Revista Jurídica Digital
Volume 2, nº 2
Revista JurĂdica Digital
Revista OMNES
Revista OMNES
Esta é uma publicação da Associação
Outubro de 2013
Nacional dos Procuradores da República Diretoria Biênio 2011/2013
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Sumário Editorial
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A figura do agente colaborador na ação de improbidade administrativa (Raquel BRANQUINHO) As ideias fora do lugar (Marinus Eduardo De Vries MARSICO)
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Os Núcleos de Combate à Corrupção no âmbito do Ministério Público (Helio Telho Corrêa FILHO) 21 As medidas cautelares previstas na Lei de Improbidade administrativa: natureza jurídica e sua repercussão no princípio do contraditório (Ronaldo Pinheiro de QUEIROZ) 27
1.1 – Primeiras considerações
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1.2 – Cautelares patrimoniais
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1.2.1 – Considerações gerais
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1.2.2 – Formas de tutela cautelar
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1.2.3 – Aplicação do contraditório
41
1.3 – Afastamento do agente público
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1.4 – Conclusões
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A tutela preventiva do patrimônio público: a experiência do grupo de trabalho copa do mundo Fifa de 2014 da 5A CCR/MPF (Athayde Ribeiro Costa)
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Editorial Com temas relevantes e de interesse dos membros do Ministério Público Federal e demais estudiosos do Direito, a segunda edição de 2013 da Revista Omnes traz artigos esclarecedores e atuais sobre o combate à corrupção. O primeiro texto, da procuradora regional da República Raquel Branquinho (PRR1), aborda a aplicação de preceitos de ordem penal, especialmente quanto à colaboração premiada, no bojo de ação de improbidade administrativa, em que pese sua natureza civil. Marinus Eduardo de Vries Marsico, procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, discorre sobre o Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública Federal e Entes de Colaboração. Intitulado “As ideias fora do lugar”, o texto destaca os pontos que retrocedem e prejudicam a fiscalização – pelo Ministério Público e demais órgãos de controle – dos atos praticados por agentes da administração, no combate à corrupção. Ainda sobre a temática, o procurador da República Helio Telho Corrêa Filho (PR/GO) aborda a primordial função do Ministério Público, na atuação preventiva e repressiva à corrupção. No texto, Telho reitera a importância da adoção de núcleos especializados que concentrem tais atividades, de forma a emprestar maior eficiência e evitar contradições, dentro do Parquet. No quarto artigo, o procurador da República Ronaldo Pinheiro de Queiroz (PR/RN) disserta acerca das medidas cautelares utilizadas nas ações de improbidade administrativa – indisponibilidade, sequestro de bens e o afastamento
cautelar do agente público –, ressaltando a importância do respeito ao princípio do contraditório e ampla defesa, quando de sua aplicação. O último texto, do procurador da República Athayde Ribeiro Costa (PR/ES), trata da tutela do patrimônio público durante a preparação para a Copa do Mundo de 2014. Ele fala sobre a criação do Grupo de Trabalho específico, no âmbito do Ministério Público, que fiscaliza a aplicação de recursos públicos em atos preparatórios para o grande evento. Boa leitura! Alexandre Camanho de Assis.
A figura do agente colaborador na ação de improbidade administrativa
Raquel Branquinho1
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Procuradora Regional da República - PRR1
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A Lei de Improbidade Administrativa pauta-se por uma base principiológica que fundamenta a própria aplicação do Direito Penal. Em razão dessa sistemática, até recentemente, ainda existiam vozes que suscitavam a natureza penal dessa norma. O fato é que, superada essa questão e sedimentado, na jurisprudência pátria, o entendimento sobre a natureza civil da Lei de Improbidade Administrativa e dos seus preceitos sancionatórios, não se pode olvidar que os princípios que nortearam o legislador a estabelecer essas regras são bastante semelhantes àqueles que fundamentam a aplicação do Direito Penal. Assim, a imputação e o processamento judicial de atos de improbidade administrativa pautam-se pelos princípios da culpabilidade, da individualização da conduta do agente público e de terceiros e fixação da sanção nos limites esta-
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belecidos pela lei, de acordo com o grau de participação de cada um dos sujeitos passivos nos ilícitos descritos. A regra estabelecida no artigo 3º da LIA, por exemplo, possui um intrínseco paralelismo com as teorias criminais do concurso de pessoas. Nesse contexto, questiona-se sobre a possibilidade de aplicação, no âmbito da improbidade administrativa, das disposições contidas em legislação que incentiva a colaboração e beneficia o coautor/partícipe de um ilícito que se dispõe a colaborar na elucidação do crime. Além da redução da pena na hipótese de confissão, situação já disciplinada na parte geral do Código Penal, o legislador ordinário pretendeu conceder um novo impulso na elucidação de crimes e, através da Lei 9.807/99, estabeleceu normas para a proteção de testemunhas ameaçadas e estendeu essa proteção aos acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração com a investigação policial e com o processo criminal. Paralelamente à proteção física ao réu colaborador, os artigos 13 e 14 da referida norma também estabelecem benefícios dessa colaboração no âmbito do próprio processo penal. Assim, segundo disposto nos artigos 13 da Lei 9.807/99: “ Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colabora-
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ção tenha resultado: I - a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa; II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III - a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso. Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.”
Diante dessa simetria ontológica entre o Código Penal e leis extravagantes e a Lei de Improbidade Administrativa, é natural o questionamento sobre a possibilidade da existência da figura do réu colaborador na ação de improbidade administrativa. Relevante questão a ser enfrentada é a ausência de previsão legal expressa e a possibilidade da proposta desse benefício pelo membro do Ministério Público, no âmbito da respectiva investigação cível, diante do princípio da obrigatoriedade, que também pauta a atuação ministerial quanto à imputação de atos de improbidade administrativa. Não obstante a inexistência de uma previsão legal expressa, não se vislumbra óbice, no âmbito processo cível no qual se imputa ato de improbidade administrativa, à aplicação dos preceitos que disciplinam os benefícios ao agente cola-
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borador. A similitude entre a dogmática que disciplina o Direito Penal e a Lei de Improbidade Administrativa evidencia-se até em relação à gravidade dos atos ilícitos que são tipificados como crime e como atos de improbidade administrativa. Ou seja, determinados valores apresentam-se tão relevantes para a sociedade em determinado momento histórico que as condutas violadoras são tipificadas como crime e, no caso, como atos de improbidade. Assim, não se pode olvidar que a coletividade tem um grande interesse em que os agentes do Estado, encarregados da persecução criminal e também da persecução cível por atos de improbidade administrativa, adotem todas as providências cabíveis para a elucidação dos ilícitos criminais e civis ora retratados e para a efetiva punição dos seus autores. Nesse contexto, a sistemática de colaboração premiada estabelecida pela Lei 9.807/99 pode e deve ser aplicada, analogicamente, ao processo cível por ato de improbidade administrativa. Obviamente, em razão do princípio da obrigatoriedade da tutela da defesa do patrimônio público por meio da ação civil de improbidade administrativa, a atuação do membro do Ministério Público quanto à qualificação de determinado coautor de ato de improbidade como colaborador, deverá se submeter ao controle do próprio Poder Judiciário1. Assim, o colaborador, servidor público ou terceiro (artigo 3º da LIA) deveSegundo a renomada doutrina de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves: “No que concerne ao enquadramento do ato na tipologia legal, não é demais lembrar que caberá ao órgão jurisdicional, como derivação do princípio iura novt curia, a livre valoração dos fatos, podendo chegar a tipologia diversa daquela 1
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rá ser arrolado no polo passivo da ação de improbidade, narrada a sua conduta e, no requerimento, o órgão ministerial, quando autor da ação de improbidade administrativa, poderá, à luz dos requisitos legais (sinceridade plena, confirmação dos dados em outras esferas, ressarcimento dos danos causados, eficácia e extensão dos esclarecimentos apresentados), requerer a aplicação dos benefícios legais pertinentes, ou seja, redução das sanções estabelecidas no artigo 12 da Lei 8.429/92 ou mesmo a concessão do perdão judicial. Frise-se, contudo, que a aplicação dos benefícios dependerá não só do teor do depoimento em Juízo, como também, no julgamento final, da sua efetividade na condenação dos demais envolvidos. A descrição da conduta do agente colaborador na inicial da ação de improbidade administrativa e a respectiva imputação para, ao final do processo, serem aplicados os benefícios de redução da sanção ou aplicação do perdão judicial, apresenta-se como a de melhor técnica, porque condiciona a colaboração do agente à sua eficácia, ainda que parcial. Assim, não basta, para a finalidade pretendida de obtenção dos benefícios acima, apenas um depoimento colhido na fase pré-processual. É necessário que o corresponsável por ato de improbidade confirme essa versão em Juízo, apresente documentos e informações efetivamente relevantes para o esclarecimento dos fatos sob apuração no âmbito de um procedimento apuratório ou inquérito civil público. Objetiva-se, adotando-se a sistemática de benefício ao colaborador no âmbito
declinada pelo autor na petição inicial. “. In Improbidade Administrativa. 5ª Edição. Revista e Ampliada. Editora Lumen Yuris. Rio de Janeiro, 2010, pg. 632.
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das ações de improbidade administrativa, obter-se a efetiva punição dos agentes desses atos, sobretudo daqueles que se situam em patamar hierárquico superior da Administração Pública, cuja conduta ímproba nem sempre pode ser aferível documentalmente, situações essas em que o testemunho de um colaborador, associado aos demais elementos de prova, poderá se caracterizar como um elemento decisivo na elucidação de graves ilícitos civis e que marcam a gestão pública brasileira pela indesejável pecha da corrupção. Nesse contexto e diante do relevante interesse público na preservação da probidade administrativa, objeto de disciplina no próprio Texto Constitucional, é possível a aplicação, por analogia, do disposto nos artigos 13 e 14 da Lei 9.807/99, para fins de se garantir a efetiva elucidação, em todas as suas circunstâncias, de atos de improbidade administrativa.
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As ideias fora do lugar
Marinus Eduardo De Vries Marsico1
1 Procurador do MinistĂŠrio PĂşblico junto ao TCU
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A legislação sobre a organização administrativa federal encontra-se, hoje, fragmentada em normas de variada hierarquia, que vão de emendas constitucionais a decretos e resoluções. O instrumento mais importante nessa seara ainda é o anacrônico Decreto-Lei 200, de 1967. Portanto, são necessariamente bem-vindas quaisquer iniciativas em prol de uma nova sistematização da atividade administrativa, como a do Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública Federal e Entes de Colaboração. O presente artigo fornece uma crítica da linha geral adotada no Anteprojeto quanto ao tema controle da Administração. Os dispositivos sobre o controle da Administração integram a Seção III do Anteprojeto, artigos 50 a 68. Para um profissional da área do controle administrativo, uma primeira leitura dessas normas já é capaz de causar certa perplexi-
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dade. O artigo 50 inicia praticamente despojando o fiscal do controle prévio e do concomitante(inciso II), que passariam a ser exceções, contrariamente à tendência atual de prevenir a ocorrência de desvios e malversações de dinheiro público. Aprovada a regra, serão postas em segundo plano as auditorias operacionais, de gestão, bem como as medidas cautelares, instrumentos imprescindíveis para a proteção do Erário e a proteção do Erário o combate à corrupção. Um exemplo típico do efeito da norma, estando em vigor, seria imaginar uma grande obra, por exemplo, o trem de alta velocidade, tocada ao bel-prazer dos gestores de plantão, sem nenhum controle prévio ou concomitante. O artigo 50, igualmente, não termina bem. Na verdade, conduz a uma acentuada contradição, já que, de acordo com o inciso VI, o fiscal, ao impugnar qualquer ato irregular, deverá indicar alternativas compatíveis com as finalidades de interesse público, num claro comprometimento com a gestão, em desrespeito flagrante ao princípio da segregação de funções (inciso VI); entretanto,paradoxalmente, propõe o parágrafo único que os órgãos de controle não poderão interferir no exercício da competência do gestor. Os artigos 51 e 52 parecem elaborados para atender aos anseios de grandes empresas estatais, que, não raro, usam do regime jurídico de direito público para auferir maiores privilégios, e do privado para escapar das consequentes obrigações e sanções. O primeiro artigo propõe que o controle deva ser “compatível com a natureza do órgão ou entidade controlados e com a especificidade da atividade exercida”. Já o segundo, seguindo a mesma linha, acrescenta a necessidade de o controle ser exercido, nas empresas estatais, preferencialmente “por suas instâncias de governança corporativa”. Ora, o controle deve ser exercido não em razão da natureza, das peculiaridades ou mesmo dos interesses dos órgãos e entidades, mas sim em função da lei. Essa é a regra fundamental. Numa hipótese
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pouco provável de o regular exercício da atividade administrativa ser incompatível com a lei, esta deve mudar, nunca o controle. Além disso, a prática comprova que o controle exercido pelas “instâncias corporativas” das estatais não funciona, pelo simples fato de o fiscal carecer da autonomia necessária. O artigo 54 trata da função dos órgãos de consultoria jurídica da administração. Novamente, o princípio da segregação de funções é atingido, desta feita de maneira mais grave. Aprovado o Anteprojeto, as consultorias jurídicas, doravante, deverão, além de prestar assessoria jurídica (sua função precípua), orientar os agentes administrativos “quanto à adoção de medidas aptas a permitir a efetividade da ação administrativa, em conformidade com os preceitos legais”. A mudança proposta na concepção de uma consultoria jurídica é radical: não será mais a atividade administrativa que se adaptará à lei, mas sim a lei é que deverá ser moldada e interpretada em obediência aos fins da Administração. Além disso, os agentes da Administração restarão livres de responsabilizações, já que seus atos decorrerão de orientações das consultorias jurídicas; por sua vez, os consultores jurídicos só se responsabilizarão por dolo ou erro grosseiro, não constituindo este a interpretação razoável, sustentada em doutrina ou jurisprudência, ainda que não pacificadas. Em resumo, ficará muito difícil responsabilizar alguém pela má gestão administrativa, e por outras coisas bem conhecidas também; os responsáveis sempre serão a doutrina, ou a jurisprudência. Quando procura dispor acerca do controle externo, o Anteprojeto vai além de tentar reformular, para pior, os princípios mais básicos da Administração. Agora, o alvo é a Constituição. O artigo 64, parágrafo único, elabora uma exceção inconstitucional ao artigo
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71, inciso II, da Constituição. Não se considerariam dinheiros, bens ou valores públicos, e, portanto, estariam fora da plenitude do controle externo, as transferências a entidades não estatais a título de remuneração ou de contraprestação pecuniária. O problema, aqui, é a generalização: não se podem conceber, como da mesma espécie, gênero e grau, por exemplo, meros contratos de locação e repasses milionários a organizações não governamentais.
E parece ser esse o objetivo. O artigo 65 restringe o controle de contra-
tos celebrados com entidades não estatais tão-somente à “verificação do cumprimento do contrato”. Falando de pessoas jurídicas não estatais, postas fora do âmbito deste artigo, chama a atenção o Título IV do Anteprojeto, que trata das entidades de colaboração. Numa síntese apertada, podem-se relacionar três situações graves: o amplo leque de atividades que essas entidades poderão exercer à custa do dinheiro público; a inexistência de procedimento de licitação formal para a contratação; e a possibilidade de a administração contratante ceder servidores para a entidade de colaboração contratada, com vistas ao cumprimento do que foi pactuado. É de imaginar que a maioria dos órgãos estatais vá contratar entidades de colaboração, sem licitação e para quaisquer fins, naquele amplo conjunto de possibilidades legais, para, em seguida, seus servidores serem chamados a executar o contrato. Numa linguagem futebolística, tão em voga até recentemente, é como se o mesmo jogador cobrasse o escanteio e cabeceasse para o gol.
Há quase quatro décadas, o professor e crítico literário Roberto Sch-
warz publicou seu conhecido ensaio _ que dá nome ao título deste artigo _ onde demonstrou como uma nova ideia se adapta a uma antiga realidade no Brasil. Tratou do ideário liberal inserido numa sociedade escravocrata, e dos malaba-
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rismos intelectuais para que dois institutos antagônicos pudessem conviver absurdamente na sociedade brasileira. Mantidas as proporções, o Anteprojeto, no que concerne ao controle, ensaia o mesmo: conciliar interesses governamentais plenamente superados com anseios de uma sociedade cada vez mais esclarecida. Esperemos que não prospere.
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Os Núcleos de Combate à Corrupção no âmbito do Ministério Público
Helio Telho Corrêa Filho1
1 Procurador da República
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O combate à corrupção se faz em duas frentes bem distintas, porém complementares: a prevenção e a repressão. A transparência e o controle dos atos da Administração Pública são os instrumentos de prevenção mais eficientes. A transparência expõe os atos administrativos à curiosidade pública e à fiscalização da imprensa e da oposição. O controle submete os atos da Administração Pública à permanente auditoria interna e externa. A repressão, por sua vez, se dá mediante investigação dos atos de corrupção e abertura de processos visando à punição de corruptos e de corruptores e ao ressarcimento dos danos causados ao Erário. Em outras palavras, combate-se a corrupção tornando mais difícil e arrisca-
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do praticá-la e mais fácil e rápido descobri-la, apurá-la e puni-la. Uma das principais vocações institucionais do Ministério Público Federal é, sem dúvidas, o combate à corrupção, tarefa que mereceu destaque no desenho do seu Mapa Estratégico, cuja visão é, até 2020, ser reconhecido, nacional e internacionalmente, pela excelência no combate à corrupção. As ferramentas legais de que o Ministério Público dispõe para essa missão podem ser divididas em dois grupos: as criminais e as cíveis. Historicamente, as divisões de tarefas vigentes nas unidades do Ministério Público entregam as ferramentas criminais para um membro ou grupo de membros e as ferramentas cíveis para outro, os quais atuam de maneira isolada e autônoma, sem maiores sinergias ou trocas de informação, sem um mecanismo institucionalizado de compartilhamento de provas, não raro com duplicação de atos investigatórios ou instrutórios ou, o que é mais grave, com repressão do ato de corrupção em uma esfera, sem que a outra seja acionada. Modernamente, algumas unidades têm criado os chamados oficios mistos ou núcleos de combate à corrupção, ou seja, um mesmo Promotor Natural para determinado caso de corrupção, o qual atuará tanto na esfera cível, quanto na esfera criminal. Assim, quando um determinado fato, que reclame atuação do Ministério Público tanto na órbita criminal, quanto cível (improbidade), chega ao conhecimento da instituição, faz-se sua distribuição aleatória a um dos ofícios do Núcleo de Combate à Corrupção, que ficará encarregado de adotar todas as medidas extrajudiciais e judiciais possíveis, sejam cíveis, sejam administrati-
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vas, sejam criminais. A adoção dos Núcleos de Combate à Corrupção pelo Ministério Público Brasileiro é, inclusive, a Recomendação 03, para o ano de 2011, da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA (http://bit.ly/ I4vBdM). As vantagens dessa nova abordagem são inegáveis e imensas, ao passo que as desvantagens simplesmente não existem. O só fato de se evitar a repetição ou duplicação de esforços na investigação e na produção de provas, haja vista a facilidade de compartilhamento que o novo modelo enseja, já seria suficiente para justificá-lo. Isto é, menor dispêndio de recursos materiais e humanos, para a execução das mesmas tarefas. Mas não é só. A concentração dos instrumentos de investigação e repressão cíveis e criminais nas mãos de um mesmo membro do Ministério Público lhe confere um leque muito maior de armas e munições, permitindo traçar estratégias mais eficientes em busca de resultados mais rápidos. Assim, eventuais fragilidades ou dificuldades verificadas em uma esfera de atuação podem ser facilmente solucionadas pelo compartilhamento de ferramentas. O procurador que atua na investigação cível e criminal é o mesmo que formaliza as acusações, acompanha as instruções processuais, participa das audiências judiciais, faz as razões finais e recorre, o que proporciona notável intimidade com os detalhes do caso, tornando a sua atuação muito mais eficaz. A especialização proporcionada por esse tipo de atuação permite, ainda, que se tenha amplo domínio das tipologias mais comuns da corrupção e dos respec-
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tivos modus operandi, criando-se, naturalmente, experts na matéria. Os Núcleos de Combate à Corrupção asseguram a efetiva proteção integral ao bem jurídico tutelado. Contudo, as ações repressivas de combate à corrupção não se esgotam com a atuação em primeiro grau de jurisdição. Via de regra, as instâncias superiores são chamadas a revisar a decisão a quo. Pela divisão de tarefas atualmente vigente nas esferas regionais e superior de atuação do Ministério Público, vários procuradores regionais e subprocuradores-gerais podem ser acionados para atuar, ao mesmo tempo, naquele caso específico, dependendo da natureza do recurso, se cível, se criminal, porque não há, nas esferas recursais, vinculação do membro do Ministério Público Federal ao caso e sim vinculação ao recurso. A eficiência e a eficácia da atuação do Ministério Público Federal no combate à corrupção podem crescer muito, se os procuradores que atuam nas instâncias recursais passem a ser também vinculados ao caso, desde a sua distribuição inicial na primeira instância (o que é tecnicamente possível com o Sistema Único), acumulando, quanto a cada um deles, as atribuições cíveis e criminais. Tal medida propiciaria que as estratégias de atuação fossem discutidas e acertadas entre os procuradores que atuam nas diversas instâncias, desde o nascedouro do caso, dando caráter de continuidade à atuação nas instâncias superiores. A criação de uma Câmara de Coordenação e Revisão de Combate à Corrupção é necessidade urgente. Atualmente, temos duas câmaras com atribuição na área: uma na esfera criminal, outra na esfera cível. Cada uma delas tem sua própria estratégia de enfrentamento oà corrupção, sem maior sinergia entre elas. Não há comunhão de recursos materiais e humanos. Repetem-se esforços. Inclusive,
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atos burocráticos e de análises de promoção de arquivamento, não raramente, são duplicados. A adoção maciça dos Núcleos de Combate a Corrupção nas unidades do Ministério Público tornará indispensável a criação da respectiva Câmara de Coordenação e Revisão.
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As medidas cautelares previstas na Lei de Improbidade administrativa: natureza jurídica e sua repercussão no princípio do contraditório Ronaldo Pinheiro de Queiroz
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Introdução
1.1
Primeiras considerações
1.2.1
Considerações gerais.
1.2.2
Formas de tutela cautelar.
1.2
Cautelares patrimoniais
1.2.3
Aplicação do contraditório
1.3
Afastamento do agente público
1.4
Conclusões
Procurador da República. Doutor e mestre em Direito pela PUC-SP. Membro do Núcleo de Combate à Corrupção no MPF/RN. Professor adjunto do Curso de Direito da UFRN. Professor da Escola Superior do Ministério Público da União.
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RESUMO: O presente artigo visa a conferir uma análise dogmática sobre as medidas cautelares previstas na Lei 8.429/92 (LIA), buscando extrair a verdadeira natureza jurídica de cada espécie de tutela cautelar, a fim de alcançar uma interpretação razoável e segura sobre a incidência do princípio do contraditório no processo judicial de improbidade administrativa, apontando a compatibilização do princípio da efetividade com as garantias constitucionais do processo, indispensável a qualquer litigante ou acusado.
PALAVRAS-CHAVE: Improbidade. Medidas cautelares. Contraditório. ABSTRACT: The present article aims to give a dogmatic analisys on the writ of prevention provided by law 8.429/92 (LIA) seeking to extract the true nature of each kind of preliminary injuction, in order to achieve a reasonable and secure interpretation about the incidence of the adversary system in the prosecution of misconduct of office, pointing to a compability of the principle of effectiveness with the constitutional guarantees of the process, essential to any litigant or accused KEYWORDS: Misconduct, writ of prevention. Adversary system.
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1.1 – Primeiras considerações. A abordagem que faremos do princípio do contraditório no processo de improbidade administrativa recairá no âmbito das medidas cautelares, já que tais medidas muitas vezes são veiculadas em ações preparatórias1 da ação principal, sendo, portanto, a primeira oportunidade de se invocar o devido processo legal coletivo. Desnecessário, também, tecer maiores considerações sobre a importância das medidas cautelares para garantir a efetividade/utilidade do combate à improbidade administrativa, pois é até intuitivo a constatação de sua relevância para resguardar o futuro ressarcimento do dano causado ao patrimônio público, bem como o de reaver os produtos obtidos com o proveito do ato ímprobo. Até porque não basta a certeza de que a sentença do processo principal virá, é preciso cuidar para que ela venha de forma útil. A Lei 8.429/92, também conhecida como Lei da Improbidade Administrativa (LIA), disciplinou, nos arts. 7º, 16 e 20, três providências cautelares, a saber, a indisponibilidade; o sequestro de bens; e o afastamento cautelar do agente público. O objetivo desse tópico é abordar essas três medidas previstas na lei. É claro que reconhecemos, assim como a maciça doutrina, que tais providências não são exaustivas, não esgotam as medidas cautelares que podem ser adotadas para assegurar o resultado útil do processo principal, sendo admitidas as demais cautelares previstas no ordenamento (v.g., busca e apreensão de coisas e documentos, CPC, art. 839), bem como outras medidas genéricas decorrentes do
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As providências cautelares podem ser antes ou no curso do processo principal (CPC, art. 796).
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poder geral de cautela (CPC, art. 798). Pelas suas específicas características, e a fim de conferir uma compreensão mais didática sobre o tema, dividiremos as providências específicas da improbidade em cautelares patrimoniais – para abordar a indisponibilidade e o sequestro de bens – e a do afastamento do agente público.
1.2 – Cautelares patrimoniais. 1.2.1 – Considerações gerais. Antes de tudo, é bom que se diga que as cautelares em comento não ostentam nenhum caráter sancionador. Busca apenas garantir a reparação do dano e a recomposição do status quo ante. São, portanto, medidas para garantir o cumprimento da sentença. A Lei 8.429/92, em seu art. 7º, dispõe que: “Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado. Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito”. No art. 16, a Lei estabelece a obrigatoriedade de a autoridade administrativa investigante da improbidade administrativa, havendo fundados indícios, representar ao Ministério Público ou à procuradoria do órgão para que requeira ao juízo competente a decretação do sequestro dos bens do agente ou terceiro que
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tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público. Nos §§ 1º e 2º, esclarece que o pedido de sequestro será processado de acordo com o disposto nos arts. 822 e 825 do CPC e que, quando for o caso, o pedido incluirá a investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras mantidas pelo indiciado no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais. A representação da autoridade administrativa, tanto na indisponibilidade quanto no sequestro, não constitui “condição de procedibilidade” para o Ministério Público, que pode, independentemente dela, utilizar-se das cautelares patrimoniais. Em igual medida, a representação não vincula o Parquet, que apreciará o cabimento da medida de acordo com sua independência funcional. Essa é a opinião pacífica da doutrina: Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves2; Marino Pazzaglini Filho; Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Júnior3; Wallace Paiva Martins Júnior4. A indisponibilidade consiste na: “impossibilidade de alienação de bens e pode se concretizar por diversas formas, tais sejam, o bloqueio de contas bancárias, aplicações financeiras, o registro da inalienabilidade imobiliária etc”.5 Com relação ao sequestro previsto no art. 16 da LIA, o legislador incorreu
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 637. 2
PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Márcio Fernando Elias; FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa. 4. ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 196. 3
4
MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 327.
PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Márcio Fernando Elias; FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Op. cit., p. 193. 5
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numa atecnia parcial. É que o sequestro visa à apreensão de bem determinado, como garantia de futura entrega de coisa certa. Assim, tecnicamente falando, só caberia sequestro para os casos relacionados à restituição de bens e valores havidos ilicitamente por ato de improbidade. Seria difícil imaginar a utilização dessa medida para assegurar o ressarcimento em razão de dano causado ao erário. Nesse caso, seria mais apropriado se falar em arresto, que seria a apreensão cautelar de quaisquer bens do patrimônio do devedor com o destino de assegurar futura execução por quantia. De qualquer sorte, doutrina e jurisprudência vêm apontando o equívoco técnico do legislador, mas entendendo que o termo sequestro do art. 16 da LIA deve ser interpretado de forma abrangente, alcançando bens determinados ou indeterminados6. Como visto, essas medidas recairão sobre os bens que assegurem o ressarcimento integral do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do ilícito. Isto é, não abrange todo o patrimônio do agente, mas tão-somente os bens suficientes e adequados para suportar o montante de eventual condenação de ressarcir danos ou de restituir o acréscimo patrimonial enriquecido ilicitamente. Suficiente porque deve refletir o exato montante7 do valor econômico resultante do ato8; e adequado porque deve recair em objetos passíveis de constrição, que Equívoco semelhante, e que a doutrina desde sempre tratou de apontar, ocorria no Código de Processo Penal, que é de 1940. Somente após 66 anos de atecnia, a Lei 11.345/2006 alterou os arts. 136, 137, 138, 139, 141 e 143 do CPP, para substituir a expressão “seqüestro” por “arresto”, com os devidos ajustes redacionais. 6
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Que deve ser acrescido de juros de mora e correção monetária.
José Roberto dos Santos Bedaque sustenta que, na medida do art. 16 da LIA (sequestro) os bens atingidos pela medida constritiva não necessitam guardar nexo com o ato ilícito, nem o autor precisa demonstrar estrita relação entre seu valor e o do prejuízo. Estaria o legitimado, portanto, livre para pleitear a medida sobre todo o patrimônio do indiciado, inclusive os bens situados no exterior, independentemente de qualquer vinculação direta com o dano ou seu valor. Isso se justifica porque nem sempre o autor terá condições de estabelecer, de plano, o prejuízo causado pelo 8
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são, em regra, já que se trata de medida para garantir futura execução, os bens penhoráveis. Acontece que podem existir bens que são produtos da própria improbidade, hipótese na qual a medida pode abranger inclusive bens impenhoráveis. É que o art. 6º da LIA é bastante claro ao dizer que: “No caso de enriquecimento ilícito, perderá o agente público ou terceiro beneficiário os bens ou valores acrescidos ao seu patrimônio”. Nesse caso, a medida não visa a garantir uma futura execução por quantia certa, mas o cumprimento de obrigação específica de restituição de bens determinados. Feita essa rápida explanação sobre as medidas cautelares patrimoniais, cumpre analisar quais os requisitos necessários para o seu cabimento e concessão pelo Poder Judiciário.
1.2.2 – Formas de tutela cautelar. As medidas cautelares, de regra, exigem, para a sua concessão, o preenchimento de dois requisitos, que são o fumus boni juris e o periculum in mora (CPC, art. 798). O requerente, portanto, deve demonstrar uma plausibilidade de que tem o direito, bem como a existência de fundado receio de que a outra parte, antes do julgamento da lide, cause ao seu direito lesão grave ou de difícil reparação. Esses são basicamente os requisitos para uma tutela emergencial. Acontece que, pela sistemática da própria LIA, não se consegue vislumbrar nas cautelares patrimoniais uma típica tutela de urgência, mas sim uma tutela de evidência. A tutela de urgência foi criada para preservar o bem da vida quando a demora ato de improbidade, ou o nexo deste com o bem. (In: Tutela jurisdicional cautelar e atos de improbidade. In: Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais, coord. Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 303-308.)
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na prestação jurisdicional cria o risco de sua inutilidade prática. Já a tutela de evidência prestigia as situações em que há uma grande probabilidade de o autor ter razão, bem como o bem da vida tutelado tem grande relevância social e, por eleição do legislador, confere-se-lhe a possibilidade de fruição imediata e provisória do bem ou que o mesmo seja desde logo resguardado. Adroaldo Furtado Fabrício9 traz exemplos de tutela de urgência e de tutela de evidência. Para o renomado autor, quando o juiz concede uma produção antecipada de provas, está privilegiando o critério urgência em detrimento de qualquer outro interesse, sem se precisar cogitar da maior ou menor probabilidade de ter razão o requerente. Já a tutela de evidência pode ser visualizada no deferimento de uma liminar possessória, para a qual basta uma presunção de veracidade do alegado baseada em um dado objetivo, independente de qualquer urgência. Outro exemplo é o caso de tutela antecipada em razão do abuso do direito de defesa (CPC, art. 273, II) O enfrentamento desta questão é importante porque repercute, ainda que indiretamente, no princípio do contraditório, já que, sendo uma tutela de urgência, o âmbito de reação do réu volta-se para a negação do fumus boni juris e/ou do periculum in mora, ao passo que, diante de uma tutela de evidência, a sua contrariedade restringe-se aos fatos apontados pelo autor e que a lei considera suficiente para demonstrar a plausibilidade do direito. Dentro dessa linha de raciocínio, José Roberto dos Santos Bedaque10 efetuou FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Breves notas sobre provimentos antecipatórios, cautelares e liminares. In: Estudos de direito processual em memória de Luiz Machado Guimarães. Cood. José Carlos Barbosa Moreira, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 20. 9
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela jurisdicional cautelar e atos de improbidade. In: Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais, coord. Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Pau10
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um corte metodológico nas duas medidas cautelares patrimoniais, no qual conseguiu apontar diferenças ontológicas e de finalidade. Para o professor da Universidade de São Paulo, a indisponibilidade prevista no art. 7º da LIA está restrita ao valor do dano causado ou ao acréscimo patrimonial decorrente da atividade ilícita. Necessita a parte apontar o valor do suposto dano ou do acréscimo patrimonial e pleitear a indisponibilidade sobre os bens suficientes ao ressarcimento a ser decidido em outra sede. Aqui basta que se demonstre a verossimilhança. Desnecessário comprovar o perigo de dano, pois o legislador contentou-se com o fumus boni juris, tendo em vista a gravidade do ato e a necessidade de garantir o ressarcimento do patrimônio público. Adverte o mencionado autor, contudo: “(...) que a tutela sumária fundada na evidência somente é admitida se expressamente prevista no sistema. Em caráter genérico, esse elemento é insuficiente à concessão da medida, sendo necessária a presença do perigo de dano. O poder geral de concessão de tutelas sumárias está relacionado à urgência e à evidência”.11
De fato, percebe-se claramente que o sistema da LIA admitiu de forma expressa a tutela de evidência. O art. 7º em nenhum momento previu o requisito da urgência, reclamando apenas, para o cabimento da medida, a demonstração, numa cognição sumária, de que o ato de improbidade causou lesão ao patrimô-
lo de Rezende Porto Filho. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 303-308. 11
Idem, ibdem.
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nio público ou ensejou enriquecimento ilícito. Dando continuidade ao pensamento de Bedaque, entendeu ele que com relação ao sequestro, a LIA, no seu art. 16, § 1º, determinou que fossem aplicados os arts. 822 e 825 do Código de Processo Civil, para o processamento da medida. Diante disso, tensionando o legislador integrar o art. 16 da LIA ao Código de Processo Civil, há de ser demonstrado, para a concessão da medida, os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora. Discordamos do nobre processualista quando diz que a medida do art. 16 da LIA seria de urgência, pelo fato de seguir o sistema do Código de Processo Civil. Isso porque a Lei de Improbidade, em nenhum momento, fez alusão à demonstração do periculum in mora. Apenas apontou que o processamento da medida devesse atender ao disposto no art. 822 e art. 825. Percebe-se que, de quatro artigos que regulam o rito do sequestro no CPC (arts. 822, 823, 824 e 825), a LIA determinou expressamente que se aplicassem apenas dois, os quais, inclusive, não requerem o requisito do perigo na demora. O único dispositivo que dispõe sobre a urgência é o art. 823, mas a lei o silenciou eloquentemente. A remissão da LIA ao CPC foi no sentido de se observar apenas o processamento, o modo como a medida deve ser concretizada, e não sobre a exigência dos requisitos da tutela sumária. A propósito, cabe citar lição de Ernani Fideli dos Santos: “Quanto ao sequestro, manda a lei que se atendam aos arts. 822 a 825 do CPC (art. 16, § 1º), mas é de se observar, por seus próprios termos, que a referência é quanto ao processamento, ou seja, não há exigência, para sua concessão, dos requisitos do sequestro comum, mas apenas que, para a efetivação da cautela, se observe o procedimento ali previs-
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to. Isto importa em dizer que, para os efeitos da Lei de Improbidade, o seqüestro é medida típica, sem qualquer relação, a não ser de mera semelhança – apreensão de bens –, com outras de previsão legal”.12
A tutela de evidência aqui também é inegável. Houve vontade expressa do legislador para que assim o seja. Aqui há o elevado interesse de resguardo do patrimônio público, direito difuso que pertence a toda a sociedade. Visto por outro ângulo, Marcelo Figueiredo sustenta que: “Quanto à probabilidade do prejuízo, entendemos que o conceito pode ser deduzido da própria Lei de Improbidade. É dizer, ela já estaria presente nos valores de “probidade” que o agente administrativo aparentemente desprezou, ao praticar atos ímprobos”. 13 Portanto, as cautelares patrimoniais da Lei de Improbidade, por vontade expressa do legislador, encerram tutela de evidência, cabendo à parte requerente demonstrar tão-somente que o ato de improbidade causou lesão ao patrimônio público ou ensejou enriquecimento ilícito, suporte material compreendido no requisito do fumus boni juris. Na doutrina, a percepção é de que a ampla maioria entende que o requisito do periculum in mora é dispensando ou, como preferem alguns, presumido. Nes-
Aspectos processuais da Lei de Improbidade Administrativa. In: Improbidade Administrativa: comemoração pelos 10 anos da Lei 8.429/92. José Adércio Leite Sampaio, Nicolao Dino, Nívio de Freitas e Roberto dos Anjos (coords.). Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 112. 12
13
FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 51.
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se sentido: Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves14; Fábio Medina Osório15; Marcelo Figueiredo16; José Antônio Libôa Neiva17; Wallace Paiva Martins Júnior18, dentre vários outros. Existe também uma parcela da doutrina que clama pela demonstração dos dois requisitos da tutela de urgência. Destaque para: Enrique Ricardo Lewandowski19; Carlos Mário Velloso Filho20; Sérgio Ferraz21; e José Armando da Costa22. No plano jurisprudencial, o assunto já foi mais tormentoso, existindo corGARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 641. 14
OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade administrativa. 2. ed., Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 240241. 15
16
FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 51.
NEIVA, José Antônio Libôa. Improbidade Administrativa: estudo sobre a demanda na ação de conhecimento cautelar. Niterói: Impetus, 2005, p. 133. 17
MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 396. 18
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Comentários acerca da Indisponibilidade Liminar de Bens Prevista na Lei 8.492, de 1992. In: Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais, coord. Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p.185. 19
VELLOSO FILHO, Carlos Mário. A Indisponibilidade de Bens na Lei 8.492, de 1992 In: Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais, coord. Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 120-122. 20
FERRAZ, Sérgio. Aspectos Processuais na Lei sobre Improbidade Administrativa. In: Improbidade administrativa: questões polêmicas e atuais, coord. Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 417-418. 21
COSTA, José Armando da. Contornos Jurídicos da Improbidade Administrativa. 2. ed., rev., atual. e amp. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 145. 22
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rente que entendia necessária a demonstração de indícios de ocultação ou dilapidação patrimonial (tutela de urgência)23, bem como corrente que encampava a ideia de que basta a demonstração de fortes indícios do dano ao erário ou do enriquecimento ilícito (tutela de evidência)24. O Superior Tribunal de Justiça pacificou o assunto no julgamento da Recurso No sentido de haver tutela de urgência: Superior Tribunal de Justiça, Segunda Turma, Recurso Especial nº 469366, Rel. Ministra Eliana Calmon, j. 13.05.2003, DJU 02.06.2003, p. 285; Superior Tribunal de Justiça, Segunda Turma, Recurso Especial nº 220088, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, j. 02.08.2001, DJU 15.10.2001, p. 255; Tribunal Regional Federal da 1a Região, Quarta Turma, Agravo de Instrumento nº 200101000296754, Rel. Desembargador Federal Hilton Queiroz, j. 27.10.2006, DJU 13.11.2006, p. 124; Tribunal Regional Federal da 1a Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 200501000131044, Rel. Juíza Federal Vânila Cardoso André de Moraes, j. 21.6.2005, DJU 01.07.2005, p. 5; Tribunal Regional Federal da 1a Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 200601000231525, Rel. Desembargador Federal Olindo Menezes, j. 06.04.2004, DJU 07.05.2004, p. 22; Tribunal Regional Federal da 2a Região, Quarta Turma, Agravo de Instrumento nº 9602220155, Rel. Juíza Nizete Antônia Lobato Rodrigues, j. 13.11.1996, DJU 11.11.1997, p. 95371; Tribunal Regional Federal da 4a Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 200004011094680, Rel. Desembargador Federal Teori Albino Zavascki, j. 12.06.2001, DJU 18.07.2001, p. 485; Tribunal Regional Federal da 4a Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 200004010342722, Rel. Desembargadora Federal Luciane Amaral Corrêa Münch, j. 03.08.2000, DJU 11.10.2000; Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 199904010953901, Rel. Desembargador Federal Teori Albino Zavascki, j. 03.02.2000, DJU 17.05.2000, p. 172; Tribunal Regional Federal da 5a Região, Pleno, Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa nº 2001.83.00.022867-2, Rel. Desembargador Federal Rivaldo Costa, j. 02.02.2005, DJU 02.03.2005, p. 563; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Nona Câmara de Direito Público, Agravo de Instrumento nº 55627353, Rel. Desembargador Osni de Souza, j. 25.10.2006; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Décima Primeira Câmara de Direito Público, Agravo de Instrumento nº 60288754, Rel. Desembargador Francisco Vicente Rossi, j. 11.12.2005; Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Terceira Câmara, Agravo de Instrumento nº 70012435590, Rel. Desembargadora Matilde Chabar Maia, j. 17.11.2005, DJ 09.01.06; Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Terceira Câmara, Apelação Cível nº 70011160066, Rel. Desembargador Nélson Antônio Monteiro Pacheco, j.11.08.2005, DJ 03.10.2005; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Primeira Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 0148658-2, Rel. Desembargado Troiano Netto, j. 20.04.2004, DJ 10.05.2004; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Primeira Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 160423-3, Rel. Juiz Péricles Bellusci de Batista Pereira, j. 15.02.2005, DJ 04.03.2005. 23
No sentido de haver tutela de evidência: Tribunal Regional Federal da 1a Região, Segunda Seção, Mandado de Segurança nº 9401329516, Rel. Juiz Tourinho Neto, j. 21.02.1995, DJU 10.04.1995, p. 20073; Tribunal Regional Federal da 1a Região, Segunda Turma, Agravo de Instrumento nº 200301000099819, Rel. Juiz Tourinho Neto, j. 26.08.2003, DJU 25.09.2003, p. 52; Tribunal Regional Federal da 1a Região, Segunda Turma, Agravo de Instrumento nº 200201000449522, Rel. Juiz Tourinho Neto, j. 20.05.2003, DJU 17.10.2003, p. 12; Tribunal Regional Federal da 1a Região, Se24
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Especial nº 1.319.515 – ES, apreciado pela 1ª Seção25 em 22 de agosto de 2012, em que restou vencedora a tese de que a cautelar patrimonial de indisponibilidade26 da lei de improbidade administrativa tem natureza de tutela de evidência e que como tal deve ser tratada. Este leading case é importante, pois, a partir dele, a jurisprudência do STJ tem dado respeito horizontal ao seu precedente e julgado os demais casos com coe-
gunda Turma, Agravo de Instrumento nº 200201000419581, Rel. Juiz Tourinho Neto, j. 19.03.2003, DJU 10.04.2003, p. 24; Tribunal Regional Federal da 2a Região, Quarta Turma, Agravo de Instrumento nº 200302010014284, Rel. Juiz Benedito Gonçalves, j. 29.09.2004, DJU 20.10.2004, p. 180; Tribunal Regional Federal da 2a Região, Sexta Turma, Agravo de Instrumento nº 200202010044983, Rel. Juiz André Fontes, j. 01.04.2004, DJU 08.09.2004, p. 185; Tribunal Regional Federal da 2a Região, Segunda Turma, Agravo de Instrumento nº 200102010386798, Rel. Juiz Sérgio Feltrin Corrêa, j. 26.09.2002, DJU 14.11.2002, p. 436; Tribunal Regional Federal da 2a Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 9802257974, Rel. Juiz Júlio Martins, j. 07.04.1999, DJU 31.08.1999; Tribunal Regional Federal da 2a Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 9802335860, Rel. Juiz Júlio Martins, j. 10.03.1999, DJU 15.06.1999; Tribunal Regional Federal da 3a Região, Segunda Turma, Agravo de Instrumento nº 200102010386798, Rel. Juiz Arice Amaral, j. 22.08.2000, DJU 16.11.2000; Tribunal Regional Federal da 3a Região, Terceira Turma, Agravo de Instrumento nº 199903000003158, Rel. Juíza Cecília Marcondes, j. 20.10.1999, DJU 24.11.1999, p. 353; Tribunal Regional Federal da 3a Região, Segunda Turma, Agravo de Instrumento nº 97030135641, Rel. Juiz Célio Benevides, j. 20.10.1999, DJU 29.10.1997; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Segunda Câmara de Direito Público, Agravo de Instrumento nº 0525035, Rel. Desembargador Lineu Peinado, j. 12.05.1998; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Décima Câmara de Direito Público, Agravo de Instrumento nº 6073845, Rel. Desembargador Torres de Carvalho; Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Vigésima Primeira Câmara, Apelação Cível nº 70004062097, Rel. Desembargador Marco Aurélio Hens, j. 19.03.2003; Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Terceira Câmara, Agravo de Instrumento nº 70003548328, Rel. Desembargador Augusto Otávio Stern, j. 14.03.2002; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Quarta Câmara Cível Agravo de Instrumento nº 3223043, Rel. Desembargadora Regina Afonso Pontes, j. 13.06.2006, DJ 28.07.2006; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Primeira Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 1202142, Rel. Juiz Airvaldo Stela Alves, j. 26.11.2002, DJ 16.12.2002. Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/ acórdão Min. Mauro Campbell Marques, DJe 21.9.2012. 25
O julgamento ao chegou a enfrentar diretamente a natureza da cautelar de sequestro, mas entendemos que segue a mesma ratio empregada para se reconhecer como de evidência a cautelar de indisponibilidade, cuja diretriz hermenêutica já enunciamos. 26
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rência ao mesmo entendimento27.
1.2.3 – Aplicação do contraditório. Como não poderia ser diferente, o princípio do contraditório também é aplicável no âmbito das medidas cautelares. A parte requerida deve ter ciência da informação do que contra ela é pedido, bem como lhe ser franqueada a oportunidade de apresentar argumentos contrários a essa medida, podendo influir no provimento jurisdicional. A experiência prática demonstra que as cautelares patrimoniais, para terem um mínimo de efetividade, muitas vezes precisam ser concedidas e executadas sem o imediato conhecimento do agente ímprobo. Isso porque o simples temor de que os bens serão sequestrados ou postos em indisponibilidade pode acarretar o seu ocultamento, dilapidação ou mesmo embaraço para inviabilizar a medida, por parte do requerido. Talvez seja no campo dos provimentos liminares que a tensão entre os princípios da efetividade e o da segurança jurídica é mais contundente, principalmente diante de medidas inaudita altera parte. De um lado, e como corolário do acesso à Justiça e da duração razoável do processo (CF, art. 5º, XXXV e LXXVIII), o princípio da efetividade reclama que a
REsp 1306834 / PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, Data do Julgamento 07.05.2013; Data da Publicação/Fonte DJe 17.05.2013; AgRg no REsp 1312389, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, Data do Julgamento 07.03.2013, Data da Publicação/Fonte DJe 14.03.2013. 27
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jurisdição propicie um resultado útil, apto a ser concretamente realizado. Do outro, o princípio da segurança jurídica, tendo no contraditório um de seus consectários, assegura a participação da partes na formação do provimento jurisdicional. A colisão de princípios já foi amplamente discutida na doutrina, tendo nas grandes figuras de Robert Alexy28 e Ronald Dworkin29 seus principais estudiosos. Não sendo este trabalho campo propício para o aprofundamento do assunto, resta consignar que a solução para resolver o conflito entre os princípios é verificar, de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto, qual dos princípios possui maior peso, dando-lhe a prevalência, sem necessariamente anular por completo o outro30. Em alguns casos, contudo, o legislador já estabelece antecipadamente a ponderação e o princípio que deverá prevalecer. Assim, havendo o preenchimento de determinados requisitos, o princípio do contraditório, de antemão, deve ceder
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios políticos y constitucionales, 1993, p. 12. 28
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DWORKIN, Ronald. Taking rigths seriously. London: Duckworth, 1991, p. 26.
A propósito do tema, OWEN FISS acrescenta que: “Os valores presentes na Constituição norte-americana – a liberdade, a igualdade, o devido processo legal, a liberdade de expressão, de religião, o direito à propriedade, o cumprimento integral das obrigações contratuais, a segurança do indivíduo, a proibição de formas cruéis e incomuns de punição – são ambíguos, pois dão margem a um grande número de interpretações diferentes, via de regra conflitantes. Há, portanto, uma necessidade constitucional: dar-lhes um significado específico, definindo seus respectivos conteúdos operacionais, a fim de possibilitar a definição das prioridades a serem consideradas em caso de conflito”. (In: Um novo processo civil: Estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: RT, 2004, p. 25) 30
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espaço para o do acesso à justiça. É o que se verifica, por exemplo, na antecipação de tutela (CPC, art. 273), na liminar em mandado de segurança (Lei 1.533/51, art. 7º, II), nas medidas cautelares (CPC, art. 804), na liminar da ação civil pública (Lei 7.347/85, art. 12), entre outros. Nos casos de tutela de urgência, além do fumus boni juris, há de ser demonstrado o periculum in mora, que foi positivado nas expressões: “receio de dano irreparável ou de difícil reparação” (CPC, art. 273, I); “puder resultar a ineficácia da medida” (Lei 1.533/51, art. 7º, II); “receio de que uma das partes, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação (CPC, art. 798); ou “poderá torná-la ineficaz” (CPC, art. 804). Já nos casos de tutela de evidência, basta a parte comprovar que a sua alegação é verossimilhante, pois, pela própria natureza do bem da vida deduzido em juízo, o legislador dispensou o requisito do perigo da demora. E a concessão de liminar não é nenhuma atitude irrazoável, já que, bem demonstrado o fumus boni juris, a tutela definitiva muito provavelmente será consagrada em favor do autor. Além do mais, não tendo a medida o perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, se acaso o julgamento for de improcedência, não haverá maiores problemas de se retornar ao status quo ante. Lembrando, inclusive, que as cautelares patrimoniais não antecipam penas, apenas visam a garantir a recomposição do patrimônio público ou a recuperação do produto do enriquecimento ilícito. Portanto, não agride o princípio do contraditório a concessão de medidas liminares sem a oitiva da parte contrária, sendo certo que as cautelares patrimoniais dos arts. 7º e 16 da LIA, podem ser concedidas, a teor do art. 12 da LACP,
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com ou sem justificação prévia. Além disso, o contraditório, nas hipóteses de provimento liminar sem a prévia oitiva da parte contrária, será diferido31. Mesmo nesse caso, haverá sim a audiência bilateral e a paridade de armas, sendo que a participação da outra parte, pelas próprias circunstâncias do caso, não será simultânea, mas certamente será simétrica, ou seja, com a mesma dimensão e intensidade da participação da outra parte. Resta, por fim, enfrentar a aplicabilidade, ou não, da Lei 8.437/92, que determina somente ser concedida a liminar, quando cabível, “após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas”. Embora de constitucionalidade duvidosa, percebe-se que esta lei tem o objetivo de proteger o Estado nas demandas em que figure no pólo passivo da relação processual. Diante disso, não há que se falar da incidência da Lei 8.437/92 nos processos de improbidade administrativa, pois nesta relação processual o Estado não figura como réu, bem como os interesses tutelados não vão de encontro aos da Segundo Cândido Rangel Dinamarco: “(...) a urgência de certas situações (periculum in mora) exige a imposição de medidas igualmente urgentes, sem prévio contraditório (inaudita altera parte): é o que pode dar-se com as cautelares e se dá com as liminares em geral, em razão dos males do fluir do tempo (o tempo é um inimigo), sem que no entanto fique excluído o contraditório, mas tão-somente postergado”. (In: A instrumentalidade do processo. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 133). Visto sob o ângulo da efetividade, Luiz Guilherme Marinoni assevera que: “Se a efetivação da medida cautelar inaudita altera parte, em algumas hipóteses, é absolutamente necessária para preservar a efetividade da tutela do direito afirmado pelo autor, a sua excepcionalidade decorre do fato de que esta posterga o contraditório. Em nome da efetividade do contraditório, ao réu deve ser permitido demonstrar, com a maior brevidade possível, a eventual inexistência dos fundamentos que autorizaram a concessão da medida”. (In: Efetividade do processo e tutela de urgência. Porto Alegre: Fabris, 1994, p. 79-80) 31
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pessoa jurídica de direito público. Muito pelo contrário, busca-se na ação de improbidade resguardar os interesses maiores do Estado, velando pelo império do princípio da moralidade e pela recomposição do patrimônio público32.
1.3 – Afastamento do agente público. O afastamento do agente público foi previsto pela LIA como medida para a garantia da instrução processual. Incluído no capítulo que trata das disposições penais, o dispositivo prevê que: “Art. 20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória. Parágrafo único. A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual”. As sanções da perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos são bastante pesadas para um agente público, pois o retira definitivamente do seu atual exercício funcional e temporariamente do exercício do seu status activae civitatis. Em razão disso, tais medidas só se materializarão após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Com essa observação, tem-se que o afastamento do cargo tem natureza emi-
Esse entendimento, inclusive, já restou assentado no Superior Tribunal de Justiça nos seguintes julgados: RMS 5621-0-RS; REsp 293.797-AC; REsp 73.083-DF; REsp 468354-MG; MC 3018-GO. 32
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nentemente cautelar, e não de antecipação de tutela33. A finalidade da norma á clara, conforme nos explica Rogério Pacheco Alves: “Por intermédio do afastamento provisório do agente, busca o legislador fornecer ao juiz um importantíssimo instrumento com vistas à busca da verdade real, garantindo a verossimilhança da instrução processual de modo a evitar que a dolosa atuação do agente, ameaçando testemunhas, destruindo documentos, dificultando a realização de perícias etc., deturpe ou dificulte a produção dos elementos necessários à formação do convencimento judicial”.34
A presente medida encerra uma tutela de urgência. A par do fumus boni juris, deve ser demonstrado o periculum in mora. Cabe ao requente provar que o agente público, no exercício do cargo e utilizando-se dele, promoveu ou promoverá atos tendentes a comprometer a regular instrução do processo. Com relação à intensidade da prova, Teori Albino Zavascki entende que: “Não basta a possibilidade teórica de perigo ou de ameaça. É preciso que eles sejam reais, fundados em dados concretos e extraídos da con-
João Gilberto Gonçalves Filho defende a aplicação da tutela antecipada para determinar o afastamento do agente público do cargo, emprego ou função, cujo raciocínio encerra a seguinte conclusão: “Por essas razões, trazendo a axiologia desses valores constitucionais para a ACP por ato de improbidade, conectado a Lei 8.429/92 com a legislação posterior (nova redação do art. 273 do CPC), mostra-se cabível a antecipação de tutela para afastar o agente público de suas funções, mesmo que a medida não seja necessária à instrução processual, desde que a procedência da ação seja bastante plausível (amparo em robustas provas), o ato imputado seja grave o suficiente (alta gravidade) e os antecedentes do agente sejam desfavoráveis. São estes os três critérios a nortear a adoção da medida antecipatória”. (In: O direito a uma tutela efetiva e tempestiva na ação civil pública. In: Ação civil pública: 20 anos da Lei 7.347/85. coord. João Carlos de Carvalho Rocha, Tarcísio Humberto Parreiras Henriques Filho e Ubiratan Cazetta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 141-142.) 33
34
Op. cit., p. 625-626.
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duta do requerido. É preciso demonstrar também que a medida será eficaz para afastar o risco: a suspensão do cargo não pode representar um simples castigo antecipado, mas deverá constituir a alternativa necessária para evitar o dano ao processo. Finalmente, não pode ser deferido o afastamento cautelar se o resultado a que visa puder ser obtido por outros meios, que não comprometam o bem jurídico protegido no caput do art. 20 da Lei (o exercício do cargo)”35
Rogério Pacheco Alves, fazendo uma abordagem realista, diz que: (...) embora não possa o afastamento provisório arrimar-se em ‘meras conjecturas’, não tem sentido exigir a prova cabal, exauriente, de que o agente, mantido no exercício da função, acarretará prejuízo ao descobrimento da verdade. Indícios já serão suficientes à decretação da medida, o que em nada infirma o seu caráter excepcional. Como sinteticamente exposto por Galeno Lacerda, ‘se o dano ainda não ocorreu, não se requer prova exaustiva do risco. Basta a probabilidade séria e razoável, para justificar a medida’. Segundo pensamos, a análise judicial quanto à presença de ‘probabilidade séria e razoável’ de risco para a instrução processual passa, necessariamente, pelas denominadas ‘regras de experiência comum’ (‘máximas de experiência’), ‘subministradas pela observação do que ordinariamente acontece’ (art. 335 do CPC). Este, a nosso ver, o único caminho possível ao ingresso de presunções no campo de análise do periculum in mora”.36
35
Op. cit., p. 126.
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Op. cit., p. 626-627.
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Nessa espécie de medida cautelar, ao contrário das medidas patrimoniais, a regra será a prévia oitiva do agente público. Mesmo sem ter um caráter sancionador, o afastamento do agente do seu cargo, emprego ou função é bastante grave, muito embora a própria lei lhe preserve a remuneração, acaso a medida seja implementada. Somente em casos excepcionais a medida deverá ser apreciada inaudita altera parte. Cumpre que a simultaneidade e simetria sejam preservadas, a fim de conferir ao agente a possibilidade de influir previamente no provimento judicial, participando plenamente do processo. Como se percebe, o contraditório aqui deve ser amplo, em razão da própria gravidade do provimento, só se admitindo a sua mitigação em situações extremas.
1.4 – Conclusões 01. A LIA disciplinou, nos arts. 7º, 16 e 20, três providências cautelares específicas, a saber, a indisponibilidade; o sequestro de bens; e o afastamento cautelar do agente público. Pela sua própria natureza, tais medidas não ostentam nenhum caráter sancionador. 02. Com relação às cautelares patrimoniais – indisponibilidade e sequestro de bens – a LIA admitiu de forma expressa a tutela de evidência, pois em nenhum momento previu o requisito da urgência, reclamando apenas, para o cabimento da medida, a demonstração, numa cognição sumária, de que o ato de improbidade causou lesão ao patrimônio público ou ensejou enriquecimento ilícito. 03. A experiência prática demonstra que as cautelares patrimoniais, para terem um mínimo de efetividade, muitas vezes precisam ser concedidas e execu-
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tadas sem o imediato conhecimento do agente ímprobo, tendo em conta que o simples temor de que os bens serão sequestrados ou postos em indisponibilidade pode acarretar o seu ocultamento, dilapidação ou mesmo embaraço para inviabilizar a medida, por parte do requerido. 04. A cautelar de afastamento do agente público encerra uma tutela de urgência, cabendo ao requerente demonstrar o fumus boni juris e o periculum in mora, que consiste em provar que o agente público, no exercício do cargo e utilizando-se dele, promoveu ou promoverá atos tendentes a comprometer a regular instrução do processo. Diante da gravidade da medida, somente em casos excepcionais, a medida será concedida inaudita altera parte.
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A tutela preventiva do patrimônio público: a experiência do grupo de trabalho copa do mundo Fifa de 2014 da 5A CCR/MPF
Athayde Ribeiro Costa1
1 Procurador da República
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O Brasil foi escolhido, em 2007, para sediar o mais importante evento futebolístico do mundo: a Copa do Mundo FIFA. Nesse contexto, foram firmadas pelo país garantias para que o evento de 2014 fosse aqui realizado, dentre elas, garantias de isenções fiscais para a FIFA e afiliadas, construção de estádios, melhorias nas condições de mobilidade urbana das cidades, capacitação de pessoas, dentre outras. Diante do porte e da importância do evento, estava claro que grandes investimentos seriam realizados no país e, com isso, a proteção ao patrimônio público deveria ser tratada estrategicamente pelo Ministério Público brasileiro. Foi pensando nisso que a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal criou, em agosto de 2009, ou seja, logo após a escolha das cidades brasileiras que iram sediar os jogos, o Grupo de Trabalho ad hoc Copa do Mundo FIFA Brasil de 20141, prática que foi premiada na IX Edição do Prêmio 1
Ata da 491a Reunião/Sessão Extraordinária da 5a Câmara de Coordenação e Revi-
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Innovare, em 2012, na categoria Ministério Público. O Grupo de Trabalho da Copa de 2014 tem por objetivo atribuir no âmbito do Ministério Público Federal tratamento prioritário, preventivo e uniforme às investigações que visam acompanhar a aplicação de recursos públicos federais nos atos preparatórios para a realização da “Copa do Mundo da FIFA Brasil de 2014”2 A inspiração para criação do Grupo de Trabalho da Copa de 2014 decorreu do mau exemplo, em matéria de patrimônio público, ocorrido por força da realização do Pan-Americano de 2007, evento esportivo realizado na cidade do Rio de Janeiro, no qual foram constatadas irregularidades e desvios de verbas públicas em valores astronômicos. Além disso, os jogos Pan-Americanos não contaram com um planejamento adequado, as licitações foram efetuadas com base apenas em estudos preliminares e sem os necessários projetos básicos, fatos estes que acarretaram o estouro do orçamento em dez vezes ao inicialmente previsto e, certamente, foram facilitadores para o desvio de verbas públicas. Em termos numéricos, o orçamento inicial do Pan-Americano girava em torno de 300 milhões de reais e ao final o gasto foi contabilizado em 3 bilhões de reais, com uma crescente participação da União nos investimentos para realiza-
são do MPF, publicada no Diário da Justiça no. 162, de 25 de agosto de 2009, pág. 2.
Exposição de Motivos 001/2009 para criação do Grupo de Trabalho encaminhada à 5a Câmara de Coordenação e Revisão por meio do Ofício 1045/2009/4OFCIV/PRAM. 2
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ção do torneio esportivo.3 Foi com o intuito de evitar a repetição dos atos ocorridos no jogos Pan-Americanos que a 5a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal criou o Grupo de Trabalho da Copa 2014 (GT Copa 2014.) O GT em referência traz uma proposta de fiscalização dos gastos públicos mediante o acompanhamento concomitante dos atos de organização da Copa de 2014. A ideia é a priorização da tutela jurídica preventiva, para que o Ministério Público possa atingir o grau máximo na eficácia da defesa da ordem jurídica e do regime democrático, evitando a concretização de danos ao patrimônio público. Vale especificar que a tutela jurídica preventiva revela um desafio e exige uma mudança de postura dos membros do Ministério Público para priorizar a atuação antes da lesão aos direitos coletivos. Para ALMEIDA (2008, p. 84) a consagração da tutela jurídica preventiva no seio do Ministério Público Brasileiro constitui o quinto grande momento histórico da instituição: O Ministério Público brasileiro já passou por alguns grandes momentos históricos. O primeiro deles pode ser apontado como o de reconhecimento como instituição, o que aconteceu com o advento da república, durante o Governo Provisório, por força do trabalho do então
Sobre as irregularidades ocorridas no Pan-Americano de 2007: TCU, Acórdão 876/2007-Plenário de 16/5/2007 e Acórdão 2101/2008, Plenário de 24/9/2008. 3
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Ministro Campos Salles. O segundo pode ser indicado como sendo o decorrente da Lei Complementar Federal nº 40/81, que foi a primeira Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, assim considerada porque definiu um estatuto básico e uniforme para o Ministério Público nacional e dispôs sobre as suas principais atribuições, garantias e vedações. Um terceiro grande momento ocorreu com o advento da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), que conferiu legitimidade ao Ministério Público para a defesa jurisdicional e administrativa dos interesses e direitos difusos e coletivos, além de ter criado o inquérito civil. O Ministério Público começa a ter aqui função promocional de transformação da realidade social. Um quarto momento pode ser apontado com o advento da CF/88, o mais significativo e transformador de todos, conforme motivos já aduzidos acima. Agora entendemos que resta a construção de um quinto grande momento histórico. No entanto, ele não ocorrerá do dia para a noite, nem se dará com simples alteração da lei ou da Constituição. Ele se dará com a mudança cultural no seio da Instituição e com a elaboração de técnicas e estudos que possam fazer com que o Ministério Público possa priorizar a mais significativa e importante tutela jurídica do Estado Democrático de Direito: a tutela preventiva. A tutela jurídica preventiva é a mais genuína forma de proteção jurídica no contexto do Estado Democrático de Direito. Ela decorre do princípio da prevenção geral como diretriz, inserida no princípio democrático (art. 1º da CF/88).
É dentro desse panorama que o GT Copa do Mundo FIFA 2013 tenta se inserir, com o compromisso de atuar na solução dos problemas tendo como paradigma
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o modelo do Ministério Público resolutivo. O denominado modelo do Ministério Público resolutivo tem como principal característica o engajamento do membro do Parquet na resolução das questões de sua atribuição funcional em contraponto ao denominado Ministério Público demandista. Sobre o tema diz MIRANDA: Com efeito, não se concebe hodiernamente que os membros do Ministério Público – mormente os que atuam na defesa de direitos difusos e coletivos – se transformem em meros e contumazes repassadores de demandas ao Poder Judiciário, como se acometidos do chamado complexo de Pilatos, caracterizado por lavar as mãos e transferir a responsabilidade pela resolução de determinado problema a terceira pessoa. Como bem ressalta Jaques de Camargo Penteado: “Um Promotor de Justiça não é o porteiro de teatro que anseia pelo encerramento do recital para fechar as portas do edifício”. (MIRANDA,2008, p.2195)
Com o trabalho focado no “compromisso do resultado” (MIRANDA, 2010), tem-se obtido muito sucesso na resolução preventiva e extrajudicial de inúmeros casos envolvendo o patrimônio público, proporcionando-se um desafogo ao Poder Judiciário, pois se evita o ajuizamento de inúmeras Ações Civis Públicas por todo o país, que possuem o risco de serem pouco efetivas diante da consumação das indesejáveis irregularidades durante o trâmite processual e pela dificuldade de se obter o ressarcimento ao erário de recursos públicos desviados. De outro lado, o acompanhamento contínuo do Ministério Público Federal dos gastos envolvendo a Copa do Mundo FIFA 2014 proporcionará, em caso de eventual insucesso na atuação preventiva, o aprimoramento da tutela repressiva,
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na medida em que garante a inequívoca ciência do gestor sobre a irregularidade da conduta questionada. Em grande número de casos envolvendo obras públicas, após a detecção das irregularidades (materialidade), há maior dificuldade para se apontar ou responsabilizar o gestor público responsável pela conduta irregular, seja no âmbito das petições iniciais, seja no âmbito das decisões judicais. No caso, o acompanhamento concomitante dos atos de organização da Copa de 2014 pelo Ministério Público Federal contribuirá para o ajuizamento de ações com melhor descrição de autoria e caracterização do elemento anímico do responsável, pois os gestores públicos são alvos de constantes questionamentos e recomendações por força da atuação do GT Copa 2014. Desde a sua implantação, o Grupo de Trabalho Copa do Mundo FIFA 2014, que conta com 12 (doze) membros, reúne-se periodicamente na sede da Procuradoria Geral da República. Nos encontros do Grupo de Trabalho são efetuadas reuniões com os principais ministérios imbuídos de organizar a Copa do Mundo, entre eles, o Ministério do Esporte, do Turismo, das Cidades, do Planejamento, da Fazenda, etc. O diálogo com o Executivo Federal é extremamente importante para que o Ministério Público tenha condições de conhecer e discutir sobre eventuais problemas que possam ocorrer na conduta dos gestores. Foram nessas rodadas de reuniões que soluções benéficas ao patrimônio público foram definidas, a necessidade de expedições de recomendações foram detectadas, bem como se acataram justificativas apresentadas pelo Poder Público. O GT Copa 2014 conta, ainda, com a relevante parceria da Controladoria Ge-
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ral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU), cuja atuação orquestrada otimiza o trabalho, evita superposição de esforços e possibilita um resultado eficaz na análise técnica. A aproximação sistêmica dos órgãos de controle na fiscalização da Copa do Mundo de 2014 tem se mostrado extremamente profícua para a obtenção de bons resultados para todas as instituições. Além disso, o Grupo de Trabalho prioriza a atuação conjunta com os Ministérios Públicos do Estados, com repasse de informações relevantes, proposição de estratégias comuns, situação que vem ocorrendo sistematicamente em todo o país. As atuações conjuntas que ocorreram desde 2009 foram ainda mais otimizadas após a criação, pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), do “Fórum Nacional de Articulação das Ações do Ministério Público na Copa” em 2012. Em termos concretos, o Tribunal de Contas da União (TCU) estimou que a atuação preventiva dos órgãos de controle na Copa do Mundo FIFA 2014 garantiu uma economia aos cofres públicos de aproximadamente R$ 600 milhões de reais, até o ano de 2012. Como resultado do trabalho do GT Copa do Mundo de 2014, pode-se destacar a correção de defeitos em editais de licitação, a regularização (complementação) de projetos básicos em licitações, a eliminação de sobrepreços em contratos, a alteração de cláusulas contratuais em PPP’s, a anulação de convênios falsamente vinculados à Copa do Mundo FIFA 2014, a alteração de diplomas normativos e regulamentações emanadas do Executivo Federal, o incremento dos controles nas concessões de financiamentos e acompanhamento de convênios vinculados
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à Copa do Mundo FIFA 2014. Pontue-se, ainda, entre outros casos, a expedição de Recomendação Conjunta pelo Ministério Público Federal e Estadual na Bahia, acatada pelo Estado da Bahia, que acarretou uma economia estimada de R$150 milhões aos cofres públicos na operação da Parceria Pública Privada do Estádio da Fonte Nova. Também serve de exemplo a Recomendação 10/2010 da PR/PR, na qual se demonstrou a falsa justificativa vinculada à Copa do Mundo FIFA 2014 para Construção do Estádio em Roraima, atuação que culminou na anulação do Convênio 740327/2010, celebrado entre o Ministério do Esporte e o Estado de Roraima, gerando uma economia de pelo menos R$ 230 milhões de reais aos cofres públicos. Como fruto do trabalho, destaca-se também o ajuizamento de 3 (três) ações direta de inconstitucionalidade pela Procuradoria-Geral da República, dentre as quais, a ADI 4655, na qual se contesta dispositivos da Lei n.º 12.462/11, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas. Os dispositivos questionados violam o artigo 37, XXI, da Constituição Federal, com elevado potencial de gerar danos ao patrimônio público e, consequentemente, ao princípio da economicidade. Já a ADI 4976 que ataca dispositivos da Lei 12.663/2012 (Lei Geral da Copa), em especial o artigo 23, que impõe a União a responsabilização objetiva perante a FIFA, sem necessidade de conduta de agente público, nos casos de dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado a Copa do Mundo FIFA 2014. Aponta-se na demanda, neste
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caso, ofensa ao artigo 37, § 6º da Constituição Federal. Por fim, foi ajuizada a ADI 5030 que questiona dispositivos da Lei 12.350/2010 e do Decreto 7.578/2011. A mencionada lei dispõe sobre medidas tributárias referentes à realização, no Brasil, da Copa das Confederações Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, enquanto o decreto regulamenta as medidas tributárias a serem aplicadas. Aponta-se a vulneração ao artigo 150, II, da Constituição da República, pois o legislador não pode favorecer um contribuinte em detrimento de outro, por violação ao princípio da igualdade. Conforme a ação, não é possível vislumbrar nenhuma razão que justifique o tratamento diferenciado da Fifa e de seus relacionados, não sendo a Copa do Mundo motivo constitucionalmente relevante para legitimar a isenção concedida. Em suma, o Grupo de Trabalho ad hoc Copa do Mundo FIFA de 2014/MPF vem se esforçando para, através da atuação preventiva, evitar o desvio de verbas públicas na organização da referida competição esportiva. A proposta de trabalho é árdua e os resultados de sua atuação poderão ser valorados após alguns anos da realização do evento. Todavia, ainda que os efeitos almejados não ocorram a contento, fica a tentativa de inovar na importante e necessária atuação preventiva, que poderá ser aprimorada em momentos distintos. Oxalá o Grupo de Trabalho da Copa de 2014 contribua com a construção do “quinto grande momento histórico do Ministério Público Brasileiro: a consagração da priorização da tutela preventiva no seio da instituição”. (ALMEIDA, 2008)
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Referências Bibliográficas: ALMEIDA, Gregório Assagra de. e Outros: Princípios, Garantias, Deveres e Atribuições, in
Manual de Atuação Funcional do Ministério Público do Estado de Minas
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MIRANDA, Marcos Paulo de Souza: Ministério Público: atuação especializada na defesa do patrimônio cultural e turístico, in Manual de Atuação Funcional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais/ Centro de Estudos e A perfeiçoamento Funcional. Belo Horizonte: CEAF, 2008. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza: A R ecomendação Ministerial como Instrumento Extrajudicial de Solução de Conflitos A mbientais, in Temas Atuais do Ministério Público, A Atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal, 2a Edição, Coord: Cristiano Chaves e Outros, Ed. Lumem Juris, 2010.
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