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ANPPOM DIRETORIA 2003-2005 Presidente Adriana Giarola Kayama a

1 Secretária Helena Jank 2o Secretário José Augusto Mannis Tesoureira Denise Garcia Conselho Editorial Maria Lúcia Pascoal, Editora (Unicamp) André Cavazzotti (UFMG) Cristina Tourinho (UFBA) Fernando Iazzetta (USP)

Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Ivan Avelar CPGravura – Centro de Pesquisa em Gravura Departamento de Artes Plásticas Instituto de Artes – UNICAMP Os textos aqui apresentados são de estrita responsabilidade de seus autores.

OPUS: Revista da Associação Nacional de pesquisa e Pós-Graduação em Música – ANPPOM – ANO 9, n. 9 (dez. 2003) – Campinas (SP): ANPPOM, 2003. Anual ISSN – 0103-7412 ISSN – 1517-7017 (eletrônica) Música – Periódicos . 2. Musicologia. 3. Composição (Música). 4. Música – Instrução e ensino. 5. Música – Interpretação. I. Assciação de Pesquisa e PósGraduação em Música (Brasil).

CDU 78(05)


SUMÁRIO EDITORIAL......................................................................................

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Homenagem a José Maria Neves – Sessão de Abertura da ANPPOM Salomea Gandelman ......................................................................

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Periódicos brasileiros da área de música: uma breve cronologia (1983-2003) André Cavazotti .............................................................................. 21 Produção de conhecimento e políticas para a pesquisa em música. Música e Tecnologia Rodolfo Caesar............................................................................... 28 Da produção da pesquisa em Educação Musical à sua apropriação Claudia Ribeiro Bellochio.......................................................................................... 35 A produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil: balanço e perspectivas Regina Márcia Simão Santos......................................................... 49 Esboço de balanço da etnomusicologia no Brasil Elizabeth Travassos.......................................................................

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Ciência, significação e metalinguagem: Le sacre du printemps José Luiz Martinez ......................................................................... 87 Práticas Interpretativas e a pesquisa em Música: dilemas e propostas Felipe de Avellar Aquino ................................................................. 103 Pesquisa no Brasil: Balanço e Perspectivas Lucia Barrenechea .......................................................................... 113


EDITORIAL Dois motivos contribuiram para a Revista Opus abrir seu espaço para uma edição diferente: em 2003 a ANPPOM completou 15 anos, devidamente comemorados no XIV Congresso Nacional, realizado na UFRGS em agosto último e a partir de então, a nova Diretoria, eleita no mesmo evento, iniciou suas atividades. Estes fatos marcaram balanços, revisões, discussões e planos, aqui refletidos em artigos apresentados pelos convidados da comissão científica do Congresso, em Porto Alegre. Transparecem a ampliação e a transformação das quatro subdivisões da área de Música proposta no início da ANPPOM, o crescimento dos cursos de Pós-Graduação no Brasil e o considerável aumento do número de associados. A Opus 9. inicia com uma homenagem e uma saudade: José Maria Neves, no texto de Saloméa Gandelman, lido por ela e ouvido com emoção na sessão de abertura dos trabalhos. A ANPPOM lembra o presidente por dois biênios, o músico, o musicólogo, o professor, o pesquisador e o amigo. Na linha das revisões, André Cavazzotti traça um panorama das publicações de periódicos brasileiros da área de música nos últimos vinte anos, observa as ligações destes com os cursos de Pós-Graduação no Brasil e identifica problemas comuns. Para discorrer sobre produção do conhecimento e políticas de pesquisa em música, o compositor Rodolfo Caesar parte de Música & Tecnologia. Questiona as diversas subdivisões da área de Música e reflete sobre aspectos vividos na Universidade por todos nós. O debate sobre Educação Musical é tratado por Claudia Bellochio na observação dos caminhos entre a produção, a difusão e a apropriação da pesquisa, relacionando aí aspectos de natureza variada, além de concluir com sugestões para possíveis ações políticas. Regina Marcia Simão Santos apresenta um levantamento da produção do conhecimento através das comunicações de pesquisas realizadas nos encontros regionais e nacionais da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) nos anos de 2000 a 2002, a partir do que realiza considerações sobre perspectivas, direções e dimensões. Das várias faces da Musicologia, uma das que se apresenta é o trabalho de Elizabeth Travassos, no comentário sobre os aspectos dos contextos cultural e intelectual em que ocorre a institucionalização da etnomusicologia no Brasil. Outra é a realizada por José Luiz Martinez que, a partir de estudos propostos por ele para uma semiótica da música, analisa aspectos da Sagração da Primavera, de Stravinsky. Alvo de históricos debates, as Práticas Interpretativas estão aqui representadas por Felipe Avellar de Aquino na discussão de dilemas e propostas, quando defende e argumenta a produção artística como atividade intelectual e ainda sugere a necessidade de haver maior integração entre as subdivisões da área de Música. A participação de Lúcia Barrenechea retoma questões anteriormente levantadas e refletidas para comparar aos dias atuais e assim estruturar suas idéias. A todos, desejamos um bom proveito! Maria Lúcia Pascoal Editora


Homenagem a José Maria Neves – Sessão de abertura da ANPPOM (18 de agosto de 2003) Salomea Gandelman Sensibilizada agradeço à Diretoria da ANPPOM pela honra e responsabilidade com que me distinguiu, ao me convidar para, em nome da Associação, homenagear o nosso ilustre e querido José Maria Neves. Agradeço, também, à Dra. Martha Ulhôa, cuja valiosa colaboração possibilitou a inclusão de imagens em meu texto. Na 4ªfeira, dia 20 de agosto, José Maria completaria 60 anos. Sentimos, todos, a dor de sua falta irreparável e uma saudade imensa. Mas nossa homenagem se afinará pelo tom do querido amigo, que, até o último suspiro, em 27 de novembro de 2002, manteve constante seu humor jovial e amigável, trabalhou, produziu e se manteve conectado com seus múltiplos compromissos. A homenagem representa, pois, - e essa é a minha esperança – o nosso compromisso com a continuidade de seus trabalhos em tantas áreas da musicologia, todos realizados com rigor científico e espírito ético, mas sem perda da ternura, como dizia, citando Cláudio de Moura Castro. A partir de dados biográficos colhidos no curriculum vitae de José Maria; em sua apresentação, no dia 7 de maio de 2002, na série “Trajetórias” promovida pela Academia Brasileira de Música; e em texto do musicólogo e seu amigo pessoal, Coriún Aharonián, escrito por ocasião da morte de José Maria, no qual são citados diversos trechos de cartas que ele lhe enviou durante suas inúmeras estadias e viagens ao exterior; além de meu próprio testemunho, baseado em nossa longa amizade, desde 1965, quando ele ingressou nos Seminários de Música Pró-Arte, e de nosso compartilhamento do trabalho cotidiano, foi-me possível traçar um breve perfil de nosso querido e saudoso homenageado, perfil que, no entanto, não logra mostrar a riqueza de sua atividade multifacetada, sua personalidade íntegra, generosa, amiga, pronta a apoiar, estimular e colaborar, e o vigor de seu esforço no sentido de desenvolver, institucionalizar e consolidar a pesquisa musical no Brasil.


Nascido em S. João del-Rei em 1943, José Maria Neves era o caçula de nove irmãos - a mãe, Margarida Alcoque Moreira Neves, professora primária; o pai, Telêmaco Vitor Neves, bibliotecário da Biblioteca Municipal de S. João del-Rei, violinista, compositor e mestre de capela e, entre ele e o mais velho, D. Lucas Moreira Neves, falecido em setembro de 2002, aproximadamente três meses antes de José Maria, sete mulheres. Bem cedo, ainda por volta dos cinco anos, já acompanhava as irmãs nos ensaios e concertos da bi-centenária Orquestra Ribeiro Bastos, da qual o pai foi regente entre 1940 e 1950, até sua morte prematura, aos 52 anos. Os estudos musicais, iniciados com a irmã, Maria Stella Neves Valle, tiveram continuidade na Escola Municipal de Música e, a seguir, no Conservatório Estadual de Música “Padre José Maria Xavier”, de S. João, onde concluiu o curso de Educação Musical. O violino, seu instrumento inicial, foi depois substituído pelo violão. Durante o curso secundário, realizado entre 1955 e 1963, em uma escola de dominicanos franceses, em Juiz de Fora, a Escola Apostólica de S. Domingos, onde era intensa a prática coral, viajou por boa parte dos estados do Brasil como integrante do Coro dos Pequenos Cantores de S. Domingos, no qual chegou a atuar como preparador e regente assistente. Nos anos de 1963 e 1964, ao ingressar no curso de filosofia do Studium Generale Dominicano, em S. Paulo, sua vida sofre um desvio brusco e passageiro, chegando mesmo, nessa ocasião, a tornar-se Frei Vitor. Mas logo volta ao seu interesse central, a música, viajando, em 1965, para o Rio de Janeiro, quando ingressa para a Escola de Música da UFRJ, onde permanece por apenas três semestres, e nos Seminários de Música ProArte, instituição na qual estuda teoria e solfejo com Esther Scliar e Harmonia, Contraponto, Fuga e Composição com Guerra-Peixe. Como disse o próprio José Maria em seu depoimento na Academia Brasileira de Música, “[lá] certamente foi o local onde pude rever os grandes conceitos musicais, dentro daquela mesma linha de acúmulo, de possibilidades de crescimento, sem escolhas discricionárias, por que, na realidade, um equilibrava o outro: (...) cada vez que um exercício era levado ao GuerraPeixe e ele dizia que estava bom, no momento seguinte a Esther 8


desancava. Cada vez que a Esther dizia que um exercício estava muito bom, o Guerra o destruía na aula seguinte. Esta coisa era muito criadora por que levava a gente a começar a discutir as grandes questões”. Por recomendação de Guerra-Peixe, sua Missa de S. Benedito, para solista, coro, violão e percussão, composta quando ainda estava em S. Paulo, em 1965, foi apresentada no 2º concerto que se seguiu à inauguração da Sala Cecília Meireles, em 1966, regida por Antônio Lage e tendo como solista Clementina de Jesus, como percussionista Élcio Milito, do famoso Tamba Trio, e o próprio José Maria no violão. A peça alcançou grande êxito, tendo mesmo sido apresentada por três vezes, ao final das quais, segundo o autor, ele conseguiu comprar um piano. Como conta José Maria, “Clementina deve ter feito trinta réplicas da peça em muitos lugares, nunca cantou decor, mas também nunca cantou lendo; ela pegava uma imensa partitura e fazia o que era possível, mas ela nunca deixou de pegar a partitura na hora do concerto, era genial. No final da Missa, ela estava com a partitura na mão”. Uma outra peça, escrita em 1968, também muito tocada no final da década, e que, para José Maria, marcou um período importante de seu percurso composicional, foi o Duo para flauta e clarineta, obra na qual ele identifica leves traços neoclássicos recebidos de Esther Scliar, embora com exploração de outros recursos mais modernos. O autor menciona ainda um Quarteto de Cordas, o nº2, de 1969, no qual, segundo seu comentário crítico bem humorado, ele, “seguia todas as modas composicionais do final da década, com muito glissando para cima e para baixo, com muitos risquinhos exóticos, e que interessava bem pela forma de grafia, talvez mais pela grafia que pelo produto musical”. Ainda em 1968, iniciou sua atividade docente no Instituto Villa-Lobos da então FEFIEG – Federação das Faculdades Isoladas do Estado da Guanabara, depois FEFIERJ e finalmente Uni-Rio – como professor colaborador, atividade interrompida no ano seguinte, quando, como bolsista do governo francês, foi para Paris, onde permaneceu por dois anos. Durante esses dois anos realizou cursos de aperfeiçoamento em composição, regência, regência coral e música eletro-acústica, a última no Conservatório Nacional Superior de Música de Paris, com Pierre 9


Schaeffer, junto a quem estagiou no Groupe de Recherches Musicales da ORTF. Paralelamente aos cursos, fez seu mestrado em Musicologia, concluído em 1971, na Universidade de Paris IV, sob a dupla orientação de Jacques Chailley e Luiz Heitor Correa de Azevedo, dele resultando um trabalho posteriormente publicado em forma resumida pela Ricordi do Brasil, Villa-Lobos, o Choro e os Choros. Nesse livro, José Maria estuda o compositor, um chorão apaixonado, as ligações entre o “choro” popular e os Choros do compositor, concluindo com uma análise detalhada dos 14 Choros e dos Dois Choros (Bis) que fazem parte da monumental série. Retornando ao Brasil, José Maria volta ao Instituto Villa-Lobos e dá continuidade à atividade de docente à qual sempre se dedicou com amor, entusiasmo e rigor. Em 1973 presta concurso para professor assistente, e, 14 anos após, em 1987, em novo concurso, alcança o nível de professor titular, vindo a receber posteriormente, em 1997, o título de Professor Emérito. Por ocasião do concurso para professor titular, apresentou um estudo intitulado A Orquestra Ribeiro Bastos e a vida musical em S. João delRei. Através de levantamento bibliográfico sobre a cidade de S. João delRei em que aborda seus aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais; revisão de documentos dos arquivos religiosos e civis; entrevistas formais e informais com antigos músicos da cidade; e consultas a coleções de jornais sanjoanenses dos séculos XIX e XX, José Maria apresenta uma visão sumária da música colonial no Brasil; traça um panorama da história e da vida política, econômica e cultural da vila e da cidade de S. João del-Rei e de suas relações com os organismos de apoio e estímulo à produção cultural; focaliza a prática musical sanjoanense dos séculos XVIII e XIX e momentos do século XX; e, finalmente, estuda com maior profundidade a Orquestra Ribeiro Bastos e suas características de corporação tradicional. Mostra como - e aqui reproduzo as palavras de José Maria na Introdução de sua tese - “a preservação da tradição musical local é fruto da dedicação de Mestres e de músicos que, ao longo do tempo, souberam atualizar esta tradição, adaptando-se e adaptando-a às novas exigências da vida social, e que a funcionalidade foi e é a razão primeira da vida da corporação, 10


caracterizando-se como elemento de maior força de coesão e de dinamização que outros fatores aparentemente mais significativos, inclusive o profissionalismo e as possibilidades de lucro financeiro”. Vivendo no Brasil entre 1972 e 1974, após a conclusão do Curso de Mestrado, sua atenção se volta com particular interesse para a Educação Musical; passa a integrar o corpo de professores do Conservatório Brasileiro de Música, do qual chega a vice-presidente, revitalizando, com Cecília Conde, o legado de Liddy Mignone. Tal interesse o leva a freqüentar cursos direcionados para a área de Educação Musical, a fazer conferências especializadas em Encontros de Educação Musical e de Educação Artística, terminando por ser eleito presidente da Sociedade Brasileira de Educação Musical e da Associação Brasileira de Musicoterapia. Novamente em Paris com uma segunda bolsa de estudos do governo francês, entre 1974 e 1976, José Maria faz seu doutorado em Musicologia, ainda sob orientação de Jacques Chailley e Luiz Heitor Correa de Azevedo, ao mesmo tempo que retoma os estudos de regência coral no Instituto Católico de Paris e o estágio em composição eletro-acústica, mas agora, por decisão pessoal, não mais com Schaeffer, mas no American Center de Paris. Em carta para Coriún Aharonián datada de 24 de abril de 1976, José Maria faz uma descrição bem humorada da defesa de sua tese: “Foi duro e engraçado (...). O diabo do Chailley me encheu o saco, dizendo que eu só penso em ‘criatividade’, ‘engajamento’, ‘funcionalidade’ e outras coisas, e que ele, com toda sua experiência, podia dizer que a música contemporânea é ‘de la merde’! Foi um escândalo! Os outros membros do júri (Edith Weber e Luiz Heitor) fizeram uma cara feia e o público ficou sem saber como reagir. Mas no final, depois de três horas de luta, acabaram me dando a menção Très Bien”. A tese, traduzida e adaptada à forma de livro, foi editada pela Ricordi em 1981, com o título Música Contemporânea Brasileira. No seu Prefácio, Luiz Heitor considera o texto “minucioso e bem equilibrado”, oscilando “entre a pesquisa e a apreciação estética”, “entre a documentação objetiva, terreno da história, propriamente dita, e as considerações de 11


natureza mais subjetiva, ditadas pelo que pertence, não a esse terreno, mas ao da estética”. Como o título informa, trata-se de um estudo da música brasileira de concerto do século XX, organizado em torno dos movimentos que marcaram essa produção musical no país, movimentos caracterizados por duas forças propulsoras, a tradição e a inovação. Em suas quatro partes – Advento da Consciência Nacional, Música Viva, Grupo de Renovação, Renascimento do Nacionalismo e Do Nacional ao Universal – José Maria situa os movimentos em um quadro mais amplo, relacionando-os com aqueles que ocorriam na Europa, Estados Unidos e América Latina, e, da mesma maneira, estuda os compositores e suas obras inseridos nos movimentos de seus respectivos tempos. Livro em que fica claramente perceptível a inclinação ao anticonformismo, o engajamento do autor, e sua percepção da relação dialética entre processo criativo e sociedade como um todo dinâmico, embora escrito em 1977, continua sendo uma fonte de estudo insubstituível à qual recorrem todos os que procuram ter uma visão global da nossa música de concerto do século passado. De volta ao Brasil em 1976, após a conclusão do doutorado, José Maria re-estabelece definitivamente sua ligação, até então intermitente, com a Orquestra Ribeiro Bastos. No ano seguinte assume a função de regente do conjunto e, com a ajuda da irmã Stella Maria, dirige quase que ininterruptamente, até 2002, as atividades locais e diversas tournées pelo país. À frente da corporação musical incentivou a entrada de jovens, pois, como disse no depoimento dado em Trajetórias, “tive a impressão de que se viesse um pé de vento, aquela brisa da qual os franceses fogem, a courant d’air, eu tinha a sensação que morreria metade do grupo, porque a média do grupo estava por volta dos setenta anos. Qualquer corrente de ar destruiria duzentos anos de história. Realmente rejuvenescer o grupo era fundamental. Era preciso trazer gente jovem não só por causa da gripe, mas também porque havia uma coisa de autoestima a ser reconquistada. As pessoas tinham que se reconhecer naquela música e eles estavam começando a perder isto.(...) Hoje, o grupo tem 104 pessoas com uma média de idade que deve estar em torno de 22 a 25 anos. Não é qualquer gripe que mata, é preciso ser a espanhola”.

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O passo seguinte, a redefinição do repertório, provocou uma forte reação contrária. Compositores estrangeiros, Rossini, Perosi, Soma, comumente executados, foram substituídos por brasileiros e, preferencialmente, mineiros. Ao lado das mudanças introduzidas no repertório, as tradições, nelas incluídas a religiosa, atendendo a novas exigências, foram adaptadas, atualizadas e mesmo reinventadas A restauração do repertório antigo se deu a partir do trabalho de catalogação dos arquivos musicais locais e de cidades vizinhas, em torno dos quais foi gerado um grande número de pesquisas musicológicas Em um belo e comovido e-mail que a professora e pesquisadora Dra. Sandra Loureiro Reis me enviou em 31 de maio do ano corrente, ela escreve: “com seu exemplo, José Maria nos ensinou a valorizar a tradição como história viva, feita através do labor cotidiano das orquestras constituídas amadoristicamente pelo povo e que são iluminadas por um brilho diferente: o brilho do amor, do espírito comunitário que se alimenta nas raízes profundas da terra. Sempre ouvi a Ribeiro Bastos com uma emoção que se assemelha àquela que me vem ao contemplar os sobrados de Ouro Preto: tortos, desajeitados e incrivelmente belos, de uma originalidade genuína e autêntica que vem do âmago do espírito profundo de uma comunidade”. Em 1997, a Funarte publica um alentado estudo de José Maria, O Catálogo de Obras Música Sacra Mineira, fruto de revisão sistemática e acréscimo de informações a extensas e ricas pesquisas desenvolvidas e documentadas a partir dos anos 70. O trabalho, reproduzindo o texto de José Maria, “além da redação de novo texto de introdução, [consistiu] de total revisão da especificação de cada obra (respeitadas as informações técnicas da equipe de pesquisa que trabalhou diretamente sobre os manuscritos ou sobre microfilmes dos arquivos), do glossário (incluindo novos verbetes), das biografias, da bibliografia e da discografia (aumentada e atualizada) e do quadro que relaciona obras e cerimônias religiosas”. A revisão das 200 partituras reconstituídas nas pesquisas precedentes evidenciou que muitas delas, embora consideradas obras independentes, eram partes de obras mais extensas. Como decorrência, no Catálogo de José Maria foram incluídas 77 partituras de 22 compositores. Simultaneamente à sua publicação, foi lançada uma caixa 13


contendo um estudo introdutório a respeito do projeto “música sacra mineira” e 12 das 77 partituras, as 12 apresentadas em outra edição. Trabalho precioso, o Catálogo é uma obra à qual recorrem, obrigatoriamente, todos os estudiosos da música sacra mineira do período colonial. Em 1977, ano em que José Maria assume a regência da Orquestra Ribeiro Bastos, ele se junta à equipe permanente organizadora dos Cursos Latino-americanos de Música Contemporânea, dos quais se torna presidente entre 1978, por ocasião do 7º Curso, e 1989, quando se realiza o XVº e último, em Mendes, Estado do Rio. Os Cursos, iniciados em dezembro de 1971 em Cerro del Toro, Uruguai, por iniciativa de Coriún Aharonián, amigo de sempre de José Maria ainda dos tempos de estudos na capital francesa, com apoio de uma pequena equipe de compositores e professores, buscavam oferecer ao estudante de música latino-americano, em clima de intenso trabalho, questionamento e discussão, uma visão do panorama musical contemporâneo, não só da América Latina, como da Europa e Estados Unidos, do ponto de vista composicional, musicológico e interpretativo, ao mesmo tempo que promover o compartilhamento de experiências e conhecimentos e a “abertura de canais alternativos de informação”. Os Cursos realizavam-se em diferentes cidades do Brasil, e da América do Sul, contando com a colaboração generosa e gratuita de compositores e professores de diversos países latino-americanos, da Europa e até do Japão, Ainda nessa época, em 1979, com uma equipe formada, por Koellreutter, Conrado Silva e sua irmã, Maria Stella Neves Valle, entre outros, José Maria funda um selo de discos, Tacape, nos moldes do uruguaio Tacuabé, criado em 1971 e dirigido por Coriún Aharonián. A etiqueta Tacape, funcionando em forma de cooperativa, e conceitualmente ligada àqueles Cursos de Música Latino-Americana, tinha como objetivo preencher uma lacuna no meio editorial brasileiro, documentando música brasileira e latino-americana dos séculos XVIII e XIX, música folclórica e popular urbana brasileira e latino americana, música de comunidades indígenas do Brasil e da América Latina, e música contemporânea de concerto da América Latina. Do catálogo da Tacape constam, entre outros, seis discos de obras mineiras dos séculos XVIII e XIX, três 14


dedicados às tradições musicais de Goiás, e ainda alguns documentando uma Folia de Reis com grupos ativos do Rio de Janeiro, cocos cantados por Chico Antônio, música dos índios Suyá produzido pelo etnomusicólogo Anthony Seeger, e atividades musicais e religiosas da antiga cidade paulista de Cananéia. Esses LPs, importantes documentos musicológicos, não podem ser confundidos com gravações de concertos convencionais, já que registram sem retoque, e não poderia ser de outra maneira, uma determinada realidade musical tal como praticada. Obras do Professor Koellreutter, e, executadas pela pianista Beatriz Balzi, de compositores contemporâneos da América Latina, também constam do catálogo. Dificuldades financeiras levaram ao encerramento da Tacape em 1992. Mas, além de intensa atividade docente, de ministrar inúmeros cursos intensivos, de realizar incontável número de conferências no Brasil e no exterior, escrever em torno de 30 artigos publicados e integrar conselhos editoriais de incontável número de revistas especializadas brasileiras e estrangeiras, José Maria desenvolve uma não menos intensa atividade na área de administração universitária: exerce chefias de departamentos, a coordenação do Instituto Villa-Lobos - escola de música da Uni-Rio - a representação de professores junto a conselhos superiores; participa de um sem número de comissões, bancas de concurso para ingresso na carreira universitária, bancas de defesa de dissertação e de tese, e funda e coordena, em 1981, o Curso de Mestrado em Música, provavelmente o primeiro do país, no Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro. Em 1992 participa, com sua inteligência, argúcia e conhecimento, da elaboração do Curso de Mestrado em Música Brasileira, do qual foi o primeiro coordenador, Curso que, poucos anos mais tarde, mais uma vez com sua imprescindível participação, torna-se o Programa de Pós-Graduação em Música da Uni-Rio. Atuou com a competência e isenção que lhe eram peculiares, como consultor ad hoc junto ao MEC, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, à Fundação CAPES e outras instituições; como membro do Comitê de Avaliação da CAPES para os Cursos de PósGraduação e, posteriormente, para os Programas de Pós-Graduação na área das Artes; e como representante da área de Música no comitê de Assessoramento de Artes, Comunicação e Ciência da Informação do CNPq. Sua atuação junto aos órgãos de fomento à pós-graduação e à 15


pesquisa foi de apoio irrestrito e de orientação a todos os Cursos e Programas em funcionamento e contribuiu de maneira decisiva para a consolidação da Pós-Graduação em Música no universo acadêmico. Como orientador, sua atividade não foi menos expressiva - orientou 22 dissertações e 2 teses, algumas claramente dentro da área de etnomusicologia. Sua eleição para presidente da ANPPOM, cargo que exerceu por duas gestões, de 1995 a 1999, bem como para a Academia Brasileira de Música, em 1992, instituição da qual foi presidente entre 2001 e 2002, até seu falecimento, atesta o reconhecimento da comunidade musical e acadêmica do valor da contribuição de José Maria para o desenvolvimento da Musicologia em seu amplo sentido e do ensino no Brasil. Coincidentemente, ocupou na Academia a cadeira nº12, cujo patrono é o Padre José Maria Xavier (1819/1887), também de S. João del-Rei. Cabe ainda mencionar seu ingresso, em 1999, para o PEN Clube, bem como os dois significativos prêmios que recebeu, o Prêmio Nacional da Música de 1996, na categoria Musicologia, e a Menção Honrosa do Prêmio Robert Stevenson, que lhe foram concedidos em 1997 e 1999, respectivamente, pela Funarte e pelo Centro LatinoAmericano de Altos Estudos Musicais da Universidade Católica de Washington e Conselho Interamericano de Música da OEA. Suas pesquisas se mantiveram ininterruptas, com bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian, do CNPq e da CAPES, para projeto integrado, ou para a realização de dois pós-doutoramentos, o primeiro, entre 1994 e 1995, na Universidade do Texas, em Austin, e o segundo, entre 1999 e 2000, na Universidade Nova de Lisboa, ascendendo, em 1997, à categoria de pesquisador 1 A do CNPq. Alguns livros publicados e pesquisas concluídas não podem deixar de ser lembrados: Brasílio Itiberê – vida e obra, livro publicado em 1996 pela Fundação Cultural de Curitiba, por ocasião do sesquicentenário de nascimento do diplomata e compositor, precursor do nacionalismo, autor, entre outras obras, de A Sertaneja, grande fantasia característica para piano, provavelmente escrita entre 1863 e 1866. Além da alentada biografia de Brasílio Itiberê acompanhada de belas ilustrações, José Maria analisa cuidadosamente algumas de suas obras, relaciona umas com outras, incluindo inúmeros exemplos musicais que complementam 16


as análises, e conclui o livro com um catálogo das obras do compositor elaborado por Mercedes Reis Pequeno, extensa bibliografia e um índice remissivo. No livro Glauco Velásquez, publicado em 2001 pela Academia Brasileira de Música, José Maria conta com a colaboração de Maria Cecília Ribas Carneiro, sobrinha-neta do compositor, que escreve o 1º capítulo - A vida de Glauco Velásquez. Como no livro anterior, José Maria faz uma análise detalhada da obra do compositor que morreu aos 30 anos, em 1914, cuja música Luiz Heitor considerava “a primeira investida de um compositor brasileiro contra a cidadela do tradicionalismo”. Às análises seguem-se dois índices, bibliografia e diversos e interessante anexos, entre eles trechos de carta de Luciano Gallet a Mário de Andrade, versando sobre Velásquez. A respeito de Sigismund Neukomm, José Maria publicou um excelente artigo na revista Debates nº 5 de nosso Programa, intitulado Reescrevendo uma peça: As Missas nº1 e nº4 de Sigismund Neukomm e, antecedida por um breve estudo introdutório, a transcrição da Missa Solemnis pro Die Acclamtionis Joannis VI, obra composta em 1817 e usada na aclamação de D. João VI como monarca de Portugal, Brasil e Algarve, em 1818. Partitura editada pela Funarte, teve sua primeira execução moderna em abril de 2003, em um concerto regido por Júlio Moretzohn em homengem a José Maria, que se empenhou muito para que a Missa viesse a ser apresentada. Segundo consta na 2ªorelha do livro Glauco Velásquez, ainda está inédito um livro intitulado Sigismund Neukomm e sua música. Também inédito está um precioso e alentado estudo sobre a Escola de Canto de Órgão, de Caetano de Mello Jesús, músico que esteve à frente da música na Sé Primacial do Brasil, no Rio de Janeiro, pelo menos entre 1734 e 1760, estudo que inclui uma transcrição integral da obra do referido músico, e que, nas palavras de Dr. Luiz Paulo Sampaio, revela bem o “faro investigativo de José Maria e a seriedade epistemológica com que desvendou documentos e aspectos importantes de nossa história musical”. 17


Gostaria de abrir nesse momento um rápido parêntesis para informar que a quase totalidade do acervo de José Maria estará disponibilizada no CEREM – Centro de Referência Musicológica Professor José Maria Neves – que será inaugurado em S. João del Rei, no dia de seu aniversário, 20 de agosto de 2004, ficando a parte restante na Academia Brasileira de Música. Embora pouco tenha sido comentado a respeito de José Maria compositor, é bastante extenso o número de peças que escreveu, entre elas uma ópera incompleta, Tiradentes, trilhas sonoras para peças de teatro e inúmeras obras para instrumento e fita magnética e eletroacústicas. A partir de 1989, no entanto, parece ter sido completamente absorvido por suas atividades de ensino, pesquisa e consultoria. Para terminar, trago outras vozes que, com a minha, expressam a lembrança tão viva que todos guardamos de José Maria: De Dr. Luiz Paulo Sampaio, do nosso Programa. “Foi extraordinário e bem sucedido o esforço de José Maria em colocar a musicologia brasileira no mapa mundi. Seu trabalho extraordinário envolveu não apenas suas próprias pesquisas e publicações, mas todo o seu talento de animador e organizador da pós-graduação em música em nosso país, e sobretudo na Uni-Rio e na ANPPOM, que ele ajudou a criar e que presidiu. Sua extraordinária abertura permitiu-lhe escapar de um certo sectarismo que assombra os meios acadêmicos no Brasil. Mesmo que não concordasse com alguma teoria ou proposição, buscava analisá-la com o máximo de isenção e criticá-la construtivamente, sem impedir ou dificultar a sua divulgação.” De Gerard Béhague, da Universidade do Texas em Austin: “José Maria representou uma grande força impulsora para a musicologia histórica brasileira durante os últimos 25 anos do século XX. A sua influência se deve sobretudo às suas atividades como docente/orientador de vários pesquisadores em instituições de ensino de alto nível e como figura de liderança atuante em organizações nacionais, como a ANPPOM e a 18


Academia Brasileira de Música. Ele soube inculcar o rigor indispensável da metodologia científica na pesquisa musicológica, que tanto fazia falta no Brasil. Também a sua experiência de pesquisador e professor de musicologia resultou em um conhecimento aprofundado dos temas teóricos mais atuais, tais como música e identidade social, música e sexualidade, música e história cultural e a necessidade fundamental de contextualização do fazer musical em determinado tempo e espaço”. De Gerhard Doderer, da Universidade Nova de Lisboa: “Resumidamente, eu poderia dizer que, graças à ação científica e formativa-pedagógica dele, verificou-se uma viragem da musicologia brasileira, de uma atitude principalmente músico-historiográfica, para uma situação que se caracteriza por uma multifacetada orientação dos profissionais da música prática e dos musicólogos-investigadores. Penso que devido a ele que a musicologia no Brasil se começou a atualizar e procurar alcançar um nível comparável com outros países desenvolvidos. Creio que o José Maria, com seu empenho nos Conservatórios e nas Universidades, conseguiu que se estreitasse, de uma maneira considerável, o fosso entre a pura formação dos músicos intérpretes e os trabalhos acadêmicos dos musicólogos-músicos”. E o que pensou José Maria dele mesmo? Na série Trajetórias ele disse: “Minha experiência de cinco anos de estudo com Guerra-Peixe me fez pensar que a gente deve buscar a multiplicidade, a variedade, o enriquecimento e, sem maiores pretensões, eu gostaria de dizer que, se eu não sou o que Mário de Andrade disse dele mesmo, eu gostaria que eu pudesse um dia dizer isso – e cita uma passagem de Música, doce Música - :“Não sou folclorista não. Me parece que não sou nada, na questão dos limites individuais, nem poeta. Sou mais é um indivíduo que, quando senão quando, imagina sobre si mesmo e repara no ser gozado, morto de curiosidade por tudo o que faz no mundo. Curiosidade cheia daquela simpatia que o poeta chamou de “quase amor”. Isto me permite ser múltiplo e tenho até a impressão que bom”. E José Maria acrescenta: se eu tenho alguma pretensão quanto a pesquisador e músico, creio que é uma pretensão de ser múltiplo e de tentar ser bom, sempre que possível”. 19


Para concluir, como coda, vou ler um pequeno e singelo poema de Carlos Drummond de Andrade, Memória, do livro “Claro Enigma”, publicado em 1951: Amar o perdido/ deixa confundido/este coração. Nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não. As coisas tangíveis/tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas,/muito mais que lindas, essas ficarão.

Salomea Gandelman. Mestre em Comunicação e Professora Adjunta do curso de Bacharelado e do Programa de Pós-Graduação em Música (UNI-RIO). É autora de 36 Compositores Brasileiros – Obras para piano (1950-1988) publicado pela Funarte e Relume-Dumará, além de artigos nas revistas brasileiras Art (UFBa), Debates (UNI-RIO) e Brasiliana (Academia Brasileira de Música). e-mail: salomea@iis.com.br

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Periódicos brasileiros da área de música: uma breve cronologia (1983-2003)

André Cavazotti Resumo: Panorama das publicações científicas brasileiras seriadas da área de música no Brasil durante as últimas duas décadas. Após apresentar uma breve cronologia destas publicações – classificadas como séries de livros e periódicos propriamente ditos – o autor identifica alguns problemas comuns a diversas destas publicações, tais como distribuição e periodicidade. Palavras-chave: Periódicos científicos brasileiros. Produção acadêmica. Pesquisa em música.

Abstract: Overview of the scientific serial publications of music in Brazil during the last two decades. After the presentation of a brief chronology of these publications – classified as book series and periodicals – the author identifies a some problems common to quite a few of these publications, such as distribution and periodicity. Keywords: Brazilian scientific periodicals. Academic output. Music research.

O presente estudo consiste em uma breve cronologia das publicações científicas brasileiras seriadas da área de música no Brasil, focalizando, principalmente, a produção dos últimos vinte anos. Não incluí neste levantamento nem as diversas publicações seriadas das áreas de humanidades e/ou artes que incluem de forma esporádica trabalhos da área de música, nem os anais de congressos, seminários e encontros. Normalmente, quando um pesquisador deseja tornar pública a sua pesquisa, dirige-se a uma publicação seriada científica especializada. Por isso, a publicação dos resultados de pesquisa numa publicação seriada é entendida, aqui, como instrumento de transferência do conhecimento e, portanto, diretamente associado à atividade de pesquisa.


A primeira dificuldade encontrada para a realização do presente levantamento foi a inexistência de fontes que ao menos listem parte considerável dos títulos de periódicos brasileiros de música, já evidenciando a irregularidade de distribuição como um dos problemas desses periódicos. Foram consultadas as seguintes fontes:

Catálogo Coletivo Nacional de Publicações Seriadas do IBICT (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia). Um dos graves problemas deste catálogo - que atualmente encontra-se bastante desatualizado – é fato de basear-se em acervos de um número muito restrito de bibliotecas; Bibliografia da Música Brasileira 1977-1984, publicado pela ECA-USP; Bibliografia da Música Brasileira da Associação Brasileira de Música; 1 Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional; RILM Abstracts of Music Literature. Ao compararmos as edições de agosto de 2000 com a de maio de 2003, observamos que houve um aumento superior a 100% no número de periódicos brasileiros indexados nesta base; The Music Index; The Library of Congress; Lista de periódicos do The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Segunda Edição; 2 Lista de periódicos eletrônicos da ANPPOM; Sites da Scielo – que até o momento em que o presente levantamento foi realizado, não continha nenhum periódico brasileiros na área de música; Sumários de Periódicos de Música da USP; Sumários de Periódicos de Música da UFRJ (tanto os Sumários da USP quanto os da UFRJ contam com pouquíssimos periódicos nacionais); MUSICON: Guia da Música Contemporânea Brasileira, publicado pelo Centro de Documentação de Música Contemporânea da UNICAMP; Thesaurus Musicae Brasiliensis da Escola de Música da Universidade Estadual de Minas Gerais, cuja proposta e conteúdo são interessantes. O escopo, porém, é restrito e encontrava-se, quando realizei o levantamento, bastante desatualizado; Revista “Ciência da Informação” do IBICT; Site da Sociedade Brasileira de Musicologia;

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Agradecemos o generoso auxílio prestado pela pesquisadora Mercedes Reis Pequeno, responsável pela manutenção da Bibliografia da Música Brasileira.

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Para consulta desta base, contamos com a inestimável colaboração do Prof. Dr. Carlos Palombini.

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Site da Correspondência Musicológica Euro-Brasileira; Sites de diversas bibliotecas brasileiras e norte-americanas.

A partir dos dados coletados, podemos afirmar que as publicações seriadas acadêmicas brasileiras da área de música podem ser classificadas em séries de livros e periódicos propriamente ditos. Quanto às séries de livros, podemos afirmar que trata-se de um fenômeno que passou a ocorrer durante os últimos dez anos, quando alguns cursos de pós-graduação e associações brasileiras ligadas à música deram início a este tipo de publicação. Destacamos a Série Teses, publicada pela ABEM, a Série Estudos, publicada pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS, a Série Reísa, do Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA (a única que publica seus livros em formato eletrônico), e a Série de Publicações Especiais da Sociedade Brasileira de Musicologia. Quanto aos periódicos brasileiros de música, observamos que muitos tiveram vida bastante curta. Alguns trouxeram contribuições importantes para a área de pesquisa em música, e são ainda utilizados com freqüência como importantes fontes de referência. É o caso dos periódicos Cadernos de Estudo: análise musical e Cadernos de Estudo: educação musical, criados e editados durante a década de 90 pelo musicólogo e compositor Carlos Kater. Considerando os periódicos científicos brasileiros de música atualmente em vigor, este levantamento revelou que todos são publicações de: 1) associações; 2) instituições de ensino superior. I. Sobre os periódicos atualmente publicados por associações Nos últimos quinze anos, surgiram no Brasil diversas associações voltadas à atividade musical. Atualmente, seis delas publicam revistas que - em graus bastante, variados – podem ser classificadas como periódicos acadêmicos e cuja relevância ultrapassa os limites das respectivas associações. Eis uma breve cronologia:

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Em 1983 saiu o primeiro Boletim da Sociedade Brasileira de Musicologia. No ano seguinte, foi lançada a revista Pesquisa em Música, publicação trimestral do Centro de Pós-Graduação, Pesquisa e Especialização do Conservatório Brasileiro de Música. Já em 1989 saiu o primeiro número da Correspondência Musicológica Euro-Brasileira, órgão informativo binacional (Brasil-Alemanha), editado conjuntamente por três entidades: Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos, Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e Akademie Brasil-Europa. No mesmo ano, foi lançado o primeiro número da Opus, a revista da ANPPOM, publicada em suporte papel até o quinto número e, a partir daí, somente em versão eletrônica. Dentre os periódicos publicados por associações ligadas à música, este é o único que é veiculado somente em versão eletrônica. Em 1990 saiu o primeiro número da Revista da Associação Nacional de Música, publicado anualmente no Rio de Janeiro. Já em 1992, a Associação Brasileira de Educação Musical lançou o primeiro número de sua revista. Em 1994 foi lançado o primeiro número da Revista da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, publicada, pelo menos inicialmente, em Goiânia. No ano seguinte, a Sociedade Brasileira de Musicologia lançou o primeiro número de sua publicação anual intitulada Revista Brasileira de Musicologia. Em 1996 saiu o número inicial da Revista Brasileira de Musicoterapia, publicada no Rio de Janeiro pela União Brasileira das Associações de Musicoterapia. Em 1999, a Academia Brasileira de Música publicou o primeiro número de seu periódico, Brasiliana. Com periodicidade quadrimestral, este é o único periódico publicado por associações brasileiras que sai mais do que uma vez ao ano. Um parêntesis histórico: de 1932 a 1934, esta academia publicou a Revista da Academia Brasileira de Música que, a partir de 1934, passou a ser publicada pelo então Instituto Nacional de Musica - atual Escola de Música da UFRJ - , quando passou a ser denominada Revista Brasileira de Música, como veremos abaixo.

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II. Periódicos atualmente publicados pelas instituições brasileiras de ensino superior Nove instituições brasileiras de ensino superior publicam atualmente dez periódicos de música, todos publicados por instituições federais, exceto as Revistas Música e Pesquisa em Música, publicados, respectivamente, pela ECA-USP e pelo Conservatório Brasileiro de Música. Do total de dez periódicos, seis são publicados por cursos e programas de pós-graduação. Ressaltamos que cinco destes dez periódicos estão irregulares quanto à sua periodicidade, mais um dos grandes problemas dos periódicos brasileiros da área de música. Buscando a motivação para o surgimento destes dez periódicos, distiguimos quatro momentos distintos. Chamamos de momento inicial aquele da criação da Revista Brasileira de Música, lançada em 1934 como conseqüência direta da incorporação do Instituto Nacional da Música à Universidade do Rio de Janeiro, atual UFRJ. Segundo seu idealizador e então Diretor do Instituto Nacional de Música, prof. Guilherme Fontainha, era necessário que fosse criada uma publicação onde os discentes pudessem acompanhar os “avanços” musicais. Da primeira comissão editorial constavam Lorenzo Fernandez, Luiz Moretzsohn e Luiz Heitor Correa de Azevedo. Alguns dos artigos do primeiro número foram escritos por alguns dos principais protagonistas do panorama musical da época, como Mário de Andrade e Francisco Mignone. Saltamos para a década de 80, período em que a criação de novos cursos de pós-graduação em música gerou dois importantes periódicos. Em 1984 é lançada a Revista Pesquisa e Música, publicada pelo Curso de PósGraduação em Música do Conservatório Brasileiro de Música. Já em 1989 sai o primeiro número da Revista Em Pauta, publicada pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS. Num terceiro momento - 1990 a 1996 - , vemos o surgimento de três periódicos voltados para a musicologia. Apesar de serem publicados por instituições de ensino superior, nenhum é vinculado aos respectivos 25


programas de pós-graduação. Em 1990 sai o primeiro número da Revista Música (publicação do Departamento de Música da ECA-USP). Em 1993 é lançada a Revista Música Hoje, periódico criado por Carlos Kater e publicado pelo Departamento de Teoria Geral da Música da UFMG e em 1996 saiu o primeiro número da Revista Eletrônica de Musicologia, a primeira publicação eletrônica brasileira na área de música, publicada pela Universidade Federal do Paraná. Chamamos de quarto – e último – momento aquele em que quatro então novos cursos de pós-graduação em música lançaram seus respectivos periódicos. São eles:

Revista Debates, publicada a partir de 1997 pelo programa de pós-graduação em música da UNIRIO; Ictus, Revista do Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA cujo primeiro número saiu em 1999; PER MUSI, Revista de peformance musical do curso de pós-graduação em música da UFMG, publicada desde 2000. Música Hodie, o mais recente dos periódicos brasileiros de música. Teve seu primeiro número publicado em 2001 e é uma publicação do curso de pósgraduação em música da UFG.

Observações finais O surgimento de diversas publicações seriadas acadêmicas da área de música no Brasil nos últimos vinte anos reflete o crescimento da produção científica da área que deve-se, por sua vez, em grande medida, aos esforços de capacitação docente e ao surgimento de programas de pósgraduação em música no país. Se por um lado podemos afirmar que já há um número considerável de publicações seriadas acadêmicas brasileiras na área de música, podemos igualmente afirmar que o nível de qualidade ainda deixa muito a desejar em diversos aspectos. Buscando sintetizar, indico seis pontos que acredito que devam ser observados para que as nossas publicações seriadas alcancem a qualidade que desejamos, servindo como veículo adequado para a produção científica da nossa área: 26


1) 2) 3) 4) 5) 6)

Regularização da periodicidade Maior seletividade nos trabalhos aceitos para publicação Melhoria nos padrões normativos dos periódicos Estratégia adequada de distribuição Aumento do número de citações das revistas e autores brasileiros nas principais fontes de indexação internacional Maior interação entre os editores e maior atuação na Associação Brasileira de Editores Científicos.

Para finalizar, gostaria de colocar a questão da publicação de periódicos seriados via suporte eletrônico, cujas vantagens em termos de custo de produção e agilidade de distribuição colocam esta como uma atraente alternativa ao suporte papel. Até o presente momento, as únicas publicações seriadas em formato eletrônico são a Revista Eletrônica de Musicologia, a Opus e a série de e-books Reísa. Foi interessante perceber, durante este levantamento, que as publicações seriadas brasileiras da área de música contam parte significativa da história da pós-graduação em música no Brasil: pois lá estão, de maneira muito viva, tanto os diversos protagonistas quanto os temas e respectivas questões que nortearam e que têm norteado a grande aventura da pósgraduação em música no Brasil.

André Cavazotti. Doutor em Música pela Boston University (1998), sua tese de doutorado consiste em um estudo estilístico sobre as Sonatas para violino e piano de M. Camargo Guarnieri. Mestre em Música pela UFRGS (1993). Professor Adjunto na Escola de Música da UFMG. Editor da Revista Per-Musi. e-mail: cavazotti@ufmg.br

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Produção de conhecimento e políticas para a pesquisa em música. Música & Tecnologia.

Rodolfo Caesar Resumo. A música como área de conhecimento. Sua divisão em sub-subáreas que não recebem a mesma pontuação: pode isto cortá-la pedaços para sempre? O que é pesquisa em música, o que se conforma ao formato da pesquisa científica? Sendo música Conhecimento, seria também Ciência? Palavras-chave: Música & Tecnologia. Música & Conhecimento. Objetividade. Abstract: Music as knowledge. The area's division: couldn't it lead to an Irreversible division? What is research in Music, what really fits in the scientific Research model? Being music knowledge, could it be also a science? Key words: Music & Technology. Music & Knowledge. Objectivity.

Se existe um privilégio vital para os músicos na vida universitária, é a de se poder estudar, poder renovar o conhecimento, e, quando for possível, acrescentar algum grão ao conhecimento geral através da pesquisa, da produção de música ou de texto sobre música. Nunca é demais lembrar que, neste planeta desertificado pelas injunções de mercado, o espaço universitário se tornou um refúgio, um santuário para a criação e a reflexão musical - até mesmo as mais orientadas pela gratuidade. É um benefício que nos esforçamos por sustentar, e que requer uma constante tomada de equilíbrio: a compreensão de uma tensão. Devido ao enxugamento das máquinas financiadoras e às dificuldades crescentes para a obtenção de bolsas e apoios, atualmente a verificação da produtividade na área de música tem gerado muitas discussões, muitas das quais estéreis. Assiste-se a conflitos de interesses crescentemente agressivos quanto mais diminuem as verbas para a pesquisa. Sobre esse fundo se delineia o futuro da criação musical na universidade, que depende essencialmente de como a área de música vai se constituir como um organismo inteiro - para disputar, com a biologia e a informática, por exemplo, pequenas fatias de um bolo minguante. Porque somente ao preço de sua constituição, pela compreensão da tensão nas diferenças entre as sub-subáreas, a subárea adquirirá consistência. A primeira e mais óbvia dificuldade entre as sub-subáreas reside na tão debatida necessidade de sabermos como pontuar a produção musical


universitária. Por exemplo: quantas composições estreadas em eventos nacionais perfazem o mesmo número de pontos equivalendo a um artigo publicado em revista internacional indexada? O paper publicado vale pontos, uma obra estreada também: isto é uma conquista, mesmo se nesta indexação se subestimar, por exemplo, uma apresentação em coreto ou praça pública. Com a devida atenção, as correções virão ao longo do tempo. Porém não se trata apenas disso. A música na Universidade já nasceu em pedaços, segmentação esta conforme às necessidades de canalização frente à diversidade dos tipos de produção musical: a criação de obras ficou na subárea da Composição, tocar instrumentos é Prática Interpretativa, escrever sobre música é Musicologia. O XV Congresso da Anppom apresenta novas segmentações: Educação Musical, Musicoterapia e Música & Tecnologia. Mesmo se estas ainda não estão assimiladas pelos programas de pósgraduação, já se destacam como sub-subáreas, e de agora em diante o verbo ‘destacar’ deve ser pensado com cuidado. Este último segmento (M&T), por exemplo, já vinha recebendo uma atenção especial graças ao vínculo imediato com as ciências da computação.

Música & Tecnologia Música & Tecnologia: o ‘&’ de ligação entre estas duas áreas não deve ser necessariamente interpretado como sinal de um casamento feliz. Diante da dupla posso ser levado a pensar em Batman & Robin, Jerônimo & Moleque Saci e Romeu & Julieta; mas ela também pode apontar para relacionamentos conturbados como Elizabeth Taylor & Richard Burton, Tom & Jerry, Sansão & Dalila, e até Judite & Holofernes. Música & Tecnologia nos encaminha para o exame de todas as questões referentes a esse contrato difícil que é o casamento, incluindo aí as ‘discussões de relação’. Este elo de ligação fica perdido especialmente quando, em lugar de se aproveitar da proximidade e da intimidade para aprofundar o conhecimento uma da outra, uma das partes se crê mais esperta. No casamento em questão - da música com a tecnologia – o fim de um ‘caso’ já merece registro. Foi quando o núcleo de pesquisadores que tentava juntar as pontas da música com a tecnologia decidiu eliminar a cereja da música eletroacústica (a composição e as práticas interpretativas cum tecnologia) do topo do seu bolo nupcial, acreditando-se dispensado de discutir a relação. Os adeptos da cereja de certa forma exploravam novas alternativas de financiamento para sua atividade composicional/performática em abrigo provisório sob o guarda-chuva da 29


computação. Para grande sorte da subárea de Música, mesmo sem cereja para atrapalhar a sucção, a área computacional não foi absorvente para levar para si este importante pedaço nosso. Curiosamente, se alguém se der ao trabalho de analisar os papers ali produzidos vai notar que os de melhor qualidade são os que justamente se encaixam em congressos como este (Anppom 2003). O mais óbvio motivo legitimador da existência do núcleo tinha sido o apoio à música vindo da parte endinheirada da computação. Estava-se em plena estratégia do cuco, que põe seus ovos em ninho alheio (para que outro pássaro alimente a sua prole), esquecendo-se que em matéria de oportunismo a cara-metade é muito mais descolada. Basta lembrar o destino do SYTER, do GRM, vendido para a marinha francesa (para realizar análise em tempo real de sons submarinos). É ingenuidade acreditar que quando o MIT emprega um violoncelista como Yo Yo Ma seu interesse seja a música. O engenheiros do MIT sabem que a complexidade da música, sim, é um desafio para a computação, a indústria de software e hardware impulsionada por avanços nas ciências cognitivas. Se todavia persistir nesta separação, a música não terá percebido que no falso enlace também enfraquece seu núcleo central. Graças à manutenção do tema M&T em seus congressos, a Anppom soube evitar um sério esvaziamento pois permitiria que a produção de M & T, seus papers e outros derivados, incluindo composição, escoassem unicamente para aquele setor. Fica claro porque se deve recear alianças centrífugas (aqui exemplificadas com a dupla M&T - mas poderiam ser várias outras), isto é, que se afasta dos vetores disciplinares cujo núcleo é a Música. Pode ocorrer a fragmentação de uma subárea que ainda nem se constituiu como tal. Seguíssemos naquela direção brevemente a aliança Música & Tecnologia seria uma subárea da Computação. Etnomusicologia estaria na Antropologia. Educação Musical na Pedagogia. História da Música em História, etc… Entretanto, é necessário manter uma mistura das populações de cada uma das subseções entre si, sempre ciente de que estas subdivisões muitas vezes são artificiais. Por exemplo neste congresso algumas comunicações na sala de Música & Tecnologia, por seu cunho filosófico poderiam estar tanto em Musicologia quanto, por exemplo, em uma hipotética sub-subárea de Música & Filosofia. O interesse geral dos ouvintes demonstrou abertura para assuntos não específicos de M&T reafirmando a natureza interdisciplinar da música, condição esta que sempre deve ser confirmada e estimulada. (A definição de espaços de 30


apresentação segmentados por assunto - necessária para dar conta da quantidade de inscricões - foi entendida como prejudicial porque filtrava por princípio. Porém o que pesa de fato é a tendência naturalmente endogênica entre os pesquisadores de acompanharem o programa de sua própria subseção). A crescente diminuição da mistura, portanto da comunicação entre subseções não é o efeito mais diluidor. A grave conseqüência a longo prazo seria, eventualmente o aprofundamento dos recortes dentro das próprias escolas, seccionadas em unidades cada vez mais separadas para maior exercício da competição por bolsas e apoios (dos órgãos de fomento). A escola de Musicologia concorrendo com a de Composição, etc. este estado de coisas parece ser confirmado pela sugestão de que certas produções acadêmicas musicais deveriam buscar subsídios em órgãos de fomento diferenciados, até mesmo de outros Ministérios. O CNPq, por exemplo, por pertencer ao Ministério de Ciências e Tecnologia, fomentaria apenas a pesquisa ‘científica’. A composição e as práticas interpretativas já deveriam ter percebido que, não sendo da alçada do mesmo ministério deveriam buscar fomento em outros, como por exemplo o da Cultura. Se as divisões ou papéis dos órgãos de fomento e dos Ministérios não correspondessem nem atendessem aos da música, isso seria problema não da música - anterior a isso tudo - mas resultado de uma divisão de órgãos e ministérios inadequada para a ela. Mas esta não é a questão de verdade, já que os órgãos de fomento nem sabem direito o que é que qualifica uma produção como ‘fomentável’. Parece faltar um entendimento interno através do qual as tres, quatro ou cinco subáreas reconhecessem sua mutua interdependencia para a substanciação da área de música. Esta muito se beneficiaria se adquirisse a consciência de que sua ‘essência’ só é possível quando há co-existência das subseções, até porque esta ‘essência’ da música é a interdisciplinaridade. O todo da Música, sim, vive como parasita, e de uma enorme quantidade de disciplinas. Ponto por ponto Conforme dito anteriormente, a pontuação da produção se adequa mais aos produtos ‘cientificos’. Uma densa discussão poderia se prolongar sobre a possibilidade de se acreditar - para a música - em um status mais confiante em sua cientificidade. Mas como perguntar se ‘Música é Ciência? se todos aceitam que Música é (apenas) Arte? No discurso de abertura do XV Congresso a Anppom foi saudada como a ‘que se manifesta na [esfera da] sensibilidade’ sem atentar para o fato de que, 31


assim exposta, ficava mais longe da esfera dita inteligível, esta, sim, espaço para a concreção de uma racionalidade ‘científica’. Certamente não se deve confundir o status do conhecimento multidisciplinarmente espalhado em torno da música com aquele das ciências modernas e contemporâneas. Sua complexidade, especificidade e nuclearidade fazem da música uma área privilegiada de geração de conhecimento. Será difícil e até mesmo estéril buscar para ela critérios legitimadores que a aproximem da ‘objetividade’ das ciências. (Por sinal, nem bem sabemos com certeza de que se trata, essa objetividade das ciências.) Mas já sabemos, sim, que em outros lugares uma parte importante da subseção Música & Tecnologia perfila social e produtivamente com as ciências da computação, usando de toda sua ‘sensibilidade’ para os abraços mais tecnocientíficos. O mesmo se poderá dizer da produtividade dos problemas lançados pela música para as ciências cognitivas. Por causa de tantos enlaces misturados com a história do conhecimento, Arte e a Ciência ainda não foram - e talvez nunca o sejam definitivamente compartimentalizadas. A astrofísica mergulha poeticamente em ‘buracos negros’ esquivando-se de ‘cordas’ a despeito dos esforços do principal e mais preocupado dos filósofos, que contraiu dívidas semelhantes há dois mil anos atrás: ‘Platão também dirá que o verdadeiro recurso contra o poema é “a medida, o número e o peso”.. ‘…o que a poesia desorienta é o pensamento discursivo, a dianoia. O poema, diz Platão, é “a ruína da discursividade dos que o escutam”.’ ‘”Que ninguém que não seja geômetra entre aqui”: Platão faz a matemática entrar pela porta principal, como procedimento explícito do pensamento, ou pensamento que só pode se expor como pensamento. A partir de então, é preciso que a poesia, sim, a poesia saia pela escada secreta. Essa poesia ainda onipresente na declaração de Parmênides e nas sentenças de Heráclito, mas que oblitera a função filosófica, porque nela o pensamento se outorga o direito do inexplícito, do que adquire poder na língua de outra parte que não do pensamento que se expõe como tal. ‘Essa oposição entre língua da transparência do matema e a obscuridade metafórica do poema coloca, no entanto, para nós modernos, problemas temíveis. 32


‘Platão, por sua vez, não consegue sustentar essa máxima até o final, essa máxima que promove o matema e bane o poema. Não consegue, pois ele próprio explora os limites da dianoia, do pensamento discursivo. Quando se trata do princípio supremo, do Uno, ou do Bem, Platão deve convir que estamos “além da substância”, e conseqüentemente, fora de tudo o que se expõe no recorte da Idéia. Ele deve reconhecer que a doação em pensamento desse princípio supremo, que é a doação em pensamento do ser mais além do sendo, não se deixa atravessar por nenhuma dianoia. Ele próprio deve recorrer às imagens, como a do sol; às metáforas, como as do “prestígio” e do “poder”; ao mito, como o de Er, o panfiliano, que volta do reino dos mortos. Em suma: lá onde o que está em jogo é a abertura do pensamento ao princípio do pensável, quando o pensamento deve absorver-se na percepção do que o institui como pensamento, eis que o próprio Platão submete a língua ao poder do dizer poético.’ (Badiou, 2002, pg. 32-33) Ainda não se pode, em tão pouco tempo, investigar qual o ‘poema’ oculto no fundamento das ciências, mas se sabe o quanto estas se povoam de metáforas e imagens1. A semiose das músicas eletroacústicas [para ficar apenas em um exemplo que me é próximo] não consegue prescindir de fontes semelhantes, não só para análise de obras como também para estabelecer critérios de percepção. Se esses domínios (do ‘inteligível’ e do ‘sensível’) são tão próximos, por que, em um discurso de ‘cientista’, apareceram tão distanciados? Certamente não é por total responsabilidade do emissor, mas muito mais pela aceitação tácita dos próprios pesquisadores ouvintes, que, admitindo sua reclusão nessa esfera ‘sensível’, subtraem da música os ‘estatutos’ para sua constituição como conhecimento. Evidentemente não há como recusar à música sua interpenetração com a esfera sensível, mas se pode, sim, apontar para o perigo de seu confinamento dentro dela, redução esta que corre o risco de estar recebendo influxos de dentro da própria música; e que, em seguindo esta

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Para exame extensivo sobre o papel, o grau e os fundamentos que sustentam a objetividade científica, leia-se Isabelle Stengers, A invenção das ciências modernas, Ed. 34, 2002) 33


tendência brevemente a mais pura essência da música vai se enxergar como está sendo projetado: solitária e estéril.

Referências Bibliográficas BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Ed. 34, 2002.

Rodolfo Caesar. Doutor pela University of East Anglia, Inglaterra. Estudou no Conservatoire National de Paris, no Groupe de Recherches Musicales e no Instituto Villa Lobos, da FEFIEG. É professor da Escola de Música UFRJ, coordenador do Laboratório de Música e Tecnologia (LaMuT), pesquisador do CNPq e compositor. e-mail: rodolfo.caesar@terra.com.br

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Da produção da pesquisa em educação musical à sua apropriação

Cláudia Ribeiro Bellochio

Resumo: A proposição desse texto é suscitar o debate sobre algumas das relações que se estabelecem entre a produção, a difusão e a apropriação da pesquisa em educação musical no Brasil, o que é, em grande medida, transversalizado por princípios políticos, reais e ocultos, objetivos e subjetivos, presentes nos múltiplos espaços de práticas musicais. Inicialmente é tecida uma breve revisão sobre o estado da arte da pesquisa em educação musical no Brasil; logo comenta-se sobre a produção de conhecimento na pesquisa em educação musical. Conclui-se sugerindo alguns pontos que poderão contribuir com ações políticas para a pesquisa em educação musical. Palavras-chave: Pesquisa. Educação musical. Conhecimento. Difusão/apropriação. Abstract: The purpose of this text is to propose the debate regarding some of the relations that are established among production, diffusion, and appropriation of research in musical education in Brazil. In this kind of research it may be also found some issues dealing with subjective, objective, occult, real and political principles, which are presented in several musical practices. Firstly, a brief review is discussed concerning the state of art of the research in musical education in Brazil. Secondly, the knowledge production is commented in musical education research. To conclude, some considerations are suggested, which could contribute to political actions to the research in musical education. Keywords: Research. Musical education. Knowledge. Diffusion/ appropriation.

Agradeço ao convite para participar desse importante evento da ANPPOM, de modo especial, ao convite para estar debatendo idéias nessa mesa denominada “Produção de conhecimento e políticas para a pesquisa em educação musical”. Cumprimento minhas colegas de mesa, profª Drª Alda Oliveira e Profª Drª Regina Márcia Santos. Cumprimento aos organizadores, Prof. Dr. Ney Fialkov e Profª Drª Luciana Marta Del Ben pelo incansável cuidado com toda a preparação e execução das atividades que estamos vivenciando. Minhas colocações talvez não tragam novidades, mas penso que podem suscitar o debate sobre algumas questões, dentre elas as relações que se estabelecem entre a produção, a difusão e a apropriação da pesquisa em


educação musical, o que é, em grande medida, transversalizado por princípios políticos, reais e ocultos, objetivos e subjetivos, quer sejam das organizações científicas da área, quer sejam das instituições públicas, quer sejam das necessidades decorrentes dos espaços de práticas musicais. Para tanto, organizo a fala em tópicos. Inicialmente faço uma breve revisão sobre o estado da arte da pesquisa em educação musical no Brasil; logo comento sobre a produção de conhecimento na pesquisa em educação musical. Concluo apresentando uma reflexão sobre a produção versus apropriação de conhecimento, a partir de situações vivenciadas e encaminhando alguns pontos que poderão contribuir com ações políticas para a pesquisa em educação musical.

1. Uma breve revisão sobre o estado da arte da pesquisa em educação musical no Brasil Inicio minha fala com a boniteza, profundidade e clareza das palavras de Paulo Freire: “Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”. (Freire, 2002, p.32). Como é de conhecimento, a pesquisa em educação musical no Brasil, se considerada em relação a outros países, é relativamente nova. Isso tem levado, quase que em senso comum, à repetição de que a “a área é nova”. No entanto, ainda que a educação musical, e consequentemente a pesquisa em educação musical, sejam tomadas como “áreas novas” temos Associações atuantes (ANPPOM e ABEM), Programas de Pós-graduação em Música com sub-área em Educação Musical, Programas de Pesquisa em Educação; Grupos de Pesquisa vinculados às Universidades e cadastrados no CNPQ, pesquisadores individuais, Cursos de Graduação, escolas e outros espaços e sujeitos que produzem pesquisas, nos mais diferentes enfoques e com uma variada abordagem teórica e metodológica. Acoplado a esse fato, verifica-se que “na última década a Educação Musical brasileira vem apresentando um desenvolvimento significativo como área de conhecimento acadêmicocientífico” (Del Ben, 2003, p.1). Assim, pode-se evidenciar uma história da pesquisa em educação musical no Brasil, ainda que esta seja breve e encontre-se em pleno processo de fertilização.

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Penso ser importante esclarecer que estou considerando como objeto de pesquisa em educação musical “as relações entre as pessoa(s) e a(s) música(s) sob os aspectos de apropriação e transmissão” (Kraemer, 2000, p. 51) o que está intrinsecamente relacionado ao que compreende-se por conhecimento pedagógico musical. Dessa forma, concordo com Del Ben (2003) quando reconhece que “faz-se pesquisa em Educação Musical sempre que se investiga como as pessoas se relacionam com música em termos de apropriação e transmissão, ou ensino e aprendizagem, seja nas escolas e conservatórios de música, seja em garagens de centros urbanos e escolas de samba, ou até mesmo, nas ruas das cidades”. (ibid, p.6). Como seria esperado, a discussão em torno da pesquisa em Educação Musical, entendida desde já como uma forma de produção de conhecimento no campo da educação musical, é recorrente nos encontros da ANPPOM. Surgem daí, importantes mapeamentos sobre a situação da pesquisa em educação musical no Brasil, dentre os quais o apresentado por Beyer, em 1996, no IX Encontro realizado no Rio de Janeiro e o de Souza (1996) que buscou repensar a pesquisa a partir de dois pontos. Um primeiro que discutiu “o campo da Educação Musical como ciência ou área de conhecimento” (p.80) e, um segundo que remeteu a um balanço na produção científica da área, como forma de mapear o já existente e pensar caminhos para a pesquisa em educação musical (no Brasil). Em 1997, no X Encontro realizado em Goiás, Souza discorreu sobre a “pesquisa em educação musical na universidade”, focalizando parte do seu trabalho no eixo da pesquisa na formação de professores de música (p. 51). Realço esse ponto na atualidade, sobretudo no atual momento em que temos Diretrizes Curriculares para os Cursos de Música (ainda não aprovadas pelo CNE) e Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (já aprovadas). O primeiro documento nos indica, como um dos Campos de Conhecimento1 de formação do profissional da área de Música, a Pesquisa, orientando-nos para que ocorra nas suas diversas

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Conforme documento, versão de junho de 1999, por campos de conhecimento, entende-se o conjunto de saberes específicos e interdisciplinares, que particularizam e dão consistência a área de Música. O documento apresenta sete campos: instrumental (instrumento, voz e regência); composicional; fundamentos teóricos; formação humanística; pedagógico; integração; pesquisa (estágio, práticas de ensino e outras integrações);

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metodologias2. (Diretrizes Curriculares para a Música, 1999) O segundo, nos aponta a pesquisa como objetivo a ser perseguido na formação profissional de professores, entendendo que “(...) o foco principal do ensino da pesquisa nos cursos de formação docente é o próprio processo de ensino e de aprendizagem dos conteúdos escolares na educação básica”. (BRASIL/CNE, Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores, 2002, p. 34). Nesse particular os cursos de formação têm um importante papel: o de desenvolver, com os professores, essa atitude vigilante e indagativa, que os leve a tomar decisões sobre o que fazer e como fazer nas suas situações de ensino, marcadas pela urgência e pela incerteza. (ANDRÉ, 2001, p. 59)

Creio que esse pressuposto possibilite a compreensão sobre as particularidades inerentes à pesquisa realizada pelo professor na sala de aula3 e a pesquisa realizada na academia sobre o trabalho do professor na sala de aula. Embora tratem-se de processos retroalimentadores, cada qual possui especificidades. Como entende Tardif (2002) “a prática profissional nunca é um espaço de aplicação dos conhecimentos universitários. Ela é, na melhor das hipóteses, um processo de filtração que os dilui e os transforma em função das exigências do trabalho” (p.257). Ainda que as Diretrizes Curriculares para a formação de professores da Educação Básica sinalizem a escola como locus da ação profissional do professor, entendo que cabe as áreas de formação estarem discutindo outros espaços de atuação profissional, como o caso da educação musical. Isso implicaria no estudo e implementação de diferentes abordagens de pesquisa no decorrer da formação inicial, sobretudo abordagens que rompem com a lógica de disciplinarização e efetivamente, mergulhem em situações dialógicas com os problemas das prática vivenciadas no cotidiano. Há que se considerar também que a pesquisa em educação musical tem tematizado Encontros da ABEM. O foco “A pesquisa em Educação Musical”, por exemplo, alicerçou as discussões durante o V Encontro Anual, realizado 2

Esse campo de pesquisa abrange: a) conteúdos relativos as Metodologias e as práticas de Pesquisa; b) integração de novas tecnologias; c) programas especiais de iniciação científica; d) programas de incentivo à integração graduação e pósgraduação. (Diretrizes Curriculares para os Cursos de Música – versão 1999) 3 Considera-se a sala de aula e os seus constituintes do processo de ensinar e aprender.

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em Londrina/PR no ano de 1996. Já em 2002, no XI Encontro realizado em Natal/RN a temática foi “Pesquisa e Formação em Educação Musical”. Assim, eventos de significativa importância, como também artigos, têm focalizado e divulgado a pesquisa produzida no Brasil. Parece-me que as pautas narrativas da produção científica não se esgotaram e mantém-se atuais e fecundas para novas discussões, na abrangência das produções científicas sobre e para a educação musical. 2.

A produção de conhecimento na pesquisa em educação musical

O que se percebe, sem generalizar, é que, embora a trajetória expressiva realizada num curto espaço de tempo, avanços significativos não têm sido incorporado nos diversos espaços onde ocorre educação musical, sejam esses escolares ou não. Talvez isso decorra do que Meksenas (2002) expressa: “compreender e fazer uso da pesquisa não é tão simples”. Eu diria que não é bem “fazer uso”, e sim, reconstruir em forma de conhecimento prático, ou mesmo reconstruir do ponto de vista da necessidade. Se antes os focos das pesquisas giravam em torno da produção de conhecimento sobre e para uma educação musical de cunho mais formal e escolarizado, com o passar dos anos novos temas passaram a compor as pautas investigativas, tais como educação musical em situações não formais, processos de auto-aprendizagem, educação musical e mídias; educação musical em espaços alternativos, dentre outros. Considerando os limites do ‘pragmatismo imediatista’, de que falarei mais adiante, inicialmente questiono: - Em que a pesquisa científica no campo da educação musical tem contribuído? Para onde vai a produção de conhecimentos revelados nos resultados e relatórios das pesquisas realizadas? Quem os têm consumido e com que intuito? E de que forma? Esses questionamentos não são exclusivos do campo da Educação Musical, mas da área de Educação como um todo. Da mesma forma, não existe consenso quanto aos enfoques e tomadas de postura frente à pesquisa educacional. Se, para alguns, a pesquisa objetiva a geração de conhecimentos (novos?) gerais, organizados, válidos e transmissíveis; para outros, ela busca o

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questionamento sistemático, crítico e criativo. Se alguns centram sua atenção no processo de desenvolvimento da pesquisa e no tipo de conhecimento que está sendo gerado, outros se preocupam mais com os achados das pesquisas, sua aplicabilidade ou sua utilidade social (André, 2001, p. 55). Reservados os propósitos da pesquisa, para uns e outros, o que se tem percebido é que pesquisas produzidas estão distantes das práticas concretas dos professores e são demasiadamente fragmentadas, não conseguindo articular grupos em torno de si. Em conseqüência “tem pouco ou nenhum impacto nas práticas profissionais.” (Tardif, 2002, p. 290) Desse modo, muitas pesquisas têm servido mais para a obtenção de titulação profissional (especialista, mestre, doutor e pós-doutor) do que propriamente com a reconstrução da linha existente entre o pesquisador, os envolvidos na pesquisa e o objeto investigado, entre a produção da pesquisa e sua apropriação pelas pessoas e espaços em que realizam atividades de ensino na área. Parafraseando Moysés, e pensando no espaço escolar, parece-me que cabe-nos refletir: “Como acontece o encontro entre o mundo onde o conhecimento científico é produzido e o mundo onde vive o professor [?]”. (Moysés, 1996, p. 108) Ou ainda, como ocorre o encontro entre o mundo da ciência e o cotidiano das práticas educativas nos diferentes espaços e relações em que se produzem? Para Charlot (2002, p.90) “ ...a pesquisa faz análise, é analítica, o ensino visa metas, objetivos; o ensino tem uma dimensão axiológica, uma dimensão política”. No entanto, é inegável o fato de que “os professores de profissão” (Tardif, 2002) são possuidores de saberes que as pesquisas devem desvelar e trazer como referências reais para o contexto da produção de conhecimento educacional. “A prática profissional não é mais considerada simplesmente como sendo um objeto ou um campo de pesquisa, mas um espaço de produção de competência profissional pelos próprios professores. Desse ponto de vista “a produção de conhecimento não é somente um problema dos pesquisadores, mas também dos professores.” (p. 278) Há que se considerar que “pesquisar sobre educação musical é antes de tudo, pesquisar sobre educação” (Souza, 1997, p. 50). Considerando essa premissa, cito André (2001) quando comenta, a partir de um balanço realizado por Bernadete Gatti, que no campo da educação existe “uma tendência dos trabalhos da área para um ‘pragmatismo imediatista’ tanto na escolha dos

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problemas quanto na preocupação com uma aplicabilidade direta dos resultados”. Tomando os problemas apontados acima e perguntando para onde caminham as pesquisas, creio que, de certa forma, fica caracterizada uma preocupação muito forte com o aplicacionismo imediato dos seus resultados, na perspectiva de que essa venha solucionar problemas cotidianos dos espaços educativos que não são, na grande parte das vezes, os problemas vividos na cotidianeidade do pesquisador.4 Dessa forma, Embora reconhecendo a necessária origem social (grifo meu) dos temas e problemas da pesquisa em educação e a importância das questões que no imediato são carentes de análise e proposições, ela nos alerta para a tendência do recorte excessivamente limitado e para as análises circunscritas aos aspectos aparentes dos problemas, deixando de lado as perguntas mais de fundo e de espectro mais amplo. (André, 2001, p. 56)

Ainda que essa discussão possa parecer nova, é importante lembrar que desde os anos de 1930, no Brasil, quando do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, Anísio Teixeira, ao referir-se ao ensino como “arte científica” (Tomazzetti, 2003, p.10) e sendo “um fiel discípulo e admirador de Dewey compreende que ‘nenhuma conclusão proveniente das pesquisas científicas pode ser convertida em regra imediata da arte de educar’. (Tomazzetti, 2003, p.12) Evidentemente, a pesquisa em educação musical deve manter-se firmemente conectada com as necessidades emergentes das práticas sócio-educacionais e musicológicas que a sustentam, “a pesquisa deve ter algum sentido prático” (Souza, 1997, p. 50). No entanto, há de evitar-se a resolução de problemas imediatos da prática que poderiam conduzir a produção investigativa com caráter positivista, não avançando no reconhecimento dos processos ideológicos subjacentes à prática (ver Bellochio, 2000). Portanto, a necessidade de se tomar pesquisadores e professores como sujeitos engajados conjuntamente na produção e apropriação de conhecimentos gerados em pesquisas.

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Talvez a investigação-ação nos traga bons indicativos sobre como poderemos agir se sentido mais colaborativo, sem um afastamento entre o investigador e os investigados.

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Gauthier (1998) ao comentar sobre “a ideologia aplicacionista” das pesquisas no espaço escolarizado de ensino, destaca que a sala de aula não é um lugar simples. É um espaço complexo e carregado de variáveis que exigem posturas profissionais próprias e particularizadas, que advertem ao professor prudência e criticidade na utilização dos resultados de pesquisas. Um outro ponto a destacar com relação ao que Gauthier expõe é o fato que: Por um lado, nega-se a pertinência da pesquisa, para fechar o ensino no mundo da experiência pessoal; por outro, nega-se a complexidade e a especificidade da ação pedagógica em detrimento de uma visão ‘aplicacionista’ dos resultados das pesquisas. A nosso ver, é preciso ligar a pesquisa à prática numa perspectiva de abertura sobre os possíveis. (Gauthier, 1998, p. 394)

Entendo então a necessidade de aproximação dos campos da produção científica e da apropriação das pesquisas o que vem a requerer a produção e a divulgação de trabalhos investigativos através de “(...) uma multiplicidade de abordagens, com pressupostos, metodologias e estilos narrativos diversos”. (Mazzotti, 1999, p. 128). Entretanto não se trata de uma relação direta e simples e implica em novas configurações na e para produção, divulgação e apropriação Dessa forma, e considerando que o tema não é novo e venha sendo debatido há no mínimo uma década, a ênfase sobre a pesquisa em educação musical não está esgotada e não deverá sê-la, por conta da própria dinâmica que a constitui, ou seja, as relações que emergem da tríade música(s), homen(s), educação(ões).

3.

Uma reflexão na relação produção x apropriação de conhecimento

Enquanto multiplicam-se as investigações na área da educação musical, são poucas as transformações nas práticas educativas de professores, sobretudo na escola. Enquanto sofisticam-se os sistemas acadêmicos de formação profissional, o descrédito profissional da profissão professor continua aumentando, gerando abismos entre quem faz e quem consome as pesquisas. Enquanto aumentam-se os veículos de divulgação das pesquisas o empobrecimento dos professores de educação básica os impossibilita de adquirir essas produções. Enquanto são produzidos discursos e teorias que

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salientam a importância da profissão-professor assistimos, inúmeras vezes, pessoas sem qualificação pedagógica e pedagógico-musical serem contratadas para ensinar em espaços educativos ou simplesmente, fazer parcerias em projetos tais como “amigos da escola”, “animadores culturais”, etc. Até quando viveremos nessa crise paradoxal e conflitiva? Enfim, será que realmente estamos mudando alguma coisa ou será que é o discurso de mudança que se prolifera? Mudamos alguma coisa ou as roupas é que mudam e deixa-se tudo com está? Isso leva a crer que pesquisar e divulgar os resultados de pesquisa, para além dos muros da academia e da própria escola, envolve outros fatores de complexidade que, nem sempre contribuem, de modo imediato, com as transformações desejadas e com a formação de políticas que possam alavancar o desenvolvimento da área. Por outro lado, Exigir que as ciências da educação (e as ciências sociais e humanas) se limitem ao estudo das atividades profissionais apenas com intuito de aumentar sua eficácia é exigir sua morte e privar-se dos recursos conceituais que podem oferecer aos práticos no que se refere às suas implicações sociopolíticas inerentes à educação escolar. (Tardif, 2002, p. 293) Precisa-se então entrelaçar a vida profissional com os referenciais teóricos existentes, sem perder a dinamicidade que implica nessa relação.

Frente ao exposto, tenho algumas hipóteses sobre o por que do distanciamento entre o mundo acadêmico e o mundo vivido, entre a produção e a apropriação. Em primeiro lugar, compreendo que um dos grandes problemas são as condições desiguais de trabalho existentes entre os que produzem as pesquisas e os que as consomem, profissionais que têm sofrido, ao longo dos anos, um empobrecimento, por conta dos baixos salários, o que os leva a tripla jornada de trabalho. Por exemplo: Qual a condição que um professor de educação musical, com contrato de 40h, que trabalha muitas vezes com 16 turmas em uma escola (exemplo de Santa Maria), possuindo uma média de 550 alunos, terá para pesquisar/refletir sobre sua prática? Qual o tempo para produzir um Diário de Campo com registros diários de seu trabalho? O que isso levaria de tempo desse professor e qual seria sua “recompensa”? Que mecanismos existem para que o trabalho do professor possa ser

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acompanhado no âmbito da escola e das pesquisas da área? Enfim, qual o tempo que esse professor tem para pesquisar conjuntamente, estudar e reapropriar-se de conhecimentos na área e produzir “inovações” no seu trabalho? Estamos pensando em termos de mudança da prática do professor, em epistemologia da prática profissional5, mas continua a mesma estrutura escolar, fragmentada, rígida, onde o professor apenas está lá para ensinar e não para aprender. Em segundo lugar, outro aspecto, relaciona-se ao fato que muitos professores ensinam a partir de situações positivas que vivenciaram ao aprender algum dia ou situações que decorrem de um modelo que deu certo quando ensinaram. Esse saber experiencial, de modo repetitivo e mecânico, acaba sendo a base da ação profissional. Com isso, a teoria que informa fica subsumida a um segundo plano e os professores se auto repetem sem interessar-se por reflexões maiores, restando-lhes o interesse pelo manual, pelo livro didático, pelo CD que traz novas canções. Frente a resultados parciais de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre os saberes docentes de educadores musicais6 fica clara a perspectiva de que “se aprende a ensinar na prática”. A fala dos professores entrevistados aponta para o domínio do saberes disciplinares e dos saberes experienciais como fundamentais, o que justificaria o grande número de bacharéis atuando em escolas de educação básica. Por várias razões, a prática educativa dos professores que atuam sobretudo na educação básica, não tem exigido dos mesmos a atualização pela apropriação dos conhecimentos pedagógicomusicais derivados de pesquisas em educação musical. Um terceiro ponto nasce do questionamento se temos tido representatividade política suficiente para transformar a relação entre produção e apropriação de conhecimento na própria área? Representatividade política nas várias esferas: municipal, estadual e nacional. Evidentemente, não podemos negar a

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“Chamamos de epistemologia da prática profissional o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas”. (Tardif, 2002, p. 255) 6 ‘Ser professor’ de Música: um estudo acerca da formação e concepções educacionais do educador musical. Participam desse projeto: Alexandra Silva dos Santos (bolsista PIBIC); Helena Marques Pimenta (bolsista FIPE); Eliane da Costa Cunha (assistente).

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transformação gerada na área, no Brasil, desde a década de 90, a partir de sua organização em associações e da produção bibliográfica específica a partir de então. É de grande relevância a manutenção de Encontros para que exista a possibilidade de apresentar a produção de conhecimentos de diferentes níveis e tipos de pesquisa. Por exemplo, além dos Nacionais, os Encontros Regionais da ABEM, têm sido importantes. Por um lado, pela possibilidade das comunidades regionais refletirem e intercambiarem o que se produz no âmbito das pesquisas e, por outro, para a conscientização de uma maior articulação política no âmbito das secretarias estaduais e municipais de educação. Ao finalizar a exposição, penso que talvez minhas palavras tenham demonstrado um certo ceticismo com relação aos fatos, mas não vejo saída unilateral para que essas situações sejam superadas. Parece-me que se as condições de trabalho entre o mundo da academia e o mundo das práticas educativas, na escola básica e em outros espaços, persistirem em condições desiguais, pouca coisa podemos esperar na superação entre a produção do conhecimento científico e sua apropriação. Poucas chances teremos para engajar esses dois mundos na luta por políticas mais claras e estáveis. Por outro lado, de nada valem políticas para a área que não passem pela proposição de políticas de formação e de práticas educativas dos profissionais que estão e estarão em exercício profissional. Trabalhar conjuntamente demanda atitudes colaborativas que requerem tempo de estudo, apropriação, discussão, transformação. Creio que nenhuma saída unilateral resolverá o problema. Enfim, passo a apontar alguns desafios que penso serem necessários para que haja um maior fortalecimento para a apropriação da produção do conhecimento gerado nas pesquisas em educação musical e que entendo como pontos a serem considerados para a formulação e execução de políticas. Retomo inicialmente, quatro pontos expressos por Del Ben (2003), apresentados como desafios futuros para a pesquisa em educação musical:

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(1) aprender a ampliar nossos horizontes sem perder nosso foco de atenção, isto é, nosso objeto de estudo, em suas múltiplas configurações; (2) aproximar a pesquisa com o mundo real, com o mundo vivido; (3) aproximar as pessoas que habitam o mundo real com os resultados de pesquisas e de conhecimentos por elas gerados; (4) enfrentar o desafio de buscarmos novas formas de contar as pesquisas, de relatar, divulgar e utilizar seus achados e suas conclusões e recomendações”. A estes acrescentaria: 9

inserir a pesquisa na formação profissional em educação musical, aproximando essa de mundos pedagógico-musicais reais, como forma de desenvolver sistematicamente os princípios da investigação educacional;

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potencializar a realização de pesquisas que possibilitem o envolvimento e desenvolvimento profissional dos participantes como investigadores ativocríticos (Carr; Kemmis, 1988), co-elaboradores de pesquisa sobre seus próprios saberes profissionais (Tardif, 2003);

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não tencionar resolver os problemas práticos da educação musical, através de soluções simplificadas, “pragmatismo imediatista”; guiado por soluções abreviadas e descomprometidas, sem análises aprofundadas;

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compreender a importância da teoria na realização das pesquisas de um modo geral, pois sem ela como se vai refletir os dados, a ação, como se vai compreendê-los?

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realizar trabalhos mais colaborativos no âmbito da universidade (entre cursos, entre graduação e pós-graduação) e âmbito da universidade e os espaços educativos;

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compreender que a produção de conhecimentos não é somente problema dos pesquisadores mas também dos professores (Tardif, 2002);

Penso que esses são apenas alguns dos desafios que temos que enfrentar no campo da pesquisa em educação musical, sobretudo por que nessas pesquisas são envolvidos objetos de estudos que implicam relações

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complexas, dinâmicas e dialéticas entre investigador, investigado, objeto de pesquisa e campo investigativo, característico das pesquisas educacionais.

Referências Bibliográficas ANDRÉ, Marli. Pesquisa em Educação: buscando rigor e qualidade. IN: São Paulo, Cadernos de Pesquisa -Fundação Carlos Chagas, n. 113, p. 51-64, 2001. BELLOCHIO, Cláudia Ribeiro. A educação musical nas séries iniciais do ensino fundamental: olhando e construindo junto às práticas cotidianas do professor. Porto Alegre: UFRGS, 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2000. BEYER, Esther. A pesquisa em educação musical: esboço do conhecimento gerado na área. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPPOM, 9., 1996, Rio de Janeiro. Anais.... Rio de Janeiro, 1996. p. 74-79. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Diretrizes curriculares para os cursos de formação de professores da educação básica CNE. [on line]. Available from Internet: http://www.mec.gov.br [2002]. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Diretrizes curriculares para os cursos de música CNE. [on line]. Available from Internet: http://www.mec.gov.br [1999]. DEL BEN, Luciana. A pesquisa em educação musical no Brasil: breve trajetória e desafios futuros. Per Musi, Belo Horizonte, v. 7, p. 76-82. SOUZA, Jusamara. Repensando a pesquisa em educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPPOM, 9., 1996, Rio de Janeiro. Anais.... Rio de Janeiro, 1996. p. 80-86. GAUTHIER, Clermont et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí: Ed. da UNIJUÍ, 1988. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. MAZZOTTI, Alda Judith Alves. O método nas ciências sociais. In: MAZZOTTI, Alda Judith & GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais. Pesquisa quantitativa e qualitativa. 2. Ed. São Paulo: Pioneira, 1999. MEKSENAS, Paulo. Pesquisa social e ação pedagógica: conceitos, métodos e práticas. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.

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MOISÉS, Maria Aparecida; COLLARES, Cecília A. O Buraco Negro entre o conhecimento científico e o mundo real. IN: REALI, Aline Maria; MIZUKAMI, Maria da Graça (org.) Formação de Professores: tendências atuais. São Carlos, Ed. UFSCAR, São Paulo, 1996. PIMENTA, Selma Garrido. Panorama atual da didática no quadro das ciências da educação: educação, pedagogia e didática. In: PIMENTA, Selma Garrido et al (Coord.). Pedagogia, Ciência da Educação? São Paulo: Ed. Cortez, 1996, p. 3970. SOUZA, Jusamara. Múltiplos espaços e novas demandas profissionais: reconfigurando o campo da educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 10., 2001, Uberlândia. Anais.... Porto Alegre: Associação Nacional de Educação Musical, 2001. p. 85-92. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. TOMAZZETTI, Elizete M. Dimensões da profissão docente. (texto apresentado em evento da UNIFRA – digitado)

Cláudia Ribeiro Bellochio. Mestre em Educação pela UFSM, Doutora em Educação pela UFRGS. Professora Adjunta do Departamento de Metodologia de Ensino, Centro de Educação – UFSM. Atua na formação de professores nos cursos de Pedagogia e Licenciatura em Música. Professora e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do grupo de Pesquisa FAPEM: formação, ação e profissionalização de professores em educação musical. Presidente da Comissão Editorial da Revista Educação. Coordenadora do Laboratório de Educação Musical LEM/CE. Representante da ABEM no RS. e-mail: claubell@zaz.com.br.

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A produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil: balanço e perspectivas Regina Marcia Simão Santos Resumo: Considera a produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil a partir das comunicações de pesquisas científicas realizadas nos encontros nacionais e regionais da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) nos anos 2000 a 2002. Apresenta as direções e dimensões desse debate, que repercute também nos Grupos de Trabalho que foram se constituindo nos referidos encontros. Faz um balanço das temáticas e destaca pontos críticos que importam na avaliação interna realizada pelas instituições de ensino e pesquisa em Educação Musical. Considera as perspectivas que se desdobram na área de Educação Musical hoje, podendo indicar políticas para a pesquisa. Palavras chave: Produção de conhecimento. Educação Musical. Políticas para a pesquisa. Abstract: It considers the knowledge production in Musical Education in Brazil based on the communications of scientific researches carried out in the national and regional meetings of the Brazilian Association of Musical Education (ABEM) from 2000 to 2002. It presents the directions and dimensions of this debate, which has repercussions also on the work groups that were being constituted in the referred meetings. It takes stock of the themes and points out critical issues which matters in the internal evaluation performed by the Musical Education teaching and research institutions. It considers the perspectives that split up in the Musical Education area nowadays, which might indicate policies for the research. Keywords: Knowledge production. Musical Education. Politics for the research.

A produção de conhecimento em Educação Musical: considerações iniciais. Três considerações preliminares se impõem, ao iniciar este texto. Primeiramente, que a produção de conhecimento em Educação Musical é sempre decorrente de um olhar sobre um campo: segundo uma ou outra perspectiva que se tome no processo de reflexão, estabelecemos fronteiras (o que um campo cobre, o que exclui, toma como centro), formulamos perguntas, produzimos um discurso. Em segundo lugar, que a produção de conhecimento em Educação Musical se nutre de teorias oriundas da psicologia, sociologia, filosofia, comunicação, história, antropologia e outros campos, como perspectiva para a análise de processos educativos; e se nutre das imbricações de uma sócioantropologia, de uma psicologia social etc, mas vai também construindo


um corpus específico, a partir da reflexão sobre as práticas. Refiro-me às teorias em psicologia da música, sociologia da música, comunicação em música, pedagogia da música etc. É de toda essa teia de saberes que tratamos, ao falar da produção de conhecimento em Educação Musical. Por último, que a produção de conhecimento em Educação Musical é um processo dinâmico que não supõe nenhuma direção linear progressiva. Modos de pensar os processos envolvidos na educação musical, que vigoram num dado tempo e ecoam em diversos espaços, se reconstróem localmente e ganham dimensões singulares. Trato da produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil, entendendo a relevância de considerarmos: 1. como se vão construindo teorias do conhecimento incrustadas nas práticas, a partir das práticas e também para as práticas: teorias que as atravessam e justificam; 2. como se vai formando, sobre educação musical e pedagogia musical, um pensamento historicamente situado: consoante um dado projeto político-social, uma determinada concepção de educação, de ensino e aprendizagem, uma determinada teoria da música, do currículo, da cultura, do conhecimento; e justificando políticas de formação profissional, formação docente, de ensino de música na educação básica, e políticas de inclusão através de modos de convivência musical; 3. o quanto a história do pensamento pedagógico-musical tem sido a história das práticas pedagógicas instituídas (das práticas musicais institucionalizadas e seus discursos sobre ensino) e só recentemente buscamos compreender a lógica do funcionamento das práticas sociais de ensino e aprendizagem musical marginais ao discurso pedagógico oficial (desenvolvidas paralelamente ao discurso pedagógico oficial e que nos acostumamos a chamar de “não formais”); e 4. o quanto a investigação sobre o estado do campo de Educação Musical (o estado da arte da pesquisa em Educação Musical) demanda levantamento do que tem sido apresentado em encontros nacionais e regionais de pesquisa da área da Música1, tanto da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) como da 1

Nos últimos anos tem havido, no Brasil, um significativo aumento do número de periódicos especializados e de Anais de Encontros de pesquisa da área de Música, mas, pelas dimensões deste artigo, não nos é possível considerá-los.

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Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), da Associação Brasileira de Musicoterapia (AMT) em seus encontros regionais e da União Brasileira das Associações de Musicoterapia (UBAMT); mas também demanda levantamento do que tem sido apresentado sobre temas relacionados à educação musical em outras áreas: o Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Educação (ANPEd) e o Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) são apenas alguns desses eventos científicos. A produção de conhecimento em Educação Musical: balanço e perspectivas. Balanços sobre a produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil já foram realizados por Alda de Oliveira, Ilza Nogueira, Vanda Freire, Rosa Fuks, Marisa Fonterrada, Maura Pena, Jusamara Souza, Esther Beyer, Liane Hentschke, José Maria Neves e Cecília Conde, dentre outros pesquisadores. Para um balanço do estado atual do campo, retomo inicialmente o artigo de José Nunes Fernandes (2000, p.45-57) sobre a pesquisa em Educação Musical. Ele considera a produção discente nos Programas de PósGraduação em Música no Brasil (Mestrado e Doutorado) até 1997, tomando os levantamentos de Ulhôa e de Oliveira e Souza2 (textos datados de 1997) - duas listagens de dissertações e teses –, e então registra a situação do campo da Educação Musical nas dissertações e teses de Pós-Graduação em Música nesta área de concentração, nas sete especialidades desta sub-área (especialidades citadas no Relatório do CNPq de Ilza Nogueira, de 1997). Os levantamentos de Ulhôa e de Oliveira e Souza (relativos ao período até 1996 e 97, respectivamente), contudo, não levam em conta as pesquisas realizadas em outros cursos de Pós-Graduação. Por isso, em seu artigo Fernandes trata do estado da 2

Ulhôa consultou dissertações de Educação Musical, Musicologia e Práticas Interpretativas defendidas até dezembro de 1996 nos Cursos de Pós-Graduação de Música e Artes/Música da UFRJ, CBM, UFRGS, USP, UNICAMP, UNESP, UFBA e UNIRIO. A listagem de Oliveira e Souza aponta dissertações de Educação Musical nos cursos de Pós-Graduação em Música/Educação Musical até 1997, de cinco Programas brasileiros: CBM, UFBA, UFRGS, UFF e UFRJ.

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arte da pesquisa em Educação Musical na área de Educação, em Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil, valendo-se de listagens que apresentam dados fornecidos por quarenta e seis instituições. Procurarei somar, a estes estudos, outros dados, baseando-me nos documentos Anais e Programa dos encontros nacionais da ABEM de 2000, 2001 e 2002 e nos dados fornecidos pelos representantes regionais, sobre as comunicações de pesquisas científicas apresentadas nos encontros regionais ocorridos naquele mesmo período. Os Encontros da ABEM têm sido local de divulgação e de debate sobre pesquisas em andamento e concluídas, realizadas nos cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), na graduação (projetos de Iniciação Científica e trabalhos integrando pesquisa e extensão) e na especialização, muitas delas desenvolvidas em parcerias entre pesquisadores. Direções e dimensões da produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil Num balanço das direções e dimensões da produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil de 2000 a 2002, constata-se o aumento do número de cursos de Pós-Graduação em Música (Mestrado e Doutorado)3, de pesquisadores e de seus produtos de pesquisa. Constatase também maior investimento em congressos que contemplam a temática da educação musical, fazendo circular a produção de conhecimento científico em encontros regionais e nacionais. Verifica-se que estudos sobre ensino-aprendizagem musical, processos de transmissão e de educação musical se localizam na sub-área de Educação Musical, mas também nas sub-áreas de Etno/Musicologia e de Performance (Práticas Interpretativas). E que nos encontros nacionais e regionais da ABEM, nesse período, tem havido interesse crescente pelas temáticas Ensino Profissionalizante, Educação Superior, Licenciatura, Ensino de PósGraduação (GTs inéditos na ABEM, Encontro Nacional de 2000, Belém, PA); Performance e Pedagogia de Instrumentos, Educação Musical 3

Atualmente são nove as instituições de Pós-Graduação em Música - Mestrado (M) e Doutorado (D) - no Brasil: UFRGS (M/D), UNIRIO (M/D), UFBA (M/D), UNICAMP (M/D), UFRJ (M), UFMG (M), USP (M), UNESP (M) e UFG (M).

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Especial, Educação Infantil, Educação Musical “Informal”4 (GTs inéditos na ABEM, Encontro Nacional de 2001, Uberlândia, MG); e Ensino Fundamental e Médio, campo tradicional da reflexão e ação da Educação Musical e da Licenciatura nos Cursos Superiores de Música, mas que ganha novo impulso frente às reformas propostas na LDB de 1996 e documentos do MEC e dos estados e municípios. Considerando os Anais e Programas dos encontros nacionais da ABEM5 e os dados fornecidos pelos coordenadores regionais6, relativos ao período 2000-2002, houve significativa mudança quanto ao que verificaram Esther Beyer e Jusamara Souza, sobre pesquisa e conhecimento gerado na subárea Educação Musical. Beyer, em artigo de 1996, fala que, embora tenha havido aumento das referências a autores brasileiros no período de 1986 a 1996 (consultou Anais e periódicos desse período), isso se deu sobre temas que apareciam como “pequenas áreas de ‘propriedade exclusiva’ de um estudioso” (Beyer, 1996, p.76). Souza, em artigo de 1997, e não muito distante da constatação de Beyer, afirma que “a produção especificamente de Educação Musical restringe-se quase que a projetos individuais de pós-graduandos” (Souza, 1997, p.49). Houve também significativa mudança em relação aos dados trazidos por Fernandes (2000): se havia concentração dos estudos em Educação Musical em torno de Processos Formais e Informais, baixo índice de estudos sobre Educação Musical Instrumental e Coral e inexistência de estudos sobre Educação Musical Especial, vemos que esta situação se 4

Considera-se que o formalizado e institucionalizado está também nos contextos considerados “informais” e “não-formais”. Propõe-se mudança do nome do GT Educação Musical “Informal”, enfocando articulações entre os múltiplos espaços de aprendizagem em Educação Musical. 5 Quando da preparação desse artigo, os Anais relativos ao Encontro de 2002 não estavam prontos, razão pela qual os dados registrados se apoiaram no documento Caderno de Resumos e Programação. 6 Encontros Regionais: foram fornecidos pelos coordenadores regionais dados relativos aos encontros das Regiões Norte (2002) e Centro-Oeste (2001). Do terceiro encontro da Região Centro-Oeste (2000) apenas se teve acesso ao programa com horários das atividades, sem especificação sobre os temas das comunicações de pesquisa. Não foi possível obter, até o momento, os dados relativos ao primeiro encontro da Região Nordeste (2002) e ao terceiro, quarto e quinto encontros da Região Sul (2000, 2001 e 2002).

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alterou significativamente na produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil hoje, considerando a expansão do interesse do campo da Educação Musical por aspectos antes afeitos a áreas de especialidades com fronteiras mais rígidas. O redimensionamento das direções do debate sobre educação musical está presente tanto nas comunicações de pesquisas científicas como nos Grupos de Trabalho instituídos. E envolve pós-graduandos, graduandos e docentes de diversos níveis de ensino e tipos de instituições, discutindo a necessidade de revisar suas práticas curriculares e os campos do trabalho em educação musical, perfis e competências profissionais, sociais, musicais, pedagógicas, político-culturais. Nos documentos considerados para a caracterização de que trata este artigo, vemos o aumento das pesquisas que se localizam nas tendências críticas do pensamento pedagógico e curricular e nos estudos culturais e sociais pós-críticos. Entre crítico e pós-crítico não há necessariamente superação, mas um alargamento da análise da dinâmica do poder, misturando-se categorias dos estudos culturais e do pensamento pósmoderno. O peso recai sobre a questão política em torno do conhecimento, da identidade (cultural e social) e do poder. Recai sobre os princípios que sustentam as escolhas de procedimentos, conteúdos, seqüências de ensino etc. Recai sobre o debate em torno dos temas pedagogização dos conteúdos culturais, transposições didáticas, elaboração de uma “cultura da escola”, recai sobre a alteridade, o múltiplo, o diverso - expressos nos modos de aprender e de ensinar (organizar, sistematizar o ensino), conforme se dão nos seus contextos específicos. Recai no plural, ao invés das teorias totalizantes, padronizações e polaridades. Imbricam-se Educação Musical e estudos musicológicos, considerando métodos etnográficos de pesquisa. Firma-se o campo da sociologia da vida cotidiana (o cotidiano) como paradigma para a pesquisa em Educação Musical: estudos fundamentados nas sociologias do cotidiano, enfocando ações individuais, rotineiras, efêmeras, relatos, episódios, vivências e interpretações, significados partilhados, o vivido (onde o sócio-histórico se revela, processos interacionistas afloram), contribuindo para se pensarem pedagogias da música, concepções didáticas, currículo, a produção de um conhecimento sobre o fazer musical (processos de socialização musical dos alunos, como funcionam os variados aprendizados, como se 54


constituem seus sistemas de organização, como ensaiam, o lugar da teoria e da leitura musical nessas práticas, o que compreende “formar-se” como músico) e se abrindo para a produção de concepções didáticas apoiadas no cotidiano, que tomam para a sala de aula as experiências sociais e musicais dos alunos. Desta forma, a temática educação, cultura de massa e mídia está presente. Pesquisa-se sobre hábitos e preferências televisivas e suas relações com a aprendizagem de músicas; discute-se a instituição televisiva como espaço formativo. Vemos o desenvolvimento de pesquisas realizadas em grupos com práticas musicais de tradição oral - como o jongo, o congado, o funk, o rap, grupos musicais de rua, rodas de capoeira, samba, choro, bandas de rock formadas por adolescentes e jovens brasileiros, a banda Lactomia (Salvador, BA) e seu sistema de ensino e aprendizagem musical, o aprendizado de danças dramáticas (o Cavalo-Marinho) e do repertório de cultos afro-brasileiros. Vemos pesquisas baseadas em história de vida - de músicos das ruas, de chorões, dos que “tiram música de ouvido” e “aprendem sozinhos”, de professores e de estudantes sobre sua relação com música no cotidiano social, familiar, escolar. E registros sobre processos de ensino e aprendizagem musical vivenciados por adolescentes na escola e sua utilização em fazeres musicais não escolares. Outras pesquisas buscam compreender as falas do professor, suas representações sobre música, sobre aprender e ensinar música, sobre os conhecimentos práticos que orientam a sua prática educativa, as lógicas que sustentam suas ações pedagógicas. Investigam, nos manuais para o ensino de música à venda no mercado, o conjunto de mediações articuladas pelos seus criadores e seus usuários. A proliferação de escolas alternativas de formação musical tem suscitado interesse de pesquisadores, por se proporem a atender a uma demanda reconhecida como um saber-fazer musical “prático”, direto, imediato, interessando investigar saberes e competências no âmbito dessas escolas, a atividade docente do músico-professor na formação profissional do músico. O professor não especialista em música (generalista, unidocente) tem sido tema recorrente. Sobre este profissional que atua nas primeiras séries do ensino fundamental, discute-se a sua formação e possibilidade de acrescentar a ela a dimensão do trabalho musical. Projetos em andamento 55


e estudos de caso são descritos, analisados. É o caso de O Curso Básico de Música para Professores II da SME, pesquisa institucional coordenada por Regina Marcia Simão Santos, integrando universidade e Secretaria Municipal de Ensino, desenvolvida como projeto de extensão, pesquisa e ensino, com a participação de alunos da Licenciatura em Educação Artística habilitação em Música da UNIRIO. E é o caso do projeto Música na Escola, na concepção de Carlos Kater, desenvolvido em Minas Gerais, e sob a coordenação de Cecília Conde, na sua realização no Rio de Janeiro, visando introduzir, de forma mais sistemática e refletida, a música no cotidiano escolar nas classes do primeiro ciclo do ensino fundamental e visando a capacitação desses professores de turma. Projetos conjugados a ações sociais voltadas para populações “de risco” e alto índice de exclusão, e com a atuação do educador musical no chamado “terceiro setor”, visam possibilitar a formação musical profissionalizante, como ocorre no Pracatum, projeto sob a orientação pedagógico-musical de Alda de Oliveira, desenvolvido na Bahia, e que integra profissionais da academia em projetos de educação informal. Muitas pesquisas vêm documentando experiências de educação musical em escolas regulares do ensino básico, realizadas em bairros periféricos e em parcerias com ONGs. Numa perspectiva histórica da Educação Musical, há o estudo de livros didáticos e manuais escolares publicados; da música evangélica face a indústria fonográfica; do desenvolvimento da atividade de canto coral em dada cidade. Também há estudos sobre a educação musical para cegos, o desenvolvimento musical de bebês, o debate específico sobre formação do instrumentista do naipe de metais, a aprendizagem na didática pianística, o ensino da guitarra elétrica, do violão, do piano e do teclado sob a ótica da percepção e da criação, o ensino inicial de instrumentos (piano, flauta transversal, contrabaixo, ensino em grupo de instrumentos de sopro etc), os cursos para formação continuada de professores no ambiente da educação a distância, os PCNs e o ensino básico, os estudos sobre teorias do desenvolvimento musical e as teorias curriculares no ensino de música. Em todas estas pesquisas pensa-se currículo e pedagogia (didática) a partir da prevalência do aspecto político-cultural sobre o aspecto tecnicista

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(técnico-pedagógico)7, no sentido de se haver superado a dimensão aplicacionista de conjunto de técnicas pensadas para a “boa aula”. Transita-se entre conhecimento musical historicamente desenvolvido e conhecimento das culturas orais, investigando sobre conhecimento acadêmico-escolar e conhecimento cotidiano. Entende-se que todas as instâncias culturais são instâncias pedagógicas, têm uma “pedagogia”, “estão envolvidas em processos de transformação de identidade e da subjetividade”, “têm um currículo”, explícito ou não (Silva, 1999, p. 139). Uma perspectiva pós-crítica na produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil começa a esboçar uma direção com base numa política da diferença, numa “filosofia da diferença”, produzindo conhecimento sobre “um currículo e uma pedagogia da diferença e multiplicidade”8. Os grupos sociais e culturais “negados”, “silenciados” no currículo são foco de investigação, o mapeamento de conteúdos se amplia e a compreensão dos modos de aprender abarca outras formas de organizar o conhecimento e de definir o que é conhecimento válido. Grande peso se coloca na necessidade de formação “aberta” de professores, no reconhecimento de múltiplas instâncias e de múltiplos percursos de formação. Um outro olhar se esboça sobre as sistemáticas usadas nas instituições de ensino de música, nas atividades de solfejo e ditado, na disciplina de Percepção Musical. Importa considerar as políticas educacionais, tanto no âmbito nacional como local, situando a diversidade sociocultural e as desigualdades; observar as práticas musicais nos âmbitos familiares e escolares; examinar o “instituído” e o “instituinte” nas escolas, as alternativas paralelas (ditas informais) de Educação Musical, as novas formas organizacionais e concepções em torno da Educação Musical e processos que recriam as experiências anteriores; considerar a construção das bases 7

Já vivemos sob a égide das “metodologias”, e sob a égide de discursos autorais fomos treinados em métodos trazidos para o Brasil ou criados aqui, cada qual sendo tomado como produto para o consumo, como conjunto de técnicas a serem adotadas numa didática prescritiva e num enfoque aplicacionista. 8 Silva (2000) fala em “um currículo e uma pedagogia da diferença e multiplicidade” (p. 101), que Moreira (2000) prefere reconhecer como pensamento crítico contemporâneo (uma educação que incorpore a diferença, questione o pretenso universalismo dos discursos curriculares, os contextos que os produzem e silêncios que os perpassam).

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para o funcionamento de modelos mais flexibilizados de currículo, em meio a parâmetros ordenadores. A produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil passa por estas direções e dimensões, hoje, criando as condições de possibilidade de uma outra escola de música e de uma presença mais efetiva da música na escola regular da educação básica. Desdobrando as direções do debate O interesse pela pesquisa em Performance e Pedagogia de Instrumentos passa pelas questões da diversidade de espaços para ensino de instrumento, viabilidade dos espaços virtuais e do ensino coletivo, a relação corpo-instrumento, a formação de professor de instrumento, as lacunas dos currículos atuais, o instrumento como ferramenta de ensino da música ou como foco central do aprendizado musical. (Ray, 2001, p. 121-126). No tocante ao Ensino Superior, fala-se da abertura de cursos não tradicionais (já em andamento), da Extensão voltada para a formação continuada de professores, da flexibilização na construção do currículo pelo aluno, da diversificação musical (de perfis, repertórios e saberes musicais) e da atualização face às realidades sociais emergentes (Zagonel, 2000, p. 143-145). Fala-se da responsabilidade das universidades na promoção de cursos de capacitação continuada para professores especialistas e generalistas da rede oficial de ensino; da articulação entre ensino superior e básico; das decisões políticas sobre a formação de professores de educação básica em nível superior e sobre a extinção da terminologia “Educação Artística”. O interesse está voltado para pesquisas sobre reformulação curricular que capacite para a atuação em espaços institucionalizados e emergentes, pautada em alternativas metodológicas flexíveis e problematizadoras e articulando projetos de extensão, pesquisa e ensino (Kleber, 2001, p. 99-102). Quanto às pesquisas relacionadas à problemática das Licenciaturas, destaca-se a urgência de estudos sobre formação profissional para a educação musical em diferentes situações, implicando diferentes saberes e competências. Tais estudos deverão incluir a urgente reformulação dos currículos das licenciaturas em música no Brasil, atentando para a articulação da Universidade com a Educação Básica e outros espaços da 58


prática da educação musical, vindo a amenizar o “descompasso” entre o discurso e a prática de Educação Musical, segundo relata o grupo. Reitera-se a necessidade de projetos de capacitação continuada para professores especialistas e generalistas e estudos sobre a inclusão da música (“Educação Musical”) como componente curricular nos cursos de formação de professores para a Educação Infantil e séries iniciais do ensino fundamental, ampliando a formação destes generalistas para a atuação no cotidiano da sala de aula (Kleber, 2000, p. 155-158). Em relação à Educação Musical “Informal” (Grossi, 2001, p.95-98), o interesse por pesquisa passa pela temática da formação continuada do educador musical capaz de “transitar entre múltiplos espaços”, de desenvolver “competências para atuar na diversidade” (p. 97). Considerase a necessidade de divulgação de pesquisas voltadas para contextos não institucionalizados (extra-escolares) e de projetos desenvolvidos em parceria. Falam da diversidade de espaços de educação musical, envolvendo certas atitudes e métodos. Valorizar vivências individuais do aluno e atuar num ambiente colaborativo são traços destacados. Enfatizam-se as articulações entre os múltiplos espaços de aprendizagem em Educação Musical. Considerando a Educação Musical Especial como aprendizagem da música e/ou de um instrumento musical por portadores de necessidades especiais, o interesse por pesquisa nesta sub-área é grande, em função da inclusão dos portadores de necessidades especiais na escola regular e da necessidade de aumento do número de profissionais com formação em “Educação Musical Especial”. Requer que se façam estudos sobre a criação e inserção de uma disciplina obrigatória de Educação Musical Especial nos Conservatórios e nos Cursos Superiores de Licenciatura em Música, com estágios específicos (Lélis, 2001, p. 115-116). Assumindo a identidade da disciplina “Música” dentro da grande área de “Arte”, o interesse por pesquisa relacionada ao Ensino Fundamental e Médio apresenta três focos: a socialização de pesquisas sobre alternativas metodológicas para o trabalho com as músicas do cotidiano; a formação de professores especialistas em Educação Musical para os múltiplos espaços de atuação, realizada em Universidades e não em Institutos Superiores de Educação; e a ampliação dos processos de formação dos profissionais de Educação Infantil e anos iniciais de escolarização, através 59


da inclusão de disciplinas de formação musical junto aos cursos de Pedagogia (não excluindo a necessidade da presença do professor especialista em música nesses níveis de ensino). Discute-se sobre projetos de formação profissional permanente/continuada e recomenda-se uma maior articulação entre o espaço universitário e o espaço escolar (Bellochio, 2001, p.105-109). O interesse por pesquisa relacionada à Educação Infantil cobre diversidade de espaços. Contudo, a Educação Musical Infantil não faz parte do currículo de Pedagogia e os cursos superiores de Música, em geral, não oferecem preparo efetivo dentro da Educação Musical Infantil, incluindo o estágio curricular. A inclusão de conteúdos pedagógicos específicos da Educação Infantil no currículo desses cursos torna-se um campo de investigação, registro e divulgação de pesquisa (Beyer, 2001, p. 111-113). Quanto ao Ensino Profissionalizante, considerar os Conservatórios como centros de ensino profissinalizante traz questões legais e conceituais, frente às disposições da nova LDB e especificidades locais e regionais. Estudos precisam ser feitos, face à regulamentação de tais escolas junto ao MEC e à autonomia concedida pelo MEC para a elaboração dos currículos das escolas profissionalizantes, atendidas as orientações metodológicas (que envolvem conceitos como o de contextualização, interdisciplinaridade, certificação por competência, competências para solução de problemas, estágio no processo, modularização, flexibilidade). O MEC exige titulação do quadro docente destas instituições, razão que justifica se priorizar a formação permanente de professores para a atuação no ensino profissionalizante (Montandon, 2001, p. 103-4; Braga, 2000, p. 151-154). Reiterando recomendações e sugestões dadas em 2000 (Souza, 2000, p. 147-149), o GT sobre Ensino de Pós-Graduação, em 2001 (Souza, 2001, p. 117-119), acentua a luta por políticas adequadas para a capacitação de professores universitários, a investigação sobre possibilidades de Doutorados interinstitucionais (ante à demanda reprimida em algumas universidades) e a elaboração de um projeto de documentação relativo à criação de uma lista única de trabalhos científicos realizados na área de Pós em Educação Musical.

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Pontos críticos atuais A partir do exposto, quais parecem ser os pontos críticos atuais, que importam na avaliação interna realizada pelas instituições de ensino e pesquisa em Educação Musical e que justificariam políticas para a pesquisa? Fica a possibilidade de se abrirem caminhos, através de projetos de pesquisa, que respondam às indagações feitas sobre: (1) formação docente e revisão de currículos Novas demandas profissionais e sociais desafiam os projetos de formação de instrumentistas, de professores universitários (formação de formadores), de professores para atuação nas escolas profissionalizantes de nível técnico, para lidar com projetos sociais de naturezas diversas, para atuar na escola básica e na Educação Infantil. A academia foi desafiada a construir práticas curriculares mais centradas em atividades extensionistas, vinculadas ao ensino e à pesquisa, nas quais os alunos cumpram atividade curricular de caráter social, sob a forma de estágio; práticas curriculares que possibilitem maior diálogo entre as culturas musicais de rua e o campus universitário, entre “músicos práticos” e o fazer na academia. Falando em deflagrar uma campanha nacional pela “implantação plena da Educação Musical no ensino fundamental e no ensino médio”9, ou pela “reintrodução” do ensino de música nas escolas10 (um dos ítens do Programa Público de Políticas Culturais do Governo Federal), precisamos formar profissionais da educação capazes de, fundamentados, contribuirem para e intervirem criticamente em ações que pretendam institucionalizar, na educação básica, um ensino sistematizado da música. É prioridade discutir políticas para a formação de docentes do ensino superior. Ver a Pós-Graduação como lugar de formação de professores 9

Ítem da plataforma de uma das chapas inscritas à candidatura para a eleição da nova diretoria da ANPPOM, ano 2003. 10 Concordo com Maura Penna (2002): a música não saiu da escola, não precisa ser reintroduzida porque nunca foi negada nos documentos da política educacional do país - apenas não estamos sabendo, por diversas razões, ocupar o espaço garantido à música nas escolas

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que irão atuar no ensino de graduação deve ser tão presente quanto a formação de pesquisadores, ressalta Hentschke (2000, p. 88). Outro ponto crítico colocado às instituições de ensino de música no Brasil é definir o perfil de profissional que a universidade requer para a efetivação do seu projeto político-pedagógico e traduzir isso numa sistemática de avaliação que se reflita nos exames de seleção à docência. Ainda temos priorizado um modelo de avaliação pautado pelo enciclopedismo e centrado em repasse de informações11, permanecendo o desafio de traduzir o conhecimento recentemente construído em conteúdos e competências para avaliação de candidatos à docência na universidade.12 A forma enciclopedística de lidar com o conhecimento ainda se faz notar nos exames de seleção ao magistério. Como os alunos acabam "se formando" à luz dos modelos que lhes forneceram seus professores na sua prática docente (e os modelos de prova), e a partir dos quais os docentes mesmos foram selecionados pelas instituições universitárias, temos a reprodução dessa “cultura escolar” (dessa pedagogia) na educação básica. Isso ratifica a demanda por reflexão sobre uma política de formação docente para a graduação.13 O debate sobre formação de formadores se conecta necessariamente à questão da formação de Mestres e Doutores. (2) formação de Mestres e Doutores A política de investimento em Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) tem 11

“ (...) qualquer um acha que sabe história da música e pode ir para a sala de aula repetir biografias e características de estilos para serem memorizadas e repetidas na prova final. É patético.” (depoimento de um professor universitário de uma de nossas instituições federais de ensino superior de música, Rio de Janeiro, julho de 2003) 12 Há o peso do conjunto de materiais que regulam tais exames, materiais e procedimentos instituídos nas rotinas acadêmicas, todas as práticas da “cultura escolar”, e o próprio exame. 13 A pergunta é: “como implementar essa ótica numa instituição de ensino superior onde prevalece a visão do professor sob um outro paradigma”; “como romper com as metodologias conservadoras e envolver problemas de exclusão social etc?”; e “buscar alternativas para a inserção no mundo do trabalho, das relações sociais e das relações simbólicas. (...)” - questões colocadas no Fórum “Qual Currículo?”, encontro nacional da ABEM, 2002 (Santos, 2003).

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priorizado a entrada de alunos mais novos e a redução do tempo para concretização dos estudos. Este é um ponto crítico ao qual temos que responder. A política calcada no par menor idade/menor prazo garantiria um retorno à universidade em termos de tempo (útil) de vida acadêmica e, especialmente, de produção em pesquisa. Uma avaliação já realizada sobre a produção de conhecimento e pesquisa em Educação na década de 90 – retratada, segundo Fernandes (2000), em textos de Cavalheiro e Neves e de Severino (respectivamente de 1997 e 1993) – fala das conseqüências da redução do tempo do aluno na pós (redução dos prazos) e sua admissão precocemente (com pouco tempo de experiência), formando "pós-graduados imaturos" (p.46). Segundo Fernandes, estes autores comentam que a década de 90, em contraste com a de 80, teria apresentado pesquisas sem relevância, com falta de clareza teóricoconceitual, com dispersão de temas e, muitas vezes, sem ligação com a educação. A produção de pesquisa no campo da Educação Musical aumentou e a temática tende a abarcar esferas do trabalho de educação musical contemplando as problemáticas vividas pelo docente-pesquisador. Isso, contudo, não elimina o risco de repetirmos o que já foi constatado no campo da Educação. Sem pretensões generalizantes, certo descompasso entre as práticas docentes e os objetos de investigação eleitos por estes mesmos docentes, nos estudos de Pós-Graduação, já tem sido detectada, podendo indicar duas espécies de situação: (1) candidatos adaptam seu tema de pesquisa à área de concentração para a qual parece haver maior número de vagas disponíveis e, conseqüentemente, maior chance de admissão imediata em exame seletivo14; e (2) a Pós-Graduação é tomada como local de “abrigo”15 das vicissitudes da prática docente nos diversos tipos de situações e nas diversas disciplinas curriculares. A incorporação de um 14

Baseio-me em depoimentos espontâneos de três graduados que intencionavam se inscrever em exames de seleção ao Mestrado de um dos Programas de Póso Graduação em Música, Rio de Janeiro, 2 semestre de 2003. 15 Termo usado por um docente de Pós-Graduação em Música, em debate realizado em março de 2003, Rio de Janeiro, referindo-se a si mesmo.

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discurso crítico e uma identidade de pesquisador e a possibilidade de afastamento da sala de aula e seu cotidiano pedagógico são, para alguns, o prenúncio da chance de troca de uma identidade: docentes que se ocupam da pesquisa, docentes que se ocupam da formação e docentes que se ocupam da prática – os primeiros produzem conhecimentos, os segundos transmitem-nos (“ensinam”) e os terceiros aplicam-nos (Tardiff, 2000). Muitas pesquisas realizadas por docentes que dão aula de percepção musical, análise musical, história da música, harmonia etc. têm se desenvolvido sobre temas que não se pautam pela reflexão sobre o cotidiano do ensinar e aprender nesses componentes curriculares. Ou têm se desenvolvido sobre temas que não parecem contribuir para o levantamento de dados que nutram a reflexão sobre processos de ensinar e aprender nas referidas disciplinas. Questões sobre aprendizagem e ensino não mobilizam muitos desses docentes quando da definição de temas de pesquisa, preferindo eleger temas relacionados à musicologia histórica para o trabalho na Pós. Depoimentos mostram que a premência por vaga nos exames de seleção ao Mestrado levam os candidatos a submeterem seus trabalhos moldando-os de forma a concorrerem em sub-área com maior número de vagas oferecidas, face à urgência de se titularem em cursos de PósGraduação Stricto Sensu. (3) integração dos níveis de ensino básico e superior / integração na academia A integração dos níveis de ensino básico e superior e a integração intra e inter departamental na academia são pontos críticos apontados veementemente nos encontros nacionais da ABEM de 2000, 2001, 2002. Aspira-se, no encontro de 2002, a um maior espírito colaborativo na produção de conhecimento, à maior “repercussão de questões procedentes da academia, nos órgãos deliberativos municipal e estadual” (Santos, 2003, p. 64), ao maior diálogo intra e inter departamentos na academia e na relação da academia com a escola fundamental e de ensino médio. A ausência de diálogo na academia (intra e inter departamentos) já estava expressa na fala de Hentschke (2000), de que “os departamentos não têm permitido um espaço de reuniões para que se discuta esta inter-relação entre as disciplinas, ou na reestruturação curricular” (p. 88). E a distância 64


entre os dois níveis de ensino já era registrada no encontro de 2001: A LDB e os PCNs são documentos ainda desconhecidos pela maioria dos professores que atuam nos cursos de Licenciatura. A dicotomia entre o Ensino Superior e o Ensino Básico, bem como a falta de preparo dos licenciados para atuar nesse espaço permanecem, resultando em uma desarticulação que contribui para o afastamento dos profissionais deste campo de trabalho e que não favorece a efetiva penetração da área de Educação Musical neste campo profissional (Kleber, 2001, p. 100) Há necessidade de pesquisas que registrem modos de articulação dos níveis de ensino e trabalho colaborativo na universidade. Que perspectivas temos hoje, sobre produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil, podendo indicar políticas para a pesquisa? Estamos frente a algumas demandas e desafios que constituem perspectivas para a pesquisa em Educação Musical: 1. pôr em curso outros códigos de coleção e enquadramento, registrando formas de operacionalização de práticas institucionais caracterizadas por maior integração das sub-áreas do campo da Música, e destas com outros campos, desenvolvendo processos colaborativos intra e inter-departamentais, inter-centros e interinstitucionais, integrando saberes que se localizam, por invenção humana, num ou noutro lugar; 2. alargar a cooperação entre associações de classe e instituições governamentais e não governamentais, universidades e órgãos que formulam políticas de cultura e de educação e de educação e trabalho; ampliar as ações e propostas decorrentes de pesquisas científicas, alcançando espaços instituídos e de controle das políticas públicas, de modo especial Secretarias do MEC, Secretarias de Educação dos Estados e Municípios;

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3. contribuir para a formulação de políticas públicas16: (a) políticas de educação básica, revitalizando a Música nas escolas; (b) políticas de cultura, considerando a diversidade cultural, as culturas marginalizadas e a música brasileira (financiamento, recuperação de acervos e da memória musical, uso dos meios de difusão, programas voltados para o ensino e formação, fomento de espetáculos musicais em espaços públicos ao ar livre, socialização dos bens culturais, formação de promotores e gestores culturais); (c) políticas de formação musical (que os documentos ainda dividem em “de platéia” e “de profissionais”); (d) políticas de formação de educadores, tanto docentes do ensino superior (formação de formadores) como especialistas para a educação básica e professor das séries iniciais (o generalista), desenvolvendo neste competências para lidar com a música no cotidiano escolar; (e) políticas de formação profissional do músico (criação de programas setoriais de incentivo e liberação de verbas para qualificação profissional, incentivo a oficinas, festivais, intercâmbios); (f) políticas para a Educação Infantil; (g) políticas para o ensino profissionalizante (criação de escolas profissionalizantes e apoio às existentes); (h) novas políticas públicas e educacionais para ação social, incluindo a infância, a adolescência, o idoso (programas e projetos 16

Há algumas aproximações, aqui, com as contribuições do debate realizado no 1o Forum Carioca da Música, a partir de junho de 2003, Rio de Janeiro, respondendo à necessidade do Governo Federal de construir um novo modelo de política pública de cultura no Brasil e considerando o documento “ A imaginação a serviço do Brasil – Programa de Políticas Públicas de Cultura”. No referido Forum estiveram reunidos profissionais e entidades que trabalham com a cadeia produtiva da música no Rio de Janeiro, sendo produzido o documento “Uma Nova Política para a Música no Brasil”, aprovado em plenária no dia 15 de julho, com propostas consensuais, visando seu encaminhamento para o Ministério da Cultura. Quanto a Política de Formação, considerando escolas e grupos, o documento do 1o Forum Carioca da Música frisa que o Programa de Governo relativo a Cultura deve atuar também na transversalidade com o Ministério da Educação, visando fomentar o trabalho das escolas de música e a formação de novas platéias, democratizando o acesso aos bens culturais. Quanto a Políticas de Formação Musical e de Público, destacam-se a presença obrigatória da música no processo educacional brasileiro e da música na formação dos professores do ensino fundamental, além do apoio à realização de espetáculos subsidiados ou gratuitos, atendendo escolas e comunidades, e a projetos e programas de circulação nacional e projetos incentivados com ingressos subsidiados ou gratuito para estudantes.

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sociais); 4. participar do debate sobre perfil de profissional a ser formado (perfil abrangente do músico-artista-docente-investigador-gestor?) e sobre o projeto de “formação aberta” de profissionais da Educação: professores aptos a “estruturar ambientes complexos, deliberar em situações ambíguas e conflitivas, acomodar experiências às necessidades dos alunos, ou operar com processos dificilmente previsíveis” (Sacristán, 1998, p.96); com capacidade de agir em dada situação, relacionando conhecimentos prévios e os problemas; de responder a uma demanda social, negociar e conduzir um projeto com os alunos, adotar um planejamento flexível, estabelecer um novo contrato didático (Perrenoud, 1999, p. 26-31; 62-65); capaz de “inventar imediatamente muitas estratégias de instrução, questionamento e descrição, todas dirigidas a responder às dificuldades e aos potenciais de um estudante específico que está tentando fazer algo” (Schön 2000, p. 89); capaz de atuar em zonas de incerteza, singularidade e conflito de valores, “zonas indeterminadas da prática” (p. 17-8); 5. aprofundar as colaborações entre “educadores de percepção musical”, “educadores de regência”, “educadores de estruturação”, “educadores de canto”, “educadores de instrumento musical”, conforme detalhado no GT de Performance e Práticas Interpretativas (Ray, 2001, p. 126); e 6. investigar as representações que circulam no meio acadêmico, sobre Educação Musical como“general music education”, considerando que a prática musical na escola regular não pode, sob o risco de se tornar um engodo, abrir mão de se operacionalizar através dos fazeres musicais composicionais, de execução (performance) e de apreciação (audição de repertórios diferenciados), o quer requer saberes específicos, conhecimentos de performance, interpretação, técnica. É premente revisitar o debate sobre separação entre ensino técnico profissionalizante e ensino que se quer diferenciado deste; e discutir em que medida a música na escola regular de ensino básico deve se distinguir das práticas técnico-profissionalizantes realizadas nas escolas de música; em que medida deve integrar saberes técnico-musicais sem os equívocos que caracterizaram as práticas pedagógicas conservatoriais. Conclusão A área de Educação Musical vem se consolidando em termos de pesquisa científica num momento de fortes transformações que incluem a própria 67


identidade de “educador musical”, o “vácuo quanto às denominações dos cursos”17, o estabelecimento de novas terminalidades das graduações em música. Há tensão e expectativa em torno de como proceder na condução de processos sobre os quais não há documentos (diretrizes e parâmetros) “tão claros”, ou ante a “rigidez ainda presente” nas instituições18. E em torno dos modos de implementar as Diretrizes Curriculares já instituídas, conceber o redimensionamento dos cursos, as formas de integrá-los e de estabelecer fronteiras entre eles: entre os cursos de Licenciatura e Bacharelados (visto que “há tantos músicos que dão aula”); e entre uma Licenciatura que supostamente forma para a escola regular e os Bacharelados que formam para a prática interpretativa e ensino dos instrumentos, supondo que o exercício docente na escola regular não diz respeito às práticas interpretativas e ao ensino de instrumentos musicais19. Reconhecemos que vivemos em ambientes de alto conflito paradigmático, tensão, disputa: um habitus instalado. Buscamos a invenção de outros modos de convivência na universidade e dessa com as demais instituições sociais. Presenciamos o debate sobre currículos nacionais, a premência dos princípios de flexibilidade e integração no currículo, autonomia das instituições na elaboração de seus projetos pedagógicos, mas também sobre o poder do Estado, os exames nacionais de avaliação e o estabelecimento de padrões de qualidade para a avaliação dos cursos superiores. Falar de políticas para a pesquisa em Educação Musical no Brasil, hoje, implica responder às indagações deixadas na contemporaneidade, sobre que escola, novas configurações institucionais, campos emergentes no mundo do trabalho, perfis profissionais, competências sociais e profissionais, redes e instâncias de formação, políticas públicas justas para o país - sociais, educativas, para a educação profissional, de 17

Forma como se referiu a platéia no Forum “Qual Currículo?”, no encontro nacional da ABEM em 2002 (Santos, 2003, p. 65) 18 Termos usados pela platéia presente no Forum “Qual Currículo?”, desenvolvido no encontro nacional da ABEM em 2002 (Santos, 2003, p. 65). 19 Schafer (1991) ajuda a pensar este problema: “por professor de música qualificado quero dizer não apenas alguém que tenha cursado uma universidade ou escola de música, com especialização nessa área, mas também o músico, profissional de música, que, por sua capacidade, conquistou lugar e reputação numa atividade tão competitiva (p. 304)”.

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formação permanente, de educação a distância, de qualificação e valorização do profissional da educação, de investimento em cultura. Nenhuma política de pesquisa se tornará efetiva se não acompanhada de uma política de investimento na publicação de materiais produzidos em decorrência das ações de ensino e extensão, buscando um impacto político maior destes trabalhos. Universidades e agências de fomento públicas e particulares devem estar comprometidas com a ampliação da literatura na área e a publicação de registros desses trabalhos e pesquisas científicas. Um balanço da produção de conhecimento em Educação Musical colocanos, portanto, ante um conjunto compreendido por e expresso através de idéias, doutrinas e modelos pedagógicos; materiais pedagógicos e outros impressos; práticas musicais e processos de Educação Musical em espaços públicos e privados; práticas do cotidiano escolar; políticas públicas e reformas educacionais; documentos das comissões do Ministério da Educação, Secretarias de Educação, Associações ou Organizações Não-Governamentais; Diretrizes Curriculares para o Ensino Superior em Música; participação do Estado e da sociedade civil (e instituições religiosas) como instâncias promotoras de educação e ensino (criação, administração e gestão), com suas competências e responsabilidades; sistemas de gestão, administração e financiamento da educação; programas, projetos e políticas. O debate sobre produção de conhecimento traz para o centro as mais recentes pesquisas sobre cognição, processos dinâmicos de aprender e conhecer nos organismos vivos. Traz para o centro as questões sobre imprevisibilidade, incerteza e paradoxo inerentes também ao cotidiano do ensino. Pensar a escola fora do paradigma vigente (que nos formou) é uma tarefa que exige a “sabedoria dos limites e desafios”, conforme expressa Pedro Demo (2000). Compreendemos que, ao administrar a crise instalada nesta transição de paradigmas, podem ser produzidos ganhos. Estamos ante a urgência de planejamentos estratégicos e uma prática avaliativa institucional como condição para se falar de alguma autonomia ou auto-gestão das instituições educacionais de ensino básico e superior. Autonomia revelada na sua capacidade de questionar a qualidade do conhecimento que ali se vem construindo, de fazer a revisão contínua de suas estruturas em 69


função de seu projeto político-pedagógico, de realizar a crítica e também a ação necessárias à instalação de uma nova cultura escolar e acadêmica, de lidar com processos colaborativos e de decisão coletiva. É neste sentido que podemos entender a produção de pesquisa e a construção de conhecimento em Educação Musical no Brasil hoje.

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Regina Marcia Simão Santos . Doutora em Comunicação e Mestre em Educação (UFRJ). Professora Adjunta do Departamento de Educação Musical do Instituto Villa-Lobos (UNIRIO), onde também é Professora /Orientadora do Programa de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado em Música. Membro do Conselho Editorial da revista Debates e das publicações da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM). Foi parecerista do Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil (MEC). Integrou o Departamento Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação (RJ), participando da elaboração de programas de capacitação de professores de Música e de professores do ensino fundamental. e-mail: rmarcia@alternex.com.br

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Esboço de balanço da etnomusicologia no Brasil1 Elizabeth Travassos Resumo: A partir da constatação de que está em curso a institucionalização da etnomusicologia, no Brasil, comento quatro aspectos do contexto cultural e intelectual em que tal processo vem ocorrendo: (a) deslocamento do paradigma da evolução nacional, que dominou a produção musicológica brasileira; (b) crescimento da disciplina simultaneamente às discussões sobre a crise do conceito de cultura; (c) renovação das preocupações com a cisão entre discurso sonoro-musical e discurso verbal; (d) renovação das preocupações com a indústria cultural e com a mercantilização das práticas culturais. Palavras-chave: Etnomusicologia. Brasil. Abstract: This article deals with the Brazilian ethnomusicological studies. My starting point is the ongoing process of institutionalization of the Ethnomusicology in our universities. I mention four aspects of the contemporary intellectual and cultural context in which this process occurs: (a) the displacement of the “nationalization paradigm”, previously hegemonic in the musicological production; (b) the recent discussion about the concept of culture; (c) the concern with the tension between music making and writing about music; (d) the concern with the industry of culture and the commodification of the cultural practices. Keywords: Ethnomusicology. Brazil.

Neste texto, reuno algumas observações sobre a produção etnomusicológica no contexto brasileiro. Menos do que um balanço capaz de dar conta do campo, o texto expõe algumas idéias acerca das eventuais novidades que a etnomusicologia traz aos saberes sobre a cultura e a música no Brasil e acerca das dificuldades que enfrenta no momento de sua institucionalização. Trata-se, necessariamente, de um balanço parcial, limitado pelos lugares institucional, disciplinar e geográfico que ocupo. Se é cada vez mais difícil acompanhar a totalidade da produção oriunda dos Programas de PósGraduação em Música, quem pode enfrentar o desafio de manter-se em dia com a totalidade da produção acadêmica no Brasil que, de um modo ou de outro, fala de música?

Além das 608 dissertações e teses listadas pela ANPPOM até 2002 (em Música, Artes-Música, Educação e Comunicação & Semiótica), a área de 1

Agradeço aos organizadores da XV Reunião da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música o convite para participar da Mesa-redonda “Musicologia”.


Música conta com alguns periódicos estáveis. Numa pesquisa no Banco de Teses da CAPES usando a palavra-chave ‘música’ como filtro, e considerando somente a década compreendida entre 1992 e 2001, foram listadas 664 dissertações e teses distribuídas nas mais diversas áreas, da Educação Física à Informática, Psicologia, Odontologia... Do total, 177 originaram-se nos Programas de Pós-Graduação em Música, 78 nos Programas de PósGraduação em Letras, 60 em Artes (Teatro, Cinema, TV), 48 em Educação, 46 em Comunicação (incluindo Comunicação & Semiótica, Comunicação & Cultura Contemporânea), 43 em História, 23 em Antropologia – para citarmos apenas as disciplinas e campos de conhecimento que parecem ser os mais atraídos pelas numerosas dimensões do vasto tema da música.2 Nem é preciso dizer que a busca linear a partir de uma palavra-chave pode incluir trabalhos em que o tema figura como mera ilustração, tanto quanto pode deixar escapar itens importantes para o balanço da produção acadêmica. Mas a lista vale como evidência de que a sub-área da Música (para usar a terminologia das áreas do conhecimento adotada pelas agências de fomento) não monopoliza a produção intelectual sobre esse tema que é, tradicionalmente, foco de discursos sobre a cultura brasileira. As instituições acadêmicas, aliás, não detêm o monopólio da produção intelectual sobre música e concorrem com os estudiosos de música popular, colecionadores, jornalistas, ONGs. Um balanço do campo de estudos musicais no Brasil deve registrar, nos últimos anos, os passos importantes que foram dados para a institucionalização da etnomusicologia entre nós: fundação da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), em julho de 2001 (no âmbito do 36ª Conferência Geral do International Council for Traditional Music, ocorrida no Rio de Janeiro); realização do I Encontro Nacional da ABET, em novembro de 2002, em Recife; criação de Laboratórios de Etnomusicologia na UFRJ e UFMG. Esses passos reforçam os núcleos de estudos etnomusicológicos existentes em Florianópolis, Porto Alegre, Salvador, com produção expressiva. Tudo isso somado, é possível afirmar que estamos testemunhando não somente a atração que a disciplina exerce sobre estudantes, mas também um reconhecimento mais efetivo da singularidade de sua contribuição ao conjunto de saberes sobre a cultura. Do ponto de vista da institucionalização e, conseqüentemente, da legitimação da disciplina no ambiente universitário, houve um crescimento importante da etnomusicologia.

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Agradeço a Edilberto José de Macedo Fonseca a pesquisa no Banco de Teses da CAPES.

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Por um lado, os avanços na institucionalização refletem a expansão do campo e os aspectos favoráveis da conjuntura, dentre os quais destaco o retorno ao país de pesquisadores que estavam em formação no exterior e sua absorção pelas Universidades. Em decorrência, a disciplina conquistará, a médio prazo, autonomia para reproduzir seus pesquisadores (espero que isso não sacrifique o diálogo com as disciplinas afins, saudável e necessário, dada a ligação visceral que a etnomusicologia mantém com a teorização na antropologia). Por outro lado, os avanços vêm ocorrendo em contextos intelectual e cultural específicos, sobre os quais é necessário refletir. Como se sabe, os contextos não são dados, e sim delimitados a partir das perguntas do observador, as quais põem em relevo algumas dimensões do fenômeno observado. É o que desejo fazer, tentando ir um pouco além do ponto de vista institucional para considerar as novidades que a pesquisa etnomusicológica traz. No âmbito nacional, a implantação acadêmica da etnomusicologia corresponde à superação do paradigma da nacionalização que orientou as abordagens da música desde o início do século XX. Os saberes sobre a música nasceram, no Brasil, sob o duplo signo dos ideais de progresso e nação, os quais guiaram as indagações da pioneira história da música feita no Brasil. Tratava-se de encontrar os fatos que comprovassem o percurso da música brasileira em direção à emancipação dos moldes europeus e à aquisição de um perfil próprio – uma história teleológica que se escrevia a partir dos valores e preocupações do presente do historiador.3 Esse paradigma deixou de ser hegemônico há algumas décadas. De ordem “natural” das coisas, passou a uma perspectiva possível, propícia à iluminação de determinados aspectos da vida musical e ao esquecimento de outros. Note-se que os grandes panoramas históricos da gênese e evolução da “música nacional” abrangiam a música popular.4 Nas primeiras décadas do século XX, a palavra ‘folclore’ ainda não se consagrara entre nós para designar as tradições orais que se transmitem em circuitos independentes do mercado. O estudo da então chamada música popular girava em torno da identificação das contribuições de cada uma das “raças” formadoras – como se dizia – para a síntese nacional.5 Havia, pois, coerência teórico-conceitual 3

Ver os comentários convergentes de Suzel Ana Reily (2001). Por exemplo, os de Renato Almeida (1929, 1942) e Mário de Andrade (1972 e 1991). 5 A crítica ao paradigma da nacionalização musical pode ser encontrada em numerosos autores (v., por exemplo, Wisnik 1982 e 1983, Vianna 1995, Mattos 1993, Travassos 1997). 4

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entre as pesquisas da história da música e do folclore musical. As metodologias de produção dos dados empíricos – em arquivos documentais ou em campo – eram muito pouco discutidas, com algumas raras exceções. 6 As metodologias de análise da música – incluindo-se aí a notação de músicas de tradição oral – também eram pouco problematizadas. Da mesma forma como os historiadores já não se aventuram nas narrativas panorâmicas, os etnomusicólogos – que herdam a área temática do Folclore – não elegem a busca das origens étnicas de determinados “traços” culturaismusicais como seu problema mais importante. Além disso, entrou em crise o postulado da complementaridade ideal entre músicas folk e “erudita”, a primeira fornecendo o material ou o espírito da música brasileira, a segunda a forma ou a técnica que a elevariam a um patamar efetivamente artístico. Uma das decorrências da especialização dos conhecimentos sobre cada uma das dimensões das músicas produzidas no Brasil é o menor trânsito entre história da música (com nítida separação entre historiadores da música erudita e historiadores do campo da música popular), etnomusicologia, teoria e análise da música (que também emergiu, no interregno, como disciplina musicológica). A institucionalização da etnomusicologia no Brasil ocorre, pois, ao fim da hegemonia estética do nacional-popular e – num outro registro – como um dos frutos de uma redefinição do panorama dos saberes sobre a música, mais especializados e mais independentes entre si. A disciplina interage ativamente com esse panorama, aprofundando talvez sua redefinição. Um outro aspecto a ser considerado é o crescimento dos estudos acadêmicos sobre músicas mediatizadas da era industrial e pós-industrial. Trata-se de temas fortemente marcados pela tradição das biografias e historiografias, que passa a ser abordado com recursos da etnografia e de várias vertentes da semiótica.

Três livros recentemente publicados – Feitiço decente, de Carlos Sandroni (2001), Os sons do Rosário, de Glaura Lucas (2002) e Voices of the Magi, de Suzel Ana Reily (2003) – podem ser considerados exemplos dos rumos da etnomusicologia na medida em que se identificam com a disciplina, têm na etnografia um recurso importante e inspiram-se nas teorias e métodos desenvolvidos por etnomusicólogos. Os dois primeiros atestam o desenvolvimento da disciplina no Brasil; o terceiro, embora escrito por uma 6

Entre elas, a preocupação de Mário de Andrade com os procedimentos de coleta de música, em campo, e com a socialização de metodologias de investigação do folclore, nos anos 1930 (v. Andrade, 1983).

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professora e pesquisadora da Queen’s University, em Belfast (Irlanda do Norte), tem origem, em parte, na tese de doutorado que a mesma defendeu na Universidade de São Paulo, situando-se, pois, nos fluxos transnacionais da produção acadêmica. Menciono os três livros por serem recentes, sem reincidir no preconceito evolucionista que os supõe melhores por serem mais recentes. Trata-se, efetivamente, de trabalhos de alta qualidade, mas por outras razões. Convém lembrar que a literatura etnomusicológica é rarefeita, no Brasil, mas dispõe de títulos importantes que não mencionarei porque a intenção não é fazer, aqui, um inventário comentado de obras. Mas quero deixar claro que o comentário dos títulos recentes não implica nenhum esquecimento da importância que têm para a disciplina o aparecimento de A musicológica Kamayurá, de Rafael José de Menezes Bastos ([1978]1999), Ubatuba nos cantos das praias, de Kilza Setti (1985), publicados numa época em que poucas pessoas conheciam a palavra etnomusicologia. Talvez se possa incluir também nos fluxos transnacionais que cruzam o Brasil os livros Why Suyá sing, de Anthony Seeger (1987) – não tanto porque trata de uma sociedade fisicamente localizada no território brasileiro, mas porque seu autor lecionou durante alguns anos no Museu Nacional da UFRJ, instituição na qual formou antropólogos – e Contribuição bantu na música popular brasileira, de Kazadi wa Mukuna (2000) – não tanto porque trata da identificação dos elementos de origem bantu na música brasileira, mas porque seu autor esteve ligado, como doutorando em Sociologia, à Universidade de São Paulo. Além desses, a produção etnomusicológica registra artigos e ensaios de alta qualidade, veiculados em periódicos ou coletâneas, nacionais e internacionais, além de CDs etnográficos – lamentavelmente, em pequeno número – com farta contextualização analítica dos fonogramas.7 Há algumas décadas, os temas das obras de Carlos Sandroni, Glaura Lucas e Suzel Reily – respectivamente samba, reinados de Nossa Senhora do Rosário e folias de reis – só eram abordados seriamente por folcloristas e, no caso do samba, por estudiosos de música popular trabalhando em espaços nãoacadêmicos. Sandroni revê o complexo da síncope com instrumentos conceituais da Etnomusicologia africanista. Além de contribuir para a atualização bibliográfica, sempre importante, sua revisão incide sobre um elemento que ocupava lugar importante no paradigma da evolução nacional (a síncope, índice sonoro do caráter nacional da música feita no Brasil). Glaura 7

A Revista Latino Americana de Música (editada pelo Prof. Gerard Béhague, da Universidade do Texas em Austin) é um dos espaços que veiculam regularmente a produção etnomusicológica sobre o Brasil e oriunda do Brasil.

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Lucas, por sua vez, descreve os estilos musicais das “guardas” do Reinado do Rosário (em duas comunidades mineiras) e correlaciona a configuração rítmica de cada uma com suas funções rituais, ancoradas no relato mítico da aparição da Nossa Senhora.8 O emprego do método elaborado por Simha Arom e a microanálise do ritmo com os recursos da tecnologia digital devem ser destacados pelo caráter de novidade, entre nós. Suzel Reily, finalmente, descreve e analisa os estilos musicais reconhecidos pelos “foliões” das companhias de reis na região do ABC paulista, onde fez sua pesquisa de campo. A autora elabora um denso argumento sobre as possíveis origens históricas dos estilos “mineiro” e “paulista”, sobre as razões de sua permanência e suas ressonâncias para os foliões que os praticam atualmente. A polifonia vocal do estilo mineiro, em que até 8 vozes se acumulam, em entradas progressivas, desencadeia associações e emoções relacionadas com a ordenação moral da vida social – assim, as vozes “encantam” ritualmente, a cada performance, uma utopia de harmonia e integração social. Os trabalhos vão muito além dos aspectos que mencionei para ilustrar o deslocamento das indagações dos estudiosos. Na medida em que elegem como problema a coerência entre diferentes instâncias da cultura – coerência entre estilos ou sistemas musicais, por um lado, e sistemas de valores, sociabilidades e rituais, por outro –, Glaura Lucas e Suzel Reily alinham-se com vertentes importantes da etnomusicologia “moderna” (basicamente a que se institucionalizou nos Estados Unidos, nos anos 1950).9 O diálogo com a antropologia norte-americana culturalista e funcionalista deu o tom das teorizações naquele momento e a disciplina constituiu-se no solo das preocupações com o caráter sistêmico da cultura, entendida como totalidade. Tornou-se imperativo, para o etnomusicólogo, demonstrar como a música espelha a cultura ou – logo criticada esta formulação – como a música produz e reproduz valores, identidades e grupos sociais. Numa frase feliz, Claude Lévi-Strauss (sem ser etnomusicólogo e sem participar dos debates de que falo) sintetizou a perspectiva da cultura como totalidade estruturada, numa entrevista aos editores de Inharmoniques:

... há muitos ângulos de ataque e [...] todos eles nos conduzem ao conhecimento da sociedade. Pode-se ser antropólogo social e começar pelos sistemas de parentesco, 8

V. também Lucas (2002a). V. as observações de Bohlman (1992) sobre a história da Etnomusicologia nos EUA.

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pode-se ser lingüista e começar pela língua, pode-se ser botânico e começar pelas plantas, musicólogo e começar pela música. Eu diria que todos esses caminhos levam a Roma 10

Talvez o etnomusicólogo prefira dizer que sua Roma é a música, onde ele chega tendo começado pelo ritual, pela língua, ou mesmo pelos pássaros (como Feld, 1982). Mas isso seria somente um jogo de palavras, pois a etnomusicologia nos ensina a desconfiar da universalidade daquilo que o senso comum ocidental chama de música há algum tempo. Assim como exercita continuamente a relativização dos hábitos de escuta e dos critérios de valoração em nome da necessidade de compreender outras escalas de valor, o etnomusicólogo costuma dessubstancializar a idéia de música.11

Os trabalhos recentemente produzidos trilham caminhos próprios, mas são argumentações convincentes a favor da coerência entre concepções e práticas musicais, por um lado, e sociabilidades, visões de mundo e rituais, por outro. Eles aparecem num momento em que se discute a “crise” do conceito sistêmico de cultura (v. os comentários de Sahlins 1997, Geertz 2001) e podemos incluí-los nesse debate. A etnomusicologia institucionalizase no Brasil num momento em que se aponta seguidamente o mal-estar da pós-modernidade no terreno das ciências humanas e as vicissitudes do conceito que é a espinha dorsal da antropologia. Num “mundo mais completamente interligado e mais intrincadamente compartimentalizado”, em que “o catálogo de identificações disponíveis se expande, contrai-se, muda de forma” – diz Clifford Geertz (2001:197) – a visão do planeta repleto de unidades chamadas ‘culturas’ expõe sua inadequação. Nem é preciso dizer que a “crise” repercutiu na etnomusicologia norte-americana: um longo artigo 10 “...il y a une quantité d’angles d’attaque et [...] tous ces angles nous conduisent à la connaissance de la société. On peut être anthropologue social et commencer par les systèmes de parenté, on peut être linguiste et commencer par la langue, on peut être botaniste et commencer par les plantes, musicologue et commencer par la musique. Et je dirais que tous ces chemins mènent à Rome” (Lévi-Strauss, 1987:12). 11 V., por exemplo, a definição de ‘música’ proposta por Seeger (1992): uma intenção de fazer algo chamado música, em oposição a outros tipos de sons, o consenso de um grupo social acerca da musicalidade dos sons, a construção e uso de instrumentos, determinados usos do corpo, as emoções que acompanham uma performance.

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de Mark Slobin sobre as “micromúsicas” do Ocidente fez soar o alarma: “Não há nenhum sentido geral no sistema, nenhuma força oculta que controle o fluir da cultura...”.12 A etnomusicologia do catolicismo popular e dos reinados negros no Brasil contemporâneo confirma a fecundidade daquela idéia mestra de estabelecer nexos entre idéias, valores, ethos, relações sociais e modos particulares de conceber e de praticar música, sem incorrer na idealização das culturas folk como unidades isoladas, íntegras e autônomas. Tanto Suzel Reily quanto Glaura Lucas trabalharam com habitantes das periferias metropolitanas e Carlos Sandroni pôs a mão na massa da indústria cultural nascente no Rio de Janeiro. Suzel lançou mão de Antonio Gramsci para pensar a cultura popular como cultura subalterna numa sociedade de classes – os foliões de reis com quem ela conviveu não habitam uma aldeia isolada. Sandroni faz uma análise cuidados das várias dicções no célebre “Pelo Telefone” (retomando, conforme reconhece, sugestões mais ou menos esquecidas de uma tese de doutorado de Flávio Silva), portanto das várias vozes sociais que se entrecruzam no tecido da canção: não uma análise “externalista” de contextos históricosociais, mas uma demonstração inspiradora do modo como o externo, o social, se faz interno ao objeto musical analisado.13 Apesar dos aspectos inovadores com relação à bibliografia em português, a etnomusicologia produzida no Brasil continua dedicada às músicas pensadas como brasileiras. Esse confinamento temático traduz a posição subordinada do país na divisão do trabalho intelectual internacional e, talvez, resíduos do comprometimento com o processo de construção nacional. A limitação temática, aliada à posição marginal da língua portuguesa no quadro internacional da bibliografia científica e acadêmica, tem como decorrência a restrição do número de leitores potenciais. Outro aspecto do contexto intelectual é a renovação das insatisfações com a cisão entre escrever/falar sobre música e fazer música. Devotado a uma música que, em princípio, ele não pratica e sequer aprecia adequadamente, o etnomusicólogo estaria condenado, por definição, a falar sobre outras músicas – mesmo após seu período de imersão, durante o qual se torna aprendiz e candidato eventual a uma “bi-musicalidade”. A ampliação efetiva do leque de

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“There is no overall sense to the system, no hidden agency which controls the flow of culture...” (Slobin, 1992:5). 13 Estou usando as palavras de Antônio Cândido, escritas originalmente a propósito da relação entre literatura e sociedade, mas perfeitamente aplicáveis às relações entre outras produções simbólicas e sociedade (1976).

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objetos de estudo – todas as músicas podem ser estudadas pela etnomusicologia, afirmam os expoentes da disciplina – abole aquela fatalidade e a reivindicação de união das perspectivas teórica e prática começa a ganhar mais sentido na medida mesmo em que a aceleração dos fluxos culturais põe em xeque qualquer ilusão de culturas como unidades estanques, em correspondência estrita com um grupo social e um território. Veja-se o libelo contra a fratura entre conhecimento, arte e ação política do etnomusicólogo Charles Keil, num debate que ocupou as páginas da Ethnomusicology. O modelo para sua utopia de derrubada das barreiras entre faculdades humanas (intelecto, intuição, emoção, análise, síntese etc.) é dado pelos “estudos da performance” (Performance Studies), um campo transdisciplinar do meio acadêmico norte-americano. Na definição do próprio Charles Keil (parafraseando Richard Schechner, patrono dos estudos da performance), trata-se de “uma teoria integradora e ampla do jogo [play], ritual, artes e política”14, que propõe uma nova agenda à etnomusicologia. Não só produzir conhecimento, mas intervir pela restauração de capacidades humanas afogadas em “tédio, ansiedade, consumismo” (Keil, 1998:309). E ele descreve as vantagens da ampliação de escopo teórico simultaneamente à intervenção política: Um melhor conhecimento científico do fazer musical (sociomusicologia) pode facilmente informar nosso fazer musical igualitário (sociomusicologia aplicada) de tal forma que não iremos comprar o produto da indústria cultural porque não precisaremos dele, estaremos ocupados demais com a performance de cerimônias e o planejamento de celebrações. [...] Os estudos da performance prometem recuperar o dramatismo de Burke [ contra a ênfase no texto, atribuída a Clifford Geertz], reconduzem a atenção para o mundo-como-acontecimento, mais do que para o mundocomo-vista, urgem-nos a atuar nossas crenças e ver que tipo de conhecimento emerge dessa atuação, fazem perguntas ontológicas tanto quanto epistemológicas, e podem nos ajudar a recolocar [....] as artes a serviço dos fins da comunidade (Keil, 1998:307-08).15 14

“...an integrative, broad-spectrum theory of play, ritual, arts, and politics” (Keil, 1998:303). 15 “Better sciencing about musicking (sociomusicology) can easily inform our own egalitarian musicking (applied sociomusicology) so that we won’t buy the culture industry’s product because we won’t need it, we’ll be too busy performing

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Ouvem-se ecos desse anseio holístico, entre nós, no movimento de recriação de espetáculos e celebrações tradicionais por jovens citadinos, não necessariamente de maneira articulada com discursos acadêmicos sobre o painel disciplinar contemporâneo, mas certamente tendo repercussões sobre ele.16 Talvez uma das conquistas desse movimento seja a incorporação mais efetiva das vantagens de uma “bi-musicalidade”, tornada prática corriqueira dos ativistas de movimentos sociais e artistas interessados na pesquisa de músicas tradicionais. Da fala exaltada de Keil sobressai também a menção à indústria da cultura, um tópico praticamente inescapável quando se trata de estudar música, mas que reaparece com novas roupagens. Ainda que seja consenso, entre estudiosos, que demonizar a indústria cultural não faz avançar o conhecimento que se tem dela, e ainda que se saiba, também, que as tradições antepõem barreiras à sua penetração homogênea, a indústria da cultura permanece como uma interrogação. Atualizando o debate entre apocalípticos e integrados, enfrentam-se “velhos legitimistas” (defensores das culturas tradicionais, “clássica” e “populares”) e “neo-populistas de mercado” (que celebram as virtudes democráticas e liberadoras da civilização industrial), nas palavras de Beatriz Sarlo (1997). As preocupações recrudesceram no cenário norte-americano e europeu em função da visibilidade da chamada world music. Símbolo do mundo supostamente sem fronteiras oriundo da globalização, o rótulo comercial recente é também o aspecto da indústria cultural que mais impacto tem tido sobre a etnomusicologia. Um balanço superficial das posições dos etnomusicólogos revela que a maioria deles é “ansiosa” (como disse Steve Feld, 2000) e encara a world music com ceticismo. Reina a desconfiança de que a heterogeneidade de superfície –os franceses dizem “músicas do mundo”– esconda apenas “uma música” (one world music).17. Subitamente capturados pela voracidade do mercado, os sons mais remotos das vozes e instrumentos raros dos povos não-ocidentais (e dos grupos sociais periféricos, ceremonies and planning celebrations” [...] “Performance Studies promises to reclaim Burke’s dramatism, refocuses attention on world-as-event rather than world-as-view, urges us to enact our beliefs and see what knowledge emerges from the enactment, asks ontological as well as epistemological questions, and can help us playfully put the arts back together again for community-serving purposes” (Keil, 1998:307-08). 16 V. também Travassos (2002a). 17 Expressão usada por Steve Feld (2000).

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minoritários e subalternos das sociedades ocidentais) passaram a entrar em mosaicos e fusões, fragmentados e recompostos em combinações inusitadas. Para assombro dos etnomusicólogos, as chamadas músicas do mundo aparecem envoltas na pureza das raízes, nas virtudes do multiculturalismo, do pluralismo estético, das preocupações com o meio-ambiente, tudo mal escondendo a aceleração do processo de transformação das práticas musicais em mercadorias (v. Mentjes, 1990; Lysloff, 1997; Lortat-Jacob, 2000; Feld, 2000, entre muitos outros. A bibliografia sobre o tema é vasta). É verdade que a world music não aportou entre nós com o mesmo impacto e a categoria não entrou em nosso vocabulário corrente. Como expoentes da nossa conhecida MPB são premiados como campeões de world music nos certames do mercado norte-americano, a categoria desencadeia ambigüidades análogas à do nativismo e do folclorismo, à época dos movimentos românticos e modernista: a música popular comercial feita no Brasil pode ser apropriada como “exótica” nos Estados Unidos e na Europa, ao mesmo tempo em que a diversidade social, étnica e religiosa interna faz com que a experiência da alteridade cultural, para os artistas brasileiros, dispense as viagens a outros continentes. Por um lado, os debates sobre a world music acabam por ganhar outro tom quando alcançam a etnomusicologia no Brasil; por outro, estamos assistindo a fenômenos locais que parecem ser parte de movimentos mais amplos, de globalização da cultura e (globalização das) reações locais à globalização. Tal é o caso, parece-me, da redescoberta das músicas tradicionais nos anos 1990, que traz à baila, como nos debates internacionais, as relações entre músicos profissionais integrados ao mercado e herdeiros de tradições locais, os direitos sobre patrimônios culturais e a mercantilização das tradições. Movimentos de recriação das culturas tradicionais não estão divorciados do fenômeno e muitos deles situam-se no espaço que Jean-Pierre Warnier (2000) chama de “zona de captação” da indústria cultural. Da mesma forma como os etnomusicólogos estão discutindo as dimensões éticas e políticas da world music – inseparáveis de sua dimensão estética –, as produções culturais e musicais calcadas no saber e nas formas de expressão tradicionais também devem ser olhadas sob o prisma da ética e da política. Desse esboço de balanço, saliento a necessidade de multiplicar os núcleos acadêmicos da disciplina para assegurar a formação de pessoal qualificado e em números proporcionais às demandas múltiplas e variadas da sociedade brasileira. Desde os grupos sociais tradicionalmente visitados por etnomusicólogos – índios, comunidades rurais e comunidades afrodescendentes – até as heterogêneas “tribos” e “subculturas” urbanas,

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passando por diásporas, enclaves de migrantes, músicas brasileiras fora do Brasil etc., há muito mais territórios temáticos do que etnomusicólogos fazendo pesquisa, formados e apoiados institucionalmente. E como os balanços são forçosamente efêmeros, espero que esta última frase se torne obsoleta em pouco tempo.

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Elizabeth Travassos – Doutora em Antropologia (UFRJ). É professora do Instituto Villa-Lobos e do Mestrado em Música Brasileira da UNI-RIO. Trabalhou na Coordenação de Folclore e Cultura Popular da Funarte, editando a série fonográfica “Documentário sonoro do Folclore brasileiro”. Publicou artigos sobre o grupo indígena Kayabi e sobre músicas populares no Brasil.

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Ciência, significação e metalinguagem: Le sacre du printemps

José Luiz Martinez

Resumo: A partir da teoria semiótica da música proposta pelo autor, procura-se equacionar o conhecimento musical e o conhecimento musicológico como formas de semiose. Como objeto de análise, se estuda A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky em vista de suas construções metalingüísticas, para as quais se oferece uma formulação teórica em termos da metáfora enquanto forma de significação icônica. Palavras-chave: Stravinsky. Semiótica. Metalinguagem. Abstract: Music knowledge and musicological knowledge are studied here as forms of semiosis, understood in the light of the author’s semiotic theory of music. Stravinsky’s The Rite of Spring is taken as an object of analysis and studied in regard to its musical metalanguage constructions, for which a theory of metaphor, viewed as iconic signification, is proposed. Keywords: Stravinsky. Semiotics. Metalanguage.

A questão proposta para a mesa redonda 5 do XIV Congresso da ANPPOM, para a qual fui convidado e participei em 21 de agosto de 2003, poderia ser formulada da seguinte maneira: “O que é produção de conhecimento em musicologia?” A resposta que apresentei e que pretendo expor aqui de uma forma ampliada equaciona a questão acima com os instrumentos da semiótica da música. Será, evidentemente, uma visão pessoal, já que a semiótica de que falo consiste na teoria semiótica da música que criei em bases peirceanas e que defendi como tese de doutorado na Universidade de Helsinki em 1997 (vide Martinez 1997 ou 2001).1

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Este artigo foi escrito como parte das atividades da Rede Interdisciplinar de Semiótica da Música (<http://www.pucsp.br/pos/cos/rism>), projeto de pesquisa dirigido por José Luiz Martinez (<martinez@pucsp.br>) e vinculado ao Programa


Para se compreender como as questões epistemológicas fundamentais em musicologia se entrelaçam com a própria atividade musical é necessário remeter à teoria geral dos signos de Peirce e sua concepção de filosofia da ciência. Exceto em casos limites de percepção — onde uma mente se assoma de tal forma do fenômeno que percebe que não há distinção entre as qualidades desse objeto (como as qualidades acústicas de uma peça musical) e as qualidades de sentimento dessa consciência, situação essa compreendida por Peirce como uma consciência em primeiridade pura — é normal que toda a percepção e cognição seja mediada por signos. Mais do que disso, para Peirce, o pensamento só é possível por meio de signos (CP 1.538, 4.551, 5.253). Portanto, é no coração da filosofia que Peirce situou a semiótica e, sendo a semiótica uma ciência heurística normativa (isto é, uma ciência da descoberta e ao mesmo tempo supra analítica), é ela que concede os princípios fundamentais do pensamento crítico para todas as ciências especiais, físicas e psíquicas. Assim, da mesma maneira que a física depende da matemática e da lógica (sinônimo de semiótica para Peirce) para estabelecer seu pensamento, a semiótica pode oferecer os instrumentos necessários para as disciplinas dedicadas à compreensão dos fenômenos musicais. Os métodos de análise da semiótica da música, no entanto, constituem uma teoria aplicada, específica para a tradução de questões musicais, que se distingue da teoria geral dos signos proposta por Peirce. Aquela, abstrata e geral; a semiótica da música, aplicada e específica. A música, como muitas outras artes, tem características essencialmente semióticas aliadas a características físicas. Questões de linguagem e estrutura em música, de signifição, questões estéticas, culturais, políticas, religiosas, etc. estão na primeira categoria; enquanto que questões de execução, tocar um instrumento ou cantar, o aqui e agora da música, estão na segunda categoria. No entanto, uma vez que estou empregando o termo categoria, é melhor ser coerente com a fenomenologia peirceana (vide Martinez 1997 ou 2001: 80-83). Os fenômenos musicais, quaisquer que sejam, podem ser compreendidos de acordo com as categorias universais de Peirce da seguinte maneira: em primeiro lugar, a primeiridade, o aspecto puramente qualitativo dos fenômenos acústicos, a materialidade musical que define a própria existência da música. Esse aspecto é absolutamente independente de qualquer outro. Ele é

de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, instituições às quais o autor gostaria de fazer público seus agradecimentos.

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simplesmente aquilo que é. Uma obra como 4’33” de John Cage tira partido exatamente da possibilidade de se ouvir música em primeiridade. Em segundo lugar, a secundidade, onde ação e reação, o aqui e agora acústico se manifesta no ataque de uma corda, na vibração de uma coluna de ar pela ação de um flautista ou na voz de um cantor. Essa ação que causa o fenômeno acústico, que possui necessariamente qualidades da primeira categoria, quando controlada por uma intenção, implica na terceira categoria, a terceiridade, que nada mais é que significação, mediação, semiose, pensamento. Assim, o pensamento musical se instaura na própria concepção da música e pode ser entendido como interpretação, a tradução de signos em outros signos, interpretantes. E interpretantes podem ser produzidos em diferentes áreas. A percepção e a cognição são necessariamente a primeira forma da terceiridade musical. Segue a execução e regência, um segundo dentro do terceiro. E, claro, o terceiro do terceiro é constituído pela composição, improvisação e aquilo que chamei de inteligência musical: análise, história e estética da música, educação musical, e semiótica da música (vide Figura 1). Tanto o pensamento contido numa obra como o pensamento de toda e qualquer análise da estrutura ou do significado dessa obra são formas semióticas, produção de conhecimento. Mas a clareza dessa concepção e suas implicações necessárias nos vários domínios da música só é possível por meio do instrumental que a semiótica da música oferece. É a metodologia semiótica que caracteriza a semiótica da música dentre outras teorias e sistemas de análise musical. Figura 1 — Estrutura dos campos de análise da teoria semiótica da música proposta pelo autor (vide Martinez 1997 ou 2001, 80-191).

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Ciência e imaginação em Le Sacre Como aplicação e exemplificação das redes de pensamento e significado que a música gera nos três campos acima, é interessante tomar uma obra, seminal para a arte do século XX, que neste ano completou 90 anos. Em 29 de maio de 1913, estreiou no Théâtre des Champs-Elysées a Sagração da Primavera, onde três grandes criadores — Stravinsky, Nijinsky e Roerich — materializaram um complexo sistema de significações. Le Sacre, o resultado dessa combinação multimídia de música, coreografia, cenário e figurino, representa um mundo de interrelações de significados, uma espécie de unwelt ou ambiente semiótico, onde a possível etnologia de um ritual pré-cristão de adoração à terra e de sacrifício em favor de Jarilo, o deus da primavera, se mescla com o projeto artístico de recriar não uma encenação desse ritual, mas ritualizar, no que seria o espaço do ballet, um espetáculo de um caráter nunca antes visto ou ouvido. A concepção dessa obra está num cruzamento surpreendente de signos. De acordo com Stravinsky, a idéia do ritual lhe apareceu num sonho (terreno fértil de significações), em 1910: “Eu sonhei com uma cena de um ritual pagão no qual uma virgem é escolhida para o sacrifício de dançar até a morte” (Stravinsky in Hill, 2000: 3). Para realizar esse projeto, 90


Stravinsky solicitou a colaboração de um cientista e artista igualmente notável, Nikolai Roerich. Trata-se de um dos primeiros arqueólogos russos, assim como um etnólogo especialista em tradições eslavas précristãs. Roerich foi também um destacado pintor (e pacifista), tendo concebido os cenários e os figurinos da Sagração. Foi portanto por meio de diálogos entre a arte e a ciência que esses dois mentores conceberam uma obra capaz de afrontar as heranças saturadas do romântismo e das concepções wagnerianas numa forma completamente original. No início do século XX, contrariamentre ao nacionalismo que havia apelado para um uso direto e simplista do folclore, Roerich pretendia um retorno ao universo eslavo primitivo. Por meio de novas ciências, como a arqueologia e a etnologia, se poderia efetuar um salto na modernidade, recusando o romantismo pela recriação de um passado remoto. Mas esse projeto não poderia ser executado pela simples representação desse passado, tal como na tradição dos ballets românticos. O projeto de Stravinsky se inseria na concepção de Diaghilev de um “Mundo das Artes”, mir iskusstva (vide Taruskin 1982: 72), uma obra concebida como uma realidade artificial criada não apenas a partir da imaginação do artista, mas também pela inseminação de dados resultantes de pesquisas científicas, tais como as conduzidas por Roerich. Assim, a Sagração não foi pensada como uma mímese de um ritual eslavo, mas a realização de um ritual em música e dança. Isto é, a Sagração, antes de representar a imagem de um ritual é ela mesma a estrutura de um ritual (vide Bransdsletter 1998, Zenck 1998). No universo da dança moderna ocidental, a coreografia de Vaslav Nijinsky (1890-1950) para a Sagração da Primavera constitui uma ruptura equivalente àquela que Stravinsky introduz com sua composição. A representação de um ritual pagão da antiga Rússia é realizada musicalmente por Stravinsky com uma abordagem orquestral de vigor e grande complexidade rítmica e harmônica, enquanto que Nijinsky, recusando em sua coreografia a técnica clássica do ballet, exige movimentos angulares, posições inovadoras dos pés e joelhos, e compõe uma abordagem “sinfônica” dos grupos de bailarinos que se contrapõe à orquestração de Stravinsky. Depois do memorável escândalo de sua estréia, a coreografia de Nijinsky quase se perdeu, abandonada por décadas. Foi recuperada por um trabalho arqueológico surpreendente realizado por Millicent Hodson e Kenneth Archer (vide Hodson 1996), mais uma vez, ciência e arte dialogando. A reconstrução da coreografia de Nijinsky consistiu num desvendar minucioso de ícones, índices e símbolos, vestígios da coreografia original. Em 1987, graças ao trabalho de Hodson e Archer em conjunto com o Joffrey Ballet, foi possível a remontagem da Sagração. Em Helsinki, em 1995, tive a oportunidade de assistir a duas 91


apresentações dessa reconstrução, a terceira montada no mundo, com o Ballet Nacional da Finlândia e a Orquestra da Ópera de Helsinki, regida por Markus Lehtinen. Não tenho dúvidas que a impressão dessas performances magníficas lançaram as sementes da atual pesquisa.

Le Sacre e as técnicas stravinskianas de representação Cabe aqui verificar como Stravinsky contrapôs ao conhecimento arqueológico de Roerich estruturas musicais que não remetem de forma simplista e direta ao folclore russo. A informação etnomusicológica pesquisada por Stravinsky está de tal forma amalgamada na sua linguagem que não há nenhuma dificuldade em escutá-la como música pura, como Stravinsky defendeu alguns anos após sua estréia pela companhia de Diaghilev. Mas o fato é que a sua concepção constituiu realmente um projeto representacional, realizado com o domínio técnico de quem se tornaria um dos primeiros mestres da metalinguagem musical no século XX. O tema da obra, conforme descrito por Stravinsky (numa tradução do russo de Boucourechliev 1987: 62), é o seguinte: Primeiro Ato (dia): O Beijar a Terra A celebração da primavera. Ela ocorre nas montanhas. Os gaiteiros tocam e os homens jovens tiram a sorte. A anciã entra. Ela conhece os mistérios da natureza e como predizer o futuro. As jovens com as faces pintadas, vindas do rio, entram em uma fila única. Elas dançam a dança da primavera. Os jogos começam. O Khorovod da primavera. As pessoas se dividem em dois grupos que se opõem. A procissão sagrada do homem muito sábio e muito velho interrompe os jogos da primavera. As pessoas param e tremem diante do grande ato. O homem velho abençoa a terra primaveril. O beijar a terra. As pessoas dançam apaixonadamente sobre a Terra, santificando-a e se tornando um com ela. Segundo Ato (noite): O Grande Sacrifício As donzelas realizam rituais secretos, formando círculos. Uma delas será o sacrifício prometido. A escolhida será aquela que for pega por duas vezes em seguida no círculo fechado. As donzelas exaltam a vítima escolhida numa dança marcial. Os ancestrais são envocados. A Vítima 92


Escolhida é confiada ao Velho Sábio. Em sua presença ela executa a grande dança sagrada — O Grande Sacrifício. A abertura da peça, ainda com as cortinas fechadas, vai do início da partitura até o o final do número [12].2 Trata-se do célebre solo de fagote na região aguda, com uma melodia folclórica da Lituânia que Stravinsky elabora de forma magnífica (extraída de Juskiewicz, Melodje ludowe litewskie [Canções da Lituânia], nº 157). Esta melodia está em modo eólio hexatônico, com a omissão do VI grau. Uma alteração no segundo compasso de [2] sugere uma modulação para um frígio modificado. O acompanhamento, no entanto, implica por um lado numa ambigüidade entre o maior e o menor; por outro, em cromatismo (vide Hill 2000: 60-1). A orquestração se expande progressivamente, em diversas camadas, incorporando um motivo novo no compasso 1 de [9], apresentado pelo solo de oboé. Stravinsky conduz a introdução para uma complexidade polifônica máxima em [11]. Um retorno brusco ao tema inicial do fagote ocorre em [12], a seguir os pizzicatos dos violinos antecipam a estrutura rítmica da próxima parte, Semioticamente, pode-se afirmar que essa introdução faz referência ao “despertar primaveril da natureza” (Boucourechliev, 1987: 74). Em primeiro lugar, Stravinsky compôs, a partir da notação sumária de Juskiewicz, uma referência icônica (imagem) aos gaiteiros, tanto pelo timbre particular do fagote na tessitura aguda como pela reconstituição do caráter irregular e ornamental de melodias folclóricas autênticas. Referências cujo objeto pode ser identificado como o dudki, instrumento eslavo de palheta dupla, empregado em celebrações de casamento e da primavera. Signos icônicos do dudki aparecem em toda a obra. Do ponto de vista da forma e texturas da abertura, temos um diagrama musical desse despertar, inicialmente uma única linha melódica que progressivamente se expande polifonicamente e se desenvolve em uma multiplicidade de figuras rítmicas sobrepostas em [11]. Essa estrutura se assemelha a um despertar progressivo da natureza, onde o renascer das plantas e a retomada da vida exterior por parte das pessoas e animais se manifesta de modo cada vez mais intenso, irrompendo da neve e das águas congeladas, tal como

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Números das partes de ensaio tal como constam na partitura orquestral completa editada pela Dover, 1989. Os sub-títulos de cada dança foram mantidos em suas formas originais em inglês e francês, já que Stravinsky os escolheu cuidadosamente para que representassem o mais acuradamente possível seu projeto composicional.

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ocorre na primavera em solo russo. Trata-se portanto de um signo icônico de segundo nível, ou diagrama (vide Martinez 1996). A coreografia começa em The Augurs of Spring (Dances of the Young Girls) – Les augures printaniers: danses des adolecents, realizada sobre os acordes repetidos, construídos por uma sobreposição de tríades (Fbm e Cb7 sem a fundamental). Aqui o leitor deve remeter à análise das estruturas rítmicas e formais realizada por Pierre Boulez (1995). Um outro movimento rico em referências metalingüisticamente absorvidas é Spring Rounds ou Rondes printanières, a quarta dança do primeiro ato. Em [48], com um andamento de semínima marcada em 108 e a indicação “tranquilo”, se inicia as rondas primaveris. De acordo com Boucourechliev (1987: 74), trata-se de um Khorovod, uma canção coral que conduz a coreografia. Neste caso, tudo indica que Stravinsky o tenha elaborado a partir de dois temas que constam da coleção Melodje ludowe litewskie, de Juskiewicz (vide Taruskin 1980). Estes seriam as canções 249 e 271 (vide Hill 2000: 38), reelaboradas numa única melodia, apresentada pelo clarinete pícolo e clarinete em si bemol. A seguir, ainda nas Rondes printanières, em quatro de [49], aparece no oboé, clarinetes e fagote uma versão de Nuka Kamushka, canção folclórica eslava associada ao surgimento da primavera, acompanhada por acordes pesantes das cordas. Stravinsky derivou os motivos desse tema a partir da melodia que consta no nº 50 da coleção de canções folclóricas russas de Rimsky-Korsakov (vide Taruskin 1980: 513-15). A melodia é transcrita claramente nos esboços e colocada separadamente, como um modelo. Nu-ka kumushka é uma semitzkoe, uma canção associada ao semik, a quinta-feira da sétima semana após a primeira lua cheia da primavera. A canção é empregada para a celebração dos primeiros brotos verdes da primavera, cuja semana é tradicionalmente conhecida como “semana verde”. Segue-se o Ritual of the Two Rival Tribes – Jeux des cités rivales, e depois Procession of the Oldest and the Wisest One (the Sage) – Cortège du Sage e sua benção no The Kiss of the Earth (the Oldest and the Wisest One) – Adoration de la terre (Le sage), para finalmente concluir a primeira parte com a complexa e climática partitura de Dancing Out of the Earth (or The Dance overcoming the Earth) – Danse de la terre.

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Referências musicais aparecerão novamente na segunda dança do segundo ato, Mystic Circle of the Young Girls – Cercles mystèrieux des adolecentes. Os temas que Stravinsky usou aqui foram mais de uma vez referidos como aparentemente folclóricos, ainda que não se tenha localizado a fonte. No entanto, Taruskin demonstra que o tema da flauta em 5 de [93] é um tipo de melodia russa empregada tipicamente em casamentos. Sua estrutura é semelhante a outros Khorovods de casamento do tipo utushka (Tarunskin 1980: 519-23). A referência à uma dança cerimonial de casamento é pertinente na caracterização do ritual, que pode ser pensado como o enlace da escolhida com o deus da primavera, Jarilo. Tipicamente, Stravinsky não emprega o material melódico de maneira crua, mas o transforma de diversas maneiras, fragmentando-o, re-arranjando a sua disposição interna em novas formas melódicas. Na quinta dança do segundo ato, Ritual Action of the Ancestors – action rituelle des ancêtres, Stravinsky faz referência a tradições folclóricas que são diretamente ligadas ao tema da Sagração. Trata-se das vesnyanka, invocações rituais que chamam a primavera. São cantos corais, executados por jovens em pontos altos (como em cima dos telhados), para que essas invocações sejam levadas a longas distâncias e que posssam ser ouvidas pelo deus da primavera. O objetivo é fazer com que as árvores e plantas floresçam, os rios se descongelem, e a natureza desperte depois do inverno. As vesnyankas não são consideradas canções, mas ações rituais. De acordo com Taruskin, o tema apresentado pelos trompetes em [132] e repetido em [134] e [138] pertence claramente a esse grupo de melodias invocatórias. Não aparece nos esboços da Sagração uma melodia que se possa identificar com as vesnyankas publicadas em obras de etnomusicologia russa. Uma análise detalhada de Taruskin, porém, indica claramente que se trata de temas derivados de vesnyankas autênticas (vide Taruskin 1980: 525-30). Além disso, essas invocações ocorrem na região ocidental da Rússia, nas fronteiras com a Bielo-Rússia e a Ukrania, ou seja, onde Ustilug, a residência de Stravinsky, estava localizada. É possivel que Stravinsky tenha ele mesmo recolhido diretamente cantos vesnyanka originais que nunca foram transcritos por estudiosos. Do ponto de vista da dramaturgia da Sagração, a vesnyanka representa a ação ritual dos ancestrais, a invocação a Jarilo para que faça despertar a natureza. Em troca, a escolhida dançará até o fim de suas forças, isto é, perecendo pela dança, ela será oferecida a Jarilo.

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Para a última cena, Sacrificial Dance (The Chosen One) – Danse sacrale (l’elue), Stravinsky compôs um movimento em forma de rondó. A forma clara garante a unidade apesar da complexidade dos motivos e métricas irregulares. Uma análise detalhada de Boulez (1995: 119-129) revela dois refrões, duas coplas e uma coda sobre o refrão. Os refrões são monorrítmicos, constituídos por três motivos com durações variáveis em semicolcheias, resultando numa métrica extremamente quebrada. A primeira copla, em [149], possui elaborações rítmicas tanto na vertical (acordes) como na horizontal (figuras cromáticas nos trombones). A segunda copla, em [174], consiste numa polirritmia horizontal. A coreografia consiste num solo da escolhida, que dança até a morte. Não cabe aqui uma análise da intersemiose música/dança, mas deve-se lembrar que a concepção de uma dança que prossegue até a exaustão total não é um tema fantasioso dentro das tradições eslavas. Muitas vezes, nas celebrações de casamento tradicionais, os convidados dançam literalmente até cair. O que Stravinsky propõe, realizado de forma magistral pela coreografia de Nijinsky, é a sacralização dessa prática. O sacrifício de uma comunidade para a realização de um bem comum, que consiste na preservação da natureza e seus ciclos de vida e morte. Metalinguagem e metáforas em música Alguns anos depois da estréia da Sagração, Stravinsky passou a afirmar que o único tema folclórico que empregou foi a melodia da Lituânia tocada pelo fagote no iníco da obra. Estudos recentes, como os mencionados acima, provam que diversos temas folclóricos foram empregados por Stravinsky, mas em geral bastante modificados, de forma que não se pode localizar citações ou orquestrações diretas. Em parte, o compositor tinha razão em argumentar que praticamente só havia música original em Le Sacre, pois seus procedimentos foram sobretudos metalingüísticos. Ele transformou os cantos rituais eslavos ao ponto de se tornarem metafóras dentro de numa nova linguagem, ou mais precisamente, referências alegóricas, formas complexas de representação musical baseadas em signos icônicos. Uma vez que os dados da composição foram expostos acima, cabe aqui verificar como a teoria semiótica da música que proponho lida com essas questões. Metáforas, para Peirce, são signos icônicos de terceiro nível ou hipoícones. Essa concepção torna claro como o modo de operar do nível metafórico dos hipo-ícones em música favorece a queda do mito da obra única e original. A música da maior parte das culturas desenvolve-se numa 96


contínua reelaboração de tradições, práticas e obras precedentes. Esse processo, exercido intensamente, pode até dissolver o conceito de autoria. Não cabe nesta parte final do artigo uma abordagem exaustiva da metalinguagem musical, mas sim discorrer sobre os principais modos de uma espécie de representação musical icônica que se caracteriza por fazer interagir um signo (e seu conjunto referencial) com outros signos próprios daquela composição. De acordo com Peirce, metáforas são hipo-ícones que “representam o caráter representativo de um Representamem, traçando-lhe um paralelismo com algo diverso” (CP 2.277). Metáforas resultam, portanto, de um processo duplo: 1. a representação do caráter representativo de um signo e 2. a interação desta primeira representação com outro signo de caráter diverso. Esse processo pode se manifestar numa variedade de combinações distintas. Logo, as diferentes maneiras de se realizar a representação do caráter representativo de um signo e as diferentes maneiras de se traçar um paralelismo com algo (outro signo) diverso, estabelecem uma rede de subníveis dos signos icônicos metafóricos. Hipo-ícones de terceiro nível em música resultam da apropriação intencional de uma determinada composição ou parte de composição empregada numa nova obra. Termos como paráfrase, paródia, citação, metalinguagem, neo-classicismo e outros “neos”, designam processos musicais que, semioticamente, derivam da representação metafórica. Em 1991, postulei que as metáforas em música podem ser divididas em três espécies: 1. Paráfrases, 2. Citações, 3. Referências Alegóricas (vide Martinez 1991: 114-120; 1996: 81-83; 1997 ou 2001: 129-135). Paráfrases musicais, devido a sua configuração semiótica, podem ser consideradas como uma primeira espécie de metáfora. Partem de uma representação icônica e interagem com aspectos qualitativos e formais pertencentes a sua nova disposição. Trata-se de um processo tradicional de composição, quase a imitação de uma obra modelo. Um exemplo são as missas paródia do século XVI, como a Missa Malheur me bat, de Josquin Des Prez. Tratam-se de missas que se estruturam como paráfrases, reinterpretanto uma obra anterior, a qual serve como modelo e da qual motivos melódicos, elementos fugais e mesmo a estrutura geral é imitada numa nova obra. Na primeira metade do século XX, compositores como Stravinsky, Hindemith, Poulenc e Prokofiev, entre outros, pretendendo resgatar a clareza e economia das formas clássicas, compuseram obras nas quais o caráter metalingüístico se destaca. Esta concepção foi chamada de neo-classicismo. O trabalho composicional de 97


Stravinsky após a Sagração da Primavera foi sempre paradigmático neste sentido. A partir de Pulcinella (1919), baseada no estilo de Pergolesi e de seus contemporâneos, até The Rake's Progress (1951), Stravinsky explorou paráfrases de faixas da história. Para ele, “o único comentário verdadeiro sobre uma peça musical é outra peça musical” (Stravinsky in Moraes, 1983: 185). O problema das citações em música é uma questão que se pode colocar como representação metafórica de segunda espécie. Um fragmento reconhecível de uma certa peça quando enxertado em outra composição faz com que haja uma interação de significados. A citação deve apresentar as mesmas qualidades e estruturas que o original. Porém, ainda que seu modo de representação seja icônico, sobressai o caráter indicial do original, destacando a individualidade existencial da obra citada. Do confronto da representação de uma representação com outros elementos ou mesmo outras citações emerge um terceiro significado. O interpretante de uma metáfora leva em consideração os dois conjuntos de signos que atuam um sobre o outro. A ação da metáfora musical pressupõe conhecimento dos dois universos, colocados a interagir. Por esta razão que a metalinguagem aflorou na música do século XX, no qual a familiaridade de uma vasta porção de obras e estilos anteriores propiciou esta interação sincrônica. Explorada intensamente na década de 70, a citação foi elevada à categoria de linguagem. Charles Ives e Luciano Berio destacam-se entre os compositores que fizeram uso intenso de citações. Uma das mais conhecidas obras metalingüísticas de Berio é o terceiro movimento – In ruhig fliessender Bewegung – da Sinfonia para oito vozes e orquestra. Composta em 1968, o compositor baseia sua obra num conjunto de referências musicais e literárias extremamente complexas e integradas. Os primeiros dez compassos apresentam quatro citações distintas. Trombones e tuba e a seguir as cordas, executam um fragmento da quarta parte dos Cinco Estudos para Orquestra, de Schoenberg. Sobrepostos, trechos da Quarta Sinfonia de Mahler (flauta, percussão e cordas) com Jeux de Vagues (madeiras, harpa, tímpanos e cordas), segunda parte de La Mer de Debussy. Por outro lado, Berio toma uma peça de Samuel Beckett, The Unnamable, como base literária, conduzindo pelas vozes os comentários do artista que se torna prisioneiro de sua própria arte, limitando-se a fazer citações e mais citações. Trata-se de uma estrutura metafórica complexa que faz referência à própria história da sinfonia, na qual o significado de seus vários fragmentos adquire um caráter completamente novo.

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Há, nesta linha de raciocínio, uma terceira espécie de metáfora, que denominei referência alegórica. Ocorre quando o caráter representativo do signo representado não é icônico nem indicial, mas simbólico. Neste caso, tomam-se características típicas de um certo gênero ou forma musical como representação, que, em seguida, é forçada a interagir com outros signos, dando origem à metáfora. Não se trata de uma citação textual e, porisso, não remete a uma obra determinada, mas sim a um conjunto de disposições particulares consagradas pelo uso ou por convenção. Paródias e pastiches evidenciam fortemente o caráter representativo original, destacando-os por sua exacerbação. A capacidade satírica que esta espécie de metáfora desperta no ouvinte bem informado é de grande utilidade para o compositor, de acordo com o gênero musical em questão. Pode-se pensar, por exemplo, na técnica e no estilo do bell canto como metáfora da ópera tradicional, tal como empregado por John Cage em Aria. Escalas exóticas podem fazer referência à música de outras culturas, no entanto, deslocadas de seu contexto tornam-se clichês, pois não se configuram de fato de acordo com seu sistema original. Um exemplo está nas Metamorfoses Sinfônicas de Paul Hindemith, baseada em temas de Carl Maria von Weber. No segundo movimento, Turandot scherzo, Hindemith fez uso de uma melodia chinesa transcrita no dicionário de J.J. Rousseau. Além da perda inevitável que essa melodia sofreu no processo de transcrição, Hindemith a transforma, orquestrando-a na forma de passacaglia; a qual, por sua vez, é justaposta a uma fuga cujo sujeito apresenta características do jazz (uma outra alegoria). Deve ficar claro que as referências alegóricas que permeiam a Sagração da Primavera não resultam em interpretantes de natureza da paródica. O projeto estético de Stravinsky era outro. Por meio da cuidadosa transformação do material folclórico na linguagem que Stravinsky forjou para a Sagração, se obteve uma construção onde o tempo mítico é materializado pela complexa elaboração do fluxo musical, assimétrico e imprevisível. Assim, o ritual de sacrifício a Jarilo é presentificado pelas características internas da obra, isto é, a estrutura da Sagração é um diagrama, um signo icônico do ritual. Mas é pela manipulação de material etnomusicológico que a autenticidade se estabelece. Não de uma maneira simplista, mas pela absorção dos temas eslavos que, por um lado, não são de fato citados e, por outro, tão pouco parafraseados. É o caráter semiótico dessas melodias que interessa Stravinsky e ele as insere na sua linguagem pessoal, politonal, polirrítmica, percussiva. Os temas foram escolhidos e estrategicamente incorporados a obra pelo seu potencial de significado. A sobreposição das estruturas étnicas com as formas criadas 99


por Stravinsky resulta num amálgama de qualidades peculiares, que operam como uma metáfora de terceiro nível, ou referência alegórica. Em vista do centenário… Procurei demostrar neste artigo como a semiótica da música pode colaborar para a produção de conhecimento musical. Esse argumento é estabelecido a partir da própria noção de que tanto o pensamento musical como o musicológico são necessariamente formas de semiose, dissiminadas em redes de interpretação, onde qualidades e estruturas acústicas são tão significativas como os símbolos estabelecidos por uma determinada cultura e sua história. A Sagração da Primavera é uma obra particularmente rica para ser analisada neste contexto, pois resulta de um cruzamento entre arte e ciência , sensibilidade e técnica, primitivismo e contemporaneidade. Como resultado, a Sagração oferece um rico leque de possíveis interpretantes, da música absoluta à música representativa. Interpretantes que sempre podem desdobrar novas possibilidades de experiéncia estética e de conhecimento, desde que existam ouvintes atentos e com capacidade para imaginar, isto é, com capacidade de produzir em suas mentes novas relações semióticas. E isso não quer dizer que uma obra como a Sagração não possa ter conseqüências práticas. Estou convencido que sim, especialmente numa época como o século XXI que se inicia, onde a natureza exige um sacrifício das ambições humanas, novas formas de saber e viver, para que ela própria e nós nela possamos continuar existindo. Referências bibliográficas BOUCOURECHLIEV, André. Igor Stravinsky, trad. Martin Cooper. New York: Holmes & Meier, 1987. BOULEZ, Pierre. Apontamentos de Aprendiz. Paule Thévenin (ed.), trad. de Stella Moutinho et alli. São Paulo: Perspectiva, 1995. BRANDSTETTER, Gabriele. Ritual as Scene and Discurse: Art and Science Around 1900 as Exemplified by Le Sacre du Printemps. The World of Music 40(1), 1998, p. 37-59. CRAFT, Robert (ed.) Stravinsky, Selected Correspondence, 3 vols. London: Faber & Faber, 1982. _______________Stravinsky: crônica de uma amizade, trad. Eduardo F. Alves. São Paulo: Difel, 2002. 100


HILL, Peter. Stravinsky: The Rite of Spring. Cambridge: Cambridge U.P., 2000. HODSON, Millicent. Nijinsky's Crime Against Grace: Reconstruction Score of the Original Choreography for Le Sacre Du Printemps (= Dance & Music Series, nº. 8). New York: Pendragon, 1996. MARTINEZ, José Luiz. Música & Semiótica: um estudo sobre a questão da representação na linguagem musical. Dissertação de mestrado não publicada. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1991. ___________________Icons in Music: a Peircean Rationale. Semiotica 110(1/2), 1996, p.57-86. ___________________Semiosis in Hindustani Music. Imatra: International Semiotics Institute, 1997. ___________________Semiosis in Hindustani Music, 2ª edição revisada. Delhi: Motilal Banarsidass, 2001. MORAES, J. Jota. O que é Música. São Paulo: Brasiliense, 1983. PEIRCE, Charles Sanders. The Collected Papers, 8 vols. Hartshorne, Charles ; Weiss, Paul; e Burks Arthur W. (eds.). Cambridge: Harvard University Press. Referências aos Collected Papers of Charles Peirce são indicadas por (CP [volume].[parágrafo]). 1938-1956. STRAVINSKY, Igor. The Rite of Spring in Full Score. New York: Dover, 1989. STRAVINSKY, Igor & CRAFT, Robert. Conversas com Igor Stravinsky. Trad. de Stella R. O. Moutinho. São Paulo: Perspectiva, 1984. TARUSKIN, Richard. Russian folk melodies in The Rite of Spring. Journal of the American Musicological Society, 23, 1980, p. 501-43. _________________From Firebird to The Rite: Folk Elements in Stravinsky’s Scores. Ballet Review 10(2), 1982, p. 72-87. ZENCK, Martin. Ritual or Imaginary Ethnography in Stravinsky’s Le Sacre du Printemps? The World of Music 40(1), 1998, p. 61-78.

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Vídeografia: STRAVINSKY, Igor; NIJINSKY, Vaslav; ROERICH, Nicholas (1989). Le Sacre du Printemps with Joffrey Ballet, direção de Robert Joffrey; Orquestra Nacional de Praga, regente Allan Lewis; reconstrução de Millicent Hodson e Kenneth Archer. Produção de Judy Kinberg e Thomas Grimm. New York e Copenhague: WNET e Danmarks Radio. [6o minutos, VHS]

José Luiz Martinez. Doctor of Philosophy em musicologia na Universidade de Helsinki (1997), com a tese Semiosis in Hindustani Music, publicada pelo International Semiotics Institute. Semioticista da música e compositor. Suas principais áreas de pesquisa incluem semiótica musical peirceana, música clássica da India e música contemporânea ocidental. Como compositor, tem participado de festivais de música contemporânea, com criações de música original para dança e esculturas musicais. É pesquisador associado ao Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP (apoio FAPESP), coordenando a Rede Interdisciplinar de Semiótica da Música e a lista de discussão Musikeion .

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Práticas Interpretativas e a Pesquisa em Música: dilemas e propostas Felipe Avellar de Aquino Resumo: Este trabalho faz referências à trajetória da sub-área de práticas interpretativas na pós-graduação no Brasil. O autor defende a aceitação da produção artística como atividade intelectual, propõe maior interação entre as quatro sub-áreas de música, como também elabora propostas de políticas para atuação na área, de acordo com as diretrizes da CAPES. Estas propostas são lançadas para a comunidade acadêmica com o intuito de fomentar o debate em busca de políticas concretas para a área de música. Palavras chave: Pós-graduação. Música. Práticas interpretativas. Abstract: This article makes reference to the development of performance as a field within the graduate programs in Brazil. At the same time, the author defends that performance should be accepted as an intellectual activity. He also proposes more interaction between the four sub-areas of music, as defined by CAPES, and suggests new directions to the development of music, both as art and academic area. Keywords: Graduate programs. Music. Performance.

A trajetória da sub-área de práticas interpretativas dentro do cenário da pósgraduação no Brasil é bastante peculiar1. A mesma passou por estágios bem distintos, sendo inicialmente tratada com descrédito dentro da própria área de música. No entanto, as atividades de performance encontram-se atualmente em seu melhor e mais sólido momento, com amplas perspectivas de crescimento e consolidação. Relendo o texto do Prof. Marcelo Guerchfeld, publicado nos Anais do IX Encontro da ANPPOM (Rio de Janeiro - 1996), que tão bem relata a situação da atividade de performance naquele momento, podemos verificar que houve uma notória alteração nas diretrizes para atuação na sub-área e, acima de tudo, que esta nova política foi estabelecida graças a mudança de postura daqueles que compõem a área de música no país. Neste artigo, o 1

O presente trabalho foi apresentado na mesa-redonda da sub-área de Práticas Interpretativas no XIV Congresso da ANPPOM, cuja temática foi centralizada na produção de conhecimento e políticas para a pesquisa em música.


Prof. Guerchfeld descreve claramente a linha divisória, então existente, entre o grupo dos pejorativamente chamados de “teóricos” – formado pelos musicólogos, compositores e educadores musicais – e os denominados, na época, de “inarticulados” – referindo-se aos intérpretes. A situação da subárea de performance era de tamanho descrédito que este chega a clamar por uma política de valorização da produção artística ao afirmar que “os artistas intérpretes não precisam ingressar na Academia pela porta dos fundos” (Gerschfeld, 1996, p.65). Apesar da existência, ainda que isolada, de alguma resistência à aceitação da produção artística como atividade intelectual, temos que reconhecer que esta discussão já alcançou um outro estágio. O atual debate caminha de forma distinta, pois é o momento de integração entre as sub-áreas de práticas interpretativas, musicologia, composição e educação musical, com vistas ao fortalecimento da área de música junto ao meio acadêmico e às agências de fomento. Vale destacar que estas discussões não são exclusivas do cenário musical brasileiro, uma vez que outros países já passaram por estes mesmos debates, com resultados proveitosos para a definição de políticas mais concretas para a área. Portanto, podemos afirmar que já existe um certo consenso de que a produção artística, como atividade intelectual, é resultado de intenso estudo e reflexão prévia. Da mesma forma que a composição musical requer o conhecimento das linguagens, processos técnicos e estilos composicionais, a execução de um concerto ou recital, como ato de recriação da partitura, demanda um longo período de preparação. Infelizmente, para os leigos, a atuação do músico no palco nem sempre transmite esta idéia. No entanto, reflexão, análise, pesquisa musicológica, além, obviamente, do estudo dos problemas técnicos inerentes a cada instrumento, são etapas essenciais para se alcançar o nível de excelência artística. Paralelo ao que ocorre nos projetos de pesquisa, o produto final da produção artística está diretamente relacionado ao nível e aprofundamento das análises, bem como dos estudos previamente realizados. Obviamente, uma pesquisa desenvolvida de forma superficial, ou seja, sem o devido aprofundamento, embasamento ou rigor científico, produzirá resultados inexpressivos. Neste sentido, a CAPES já vem valorizando a atuação e o papel da sub-área, uma vez que o Prof. Dr. Celso Giannetti Loureiro Chaves, representante da área de Artes/Música,

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afirma, nas diretrizes para abertura de novos programas de pós-graduação em artes e música, de junho de 2002, que a produção científica “deve estar equilibrada entre produção artística, bibliográfica e técnica”. Além disso, este documento é explícito ao estabelecer que “a área de Artes/Música considera que a produção artística é parte principal da produção intelectual dos Programas da área” (Chaves, 2002). O papel dos que atuam na sub-área de práticas interpretativas – notadamente dentro dos programas de pós-graduação – é, certamente, de buscar o ponto de equilíbrio entre produção artística e produção bibliográfica, uma vez que devemos estabelecer níveis de excelência em execução instrumental e, ao mesmo tempo, oferecer os fundamentos teóricos, técnicos e interpretativos necessários para o desenvolvimento desta atividade. Deste modo, a publicação, em periódicos nacionais e internacionais, de artigos na sub-área tem crescido de forma inequívoca. Isto pode ser observado tanto em número quanto na qualidade e solidez das abordagens, o que atesta a consolidação das práticas interpretativas junto ao meio acadêmico. O incremento da produção bibliográfica ajudou a derrubar o mito, injustamente criado, de que o interprete não tem capacidade de reflexão nem de articular suas idéias. Ademais, a qualidade de muitas destas publicações vem comprovar a importância da visão do intérprete em relação ao seu repertório. É verdade que muitos criticavam a visão analítica ou musicológica do intérprete. Hoje, no entanto, há um consenso sobre a relevância da abordagem analítica voltada para interpretação, ou seja, a importância da aplicação de ferramentas analíticas capazes de subsidiar e oferecer soluções práticas para os problemas interpretativos. O crescimento da produção bibliográfica na sub-área de práticas interpretativas segue, na verdade, o que já vem a ser uma tendência internacional. No prefácio do livro The Practice of Performance: Studies in Musical Interpretation, John Rink (1995, p. ix) ressalta o crescimento de estudos acadêmicos na área de performance, incluindo neste espectro, a literatura a respeito da prática de performance histórica, psicologia de performance, relação entre análise e performance, e interpretação musical. Na mesma obra, William Rothstein (1995, p.217), no capítulo intitulado “Analysis and the act of performance” ressalta o crescente interesse acadêmico por parte dos teóricos em relação à performance musical. Mais especificamente, de como a análise pode

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oferecer ferramentas e alternativas para as questões interpretativas. Este deixa claro, no entanto, que as especulações analíticas não eximem o intérprete das decisões interpretativas. No cenário internacional, Malcolm Bilsom, Paul Badura-Skoda, John Rink, Joel Lester, Janet Schmalfeldt, David Witten, dentre outros, são nomes que têm contribuído de forma eficaz para a produção bibliográfica de estudos voltados para a área de performance. No Brasil, da mesma forma, vários intérpretes-pesquisadores têm prestado importante contribuição para a consolidação da performance musical como atividade acadêmico-científica. Os trabalhos até aqui publicados evidenciam o crescimento e a solidez da pesquisa, como também atestam a consistência da produção bibliográfica e artística na sub-área de práticas interpretativas. Alguns outros indicadores apontam para o fortalecimento das práticas interpretativas no Brasil, como o lançamento de um periódico específico da sub-área e a realização dos Seminários Nacionais de Pesquisa em Performance Musical. A Per Musi – Revista de Performance Musical, da Universidade Federal de Minas Gerais, já alcançou o reconhecimento da comunidade acadêmica e os Seminários Nacionais de Pesquisa em Performance Musical, ocorridos em Belo Horizonte e Goiânia, estão se credenciando como um importante fórum de discussões da sub-área, o que nos leva inclusive a sugerir a estruturação de uma associação nacional de estudos e pesquisas em práticas interpretativas como forma de consolidação definitiva da sub-área junto às agências de fomento e ao meio acadêmico. Interação entre as sub-áreas de música É inevitável reconhecer o caráter multidisciplinar da prática, do ensino e da pesquisa em música. Se o desenvolvimento pleno da atividade requer uma espécie de simbiose com outras áreas de conhecimento, esta, obviamente, deve começar com a plena integração entre as quatro sub-áreas de música: composição, educação musical, musicologia e práticas interpretativas. Apesar de alguns resquícios ainda existentes, é o momento de se decretar o fim de qualquer distanciamento entre as mesmas, pois é sempre pertinente lembrar a todos envolvidos na área – seja com atuação em pesquisa, educação ou performance – que a música é, em sua essência, uma

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atividade artística, e que jamais devemos nos distanciar desta premissa. Neste sentido, Palisca (1984a, p. 17) afirma que “mais do que nunca, precisamos desenvolver o pesquisador no músico e o músico no pesquisador”. Além disso, este salienta que “... tem sido um objetivo educacional integrar o conhecimento ao invés de dividi-lo em diversas disciplinas e sub-disciplinas nunca relacionadas umas com as outras” (Palisca, 1984b, p.155). Joel Lester vai além, ao ratificar que a performance está para análise assim como análise está para a performance. No artigo intitulado “Performance and analysis: interaction and interpretation”, Lester procura demonstrar que determinados aspectos interpretativos são essenciais para a análise e afirma que “os teóricos devem compreender o que eles analisam, especialmente quando o objetivo desta análise é iluminar os intérpretes” (Lester,1995, P.214). A integração entre composição e performance, por exemplo, abre oportunidade para o intérprete não apenas estar em contato com novas linguagens, estilos composicionais e técnicas de notação musical, como também permite o desenvolvimento de aspectos técnico-instrumentais específicos para a interpretação deste repertório. Da mesma forma, vários conceitos desenvolvidos por musicólogos transformam-se em ferramentas fundamentais para as decisões interpretativas. Através da plena interação entre as sub-áreas de música poderemos certamente formar intérpretes com melhor embasamento teórico, além de teóricos preocupados em oferecer soluções práticas para as mais diversas questões interpretativas. Portanto, para o melhor desenvolvimento da pesquisa em música no País, com vistas à integração entre as sub-áreas, sugiro que as agências de fomento, notadamente a CAPES e o CNPq, passem a priorizar os projetos de pesquisa que promovam a interação entre as quatro sub-áreas de música. No caso de integração com a sub-área de performance, especificamente, as agências de fomento devem procurar privilegiar as pesquisas que incluam, como produto final, além da publicação de livros ou artigos, a realização de concertos, recitais ou gravações. Laboratórios de Práticas Interpretativas Após tanto investimento na capacitação de pessoal na sub-área de práticas interpretativas, por parte das agências de fomento, é fundamental que

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sejam criados mecanismos que permitam alcançar um ponto de equilíbrio entre produção artística e produção bibliográfica. Apenas com o crescimento homogêneo destas duas vertentes da produção intelectual na área de música é que poderemos alcançar o nível de excelência tão almejado. Desta forma, como contribuição concreta, as Instituições de Ensino Superior devem passar a encarar seus auditórios, ou salas de concerto, como laboratórios de práticas interpretativas – equipamento fundamental para a formação do intérprete, aonde os músicos procuram aproximar ao máximo a situação de performance. O Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, preocupado com este aspecto da formação musical – e por considerar esta terminologia a que melhor representa o trabalho ali desenvolvido – instituiu recentemente o Laboratório de Práticas Interpretativas Prof. Gerardo Parente, local aonde são realizados recitais, seminários, recitais-palestra, aulas coletivas e master-classes. Este projeto inclui, além de sua expansão física, a instalação de um estúdio de gravação de áudio e vídeo, a fim de auxiliar os estudos e as atividades de performance. Portanto, é imprescindível que as agências de fomento passem a financiar, de forma consistente, o aparelhamento destes laboratórios de Práticas Interpretativas. Isto inclui a aquisição de instrumental – notadamente Piano de cauda – revestimento acústico, além de equipamentos de gravação de áudio e vídeo. Este tipo de ação irá, certamente, contribuir para elevar o nível de performance musical no país, como também viabilizar e incrementar a produção do registro da produção artística, na forma de CDs e DVDs.

Propostas para a consolidação da sub-área de Práticas Interpretativas Apesar do notório crescimento da sub-área de práticas interpretativas, temos que reconhecer que ainda não somos capazes de suprir as demandas do mercado de trabalho por pessoal devidamente especializado. Exemplo sintomático ocorre em nossas orquestras. Sempre que há a necessidade de revitalização desses conjuntos, com vistas a se alcançar um patamar de excelência, somos obrigados a recorrer a músicos de outros países, como foi o caso recente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e da Amazônia Filarmônica. Obviamente, se por um lado a presença destes músicos enriquece o cenário musical do país e traz oportunidades de intercâmbio e engrandecimento do meio musical, por outro, isto demonstra

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que nossas universidades não estão formando número suficiente de bons músicos para suprir as necessidades do mercado de trabalho. Ademais, se já alcançamos um excelente padrão no ensino e pesquisa em determinadas especialidades, isto não ocorre de forma homogênea em todo o país. Portanto, para o fortalecimento da área de música como um todo, é fundamental a descentralização dos cursos de pós-graduação, com a abertura de novos programas em outras regiões. Se observarmos a localização geográfica dos Programas de Pós-Graduação em Música, notamos que há uma concentração destes cursos em apenas seis estados: Bahia, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Portanto, geograficamente, existe uma aglutinação da produção de conhecimento na área de música no país. Afinal, como podemos conceber a idéia de que o Norte-Nordeste, que conta com um número significativo de doutores em plena atuação, com uma produção musical considerável, só possui um programa de pós-graduação, localizado na Bahia, que vem a ser o estado mais meridional da região? Por outro lado, é inegável que temos excelentes músicos em formação e em atuação em todo o país. Algumas Instituições de Ensino atuam como verdadeiros centros de excelência em determinados instrumentos. Porém, as diversas especialidades da sub-área de práticas interpretativas não têm se desenvolvido de forma homogênea, criando deficiências na formação musical. Por exemplo, como formar bons violinistas e violoncelistas sem que tenhamos violistas da mesma qualidade? Como o músico em formação vai obter a experiência necessária de música de câmera, notadamente em quarteto de cordas, essencial para sua formação, sem contar com a participação de pessoal com a mesma qualificação? É necessário, portanto, incentivar e viabilizar a formação camerística e orquestral dentro das IES, tanto nos cursos de graduação como de pós-graduação, como parte essencial da formação musical do intérprete. Desta forma, no atual estágio da sub-área de performance musical, é necessário que as Instituições de Ensino Superior, sob a liderança das agências de fomento, desenvolvam políticas específicas para a efetiva consolidação da sub-área. Estas, ao meu ver, devem priorizar os seguintes aspectos:

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1)

Maior valorização da produção artística discente no âmbito dos programas de pós-graduação;

2)

Criação de mecanismos que valorizem e incentivem a produção artística docente dentro das Instituições de Ensino Superior;

3)

Incentivo à produção de artigos, materiais didáticos e elaboração de compêndios sobre a técnica instrumental e interpretação musical.

Para viabilizar alguns destes aspectos, devemos discutir, inclusive, a idéia de se estipular cotas de bolsas de pesquisa especificamente para a subárea. Mesmo sem dispor dos dados específicos, e até mesmo pelo fato das outras sub-áreas já estarem estabelecidas a mais tempo, não é difícil deduzir que um maior número de bolsas de pesquisas é destinado para as sub-áreas de educação musical, composição e musicologia. Porém, se observarmos os números dos programas de pós-graduação, a sub-área de performance é, provavelmente a que mais cresce. Como constatamos anteriormente, podemos observar avanços na produção de estudos e artigos com perfil analítico voltados para a interpretação musical, porém, notamos que ainda existe uma enorme lacuna na publicação de compêndios e artigos sobre a técnica e pedagogia instrumental, que seria preenchida com a criação destas cotas. Além disso, levando-se em consideração a importância do registro da produção artística, reforço a idéia de que as agências de fomento devam priorizar os projetos de pesquisa, que incluam, como produto final, a gravação de CDs e DVDs, além, obviamente da publicação de livros ou artigos em revistas especializadas. Seguindo estas orientações, as Instituições de Ensino Superior devem, por sua vez, através das Editoras Universitárias, criar seus Selos de gravação, a fim de apoiar a difusão e divulgação da produção intelectual da sub-área de práticas interpretativas, além de auxiliar o intérprete nos encargos de produção e distribuição. De acordo com as diretrizes do representante da Área de Artes/Música junto à CAPES, que considera a produção artística como parte principal da produção intelectual na área, proponho que sejam estabelecidas discussões sobre a viabilidade de criação de um programa de fomento especificamente voltado para o desenvolvimento da produção artística. Desta forma, este

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programa consistiria na instituição de uma Bolsa de Produção Artística, inicialmente em caráter experimental, observando-se rigorosamente o mérito das propostas, a fim de se fomentar esta vertente da produção intelectual. As diretrizes de um programa desta natureza poderiam criar mecanismos para viabilizar projetos que hoje são ainda inviáveis ou de difícil execução como, por exemplo, os projetos que privilegiam o registro da produção musical brasileira do séc. XX, divulgação da música de novos compositores, gravação do repertório camerístico, dentre outros. Além disso, tal programa poderia tornar exeqüível a criação da figura do Conjunto em Residência, nos mesmos moldes do “Ensemble in Residence” comumente encontrado em Universidades Americanas. Estes conjuntos, além de desenvolver projetos similares aos acima mencionados, solidificariam a atividade de ensino e performance da música de câmera dentro das IES, além de realizar o trabalho de difusão do papel do intérprete na sociedade. A instituição de um programa de fomento à produção artística deve, no entanto, ser muito cautelosa a fim de não comprometer os importantes avanços alcançados na produção bibliográfica, uma vez que, como já foi dito, deve-se buscar o equilíbrio entre as duas vertentes da produção intelectual na área de música. Conclusão Se fizermos uma avaliação da produção de conhecimento na sub-área de práticas interpretativas nos últimos anos, temos que concordar de forma inequívoca com a afirmação de Gerschfeld (1996, p.65), que previa que “os artistas não precisam ingressar na Academia pela porta dos fundos”. No entanto, as políticas das agências de fomento para a pesquisa em música no país devem procurar promover uma maior integração entre as sub-áreas, além de criar mecanismos específicos para a efetiva consolidação da subárea de performance. Finalizando, cito mais uma vez Palisca (1984b, p.197), referindo-se à produção intelectual na área de música: “(we) want to produce musicianly scholars and scholarly musicians.” Frase que resume, em poucas palavras, a essência das propostas acima formuladas.

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Referências Bibliográficas CHAVES, C. G. L. Critérios mínimos para aprovação de um curso novo. Portal da CAPES, 2002. Disponível em <http://www.capes.gov.br> Acesso em: 10 ago. 2003. GERCHFELD, M. Pesquisa em Práticas Interpretativas: situação atual. In: IX ENCONTRO ANUAL DA ANPPOM. Rio de Janeiro, 1996. Anais. Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 1996. LESTER, J. Performance and analysis: interaction and interpretation. In: RINK, J. (Org.). The practice of performance: studies in musical interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. PALISCA, C. The chalenges of music teaching in higher education. In: AUSTRALIAN SYMPOSIUM ON MUSIC IN TERTIARY EDUCATION, 1984, Nedlands. Ata. Nedlands: University of Western Australia, 1984. __________. Closing address. In: AUSTRALIAN SYMPOSIUM ON MUSIC IN TERTIARY EDUCATION, 1984, Nedlands. Ata. Nedlands: University of Western Australia, 1984. RINK, J. (Org.). The practice of performance: studies in musical interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. ROTHSTEIN, W. Analysis and the act of performance. In: RINK, J. (Org.). The practice of performance: studies in musical interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

Felipe Avellar de Aquino. Doutor em música pela Eastman School of Music, Nova York (D.M.A. violoncelo/performance). Professor adjunto do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, atua nas áreas de Violoncelo e Música de Câmera. Além das atividades de performance, desenvolve pesquisas sobre técnica e literatura violoncelística, comunicadas em publicações nacionais e internacionais. e-mail: fjaa@openline.com.br ou felipecello@hotmail.com homepage: www.felipecello.homestead.com

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Pesquisa no Brasil: Balanço e Perspectivas Lúcia Barrenechea

Resumo: Este artigo é resultado da participação em Mesa Redonda sobre pesquisa em práticas interpretativas no XIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, realizado em Porto Alegre, em agosto de 2003. O texto faz uma breve retrospectiva da situação da pesquisa em práticas interpretativas no Brasil nos últimos seis anos, e também promove reflexões sobre como o instrumentista, que também é docente, poderia aliar sua atividade de pesquisa à sua prática pedagógica. Palavras-chave: Práticas interpretativas. Pesquisa no Brasil. Abstract:This article is a result of a participation in a round table on musical performance research, which took place in the 14th Congress of the ANNPOM, in Porto Alegre, on August of 2003. This paper presents a brief retrospective on the situation of musical performance research in Brazil on the last six years, and also promotes a reflection about how the performer, who is also a teacher, could link his research activity with his pedagogical practice. Key words: Performance. Brazilian research.

Em 1997, o professor Marcelo Guerchfeld, convidado para uma mesa de discussões sobre pesquisa em música na universidade no X Encontro Anual da ANPPOM, produziu um texto marcante sobre a pesquisa em práticas interpretativas. Neste texto, Guerchfeld lança uma série de perguntas que, a época, causavam discussão e debates acalorados: “devemos ser docentes e pesquisadores? Docentes e instrumentistas? Ou talvez, instrumentistas e pesquisadores?” ...“Os trabalhos publicados até agora, na subárea [de práticas interpretativas] e caracterizados como pesquisa, podem todos ser realmente considerados como tal?” “Pode-se falar em pesquisa em performance musical da mesma forma que se fala em pesquisa em outras áreas de conhecimento?” Essas questões ainda conservam sua pertinência. Passados cinco anos, percebe-se que a pesquisa em práticas interpretativas no Brasil sofreu uma grande expansão, e isso é perceptível de várias maneiras. Desde


2000, a comunidade acadêmica conta com um periódico de tiragem semestral, dedicado exclusivamente à publicação de artigos na área de práticas interpretativas, Per Musi – Revista de Performance Musical , que é editada pelo programa de Pós-Graduação da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais. Além disso, dois seminários sobre performance musical foram realizados em 2000 e 2002, em Belo Horizonte e Goiânia, respectivamente, ambos de âmbito nacional. O volume de comunicações de pesquisa nesses encontros foi expressivo e significativo, entretanto, sabemos através de nossos representantes junto aos órgãos de fomento, que a pesquisa em práticas interpretativas ainda é avaliada como inconsistente no que tange sua sistematização. Odam afirma que “embora a pesquisa seja um processo diário, ela funciona e se apresenta diferentemente de acordo com suas necessidades, status e circunstâncias, tanto acadêmicas quanto políticas. O que pode ser considerado como útil e influenciador em uma circunstância pode não ser em outra, ou talvez nem atrair fomento para a pesquisa” (ODAM, 2001, p.78) Sabe-se que a tendência da política de ciência e tecnologia do país é de cortar mais e mais os gastos com pesquisa, principalmente de uma área como a de Artes. Portanto a questão do fomento envolve inúmeras outras variáveis além da questão da qualidade da pesquisa em práticas interpretativas. A performance musical é uma atividade extremamente complexa, que envolve aspectos psicológicos, fisiológicos, pedagógicos, estéticos, históricos, técnicos, mecânicos, neurológicos, sociológicos, enfim, há uma gama de indagações que dizem respeito ao fazer musical e suas interfaces. Essa variedade de áreas e assuntos que se interrelacionam com as práticas interpretativas exige metodologias e sistematizações especificas, e isso é o que faz com que a pesquisa nessa área seja tão complexa e rica. Um fato acompanha toda e qualquer pesquisa na área das práticas interpretativas: ela inevitavelmente produzirá conhecimento que, em algum momento, auxiliará o performer em sua praxis, seja ela tocar ou ensinar alguém a tocar. Como performer e professora de piano numa instituição de ensino superior, preocupo-me em desenvolver pesquisa que atenda a 114


minha prática do dia-a-dia. Ao investigar questões de pesquisa ligadas ao processo de aquisição de competência na área da performance musical, o pesquisador torna acessíveis ferramentas que podem ser usadas por ele, em seu fazer artístico, e por alunos, agentes que o levam a formular tais questões. O ensino é uma atividade que o performer abraça mais cedo ou mais tarde, salvo raríssimas exceções. Ao travar contato com alunos, o performer-docente-pesquisador encontra um campo fértil de questionamentos que abrangem os mais variados campos de conhecimento: como adquirir independência nas decisões interpretativas? Como solucionar problemas de ordem técnica? Como desenvolver estratégias de estudo efetivas? Como combater a ansiedade de palco? Como lidar com o aluno que teve uma iniciação musical deficiente, ou tardia? Como avaliar o aluno em sua performance musical? Como lidar com o fator talento? Estas são algumas das questões que podem ocorrer na prática docente. Cada uma delas provocam a interação da performance musical com uma outra área. Cabe ao performer-docente-pesquisador se equipar de ferramentas para se engajar num processo sistematizado de pesquisa investigando suas questões com rigor, para que possa validar resultados consistentes e úteis para si e para outros. Dentre as questões colocadas acima, me interessa sobremaneira o desenvolvimento de estratégias de estudo efetivas. Ao relatar sua pesquisa sobre aspectos cognitivos no contexto de um exame de performance musical, McCormick e McPherson afirmam que “apesar do estudo ser uma parte vital do desenvolvimento da capacidade de um musicista de tocar bem, isso não deveria ser considerado isolado das variáveis que envolvem a motivação” (MCCORMICK e MCPHERSON, 2003, p.40). Estes autores se referem à auto-eficácia como parte integrante das estratégias de estudo, e eles citam a definição deste termo feita por Albert Bandura, que seria “a convicção que o indivíduo possui, de que ele pode executar com sucesso determinado comportamento que produzirá o resultado desejado”, ou seja, um conceito ligado ao julgamento pessoal de habilidade e competência. De acordo com os autores desse artigo, essa área de pesquisa tem recebido muito pouca atenção, apesar de estar intimamente ligada ao 115


convívio diário de um instrumentista com sua prática. Cada instrumentista pode procurar saber individualmente como obter um melhor rendimento no seu estudo diário. Entretanto, ao estabelecer uma observação sistematizada do estudo de um determinado universo de instrumentistas, na tentativa de detectar padrões de procedimentos e estratégias utilizadas, pode-se produzir informações valiosíssimas que, acessíveis através de artigos, comunicações em congressos e palestras, irão beneficiar uma gama muito maior de instrumentistas em todos os níveis. Uma outra questão que é timidamente investigada, mas que deveria receber uma maior atenção dos pesquisadores na área da performance musical, é a da avaliação. A avaliação é parte inerente do processo de ensino, incluindo, é claro, o ensino da performance musical. Como docente, tenho dilemas constantes sobre o quê, exatamente, define os critérios que norteiam a avaliação de alunos no processo de aprendizagem de um instrumento musical. De uma maneira geral, nos apoiamos em valores tradicionais e cristalizados para decidir se um aluno merece uma boa pontuação em sua performance; confiamos em nosso ouvido e nosso “bom gosto”. Mas, ao tentar racionalizar sobre o assunto, divergências surgem de todos os lados. Talvez por ser um assunto tão subjetivo e polêmico é que pouco se investiga nesse campo. Em 1991, Liane Hentschke apresentou no III Encontro Anual da ABEM, um texto muito esclarecedor sobre a avaliação do conhecimento musical de alunos, que pode ser considerado um ponto de partida geral para essa discussão, uma vez que aborda o conhecimento de música em geral, e não especifico da área das práticas interpretativas. Um artigo mais específico sobre a avaliação em performance musical foi publicado no periódico on-line de música Urucungo, em agosto de 1998, de autoria de Eduardo Frederico Luedy Marques. Nesse artigo, Marques aponta os problemas decorrentes da falta de reflexão dos docentes em relação ao processo de avaliação e sugere caminhos a seguir em direção a procedimentos mais adequados nessa área da prática pedagógica. De acordo com Christopher Frayling, citado por Odam em seu artigo, a competência em pesquisa na área das práticas interpretativas pode ser verificada através da habilidade de: “realizar uma investigação sistemática; abordar áreas contingentes de conhecimento, contexto e performance; 116


documentar o processo de origem de maneira que seja comunicável a seus pares numa forma permanente e reproduzível; desenvolver um argumento lógico e sustentável, contextualizado em discurso relevante; justificar ações e decisões relacionadas ao processo e ao produto; produzir algo que seja valido e original e de alta qualidade”(FRAYLING, apud ODAM, 2001, p.82). Ao observar rigorosamente esses aspectos apontados por Frayling, o performer poderá assumir confortavelmente seu papel de artista como pesquisador, afastando, dessa maneira, o estigma de desenvolver um trabalho de investigação não sistematizado. As perguntas formuladas por Guerchfeld em 1997 têm estado presentes nas mentes de todos envolvidos no debate sobre a pesquisa em práticas interpretativas no Brasil. Acredito que já tenhamos chegado ao consenso de que todo docente instrumentista deva também ser um pesquisador, pois essa atividade é inerente a sua condição de educador em uma instituição de ensino superior. Entretanto, a atividade de pesquisa não pode privá-lo de exercer sua atividade primeira, aquela que gera a necessidade de reflexão, pensamento critico e investigação, que é a performance. Nas universidades americanas, espera-se do professor instrumentista que ele toque com freqüência e que toque bem, portanto, nada mais pragmático! Se ele desenvolve pesquisa de forma sistemática, produzindo artigos científicos, comunicando seus resultados em congressos, o faz por iniciativa pessoal. Na Europa, a performance nem é vinculada às universidades. O professor instrumentista é celebrado do alto de seu posto em um conservatório, novamente, por tocar bem e ser um grande pedagogo. No Brasil, esse tratamento diferenciado não existe, se o professor performer quer ter alguém destaque acadêmico, inevitavelmente deve trilhar o caminho da pesquisa sistematizada segundo os parâmetros de outras áreas de conhecimento que contam com processos de investigação consolidados. Acredito que a área de práticas interpretativas no Brasil já tenha conquistado um espaço considerável nesta última meia década. Citando Mark Pattison, talvez tenhamos chegado a um momento propício para refletir sobre “como nos mostrar capazes, através de boas práticas de pesquisa, de lidar com experiências subjetivas e criar espaço para relatos pessoais sobre o que é importante, sobre o que está acontecendo” 117


(PATTISON, apud ODAM, 2001, p.85). Cabe a nós, docentesinstrumentistas-pesquisadores, definir se a maneira como realizamos nossa busca e nossas investigações é embasada, consistente e válida, mas o mais importante é que esta reflexão seja constante e nos permita, como disse Saville Kushner, “transformar velhos procedimentos em práticas novas quando necessário” (KUSHNER, apud ODAM, 2001, p.85).

Referências Bibliográficas GUERCHFELD, Marcelo. “Pesquisa na Universidade Brasileira: Práticas Interpretativas”. In: X ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, Goiânia, 1997. Anais... Goiânia: UFG, 1997, p.43-48. HENTSCHKE, Liane. Avaliação do conhecimento musical dos alunos: opção ou necessidade? In: III ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, Salvador, 1991. Anais... Salvador: ABEM, 1992, p.45-60. MARQUES, Eduardo Frederico Luedy. “Avaliação em música: considerações para as práticas interpretativas”. Urucungo – On-line. agosto de 1998. MCCORMICK, John e MCPHERSON Gary. “The role of self-efficacy in a musical performance examination: an exploratory structural equation analysis”. Psychology of Music. Londres, Volume 31, Número 1, 2003, p.37-51. ODAM, George. “Research in the Arts: issues in the development of new and relevant techniques of arts research in music, the arts and arts education”. Music Education Research. Londres, Volume 3, Número 1, 2001, p.77-86. Lúcia Barrenechea. Doutora em Piano e Pedagogia do piano pela Universidade de Iowa e Mestre pela Universidade de Boston, EUA. Atua intensamente como solista e camerista e é professora na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, nos cursos de Graduação e de Mestrado em Música. Apresentou-se em 2002 na I International Villa-Lobos Conference realizada em Paris, como recitalista e palestrante. e-mail: lucia.barrenechea@bol.com.br

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