o Bar-Mitzvá junto com os Larrat; já havia passado do tempo. Não era uma festa grande, como todo mundo faz hoje, mas se festejava. Minha família frequentava a sinagoga da Ramos Ferreira. Nos anos sessenta, com a construção do Templo, houve a junção das duas. Antes disso, uma ficava na Sete de Setembro e a outra, na Ramos Ferreira, na Praça da Saudade. Eu me lembro que lá na Sete de Setembro, era o Sr. Jacob Azulay que era o Shaliach, e na Ramos Ferreira, era HISTÓRIA e MEMÓRIA | 69
Navio da Booth Line ancorando no porto de Manaus
o Sr. Eliezer Pazuelo, Pessoalmente, nunca senti qualquer tipo de animosidade entre as duas sinagogas. Em nenhuma ocasião ouvi qualquer referência ruim em relação à outra sinagoga. Ao contrário, às vezes, em dia de Kipur, íamos passear de uma à outra, permanecendo um pouco para matar o tempo. Vinha gente da outra sinagoga para a nossa, e nós íamos passear também. Os judeus eram todos amigos, não interessava de que sinagoga fosse, eu nunca vi animosidades entre um ou outro. Não sei dizer o motivo do meu pai ter optado pela sinagoga da Ramos Ferreira. Eu ia todo shabat para lá, íamos nós, iam os Abecassis...
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Pequena biografia Sou Frank Benzecry, filho de Isaac Benzecry e Gimol Benzecry, conhecida como Dona Santinha. Nasci em 29 de setembro de 1941, na Rua dos Andradas, Manaus, onde hoje funciona a Casa dos Colchões. Com dois anos de idade, mais ou menos, nós nos mudamos para a casa da Ferreira Pena, uma casa muito bonita, onde nasceu a Janet, minha irmã, um ano depois. Estudei o curso primário em Manaus, o secundário no Rio de Janeiro e a faculdade em Manaus, faculdade de Economia. Desde cedo, comecei a trabalhar com meu pai. Conforme já mencionei, o desejo dele era que eu estudasse fora, nos EUA, e eu não queria. Ainda assim, passei duas temporadas de
três meses no EUA como trainee, no escritório do meu tio, aprendendo, visitando fábricas, coisas que mais tarde foram muito úteis para o desenvolvimento dos nossos negócios. Em dezembro de 1963, me casei com Meire Benzecry. Nove meses depois, nasceu o Davis, dois anos depois, a Anne, e seis ou oito anos depois, a Helen. Primeiros imigrantes Da família do meu pai, quem chegou primeiro ao Brasil, foi do lado da mãe dele, os Larrat. A mãe dele já nasceu aqui, no interior do Pará, em Cametá, e meu pai nasceu já em Belém. Do lado do pai do meu pai, meu avô veio de Tetuan aos 11 anos, conforme já mencionei antes. Veio com um irmão, e depois, vieram seus pais, meus bisavós, que morreram de febre amarela, pouco tempo depois da chegada ao Brasil. Meu avô foi criado pelos irmãos e também trabalhou desde cedo. Acho que a melhor coisa que existe para educar é o trabalho. Naquela época, o ensino era um pouco precário, mas ele estudava, tinha uma boa letra. Mas não fez o curso superior. Meu pai fez o curso primário e o curso comercial naquela época, e era um autodidata. Falava bem Espanhol e Inglês, era um homem de muita habilidade, de trato muito fino. Aonde chegava, as portas se abriam; de fato, uma pessoa de muita habilidade. Foi a razão do sucesso dele. Além disso, tratava as coisas com seriedade e com muita honestidade. Quando se fazem as coisas certas, tudo dá certo, então, essa também é uma das razões do sucesso do meu pai. Meus pais, Isaac e Santinha, se casaram em Belém. Tenho até a fotografia do casamento deles. Só não sei quem oficiou, nem tenho a ketubá, mas talvez a Janet tenha. Eles se casaram em fevereiro de 1935, e o Fred nasceu em dezembro do mesmo ano. Foi tiro e queda, assim como foi comigo: eu me casei em dezembro de 1963, e em setembro de 1964, o Davis estava aí. Minha família, por parte de pai e de mãe, era uma família grande. Meu pai teve dez irmãos, sendo sete homens e três mulheres, e minha mãe, eram originalmente oito, mas morreu um, e ficaram sete: cinco homens e duas mulheres. Hoje só restam vivos, da parte da minha mãe, um tio e uma tia, e da parte do meu pai, o tio Benjamin, que era um tio muito querido, muito chapinha, todo o tempo conosco, todo o tempo brincando, não tinha quem não gostasse dele. Nasce uma empresa Tudo o que foi feito aqui pela família Benzecry, pelo nosso grupo, foi feito pelo meu pai. Ele começou do zero. Conforme já relatei anteriormente, meu pai, muito novo, saiu de casa, porque meu avô tinha dez filhos, e meu pai aspirava duas coisas: liberdade e independência. Ele queria ser independente financeiramente. Então, ele trabalhava, mas nunca se esqueceu da família. Sempre ajudou a família, ajudou a todos. Em certa ocasião, ele achou que teria mais oportunidades no Nordeste. Foi para o Nordeste, trabalhou com couro e ganhou um bom dinheiro. Com a proximidade da Segunda Guerra Mundial, houve uma retração do mercado e ele ficou estocado com uma quantidade grande de couro. Vendeu o estoque com prejuízo, resolveu liquidar o negócio no Nordeste e ir para Belém, onde foi feito o HISTÓRIA e MEMÓRIA | 71
Folha de rosto do contrato original de constituição da CIEX 1944
Brit-Milá do Fred, meu irmão, já com seis meses. De lá, veio para Manaus, com poucos recursos e deixando algumas dívidas, que eram poucas, mas deixou. Ele falava de forma muito feliz que, em um ano, pagou a todos os amigos que acreditaram nele, lá na Parnaíba. E os negócios em Manaus começaram a prosperar, começaram a crescer; ali ele trabalhava também com couro, trabalhava com castanha, trabalhava com borracha... Meu pai estava acostumado a trabalhar com couro, ele sempre trabalhou com couro no Nordeste e também em Manaus. O pai dele já tinha uma usina de castanha, ele já estava acostumado a ver aquilo 72 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
lá em Belém, e montou uma usina de castanha também em Manaus. Meu pai era um homem extremamente dinâmico, estava sempre em busca de qualquer oportunidade que surgisse. Foi um pioneiro na área dele, sem dúvida nenhuma. E nunca dizia “não” a absolutamente nada, sem antes examinar. Quando meu pai veio para Manaus, além do couro, ele também tinha duas outras atividades de representação: a Philips e a Willys Overland. Depois, com as dificuldades de importação, ele largou isso tudo e passou a se dedicar à usina de castanha que já havia construído, e ao curtume,
Imagem de uma ação da CIEX, do seu primeiro ano de atividade, 1944
que estava se desenvolvendo. Foi então que se associou a um senhor argentino, Marcelo Grosz, também de origem judaica. Antes da sociedade, o nome era Curtume Crocodilo. Depois, quando meu pai se associou, passou a ser Curtume Mago Ltda, que já era uma marca bem conhecida, porque o Sr. Marcelo Grosz, um argentino de origem polonesa, era um técnico experiente em couro, e deu uma alavancada muito grande na parte técnica do nosso curtume. E a parte comercial, a parte burocrática e administrativa, era o meu pai quem fazia.
A empresa cresce A associação já havia sido feita, a empresa já era Curtume Mago, o curtume já tinha um padrão de qualidade elevado, e quando o Sr. Marcelo Grosz não quis mais ficar muito tempo em Manaus, o tio Elias entrou no esquema. O tio Elias, que era engenheiro químico, absorveu os ensinamentos do Sr. Marcelo Grosz e passou a tocar a parte técnica do curtume, recebendo, de vez em quando, a visita do Sr. Marcelo, que permaneceu como sócio do meu pai com 50% de participação. A técnica de curtição de couro é uma atividade muito complexa, envolvendo a utilização de HISTÓRIA e MEMÓRIA | 73
Vista aérea do ancoradouro da CIEX, em Manaus
máquinas especiais, máquina de dividir, máquina de descarnar, máquina de rebaixar e máquina de lustrar. É um equipamento que precisa saber onde comprar. Além disso, o nosso couro, diferentemente do couro africano, tem muito osso, principalmente o jacaretinga. Então, havia uma técnica de abrandamento em tina de ácido muriático, que tinha que saber fazer com o grau certo, com o tempo certo. Só uma observação: o couro pode ser curtido até no sol, só no sol, colocou o couro, depois de muito tempo ele vai curtir, só que ele vai ser duro, sem flexibilidade e sem acabamento. Todo esse processo industrial de curtição de couro vem para produzir um resultado melhor. A técnica mais avançada de curtição de 74 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
couro vinha da Europa. O Sr. Marcelo Grosz era polonês e vinha de uma família de curtidores na Polônia... a técnica veio de lá! As coisas foram se aprimorando em termos de utilização de novos produtos, como o cromo, na curtição mais rápida para o couro de jacaré, que é usado também no boi; e também os fulões rotativos que, em vez de levar, sei lá, dez dias, quinze dias curtindo no tanino, aquilo era acelerado de uma maneira tal que era curtido em poucas horas; havia o processamento, que passava por todas aquelas máquinas, máquinas importadas, que dividiam o couro para deixar uma película bem fininha e macia, com alta flexibilidade. Para o couro de jacaré, toda a técnica
era muito importante, porque havia o couro bom dele. Por exemplo, o couro totalmente chato não era muito interessante, ele tinha que ter a escama levantada, era o que ele chamava de técnica bombeiro, então, essa técnica foi desenvolvida por nós, em Manaus. Éramos os maiores curtidores de jacaré no mundo. Não havia nenhum curtume do tamanho do nosso e com a capacidade do nosso. Havia muita procura... Exatamente pela qualidade, pelo suprimento, pela quantidade. Nós fomos pagos para fazer um serviço que precisava ser feito: matar jacaré. Era tão grande a quantidade de jacaré, que ameaçava as criações dos caboclos na beira rio, ameaçava os próprios caboclos; aqui, ali,
tinha um caboclo com o braço arrancado. Ainda hoje existe isso... O irmão da nossa cozinheira morreu porque teve a perna arrancada por um jacaré, há um ou dois anos. Interferências externas A quantidade de jacaré era muito grande, então, o couro do jacaré tinha muita procura. Bem processado então, era um negócio maravilhoso. Mas depois, veio a proibição, quando, na verdade,
A castanha do Pará (o ouriço, à direita) e a castanha ainda na casca (abaixo). Carro chefe dos produtos de exportação do GRUPO CIEX
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deveria ter tido um disciplinamento; com essas entrar sapato da China, sapato da Índia, sapato de ideias ecológicas etc, acabou o negócio do jacaré. todo lugar, artefatos de couro em si, e a indústria Um exemplo de disciplinamento: não matar calçadista nacional quase desapareceu levando couros abaixo de determinado tamanho, para consigo também os curtumes, e foi nessa altura deixar que o jacaré procrie. A nossa própria que nós resolvemos descontinuar o curtume. empresa não aceitava couro abaixo de um Outras atividades determinado tamanho, porque a nossa ideia Meu pai tinha muitas empresas: temos a VITAL, era preservar o negócio. Mas nós não éramos a CIEX, a EMPIL – Empresa Industrial Ltda, que os únicos compradores. Existiam muitos trabalhava com óleos essenciais de pau-rosa e compradores, e havia o contrabando para os copaíba. Meu pai começou destilando; já era uma países limítrofes. Havia risco de extinção, eu acho que até poderia acontecer, porque não existia uma usina montada aqui, ele também tinha usinas da EMPIL montadas no interior, e também comprava boa fiscalização. essências de terceiros. Era um volume muito Essa proibição ainda permanece, mas hoje está grande e um preço muito alto naquela época, até um pouco flexibilizado para animais de cativeiro. que inventaram o linalol sintético, e o negócio foi No entanto, há uma consciência ecológica muito definhando. Hoje ainda há procura por óleo de grande nos países que antigamente buscavam pau-rosa, por linalol extraído do pau-rosa, mas a pelo jacaré, e hoje ninguém quer comprar procura é muito pequena. nenhuma pele de Meu pai trabalhou fantasia, nem nada de também com jacaré, nada que eles achem que seja uma borracha. A CIEX ameaça ao sistema tinha um leque ecológico. de atividades, A proibição ocorreu no era borracha, era início de 1963. Naquela castanha, cumarú, época, havia um estoque balata, todos os remanescente que nós tipos de goma, tínhamos, e o governo principalmente a não queria liberar. Com sorva, que foi um o passar do tempo, negócio muito Davis Benzecry e seu filho Daniel. Quarta veio o bom senso, e grande, que e quinta geração da família na Amazônia o governo liberou, e durou de 1962, foi tudo exportado. como produto Zeramos tudo e industrializado, até transformamos o curtume de jacaré em curtume 1991, quando substituíram as gomas naturais de boi. Esse curtume não existe mais, porque, por gomas sintéticas, também nos EUA. Um dos estrategicamente, foi mal feito ter colocado um principais compradores era o grupo Riddley, uma curtume de boi em Manaus, porque a quantidade das maiores firmas americanas daquela época, e de abate era pequena, já que vinha muita carne que tinha uma empresa só dedicada à fabricação de fora. Além disso, ocorreu outro fato: quando o de base para eles. Eles compravam conosco, e nós Brasil, na época do governo Collor, se abriu para recebíamos visitas dos diretores do Riddley. importações do comércio globalizado, começou a Meu pai também começou a CIEX sozinho, em 76 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
O casal Frank e Cley Benzecry, seus três filhos , Davis, Anne e Helen, e seus netos
1944. Antes de ser CIEX, era J. Benzecry, que ele descontinuou, e fundou a CIEX. Mais adiante, meu avô, que era muito amigo da família Pazuelo, pediu para ele arranjar um trabalho para o Sr. Abraham Pazuelo. O Sr. Abraham Pazuelo veio para Manaus e começou a trabalhar com meu pai. E ele deu sociedade para o tio Abraham. As ações originais da CIEX S/A valiam um milhão, trezentos e cinquenta e um mil cruzeiros daquela época. Atrás, em cada uma dessas ações, tem a data realizada: 7 de novembro de 1944, que foi o dia em que registraram na Junta. “Meu avô gostava de discernimento”, comenta Davis, “de começar as coisas logo no início. Ele tinha duas manias: começava logo no início, porque o número 1 era
muito bom, e o número 5 também. Por motivos óbvios, que todo mundo sabe. Então, a CIEX, na verdade, foi criada em 1º de novembro de 1944, e o registro dela foi em 7 de novembro, conforme consta atrás da ação, em cada uma das ações.” Tivemos também outros negócios pequenos, tivemos negócios de importação, importação de ferro, de cimento, e também de material de construção em geral, que já desativamos. Tivemos lojas de Zona Franca, que era o Davis que tocava, e o Fred, meu irmão. Meu pai teve várias empresas, que ele acabou desativando. Tinha, por exemplo, uma empresa para servir no interior. Era a Sociedade de Aviamentos Ltda. Durava um bocado de tempo, HISTÓRIA e MEMÓRIA | 77
até o dia em que achava que não dava mais, e fechava o negócio... Atividade atual Hoje trabalhamos com juta. Fiação e tecelagem de juta, e também, usina de castanha. É muito difícil comparar empresas, porque é diferente, mas acho que naquela época, as margens eram muito maiores, apesar da JUTAL ser uma das poucas empresas brasileiras que restaram na atividade. Hoje existem: uma empresa do gênero em Belém, a Castanhal; nós, em Manaus; uma empresa pequena em Manacapuru; e uma outra empresa que está se instalando em Manaus. Serão quatro indústrias de fiação e tecelagem de juta aqui no Brasil. Nós somos, talvez, os segundos.
O Cortume Mago, uma das primeiras sociedades criadas por Isaac Benzecry. Por décadas foram os maiores curtidores de couro de jacaré do mundo
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Gênese da industrialização e o elemento judaico nesse contexto Eu diria que tudo é dinâmico no mundo, e a economia, mais do que tudo, também é dinâmica. Tudo tem início e tem fim, toda empresa nasce, se desenvolve, definha e desaparece, e sempre surge uma atividade nova. Com o início da Zona Franca, muitas pessoas vieram para Manaus, muitas, de origem judaica, para trabalhar na indústria, e ainda permanecem até hoje. E foram também muitos judeus trabalhar no comércio propriamente dito, trabalharam, ganharam muito dinheiro, e quando surgiu a concorrência lá no Sul do país com contrabandos, com aquele Porto Stroessner, aquela coisa toda dificultou a vida deles. Muitos se mudaram para o Sul, foram trabalhar por lá, outros largaram a atividade, e outros continuaram na indústria até hoje. Não podemos dizer que isso vai acabar um dia, mas podemos observar que as atividades vão se alterando, vão se modificando, e sempre vai haver alguma coisa para fazer. Eu acho que o judeu tem um espírito pioneiro, e que sempre provou ser assim. Desde a época da Inquisição, quando eles saíram de Portugal e vieram para o Brasil, foram verdadeiros pioneiros. Eles se escondiam, praticando a religião por trás das portas. Quando vieram os holandeses e a situação dos judeus melhorou, eles passaram a se manifestar mais, surgiu a primeira sinagoga em Recife, na Rua dos Judeus. Depois, quando os holandeses foram expulsos e a coisa piorou de novo, o que aconteceu? Esses mesmos judeus, aqueles que tinham mais posses, arrumaram as malinhas deles e foram embora... Uns foram para os EUA e ajudaram a fundar a Nova Amsterdã, em Nova York. E pelas ilhas do Caribe, que se vê, principalmente na parte holandesa, uma porção de vestígios da presença de judeus, que se confirma pelas visitas aos cemitérios
judeus brasileiros e portugueses... Numa visita ao cemitério de Curaçao ou ao cemitério de Barbados, aparece uma porção de nomes do tipo José Chaves, Francisco Oliveira, João Carvalho, e vários outros nomes 100% portugueses, que eram de cristãos novos! Eram “cristão novos” entre aspas, porque na realidade, eles eram judeus. Crônicas da família Benzecry Essa história dos judeus que vieram para cá e que foram se espalhando pelo Caribe etc é uma característica do pioneirismo do judeu. Meu bisavô, por parte da minha avó, mãe da minha mãe, tinha uma propriedade enorme no rio Tapajós. Ele tem uma história engraçada: o meu bisavô, na realidade, antes de ser meu bisavô, era cunhado da minha bisavó. A minha bisavó se casou com 13 anos, e um mês ou dois depois, o marido dela morre de febre amarela. Então, a família chama o irmão do falecido marido e diz: “Olha, agora você vai tomar conta da sua cunhada, agora você vai se casar com ela. É da religião.” E ele cumpriu a mitzvá. A sorte é que ela era bonita. Ele era um pioneiro no meio do mato. Isaac Benzecry e Isaac Sabbá, esses dois foram pioneiros. Cada um no seu lado, cada um na sua atividade, na sua área. E foram homens muito sérios, que é a razão do sucesso deles. Duas curiosidades relatadas pelo meu filho Davis: “Uma vez conversei com o Sr. Marcelo Sabbá, e contei que eu vi, na data de fundação da CIEX, o nome do Sr. Isaac Sabbá como sócio do meu avô, e eu perguntei se ele sabia do que se tratava. Na realidade, ele explicou, isso era como uma troca de favores entre eles. As empresas tinham que ter sociedade, então, eles entravam, não exatamente para participar, mas para constituir uma ‘Sociedade Limitada’, porque precisava ter mais de um sócio por alguma exigência da legislação. Assim, ele era sócio da CIEX, e meu avô também era sócio de algum negócio dele. Eles faziam isso como uma forma de troca de favores e, eventualmente, depois de um tempo, a lei parece que era atendida, e eles
O empresário Isaac Benzecry, símbolo de empreendedorismo e dinamismo criativo pioneiro no Amazonas, após a crise da borracha
podiam sair da sociedade e desfazer aquilo. A segunda curiosidade é uma palavra do Sr. Ambrósio Assayag, que uma vez falou sobre o sucesso do meu avô como empresário, e também comentou que o meu avô conhecia o caráter das pessoas ‘na mesa’. A mesa é um lugar onde as pessoas não mentem. Ele disse que meu avô fazia dos seus parceiros comerciais, ‘os seus comensais’ – palavras do Sr. Ambrósio. A expressão usada por ele era ‘comensal’ – aquele que come junto. Na mesa era onde ele se fazia conhecer e onde ele conhecia o outro. Eu me lembro de inúmeras vezes em que os parceiros comerciais eram convidados para almoçar ou jantar na casa do meu avô. Aliás, era uma oportunidade de ganhar um dinheirinho, porque meu avô perguntava: ‘Quer ganhar um dinheirinho?’ ‘Quero sim, senhor.’ ‘Tem HISTÓRIA e MEMÓRIA | 79
um trabalhinho de garçom hoje para servir.’ O pessoal achava o máximo, os dois meninos... A gente serviu muito canapé pra gringo, muito refrigerante. E aliás, os canapés, era o meu avô que preparava. Ele tinha um cálice de kidush, o mesmo tipo do cálice comum, um menorzinho, que ele usava. Pegava aquilo ali no pão de forma, cortava aquele negócio em rodinhas, ficava no tamanho certo, e daquilo ali eram feitos dois tipos de minipizzas: uma que era de cebola e a outra, de tomate, uma rodelinha daquele tomatezinho regional que ficava ali, fazia uma com queijo e tomate, e a outra, com queijo e cebola. Esse era o prato dos
Isaac Benzecry (segundo, da direita para a esquerda) junto a seus pares da liderança comunitária, em Seder de Pessach coletivo. Manaus, data desconhecida
canapés, sem contar as taças que ele mesmo fazia, e que eram colocadas pra servir e que nós servíamos depois, na bandeja. Terminava o serviço, tá aqui o dinheiro, tá aqui o pagamento, e ele era bom pra tudo, dando o exemplo do trabalho; que você cresce com o trabalho. Quer um dinheirinho? Eu tinha uns 7 anos de idade e já servia de garçom para o meu avô. A minha avó dava mesada de graça, toda semana ela dava um dinheirinho pra gente, mas o meu avô, não, já educava: ‘Quer um dinheirinho?’ ‘Quero sim, senhor.’ ‘Tenho um sapatinho pra engraxar...’ E esse, quem pegava mais era o Ivan. O meu avô fazia, ele se divertia, ele adorava, ele também se divertia muito com uma patota de meninos. Ele botava a gente pra fazer show de dança, puxa, eu estava lá e a ‘marmotice’ dos meninos e tal, ele botava aquilo ali, os gringos achavam lindo, aquilo ali era o máximo! Aliás, salvo algum engano, foi o neto de um parceiro desses do meu 80 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
avô, que se lembra de alguma coisa, não sei se foi o filho do Nóbrega ou um dos que comentaram que lembra da gente pequeno servindo o pessoal que vinha de fora, a gente servindo com a bandejinha.” Assim como fazia com meu filho Davis, meu pai fazia comigo. Eu dizia: Pai, tenho que consertar a bicicleta. E ele: Rapaz. Tenho uns sapatinhos para engraxar... Então, depois que eu engraxava os sapatinhos dele, ele me mandava lá no seu Jaime (Salgado). Chegava lá: Seu Jaime, é pra consertar minha bicicleta. Então o Jaime ia lá com o Marcelo Raimundo: Raimundo, ajeita aqui a bicicleta do Frank. Ia e ajeitava, daqui a dois, três dias furava o pneu, ia lá de novo: Tio Jaime, furou o pneu de novo. Tu sabes que o seu Jaime sempre me recebeu com um sorriso por aqui, nunca me deixou sem ser atendido, mandava fazer tudo na minha bicicleta e depois, mandava a conta para o meu pai. Tzedaká sem alarde Meu pai sempre foi um grande colaborador da comunidade. Prefiro não dizer o que ele fez, existem coisas que eu não sei que ele fez, e coisas que eu fui descobrir só agora. E tem até um diploma de participação. Em 1956, para colaborar com o Instituto Brasil Estados Unidos, que agora é Instituto Cultural Brasil – Estados Unidos, ele comprou várias bolsas e doou, ele e o Moysés Israel; eu não sabia disso, chegou meio atrasado. Recentemente, houve os 50 anos lá do IBEU, o aniversário, e eles nos convidaram para ir. Eu não pude ir porque tinha um compromisso. Isso foi há pouco tempo, pouco menos de um mês. Então, foram a Anne e o Davis, e receberam o diploma do avô. Foi assim que ficamos sabendo. Também ocorre de pessoas chegarem a mim, dizendo: Teu pai me ajudou nisso, nisso e nisso – e eu não sabia. Ele nunca falava o que ele fazia. Era dele, uma característica dele. Na verdade, ele ajudava muita gente. Logo que ele morreu,
chegou o Manuel Otávio, o advogado, e disse: “Frank, quero fazer o inventário do teu pai, vai ser a minha homenagem pra ele, não quero receber nada. Agora, quero te contar o que o teu pai fez pra mim.” E então ele contou que quando houve a revolução e mandavam matar os comunistas, criou-se um mito de que ele, Manoel Otávio, era comunista. Ele não era comunista, mas alguém, do exército, veio aqui pedir para que meu pai tirasse o Manuel Otávio do quadro de advogados da CIEX. Meu pai respondeu a essa pessoa, que era um amigo em comum: “Não vou fazer isso com o Manuel Otávio. Manuel Otávio é meu amigo, é uma pessoa corretíssima e tem que sobreviver. Ele vai viver do trabalho dele; é meu amigo.” E o Manuel Otávio veio me contar essa história, e contou aos prantos, emocionado. E então, ele completou: “Só três clientes não me tiraram o trabalho: foi o teu pai, o Isaac Sabbá e o pessoal do London Bank.” Todos os outros cortaram o Manuel Otávio. Dona Santinha faz jus ao nome Minha mãe também era uma pessoa muito especial. A conta da mercearia deles era para dez casas. Minha mãe tinha as protegidas dela: toda semana, ela preparava uma porção de cestas básicas para todas aquelas protegidas. Eram umas dez cestas básicas para pessoas que haviam sido empregadas dela, pessoas da comunidade, pobrezinhas. Ela mandava a Madalena preparar as cestas. Algumas até voltavam antes da hora dizendo que acabaram os mantimentos. E minha mãe dizia: “Madalena, refaz aí a cesta da fulana.” Ela era assim... Era ele de um lado e ela do outro. Eles se gostavam muito. Lá no hospital, na hora que ele estava para passar... minha mãe estava sentada perto, beijando a mão dele, chorando... e ele diz: “Santa, para com isso, tu não vês que isso é uma coisa natural?” Ele morrer era uma coisa natural! Ele a estava consolando. É muita fibra, era uma pessoa de muita coragem... HISTÓRIA e MEMÓRIA | 81
Nessa mesma ocasião, no leito de morte (ele adoeceu e morreu em dez dias), ele disse: “Chama o rabino!” Então, foi chamado o rabino Anidjar, e o rabino Anidjar falou com ele. Poucos dias mais, e ele morreu. Ele sabia que ia morrer e uns dois dias antes, ele chamou e disse: “Anote aí os seguintes nomes: fulano de tal, cicrano de tal, beltrano de tal”, e foi me dando uma lista enorme de pessoas para quem ele queria deixar algum dinheiro. Judaísmo e tradição No âmbito da comunidade judaica e da prática da tradição, meu pai ia toda semana à sinagoga, nunca faltava, ia sempre às sextas-feiras e, às vezes, ia no sábado. Nunca deixou de ir às sextasfeiras, nunca deixou de fazer o shabat e de dizer a havdalá, com todas as misheberás para toda a família, para cada um da família. Ele sabia fazer a havdalá de cor. Acho que a origem da família Benzecry é ibérica e não, marroquina. Acho que quando os nossos antepassados partiram da Península Ibérica, no tempo da Inquisição e da perseguição aos judeus, foram para uma porção de países árabes. Não descendemos dos judeus de origem marroquina, os “forasteiros”. Os forasteiros, na visão do Coronel Bentes, eram “forasteiros em sua própria terra”. Essa foi a expressão que ele usou no livro dele; eram os judeus que já estavam em Marrocos quando os judeus ibéricos chegaram. Eram judeus, expressão dele também, que “se perderizaram”, quer dizer, eles se transformaram, eles conviveram com os árabes e ficaram árabes judeus. O nível de escolaridade deles era mais baixo do que o dos judeus que chegaram da Península Ibérica, entre os quais, havia até pessoas ilustres. A família da minha mãe, o pai dela, Isaac Benchimol, como eu já disse, era de Tânger. Ainda hoje existem Benchimol em Tânger. E a família do meu pai era de Tetuan. Jacob Larrat descreve Isaac Benzecry A sociedade de aviamentos do meu pai financiava 82 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
mercadorias e aviava para o interior. Era todo tipo de mercadoria: arroz, açúcar, feijão, macarrão, roupa, sapato. Isso foi por volta de 1951, eu era garoto, 13 ou 14 anos. Há uns 60 anos. Estou com 73... Só posso dizer que, como Isaac Benzecry, só houve um até agora, difícil aparecer outro como ele, está para nascer. Era um homem sério, um homem educado. Vou dar um exemplo de como ele era: eu tomava conta da fábrica. Uma vez, eu estava pesando sorva e, por algum motivo, peguei o jornal. Então, senti alguém batendo no meu ombro. Eu pensei que fosse o português, e disse: Ô, português! Não cheteia! Mas quando olhei para baixo e vi o sapato, vi que era o seu Isaac. E aí, ele disse: Sabe, meu filho, eu gosto muito de ler jornal também, mas tu hás de convir que tu estás trabalhando aí, e tu podes liberar o peso de uma coisa pesada, deixa para ler em casa às 11 horas, está certo? Faz como eu; chego em casa às 11 horas, pego meu jornalzinho e vou ler. Então, esse tipo de educação era o estilo do seu Isaac, porque se fosse outro chefe... nem quero pensar. Seu Isaac era incapaz de se alterar, e nunca fez uma advertência na frente dos outros. E continuo trabalhando na empresa até hoje. Desde 1955. Meu irmão, Abraham, também trabalha nesta empresa há 60 anos. Começamos no curtume. É assim: onde tem um Benzecry, tem que ter um Larrat. O Larrat é como se fosse o talismã do Benzecry. Isaac Benzecry – reconhecimento público e fora da comunidade judaica Recentemente, o Governador deu ao meu pai o nome de uma escola: Escola Isaac Benzecry. Meu pai manteve uma escola de 800 alunos durante quase 50 anos, com professor, com tudo. Acho que nos últimos 20 anos os professores foram dados pelo Estado; mas nos primeiros 30 anos, era o meu pai que dava tudo. Eram 800 alunos em três turnos. Há 20 anos, o Estado assumiu a escola. Meu pai recebia visitas de pessoas até de outra
O empresário Frank Benzecry, terceira geração da família na região, emociona-se ao falar de seu pai Isaac e da longa saga de sua família
religião. O padre Nonato, por exemplo; ele era um intelectual... e usava a palavra tzedaká. Ele chegava e dizia: “Seu Isaac, preciso de uma tzedaká.” E o padre vinha sempre, e meu pai sempre contribuía. Por ocasião da morte do meu pai, o padre Nonato fez um artigo muito bonito como homenagem. Depois, ele passou a pedir tzedaká para mim. Em outra ocasião, vieram as irmãs do Colégio Preciosíssimo Sangue, da Av. Constantino Nery. Elas tinham um terreno ao lado da usina de castanha do meu pai, e elas disseram que precisavam comprar aquilo, e que não tinham para onde ir, outro lugar, que a área de expansão era aquela, e pediram ao meu pai que fizesse um preço camarada para elas... Sei que ele vendeu uma usina para elas. Está igualzinha, até hoje, como era a nossa usina lá, que fica em frente à Paróquia São Geraldo. Assim era o meu pai. Meu pai era amigo de muitos árabes. Não eram palestinos, eram aqueles árabes antigos, que não tinham essa questão... Eram sírio-libaneses. A época era anterior ao Estado de Israel, aqueles que vieram muito antes, aqui eles sempre se davam bem. Depois do Estado de Israel é que começou toda a confusão, com muita influência externa. Gente que quer ganhar com o desentendimento
entre eles. Lembranças bem-vindas Este depoimento me lembra o meu pai, e sempre me emociono quando falo dele. Meu pai já morreu há 20 anos... e parece que foi ontem. Ele é uma pessoa muito especial; aqueles que conviveram com ele ficaram marcados pelo exemplo, pelo carinho, pelas qualidades que ele transmitiu ao longo da vida, e que procuramos seguir. E Davis completa o pensamento com uma mensagem a Frank, seu pai: “Pai, só morre quem é esquecido, e este trabalho que está sendo feito agora é justamente para perpetuar essa memória. A pessoa que morre, é aquela que foi esquecida. Quem é lembrado, não morre nunca, como é o caso do meu avô, de quem estamos sempre falando. Também quero registrar o mérito da família Salgado, pessoas íntegras e inteligentes.”
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Capítulo 4
Meu nome é Moisés Gonçalves Sabbá, filho de Isaac Benayon Sabbá e Irene Gonçalves Sabbá, ambos falecidos. Nasci em Manaus, no dia 3 de abril de 1944. Cursei o primário na Escola Princesa Isabel, o secundário no Colégio Dom Bosco, Colégio Estadual e Instituto de Educação, e o curso superior na Universidade do Amazonas, em Manaus
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Moisés Sabbá “Meu pai, Isaac Sabbá, era um visionário. As pessoas costumavam brincar dizendo que, por ser um aquariano, ele estava muito à frente do seu tempo. Era um homem de pensamento avançado. Costumava ficar concentrado durante horas, pensando, imaginando, e a sensação que eu tinha era de que ele tivesse premonições de oportunidades de negócios”.
M
eu nome é Moisés Gonçalves Sabbá, filho de Isaac Benayon Sabbá e Irene Gonçalves Sabbá, ambos falecidos. Nasci em Manaus, no dia 3 de abril de 1944. Cursei o primário na Escola Princesa Isabel, o secundário no Colégio Dom Bosco, Colégio Estadual e Instituto de Educação, e o curso superior na
Universidade do Amazonas, em Manaus, onde fui laureado com o Anel Simbólico, por mérito discente. Não quero parecer arrogante, mas gostaria de comentar que durante o curso no Instituto de Educação fui o melhor aluno dos 100 anos da escola, e na faculdade obtive o Anel Simbólico no curso de Ciências Econômicas, tudo HISTÓRIA e MEMÓRIA | 85
Vista aérea de Cametá no Pará, cidade de estabelecimento original da família Sabbá na Amazônia e lugar de nascimento do empresário Isaac Sabbá
isso, graças ao incentivo, ajuda e apoio dos meus pais para que eu tivesse a minha formação, não somente em casa, mas também na instrução escolar. Atualmente, cuido dos negócios deixados pelo meu pai, alguns ainda em funcionamento, outros, modificados na maneira de trabalhar, e ainda outros novos, como o Hotel. História da família O pouco que sei da nossa história é que o pai do meu avô, que se chamava Primo, veio do Marrocos entre 1880 e 1890 e se estabeleceu em Belém. O avô Primo foi funcionário da Estrada de Ferro Belém-Bragança, onde meu pai nasceu, na cidade de Cametá, em 1907. Meu avô faleceu em Manaus, quando eu era criança. Primo Sabbá era casado com Fortunata Sabbá, e tiveram sete filhos: tia Cotinha (Dona Carlota Israel), tio Jacob Sabbá, Isaac Benayon Sabbá (meu pai), tia Raquel, tia Dina, tio Samuel e tio Abraham. Como já comentei antes, Primo Sabbá e a esposa, Fortunata Sabbá, residiam em Cametá, porque meu avô trabalhava na Estrada Belém-Bragança. Em 1922, meu tio Jacob e meu pai Isaac vieram para Manaus e estabeleceram uma firma de representações. Meu tio tinha 17 ou 18 anos, e meu pai, 15. 86 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
Pequena biografia de Isaac Sabbá Isaac Sabbá nasceu na cidade de Cametá, em 12 de fevereiro de 1907. Em 1922 transferiu-se para Manaus, onde criou uma firma de representações em parceria com o irmão Jacob. Se eu não me engano, o nome da firma era Jacob & Cia, mas não tenho certeza. No trabalho, cada um dos irmãos usava a sua própria aptidão. Meu tio Jacob era uma pessoa muito erudita, com muita capacidade para escrever. Na verdade, ele leu a Bíblia três vezes ao longo da vida, a primeira vez, ainda jovem. Já o meu pai, ao contrário, era uma pessoa muito falante e comunicativa. Então, meu pai era o pracista, enquanto meu tio Jacob cuidava das correspondências. Até que, devido a um desentendimento entre os dois, não no terreno pessoal, mas na maneira de abordar os negócios, meu pai decidiu abrir a sua própria firma, no ramo de exportação. Foi assim que começou toda a trajetória dele como exportador, aproximadamente no início dos anos quarenta. Vida judaica em Manaus e relações fora da comunidade Lembro-me que havia duas sinagogas. A primeira ficava na Rua Sete de Setembro, em frente a onde hoje funciona uma agência do Banco da
Isaac Sabbá participa da cerimônia oficial de inauguração do templo atual da Sinagoga Beit Yaacov-Rebi Meyr, que contou como oficiante com o saudoso shaliach Jacob Azulay, e a presença ilustre de David José Pérez. Manaus, 18 de janeiro de 1962
Amazônia, e a segunda, fundada em razão de uma desavença entre os nossos correligionários naquela época, ficava na Praça da Saudade. A família do meu pai frequentava a sinagoga da Praça da Saudade. Apesar de uma formação judaica forte, tanto no coração como no pensamento, meu pai era muito comunicativo, como já comentei anteriormente, e também era ligado ao multiculturalismo. Ele tinha uma relação muito boa com toda a sociedade e com as diferentes religiões e etnias. Era muito amigo de várias famílias de descendentes de sírios, como a família Tadros entre outras, e também tinha amigos cristãos. Enfim, não havia nenhum problema nesse particular, e apesar da concorrência nos negócios, todos conviviam civilizadamente. O pioneirismo de Isaac Sabbá no processo de industrialização Meu pai, Isaac Sabbá, era um visionário. As pessoas costumavam brincar dizendo que, por ser um aquariano, ele estava muito à frente do seu tempo. Era um homem de pensamento avançado. Costumava ficar concentrado durante horas, pensando, imaginando, e a sensação que eu tinha era de que ele tivesse premonições de oportunidades de negócios. Ele começou com
exportação de borracha e castanha. Com a guerra, ele passou a fornecer uma grande quantidade de borracha para as forças aliadas. Os carregamentos eram feitos pelos hidroaviões Catalina, onde hoje é a praia no Educandos, Manaus. Era lá que os aviões aquatizavam, já que não havia aeroporto naquele tempo. Somente mais tarde foi inaugurado o aeroporto de Ponta Pelada. Meu pai tinha usinas de lavagem de borracha, e fazia exportação. Paralelamente, ele já fazia exportações de castanha, desde quando era sócio do tio Jacob. E também em paralelo, ele iniciou a industrialização de madeira, tendo serrarias na cidade de Manaus, duas, Serraria Rodolfo e Serraria Hore, e serraria em Itacoatiara, que havia sido de um francês chamado Emilie Cheniveux. Quase no final da guerra, eu nasci, em abril de 1944. Por essa época vieram os Acordos de Washington. O Brasil tinha grandes saldos comerciais, sobretudo com os EUA, que resolveram fazer alguns investimentos no Brasil, e daí surgiram a Companhia Siderúrgica Nacional e a Fábrica Nacional de Motores (FNM) entre outras. Em contrapartida, o governo americano pediu ao governo brasileiro que criasse o monopólio da compra da borracha. Então, a atividade da borracha, o trade da borracha, foi completamente nacionalizado, porque tinha apenas um HISTÓRIA e MEMÓRIA | 87
Isaac Sabbá e Waldyr Bouhid, superintendente da SPVA, na assinatura do contrato de financiamento para a construção da Refinaria de Manaus
comprador, que era uma companhia criada pelos americanos, a Rubber Trade Development, que depois se transformou no Banco da Borracha. Este detinha o monopólio, ou seja, somente o banco, em nome do governo brasileiro, comprava borracha. E por que isso? Porque quando terminou a guerra, os japoneses perderam todas as plantações de borracha que tinham no Extremo Oriente, e assim, a nossa borracha deixou de ser competitiva por ser nativa, extrativa, diferente da outra, que era de plantação racional, que os ingleses chamam de “plantation”. Nesse momento, meu pai se desinteressou pelos negócios da borracha, porque percebeu a impossibilidade de operar o negócio com lucro, já que não havia mais possibilidade de comprar e vender, mas de simplesmente fazer a atividade de lavagem da borracha, que era apenas uma prestação de serviço. Essa não era bem a maneira como ele enxergava as coisas, então, ele resolveu transformar essa fábrica de borracha num segmento, onde começou a produção de preservativos (camisinhas). Naquela época, ele tinha um contrato muito grande com a Johnson & Johnson, mas devido às pressões, sobretudo da Igreja católica junto ao Congresso Nacional, essa 88 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
atividade não era bem vista, já que interferia na capacidade de gerar filhos, e então, essa atividade foi descontinuada. Mas neste mesmo lugar ele fez uma fábrica de latinhas para a coleta do látex, e fez também uma fábrica de pregos, sempre com espírito visionário, porque como já tinha a madeira, e para fazer a casa precisava da madeira e do prego, ele fez o prego também. Atividade com petróleo Em 1948, meu pai teve a oportunidade de conhecer um petroleiro americano que distribuía petróleo na Bacia Amazônica Peruana, e esse petróleo era petróleo cativo, que não tinha como ir para o Pacífico, porque a cordilheira era um empecilho enorme. No entanto, não havia demanda para o consumo no Peru. Essa empresa americana, a Texas Gulf Producing Company, começou a explorar esse petróleo, e construiu uma refinaria na cidade de Quito, mas não tinha o que fazer com esse petróleo, então ela abordou meu pai, e ele decidiu que ia procurar as autoridades para começar a distribuir produtos derivados de petróleo produzidos no Peru, os produtos Ganso Azul – gasolina e querosene Ganso Azul, que era a marca da empresa peruana. Em seguida, ele fez contato com o governo brasileiro para
Isaac Sabbá com o presidente Juscelino Kubitschek e o governador Gilberto Mestrinho em jantar oferecido pelo empresário ao presidente, quando da inauguração oficial da refinaria, em 3 de janeiro de 1957
mostrar a importância que teria uma refinaria de petróleo na cidade de Manaus, que é uma cidade mediterrânea, que do ponto de vista da segurança nacional era importantíssimo que houvesse uma refinaria mediterrânea, porque todas as refinarias que existiam até então ficavam na costa. E a experiência, durante a guerra, foi que os nazistas destruíram principalmente os navios petroleiros com o objetivo de enfraquecer as forças brasileiras e americanas que atuavam em conjunto. Depois, os americanos vieram, construíram a base de Val de Cans e de Natal, e aqui foi vendida essa ideia, até porque ele era uma pessoa com uma capacidade de persuasão muito grande. Antes de tudo, meu pai se convencia exatamente do que ele achava que era certo, e a partir daí, ele partia para o convencimento de pessoas. Essa foi uma grande lição que eu tive na vida: para convencer os outros, você, primeiro, tem que se convencer. Assim foi durante muito tempo. O fato é que o presidente Getúlio Vargas autorizou, em 1952, a construção de uma refinaria de petróleo na cidade de Manaus. E em 1952 meu pai criou a COPAM – Cia de Petróleo da Amazônia – com a finalidade de operar, construir e funcionar uma refinaria na Amazônia. Isso foi um ano e pouco antes de sair a lei do monopólio que criou
a Petrobras, o que impossibilitou, de um modo ou de outro, a criação de novas refinarias particulares. Assim, veio a construção da refinaria. Alguns amigos achavam até que meu pai estava, bem, eu não diria desequilibrado, mas sonhando com coisas... como as pessoas que sonham com coisas irreais. De qualquer forma, ele levou o projeto adiante e teve um apoio muito grande do ministro e embaixador Roberto Campos, que foi para o BNDES (naquele tempo, BNDE), que acabara de ser fundado, e resolveu acreditar e financiar a refinaria. Esta, com o seu funcionamento, se pagou, só que naquele tempo não havia a noção de planejamento, e quando a refinaria começou a funcionar, o Estado do Amazonas, incluindo a cidade de Manaus, consumia 300 barris de petróleo por dia, e a refinaria produzia 5000, e não havia o que fazer com o excedente. Daí surgiu uma política de preços, criada pelo saudoso presidente Juscelino Kubitschek, no Conselho Nacional do Petróleo, que era autoridade para assuntos de petróleo e, assim, o preço foi unificado no Brasil. Isso foi muito impactante, porque o desenvolvimento do interior do Brasil se deu com esse preço unificado. O que isso significava? Significava que o consumidor de onde estavam as refinarias (na costa) pagava um determinado plus HISTÓRIA e MEMÓRIA | 89
que permitia cobrir o frete para qualquer lugar do país. Então, o consumidor estava em Rio Branco, no Acre, em Poconé do Mato Grosso, no Chuí ou no Amapá, e o preço era o mesmo de São Paulo e Rio de Janeiro. Isso acabou no ano de 1995, quando a legislação do petróleo foi modificada. Mas, desde 1956, quando a refinaria começou a funcionar, até o ano de 1995, durante esses quase 40 anos, foi possível que os consumidores do interior do Brasil pagassem o mesmo preço que os dos grandes centros, o que atualmente não acontece mais. O primeiro carregamento, lembro, foi já no final de 1956, depois que a refinaria começou a funcionar, em setembro de 1956, precisamente no dia 5 de setembro, data da elevação do Amazonas à categoria de província, quando o presidente Juscelino Kubitschek veio a Manaus inaugurála. O primeiro carregamento levou derivados de petróleo para Cabedelo, na Paraíba. E aí, aquela história do que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha: agora, que já tinha o petróleo, o presidente Juscelino criou a indústria automobilística em 1957, e foi quando começou a crescer o consumo de derivados do petróleo. Meu pai identificou que havia outra oportunidade para levar petróleo até a cidade de Belém. Comprou um petroleiro na Noruega, trouxe para Manaus (esse petroleiro se chamava Amazônia), e todas as semanas ele ia e voltava de Belém. Ele vislumbrou também uma oportunidade no negócio de gás, e transferiu os direitos que tinha para a família Benchimol, porque a esposa do saudoso professor Samuel Benchimol era a sobrinha dele do coração, Mary Benchimol. Hoje, a FOGÁS é uma empresa grande, eu entendo, próspera e lucrativa, e fico feliz que assim seja. Paralelamente, havia a necessidade de construir depósitos, que nós chamávamos de terminais, bases para a logística de distribuição. Então, meu pai construiu uma base na cidade de São Luis, e foi o pioneiro, vamos dizer, o descobridor do Porto de Itaqui, que naquele tempo já foi 90 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
identificado como o porto que permitia o maior calado dos navios que traziam mercadorias. Esse porto hoje é operado pela Vale, e é chamado de Ponta da Madeira, onde a Vale recebe navios que transportam 300 mil toneladas de minério, e o terminal que ele construiu lá era um terminal no Refinaria de Manaus: Porto de Itaqui, atual Porto de São detalhe da primeira Luis. unidade de Craqueamento Na cidade de Belém, meu pai não Catalítico de petróleo da construiu nenhum América Latina terminal, porque os americanos tinham deixado os depósitos de combustível, e como ele era uma distribuidora autorizada, ficou com uma das áreas sob concessão, de Belém. Construiu em Santarém, em Manaus, em Rio Branco, Porto Velho e Itaituba. Essa foi então, a fase do petróleo, com uma ênfase muito forte na segunda metade dos anos cinquenta, até os anos sessenta. Só que nos anos sessenta, como ele era tradicionalmente exportador de matérias-primas (ele vendia juta, e tinha prensa de juta nas cidades de Manaus e Itacoatiara), e vendia em bruto, enfardado, ele resolveu não mais fornecer a fibra e sim, o produto acabado, e assim, fundou uma indústria de juta em 1963, em Manaus, onde originalmente haviam sido as indústrias de borracha, ele fundou a empresa que se chamou Fitejuta. Também no início dos anos sessenta, ele resolveu processar mais o recurso natural existente – as madeiras em tora –, e então, independente das serrarias, ele criou no Amazonas uma empresa que foi a pioneira na industrialização de laminados e compensados de madeira na Amazônia, a Compensa. Em 1966, meu pai resolveu comprar uma fábrica de juta na cidade de Taubaté, a 130 km de São Paulo. Chegou um momento, que entre todas as
pessoas das diferentes atividades, seja no ramo de petróleo, seja no ramo de matérias-primas regionais ou de apoio às indústrias que utilizavam tais matérias-primas, ele chegou a ter 5000 empregados, e se tornou o maior empregador de Manaus. Antes que eu entrasse nos negócios, houve um problema muito grande de gestão, porque a questão não era você criar tantos negócios, mas sim, gerir simultaneamente esses negócios e continuar criando e imaginando, como era do feitio dele. Então, ocorreram algumas dificuldades, o esquema de trabalho foi repensado, e hoje, o que existe, é fruto do que meu pai deixou, porém, modificado, e os processos de mão de obra intensiva foram substancialmente reduzidos. Em 1971, a refinaria foi nacionalizada pelo monopólio estatal do petróleo, pela Petrobras, e então houve uma agressão muito forte, não só por parte da Petrobras, mas também dos concorrentes estrangeiros. Meu pai, então, decidiu se juntar, unir recursos e esforços com uma multinacional de nome Shell, da qual somos sócios há 41 anos. Essa sociedade perdura porque a Shell entendeu que a empresa, para ir para a Amazônia, precisava de um parceiro que conhecesse a região. E meu pai sempre mencionava Tavares Bastos, que dizia: “A Amazônia foi muitas vezes invadida, jamais conquistada.” E então, desde esse tempo, mantemos essa sociedade, que é a única que a Shell tem no mundo, no segmento de distribuição de derivados
de petróleo, que, aliás, não é mais a única porque a partir do ano passado ela fez uma sociedade com a Cosan, de São Paulo, que é o maior produtor de açúcar e álcool do Brasil, e ela teve a visão de enxergar os combustíveis não poluentes. Isaac Sabbá, Rei da Amazônia Meu pai foi o “Visconde de Mauá amazônico” do século 20, tanto no início, como no meio e no fim de sua trajetória. A expressão “Rei da Amazônia” atribuída a meu pai, foi cunhada pelo jornalista Raimond Cartier. Já nos anos sessenta, a França editava a revista Paris Match, e esse jornalista veio a Manaus e fez uma entrevista com meu pai. Ele ficou por dois dias, e resolveu denominar meu pai de “Rei da Amazônia”, porque identificou exatamente essa visão de realização. A outra revista importante que publicou a respeito do meu pai foi a Time Magazine dos EUA. Uma coisa que eu imperdoavelmente omiti, mas retomo agora, é que já nos anos sessenta meu pai decidiu plantar cana no Amazonas. Naquela época não havia as questões ambientalistas, e não havia problema em derrubar florestas, mas era um grande problema você ter terras baratas; nós temos no Amazonas uma produtividade de cana maior do que as tidas nas regiões canavieiras de Ribeirão Preto em São Paulo, muito maior do que a do Nordeste – e ele então fundou uma companhia chamada Ciazônia, Companhia Industrial e Agrícola da Amazônia, comprou umas áreas de terra entre a cidade de Manaus e Itacoatiara, e começou a plantar cana. Naquele tempo, pelo fato HISTÓRIA e MEMÓRIA | 91
de o Estado brasileiro ser num Estado outorgador, era preciso que o Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA permitisse a produção de açúcar e álcool (no Amazonas, mais açúcar). O resultado foi uma epopeia, muitos anos perdidos, e a partir de um determinado momento, meu pai se desinteressou pelo assunto. Não digo que ele ficou magoado, mas perdeu o interesse, ficou apático, não quis mais tratar disso. Meu pai tinha dessas atitudes, ele chegava a um determinado momento que perdia o interesse, sem mágoa e sem raiva, mas perdia o interesse. E na questão da refinaria, e nisso eu fui testemunha ocular pois acompanhei todas as reuniões, meu pai foi chamado, em 1970, pelo ex-presidente Ernesto Geisel que era, na época, presidente da Petrobras. Geisel expôs o seguinte: a permissão que você possui para produzir derivados de petróleo é de 5000 barris por dia. O Conselho Nacional de Petróleo já autorizou, em caráter excepcional, que você produza mais 2000 barris, mas não são da antiga Copam – Companhia de Petróleo da Amazônia; esse excedente você está produzindo para o monopólio, porque só é permitido produzir para o monopólio. É a lei brasileira. E ele disse também: a Amazônia precisa crescer, ela não pode mais ficar produzindo derivados de petróleo, óleo diesel, por exemplo, em Cubatão, e mandando para Rondônia, onde a nova fronteira agrícola surge, não é possível isso, então, só tem um jeito – nacionalizar a refinaria. E ele fez uma pergunta para meu pai que o pegou de surpresa. Ele disse: o senhor é um patriota tanto quanto eu, um patriota renomado, conhecido, o senhor não mandaria seu filho para a guerra? Então, da forma como foi colocado, não havia alternativa senão aquiescer de maneira elegante, e com isso, ele perdeu a hegemonia da produção porque esta era da Copam, e na época ela era uma companhia tão valiosa que quando foi feita a transação com os valores, verificou-se que as suas ações valiam mais do que as da Petrobras. Enfim, isso é um pouco da história que precisa ser 92 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
contada. A Petrobras assumiu, e meu pai tinha absoluta consciência de que havia uma chance muito grande de achar petróleo na Amazônia e, ainda vivo, chegou a ver a descoberta dos campos de Urucu, porque quando fez a refinaria em Manaus, imaginou que o petróleo também fosse mediterrâneo, como é até hoje, o grande abastecedor da refinaria de Manaus, que numa homenagem que o Congresso Nacional fez a ele, passou a se chamar Refinaria Isaac Sabbá. Essa refinaria mediterrânea em Manaus processa todo o óleo de Urucu. Então, aquilo que foi, digamos, uma premonição – não sei se é esse o termo correto –, uma capacidade visionária, uma habilidade de antecipação de fatos que pudessem acontecer e que não estavam bem na frente do nariz, mas um pouco mais adiante, meu pai conseguia enxergar. Então, o estado brasileiro fez com ele, mutatis mutandis, o que fez com o Visconde de Mauá, não há muita diferença. Um homem à frente do seu tempo Meu pai foi pioneiro em algumas atividades: na fabricação de preservativos (camisinhas) e de pregos, na refinação e distribuição de petróleo, na indústria de compensados, no transporte em navios petroleiros na Bacia Amazônica. Mas não foi pioneiro em outros setores de que se ocupou, como no segmento da juta, quando ele começou com as prensas, já existiam outras; também na industrialização da juta, quando ele começou, já existia a Brasiljuta; e nas serrarias, elas datam de 150 ou 200 anos. Consta que, num determinado momento, as indústrias Sabbá detinham um percentual muito significativo do PIB do Amazonas, talvez em torno de 25%. Por conta disso, meu pai sofreu muitas perseguições de natureza política e, até mesmo, de natureza étnica. O governador do Amazonas, na época, Plínio Coelho, fez campanhas antissemitas no período de 1959 a 1962, e com um receio muito
O empreendedorismo e a visão de Isaac Benayon Sabbá, que o levaram a criar um imenso conglomerado de empresas, fizeram seu nome correr o mundo e ser citado como “rei” pela imprensa nacional e internacional
grande, porque meu pai era de um determinado grupo político que eu chamaria de conservador ou liberal democrata, e ele foi várias vezes convidado a concorrer a governador do Amazonas, coisa que nunca lhe passou pela cabeça. Isso causava inveja, e ele era visto como inimigo político em potencial, embora nunca tivesse sido um politiqueiro partidário, mas estava sempre lá, digamos, o perigo latente. A história política do Amazonas tem um legado de coronelismo muito forte. Plínio Coelho, quando assumiu o governo do Amazonas em 1954, dizia, na sede do partido (PTB) que funcionava na praça ao lado do Teatro Amazonas: “Fora do PTB não há salvação.” E ele governou o Amazonas
no período de 1954 a 1958. Ele fez governador o seu sucessor, Gilberto Mestrinho (1958-1962); depois se reelegeu, mas foi convidado a sair do governo, e eu estava lá nessa tarde memorial, na Praça General Osório, quando ele, governador do Amazonas, agora cantando loas à “grande revolução brasileira”, até que veio o coronel José Alípio de Carvalho, que na época era o comandante do 27º Batalhão de Caçadores, e no meio da praça pública, num evento grande que era o Festival Folclórico, convidou sua excelência, o governador do Amazonas, a acompanhá-lo, e esse acompanhar significava a renúncia ao Estado do Amazonas. Felizmente ficamos livres dele naquele tempo, só que não ficamos livres do PTB, porque houve os governos da revolução, e no que foi aberto o processo político, o Mestrinho (Gilberto Mestrinho) voltou para o governo com a mesma fala: “Fora do PTB não há salvação, e eu vou governar o Estado por 20 anos.” E governou. Foi o Mestrinho, depois, o Amazonino, depois o Mestrinho, novamente, o Eduardo Braga, e agora, o Omar. O que eu quero dizer é que o poder político no Amazonas nos últimos 50 anos ou um pouco mais, esteve sempre na mão do mesmo grupo político, salvo no período da revolução, quando nós tivemos como governadores Danilo Areosa, Enoque Reis, João Walter e José Lindoso, mas fora esses, que foram designados por eleição indireta, o poder continua com eles. Hoje o que nós temos no Amazonas é o PTB com outro nome. O legado de Isaac Sabbá – um novo tempo Até 1967, a industrialização do Amazonas se fez pelos processos conforme relatados aqui, dos quais meu pai participou intensamente. Em 1967, quando foi criada a Zona Franca de Manaus, o processo de industrialização do Amazonas se limitou a indústrias de alta taxa tributária, seja no Imposto de Importação, seja no IPI. Hoje vivemos principalmente com multinacionais de origem asiática, que são dominantes, e o que elas fazem é uma indústria de montagem. Manaus é o HISTÓRIA e MEMÓRIA | 93
Isaac Sabbá tem o reconhecimento e recebe homenagens do Senado Federal
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principal polo montador de eletroeletrônicos do Brasil, o principal polo montador de motocicletas e outros polos de plásticos, embalagens etc. Então, a figura daquela industrialização, no sentido de transformar matérias-primas regionais em produtos terminados, ela acaba, melhor dizendo, não acaba, mas começa a perder força, posição de comando, a partir de 1974. Desde então, o que se viu por aqui, no que se refere à industrialização que utiliza matérias-primas regionais, é muito pouco, e continua se agravando, à medida que o governo vai ficando cada vez mais intervencionista. O nosso homem do interior, por exemplo, não pode derrubar árvores porque vai preso; não pode matar um bicho para comer porque vai preso É contra a lei. Também não pode pescar, se não for na época própria. O Prof. Benchimol, num discurso brilhante que fez no Teatro Amazonas, falava na “planetarização da Amazônia”, ou seja, a Amazônia vai ser um bosque para passear. Ele teve essa visão, e de certa forma, está sendo assim. Então, o que se tolera aqui é indústria de alta tecnologia, só que essa tecnologia não é transferida para cá, ela é produzida em outros centros e aqui é processada. Bem, eu preciso falar de algo que é a minha visão. Hoje, aquela figura do industrial – meu pai nunca foi lojista, nunca foi varejista, ele era comerciante exportador atacadista, e era industrial. Qual foi a nossa posição? Quando todas estas situações aconteceram, a que nós nos vimos obrigados? Agora estou falando muito em particular, vamos dizer, dos negócios deixados por Isaac Benayon Sabbá: nós tínhamos a indústria madeireira que tivemos a felicidade, se é que eu posso usar essa expressão, enquanto papai ainda estava ativo, de vendê-la para um grupo chinês, porque logo em seguida, vieram leis de preservação. Meu pai já havia percebido essa mudança no comportamento
das autoridades, no sentido da utilização dos recursos naturais. A lei brasileira de manutenção de recursos naturais não tem em lugar nenhum no mundo; preservação de áreas de proteção, não tem, é a lei mais dura que tem no mundo. Então, essa indústria chegou a ter em Manaus meia dúzia de fábricas. Em Itacoatiara, o polo madeireiro empregava 4000 pessoas. Toda essa indústria foi fechada logo depois que nós vendemos a nossa para os chineses, outras também venderam, alguns compraram fábricas não em Manaus, em outras cidades, em Itacoatiara, e não chegaram sequer a acioná-las, porque as leis não permitem mais que essas atividades funcionem. Não cabe discutir diretriz de política governamental. O governo acha que é assim, então, é assim. No nosso caso, o que nós fizemos? Nós nos adaptamos à nova realidade. E a nova realidade era: as nossas indústrias da época eram indústrias de mão de obra intensiva, e não podiam competir com as indústrias do Distrito Industrial. Começaram não trabalhando aos sábados, davam, como dão até hoje, alimentação, transporte, saúde etc. Então, aquele tipo de indústria não mais cabia nesse contexto, e o que nós fizemos? Nós fomos saindo desses negócios, e mantendo as propriedades. E no caso da juta, o governo brasileiro resolveu autorizar a importação de sacos de juta. A indústria de juta é uma indústria muito onerosa, e ela só existe se houver subsídio e se não for competitiva. Quando percebemos isso, conseguimos também vender as máquinas e equipamentos para diferentes países do mundo, e mantivemos as propriedades. Fomos obrigados também a sair do segmento de refinaria, bem como da atividade de transporte de derivados do petróleo entre Manaus e Belém, que foi nacionalizada, embora não fosse monopólio. Estamos falando agora da época mais dura da ditadura militar, quando do AI-5. E eu omiti, por esquecimento, uma atividade em que meu pai também chegou a ser pioneiro, na escala, mas não, na atividade, que foi a construção naval: HISTÓRIA e MEMÓRIA | 95
O empresário Isaac Sabbá, criador do maior conglomerado industrial do Amazonas em toda a sua história. Nos anos 70, possuía 41 empresas e 6.000 funcionários que representavam 5% da população urbana de Manaus
ele construiu o primeiro grande estaleiro que se chamou Estanave – Estaleiros da Amazônia. Isso também foi nacionalizado, por razões estratégicas e de segurança nacional (entre aspas). Então, meu pai tinha uma sensibilidade muito grande para o meio ambiente e para as coisas que iriam acontecer. Voltando ao assunto do Plínio Coelho, houve um determinado momento em que ele mandou invadir e quebrar a casa do meu pai. Havia um tipo chamado “Saco de níquel” que era um líder sindical. Ele, reunido com outros no sindicato do porto, subiram a Avenida Eduardo Ribeiro para arrebentar a casa que havia aqui. O “Saco de Níquel” tinha uma grande admiração pelo meu pai, não sei por que razão. Quando ele chegou na altura da Rua 24 de Maio, ele disse: “Não! Nós 96 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
vamos agora quebrar o jornal A Crítica, porque ele é que é inimigo do Plínio.” E como a turbamulta é inconsequente e sem liderança e vai para qualquer lado, ele desviou para lá. Houve até tiro. Nós estamos falando de um período em que o João Goulart estava no poder, pouco antes da revolução, e esse Plínio era um dos governadores do grupo político do João Goulart. A refinaria de Manaus chegou a ser desapropriada por um decreto do Jango, só que não foi cumprido, porque com a revolução, disseram: “Não é nossa finalidade tomar conta de refinaria, fica tomando conta aí.” Só que um pouco mais à frente, veio o nacionalismo militar. Quero colocar que esse processo de antissemitismo não era um processo que tivesse uma origem mais profunda, mas ele foi usado
como politicagem para a revolução, para o processo eleitoral: “O judeu de olho azul.” Lembrome muito bem que esse Plínio escreveu um artigo (ele tinha um jornal chamado O Trabalhista) que dizia: “A Bíblia diz: cuidado com o judeu de olhos azuis.” Eu nunca li isso na Bíblia. Quando o governador Artur Reis assumiu – um grande amazonólogo, professor emérito, escritor –, uma das principais coisas que ele fez foi fechar o jornal O Trabalhista por esse tipo de coisas, não somente por essa agressão racista, mas também porque ele sempre dizia lá nas campanhas políticas: “Nós temos que derrubar, tirar o judeu do Amazonas; o comércio está todo nas mãos dos judeus.” Eu vi isso várias vezes no jornal O Trabalhista. Está lá, na Biblioteca Pública, para quem quiser pesquisar. A coleção dos jornais de 1958 a 1962, mais precisamente, 1961, ou por aí. Eu falei muito, não é? Mas é a oportunidade. Meu pai dizia: “Você às vezes tem que engolir sapo, mas quando puder vomitar, vomita.” Família, religião e trabalho Meu pai se casou no ano de 1942 com Irene Gonçalves Sabbá, minha mãe, nascida na cidade de Parintins, no interior do Amazonas. Dessa união, nasceram cinco filhos: Moisés (eu), Alberto, Mário e Esther. A Esther nasceu em 1950, depois, no ano de 1962, minha mãe engravidou novamente e teve uma criança que nasceu com uma série de problemas, e que não chegou a completar um ano. Chamava-se Débora, e descansou. Meu pai sempre foi dedicado basicamente a três coisas: a família, a religião e o trabalho. Não sei se a ordem de importância era essa, porque ele viajava no pensamento muito mais tempo do que participava de coisas da família. Isaac Sabbá tinha hábitos muito saudáveis. Ele acordava e ia fazer ginástica, uma ginástica muito leve, e depois, tomava banho e vestia um terno, geralmente roupa branca, terno de Linho HJ, descia a Avenida Eduardo Ribeiro dirigindo o carro até a porta do escritório, estacionava,
subia a escada, ali na Rua Guilherme Moreira 235, exatamente na esquina com a Rua Quintino Bocaiúva, e ficava até uma, uma e meia da tarde. Ele era um tabagista inveterado, fumava muito. Quando dava essa hora, ele ia para casa e se deitava na rede, ficava se embalando e ouvindo música. Quando minha mãe se apressava, dizendo: “Olha, os meninos têm aula, têm que almoçar, a empregada tem que sair...”, e não sei mais o quê, ele almoçava, e depois do almoço ele caminhava dentro de casa um quilômetro no corredor, que tinha 30 metros. Ele andava no corredor umas trinta, quarenta vezes, de um lado a outro, e quando acabava, deitava na rede e ia ouvir música. Quando davam três e meia, quatro horas, ele saía, ia para o escritório, e voltava às sete, oito horas da noite. Como não havia televisão, depois do jantar ele saía para o clube da preferência dele, o Ideal Clube de Manaus. Sentava na porta do clube e começava a ouvir pessoas, pessoas assim, que não tinham nada a dizer. Conversava muito com um homem chamado “Chico do cafezinho”, que era um funcionário que trazia o café. Então, ele perguntava: “Escuta, como está tua mulher, teu filho?” Às vezes, eu perguntava: “Papai, o senhor conversando, o que é que o senhor extrai dessa conversa?” E ele respondia: “Extraio a importância de ouvir o ser humano, o que ele tem para dizer, e outras vezes não tem nada a dizer, quando ele não tem nada, ele está falando e eu estou longe...”, que era onde ele costumava estar, longe, com o pensamento longe. Você está aqui falando e ele não está nem aí... Minha mãe foi sempre a pessoa que tomou conta da casa e que educou os filhos no sentido do dia a dia, porque naquele tempo, o papel da mulher – como foi o da mãe de vocês – era de dona de casa, de educar filhos. Há dois episódios de que me recordo, um na minha infância: minha tia Perla, irmã da minha mãe, morava conosco. Ela era uma pessoa muito educadora, muito dura. Um dia, meu pai chegou em casa por volta do meio-dia, e eu estava HISTÓRIA e MEMÓRIA | 97
sentado no chão, e ele me perguntou: “O que é que tu estás fazendo?” “Eu estou amarrado a esta cadeira”, respondi (minha tia havia me amarrado com uma linha, uma linha de costura). “Estou de castigo.” “De castigo?”, ele perguntou. “Sim. Tia Perla me botou de castigo.” “De castigo? Tu é besta!” E arrancou a linha: “Você não vai ficar de castigo, eu não ponho você de castigo.” E o segundo episódio foi sobre negócios e a rapidez nos negócios. Nós tínhamos uma prensa de juta na Rua Ramos Ferreira. Numa madrugada de domingo, fomos acordados porque a prensa pegou fogo, incendiou – é algo que acontece muito nesse setor de juta – e nós tínhamos um embarque de juta (onde ele foi pioneiro novamente, não na montagem, mas na exportação de juta, porque a juta não era exportada, e meu pai exportou para a Inglaterra, Alemanha, Argentina). Então, fomos acordados, a prensa incendiou, pegou fogo. De manhã já estava tudo terminado lá, eu vim para casa, e a minha mãe perguntou: “O que é que houve?” “Aconteceu um problema e tal...” E minha mãe: “Não vai dizer para o teu pai, vai atrapalhar.” Mais tarde, conversando, arrodeando, ele já conhecia: “O que é que há, qual é o problema, vocês estão aqui, como diz o caboclo, me ‘arrudiando’, vocês querem alguma coisa aqui?” Eu disse: “Ô pai, o que acontece é que houve um problema lá na prensa, nós temos um contrato grande para embarcar para a Alemanha de fibra de juta prensada e tem um problema lá,,,” “Qual problema?” “Incendiou.” “Está no seguro? Então, tudo bem, dinheiro não se perde. Agora nós temos que ganhar dinheiro.” “Mas como se incendiou tudo? Tu vais agora comprar juta. Vamos receber do seguro, comprar outra e embarcar.” E eu fiz exatamente isso, comprei juta em Itacoatiara, em Parintins, e comprei juta lá em Óbidos, do pai do Fortunato Chocron, o Abraham Chocron. O que quero demonstrar com isso é a rapidez, quer dizer, como transformar uma tragédia em solução, como no ideograma chinês, você tem: o problema representa a dificuldade, mas também, a solução. Não existe problema que não tenha solução, só não há solução para a morte. Falei muito. Ah! Outra coisa que meu pai brincava comigo: “Meu filho, você errou de profissão, você não 98 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
é empresário.” “O que é que eu sou papai?” “Você deveria ser diplomata de país subdesenvolvido ou vigário de paróquia de cidade do interior, vá pro interior pra ser vigário.” “Mas, por quê?” Ele dizia que eu falava demais, de brincadeira, isso, é claro. Agora, o grande legado que meu pai nos deixou foi, primeiro, o nome dele, que nós procuramos manter “inarranhável”, depois, os conselhos que aprendemos todos os dias, na convivência com ele. Eu me lembro, quando fui embarcar para a China para vender o negócio da madeira, fui à casa dele, era um domingo, conversamos muito. “Bom papai, já vou, por causa do avião.” “Está bem.” Ele estava deitado na rede, quando eu saí e cheguei ali na porta ele chamou: “Ei, Moisés!” Eu voltei, e ele disse: “Agarra o chinês, agarra o chinês.” Ele já havia dado o recado: faz o negócio, só isso, com uma palavrinha ele disse tudo. Eu estava assim, meio em dúvida, porque já era a época em que começaram as perseguições, os processos, negócio de prender, Polícia Federal, aí ficou muito desconfortável tudo isso.
Não existe uma industrialização do Amazonas Como eu disse antes, o Amazonas hoje é um parque de montagem, e talvez continue sendo assim, ninguém sabe. O que ocorreu aqui foi o pioneirismo de meu pai, Isaac Sabbá, e de alguns outros, mas até hoje não existe uma industrialização do Amazonas propriamente dita. Sem dúvida, o pioneirismo de meu pai e de alguns outros é de extrema relevância em alguns segmentos, até hoje. No segmento varejista, atualmente, não conheço números, porque é uma empresa limitada, mas eu diria que a empresa BEMOL (família Benchimol) é a maior do Amazonas. Em outros segmentos, essa representatividade não existe, como, por exemplo, já teve o Casas do Óleo, que foi também muito importante, e hoje, não é mais. A família Benzecry ainda continua muito importante hoje no segmento de incorporação de imóveis, desenvolvimento imobiliário. Então a saga continua, só vai terminar, eu acho, quando o mundo terminar, quando não tiver mais ninguém para contar a história, mas a saga continua, estou
O Ideal Clube de Manaus, clube da elite socioeconômica local por várias décadas, ao lado da antiga residência da família Sabbá, era o local do cafezinho do empresário e de seus momentos de relaxamento
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Moisés Gonçalves Sabbá, quarta geração da família na região amazônica. O empresário substituiu seu pai, Isaac Sabbá, no comando das empresas por ele fundadas
absolutamente convencido disso. Pode mudar o estilo, a natureza da operação, mas continuaremos sempre sendo pioneiros e desbravadores em alguns segmentos, é da natureza dos judeus. E é muito importante mantermos a tradição judaica e a herança. Enquanto houver essa consciência de manter a tradição e a herança, nós vamos continuar existindo. Na minha opinião, as principais características dos judeus são a manutenção da herança, a ética e a capacidade de identificar oportunidades e alternativas para prosperar, tipo um “feeling”. Nesse sentido, Isaac Sabbá era um bom judeu, e talvez, quem não seja sou eu. O comentário antissemita de que judeu é sovina não tem fundamento. Meu pai, por exemplo, foi um dos grandes doadores na construção da sinagoga, isso está até registrado. E também fora da comunidade, ele era um grande 100 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
contribuinte, e fez doação de um equipamento contra o câncer aqui no Amazonas. Foi o primeiro equipamento do gênero, e isso serviu de pretexto para que os políticos daquele tempo pensassem que meu pai estava querendo entrar no social para poder se credenciar na política. Eu acho que quanto menos você está em evidência, melhor para a sua sobrevivência e de sua família. Pequeno grande homem Meu pai era um homem de baixa estatura, medindo 1,48m. Ele vendia borracha para a fábrica Goodyear em São Paulo. Um dia, um americano o convidou para almoçar, e quando se encontraram, o americano, que media 1,90m, disse: “Mas o senhor é deste tamanho?” E meu pai disse: “Sou.” Então, o americano comentou: “É que pelo
tamanho das suas duplicatas, pensei que o senhor fosse, no mínimo, mais alto do que eu.” Há também uma famosa entrevista de meu pai com o presidente Getúlio Vargas, que já virou anedota. Eu não participei, na época, eu tinha 8 ou 10 anos. Meu pai solicitou uma audiência com o presidente Vargas, que lhe foi concedida. Ele chegou lá, fumando um charuto, no Palácio do Catete, e disse: “Olha, eu sou do Amazonas, quero construir uma refinaria de petróleo na região.” Então, o presidente disse: “Diga uma coisa, eu só quero lhe fazer uma pergunta, a Standard Oil está por trás do senhor?” Ele disse: “Presidente, eu não sei nem o que é Standard Oil, mas eu posso garantir que não está.” “Me diga uma coisa, o senhor está bem, está se sentindo bem?” “Estou sim.” “E o senhor acha que vai levar esse projeto até o fim?” “Vou.” “Então, o senhor vai lá falar com o Oswaldo Aranha.” Na época, Oswaldo Aranha era o
ministro da Fazenda. Meu pai foi lá, com um bilhete do Getúlio, dizendo que precisava de uma licença e tal. E Oswaldo Aranha também perguntou: “O senhor está por trás da Standard Oil?” “Não sei nem o que é isso.” Outras do presidente: quando Getúlio foi a Manaus, em 1950, para inaugurar a fábrica de juta Brasiljuta no Educandos, ele saltou no aeroporto à uma hora da tarde, um calor senegalesco, dia 15 de agosto, por aí, e o repórter chegou até ele e disse: “Presidente, esse calor amazônico é insuportável, o que é que o senhor tem a dizer?” “Olha, eu acho que é um clima injustiçado.” E no banquete, lá no Rio Negro, quando serviram pirarucu e disseram a ele: “Presidente, este é um peixe especial da região. O que achou?” “É o melhor bacalhau.” Eu não o conheci, mas ele era um sujeito brilhante.
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Capítulo 5
Sou Jaime Samuel Benchimol, filho de Samuel Isaac Benchimol e Mary Israel Benchimol. Nasci em 1957, em Manaus. Sou economista e administrador. Estudei em Manaus a metade do meu curso de graduação e, depois, cursei nos Estados Unidos, onde concluí a graduação e fiz também o curso de mestrado na Califórnia. Depois de formado, retornei e me engajei nas indústrias e no comércio da atividade empresarial da família, a partir de 1980, e continuo até hoje nesse processo, com muita alegria.
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Jaime Samuel Benchimol Meu pai foi sempre muito preocupado com a questão da continuidade. Esse é um sentimento judaico: “Le Dor Vador”, “De geração em geração”, não é? De uma forma muito precoce, ele buscou a preservação dos filhos e até dos netos para o crescimento pessoal. Acho que a preocupação foi sempre com a educação e os valores, e quando você tem preocupação com isto, essas coisas tendem a se perpetuar, são o legado principal.
P
ara pesquisar a história do empresariado judaico na Amazônia, acho fundamental o depoimento sobre a contribuição da família Benzecry, o depoimento de Moisés Sabbá, que conhece tudo sobre o trabalho do pai dele, que foi, depois de B. Levy, o maior empresário judeu de todos, ou seja, ainda não houve
nenhum outro com o alcance e a projeção, com a hegemonia que ele teve na região. Para dar uma ideia, as empresas do tio Isaac (Sabbá), que era tio em primeiro grau da minha mãe, chegaram a representar mais de 25% do PIB amazonense – quer dizer, ele sozinho era responsável por quase tudo o que aconteceu entre o declínio da HISTÓRIA e MEMÓRIA | 103
borracha e a Zona Franca de Manaus. Ele foi o grande empresário no período mais difícil. Eu vi o cognome “Rei da Amazônia” atribuído a ele em algum momento, acho que no jornal The New York Times, que fez uma reportagem sobre ele. Eu gostaria de deixar registrada aqui alguma coisa sobre essa parte mais recente. Posso até falar do que sei a respeito desses personagens representativos daquela fase de industrialização, mas acho que seria útil também falar sobre essa fase mais recente. Este depoimento poderá servir como uma continuidade, uma extensão da atividade econômica dos judeus, que também estão nessa nova fase, mas com características diferentes. A maior parte dos judeus que participaram do projeto industrial da Zona Franca de Manaus vieram do Sul do Brasil, poucos eram de Manaus. Nosso talento era mais comercial e ligado aos produtos regionais. Breve histórico pessoal Sou Jaime Samuel Benchimol, filho de Samuel Isaac Benchimol e Mary Israel Benchimol. Nasci em 1957, em Manaus. Sou economista e administrador. Estudei em Manaus a metade do meu curso de graduação e, depois, cursei nos Estados Unidos, onde concluí a graduação e fiz também o curso de mestrado na Califórnia. Depois de formado, retornei e me engajei nas indústrias e no comércio da atividade empresarial da família, a
O clássico Eretz Amazônia — judeus na Amazônia, obra de referência e a mais completa sobre o estabelecimento dos judeus na Amazônia, de autoria do Prof. Samuel Benchimol
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partir de 1980, e continuo até hoje nesse processo, com muita alegria. Em relação à família, embora a tia Licita seja a pessoa mais indicada para falar a respeito disso, vou fazer um resumo, o melhor que eu puder. A família é caracterizada, principalmente, pela preocupação com a educação. Acho que é o projeto que distingue a nossa família, e desde muito cedo, havia a preocupação dos meus avós, Isaac e Lili (Nina), com a educação – tiveram 8 filhos –, e a luta deles foi sempre no sentido de oferecer a possibilidade de crescimento pessoal através da educação. Foi nesse projeto que nasceu essa nova geração da qual pertence o meu pai,
que aproveitou o estímulo que havia recebido dos seus pais, e levou isso para um novo patamar. Meu pai, Samuel Benchimol A história do meu pai, propriamente dita, é uma história interessante, porque de uma certa forma, a educação dele foi produto do Ciclo da Borracha. Isso porque os meus avós, durante boa parte da vida, foram para o seringal do Rio Abunã, e deixaram meu pai com as tias Anita e Esther em Belém. Como lá eles tinham um pouco mais de recursos, colocaram meu pai no Colégio Progresso, que era um bom colégio na época. Mais tarde, meu avô havia falido, e retornou a Belém, mas não conseguiu emprego. Então, veio procurar uma atividade em Manaus, onde a situação estava um pouquinho melhor. Já em Manaus, meu pai cursou o ginasial no Pedro II. Nessa ocasião, havia uma grande influência do professor Agnelo Bittencourt, que era um professor muito conceituado e, vendo no meu pai um talento acadêmico, colocou a sua biblioteca à disposição, que era uma biblioteca muito boa. Ele era um professor muito conceituado na época, e se eu tivesse que escolher alguém que mudou a vida da família, eu o escolheria. Assim, meu pai usufruiu a amizade dele e a biblioteca, onde ia estudar no período da tarde. Com isso, cresceu academicamente, intelectualmente, e mais tarde, ingressou na Escola de Direito e ganhou uma bolsa para fazer o curso de mestrado nos Estados Unidos. E essa é toda a história acadêmica e profissional dele. Teve a felicidade de construir carreiras importantes em várias áreas: na área acadêmica, com mais de 40 livros e mais de 100 publicações; na área profissional, com as empresas BEMOL na área comercial, e FOGÁS, empresa industrial de distribuição de gás; além de outras atividades ligadas aos produtos regionais, e uma grande atuação na comunidade judaica, da qual participou ativamente como presidente ou como mentor durante muitos anos.
Prof. Samuel Benchimol, pai do entrevistado. Foi um grande intelectual e um dos empresários amazonenses mais bem sucedidos da história da região
Meu pai foi sempre muito preocupado com a questão da continuidade. Esse é um sentimento judaico: “Le Dor Vador”, “De geração em geração”, não é? De uma forma muito precoce, ele buscou a preservação dos filhos e até dos netos para o crescimento pessoal. Acho que a preocupação foi sempre com a educação e os valores, e quando você tem preocupação com isto, essas coisas tendem a se perpetuar, são o legado principal. Costuma-se começar a história dos Benchimol a partir do meu avô, Isaac, mas foi meu bisavô, Israel, o primeiro a chegar no Brasil, com um irmão. Sabese que ele deve ter chegado na segunda metade do século 19, por volta de 1860. Foi comerciante e aviador naquela região do Pará, ali em Aveiros. Fora isso, sabe-se muito pouco, porque quando ele faleceu meu avô tinha poucos anos de vida, e ele não o conheceu. Não temos muitos registros desse período, mas sabemos que ele havia chegado de HISTÓRIA e MEMÓRIA | 105
Tânger para a Amazônia. Sempre foi uma preocupação do meu pai renovar a sepultura do avô, porque meu avô Isaac não havia conseguido; mas meu pai conseguiu. Esse foi um dos últimos atos que ele conseguiu fazer numa cerimônia, pouco tempo antes de falecer, em Santarém, onde o avô dele está enterrado.
Isaac Samuel Benchimol (à esquerda), Samuel Benchimol (à direita) e Jaime Benchimol no dia de seu bar-mitzvá. Três gerações da família em solo amazonense
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Período de crise e evasão Minha infância ocorreu num período em que Manaus ainda vivia muitas dificuldades. Nasci em 1957, a Zona Franca foi criada em 1967, e logo nos primeiros anos da Zona Franca, ainda havia muito pouca atividade, então, nos primeiros anos até o meu Bar-Mitzvá, as coisas eram muito difíceis na região. Havia duas sinagogas, “peleas” etc. Isso era muito comum, eu me lembro muito bem. A nossa sinagoga é de 1962, e justamente os primeiros anos foram os anos em que nós havíamos juntado as duas sinagogas anteriores, então, havia divergências de rituais, por exemplo, que eram sempre motivo de discórdia, e às vezes, de alguns confrontos. Mas fora isso, o que predominava naquela época era a dificuldade monstruosa. Algumas vezes tendemos a glorificar o passado, mas aquele período foi muito difícil, já havia acontecido a grande crise, a grande queda da borracha, e Manaus era uma cidade sem esperanças, sem oportunidades. Estou falando do que eu me recordo daquela ocasião, dos meus primeiros anos. Nunca passamos necessidade, graças a Deus, mas era um período de muito trabalho, muito mais difícil do que agora, com tantas oportunidades que existem. Naquele período, desde o fim do Ciclo da Borracha, entre 1930 e alguma coisa, e depois um pouco do renascimento da borracha durante a Segunda Guerra Mundial – porque os japoneses ocuparam os seringais da Ásia, e os americanos precisavam da borracha – e aí, houve um novo estímulo. Mas concluída a Segunda Guerra, esse período que vai de 1945 até 1967, com a criação da Zona Franca de Manaus, foi um período de êxodo do Amazonas para outros Estados.
Vou dar só um exemplo: muitos imóveis, inclusive da própria comunidade, foram abandonados nesse período porque não havia nada, não havia para quem alugar, não tinha atividade econômica, era uma cidade que estava encolhendo. Foi muito difícil. Mesmo na nossa família, se nós formos observar, temos muitos membros que abandonaram Manaus – tio Raphael, que foi para o Rio de Janeiro, tio Alberto, que foi para os Estados Unidos. Portanto, são exemplos que mesmo uma família muito unida, com um peso matriarcal e patriarcal muito forte, não conseguiu reter todo mundo em Manaus, por pura falta de oportunidade.
O casal Isaac e Nina Novo alento “Aliança para o Progresso” foi o projeto do Kennedy para aumentar a influência americana na América Latina e ajudar de alguma forma, economicamente. Eu me recordo que a farinha de trigo e outros implementos eram distribuídos gratuitamente, ou quase, naquele período, e houve um estímulo, de uma certa forma, para promover a atividade econômica. Isso era marcante na minha época, mas foi um projeto que
Benchimol com seus oito filhos
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A crise econômica em Manaus no pós-2ª Guerra Mundial levou muitos judeus a abandonarem a cidade, a exemplo de Rafael Benchimol, tio do entrevistado, que passou a viver no Rio de Janeiro, onde fundou a conceituada Clínica de Olhos Benchimol. Na foto, Rafael, sua esposa Donna, e seus filhos Lia, Nina e Sergio.
também não durou muito tempo – uns 4 ou 5 anos. Esse período foi um interregno entre essa primeira fase do fim da borracha até a criação da Zona Franca de Manaus, e aí sim, com um novo crescimento da presença judaica, bem marcante, tanto da parte comercial, quanto da industrial. Os judeus que aqui ficaram, de um modo geral, também se beneficiaram dessa nova fase, uma fase pujante de atividade comercial e de intercâmbio comercial, inclusive, comércio exterior ativo, e muitas empresas, assim como a nossa, devem boa parte de seu crescimento à criação da Zona Franca de Manaus. No entanto, chamo a atenção para o grande talento de dois empresários, Isaac Sabbá e Isaac Benzecry, que conseguiram criar suas respectivas atividades e prosperar nesse período tão difícil. Boa parte dessas atividades eram ligadas a produtos regionais; era o beneficiamento de borracha, sorva, castanha, juta etc, produtos naturais da região que acabaram por se tornar a única alternativa econômica durante o final do período da 108 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
borracha. Isaac Sabbá, especificamente, buscou atividades industriais um pouco mais sofisticadas, dentre elas, a indústria do petróleo, que era uma indústria nascente naquela ocasião, e que ele teve a audácia de fazer uma refinaria, importando petróleo ora do Peru, ora de Trinidad, e também de outros países, para refinar aqui e distribuir etc. Só por curiosidade, a refinaria que ele construiu continua funcionando até hoje. Quero lembrar também, apesar desta pesquisa ser apenas sobre o Amazonas, que em Rondônia havia um outro grande empresário judeu, que foi Saul Bennesby. Há que se fazer esse registro de que ele foi um grande empresário, não no Estado do Amazonas ou Pará, onde havia outros grandes empresários, mas na região de Rondônia e do Acre, com uma industrialização – borracha, castanha etc. Presença judaica e Zona Franca Eu queria falar um pouco da presença judaica na industrialização da Zona Franca de Manaus, porque acho que isso talvez possa ser útil de alguma forma nesta pesquisa. Logo no início da Zona Franca, a primeira indústria a se estabelecer foi a BETA – na verdade, houve duas, e eram de joias: a Beta e a Trevis. Vieram
empresários judeus de São Paulo, Beno Zucker e Sr. Fischer. A Beta, indústria de joias e relógios; ficou durante muitos anos, até mais ou menos vinte anos atrás, foi revendida para outros, e acabou fechando. Ainda nessa área, havia a Mondaine, da família Frank, uma indústria de relógios, com uma presença importante. Na área de eletroeletrônicos, tivemos a CCE, a indústria de Isaac Sverner, vivo até hoje, também uma presença importantíssima, um grande empregador na área de televisores, aparelhos de som etc. A indústria da família Kryss, a Evadin, associada à Mitsubishi, do Abe e do Leo Kryss de São Paulo, tiveram uma participação muito grande aqui, há cerca de vinte ou trinta anos, e depois, perderam influência. Tivemos a Dismac, que foi da família Feder, também de São Paulo, indústria de calculadoras e aparelhos. Ainda está presente como Elgin, impressoras, condicionadores de ar etc. Ainda hoje temos a Metagal, que é o maior fabricante de espelhos retrovisores para a indústria de motos e automobilística brasileira, da família Gordon de São Paulo, eles são ótimos contribuintes para a comunidade judaica, pouca gente sabe disso. Mais recentemente, a Magama Industrial, empresa de Daniel Israel do Amaral, área de essências e beneficiamento de álcool e essências de guaraná e produtos aromáticos. Na construção civil, muitos empresários judeus atuam, como é o caso do Ricardo Benzecry na Platinum, do Azuri Benzion, na Tecnopar, e do próprio Davis Benzecry, na CiexLaghi. HISTÓRIA e MEMÓRIA | 109
Vista aérea da Igreja da Matriz. Manaus, primeiras décadas do século XX. Naquela época a cidade já se ressentia da crise da borracha e vivia um período de semiestagnação
Enfim, uma nova onda industrial que se projeta. Nossa família manteve as suas atividades concentradas nas mesmas empresas que foram iniciadas há muitos anos. Mantivemos nossas atividades na BEMOL, que completou 70 anos em 2012 – foi fundada em 1942 e hoje, orgulhosamente, é o maior contribuinte do ICMS do Estado do Amazonas. É uma empresa de projeção e liderança no segmento de eletrodomésticos, móveis e utilidades domésticas, e também na FOGÁS, que é uma empresa envasadora de GLP, distribuidora de gás liquefeito de petróleo, que é o gás utilizado para a alimentação e para a indústria, de um modo geral. Então, houve uma presença judaica importante em Manaus por conta das oportunidades da Zona Franca. A nossa se tornou uma comunidade mais próspera do que a maioria das outras, considerando o seu tamanho – uma comunidade com pouco mais de 700 pessoas, que conseguiu manter a sua identidade ao longo do tempo e se renovar com esses vários ciclos econômicos. Acho que essa é a característica principal da comunidade judaica: conseguimos manter uma atividade comunitária e uma atividade econômica; tivemos essa sorte. Houve esses vinte e poucos anos difíceis aí nesse interregno, mas novamente recrudesceu essa atividade, felizmente, e hoje temos uma situação de relativa prosperidade que, espero, perdure ainda por muitas gerações. Perspectivas da Zona Franca na industrialização do Amazonas Como economista e empresário, não sou obcecado com o termo industrialização no sentido de manufatura, porque acho que a indústria é um processo de criação de valor, então, o comércio também gera esse processo, a indústria de serviços, a agricultura, e também a
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indústria manufatureira, no sentido mais restrito da palavra. Mais e mais a agregação de valor está migrando para a área de serviços, e nós, na minha opinião – nós que eu digo, no modelo Zona Franca –, insistimos em pensar apenas o modelo industrial tradicional. Com isso, está ficando cada vez mais difícil criar empregos, criar impostos baseados no modelo exclusivamente industrial. Por exemplo: em 1980, faturamos 3 bilhões de dólares – refiro-me à indústria da Zona Franca – e criamos 140 mil empregos. Em 2010, faturamos 35 bilhões de dólares e criamos pouco mais de 100 mil empregos. Isso mostra como esse processo se tornou muito mais complexo. Então, o conceito de indústria não é mais sinônimo de progresso. Os países mais industrializados, hoje, não são justamente os países mais prósperos. Os países mais desenvolvidos estão muito na área de serviços em 60% a 70% da sua atividade. O Grupo Bemol, um dos maiores conglomerados empresariais da Amazônia na atualidade, formado, entre outras, pelas empresas BEMOL e FOGÁS, homenageia em sua sede em Manaus os seus fundadores. Na primeira linha, Isaac e Nina Benchimol. E logo Acho que o modelo foi sensacional em agregar valor até certo momento, mas o modelo, assim como as empresas, precisam se ajustar aos novos tempos, eu teria buscado um modelo de serviços que pudesse acompanhar os novos tempos. Por exemplo: as novas empresas de serviço não têm nenhum tipo de incentivo para virem para Manaus, porque os incentivos que nós damos, isenção de impostos de importação, ICMS etc, não alcançam essas empresas. Indústrias, por exemplo, como as de call centers, de atendimento à distância, que são indústrias que empregam mais de um milhão de pessoas no Brasil, poderiam ser uma grande alternativa para Manaus, mas nós não temos a infraestrutura de comunicação, nós não temos os
abaixo, Israel, Samuel e Saul Benchimol
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investimentos necessários etc. Então, continuamos pensando em como salvar o modelo tal qual ele foi concebido em 1967, e essa é uma crítica realmente à nossa sociedade como um todo, e também é uma preocupação, porque eu acho que se nós continuarmos nesse caminho, em algum momento correremos o risco de deixarmos de ser relevantes. A questão dos subsídios também é uma preocupação. A Zona Franca já tem 44 anos. Ora, depois de 44 anos, qual a justificativa para se dizer: 112 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
Ok, agora eu continuo precisando de subsídios porque ainda não desenvolvemos nenhuma atividade que possa se sustentar sozinha. Há sempre o argumento de que é longe, de que não tem infraestrutura etc. Mas nós estamos, de uma certa forma, no período de maior arrecadação de impostos na região, num período de muito otimismo empresarial etc, e ainda assim, não estamos olhando para um ajuste neste momento, estamos fazendo muito pouca coisa como polo turístico, muito pouca coisa na
Vista aérea da sede área de infraestrutura para viabilizar empresas, portos, estradas, empresas de comunicação. Mas somos um Estado abençoado com a sorte, pois temos muitos recursos e novas áreas estão começando a surgir, como a nova área de petróleo e de gás e mineração, e outras coisas que podem gerar um novo ciclo de desenvolvimento por si só, independentemente do mérito de nós termos tido o engenho e a sabedoria de nos ajustarmos a um novo tempo. Então, acredito que é isso que vai acontecer na região. Não sei se será suficiente para sustentar essa atividade pujante de hoje, mas certamente temos aí pela frente motivos que justificam algum
da SUFRAMA — Superintendência da Zona Franca de Manaus
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O casal Anne e Jaime Benchimol, exemplo de amor e dedicação à causa da preservação do judaísmo na Amazônia
otimismo em relação a essa continuidade em novas áreas industriais, talvez com o desenvolvimento de indústrias petroquímicas, químicas etc. Fico preocupado com o modelo atual, de que não vai resistir durante muito tempo. Preponderância judaica na gênese? Não creio que houve uma preponderância judaica. Se olharmos os relatos do livro do meu pai sobre judeus no Ciclo da Borracha, e outro que ele fez, “Manaós do Amazonas, uma memória empresarial”, que fala de uma forma mais abrangente daquela época, veremos que não há preponderância judaica de maneira alguma, mas que existe uma relevância da atividade 114 | HISTÓRIA e MEMÓRIA
judaica*. Por exemplo: toda a “Era dos J” – J. G. Araújo, J. Rufino, J. P. Alves etc, eram todos empresários portugueses, e eram eles os maiores empresários durante o período do apogeu da borracha e na fase imediatamente posterior. Estavam também na área de navegação. Como eu já disse, Isaac Sabbá, guardadas as proporções da época, foi o maior empresário judeu, acho que da região amazônica como um todo. Durante o seu apogeu chegou a ter quarenta e poucas empresas, boa parte delas, empresas industriais, as de beneficiamento de produtos regionais, de panelas, de latas, de pregos, de compensados, de refinaria etc, enfim, muitas indústrias. É impressionante a estrutura que ele conseguiu formar. Naquela época, em que Manaus tinha 300 mil habitantes, ele empregava 6 mil pessoas, para ter uma idéia da dimensão e da influência que era. As nossas empresas empregam hoje 2600 pessoas, num universo de 2 milhões, então, é muito menos. E também conseguiu, na época, trazer para trabalhar com ele alguns dos melhores talentos de Manaus. Então, os melhores empregos que havia na época eram os empregos criados pelas indústrias de Isaac Sabbá e, um pouco antes, de seu irmão Jacob Sabbá. Eles foram sócios no início e depois se separaram, mas também Jacob teve uma atividade importante. Quanto à questão da refinaria, o Brasil, infelizmente passou por aquele período de autoritarismo militar, em que a indústria de petróleo era considerada estratégica. Não se concebia que um empresário particular tivesse controle sobre uma indústria que era considerada tão importante do ponto de vista estratégico. Acabou que essa indústria foi, digamos assim, comprada pela Petrobras, mas sob enorme pressão, e me parece, pelo o que eu sei dos relatos, em situação desfavorável, do ponto de vista econômico.
O relato que consta dos documentos do meu pai, é que a indústria foi comprada, e a família foi paga com o próprio dinheiro que estava no caixa da empresa – não sei se foi exatamente dessa forma, acho que houve um pagamento em ações da Petrobras. Mas de qualquer forma, foi uma grande perda para o Grupo I. B. Sabbá e para todos na nossa comunidade. Mas é uma fase que já passou também. Quero mencionar também o empresário Moysés Israel. Dos membros atuais, é o que tem mais idade – 87 anos, mas com uma cabeça muito boa e, certamente, com mais lembranças desse período, especificamente sobre o caso da família Sabbá. Ele foi um dos grandes gestores naquela época, e posteriormente teve a sua própria atividade de serraria e outras atividades industriais.
nossos valores e da nossa cultura. E isso continua presente, esse desejo, essa disposição para tomar o risco, essa capacidade de nos reinventar, recriar, que é a marca da sobrevivência judaica no mundo há 3000 anos, e que certamente está presente aqui. Somos uma evidência de que podemos continuamente renovar a nossa capacidade de sobrevivência num ambiente diferente, como é a Amazônia. Então, como nós passamos por fases muito distintas, a fase do Ciclo da Borracha, a atual fase da Zona Franca de Manaus e, agora, o futuro, acredito que isso seja uma evidência clara dessa capacidade de adaptação que o povo judeu é capaz de ter. E a comunidade judaica de Manaus, eu acho que é um bom exemplo disso.
Amazonas hoje O Ciclo da Borracha permitiu a capitalização de algumas empresas, inclusive, a I. B. Sabbá, que fez a refinaria. A nossa atividade do gás é uma espécie de filhote da refinaria, porque na época foi dada a concessão para quatro empresas, mas somente duas se instalaram – e uma delas, foi a nossa empresa. Portanto, essa é uma atividade remanescente do período inicial. De certa forma, se alguém quiser fazer essa ligação, nós somos beneficiários diretos daquele período. Mas saindo um pouco do plano material, o mesmo instinto de tomada de risco, de inovação e de independência que norteia o empresário e o judeu, ainda continua presente. Foi isso que fez com que nós viéssemos lá até os rincões da Amazônia em busca de oportunidade e de melhoria de vida, de criação e de manutenção dos
* Nota do Editor: O professor e pesquisador Samuel Benchimol é o único estudioso da questão do elemento judaico na gênese da industrialização do Amazonas. Deve-se a ele a produção de uma obra de historiografia econômica sobre a temática. Isso cria um problema, no sentido de não existir nenhuma outra referência, já que contraposições são sempre enriquecedoras. Um exemplo do reflexo dessa fonte única é constatar que a fala Benzecry, a fala Benchimol e a fala Sabbá estão permeadas da voz do historiador Samuel Benchimol. Existe uma diferença entre História vivida e História lida, e o que parece é que Samuel Benchimol foi lá na fonte de pesquisa, mas também viveu esse período. Isso confere à sua obra um caráter especial, na interseção entre História como ciência e História como vivência. HISTÓRIA e MEMÓRIA | 115
FONTES ICONOGRÁFICAS
Obras Impressas:
Acervos familiares e pessoais:
FIEAM – 50 Anos (1960-2010): A marca da Indústria no Amazonas.
Acervo da família Benchimol (Manaus e Rio de Janeiro) Acervo da família Benzecry (Manaus e Belém) Acervo da família Sabbá (Manaus) Acervo da família Athias (Belém) Acervo pessoal de Moyses Benarrós, Israel
Revista da Associação Comercial do Amazonas (Diversas edições: anos 1910. 20, 30, 40, 50). Manáos do Amazonas: Memória Empresarial. Volume 1. Imprensa Oficial do Estado, Manaus, 1994. 50 Anos FOGÁS, Fogás, Manaus, 2006.
Acervos institucionais Acervo da FIEAM – Federação das Indústrias do Estado do Amazonas Acervo da Associação Comercial do Amazonas Acervo do Grupo Bemol-Fogás e Biblioteca Samuel Benchimol Acervo do Grupo CIEX Acervo do Arquivo Amazônia Judaica Acervo do CIAM – Centro Israelita do Amazonas Acervo do AHJB – Arquivo Histórico Judaico Brasileiro Acervo do Instituto Moreira Salles
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Acervo da Sinagoga Shel Guemilut Hassadim Acervo do Diário do Senado Federal Acervo de O Jornal (Manaus) Acervo de A Crítica (Manaus)
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Judeus do Eldorado. Ed. E-Papers/Amazônia Judaica. Rio de Janeiro, 2010.
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SOBRE OS AUTORES: Os irmãos Elias e David Salgado (Elmaleh), são naturais do Amazonas. Netos de judeus marroquinos originários de Sefarad (Espanha) e membros da comunidade judaica de Manaus, apesar de não mais viverem naquela cidade. Elias é pós-graduado em Educação e História pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Professor e coordenador de ensino de História e Cultura Judaica, atuou também na direção de centros de estudos judaicos em entidades comunitárias. É Pesquisador Associado do NIEJ – Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos do IFCS da UFRJ. É autor do livro História e Identidade: a experiência dos judeus no Brasil. Ed. Vaad Hachinuch-RJ, 1998 e 2000 David possui formação em Liderança Comunitária pela Universidade de Bar Ilan, Israel. É também chazan (cantor litúrgico), co-autor e editor de livros religiosos (Coleção Ner – Editora AJ). Produziu o documentário Eretz Amazônia – judeus na Amazônia, vencedor do 1º. DOC Pará. É fundador do jornal, hoje revista, Amazônia Judaica.
Ambos são estudiosos e pesquisadores da História dos Judeus na Amazônia e diretores do Portal Amazônia Judaica e da editora de mesmo nome.
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