HISTORIA E ANTOLOGIA DA LITERATURA PORTUGUESA-SÉCULO XVIIHalp 29 - FUNDACAO KALOUSTE GULBENKIAN

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N.º 29

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN 1

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS


HALP N. 29

Professores/Investigadores Ana Hatherly Gilberto Mendença Teles Zulmira Santos

Agradecimentos Editoral Presença Verbo Editora Imprensa Nacional Casa da Moeda

Ilustração Capa: Jean-Baptiste-Siméon Chardin (French, 1699-1779): The House of Cards. Signed. c. 1735. Canvas, 82 x 66 cm. Andrew W. Mellon Collection

Ficha Técnica Edição da Fundação Calouste Gulbenkian Serviço de Educação e Bolsas Av. de Berna 45A – 1067-001 Lisboa Autora: Isabel Allegro de Magalhães Concepção Gráfica de António Paulo Gama Composição, impressão e acabamento G.C. Gráfica de Coimbra, Lda. Tiragem de 11.000 exemplares Distribuição gratuita Depósito Legal n.º 206390/04 ISSN 1645-5169 Série HALP n.º 29 – Outubro 2004

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SÉCULO XVII POETAS DO PERÍODO B A R R O C O (II)

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Índice

Carta Escrita a um Amigo seu depois de ser Religioso e Fugida para o Deserto e Desengano do Mundo. ...................................... 46 Gregório de Matos (1633-1696) Obras I e II: Sonetos, Décimas, Mote, Glosas e Romances .......................................... 53

Nota Prévia ................................................ 7

Introduções. Estudos Breves.

Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) Música do Parnaso: cinco poemas ....................... 63

“Frei Jerónimo Baía” Zulmira Santos ................................................ 11

Sóror Maria do Céu (1658-1752) Enganos no Bosque, Desenganos no Rio.Obras Várias e Admiráveis. A Preciosa: oito poemas ....... 65

“António da Fonseca Soares (Frei António das Chagas)” Maria de Lourdes Belchior .............................. 12

Tomás Pinto Brandão (1664-1743) Pinto Renascido Empenado e Desempenado: sete poemas ...................................................... 71

“Gregório de Matos” Gilberto Mendonça Teles ................................. 15 Poesia Visual:

Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665 – 1723) Hecatombe Métrico. Feudo do Parnaso. Fénix II e III: Sonetos e outros poemas ......................... 74

“A Experiência do Prodígio. Exemplos de textos visuais portugueses” Ana Hatherly ................................................... 17

Jacinto Freire de Andrade Fénix III: um poema ........................................ 79

Textos Literários: D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) Fénix Renascida,V: dois poemas ........................... 25

Sóror Madalena da Glória (1672 - 1759) Orbe Celeste. Brados do Desengano [...]: sete poemas ............................................................ 81

Frei Jerónimo Baía (c.1620 - 1688) Fénix Renascida I, IV: Décimas, Sonetos, Romances, Canção, Mote glosado e outros poemas ............................................... 26

Francisco de Pina e Melo (1695 – c. 1765) As Rimas: dezasseis poemas .............................. 85 Outros Poetas:

André Nunes da Silva (1630-1705) Poesias Várias: quatro Sonetos ........................... 44

Leonarda da Encarnação ............................. 90

António da Fonseca Soares Frei António das Chagas (1631-1682) Fénix III-IV. Cancioneiros Manuscritos.

Francisco Dias de Gusmão ......................... 90 Bernarda Ferreira ......................................... 90

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Poesia Visual: Labirinto de letras .......................................... 91 Labirinto cúbico [...] ....................................... 91 Labirinto de versos ......................................... 92 Acróstico ..................................................... 93 Bibliografia sumária .................................... 95

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Nota Prévia Como anunciado na “Nota Prévia” do Boletim anterior, com o qual este forma uma unidade, a de uma longa Antologia da Poesia Portuguesa Seiscentista, figuram aqui cento e vinte e seis poemas de dezasseis poetas. Os textos introdutórios de carácter geral, bem como a bibliografia sobre o período barroco e a sua poesia, foram já incluídos no primeiro destes volumes. Outubro de 2004 ISABEL AIIEGRO

DE

MAGALHÃES

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I N T RO D U Ç Õ E S ESTUDOS BREVES

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Frei Jerónimo Baía

incluído num conjunto de composições que lhe são atribuídas –, tornaram-se exemplos da capacidade de desenvolver jogos de palavras a propósito dos temas mais banais, no sentido em que a pequenez do pé surge transfigurada num «instante de jasmin, concepto breve / Átomo de açucena presumido / Sospecha de crystal, susto de nieve;» (Fénix Renascida, tomo III, p. 202). Esta mesma técnica descritiva, transfiguradora da realidade e do quotidiano, surge noutras composições como «Retrato» [...] e investe essencialmente na capacidade analítica e discursiva do autor. Um dos exemplos mais evidentes desta fecundidade expressiva é, justamente, o célebre Lampadário de Cristal, inspirado pelo lampadário oferecido pela duquesa de Sabóia à irmã, D. Magia Francisca, rainha de Portugal. [...] Nesta poesia de circunstância, entendida como divertimento palaciano, pode ainda integrar-se a temática religiosa que J. Baía explorou de várias formas [...] também sem nome de autor, mas incluída num conjunto de composições a ele pertencentes – «Ao Nascimento do Menino Deus» (F. R.VI, 365), «Ao Santíssimo Sacramento» (F. R., II, 303).

(excerto) ZULMIRA SANTOS*

BAÍA, Jerónimo (1620?/30?, Coimbra - 1688, Viana do Castelo). Beneditino, foi célebre, ao tempo, pelos dotes oratórios e é hoje tido por um dos poetas mais emblemáticos do estilo de época que continua, algo confusamente, a ser designado como barroco*. Pregador de D.Afonso VI, cronista da Ordem a que pertencia, Jerónimo Baía tornou-se nome conhecido da tradição literár ia portuguesa, pela autoria, nem sempre rigorosamente autenticada, de várias composições poéticas recolhidas sobretudo nos cancioneiros denominados Fénix Renascida e Postilhão de Apolo (v. Fénix Renascida e Postilhão de Apolo). Na medida em que os seus versos exploram temas e formas estróficas diversas, típicas do que tem vindo a ser designado como cultismo e conceptismo, Jerónimo Baía tornou-se, de certo modo, o paradigma de uma poesia que leva ao extremo aquilo que Hernâni Cidade apelidou de «formalismo literário» (Cidade, H., Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, Coimbra, 7.ª ed., 1984, pp. 440-457). Deste modo, sonetos como o ridicularizado por Verney, no Verdadeiro Método de Estudar (1746), intitulado «A um pé pequeno» – que verdadeiramente não ocorre com o nome do autor, mas que está, todavia, * In Dicionário de Literatura Portuguesa. Org. e dir. Á. Manuel Machado. Lisboa: Presença, 1996.

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António da Fonseca Soares (Frei António das Chagas)

de uma dolorida religiosidade, de cânticos espirituais, de sermões e de outras obras, algumas miúdas, prenhes de um desencantado amargor, fruto provavelmente da sua experiência mundanal. Estas duas vidas, a primeira frívola e desregrada, a segunda asceticamente penitente e reparadora das faltas cometidas, ajustam-se perfeitamente ao ritmo vital do seu tempo. Poderíamos, integrando a vida e a obra totais do Fonseca-Chagas no século XVII, considerá-la como representativa da sua época, e não seria injustificado um estudo que se intitulasse «Frei António das Chagas – um homem e um estilo do século XVII». O poeta António da Fonseca Soares, o Fonseca, teve grande voga no seu tempo, prolongou-se a fama e chegou até Verney, motivo por que o escolhe para bode expiatório da sua impiedosa crítica: «Ouvi gabar muito um soneto do Chagas» (p. 255) e sem sair do Chagas que parece a muitos que é bom poeta «escolhi este autor, porque é mui conhecido e louvado e procurado de muitos» (p. 264, ed. cit.). Ora as obras do Fonseca ficaram inéditas. Digo Fonseca, por querer dar o seu a seu dono. Do Fonseca são os romances, os sonetos, etc., que o Chagas tanto desejava destruir, prometendo rezar e disciplinar-se por quem lhe remetesse qualquer cópia dos seus versos de juventude. Mas de nada lhe valeram tais promessas, porque numerosas cópias dos romances, dos sonetos e da Filis nos ficaram, em manuscritos, alguns ainda do século XVII e muitos do século XVIII, espalhados hoje pelas bibliotecas e arquivos do País. [...] Ficaram inéditas as obras do Fonseca. E terão tais inéditos valor literário? Valerá a pena arrancá-los à poeira dos arquivos e trazê-los à luz da ribalta? Há que distinguir... O inédito tem às vezes um poder bruxo, sobretudo em países onde se sobrevaloriza por virtude de estarem mui pouco desbravados os campos eruditos da investigação literária. Além do mais são ainda úteis os inéditos, porque dão notícias, fornecem dados, necessários

(excerto) MARIA DE LOURDES BELCHIOR*

O POETA ANTÓNIO DA FONSECA SOARES (EM RELIGIÃO FREI ANTÓNIO DAS CHAGAS)

[...] Do Fonseca pouco nos dizem os biógrafos, os cronistas, interessados naturalmente em exaltar o Venerável, e justificadamente interessados também portanto em esquecer o que no mundo fora António da Fonseca Soares. E quando se lhe referem é para do confronto Fonseca-Chagas, pelo contraste, se agigantar o perfil penitente do último. Duas personalidades distintas num só homem: a do Fonseca, poeta estróina, soldado e D. Juan, namorador de primas e não primas, desflorados da honra alheia, autor de centenas de romances, de sonetos e glosas, de madrigais e décimas, e a do Chagas, penitente, director de almas, pregador apostólico, varatojano austero, conhecido autor das Cartas Espirituais, e ainda de elegias impregnadas

* In Os Homens e os Livros (Séculos XVI e XVII) Lisboa: Verbo, 1971.

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a certas congeminações de gabinete, ensaisticamente brilhantes mas que... não acertam com a verdade, por falta de humilde e paciente e morosa investigação. Tal porém não justifica a superstição do inédito. In media virtus... Ora dos inéditos de Fonseca, muitos, segundo nosso parecer, não possuem grande valor literário; o que é indiscutível é possuírem todos, incluindo a Filis, um valor documental de capital importância para o estudo, ainda por fazer, do nosso século XVII. [...] Está a sua obra, sobretudo nos romances, salpicada de uma graça estúrdia, chocarreira às vezes. Há cartas-romances, escritas a amigos em intervalos de campanha («Aqui me achei na campanha / de Olivença cuja torpe / Fortuna he...» ms. 1726 do A. T. T. fl. 296), verdadeiros repertórios de suas aventuras. Pretexto para versejar é-lhe qualquer bagatela; são a este respeito elucidativos uns títulos de romances como «A hua sa que mandou seu amte. huas contas grossas e hua cabassa de agoa de murta», «A hua Dama que mandou hu Pardal a seu amante chamado o Menino do Allecrim» ou ainda «A sua sa que chamou a seu amte. galam fantasma, nem querendo que elle lhe chamasse Dama Duende». A poesia do Fonseca é poesia de tourada de amores vários e encantos breves de sangrias choradas ou aconselhadas, de episódios picarescos, pequenas narrativas movimentadas, de tom familiar, de graciosas vendedeiras que vão gritando seus pregões («com a giga apregoando / vai Ignes pela Cidade», rom. 12, ms. 2168); sem que o perfil airoso da guapa se esbata apagado pela invasão da metáfora ou da catadupa de palavras encarecedoras. Acontece às vezes que em momentos de mais acusada inspiração, abalado por fundas emoções, se espanta, da caducidade da beleza, da efemeridade do humano, assim no «Retrato de Filis defunta». Sob o preciosismo de uma imaginística típica: «Idollo posto em sombras, luz morta em nuvens negras...», podemos adivinhar aquele dolorido sentido do efémero que irá ser em Chagas leit motiv da sua vida e obra.

Os sonetos, queVerney diz serem quase todos peste, estão mais gafados, é verdade, de um obscurantismo gongórico; a naturalidade, a espontaneidade comunicativa de certos romances, salvou-os, pois podem considerar-se retalhos muito aceitáveis de prosas ritmadas. «Merecia ser estudado o melhor representante do lirismo gongórico em Portugal...». Talvez Fonseca Soares o não seja, o que não há dúvida é que a sua poesia, pouco valiosa como documento literário, é precioso instrumento de trabalho para quem queira estudar o século XVII português. O Famoso Fonseca («Poema/Tragico/Filis y Demofonte/ pelo famoso António da Fonseca», ms. 2221 do A.T.T.), mais conhecido depois pelo nome que em religião tomou de Frei António das Chagas, foi sem dúvida um dos maiores versejadores do século XVII e, depois de Vieira, a personalidade mais vigorosa do seu tempo.

UM POETA «VULGAR» ANTÓNIO DA FONSECA SOARES [...] Autor das Cartas Espirituais, pregador e missionário apostólico, foi, nos seus tempos de rapaz, poeta.Versejador fácil, improvisava romance sobre romance e décimas e madrigais e glosas e sonetos. Gracioso, fútil, quando não cáustico ou até obsceno, é o Fonseca, nome por que se celebrizou no Parnaso boémio da época, pouco conhecido. Pretexto de papel de versos lhe eram ausências, saudades, moça bonita que na Ribeira vendesse figos ou passas; arrufos ou sangrias, e até o envio de pássaros, de contas ou cabaças da dama a seu amante, etc. Grácil, airosa vai Luísa para a feira.Vê-a o poeta, o Fonseca, e logo improvisa «romance» que fixe o perfil atrevido da moça. [...]

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No retrato da moça: saia de cilício (ou lã áspera), jubão branco, punhos de renda, caminha airosa, cesto à cabeça cheio de belas maçãs camoesas, há um pitoresco colorido, não falta o pormenor do balaio enramado de louro, nem a cor precisa do jubão que Luísa veste. Tem movimento o quadro: vai Luísa para a feira, treme o bairro de vê-la, e aproximam-se curiosos, presos da voz e da figura magana da vendedeira, os galantes. Ali no rossio, manhosa, alevanta a voz e atira seu pregão «eu já tenho camoezas». É aqui, neste momento, que ao poeta lhe não chega a língua para dizer amor, isto é, para dar o timbre, as qualidades todas, o tom brusco daquela voz que atrai. Só consegue dizer que é serena, como se aprendera solfa, Lufsa, o que de per si não é grande elogio, pois o mesmo Fonseca, naquele célebre soneto em louvor do cavalo da conde do Sabugal, cantou a consonância, a harmonia, a musicalidade das curvetas que em seu compassado pisar fazia o bruto galhardo. E depois, gago ainda da surpresa, gaguez que se prolonga nos dois versos seguintes, usa dos incaracterísticos: divina, grave, juntos a voz, e numa repetição que talvez revele, propositadamente, a importância que para o poeta, tem fielmente transmitir a natureza do pregrão sereno da moça, rediz-se: «voz tão divina» e acrescenta «... belas». É ao som do pregão que os galantes se alvoroçam e narra o Fonseca então rapidamente, melhor, descreve, a atitude dos rapazes: apreçam a fruta, gastam-se em requebros. [...] É verdade que a transposição do erótico em termos de belicoso jogo tem sido feita no amor humano e no amor divino. Já Santa Teresa ... «considerar nuestra alma un castillo». e Santo Inácio: conquista do reino, parábola. das bandeiras; etc. Mas em Fonseca Soares há apenas o expressar canhestro e rude do soldado, assim: os requebros são balas e o peito de Luísa muro, que oferece grande resistência, é transposição pseudo-artística, imagem procurada da impassibilidade e defesa, da

vendedeira, perante os ataques e as investidas dos que, por querer apreciá-la, apreçam a fruta. O Fonseca tinha tomado parte no cerco de Badajoz (ele próprio aconselhou esta empresa, preferindo-a, por razões que dá em parecer ainda hoje inédito, à de Olivença), combateu em Mourão, fez vida de soldado e de ser soldado modo de vida, pois o vemos capitão, não de cavalos, como diz o P.e Godinho, mas de infantaria, como demonstrou A. Pimentel, em Setúbal, no ano 1661. Namorador, vinham-lhe à língua, à pena, sobretudo nos romances, a gíria e os modos de soldado. «Toquem arma as liberdades. Ponha-se a vida em defensa» (romance 77 do ms. 2168.A.T.T.) e tantos outros romances em que está presente o Fonseca, soldado! Acontece porém que naquele romance: «Francisca da minha vida / por cuja divina cara / inda que caro me custe / vivo todo à Franciscana», António da Fonseca joga com um franciscanismo, feito de Arrábidas de ausências, calvário de alma e... não era ainda; por essa altura, religioso da Ordem Seráfica... O serem do «amor cilício as ansias» ou tornar-se «em disciplina qualquer ventura passada» é puro jogo, brinquedo de engenho aplicado a fazer demonstração cabal de seus recursos. E moda também, moda que levou por exemplo ao exagero do romance «Ao menino Deus em metáfora de doce», do Baía, moda que impõe cânones, dita leis. Mas voltemos ao romance que com o título «a hua moça vendendo camoezas», e atribuído ao Fonseca, se pode ver na fl. 342 do ms. 6269 da Biblioteca Nacional de Lisboa. Apreçavam a fruta uns, tiravam da algibeira os tostões outros, mas Luísa, essa, continuava de quando em vez a apregoar, «eu já tenho camoezas», prolongando naquele pregão, feito em voz bela, o encantamento e o feitiço que prendia os galantes. Não é único no género, entre os romances de Fonseca, este da moça vendendo camoesas. Há uma guapa que vendia passas e figos na Ribeira,

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Gregório de Matos

chamava-se Mariana; outra, Inês, apregoava pela cidade flores e frutos que levava «na giguinha com donaire»; e «A fonte vay do Loureiro a buscar agoa Isabel ....». «Isabel ingrata a do fogo nos olhos e de agoa na quarta», Luísa, Mariana, Inês, Isabel... estas são da plebe, que as Amarilis, Filis, Tisbes, Belizas, Cloris, Marfizas, Elenas e Narcisas povoam sob disfarce, hieráticas, a galeria das apaixonadas do Fonseca. Inês veste jubão justinho, bamboleia-lhe a saia: «a saya bamboleando aqui cai e ali cai», traz meia verde e é de filete o sapatinho. Isabel, «leva o cântaro à cabeça, airosa, porém cruel; /usa jubão de canequim ...», vai à fonte, como «Leonor pela verdura» de Camões. Faz-se eco o Fonseca da lírica camoniana, tão em voga no século XVII. Degenerescentes os temas, glosados um sem-número de vezes, vestem-se de uma expressão que é fórmula de compromisso entre a frescura da palavra renascentista e o artifício do verbo barroco sobrecarregado de sentidos e «bonitos». Deste ponto de vista são muito curiosos certos romances de Fonseca Soares, cujo conhecimento possibilita o estudo da evolução de alguns temas da poesia de Quinhentos. [...]

(excerto) GILBERTO MENDONÇA TELES*

[...] 1. “O lirismo crioulo in Gregório de Matos” Gregório de Mattos e Guerra nasceu em Salvador, na Bahia, em 1633, e mor reu no Recife, Pernambuco, em 1695.Viveu cerca de trinta anos em Portugal: em Coimbra, onde estudou; e nos arredores de Lisboa, onde exerceu um cargo público.Viveu também um certo tempo desterrado em Angola. Não deixou livro publicado, mas a crítica o reconhece um poeta importante. Para Homero Pires, que estudou o sentido religioso de sua poesia, «Uma das virtudes e excelências da obra de Gregório de Mattos é ser um espelho de sua época. Ainda nas suas composições religiosas, o poeta não se desintegra do seu tempo, e é o censor, o crítico habitual de costumes que condena e repele, e dos quais se torna assim uma testemunha veraz» (ABL, I, 35). E Hernâni Cidade, no verbete para o Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, de Jacinto do Prado Coelho, chega a dizer que a sua veia satírica não lhe impediu «o escrever alguns dos mais belos poemas líricos do seu tempo, muitos deles cheios não só de gravidade humana como de unção religiosa». * Gilberto Mendonça Teles “Gregório Matos: o lirismo crioulo: Introdução”. Se souberas Falar também Falaras. Antologia Poética. Lisboa: INCM, 1989, p. 1-22.

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Além do reconhecido valor literário de sua obra, ela é também um importante documento social da segunda metade do século XVII, em que tanto Portugal como o Brasil começavam a definir os sentidos de sua nova história. Sob muitos aspectos, a obra de Gregório de Mattos é um dos pontos de chegada da cultura portuguesa, o signo maldito em que se lê uma faceta popular dos primeiros tempos da Restauração, um D. Quixote às avessas, a apontar directamente as «manchas» ocidentais da Península Ibérica, principalmente as do domínio português no Brasil. E sob todos os aspectos, ela é também o ponto de partida da cultura brasileira, o signo mais preciso do nascimento de um nativismo crítico, brasileiro mas antiufanista que vai coincidir e acompanhar marginalmente as primeiras entradas e bandeiras, o espírito jocoso e quixotesco que rirá das descobertas das minas de ouro e de diamante, quando o português, ainda agarrado às praias como os caranguejos de Frei Vicente do Salvador, começa a ver o seu filho (nascido de mãe indígena ou de mãe negra) aventurar-se pelos vastos sertões interiores. Grau zero de uma antiescrita na língua portuguesa e, por isso mesmo, lugar mais ou menos comum de técnicas e recursos da estilística da época (barroca / plateresca / maneirista, prefiro não distinguir tais palavras), a obra de Gregório de Mattos (o que a tradição nos permite dizer como dele) teve o privilégio de carnavalizar desde o início a produção literária luso-brasileira. O género lírico e as suas inúmeras espécies de formas trabalhadas pelo poeta receberam um tipo de conteúdo corrosivo cuja natureza variava entre o sublime e o ridículo e foram expressos através de palavras interditas pela moral literária de seu tempo. Tal facto actualizava na sua obra a tradição das cantigas de escárnio e dava-lhe, à sua obra, um teor de estranhamento que só hoje, quando a comparamos com as sátiras menipeias da França da segunda metade do século XVI, podemos mais largamente avaliar. E, por força desse conteúdo

causticante, estimulou a zona proibida da literatura colonial, transformando-a, através da sátira, do epigrama, das glosas, dos retratos e até das espécies naturalmente líricas (sonetos, coplas, liras), num veículo de expressão ideológica de muita importância na formação e na caracterização da literatura brasileira. Deu à literatura a consciência de sua mestiçagem – de um «lirismo crioulo», como alguém já disse – que era afinal o contraponto de uma vertente aberta à própria formação do povo brasileiro.

2. A tradição dos manuscritos Não deixando livro publicado e sendo hoje muito difícil no meio dos dezoito/dezanove códices apócrifos, que trazem o seu nome, surgir algum volume reconhecidamente autógrafo que possa tranquilamente ser publicado como seu, a sua obra terá, com toda a certeza, de ser um trabalho depurado por uma bem formada equipe de especialistas (filólogos, comparatistas, hispanistas, historiadores e críticos do renascimento e do barroco), num projecto de pelo menos cinco anos e que conte com o apoio das universidades e dos organismos científicos de Portugal e do Brasil. Até agora a sua obra tem sido a tradição dos vários manuscritos que lhe são atribuídos, com erros às vezes grosseiros, [...]

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A Experiência do Prodígio: exemplos de textos visuais portugueses

É praticamente impossível fazer-se um estudo do emblematismo na poesia sem se mencionar as suas ligações com a filosofia hermética que, a par do cristianismo e tantas vezes contra ele, dominou toda a Idade Média e a Renascença, prolongando-se até aos nossos dias duma maneira indiscutível. E se é verdade que a expressão artística está ligada a uma tradição de que nada pôde ainda separá-la (apesar das muitas tentativas), é sobretudo quando se estudam as relações entre a palavra e a imagem, quando se debate o problema da representação/ figuração, que se erguem em toda a sua extensão os seus antepassados. «Cada coisa particular é imagem dentro da matéria do Princípio Intelectual, o qual em si representa o Divino Ser; assim cada entidade do mundo natural está ligada ao Divino Ser, a cuja semelhança é feito», diz Plotino. Esta concepção da identidade entre ser e imagem vai atingir na Renascença grandes proporções, obrigando a que a maior parte das obras tenham de ser interpretadas em função do seu conteúdo simbólico e alegórico, pois foram concebidas para serem «lidas com os olhos da mente», com o objectivo de que «as ideias se tornassem visíveis» através das imagens que, literalmente, falariam por si falando delas. A ideia da representação da fala que é a escrita (e da escrita/fala que é a imagem) ligava-se a uma crença, largamente difundida na Antiguidade, segundo a qual, em tempos áureos, assim como o homem fôra um perfeito duplo ser – o andrógino – também existira uma linguagem em que ideia e figura haviam formado uma só consistência. E quando no século XVI se assiste ao ressurgimento da sabedoria das crenças antigas, assiste-se também ao ressurgimento da tentativa de incorporar texto e imagem numa só consistência, embora múltipla, sob a forma do que hoje chamamos texto-visual. Para compreendermos melhor como é que este reaparecimento se processa, teremos de remontar a uma obra famosa: a Hieroglyphika de Horapollo (Horus Apollo), suposto escriba de origem egípcia

(excerto) ANA HATHERLY*

[...] Emblematismo e alegorização Esta nossa breve introdução teórica geral ficaria verdadeiramente incompleta se não referíssemos, mesmo sumariamente, a importância do pensamento emblemático e alegórico que está também na base do pensamento maneirista/barroco e, portanto, na base de todos os textos por nós antologiados e estudados. Se para muitos autores a Renascença é considerada a época emblemática por excelência, é evidente que no período barroco, herdeiro tanto do pensamento medieval como do renascentista, esse aspecto teria de estar forçosamente presente.

* In A Experiência do Prodígio: Bases Teóricas e Antologia de Textos-Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII. Lisboa: INCM, 1983.

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que terá vivido em Constantinopla no século II ou no século IV d. C. e cujo manuscrito surgiu em Itália no século XV, por volta do ano de 1419. Esse manuscrito era um tratado em que se «publicava» a primeira chave para a decifração dos «sacros graffitti» (hieroglyphika grammata) e veio a ser considerado como a via indiscutível para a decifração da escrita hieroglífica egípcia, que se julgava ser a linguagem da esfinge, a qual teria a particularidade de «reproduzir ideias directamente em imagens, em vez de palavras». Segundo parece, para Horapollo, os hieróglifos eram simples pictogramas (que de facto haviam sido na sua fase arcaica, por volta do ano 3000 a. C.) e para que essa convicção fosse posta de parte foi preciso esperar que Champollion, em 1824, viesse provar, com o auxílio da Pedra de Rosetta, que se tratava realmente dum silabário primitivo com semelhanças com o nosso alfabeto actual, portanto, pelo menos em parte, uma representação também fonética. A Hieroglyphika de Horapollo que se supõe datar do século IV ou V, terá sido baseada na versão grega de Philippe, que viveu no século II, e tendo sido traduzida para latim no século XV, foi publicada pela primeira vez em 1505, emVeneza. A sua grande difusão deve-se ao facto de o seu aparecimento ter coincidido com a então recente descoberta da imprensa, que iniciou a nova e decisiva fase da passagem da cultura oral para a cultura visual. A sua influência foi enorme, dizem-nos, e mesmo Erasmo, recusando embora a tese de que os hieróglifos fossem «uma linguagem sagrada», não deixou de ver neles, através da obra de Horapollo, um modelo para «a simbologia universal de ideias», pois eram suficientemente herméticos e precisos para se poderem tornar «uma espécie de álgebra filosófica». A importância dos hieróglifos na formação de alfabetos icónicos, usados por exemplo no ensino da leitura e da escrita, foi extraordinária durante séculos e poderemos ver, em data tão recente como no século XIX, o nosso poeta-pedagogo António

Feliciano de Castilho, no seu célebre e revolucionário Método Português para o Ensino do Ler e do Escrever, de 1850, utilizar o «método hieroglífico», baseando-se, aliás, no pedagogo francês Lemare, que associava a ideia de leitura à ideia de leitura de imagem, princípio que prevalece, modificado embora, nalguns métodos do ensino primário ainda em vigor. Deste modo, e duma maneira algo imprevista, a escrita hieroglífica, originalmente ligada a um sacro hermetismo, manteve-se ligada à ideia de chave para um conhecimento, através da simples aprendizagem da leitura, afinal símbolo de toda a iniciação ao mistério. É assim que a Hieroglyphika de Horapollo, numa visão histórica, acaba por surgir a um nível paralelo ao da tradução de Marsílio Ficino do Corpus Hermeticum, na medida em que, em ambos os casos, as interpretações de que essas obras foram objecto vieram a constituir-se como «verdades em si» que se sobrepuseram à verdade original. E se considerarmos também que ambas estas fontes estão na origem da poesia emblemática, poderemos talvez compreender melhor os aspectos herméticos e icónicos que nela convergem, dando depois acesso a vias de criatividade tão específicas como, por um lado, o estilo metafísico dum Gôngora, dum Marino ou dum Donne, e por outro, à experimentação tipográfica, que vai desde as Letras Utópicas e Voluntárias de Geoffroy de Tory, no século XVI, até à Poesia Concreta, passando por mil exemplos manuscritos e impressos, como também se pode ver na nossa Antologia. Mas para o nosso estudo, o marco decisivo é a data de 1531, em que se publica o Emblematum Líber de Andrea Alciati, uma colectânea de poemas acompanhados de gravuras de vários autores sobre temas clássicos. Segundo Mário Praz, a origem dos emblemas estaria num desejo de criar um equivalente «moderno» dos hieróglifos, o que foi feito «através duma interpretação errada dos relatos de Plínio, Plutarco, Apuleio, Plotino, etc.»

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Num exemplar moderno que reproduz a segunda edição desta obra (datada na origem de 1649), intitulada Agudeza y Arte de Ingenio, encontra-se toda a teoria de Gracián, de que não deixaremos de citar esta curta passagem elucidativa em que comenta Horácio: «No se pueden dar regias ciertas e infalibles pára estas sutiles consecuencias; sola la valentia y vivacidad de un ingenio es bastante para tara extravagante discurrir.» Mas o que é particularmente relevante na análise que Curtius faz no Capítulo XV da sua obra, dedicada ao Maneir ismo, é a proposta de aproximação entre as teorias de Gracián e as suas origens clássicas. Sobre este ponto não nos deteremos aqui, naturalmente, dadas as características do nosso trabalho, limitando-nos a assinalar estes aspectos e a remeter o leitor para esse e outros autores que o abordaram em profundidade. Consideremos, porém, ainda o que sobre a Agudeza escreveu o retórico seiscentista português Francisco Leitão Ferreira, na sua Nova Arte de Conceitos, baseando-se nos princípios de Gracián, que defende: «E daqui nasce, que por ser a agudeza vocal hua imagem sensível da agudeza mental archétypa, causa dobrada deleytação; deleyta o animo de quem a fôrma,& deleyla o entendimento de quem a lê, ou de quem a ouve; porque quem dá forma intrinseca ao conceyto, gosta de que aquelle parto do seu entendimento tenha vida no entendimento de outrem, & tal vez com mais espirito, que no proprio: & quem lê, ou ouve hum tal conceyto, folga de descubrir com o proprio entendimento aquelle veo metaforico, que lho poz o entendimento do Artifice & tal vez mudando-lhe o veo, lhe rouba á fermosurau». Para o nosso estudo, interessa agora salientar que, com o aparecimento dos Emblemata de Alciati, tenta-se de novo pôr em prática aquela fusão entre texto e figura, que parece ter sido uma preocupação em grande parte das formas de arte do passado. Mas não se devem também esquecer as características mágico-míticas da maior parte dos emblemas renascentistas, que se baseiam

Os Emblemata de Alciati tiveram uma repercussão enor me no seu tempo, nomeadamente na Península Ibérica e conhecem-se, por exemplo, algumas reacções de Gracián, referidas por Praz, ao Emblema LXXIII, Vis Amoris, que representa o pequeno deus no momento de dar origem a um relâmpago, e a propósito do qual ele teria falado «das semelhanças por ponderação misteriosa, dificuldade e reparo» enquanto que, relativamente a outros emblemas, dissera que «acima de tudo, quando a Semelhança é acentuada pelo mistério, e tornada significativa por uma consideração ponderosa e sentenciosa, é o triunfo da agudeza». Esta noção vem pôr em destaque a ligação deste tipo de composição nomeadamente com os empigramas de Marcial, a quem Gracián, chamou «Primogénito de la Agudeza», e duma maneira geral, com a característica «ponderación misteriosa» que lhe vem da sua origem «hieroglífica» e que assume particularmente durante o século XVII. E se é certo, como escreve ainda Mário Praz, que o século que produziu os grandes místicos produziu também os emblematistas, deveremos acrescentar talvez a essas considerações estas de Castiglione, no Corteggiano: «Se as palavras que um espírito emprega contêm algo de engenho escondido («acutezza recondita») ganhará este em autoridade. O leitor se superará a si própio e saberá apreciar muito melhor a capacidade espiritual e as ideias do autor.» E também estas de Tesauro: «Engenhoso é o poeta que é capaz de transformar tudo em tudo, uma cidade numa águia, um homem num leão, uma “zalamer” num sol.» Como escreve Hocke, Tesauro representa o limite extremo da fase Maneirista entre o Renascimento e o Barroco. Relativamente ao Epigrama e ao estilo de agudeza, E. R. Curtius, no seu estudo que muito viremos a citar, intitulado (na versão inglesa) European Literature and the Latin Middle Ages, não deixa de abordá-los devidamente, analisando a sua evolução histórica desde os tempos clássicos até se deter na Arte de Ingénio,Tratado de la Agudeza.

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geralmente na tradição clássica, portanto pagã. Daí que muitos dos emblemas, talvez em consequência de pressões emanadas da Contra-Reforma, tenham vindo a assumir no século XVII um carácter predominantemente pietista e até evangélico, tornando-se por vezes uma espécie de sermão ilustrado com funções apologéticas, como se pode ver na nossa Antologia nos poemas-emblemas de Alonso de Alcalá e Herrera e nos coligidos por Joseph Pereira Velozo cujas figuras parecem ser de origem italiana. Em qualquer dos casos, porém, quer o poema-emblema esteja ao serviço da religião ou ao serviço do saber esotérico, a origem da poesia emblemática, tanto na filosofia hermética como nos princípios de Horapollo, é evidente. Dela resulta ser necessário que a sua leitura se baseie numa certa forma de iniciação, ou se quisermos, num esforço intelectual requerido para neles se poder apreender «a intenção oculta», pois como acontece sempre que haja algo de muito importante e sagrado, «um véu, uma nuvem, encobrem os mistérios aos olhos dos profanos». E se é verdade, como escreve Walter Benjamin, que onde quer que reine o espírito do barroco está-se no domínio da representação emblemática, isso é assim na medida em que ela é uma expressão hieroglífica da multiplicidade do significado do texto, que reflecte a multiplicidade do significado do mundo. A multiplicidade e a mobilidade das imagens e o seu significado são o fundamento dinâmico da concepção da arte barroca em que impera, soberana, a alegoria. Mas já não se trata apenas da alegoria medieval, didáctica, cristã; incorporando agora todo o panteão dos deuses pagãos, adquire uma vasta dimensão histórico-cultural é o passado greco-latino, sim, mas também o passado egípcio, quer dizer, o críptico, o mágico. E se, como para o emblema, todo este processo irrompe no período renascentista, é no Barroco que ele atinge o apuramento e o excesso que anunciam já o seu termo.

Como diz ainda Walter Benjamin, «a alegoria do século XVII não é a convenção da expressão mas sim a expressão da convenção». Contudo, e uma vez que, como bem observou John Mac Queen, a alegoria tende para o figurativo em vez do situacional, o que será importante para nós considerarmos é, não só o carácter necessariamente relacional da alegoria, mas também e sobretudo o seu carácter necessariamente ambíguo. Porque: quem diz alegoria diz duplicação de significado, leitura em correspondência: texto sob o texto. Assim, toda a alegoria é um anagrama sui generis, uma forma de desdobramento do significado, e portanto uma forma de enriquecimento da leitura. Quanto aos aspectos históricos da alegoria, como é do conhecimento geral, a sua origem remonta à tradição grega clássica e o seu sinuoso e persistente percurso pode ser seguido nas numerosas obras que o descrevem. Dentro do pensamento cristão podemos por exemplo referir Quintiliano, (37-100) encontrando depois a sua projecção em Isidoro de Sevilha (570-636) e sobretudo em João Cassiano, (360-435) que parece ter sido o primeiro escritor latino a codificar a alegoria nos seguintes níveis: o literal, ou propriamente alegórico, aplicando-se a Cristo e à Igreja militante; o tropológico ou moral, relativo à alma e suas virtudes; o analógico, relativo às realidades celestes e à Igreja triunfante. Beda assimila e incorpora a alegoria bíblica nas categorias gramaticais e retóricas, contribuindo assim para a radicação do pensamento alegórico no pensamento cristão medieval. A intensa alegor ização que se observa na Renascença e no Barroco tem assim as suas bases na alegorização generalizada que é grande parte da tradição cultural do ocidente, quer pela via bíblica quer pela via hermética. Só que no Barroco a tendência para a apoteose (herdada da Bíblia) desenvolve-se ao ponto de se tornar uma espécie de visão geral do mundo, quer nos aspectos positivos (afirmação do poder) quer nos negativos (triunfo da ruína e da morte).

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Só o nascente espírito científico (na moderna acepção da palavra) viria aos poucos opor-se aos excessos da alegorização. Descartes, com a sua dúvida sistemática, inauguraria a nova época da moderna descrença, da moderna dúvida de todas as coisas em que não cabe já totalmente a confiança no poder inabalável das instituições. No Barroco, como é sabido, a leitura era obrigatoriamente educativa. A atenção profunda, constante e até obsessiva que os autores barrocos dedicaram ao aspecto visual do texto, como se demonstra na nossa Antologia, é um exemplo decisivo do nexo que encontraram entre o aspecto gráfico-ideogramático da escr ita e o fundamento filosófico da alegoria, pois em ambos o leitor é remetido para «a forma em si» como veículo significativo, como vaso que determina a forma do fluido que contem, que retem e a que se destina. Entre a intenção da imagem e a sua tensão significativa, a relação é a do nexo, a relação entre nexo e sentido. É neste ponto que se revela também a indispensável componente da erudição no processo criativo do artista barroco. Mais do que um gosto pelo revivalismo, que é sobretudo renascentista, o que se revela aqui é o processo que costumamos designar por ontológico, um gosto pela armazenagem e selecção do saber que anuncia já o espírito dos Enciclopedistas e a sua necessária chamada à competência do leitor, que abordaremos na secção do panegírico. Esta chamada à erudição, sem a qual a representação alegórica não pode funcionar é, como vimos e veremos, uma constante forma de elogio (mas também de desafio) ao leitor, que na época era sobretudo o elogio do poder, pois todas as obras eram concebidas não só contra os seus eventuais detractores (como se pode ver nos prefácios) mas sobretudo como veículo de aspiração ao patrocínio dos poderosos, a quem geralmente eram dedicadas. Sem o substracto dum saber comum todo o processo da alegorização se esfumaria.

É por isso que para a maior parte dos leitores contemporâneos as obras barrocas são ilegíveis, quer dizer, incompreensíveis. O leitor actual, no melhor dos casos, é um novo tipo de hedonista – quer apenas «o prazer do texto», mas o seu prazer é o da superfície, não o da profundidade que a leitura das obras emblemáticas, enigmáticas, hieroglíficas exige. Por isso, tenta reduzir (depreciativamente) o Barroco a jogo, esquecendo quanto de enigma existe no lúdico. A alegoria, como bem observou C. S. Lewis, baseia-se num conflito, numa tensão interna que resulta do desejo de dar forma ou emprestar um corpo material a algo que é imaterial, como seja o conceito. A alegoria é precisamente a materialização do esforço de representação do conceito ou, como refere Gilbert Durand, que não deixa de acentuar a diferença que existe entre alegoria e símbolo, «a alegoria é a tradução concreta duma ideia difícil de apreender ou de exprimir em uma forma mais simples». O processo de alegorização pertence assim, não apenas ao homem medieval, renascentista ou barroco mas simplesmente ao homem em geral, fazendo parte da própr ia natureza do seu pensamento e da sua linguagem, que tem por objectivo, precisamente, representar o que é imaterial em termos pictóricos: em signos e em imagens. O jogo faz parte desse processo. Melhor dito, o jogo é o mecanismo desse processo. Mas o jogo não é, como julgam os leitores apressados, uma estrutura de superfície. Como talvez este nosso trabalho contribua para demonstrar, o jogo está ligado não só ao brinco mas também ao mistério. E se, considerando estas obras e estas técnicas do passado, alguém sentir que elas são incompreensíveis, talvez deva lembrar que, como disse Theodor W. Adorno, «a ininteligibilidade que se censura nas obras de arte herméticas é o reconhecimento do carácter enigmático de toda a arte».

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TEXTOS LITERÁRIOS

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D. Francisco Manuel de Melo*

EFECTOS DE AMOR De D. Francisco de Mello Mal la ausencia sufriendo, Y menos el furor con passo ciego Sale Clorinda, ardiendo De ira, y de amor en duplicado fuego Por templar de dós llamas, que suspira, En lagrimas amor, en sangre la ira. De amor, y acero armada Con tierno afecto, y animo constante Conduce a la estacada En pecho fuerte coraçon amante; Y en vista hermosa, en aparencia fera Miente en cuerpo de acero alma de cera. Su muerte busca anciosa Culpa de dós amantes, si del hado Permision rigurosa; Pues el uno atrevido, otro olvidado, Engañada una fé, otra mentida, Mil homicidas son contra una vida. Con tragico dehuedo Vengador infelix de tanta llama Engañado Tancredo En mentido disfaz mata a su Dama; Misero triunfo, desdichada palma, Que a uno cuesta la vida, a otro el alma. Complice fue del daño, Quando la amada sangre el hierro beve, Solamente el engaño Fue el pecho, aunque la mano aleve; Pues llora el pecho, si la mano hiere; Y quando aquella mata, estotro muere. Mas del riesgo futuro Mal cuidadoso de Clorinda Argante, Buelve sin ella al muro; Rota la fé de amigo, y más de amante: Pues faltando a finezas, y razones, Vence un olvido dós obligaciones. Muere Clorinda hermosa De uno amante asaltada, y de otro ausente,

DÉCIMAS De D. Francisco de Mello Cinthia, ofendido, y gustoso De tu engaño, y mi cuidado, Ni acierto a estar obligado, Ni me atrevo a estar quexoso: Un engaño tan dudoso No agradesco en mi tormento, Tu piedoso fingimiento Es Cinthia; porque en razon Dudo yo la obligacion Más que el agradecimiento. Pues ofensa viene a ser No deuda, Cinthia, estorvar La mentira el alcançar, La piedad el merecer; Pero si es tal tu poder, Que obliga aun quando ha ofendido, Grosseria huviera sido En un pecho enemorado Confessandose obligado No mostrarse agradecido. (Fénix V, p. 364)

* In Fénix Renascida V.

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Frei Jerónimo Baía*

Y en lid tan rigurosa Menos el hierro, que el descuido siente, Que una herida sin culpa no es delicto, Y un error en alma es infinito. (Fénix V, p. 365-66)

DÉCIMA Deu-se junto a Estremoz Esta Batalha, que vemos, O Português fez extremos, Áustria no extremo se pôs: Junto ao Canal se dispôs A Batalha desta vez, Para assim, em que lhe pez, Poder correr deste Cano, O sangue do Castelhano, E a fama do Português. (Fénix, II, p. 300)

A D. JOÃO DE ÁUSTRIA,

Vencido na batalha do Canal. DÉCIMA Alude a dizer este Senhor, que havia vir colher as lampas em Portugal no dia de S. João, junto ao Nascimento do qual foi derrotado. I. Meu Príncipe, desta vez A Loa deitou ufano, Mas se rasgou Castelhano, Não cortou bem Português: A Comédia, em que lhe pez, Não foi bem representada, * In Fénix I-IV. Os poemas assinalados com * antes da indicação da respectiva fonte são transcritos a partir de Poetas do Período Barroco, de MLGP.

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A F., FAVORECENDO COM A BOCA E DESPREZANDO COM OS OLHOS

Pois se perdeo na entrada Vossa Alteza de maneira, Que por Jornada primeira Fez a última Jornada.

Quando o Sol nasce e a sombra principia, A doce abelha, a borboleta airosa Procura luz ardente e fresca rosa, Que faz a terra céu e a noite dia.

(Fénix, II, p. 301)

A UM DESMAIO POR CAUSA DE UMA SANGRIA

Mas quando à flor se entrega, à luz se fia, Uma fica infeliz, outra ditosa, Pois vive a abelha e morre a mariposa Na favorável rosa e chama impia.

DÉCIMAS Penetrou lanceta dura Naquele valente braço: Muita neve em pouco espaço, Muita prata em neve pura. De ambição não foi loucura, Destino sim, e foi mais. Que com circunstâncias tais Descobriu um Potosi Entre minas de corais.

Fílis, abelha sou, sou borboleta, Que com afecto igual, com igual sorte, Busco em vós melhor luz, flor mais selecta. Mas quando a flor é branda, a chama é forte, Néctar acho na flor, na luz cometa; A boca me dá vida, os olhos morte. (*Fénix, III, p. 195)

A fita que o braço atava Vermelha e branca se via: De vermelha se corria E de branca se enfiava. A prata se aprisionava, Porém não falta quem diga Que deu à prata uma figa A do braço, pois ferido Ficou mais enriquecido Vendo sua prata com liga.

A UMA TRANÇA DE CABELOS NEGROS Diversa em cor, igual em bizarria Sois, bela trança, ao lustre de Sofala, Luto por negra, por vistosa gala, Nas cores noite, na beleza dia. Negra, porém de amor na monarquia Reinais senhora, não servis vassala; Sombra, mas toda a luz não vos iguala; Tristeza, mas venceis toda a alegria. Tudo sois, mas eu tenho resoluto Que sois só na aparência enganadora Negra, noite, tristeza, sombra, luto.

Entre um desmaio se enleia Aquele sol animado, A viu-se o sol desmaiado Por ser picado na veia. Desmaia a luz da candeia Escurecendo o arrebol. Da luz esconde o farol. Mas que muito que a luz caia, Se a luz também se desmaia Quando se desmaia o sol!

Porém na essência, ó doce matadora, Quem não dirá que sois, e não diz muito, Dia, gala, alegria, luz, senhora? (*Fénix, III, p. 204)

(*Fénix, I, p. 372-73)

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A UMAS BEATAS1 Romance satírico burlesco

E perdoe, se me atrevo Com bom zelo a encaminhá-la, Que este hábito me desculpa, Pois somos Irmãs em armas.

Bealíteras Senhoras, Em cujas venturosas casas Como em adegas mosquitos Andam bandos de Beatas.

Não tenho que lhe dizer Do repolego da toalha, O hábito só lhe lembro Que tenha a manga bem larga.

Por saber que gostais delas Vos repetirei as traças, Que a uma nova no oficio Dava outra jubilada.

Porque sucede ocasião, Que um alqueire de castanhas Nos quer dar qualquer Senhora, Sem homem ter onde as traga.

Juntaram-se numa Igreja, Que Jubileu celebrava, E depois de despejarem Cada qual sua cabaça,

Sobre virtude é limpeza, Que talvez um pano falta Para embrulhar em uma pressa Carne cozida, e assada.

Disse a mais velha à novel: Bofé, Madre, pouco basta para sustentar um corpo, O principal é esta alma.

Chapéu não traga sempre, Mas porém tenha-o em casa, Nunca se perde emprestá-lo A quem quer ir embuçada.

Com um par de bolos de azeite, E dois arráteis de passas, Um pão mole com manteiga, Que trouxe esta pobre manga,

O bordão seja o primeiro, Porque subindo uma escada, Já de ouvi-lo se alvorota Quem o recadinho aguarda.

Meditarei eu agora Até que daqui me saia A jantar com uma devota, Deus me aceite estas passadas.

Traga contas ao pescoço, E diga que são tocadas, E que com orações suas Saem das penas mil almas.

Enquanto se fazem horas, Pois no hábito é novata, Lhe quero ensinar as regras Desta procissão cansada.

1

Não se lhe dê dos pantufos Andarem cheios de lama, Que um coração de devota Em mau cheiro não repara.

Edição de Ana Hatherly em O Ladrão Cristalino, p. 166-170.

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As sapatas não faz nojo Andarem acalcanhadas, Isto é, lavar os pés, É coisa desnecessária.

Os graves Religiosos, E Pregadores de fama, O sobrenome ao menos É necessário que saiba.

O rosto unte com enxúndia Quando se deitar na cama, Pela manhã com cuspinho, Porque lhe dá muita graça.

Advertindo que os mais graves São os de maior papada, Os que gritam com mais força, Mas entenda-os na fala.

Algumas de nós perfumam A toalhinha lavada, Que convém chegar cheirosa Às Senhoras, e Fidalgas.

Celebre os Músicos logo, De Fr. Dionísio a harpa, Diga que é um Céu na terra O Falsete ouvir da Graça.

Traga um anelinho preto Junto com uma tambaca; As mãozinhas por mimosas Lave com limas assadas.

O Palmela dos Cardais, Do órfão já se não fala, Gabriel, o da Azambuja, É coisa lá de outra nassa.

Visitar donas viúvas É coisa desenganada, Porque é ir sem sobressalto De um marido de má laia.

Mas isto aqui para nós É andar lá pela rama, Não tarde muito em gabá-las, Que com isto se enche a manga.

As palavras lhe recomendo Que sejam mui recatadas, Dos limites de terceira Atente bem como fala.

Às viúvas dê meninas, Dê serafins às casadas, A umas chame Rainhas, A outras mal empregadas.

Quando nomear S. Bento, Acuda co Patriarca, Já sabe que a S. Francisco O Seráfico não falta.

Diga que indo pela Igreja, Eram tantos a gabá-la, Que se ouvia um murmurinho Por onde quer que passava.

Dos outros com dizer Padres Tem dito tudo o que basta; Chame aos Capuchos santinhos, Os mais pela mesma traça.

Por aqui lhe vá dizendo, Porque em mui breves palavras, Lhe afirme como amiga, Que há de matar muita caça.

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E para render de todo A algumas, que são novatas, É necessário dizer-lhe De fulana, e de sicrana.

E diga: Trazei à Madre Daquilo, que houver em casa; E aqui entra o cumprimento: Ai, Senhora, disso trata!

Isto faça, e faça estoutro, E esteja mui descansada, Que nem trinta mil demónios Desfarão esta meada.

Não o dizia por tanto, Perdoe-me a confiança; E vá fazendo entrementes A modo de saco a manga.

Mate-a Deus cone gente nobre, E a livre de gente baixa, Que cuida que o ser Senhora Consiste em ser encerrada.

Diga: Enfim já estou de posse De ir daqui carregada. Não faltará quem deseje Fosse a carga de pancadas.

Esses pontinhos no trato Usou Maria Castanha, Hoje que a gente é viúva, Quanto mais nobre, mais lhana.

Logo com o rosto baixo, E com cara envergonhada Dirá: Pague Deus a esmola, Bem sabe ele que andava.

Não podem sempre as Senhoras Zombar com suas criadas, Querem quem lhes traga novas Do que na cidade se passa.

Desfalecida estes dias De jejuns de pão, e águas, Amanhã, querendo ele, Me hei de erguer de madrugada.

Inda hoje falou comigo Minha Senhora Fulana; Na borda do seu estrado Assentar logo me manda.

A ganhar o Jubileu, Que nenhum deles me escapa, Lá lhe prometo rezar Um terço pela sua alma;

Muitas vezes merendamos O chouriço e a salada, Tem sempre o almário provido De doces da Mesurada.

E à Madre espiritual Direi que tenha lembrança De a encomendar a Deus, Porque é pessoa mui santa.

Mui bons confeitos, e bolos, Que os faz ricos a criada, Isto dito, é impossível Que não chame esta a sua Aia.

Logo feita reverência Com a cabeça bem baixa, A abraçará pelos pés, Tomando logo a escada.

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Em estando a manga provida, Tola é queira mais aguarda; Vire a cabeça dizendo: Fique o Senhor nesta casa.

Porém seja com recato, Porque se for apanhada, Dirão que em vez de devota Está pior do que uma cabra.

Nunca se perde fazer Cumprimento às criadas; Deus lhe dê boa ventura, Veja mana, o que manda.

E se à tarde houver Completas, Vá-se chegando com traça Para as Senhoras viúvas, Não lhes faltará vianda.

Vá para casa direita, Meta a barriga a carga, Tenha confiança em Deus; Gente tola nunca falta.

Em muitas destas me achei, E do que lhes sobejava, Trouxe uma sapata cheia, Por não caber já na manga.

No outro dia madrugue, E se há de comungar, faça Que as conhecidas a vejam, Porque fique acreditada.

Deixe-se estar às Completas, Que muitas vezes se alcança Uma amizade, que rende, Quando menos se cuidava.

Lembre-se das cerimónias, Beije o chão, reze em voz alta, E de quando em quando diga: Meu Deus, com voz entoada.

E porque às vezes sucede Que uma tripa se desata, Do calcanhar faça rolha, Com que deixe sair nada.

Se estiver à Pregação, Tire da manga a cabaça, E por debaixo do manto Vá chupando precatada.

E se escapar um ventinho, Que a nossa carne é mui fraca, Tussa logo, que com este O outro som se disfarça.

E quando lhe souber bem, Dê dois ais com boa graça, E diga: Deus te console, Corno me tens consolada.

Depois de sair da Igreja, Se for hora acomodada, Venha por casa da amiga, Que nisto sempre se ganha.

E diga para as vizinhas: Isto só é manjar de alma, Estivera assim dez anos, E nunca ficara farta.

Pode alguma estar fazendo Bolos, doce, ou marmelada, E levará um bom dia, Se Deus lhe der sua graça.

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Chegando à casa, procure Quem vá por meia canada, E tendo alguma farinha, Trate de fazer suas papas.

E disto há de estar provida, Tendo sempre na sua arca Estas cirandagens todas, Que é para o tempo o que basta.

Porque enchem o vão, normalmente Se são bem açucaradas, Com azeite, ou com manteiga, Que no piais não se repara.

Porém melhor me parece, Por mais tormenta que faça, Ir a fazer provimento, Deixar o que está em casa.

Pela manhã um pãozinho De vintém quente, que escalda, Com manteiga, e com açúcar, Que para nós isto basta.

Antes então me parece Que matará muita caça, Encarecendo a fineza De vir assim ensopada.

Mas beba-lhe uma gotinha, Que é mezinha estremada, E nas manhãzinhas frias isto é saia de malha.

Não tenha medo da chuva, Seja quanta for a água; A Beata verdadeira Nenhum caso faz de lama.

Isto seja ao almoço, Do jantar não digo nada, Que há de ser em casa alheia, Regra, que entre nós se guarda.

Saia sempre em todo o caso, E se for ao romper da Alva, É remédio excelente Para quem anda opilada.

Se lhe derem sobre peixe As fatias albardadas, Coisa de que muito gosto, E falar nelas regala.

Também se quiser, de noite Pode sair rebuçada, Porque em nós estes passeios Coisa é que se não estranha.

Se lhe derem bom cidrão, Ate-o na ponta da manga Que depois lançado em vinho Os espíritos levanta.

Se morar no Bairro Alto, Vá às Igrejas de Alfama; Isto de andar muita terra Em nós é coisa mui santa.

E se à tarde chover tanto, Que a obrigue a estar em casa, Passas, figos, e bolotas É coisa desenfadada.

Tenha cruz à cabeceira, Disciplinas penduradas, Um livrinho de orações, E na parede uma estampa.

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Entre nós outras não se usa Ter roca, nem almofada, Bem tem homem que fazer Em procurar os bens da alma.

Mas ai que me falta muito Da perfeição de Beata! Quem me dera, minha Madre, O saber bem imitá-la!

Seja enfim a sua vida Levar vida bem folgada, Assaz, que para doentes No Hospital há uma cama.

Se assim o faz, disse quem Esteve ouvindo estas Beatas, Seguro-lhe em breve tempo Uma perfeição mui rara.

E não a quero cansar Em lhe dar regras mais largas, Que, como creio, tem jeito De sair boa Beata.

Mas guarde-se de subir-me Os degraus da minha escada, Porque se tal me fizer, Hei de levá-la à escala. (A. Hatherly, ed. Fénix Renascida p. 337-51).

Pois lhe sinto condição Boa para uma trapaça, Este nariz de lambique, E olhos de gata ladra.

A UMA ROSA Pelo mesmo Autor ROMANCE

Esses beiços chupadiços, Essa boca revirada, Se assim vai daqui em diante, Virá a ser uma santa.

Como tens tão pouca vida? Quem tão depressa te mata? Flor do mais ilustre sangue, Que deu de Vénus a planta? Uma Aurora só que vives, Flores te chamam Monarca: Na mesma terra do império, Que foi berço, tens a campa. Lástima da tarde chamam A ti doce mimo da alva, Gentil pérola nascida Entre concha de esmeralda. Águia nos voos florentes Estendes ao Sol as asas, Mas quando os raios lhe logras, Fénix em raios te abrazas.

Vou-me, porque dão as dez, Não quisera que tardara, Porque estou, como lhe digo, Para jantar convidada. E é juramento devido Ao jantar não fazer falta, Antes eu por ele espere, Que a panela requentada. Ai, senhora, disse a outra, Como fico consolada De ouvir tão santos conselhos, Dê-lhe Deus por mim a paga.

Em quanto em verde clausura Te fecha o botão as galas, Para os logros, que desejas, Te dão vida as esperanças.

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Cuidava eu só que fazeis Vendas para o Deos Cupido, Que já cabra cega feito Por vós anda esse menino. Já se o lenço traz bainha, A todos de presumido O hei-de desembainhar Pelo mundo peregrino. Se quando favor me dais, Senhora, em pontos comigo Vós pondes, ao maior ponto Do favor estou subido. Com vossos pontos, senhora, Já tão apontado vivo, Que sendo até’gora assado, Ando já agora cozido. Parece que navegais Quando a linha passais, digo A linha, que de enfiada Pasma, e cerra o buraquinho. Perdida a cor de ansiada Se vê em vós por tal risco, Que quando a linha tocais, A linha está por um fio. Eu temo que abraseis, Que como sois Sol tão limpo, O Sol então mais abrasa Quando à linha é mais propínquo. Abrasar-me-á esta linha Com que o lenço vem cozido, Serei vosso negro, pois Tão perto da linha vivo. Mas como sois tão beata, Beatilhas por ofício Fazei, senhora beata, Lá nesse vosso retiro. Porém vós beata agora! Como poderá ser isso, Se vós ereis tão ferrenha Ao vosso Ferrás querido. E se já desaferrastes, Largai o pano estendido, Pois só corre vento em popa, O que só corre consigo.

Mas quando a púrpura bela Te serve já de mortalha, Sentido o Sol chora raios, Buscando a morte nas águas. De fermosura tão rica Não sei quem foi o pirata Tão atrevido, que rouba A joia da madrugada. (Fénix, II, p. 322-23)

Mandando-lhe uns lenços de presente ROMANCE Ó venturoso nariz, Pois tens para teu serviço Um Anjo por alfaiate, Que já te corta o vestido. Olhos não creeis ramela, Porque quero que ande limpo Um lenço, que em vós, meus olhos, Hei-de trazer de contínuo. Há-de ser vela benta, Que há-de andar sempre comigo Contra os raios, pois ao Sol Foi este lenço cozido. Lágrimas não poderão Humedecer-te, lencinho, Pois lá na tórrida zona, Onde o Sol anda, és nascido. Não largueis o pano todo, Das almas cruel feitiço, Porque na maior bonança, Vêm tormentas de improviso. Amainai, senhora, as velas A favor tão peregrino, Que hei-de apregoar na praça, Quem merca o rico feitio. Só de vós a agulha quero, Que como esse norte sigo, Sempre essa agulha em vós ache A pedra íman dos sentidos.

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Que estar sempre em ferro É estar sujeito ao risco, Porque quem em ferros vive, Bem mostra, que está cativo.

O passadiço da voz Nem é neve, nem é vidro, Nem mármore, nem marfim, Nem cristal, mas passadiço. Na maior força de Julho Creio que treme de frio, Pois tem como neve as mãos E os pés como neve frios. Que nelas há dous contrários Os meus olhos mo têm dito, Pois sendo uma fermosura São mais pequenas que os chispos. No maior rigor do Inverno, Na maior calma de Estio, Nem tem frio, nem tem calma, Nem tem calma, nem tem frio. Porque de Inverno, e Verão Sempre Primavera há sido, Pois sempre veste de Abril, E de Maio traz vestido. Este é de Márcia o retrato, E dirá quem o tem visto, Que com ela o seu retrato Se parece todo escrito. Mas se em cousa alg~ua erro Das que até’qui tenho dito, À vista do tal retrato Me retrato, e me desdigo.

(Fénix, II, p. 327-30)

RETRATO ROMANCE Pintar o rosto de Márcia Com tal primor determino, Que seja logo seu rosto Pela pinta conhecido. Anda doudo de prazer Seu cabelo por tão lindo, Pois mal lhe vai uma onda, Quando outra já lhe tem vindo. Sua testa com seus arcos Do Turco Império castigo Vencido tem Solimão, Meias Luas tem vencido. Dormidos seus olhos são, Porém Planetas tão ricos Nunca já foram sonhados, Bem que sempre são dormidos. A dormir creio se lançam Por ter de mortais, e vivos Tão boa fama cobrado, Nome tão grande adquirido. Entre seus raios se mostra O grande nariz bornido, Por final que entre seus raios Prova o nariz de aquilino. Nas taças de suas faces Feitas do metal mais limpo, Como certos Reverendos, Mistura o branco co’tinto. As perlas dos dentes alvos, Os rubins dos beiços finos Tem desdentado o marfim, E a cor mais viva comido.

(Fénix, II, p. 330-32)

A umas mãos ROMANCE Senhora, estas vossas mãos São sobre belas tão lindas, Que dão de mão aos arminhos Na candidez, com que brilham. Formou-as a natureza De excelências tão subidas, Que por essas mãos perder-me.

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En su dulçura arrobado, Arrobado en su lindeza, No puedo verla al oida, Oirla no puedo al verla. Quando regala un sentido, Otro sentido enagena, Y ansi linda me ensordece, Y ansi canora me ciega. Es su melodia de Angel, De Angel es su gentileza, Por hermosa estrella clara, Por dulce vocal estrella. Hermosa quanto suave, Duplicado Sol se ostenta, Es luz Febea, a quien mira, A quien oye es luz Febea. Encuentra un Cielo, quien mira, Y quien oye un Cielo encuentra; Es su voz celestial, Celestial su belleza. Serenidad, y hermosura Iguales corren parejas; Serena su luz al ayre, El ayre su voz serena. Entre el cabello, y la voz No puedo hallar competencia, Ella fina, y fino el, El es prision, prision ella. Clara voz, y frente clara Tiene puesto en controversia, Si es mas serena la frente Si la voz es mas serena. Quando flexa con los ojos, Quando con las vozes flecha, Das arcos de evano dobla, Dobla dos arcos de perlas. Por su blandura, y blancura La garganta de açucena Es tan cisne por de dentro, Como cisne por de fuera. La mano blanca, y voz dulce Andan siempre en competencia, Ó si es mas tierna la mano, Ó si la voz es mas tierna.

Senhora são mãos perder-me. A graça tem às mãos cheas Essas vossas mãos benignas, Tanto que em mãos de papel Nunca todas caberiam. Se alguém tocá-las pertende, As retirais tão esquiva, Tão depressa, que de mão Sempre ganhais na fugida. Nas mãos vos vi umas letras, Que dizem serem mui lindas, E com ter as mãos impressas, Pareciam manuscritas. Não quero jogar convosco As mãos, pois sois tão ladina, Que como sois mão no jogo, Temo ter a mão perdida. Perder a mão pouco temo, Se nas vossas mãos caíra, Porque cair-vos nas mãos, Era bem feliz caída. Não digo mais destas mãos, Porque são mãos tão benignas, Que as trazem todos nas palmas Das mãos por final de estima. Somente digo, que basta, Pra mãos encarecidas, Dizer um dia um Cigano, Que eram mãos de buena dicha. (Fénix, III, p. 130-31)

À FORMOSURA DE MARCIA ROMANCE Si escucho Marcia la dulce, Si miro Marcia la bella, Es basilisco a mis ojos, A mis ouvidos sirena. Siquea su beldad rara, Su placida voz saquea Un alma por dos ventanas, Un coraçon por dos puertas.

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CARTA Dando as boas festas a um amigo, em que lhe dá conta da sua pobreza

El pie con la voz compite Sobre quales mas recrean Los pasos, con que ella canta, O los pasos, con que huella. Esta la voz es de Marcia, De Marcia la beldad esta, Mas miento, que es mui mas dulce, Mas miento, que es mui mas bella.

ROMANCE Do Espírito Santo agora, Meu Senhor, vos quero dar Boas festas, porque em mim Tudo é já espiritual. Um espírito estou feito, Porque carne em mim não há, Nem no corpo, nem na mesa, Por magro, e não ter real. Tão espiritual estou, Que na verdade afirmar Posso, que cousas do mundo Não vejo dos olhos já. [...]

(Fénix, IV, p. 89-91)

ROMANCE PASTORIL Por ecos Sale al baile de su aldea Luzia con sus amigas, Y aunque era luzido el baile, Solo Luzia luzia. Con la embidia de sus ojos Toda emulacion se rinda, Mas que mucho, si es tan bella, Que hasta la embidia la embidia. A pezar de los luzeros, Dos en su rostro traía, Y de los otros la muerte Causava su vista vista. Grandes eran sus poderes, Porque quando ella quería, Con enseñar su hermosura El mundo en un dia hundia. A la conquista del baile Todo el valle desafia, Pero ninguna como ella En la conquista conquista. Buscavala alguna falta Una serrana inimiga, Mas en ella todo airoso Por qualquiera via via. Quando salia a bailar, Con tal donaire le hazia, Que dexava el alma entonces Con su partida partida.

(Fénix, IV, p. 255)

AO NASCIMENTO DO MININO DEOS ROMANCE ENTRE DOUS CEGOS Primeiro cego Quem compra Autos curiosos, Cartilhas, e vários livros, E uma Arte nova, que tem Por arte nova o estilo? Segundo cego Há quem Prognósticos compre, Que trago aqui um tão rico, Que bem que é novo deste ano, É no governar antigo? Primeiro cego Ora cheguem meus senhores, E do que virem lhes fico Nunca dirão estes cegos Mentem aos olhos vistos. (Fénix, IV, p. 126-27)

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Segundo cego Cheguem-se a este portal, Porque daqui determino Neste Prognóstico novo Mostrar-lhe novos prodígios. Diz logo não reina Vénus Este ano, senão Cupido, Sendo de amor ano santo, Por ser um ano de Cristo. E por que não se duvide, Damos logo a razão disto, Há-de reinar mui benigno. E por que seja isto assim, Diz por que este Sol Divino É próspero, se em Dezembro Se vê no Signo de Virgo. E o que causa admiração, É que estando neste Signo, Se vê na casa de Tauro, Sendo lugares distinctos. Diz que há-de haver muito pão De Belém por todo o sítio, E pelo não recolherem Acharão na palha o trigo. Há-de ser muito barato, Isto porém advertindo, Que para os Fieis de graça, Mas para os Judeus vendido. Mas para que é dizer mais, Deus sobre tudo só digo, Que um Prognóstico de Deus Nunca tem fim, nem princípio. Primeiro cego Ora ouçam da minha Arte, Senhores, porque lhe afirmo Que é a mais discreta obra, Que saíu de Padre Trino. É Verbo tão singular, Que há-de ser, como imagino, Verbo comum para todos, Porém nunca Defectivo.

Obra Divina, e humana, Feita por tal artifício, Que bem que humana se veja, Também é obra de Espírito. Vejam que este grande Padre, Só porque viu era Filho De seu bom entendimento, Fez bom conceito do livro. E posto que é da Trindade, Pôs-lhe o Padre por capricho As Armas da Companhia, Por trazer JESUS escrito. Saibam que desta Arte é este O nome, ou o Nominativo, E ainda que no nome recto, Terá mil casos oblíquos. Contém um Verbo somente, Que por modo nunca visto, Sendo um infinito Verbo, Se vê no modo finito. É cousa maravilhosa, Que por um divino arbítrio Só com segunda pessoa O achem no ser activo. Estar no modo presente, Posto que é Verbo infinito, O há-de chegar a termos, Que há-de ter Verbo Passivo. Vocativo de chamar Lhe dá todo o fiel Latino, Bem que para com os Hebreus Terá ainda acusativos. Aqui se encerra a Arte toda, Que o Padre foi tão perito, Que encerrou só neste Verbo Saber humano, e Divino. Estribilho Ora cheguem, senhores, Que com tal livro Sairão mui letrados Por JESU Cristo.

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Primeiro cego Ora cheguem, senhores, &c. Segundo cego Ao Prognóstico cheguem, Porque lhes digo Não terá pão de graça Quem for remisso. Primeiro cego A esta Arte cheguem, Que o que for tíbio, De que fique sem Arte Hoje lhe fico.

Lampadário de Cristal (excerto)* Lampadário de Cristal que mandou a Duquesa de Saboia à Real Majestade da Poderosíssima Rainha de Portugal sua irmã. Idílio Panegírico a suas Altezas Reais o Príncipe D. Pedro, e sua Augusta Consorte D. Maria Francisca Isabel de Saboia.

(Fénix, I, p. 365-69)

A UMA CRUELDADE FORMOSA

Alpe luzido, luminar nevado, Pompa da Régia sala, Tesouro no valor, brinco na gala, Onde à matéria vasta a subtil arte, Fazendo ilustre excesso, O preço abate sublimando o preço: Confusão, porém clara, Da luzida no Céu, na terra escura Ciência, que reparte Fortuna a Vénus, e infortúnio a Marte; Porque quando separa Do cristalino Céu Céu estrelado, Vosso puro cristal, vossa luz pura Une, fazendo próprio o peregrino, Com estrelado Céu Céu cristalino. Lâmpada soberana, Digníssima do templo de Diana, Mas se nele tivera Vossa luz sua esfera, Com tal excesso brilha, Brilha tão sem exemplo,

MADRIGAL A minha bela ingrata Cabelo de ouro tem, fronte de prata, De bronze o coração, de aço o peito; São os olhos luzentes, Por quem choro e suspiro, Desfeito em cinza, em lágrimas desfeito, Celestial safiro; Os beiços são rubins, perlas os dentes: A lustrosa garganta De mármore polido; A mão de jaspe, de alabastro a planta. Que muito, pois, Cupido, Que tenha tal rigor tanta lindeza, As feições milagrosas, Para igualar desdéns a formosuras, De preciosos metais, pedras preciosas, E de duros metais, de pedras duras? (*Fénix, III, p. 216)

* Edição A. Hatherly. In “Lampadário de Cristal” de Frei Jerónimo Baía. Lisboa: Ed. Comunicação, 1982, vv. 1-179; 1080 até ao fim. (Fénix, I, p. 337-55).

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Que fora mais estranha maravilha A lâmpada que o templo; Que fora o templo, emulação do Polo, De Diana por si, por vós de Apolo. Belo farol luzente, Mais do que objecto, admiração da gente, Digno da torre, não menor que Atlante, Da torre que segundo Milagre foi do Mundo, Antes mais que da torre, do Gigante, Que se vira tão lúcidos assombros Em seus robustos estrelados ombros, A todo o Céu tratara com desprezo, Pois vós tendes mais luz, e o Céu mais pêso. Rica facha pomposa, A cuja luz, mais que as estrelas clara, Aquela ave famosa, Não sei se verdadeira ou fabulosa, Aquela ave do Sol e Sol das aves De ser Fénix deixara Só por ser borboleta, E sendo borboleta a ser tornara Outra vez ave do maior Planeta, Pois Fénix entre incêndios tão suaves, Borboleta entre tochas tão luzidas, Com gostos imortais, perpétuas sortes, Qual Fénix renovara inda mais vidas Por lograr borboleta inda mais mortes. Nocturno Sol fermoso, A cuja luz, mais que à do Sol, quisera Ícaro derreter vanglorioso, Asas não só, mas corações de cera, Porém, se os derretera No fogo lisongeiro, Não chorara perdida No salgado cristal a doce vida, Que entre suaves mágoas Lha tiraram primeiro Os incêndios que as águas, As luzes, que os incêndios, E não seria só luz tão brilhante Que deixa ao Sol estrela

Da vida juvenil Átropos bela, Mas ainda seria Parca gentil do artífice elegante, Que com tantos dispêndios Depois de Autor foi réu do laberinto, Pois quando faz que a noite vença o dia, Sendo ocaso da luz à luz de Cinto, Tanto aos olhos namora Que quem Dédalo foi, ícaro fora. Fermoso Sol nocturno, Cuja luz tanto admira, Que se a vira o varão, vira o mancebo De Japeto penhor, penhor de Febo, Que tendo em larga idade escassa sorte Não morre à vida por viver à morte: Que tendo em Céu sereno escuro fado, Com ser filho do Sol é desgraçado; Um nunca encarcerado, e sempre preso, Pois vê livre e sujeito O monte aberto, como aberto o peito: Outro mais frio quando mais aceso, Pois chora extinto num noutro elemento De fogo a morte, de água o monumento; Ou se a vira Faetonte, Se Prometeu a vira, Quando qual Sol e Aurora Na cera quanto bela derretida, Lagrimosa não menos que luzida, Alegre como Sol, como Alva chora, Nem Faetonte prezara, Nem Prometeu roubara. Fogo celestial, farol diurno, Só por vós mais ousado Fora seu furto e brio; E se aquele no rio, E se estoutro no monte, Por tão lustroso crime Ou fora preso ou fora sepultado, Em virtude de causa tão sublime, Por glória reputara O primeiro, o segundo delinquente A corrente, a corrente

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Que: aperta, que desata O Cáucaso de ferro, o Pó de prata. Claridade excessiva, antes imensa, Em luzes rara porque em luzes densa, Ilustre, singular, prenda admirada, Que com digna de si Real grandeza, Por mão de Embaixador excelso manda À Majestade mór a mór Alteza, Que manda... (Oh se meu canto Aqui subisse tanto, Que pudesse passar da terra ao vento, Do vento ao Céu, do Céu ao Firmamento, E desde o Firmamento até ao Empírio!) Que manda a rosa ao lírio, Antes o brinco à joia, Antes ao Sol a estrela, Antes a bela irmã à irmã mais bela, Esta de Lísia, aquela de Saboia, Que o ser irmão é mais nesta e naquela Do que o ser fermosa, e mais fermosa. Brinco e Sol, joia e lírio, estrela e rosa. Dêem os cisnes do Tejo, Do Tejo aonde pulsam de ouro as veias Mais que as areias finas, E numerosas mais do que as areias O cisnes, cujas músicas divinas, Quanto mais naturais mais peregrinas; Invejo só, mas amo mais que invejo, O cisnes, doce injúria das sereias, Soltando ao vento a voz, que prende ao vento, Dêem a tão claro assunto claro acento. Cantem com verso digno De celebrar mil Troias, Levando a Esmirna o louro, a Mântua a palma, Estas aves com alma, Com pena estes mancebos A um Céu, tesouro, prado, Luminoso, magnífico, brincado, Que em corpo cristalino Ostenta mais que belas Boninas, mas de joias, Joias, porém de estrelas, Estrelas, mas de Febos;

Porém vencem tais luzes, tais primores, Mil Sóis, mil astros, brincos mil, mil flores, Ficando locuções menos condignas, Febos e estrelas, joias e boninas. Aclame-vos seu verso, Que ao tempo humilhe, a Fama se consagre Não último milagre do Universo, Último não, mas único milagre: Chame as vossas colunas radiantes, Onde por toda a parte Os cristais se estão rindo dos diamantes, Métas da fermosura em mares de arte. Enfim, seja coroa de seu canto, De Gôngora temor, de Lope espanto, Vossa mais que a do Céu bela coroa, Menosprezo do Sol, Sol de Lisboa: Coroa, sim, mui mais que a do Sol bela, Bem que juntando aquela Entre Auroras da terra e do Céu Maios, As boninas que teve, os que tem raios, Formasse claramente confundindo Com o belo do Céu da terra o lindo, Formasse, digo, entre jardins e esferas, De flores Céus e de astros Primaveras. Mas eu que, bem que absorto de Morfeu, Nem ainda sonhando Bebi da tantas vezes clara fonte, Que ferve fria, que se ri chorosa, No monte feio, no fermoso monte, Aos ouvidos fermoso, aos olhos feio, Eu que nunca tirei do cristal brando [...] É cristal do cristal, do espelho espelho. Parte a luz, que escurece, Não a Menfis o Faro, o Sol a Delo, Do brando cristal belo Ao duro cristal lindo, Dous olhos retratando e mil ferindo, Antes favorecendo, Porque então, quando os fere os favorece, Mas luz nos olhos que esta luz inflama Sem fumo do desejo, de amor chama.

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Parte a luz, à luz chega, a luz se torna De um, doutro Sol, que um Céu e que outro ilustra, De um, doutro Céu, que um Sol e que outro adorna, Porque a luz na safira amanhecendo, De azul, de ouro vestindo, De modo Céu com Sol vai confundindo, Vai confundindo Sol com Céu de modo, Que o Sol azul, dourado o Céu parece, O Céu que todo é Sol, e o Sol Céu todo, Mas Céu que ao Céu e Sol que ao Sol deslustra. Parte, e se chega pura como parte, Pura não torna como parte pura, Que ou não cabe no espelho a que reparte Ou paga lhe não faz por ser usura; Mas qual eco, que à voz responde em parte Em parte só responde A luz do espelho à luz da formosura, Porque o menos publica, o mais esconde; Porém, aquele menos que publica, Por ser sombra do Sol, que a Apolo assombra, Por ser eco do Céu, que abate ao Polo, É tão rica porção de luz tão rica, Que para possuir maior tesouro, De safira melhor, de melhor ouro, Tomara o Céu ser eco de tal sombra, Tomara o Sol ser sombra de tal eco, E por sinal que dera, Que dera o Polo pelo que tomara, Que, pelo que tomara, dera o Polo Com termo liberal, mas ainda seco, A respeito do ganho que lhe fica, Que dera, digo, um noutro, aquele neste Todo o corpo solar, todo o celeste, E o Céu sem Sol, e o Sol sem Céu ficara, Mas não faltara Céu, Sol não faltara Porque; mas o porque mui bem se entende, Bem que se não declara, Porque mais de uma vez a razão clara Se vê à cera bela ou branda rocha. Calo, pois, o porque, porque se ofende O resplandor do Sol com luz da tocha, Que o singular se ofende do ordinário.

Oh se o Fado quisera, Se ao menos permitira, Que o cristal vosso em seu cristal se vira, Quando assim pelos ecos se melhora Dos olhos belos mais, das mãos mais belas, Então muito mais crespo do que liso, Digo, mais arrogante, Vosso cristal brilhante Por causa deles, por respeito delas, Não só fora pavão, Narciso fora, Narciso de cristais, pavão de estrelas, Antes, com maior pompa e mais juízo, Fora de olhos pavão, de ecos Narciso. Mas posto que vos falta Ver no vosso cristal sua beleza A mais alta Princesa, A Rainha mais alta, Que posso encarecer, que fingir posso, Sua beleza vê no cristal vosso, E basta por coroa, Por coroa sobeja Das mais felicidades, Que a mais que soberana Francesa de Lisboa, De Paris Lusitana, Bem que a não vedes vós, em vós se veja. Mas cale a Musa indina, Que não é Lusitana nem francesa A que mais que três vezes é divina, É divina mais, digo, que três vezes, Pois é Maria, Vénus, Palas, Juno Dos Reinos Portugueses, Com que o mar, com que o Céu e a terra gasta Mais que um Orbe, de um Febo e de Neptuno: É Juno, mas piedosa, E Palas, mas formosa, Vénus é, porém casta, É Vénus, a quem fez a Natureza Não deidade de rosa, Mas rosa das Deidades, Não beleza do mar, mar da Beleza, Enfim, que neste mar, neste teatro,

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Há numa Deusa só Deidades quatro. Porém, com mais, com menos claridades, Com menos, com mais preços, Há nas três igualdades, Numa somente excessos; Pois se a Deusa que dá três vezes bela Perla ao mar, rosa ao prado, ao Polo estrela, Que em Pafo trono, em Chipre tem palácio, A que abrasa ao Deus Lémnio e fere ao Trácio, Fazendo-lhes sentir em Céu e em terra Fogo do fogo ao deus, guerra ao da guerra. Se Vénus digo em Ida, Quando depôs as galas Vencendo a Juno e a Palas, Por vencedora ser foi preferida, Em Lusitânia agora Anteposta não é por ser vencida Maria, a quarta Deusa, antes primeira, A faz de vencedora companheira, De uma e de outra Deidade já rendida, Mostrando a que de todas é Senhora Ser não só das rendidas já Deidade, Mas da já vencedora vencedora; Pois com glória das três, das três sem queixa Maria a Vénus deixa, Como Vénus as duas, De graças, mais que de vestidos, nuas. Há pois as quatro numa divindade, Mas com luz singular, com luz comua, Mais valor, menos preço, Uma a três faz excesso, Igualdade não fazem três a uma. Pois de Maria, Palas, Juno e Vénus, O ser Maria é mais e o mais é menos, Por coroa, pois, basta à vossa estrela, Bem que a não vedes vós, ver-se em vós ela. Porém, menos é ver-se, Mais é que ver-se em vós, em vós rever-se, Mais que rever-se em vós, em vós amar-se, Mais quando a vós vos louva, em vós louvar-se, Que como a vossa luz é da luz sua, Bem qual é luz do Sol a luz da Lua,

A si se tem afecto, se vos ama, A si se dá louvor, se a vós a Fama. Se a mina de Astros duros, rica esfera, Se o matizado Abril, terrena Aurora, No tesouro do Sol, campo de Flora, Amara ao lírio, a pedra encarecera, Que mais cândido brota e sai mais clara Do estéril monte e fértil Primavera, A si se encarecera, a si se amara, Que a mais pura, se bem pedra mais fina, É diamante do Abril, lírio da mina. Assim, pois, a Maria lhe acontece, Quando vos ama flor, pedra encarece, Pois sendo a branca flor pedra lustrosa, Primavera gentil, mina preciosa; Sendo, digo, a vós ela Causa a mui lindo afecto mui mais bela, Sol mui mais claro, Lua mais brilhante, Sol, Abril, mina, Lua, flor, diamante. A si, quando a vós ama, se requebra, A si, quando vos louva, se celebra. Em Fortuna tão alta A lira se suspende, a voz me falta; Mas que muito, se tanto a Sorte admira, Que a voz me falte ou se suspenda a lira! Ao mesmo sonoroso entusiasmo, Pasmo dos Linos, dos Orfeus pasmo, Com que o novo Camões ata e desata, Desata as plantas, as correntes ata, Excede tanto assunto, tão brilhante, Que fica mais que mudo Quem é mais que elegante, E mais em verso agudo, E mais em grave canto, O Fénix singular e Camões novo, Glória da Fidalguia, amor do povo, Lustre de Portugal, Astro da Corte, Astro Guarda fiel do Luso Norte, D. Francisco de Sousa excede tanto Ao calor mesmo do Apolíneo monte, À mesma cópia da Castália fonte, Que à vista do que excede,

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André Nunes da Silva*

Desmaiando-lhe o brio, Morre a fonte de sede, Morre o calor de frio. Cesso, pois, e devoto, O que em verso empreendi, remato em voto, Mas que desejo mais, se tanto vejo, Que excede a vossa posse ao meu desejo. Merecei, pois, o amor, lograi o abono Desse Par tão amado quanto fino, Onde fez o destino A formosura do valor consorte, Consorte qual do tálamo, do trono, E com nunca jámais ouvida sorte, Com ventura em cristal nunca mais vista, Os votos aqui deixo, as velas tomo, Desejo, que assim como Do mesmo Par tão fino quanto amado, De quem já sois a prenda mais benquista, Lograis a vista, mereceis o agrado, O agrado mereçais, logreis a vista: Oh mil vezes cristal afortunado, Alpe luzido, luminar nevado!

À CRUZ Se em golfo de sereias proceloso, Empenho repetido do cuidado, O sábio grego, ao duro mastro atado, As sereias escapa cauteloso; Eu, no mar deste mundo tormentoso, De sirtes e sereias povoado, À vossa cruz, Senhor, sempre abraçado, Os perigos escape venturoso.

Oh! Livrai-me, meu Deus, de tanto astuto Labirinto, de tanto cego encanto, Para que colha desta planta o fruto;

FIM

Que é justo, doce Amor, em risco tanto, Se salva a Ulisses um madeiro bruto, Que a mim me salve este madeiro santo. (*Poesias várias, p. 5)

AL NACIMIENTO DE NUESTRO SEÑOR Humilde el que los orbes enoblece, En un portal el que domina el cielo, El que al fuego dá ser, temblando al yelo, Desnudo el que los cielos enriquece;

* In Poesias Várias. Um * junto à fonte de cada poema indica que a transcrição se fez a partir da antologia Poetas do Período Barroco, de Maria Lucília G. Pires.

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A LA FRAGILIDAD DE LA VIDA HUMANA

Por libertar al mundo que perece En el golfo mortal de su recelo, Con amor, con fineza y con desvelo, Al decreto del Padre hoy obedece.

Nace el dia y la noche le dá muerte, Brilla el sol y la niebla le sufoca, Corre la nau y pierdese en la roca, En su cuna la flor su tumba advierte,

A dar al mundo vida nace al mundo De Dios el Hijo, el Verbo soberano, En todas sus acciones peregrino.

Crese la planta, el tiempo la previerte, El yelo ataja la corriente loca, Y a todos finalmente en vida poca Largo tormento ofrece esquiva suerte.

Oh prodígio de amor sábio y profundo, Que para hacer divino el ser humano Velo humano le cubra el ser divino! (*Poesias várias, p. 6)

Alerta pues, humanas prezunciones, No confianzas necias dén aliento Al buelo osado, al ciego desvairo.

PECADOR ENDURECIDO

Cobrese el hombre en cuerdas atenciones, Pues igualmente ejemplo y escarmiento Le son dia, sol, nau, flor, planta y rio.

Se por segredo oculto, alto destino Da próvida, admirável natureza, Do diamante lavrar pode a dureza O sangue do cordeiro peregrino,

(*Poesias várias, p. 58)

Lavrar deveis meu peito diamantino, Amante Deus, pois somos nesta empresa, Eu, um retrato vivo da fereza, Vós, da brandura um exemplar divino. Firme esperança de remédio posso Ter, meu Jesus, notando-vos amante, Por mais que o peito se resista inteiro. Lavrai meu peito com o sangue vosso, Pois é meu peito, peito de diamante, E vosso sangue é sangue de cordeiro. (*Poesias várias, p. 12)

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António da Fonseca Soares/ Frei António das Chagas*

EMBIA LAURA EN UNA ABSENCIA A SU AMANTE UN RELOJ DE MOVIMIENTO Que impuerta, o Laura, pues mi amor no ignoras, Que ese reloj que a mi cuidado embias Las mudanzas me apunte de los dias Si la igualdad me cuenta delas horas? Muestre su movimiento a las auroras Cuán varias son, que las firmezas mias Nunca podrán frustrarse a las profias Que ha tanto son a tu deidad deudoras. Si pues, firme en su proprio movimiento, Mide un reloj con tan igual decoro Una hora, un punto, un atomo, un momento,

A MANUEL DE MELO, MESTRE DE CAMPO E GOVERNADOR DE MOURA

Que impuerta, o Laura, que este mal que lloro Te diga en las mudanzas que me absento, Si muestro en las firmezas que te adoro?

Se, Melo invicto, a minha voz dissera Quanto o mérito vosso me ditara, Ou menos raro o mérito admirara, Ou mais que humana a voz encarecera,

(*Fénix, V, 121)

Pois tão grande a razão vos considera, Que se a mesma eloquência vos louvara, Só do silêncio aplauso vos formara, Poema só dos pasmos vos fizera.

A SANTA MARIA MADALENA De noite a Madalena vai segura, Passa por homens de armas sem temor, Tanto elevada vai no seu amor Que não atende a quanto se aventura.

Se, pois, cabeis somente no admirado, Cresça Alexandre e César no aplaudido, Que vós sois mais no menos declarado.

Indo buscar a vida à sepultura, Quando não achou nela a seu Senhor, Com suspiros, com lágrimas, com dor Movia a piedade a pedra dura.

Pouco éreis se fôsseis conhecido, Que sempre esteve ao nada avizinhado Quem foi bastantemente engrandecido.

- Suave Esposo meu, todo o meu bemOs olhos no sepulcro, começou - Quem vos levou, Senhor, donde vos tinha?

(*Fénix, II, p. 29)

* In Fénix Renascida, II-IV. O * junto à fonte de cada poema indica que a transcrição se fez a partir da antologia Poetas do Período Barroco, MLGP.

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Cantam teus pés, e teu meneio pronto, Nas fugas, não, nas cláusulas medido, Mil consonâncias forma em cada ponto,

Quem vos levou, Senhor, onde vos tem? Torne-me [meu] Senhor quem mo levou Ou leve com seu corpo esta alma minha. (*B. N. L., Cod. 6216, fol. 145 v)

Pois em falsas airosas suspendido, Ergues em cada quebro um contraponto, Fazes em cada passo um sustenido.

SOBRE LAS PALABRAS DE JOB: «DIES MEI TRANSIERUNT»

(*Fénix, V, p. 131)

Buelan las horas, pasanse los dias, Correu los meses, huyense los años, Y nuestra vida hidropica de engaños Bebe ambiciones, paca tiranias,

UM PÉ PEQUENO Instante de jasmin, concepto breve, Átomo de azucena presumido, Pues os juzgan las ansias del sentido Sospecha de crystal, susto de nieve;

Sin ver que el gosto es todo fantasias, Sin que la vida aprenda de sus daños Que el alma que arrastró sus desengaños Es toda a su delito idolatrias.

No pié, mentira sois, pues, como aleve, Ni verdad en un puto haveis cumplido, Antes digo que escrupulo laveis sido, Pues de ser o no ser la duda os mueve.

Ó mundo ciego, à la razón defunto, Como no ha hecho en ti más movimiento Verte al peligro por instantes junto?

Como, si idea sois de ojos tan claros. Hazeis la vista fe para creeros, Y hazeis los ojos fe para miraros?

Deja la liviandad, mira de asiento Que ha de espirar la vida a cada punto, Puas se muere la edad cada momento.

Yo me persuado en fin, que hede perderos Porque si el veros es imaginaros, Siendo imaginacion, como hede veros?

(*Fénix, III, 372)

(*Fénix, III, p. 202)

AO CAVALO DO CONDE DE SABUGAL, QUE FAZIA GRANDES CURVETAS

ROMANCE Francisca da minha vida por cuja divina cara, inda que caro me custe, vivo toda à franciscana,

Galhardo bruto, teu bizarro alento Música é nova, com que aos olhos cantas, Pois na harmonia de cadências tantas É clave o freio, é solfa o movimento.

Na Arrábida desta ausência, sendo deserto a distância, passo a vida nua cova, passo a vida solitária.

Ao compasso da rédea, ao instrumento Do chão que tocas, quando a vista encantas, Já baixas grave e agudo já levantas, Onde o pisar é som, e o andar concento.

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Estou tal, meu doce emprego, que é vocabulário desta alma cada saudade ua cruz, cada memória ua chaga.

Tornou-se em disciplina qualquer ventura passada. São da alma os ais misereres, são do amor cilicio as ânsias.

Veste de burel asperezas grosseira a desconfiança, sem que o cambai das finezas sirva nem gera mortalha.

Se vai o meu pranto em rios das rochas descendo às praias, abranda os penhascos duros, esse peito nunca abranda.

Das cordas do coração, que tu me quebras e arrancas, dando nó cego os soluços põe sempre o nó na garganta.

Se medito no celeste dessa beleza tirana, vejo que adoro ua fera, sinto que um céu me maltrata.

Com hábito de penitência estou já tão feito às mágoas, que conventual das penas sou professo de desgraças.

As feras compadecidas de ver quão fera me matas, quando desumana o fazes se mostram comigo humanas.

No resumo de teus favores, como só me dão à larga pão e penas, água os olhos, vou passando a pão e água.

Sem dúvida a natureza hoje em ti mostra trocada delas o rigor, e nelas a piedade que te falta.

Nas contas dos meus extremos passo os dias e as semanas, e sendo aqueles sem conta com me pôr na cruz me pagas.

Se este deserto é castigo de tanto amor, de fé tanta, gera mim que mais deserto que estar fora dessa graça?

Sempre descalço de alívios vou pisando as minhas ânsias, os abrolhos dos ciúmes, a neve das esperanças.

Pois, Francisca dos meus olhos, se ua fineza tão rara já por penitente é digna de ua indulgência plenária,

Nas lástimas do que sou e do que fui na lembrança, trago o que sou por caveira, julgo o que fui por fantasma.

Não me mateis, vida minha, que esta que vossa se chama é lástima, sendo vossa, sentir de minha a desgraça.

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[À VAIDADE DO MUNDO]

Permiti que torne a ver essa perigrina cara, que a troca de tê-la visto não sentirei vê-la ingrata.

É a vaidade, Fábio, desta vida Rosa que na manhã lisonjeada Púrpuras mil com ambição coroada Airosa rompe, arrasta presumida;

Lembra-te, minha querida, se minha não sempre amada, dos auxílios que algum tempo num virar de olhos me davas.

É planta que de Abril favorecida Por mares de soberba desatada, Florida galera empavezada, Surca ufana, navega destemida;

E se então para querer-me achaste desculpa ou causa, não mostres arrependida quanto erraste afeiçoada.

É nau, enfim, que em breve ligeireza, Com presunção de fénix generosa, Galhardias apresta, alentos preza.

Esses que piedosos busco me põe cá, porque isto basta para que, indo em graça deles, goze a bem-aventurança.

Mas ser planta, rosa e nau vistosa De que importa, se aguarda sem defesa Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (*Carta escrita a um antigo seu depois de ser religioso, p. 3-4)

(*B. N. L., Cod. 6269, fol. 138)

A UMA CAVEIRA

À CLAUSURA DO BUSSACO Na santa habitação desta clausura Aonde a vida em racional batalha, Formando de asperezas a muralha, Da carne assaltos resistir procura,

Destroçado baixel da vida humana, Eloquente padrão de uma ruína, De lastimoso horror pálida mina, Arrastado troféu de pompa ufana,

Armada a alma para a guerra dura Faz do cilício impenetrável malha, E fazendo armadura da mortalha Da morte se arma por viver segura. A disciplina aqui sempre observada Com ásperos cordões a mesma vida Em fome e sede deixa sitiada,

Desse caos que habitas por choupana, Dessa que ocupas urna peregrina. Me dize quem és, que desatina A vista no horror que te profana. – Sou de um grande, de um vil, de um rei procedo – Mais retórico então quando mais mudo Responde aquele assombro obscuro e quedo,

Até que a água em lágrimas bebida E em suspiros a pólvora gastada Se vê do corpo a praça destruída.

Pois o grande, o vil, o rei é tudo, Debaixo deste sólido penedo, Tudo igual, tudo o mesmo e cinza tudo.

(*B. N. L., Cod. 6216, fol. 144 v)

(*Carta, p. 7)

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ELEGIA QUE FEZ O VENERÁVEL P.e FR. ANTÓNIO DAS CHAGAS NO PRIMEIRO ANO DO SEU NOVICIADO

Hoje com diferenças prodigiosas Só da imagem se preza e semelhança De quem tais pedras fez assim preciosas.

Entre o sagrado horror desta clausura, Onde tenho por hábito a mortalha, Casa faço também da sepultura;

E assim que muito é ver-se esta mudança, Se desse de piedades oceano O fluxo ao clima mais remoto alcança?

Onde, como gusano que trabalha Por se esconder no túmulo tecido, Roubo um triunfo à temporal batalha;

Se enfim chega o seu curso soberano Por meatos de oculta providência Aos pedernais do coração humano?

Passo tão outro, ó Fábio, do que hei sido, Que ou o que sou mil vezes desconheço, Ou quase sempre do que fui duvido.

Donde, bem que ache dura a resistência, Vemos que o manancial da eterna graça Nasce ou rebenta com feliz violência;

Pasmo de ver que à verde idade teço O mausoléu de um claustro limitado, Eu, que não coube de Babel no excesso.

Para que, bem que entre as espinhas nasça, O campo estéril regue e fertilize, E os ermos tristes aprazíveis faça;

Pasmo de ver-me a tantos pés prostrado, Eu, que no Olimpo de um soberbo intento Quis dar ao mundo assombro, ao céu cuidado.

E enfim, para que ao tempo que agonize, Ao roxo mar de sangue seu se chegue, E nele com mais glória se eternize.

E o que me admira por maior portento É que eficácia fosse do discurso, O que não pode ser da ânsia escarmento;

Neste, sem que a ignorância mais navegue, É força já que faraó se afogue, E é bem que o povo que é de Deus se entregue.

Se bem, não tendo às lágrimas o curso, Já creio que tão altos exercícios Efeitos são de um celestial concurso.

Razão é já que aqui se desafogue A alma de tantos laços encobertos E que a soltura dos que os sentem rogue.

Impulsos são daqueles benefícios Com que a bondade imensa nos declara Que as vontades quer mais que os sacrifícios;

[...] Qual flor se murcha a idade mais florida, Qual sonho acaba a glória mais prezada, Qual sombra passa a pompa mais luzida,

Pois ao ferir da sacrossanta vara Desfez em água um coração de pedra, E o lavra agora para pedra de ara.

E antes que a meta da total jornada Coroe a vida, a todos nos parece Breve a flor, vão o sonho, a sombra nada.

Este que um tempo de Ariadna e Fedra Se votava às imagens fabulosas Com que inda a louca idolatria medra,

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Se ao tempo, pois, que cada qual floresce, Seca aquela, este solto, essa desfeita, Mágoas faz, ânsias custa, horrores cresce,

Aqui por dentro da alma espavorida Me está sempre aterrando o som tremendo Que há-de ouvir toda a terra estremecida.

Quem mais o sonho que a verdade aceita? Quem pela flor o fruto da alma perde? Quem pela sombra a luz do sol enjeita?

Aqui se me afigura que estou vendo Erguer-se em forma humana a cinza oculta E pôr-se a luz divina em traje horrendo.

Oh! se a esperança no zénite mais verde Das primaveras os outonos vira Aonde o outono é força que a deserde,

Aqui a imagem do pavor me avulta O mar que brama, o céu que se escurece, A terra que arde, o sol que se sepulta.

Que depressa entre os gostos advertira Que é quimera caduca a flor da idade, A glória fumo, a ostentação mentira.

E finalmente à vista lhe parece Que uns vão ao bem da pátria soberana E outros ao mal que eternamente cresce.

E se não diga a vã prosperidade Quando em auge maior se considera Que tempos goza os frutos da vaidade?

E se isto, Fábio, a vida mais profana Trouxera na memória alguas vezes E os nadas vira com que o mundo engana;

O que há-de ser incerto se pondera, Aquilo que está sendo vai passando, E hoje não é o mesmo que ontem era.

Se os doces dias, se os felices meses Com um ponto só do eterno bem medira E do ouro humano só pesara as fezes;

Logo, se o mesmo que se está gozando No crespúsculo breve de um momento Vai da vida as auroras enganando;

Que certamente, ó Fábio, que caíra Naquela conta que há-de dar errada Quem só no extremo pela cruz suspira. (*B. N. L., Cod. 10 894, p. 671-695)

Se aquele arrebatado movimento Das horas vai fugindo quando dura Só por mostrar que a glória humana é vento;

FUGIDA PARA O DESERTO E DESENGANO DO MUNDO

Quem das lições do tempo e da ventura Não aprende que o bem todo é mudança E só meta da vida a sepultura?

Já meu Deus, neste deserto Fábio vive arrependido do regalo nos abrolhos, do deleite nos espinhos.

[...] Aqui pois, Fábio, contemplando a meta Em que faz do zenite ocaso a vida, Vivo deste sepulcro anacoreta.

Já do lascivo emendado, já de pecador contrito, de perverso, penitente, de soberbo compungido;

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Já todo lágrimas, pranto, já todo fogo incendido, já todo amargos soluços, já todo triste suspiro.

Já, Senhor, chegando vai àquele fim dirigido, o último instante da vida, triste da morte principio.

A vós, Pai e Deus de amor, chora amante, geme aflito, bronze em cera transformado, seixo em fogo convertido.

Já, meu Deus, aquele alento que a um sopro vosso foi vivo, pela falência da vida da morte vive cativo.

Agora, Senhor, agora saiam desses cinco rios lavatórios para as culpas, e perdão para os delitos.

Já sem vista a minha vista, sem juízo o meu juízo, sem discurso o meu discurso, sem sentido meu sentido,

Saiam dessas chagas, saia desse tesouro infinito que amor vinculou na Cruz para resgatar cativos;

Quanto temo, tudo é sombra, quanto temo, tudo é riso, quanto tenho, tudo é medo, tudo é pena quanto sinto.

Saiam dessas mãos abertas, saiam desses pés feridos liberalmente as piedades, piedosamente os prodígios.

Porém, meu Deus, nesta hora em que já destituído o corpo se vê sem forças, o alento se vê sem brio,

Desse peito nobre saiam os afectos e os motivos que por mal nascidas culpas vos fizeram bem nascido.

A vida se vê sem curso, o tacto se vê sem tino, o juízo sem alento, o poder sem alvedrio, Vossa clemência me valha, Ampare-me vosso abrigo, vossa piedade me arrime, socorra-me vosso auxílio.

[...] Já, Senhor, neste deserto onde penitente assisto tanta duração de tempo, o tempo vou consumindo.

Pequei, meu Jesus, pequei! pois sois, meu Jesus, benigno, nas vossas mãos, meu Jesus, encomendo meu espírito.

Já este cadáver corpo nos últimos paroxismos cansado vai caminhando pela carreira perdido.

(*Fugida para o deserto e desengano do mundo, Lisboa, 1756)

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Gregório de Matos*

CARREGADO DE MIM ANDO NO MUNDO Carregado de mim ando no mundo, E o grande pêso embarga-me as passadas, Que como ando por vias desusadas, Faço o pêso crescer, e vou-me ao fundo. O remédio será seguir o imundo Caminho, onde dos mais vejo as pisadas, Que as bêstas andam juntas mais ornadas, Do que anda só o engenho mais profundo

SONETOS LARGO EM SENTIR, EM RESPIRAR SUCINTO

Não é fácil viver entre os insanos, Erra, quem presumir, que sabe tudo, Se o atalho não soube dos seus danos.

Largo em sentir, em respirar sucinto Peno, e calo tão fino, e tão atento, Que fazendo disfarce do tormento Mostro, que o não padeço, e sei, que o sinto.

O prudente varão há de ser mudo, Que é melhor neste mundo o mar de enganos Ser louco cos demais, que ser sisudo?

O mal, que fora encubro, ou que desminto, Dentro no coração é, que o sustento, Com que para penar é sentimento, Para não se entender é labirinto.

Ó CAOS CONFUSO, LABIRINTO HORRENDO

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros; Da tempestade é o estrondo efeito: Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.

Ó caos confuso, labirinto horrendo, Onde não topo luz, nem fio amando, Lugar de glória, aonde estou penando, Casa da morte, aonde estou vivendo!

Mas oh do meu segrêdo alto conceito! Pois não me chegam a vir à bôca os tiros Dos combates, que vão dentro no peito.

Ó voz sem distinção, Babel tremendo, Pesada fantesia, sono brando, Onde o mesmo, que toco, estou sonhando, Onde o próprio, que escuto, não entendo! Sempre és certeza, nunca desengano, E a ambas propensões, com igualdade No bem te não penetro, nem no dano. És ciúme martírio da vontade, Verdadeiro tormento para engano, E cega presunção para verdade.

* In Se Souberas também Falaras, Antologia Poética. Org. sel., estudo e notas de Gilberto Mendonça Teles. Lisboa: INCM, 1989. Os poemas de Gregório de Matos foram seleccionados a partir desta vasta antologia, citada na Bibliografia.

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NA ORAÇÃO QUE DESATERRA... ATERRA

HORAS CONTANDO, NUMERANDO INSTANTES

Na oração, que desaterra............................aterra Quer Deus, que, a quem está o cuidado.......dado Pregue, que a vida é emprestado................estado Mistérios mil, que desenterra..................enterra?

Horas contando, numerando instantes, Os sentidos à dor, e à glória atentos, Cuidados cobro, acuso pensamentos, Ligeiros à esperança, ao mal constantes. Quem partes concordou tão dissonantes? Quem sustentou tão vários sentimentos? Pois para glória excedem de tormentos, Para martírio ao bem são semelhantes.

Quem não cuida de si, que é terra................erra Que o alto Rei por afamado....................amado, E quem lhe assiste ao desvelado...................lado Da morte ao ar não desaferra....................aferra.

O prazer com a pena se embaraça; Porém quando um com outro mais porfia, O gôsto corre, ia dor apenas passa.

Quem do mundo a mortal loucura..............cura, A vontade de Deus sagrada......................agrada, Firmar-lhe a vida em atadura......................dura.

Vai ao tempo alterando à fantesia, Mas sempre com ventagem na desgraça, Horas de inferno, instantes de alegria.

Ó voz zelosa, que dobrada.........................brada, Já sei, que a flor da formosura.....................usura Será no fim desta jornada...........................nada.

UM PRAZER, E UM PESAR QUASE IRMANADOS

QUE ÉS TERRA, HOMEM. E EM TERRA HÁS DE TORNAR-TE

Um prazer, e um pesar quase irmanados, Um pesar, e um prazer mas divididos Entraram nesse peito tão unidos, Que Amor os acredita vinculados.

Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te, Te lembra hoje Deus por sua Igreja, De pó te faz espelho, em que se veja A vil matéria, de que quis formar-te.

No prazer acha Amor os esperados Fruitos de seus extremos conseguidos, No pesar acha a dor amortecidos Os vínculos do sangue separados.

Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te, E como o teu baixel sempre fraqueja Nos mares da vaidade, onde peleja, Te põe à vista a terra, onde salvar-te.

Mas ai fado cruel! que são azares Tôda a sorte, que dás dos teus haveres, Pois val o mesmo dares, que não dares.

Alerta, alerta pois, que o vento berra, E se assopra a vaidade, e incha o pano, Na proa a terra tens, amaina, e ferra.

Emenda-te, fortuna; e quando deres, Não seja êsse pesar em dous pesares, Nem um prazer enterrado nos Prazeres.

Todo o lenho mortal, baixel humano Se busca a salvação, tome hoje terra, Que a terra de hoje é pôrto soberano.

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SÓBOLOS RIOS, SÓBOLAS TORRENTES

O TODO SEM A PARTE NÃO É TODO O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo.

Sôbolos rios, sôbolas torrentes De Babilônia o Povo ali oprimido Cantava ausente, triste, e afligido Memórias de Sião, que tem presentes.

Em todo o Sacramento está Deus todo, E todo assiste inteiro em qualquer parte, E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo?

Sôbolas do Caipe águas correntes Um peito melancólico, o sentido Um anjo chora em cinzas reduzido, Que são bens reputados sôbre ausentes.

O braço de Jesus não seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo, Assiste cada parte em sua parte.

Para que é mais idade, ou mais um ano, Em quem por privilégio, e natureza Nasceu flor, a quem um Sol faz tanto dano?

Não se sabendo parte deste todo, Um braço, que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas deste todo.

Vossa prudência, pois em tal dureza Não sinta a dor, e tome o desengano Que um dia é eternidade da beleza.

NÃO VI EM MINHA VIDA A FORMOSURA

ILHA DE ITAPARICA, ALVAS AREIAS

Não vi em minha vida a formosura, Ouvia falar nela cada dia, E ouvida me incitava, e me movia A querer ver tão bela arquitetura.

Ilha de Itaparica, alvas areias, Alegres praias, frescas, deleitosas, Ricos polvos, lagostas deliciosas, Farta de Putas, rica de baleias.

Ontem a vi por minha desventura Na cara, no bom ar, na galhardia De uma Mulher, que em Anjo se mentia, De um Sol, que se trajava em criatura.

As Putas tais, ou quais não são más preias, Pícaras, lêdas, brandas, carinhosas, Para o jantar as carnes saborosas, O pescado excelente para as ceias.

Me matem (disse então vendo abrasar-me) Se esta a cousa não é, que encarecer-me Sabia o mundo, e tanto exagerar-me.

O melão de ouro, a fresca melancia, Que vem no tempo, em que aos mortais abrasa O sol inquisidor de tanto oiteiro.

Olhos meus (disse então por defender-me) Se a beleza hei de ver para matar-me, Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me.

A costa, que o imita na ardentia, E sobretudo a rica, e nobre casa Do nosso Capitão Luís Carneiro.

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DITOSO AQUELE, E BEM-AVENTURADO

QUE ME QUER O BRASIL, QUE ME PERSEGUE?

Ditoso aquêle, e bem-aventurado, Que longe, e apartado das demandas Não vê nos tribunais as apelandas, Que à vida dão fastio, e dão enfado.

Que me quer o Brasil, que me persegue? Que me querem pasguates, que me invejam? Não vêem, que as entendidos me cortejam, E que os Nobres, é gente que me segue?

Ditoso, quem povoa o despovoado, E dormindo o seu sono entre as Holandas Acordo ao doce som, e às vozes brandas Do tenro passarinho enamorado.

Com o seu ódio a canalha, que consegue? Com sua inveja os néscios que motejam? Se quando os néscios por meu mal mourejam, Fazem os sábios, que a meu mal me entregue.

Se estando eu lá na Côrte tão seguro Do néscio impertinente, que porfia, A deixei por um mal, que era futuro;

Isto pôsto, ignorantes, e canalha Se ficam par canalha, e ignorantes No rol das bêstas a roerem palha.

Como estaria vendo na Bahia, Que das Côrtes do mundo é vil monturo, O roubo, a injustiça, a tirania.

E se os senhores nobres, e elegantes Não querem que o sonêto vá de valha, Não vá, que tem terríveis consoantes.

FRANÇA ESTA MUI DOENTE DAS ILHARGAS

HÁ COUSA COMO VER UM PAIAIÁ Há cousa como ver um Paiaiá Mui prezado de ser Caramuru, Descendente de sangue de Tatu, Cujo torpe idioma é cobé pá.

França está mui doente das ilhargas, Inglaterra tem dores de cabeça, Purga-se Holanda, e temo lhe aconteça Ficar debilitada com descargas.

A linha feminina é carimá Moqueca, pititinga caruru Mingau de puba, e vinho de caju Pisado num pilão de Piraguá.

Alemanha lhe aplica ervas amargas, Botões de fogo, com que convaleça. Espanha não lhe dá, que êste mal cresça. Portugal tem saúde e fôrças largas.

A masculina é um Aricobé Cuja filha Cobé um branco Paí Dormiu no promontório de Passé.

Morre Constantinopla, está ungida. Veneza engorda, e toma fôrças dobres, Roma está bem, e tôda a Igreja boa.

O Branco era um marau, que veio aqui, Ela era uma Índia de Maré Cobé pá, Aricobé, Cobé Paí.

Europa anda de humores mal regida. Na América arribaram muitos pobres. Estas as novas são, que há de Lisboa.

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que pode tudo, o que quer, e vos chegou a eleger para Mãe sua tão alta, impureza, mancha, ou falta nunca em vós podia haver.

CASOU-SE NESTA TERRA ESTA E AQUELE Casou-se nesta terra esta, e aquêle, Aquêle um gôzo filho de cadela, Esta uma donzelíssima donzela, Que muito antes do parto o sabia êle.

Louvem-vos os serafins. que nessa Glória vos vêem, e todo o mundo também por todos os fins dos fins: Potestades, querubins, e enfim tôda a criatura, que em louvar-vos mais se apura, confessem, como é razão, que foi vossa conceição sacra, rara, limpa, e pura.

Casaram por unir pele com pele, E tanto se uniram, que êle com ela Com seu mau parecer ganha para ela, com seu bom parecer ganha para êle. Deram-lhe em dote muitos mil cruzados, Excelentes alfaias, bons adornos, De que estão os seus quartos bem ornados:

O Céu para coroar-vos estrelas vos oferece, o sol de luzes vos tece a gala, com que trajar-vos: alua para calçar-vos dedica o seu arrebol, e consagra o seu farol, porque veja o mundo todo, que brilham mais dêste modo Céu, estrelas, lua, e sol.

Por sinal, que na porta, e seus contornos Um dia amanheceram bem contados Três bacios de merda, e dous de cornos.

DÉCIMAS ANTES DE SER FABRICADA Antes de ser fabricada do mundo a máquina digna, já lá na mente divina, Senhora, estáveis formada: com que sendo vós criada então, e depois nascida (como é cousa bem sabida) não podíeis, (se esta sois) na culpa, que foi depois, nascer, Virgem, compreendida

SENHOR: SE QUEM VEM, NÃO TARDA Senhor: se quem vem, não tarda, vim eu em boa ocasião, pois da Guarda o capitão é Anjo da minha guarda: vossa presença galharda, vossa dócil natureza bem mostram, que sois na emprêsa da minha fortuna imensa capitão pela defensa Anjo pela gentileza.

Entre os nascidos só vós por privilégio na vida fôstes, Senhora, nascida isenta da culpa atroz: 15 mas se Deus (sabemos nós)

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andam sempre emascarados contra a lei da policia, antes Vossa Senhoria pedem licença prostrados.

Obrigado a tão bom trato, que em mim é lance infalível, o desempenho impossível temo, que me faça ingrato: mas como já me precato de tão previsto desar, que eu não basto a desviar, sirva de escusa, ou perdão, que não falta à gratidão, quem se peja de faltar.

A um General Capitão suplica a Irmandade preta, que não irão de careta, mas descarados irão: todo o negregado Irmão desta Irmandade bendita pede, que se lhe permita ir ao alarde enfrascados não de pólvora atacados, calcados de jeribita.

Na Côrte em era oportuna vistes a minha abastança, hoje vereis a mudança da minha infausta fortuna: de estrela tão importuna dera uma justa querela, porque hajais de corrige-la: mas no mundo é já patente, que como sábio, e prudente dominastes minha estrela.

A NOSSA SÉ DA BAHIA A nossa Sé da Bahia, com ser um mapa de festas, é um presépio de bêstas, se não for estrebaria: várias bêstas cada dia vemos; que o sino congrega, Caveira mula galega, o Deão burrinha parda, Pereira bêsta de albarda, tudo para a Sé se agrega.

Mudei-me de ponto a ponto de Portugal ao Brasil, lá deixo infortúnios mil, acho cá ditas sem conto: co’as ditas é, que de ponto a desgraça lá passada, e a graça considerada está em vós, meu capitão, que a dita está na eleição da sombra, a que está chegada.

OUÇAM OS SEBASTIANISTAS Ouçam os sebastianistas ao Profeta da Bahia a mais alta astrologia dos sábios Gimnosofistas: ouçam os Anabatistas a evangélica verdade, que eu com pura claridade digo em literal sentido que o Rei por Deus prometido é: quem? Sua Majestade.

SENHOR: OS NEGROS JUÍZES Senhor: os Negros Juízes da Senhora do Rosário fazem por uso ordinário alarde nestes Países: como são tão infelizes, que por seus negros pecados

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Quando no campo de Ourique na luz de um raio abrasado viu Cristo crucificado El-Rei Dom Afonso Henrique: para que lhe certifique afetos mais que fiéis, Senhor, disse, aos infiéis mostrai a face divina, não a quem a Igreja ensina a crer tudo, o que podeis.

E se o tempo é já chegado, Perguntem-no a Daniel, que no sétimo aranzel o traz bem delineado: diz o Profeta sagrado, que a quarta fera inumana tinha na testa tirana dez pontas, e que entre as dez uma de grã pequenhez, surgiu com potência insana.

E Deus vendo tão fiel aquêle peito real, ausnicando a Portugal, quis ser o seu Samuel: na tua Prole novel (diz) hei de estabelecer um império a meu prazer: e crê, que na atenuação da dezasseis geração então hei de olhar, e ver.

Que esta ponta tão pequena, mas tão potente, e tão forte a três das grandes deu morte cruel, afrontosa, e obscena: quer dizer, que a sarracena potência, ou poder tirano do pequeno Maometano tirara a seu desprazer as três partes do poder do grande império Romano.

A dezasseis geração por cômputo verdadeiro assevera o Reino inteiro ser o quarto Rei D. João: e da prole a atenuação (conforme a mesma verdade) vê-se em Sua Majestade, pois sendo de três varões com duas atenuações se tem pôsto na unidade.

E que pelo perjuízo, que a pequena ponte fêz, das dez maiores as três as chamou Deus a juizo, e as condenou de improviso ao fogo voraz, que as coma, e daqui o Profeta toma (pois Deus assim a condena) o fim da gente Agarena, e seita do vil Mafoma.

Logo em boa conseqüência na Pessoa realçada de Pedro está atenuada desta Prole a descendência: logo com tôda a evidência e a luz da divina luz se vê, que a Pedro conduz o olhar, e ver de Deus, que ao primeiro Rei, e aos seus prometeu na ardente cruz.

Continuando a visão, refere a história sagrada, que esta audiência acabada chagou Deus um Rei cristão. ao qual lhe entregou na mão seu império prometido; logo bem tenho inferido, que o sarraceno acabado é o tempo deputado de ser êste império erguido.

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mas é tal o patarata, e o seu louco desvario, que vendo o peru no rio, diz que é o Rio da Prata.

E pois a gente otomana vendo esta sua ruína na luz da espada divina em tanta armada Austriana: pode a Nação Lusitana confiada neste agouro preparar a palma, e louro, para o Príncipe Cristão, que há de empunhar o bastão do império de Deus vindouro.

CASOU FILIPA RAPADA Casou Filipa rapada com o Guapo do lugar, e porque quis bem casar, ficou arto mal casada: hoje é a mal maridada do sítio de São Francisco, porque o Guapo vendo o risco, que seu crédito corria, em vez de dar-lhe a maquia se contentou cum belisco.

Pode a Nação Lusitana, que foi terror do Oriente confiar, que no Ocidente o será da Maometana: pode cortar a espadana em tal número, e tal soma, que, quando o tempos a corcoma, digamos com êste exemplo, que abriu, e fechou seu templo o Bifronte Deus em Roma.

Que não consumou, se fala, porque o Noivo em tanta glória se pôs fraco de memória, e esqueceu-lhe a cavalgá-la: a Noiva fez disto gala, porque ficou co’a honrinha, e ele diz, que assim convinha: porque se um homem de bem não tira a honra a ninguém, menos a quem a não tinha.

Êstes secretos primores não são da idéia sonhados, são da escritura tirados, e dos Santos Escritores: e se não cito os Doutores, e poupo êsses aparatos, é, porque basta a insensatos por rudeza, e por cegueira, que em prosa o compôs Vieira, traduziu em versos Matos.

MANAS, DEPOIS QUE SOU FREIRA MOTE É do tamanho de um palmo com dous redondos no cabo.

MANDOU-ME O FILHO DA PUMandou-me o filho da puum peru cego, e doente, cuidando, que no presente, mandava todo o Peru: alimpei com ele o cu, e o botei na onda grata,

GLOSA Manas, depois que sou Freira apoleguei mil caralhos, e acho ter os barbicalhos

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A saber como te amara, menos mal me acontecera, pois se mais te comprendera, tanto menos te adorara: a vista nunca repara, no que dentro d’alma jaz, e pois tão louca te traz que só por Damas suspiras, não te amara, se tu viras, Esse vicio, a que te vás.

qualquer de sua maneira: o do Casado é lazeira, com que me canso, e me encalmo, o do Frade é como um salmo o maior do Breviário: mas o caralho ordinário É do tamanho de um palmo. Além desta diferença, que de palmo a palmo achei, outra cousa, que encontrei, me tem absorta, e suspensa: é, que diz correndo a imensa grandeza daquele nabo, quando o fim vi do diabo, achei, que a qualquer jumento se lhe acaba o comprimento Com dous redondos no cabo.

Se por Damas me aborreces absorta em suas belezas, a tua como a desprezas? se é maior que as que apeteces? se a ti mesma te quisesses, querendo, o que a mim me praz, seria eu contente assaz, mas como serei contente, se por mulheres se sente, Que a homem nenhum te dás?

FOSTE TÃO PRESTA EM MATAR-ME

Que rendidos homens queres? que por amores te tomem? se és mulher, não para homem, e és homem para mulheres? Qual homem, ó Nise, inferes, que possa, senão eu, ter valor para te querer? se por amor nem por arte de nenhum deixas tomar-te, E tomas toda a mulher!

MOTE Namorei-me sem saber esse vício, a que te vás, que a homem nenhum te dás, e tomas toda a mulher.

GLOSA Foste tão presta em matar-me, Nise, que não sei dizer-te, se em mim foi primeiro o ver-te, do que em ti o contentar-me sendo força o namorar-me com tal pressa houve de ser, que importando-me aprender a querer, e namorar, por mais me não dilatar Namorei-me sem saber.

ROMANCES OS VOSSOS OLHOS, VICÊNCIA Os vossos olhos, Vicência, tão belos, como cruéis, são de cor tão esquisita, que não sei, que cor lhes dê.

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NESTA TURBULENTA TERRA

Se foram verdes, folgara, que o verde esperança é, e tivera eu esperanças de um favor vos merecer. Os azuis de porçolana força é, que pesar me dêem, que porçolanas não servem, onde não hei-de comer. Se são negros vossos olhos, é já luto, que trazeis pelos homens, que haveis morto a rigores, e desdéns. Mas sendo tais olhos pares, no mundo outro par não têm, pois nem os Pares de França podem seus escravos ser. Se os vossos olhos se viram um a outro alguma vez, como se namorariam! e se quereriam bem! Que de amores se disseram um a outro, que desdéns! meus olhos se chamariam, meu sol minha luz, meu bem, Um pelo outro chorando, ambos chorariam, que quando os olhos vêem chorar, força é, que chorem também. Mas por isso a natureza cautelosamente fez entre os olhos o nariz, com que os olhos se não vêem. Que se um a outro se viram, Vicência, tivera eu no prezar dos vossos olhos a vingança, que hei mister.

Nesta turbulenta terra armazém de pena, e dor, confusa mais do temor, inferno em vida. Terra de gente oprimida, monturo de Portugal, para onde purga seu mal, e sua escória: Onde se tem por vanglória o furto, a malignidade, a mentira, a falsidade, e o interesse: [...]

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ANARDA VENDO-SE A UM ESPELHO

Manuel Botelho de Oliveira*

Anarda, que se apura Como espelho gentil da fermosura, Num espelho se via, Dando dobrada luz ao claro dia, De sorte que, com próvido conselho, Retrata-se um espelho noutro espelho. (*Música do Parnaso, p. 18)

PINTURA DE UMA DAMA CONSERVEIRA PONDERAÇÃO DO ROSTO E OLHOS DE ANARDA

No doce oficio Amarílis doce amor causando em mim, seja a pintura de doces, doce a veia corra aqui.

Quando vejo de Anarda o rosto amado Vejo ao céu e ao jardim ser parecido, Porque no assombro do primor luzido Tem o sol em seus olhos duplicado.

Capela de ovos se adverte a cabeça em seu matiz, fios de ovos os seus fios, capela a cabeça vi.

Nas faces considero equivocado De açucenas e rosas o vestido, Porque se vê nas faces reduzido Todo o império de Flora venerado.

A testa, que docemente ostenta brancuras mil, sendo manjar de Cupido, manjar branco a presumi.

Nos olhos e nas faces mais galharda, Ao céu prefere quando inflama os raios, E prefere ao jardim se as flores guarda.

Os olhos, que são de luzes primogénitos gentis, são dous morgados de amor donde alimento pedi.

Enfim, dando ao jardim e ao céu desmaios, O céu ostenta um sol, dois sóis Anarda, Um Maio o jardim logra, ela dois Maios. (*Música do Parnaso, p. 6)

Fermosamente aguilenho (ai, que nele me perdi!), bem feita lasca de alcorça parece o branco nariz. Maçapão rosado vejo em seu rosto de carmim, nas maçãs o maçapão, no rosto o rosado diz.

* In Música do Parnaso. O * antes da indicação da fonte de cada poema remete para a transcrição de Maria Lucília G. Pires, na sua antologia Poetas do Período Barroco.

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Entre os séculos da boca (purpúrea inveja de Abril) em conserva de mil gostos partidas ginjas comi.

Dijele entonces: Dulce Anarda hermosa, De tus desdenes con razón me quejo, Si eres con tu belleza rigurosa. Desengaños ahora le aconsejo, Que si es más que ese espejo luminosa, Es, Anarda, más fragil que ese espejo.

Os brancos dentes, que exalam melhor cheiro que âmbar gris, parecem brancas pastilhas em bolsinhas carmesins.

(*Música do Parnaso, p. 156)

Com torneados candores (deixemos velhos marfins) toda feita diagargante vejo a garganta gentil.

DESENGANO DA FERMOSURA DE ANARDA Anarda, tus engaños No dejen marchitar tan verdes años. Adviertan tus locuras Que el tiempo es fero estio de hermosuras, Y a ti misma en ti misma irás buscarte, Y a ti misma en ti misma no has de hallarte.

Os sempre cândidos peitos, que escondem leite nutriz, se não são bolas de neve, são bolos de leite, sim.

(*Música do Parsano, p. 164)

As mãos em palmas e dedos, se em bolos falo, adverti entre dous bolos de açúcar dez pedaços de alfenim. Perdoai, Fábio, dizia, que no retrato que fiz fui poeta de água doce quando no Pindo bebi. (*Música do Pornaso, p. 141-42) ANARDA VENDO-SE A UM ESPELHO Anarda en un espejo se miraba Que luzido dos veces se aplaudia: Por el cristal hermoso que fingia, Por el cristal más bello que copiaba. Y como tan al vivo retrataba De su rara belleza la harmonia, Con su rostro el espejo se encendia, Con su rostro el espejo se ignoraba.

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À MORTE DA SENHORA INFANTA D. ISABEL

Sóror Maria do Céu*

A flor de Portugal a mais fermosa, A pérola do Tejo em doce frágua, Foi flor, e desfolhou-se como rosa, Foi pérola, e desfez-se como água. Isabel, que ao sol venceu briosa, Como luz se apagou (que grande mágoa!), Mostrando-nos assim quão pouco dura A vida, a majestade, a fermosura.

Cobridme de flores, Que muero de amores.

(*Enganos do Bosque, 2.ª parte, p. 353)

Por que de mi aliento el ayre No lleve el olor sublime, Cobridme.

MORTAL DOENÇA Na febre do amor próprio estou ardendo, No frio da tibieza tiritando, No fastio ao bem desfalecendo, Na sezão do meu mal delirando, Na fraqueza do ser vou falecendo, Na inchação da soberba arrebentando, Já morro, já feneço, já termino. Vão-me chamar o Médico Divino.

Sea, porque todo es uno, Alientos de amor y olores De flores De azucenas y jasmines Aqui la mortaja espero, Que muero. Si me perguntais de que Respondo, en dulces rigores: De amores.

Na dureza do peito atormentada, Na sede dos alívios consumida, No sono da preguiça amodorrada, No desmaio à razão amortecida, Nos temores da morte trespassada, No soluço do pranto esmorecida, Já morro, já feneço, já termino. Vão-me chamar o Médico Divino.

(*Enganos no Bosque, 2.ª parte, p. 159)

Na dor de ver-me assim vou desfazendo, Nos sintomas do mal descorçoando, Na sezão de meu dano estou tremendo, No risco da doença imaginando, No fervor de querer-me enardecendo, Na tristeza de ver-me sufocando, Já morro, já feneço, já termino. Vão-me chamar o Médico Divino.

* Os poemas retirados de Enganos do Bosque e de Obras Várias e Admiráveis (os três primeiros) foram escolhidos e transcritos a partir da Antologia de MLGP, o que é assinalado com *. Os restantes, são por mim escolhidos de entre os incluídos em A Preciosa: segundo a edição de Ana Hatherley. Lisboa: INCM, 1990.

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El amor a tus gracias Será fiel, gentil, Tu viverás por el, Y el, ó Preciosa, morirá por ti.

Vou ao passo do mal emudecendo, A sombra da vontade vou cegando, Aos gritos do delito amouquecendo, No tempo sobre tempo caducando, Nos erros do caminho entorpecendo, Na maligna da culpa agonizando. Já morro, já feneço, já termino. Vão-me chamar o Médico Divino.

Si del cielo las luzes Quizieres repartir, Al cristal de las fuentes Baixaran los luzeros del Zafir.

(*Obras Várias e Admiráveis, p. 124-25)

La Aurora, el Sol, el Alba Mirarás a luzir, Ninguno ha de llorar, Que hasta el Aurora aqui se ha de reir.

Poemas incluídos em A Preciosa Ó tu, que en esta esfera Llegaste a discurrir, Pues de feliz la hallaste, No la dexes, Preciosa, de infeliz.

Cantando a tu beldad En amorosa lid, Ha de morir el cisne, Y el ruiseñor, Preciosa, ha de vivir.

Aqui verás alegre, Si te quedas aqui, Los dias de zafiras, Las luzes de la noche de rubi.

A la luz de tus ojos, Que tan claros los vi, Ha de aguila beber, Y girasol amante ha de seguir.

Tendrás para el olfato, En Zefiro sutil, A soplos de claveles, El ayre con alientos de jasmin.

A tus plantas las flores Verás oy revivir, Que hande bolver de tuyas, Quando de flores tienen de morir.

Para el gusto hallarás, Y sin lo prevenir, Los nectares de perlas, Que son proprios a labios de carmin.

Al brazero del Sol, Holocausto feliz, Se hande quemar las rosas, Que te hará sacrificios el Abril.

Lograrás al oydo, Que tanto has de advertir, Sirenas, ciento a ciento, A instrumentos de Ninfas, mil a mil.

Las deidades del agua, Que saben elegir, Te hande mentir en Tetis, Y por ser Tetis poco, hande mintir.

Tus manos palparán Las riquezas de Ofir, Y entre piedras preciosas Serás, si piedra nó, Preciosa si.

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El sentir no podrás Conocer a sentir, Que es en esta region Extraño el idioma del gemir.

Mas tão fino passa Pelos desfavores, Que cuidou que os espinhos Eram as flores! Corre a ser mal pago Porque mais assombre, Não se corre amor De ver a que corre: E de tantas rosas Os espinhos cobre, Que cuidou que os espinhos Eram as flores! Os rubis espalha, E em tão fina posse, Fica o vale rico Do que as veias pobres: E tão pouco sente Por amor os golpes, Que cuidou que os espinhos Eram as flores! O desdém silvestre Aprazível sofre, Que a fineza quer Quanto o rigor pode: E picado amor, Sabereis, pastores, Que cuidou que os espinhos Eram as flores! Ouve, Ninfa bela, Da fineza as vozes, Mas, se não escutas, Não digas que ouves: Escuta a saber Que tão fino se houve [SIC] Que cuidou que os espinhos Eram as flores! Nos espinhos, descalço, Vai por amores, E cuidou que os espinhos Eram as flores!

Y al fin, al fin, Preciosa, Si nó miras al fin, Siendo estrellas las flores, Un cielo se hande hazer deste pensil. Pero si, desdichada, Te arrojas a salir, Si de ti no te dueles, Quien, infeliz, se dolerá de ti? [...] (A Preciosa, Cap. 9, p. 101-03)

Nos espinhos, descalço, Vai por amores, E cuidou que os espinhos Eram as flores! São aquelas rosas, Que vedes do monte, Sangue de um Cupido E não de um Adónis. No seu bem querer O amor picou-se, E cuidou que os espinhos Eram as flores! Feridas de amor Rubricam o bosque, Que a tão finas tintas Só se dão tais flores, E tanto a fineza Adoça os rigores, Que cuidou que os espinhos Eram as flores! A buscar desdéns Os espinhos rompe, E magoa a vida Por achar a morte,

(A Preciosa, Cap. 12, p. 158-61)

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Montanhesa que foste à fonte, Como suspeito, Que troixeste água nos olhos Fogo no peito! Quem te trocou no caminho, Serrana dos olhos negros, Pois te conheço só hoje Pelo que te desconheço? Como suspeito, Que encontraste teus cuidados A roubar-te teus sossegos! Se das pedras te fiaste, Ouvi-lo delas espero, Porque em segredos de amor Nem as pedras têm segredo! Como suspeito, Que o que fiaste das pedras Hão-de romper os penedos! Se emudeces suspirando, Sabidos são teus excessos Que pedir segredo ao ar É querer prender o vento. Como suspeito, Que hás-de dizer a suspiros O que guardaste a silêncios! Se dás teu mal a teu pranto, Olha que em tantos desvelos O fiar-te do cristal É fazer claro o mistério! Como suspeito, Que pelo cristal do pranto Te hão-de ver os pensamentos! Se o coração tens ferido, Declara teus sentimentos, Pois não há peito cerrado Onde há coração aberto: Como suspeito, Que doente o coração, Grite o mal pelo remédio! Montanhesa que foste à fonte, Como suspeito, Que troixeste água nos olhos, Fogo no peito!

Silencio, silencio! Silencio aguas, silencio Ninfas! Silencio, remos, Ni las respiraciones Hagan estruendo, Un aliento se ahoge con otro aliento! Silencio, que la belleza Se ha elevado en el afecto, Y si buelbe un poco más, Hallará la isencion menos! Silencio, silencio! Silencio aves, silencio flores, silencio vientos! Las imaginaciones Se aduerman luego, Que se temen ruidosos Los pensamientos! Silencio, no se estremesca, Callados, Zefiros, tiento, Que ha de bolver a ser piedra Si dexar de parecerlo! Silencio, silencio! Silencio ansias, silencio embidias, silencio incendios! Sentimiento no hagan Los sentimientos, Los suspiros se veden Hasta a los zelos! Silencio, que entre los dos, Passa un coloquio suspenso, Donde velalo dormido Quando pasma lo despierto: Silencio, silencio! Silencio mares, silencio tierra, silencio cielos!

(A Preciosa, Cap. 12, p. 163-65)

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No se muevan los Dioses De sus asientos, Que Cupido la jura Por uno dellos!

O peito romperei endurecido Ao compasso da dor, por desumano, Ouvi, penhas, ouvi-me nestas brenhas, Mas se penhas me ouvis, não ficais penhas.

Silencio, no se divierta Del felicissimo empleo, Segunda embidia de Marte, Primera attencion de Venus!

Coração, que chorando aborrecidas Tantas culpas estás, onte’adoradas Como o termo fatal de cometidas Acomodas na esfera de choradas? Sabes qual foi o tempo de queridas, Mas não quanto será o de odiadas: Eu temo, coração, tanto hás errado, Nam caiba o delinquido no chorado.

Silencio, silencio! Silencio vozes, silencio ayes, silencio ecos! Auras dulces, passito! Mansiones, quedo! Hasta el silencio venga Muy en silencio!

Mares chorem meus olhos ternamente, Para pagar meus erros a milhares, Desate o coração sua corrente, Com que possa dar passo a seus pesares: Mas ai, como receio, justamente, Que pouco chorarei chorando mares! Espera, coração, que falta o pranto, Pois nem chorando mares choras tanto.

(A Preciosa, Cap. 14, p. 194-97)

Canto de Preciosa Até os silêncios, doce soledade, Rompe canto sonoro neste dia, Não tenhas de meu pranto saudade, Se te convido a grave melodia: O mesmo pranto os metros persuade, O próprio canto as lágrimas pedia, Porque em dor tão cruel, mal tão esquivo, Chorando cante, pois morrendo vivo.

De ti me valho, amor, em tanto afogo, Que supra teu incêndio nesta frágua; Se lágrimas de amor podem ser fogo, Também fogo de amor pode ser água: Não te negues, amor, ao desafogo, Olha que já te roga minha mágoa: Em fogo e água exprima meu tormento, Que é pouca explicação um elemento.

Aqui canto, em amargo sentimento, Aqui choro, também em doce pranto, A música transformo no lamento, O lamento na voz, por mais espanto: Já vivendo, me diz o doce acento, A ficar um dos dois – quem o duvida? Quero mais minha dor que minha vida.

Mas se ofendido estás de meus desvios, Como te chamo, amor, a meus desmaios? Como a pedir teu fogo tenho brios, Quando inconstante provoquei teus raios? Queixoso estás em tantos desvarios, Demonstra teu rigor, não por ensaios: Mata-me, amor, e de vingar-te trata, Mas se queres matar, de amor me mata!

Esta, pois, dor cruel de meu sentido, Me convida a cantar o desengano, Instrumento será, peito ferido, Pois a música é chorado dano:

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Que poderá dizer, sorte obstinada? Nada pode dizer, porque foi nada.

Quem de ingrata viveu, morra de amante, Amor, a teus incêndios oferecida. Em parocismos liberdade cante Quem se viu nos alentos oprimida: E à mercê de luzeiro tão constante, Veja na morte, se cegou na vida, Mas há pasmo cruel, confusão forte, Se pela vida me pergunta a morte.

Que dirão teus afectos dedicados, Nos objectos do Vale destruídos, Para pagar finezas destinados, Para perder finezas repartidos? Na vil idolatria desvelados, Na fina adoração adormecidos, De quem fugia, amor, em sua esfera? Mas ah Rei, ah Senhor, que de vós era!

Que pode responder tua dureza, Me dirás, coração, em tanto dano, Quando vivendo humano na tibeza Passaste no rigor a desumano? Dirás, por desculpar tua vileza, Dirás, por obrigar teu desengano, Porém, nada dirás, rigor temido, Que ali já não há voz, senão gemido

Nos indignos incêndios que mostrava, De vós fugia, ardor de cego lume, Ciúmes por amor louco vos dava, Com amor me pagáveis o ciúme. Vosso fino querer não se aplacava, Tanto de seu afecto se presume, Muito quereis, oh Rei, se em tal espanto Quando quereis com zelos quereis tanto!

Que desculpa dará tua inconstância, Quando à doce rezão desatendias? O descargo será tua ignorância, Mas, coração, tu sabes que sabias! Dirás te faltou luz em tanta ânsia? Não, que se cego olhavas, lince vias: Coração, coração, não há desculpa, Que para culpa ser, basta ser culpa!

Que dirá, pois, Senhor, no transe amargo, Meu coração ingrato de ofender-vos? Que poderá dizer, para descargo, Quando foi o delito não querer-vos? Que vos dirá, repito, em tanto cargo, O coração cruel a responder-vos? E que, Senhor, em tanta semrezão, Que direis vós, Senhor, ao coração?

Que dirás do tesoiro enobrecido, Que junto se fiou a teu cuidado, Para teus interesses prevenido E para teus antojos derramado? Nada te pareceu, quando perdido, Muito te parecera, se ganhado: Ah, pobre coração, que em tanta calma Hás deixado por portas a tua alma!

Neste termo cruel, neste tormento, Meu receio, Senhor, fatal admiro, Pois o que em vosso amor começa alento, Em minha ingratidão morre suspiro. Já em minha dureza desalento, Já em vossa terneza aqui respiro, E nesta divisão equivocada, Se morro de cruel, vivo de amada.

Que dirá tua louca vaidade, Se por sua soberba se procura? Fundamentos de nada, na verdad Desvarios de tudo, na loucura: Asas em que voou a liberdade Quando a tanta rezão, prisão escura,

Porem, às diferenças, meu cuidado, Sua esperança fie nesse dia, Que adonde vosso afecto tem chegado, Nem minha ingratidão chegar podia:

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Meu extremo em fugir assinalado, Vosso extremo em querer maior se via, Assim nos desalentos em que temo, Fujo de meu extremo a vosso extremo.

Tomás Pinto Brandão*

A vós, se contra vós hei delinquido, Ofendido e amante, vou constante, Porque tendo vós tanto de ofendido, Ainda aqui vos fica mais de amante: Ao portento de amor me dêm ouvido, Quando de vosso amor suave cante, Pois amor tal extremo tem obrado, Que se deu ofendido por sagrado.

AVISOS PARA SOLTEIROS QUE QUISEREM VIVER Todo o solteiro que este mundo logra E por casado assezoado berra Considere que peste, fome e guerra O diabo lhe dá em dar-lhe sogra.

Na fineza de amor engrandecida, Aqui minha ignorância saber trata, Que quanto quereis a agradecida, Quando tanto, Senhor, quereis a ingrata: Porém, já me respondo conhecida, Pois minha inteligência se dilata, Que vosso amor, oh Rei, a tanto acode: Nem a menos amor, ser menos pode.

A doce liberdade se malogra, De todo o paraíso se desterra, E de viver enfim os termos erra, Porque em vida se enterra se se ensogra. Terá sogra ab initio et ante bruxa, Terá sogra ad perpetuam rei tarascia, Sogra per omnia secula proluxa;

Mas cale aqui meu canto remontado, Na clausura do peito reprimido, Porque de vosso amor tem já falado E vosso amor é só para sentido: Não cabe no discurso limitado O que ao mesmo discurso há confundido, Pois tanto é vosso amor, mas vos espera, Que só o mesmo amor dizer pudera.

Que é peste no contágio que lhe encasca, É fome na miséria que lhe embuxa, É guerra no dragão que se lhe enfrasca. (*Pinto Renascido, p. 9-10)

MEMORIAL EM FÉ DE OFICIOS AO SECRETÁRIO BARTOLOMEU DE SOUSA MEXIA

(A Preciosa, Cap. 20, p. 277-83)

Onze anos e meio, em mar e terra, Sem interpolação, baixa nem nota, Tenho servido ao Rei com fé devota, Como consta da fé que o mais encerra; * In Pinto Renascido Empenado e Desempenado. Repito a selecção e transcrição de Maria Lucília G. Pires, fonte essa assinalada pelo * antes da sua indicação.

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NA MORTE DE UMA FILHA DO AUTOR CHAMADA ISABEL, MUITO BONITA

Mil fomes que venci por vale e serra, Duas viagens conduzindo frota, Uma batalha, não de Aljubarrota, Porque essa foi com pás e esta com guerra;

MOTE Que pretende a fermosura Cuidando que se eterniza, Se viu a minha Belisa Ir parar na sepultura?

Este o serviço é que tenho feito, Por que o Hábito peço, e ando nisto Há três anos e meio sem efeito.

GLOSA Já a meu sentir e a meu ver a que ontem, a meu cegar, vivia para matar morre hoje para viver. Esta que a seu parecer era uma viva pintura já de morte cor figura na minha mágoa a contemplo. Não sei com tão claro exemplo que pretende a fermosura.

Sempre espero o Mexia para isto; Mas não cuidem que sou na fé suspeito. Aque d’El-rei, despache-me, por Cristo! (*Pinto Renascido, p. 11-12)

IMPACIENTE DE LHE NÃO DAREM O HÁBITO DE CRISTO E ARREPENDIDO DOS REQUERIMENTOS Pois a vida presente está perdida, Formemos a futura da passada: A pertenção acabe, bem fundada, Sobre aquela medalha mal fundida.

Na vivente primavera, quando mais disposta a vi, por maravilha entendi que perpétua ser pudera; foi engano e foi quimera da minha afeição precisa. E quanto esta morte avisa no desengano que dá a toda a que em flor está cuidando que se eterniza!

Eu que estava tão bem na minha vida, Passando-a muito alegre com meu nada, Quem me meteu a andar com papelada Que não é lida nunca e sempre é lida? Mas que fazes, Tomás? tem paciência E consola-te aqui com tanto sócio Mais antigos que tu na impertinência.

Hoje arrancada por si no exemplo que em folha dá a todas dizendo está: aprended flores de mi. Eu com lágrimas o li e entendo no bem que avisa que a que mais se fertiliza dela só pode aprender, porque não tem mais que ver se viu a minha Belisa.

Aguarda um pouco mais, suspende o ócio, Porque hábito melhor, por consequência, Terás na conclusão deste negócio. (*Pinto Renascido, p. 13-14)

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se veja relógio aqui, porém mostrando de si a hora da morte só.

Alerta, pois, divindades desmentidas em mulheres, que caducam por prazeres na melhor flor das idades. As pompas e as majestades que o mundo vos assegura são mentiras e é loucura não crer na mais verdadeira que é, acabando a carreira, ir parar na sepultura.

(*Pinto Renascido, p. 388)

EPITÁFIO Caminhante que vás tão de corrida, Pois em nada reparas da jornada, Repara por tua vida no meu nada, ~ morte a minha vida. Que foi toda ua

(*Pinto Renascido, p. 72-73)

Também do mundo andei muita partida, Posto que em diligência mal parada, E por não ser verdade incorporada Ua mentira sou desvanecida.

PETIÇÃO QUE FEZ O AUTOR DA CADEIA DA BAÍA AO GOVERNADOR QUE SE IA DESCUIDANDO NA SOLTURA

Eu tive ocupação sem exercício, Eu fui mui conhecido sem ter nome, Eu, ingrato, morri sem benefício.

DÉCIMA Diz Tomás Pinto Brandão, estrangeiro na Baía, a quem Vossa Senhoria faz natural da prisão, porquanto está sem reção, como todo o mundo vê (se acaso crime não é querer a fome matar), pede lhe dem de jantar e receberá mercê.

Exemplo toma em mim, ó pobre homem, Que se tratares mal, vives de vício, E se viveres bem, morres de fome. (*B. N. L., Cod 6204, fol. 496)

(*Pinto Renascido, p. 248)

A UM RELÓGIO DE AREIA QUE ESTA ERA DAS CINZAS DE UM BASALISCO, E FOI ASSUNTO ACADÉMICO EPIGRAMA Este a cinzas reduzido, Fénix embasaliscado, seria a tempo queimado, que a horas foi renascido. E é justo que feito em pó

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Francisco de Vasconcelos Coutinho*

Existe um bosque, de Morfeo esfera, A quem só Clicie vive agradecida, Pois se vive da sombra, que a governa, Só neste bosque pode ser eterna. IV. Algoz da luz cada pinheiro bronco Graniza horrores de robusta grenha, Armando um bandoleiro em cada tronco, Arrastando um capuz em cada penha: Ferido apenas do gemido ronco De aves nocturnas cortesãs da brenha; Cujos penhascos, onde o horror assombra, São mortalhas da luz, berços da sombra.

FÁBULA DE POLIFEMO, E GALATEA I. Aonde Tétis com grilhões luzentes Do verde Lilibeo as plantas ata, Fazendo das espumas transparentes Algemas de cristal, grilhões de prata, Deitando-lhe no pé brancas correntes Um papagaio o monte se retrata; Pois dando-lhe esmeraldas, e mais ouro, O faz a planta verde, a espiga louro.

V. Este das nuvens pois raio tirano Polifemo creou com tal cuidado, Que sendo o pai dos astros palaciano, Saíu o filho mais avantajado: Mas se de o filho ao proceder faz dano O não sair ao pai, de que é gerado, Não é grande prodígio que se conte, Que seja o monte filho de outro monte.

II. Aqui o rouxinol entoa amores Pela solfa do Zephiro saudoso, Fazendo-lhe o compasso às tenras flores As arpas de um arroio harmonioso: Ali respira aromas superiores A flor em frágoas de ambar generoso, Dando as flores, e as aves neste agrado Pastilhas ao jardim, solfas ao prado.

VI. Tinha o Gigante ofício de Ferreiro, Indigno na verdade a tal grandeza; Mas mal podia nele haver dinheiro, Se é sempre o grande objeto da pobreza: Malhava em ferro frio o dia inteiro, Vendo que Galatea assim o despreza; Dando-lhe todos três para esse efeito Ferro ela, fogo amor, carvão seu peito.

III. Neste berço de Flora, a quem cedera De Chipre essa Tebaida esclarecida, Pois para ser eterna a Primavera Pode passar Abril cartas de vida:

VIII. Era o Ciclope pouco afortunado, Pois bem qu’entre os fidalgos era misto, Não lhe bastou ser grande, e estimado Para não ter desares de mal visto: Um olho tinha só por dar-lhe olhado

* In Hecatombe Métrico. Feudo do Parnaso. Fénix Renascida, II e III. Os poemas assinalados com * foram usados a partir da selecção e transcrição de MLGP. Os outros, escolhidos por mim da leitura directa de Fénix Renascida.

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De inveja o vulgo, (qu’é demónio nisto) Que sempre a um grande homem com refolhos Procuram todos o tirar-lhe os olhos.

XVII. Deixou-lhe mais por prendas relevantes, Diamantes terços, e safiras belas, Mas acho que só testa dos diamantes, E das safiras não, pois são capelas: Ela vendo os diamantes tão constantes, A peito os toma, e já com tais cautelas, Que dando-lhes de mão por seu barato, Meteu os pobrezinhos n’um sapato.

XIII. Este monstro feroz, monte animado, Verdugo acerbo de leões rompentes; Pois com peles de brutos adornado Guarnições do vestido eram serpentes: Amor o fez de duro açucarado, Que é raio de impossíveis mais potentes; Pois faz da dura penha branca cera, Prostrando o monte, humilhando a fera.

XVIII. Se as douradas carícias de Amaltea, Pisa a Nympha gentil, Flora bizarra, Cada pássaro imita uma Serea, Cada fonte tempera uma guitarra: O Zéfiro, que a Clicie galantea, Tocando a lira de uma verde parra, Faz ao som de sonoros Ruisenhores Cantar as fontes, e bailar as flores.

XIV. Era gentil emprego a seu cuidado Galatea, uma Nimpha tão fermosa, Que sendo filha lá do mar salgado, Mais do que o pai mil graças tinha a moça. Do mar era um pedaço congelado De quem Trinacria foi pátria ditosa, Deve ser como Holanda, adonde o gelo Faz converter o mar em caramelo.

LXXII. Ó bem caduco mais que o vento leve! Pluma veloz, que qualquer ar espalha! Vidro, que se desfaz a um sopro breve! Flor, que na mesma gala se amortalha! Sombra, que quando próxima se atreve, Aqui foge, ali mente, acolá falha! De teus falsos enganos quem se assombra, Se és vento, pluma, vidro, flor, e sombra!

XV. Venus a irmã lhe excede na beleza, E suposto que está tão endeosada, Dizem, que por prever tal gentileza, Nas conchas se meteu de envergonhada: O cabelo da Nimpha ouro despreza, Sendo de louro Sol trança encrespada, Mas se a menina é mar, não é vergonha Ver que em raios o Sol no mar se ponha.

LXXIII. Atende agora às vozes do escarmento Tu, que de amor aprendes a doutrina, Querendo levantar torres no vento, Que hão-de acabar Cartagos na ruína: Olha, que o bem é sonho de um momento, Delicado jasmim, frágil bonina, Sendo mentida luz, glória sonhada Pois topa a um tempo a noite, e a madrugada.

XVI. Deixou-lhe o pai por dote a Galatea, Finas perlas, corais, prata, e mais ouro, Ela as perlas estima a boca chea, Mas aos corais fez beiço por desdouro: A prata à sua vista ficou fea, Com que de ouro só fez o seu tesouro, Que por bens de raiz encabeçado Deixou com uns aneis posto em morgado.

(Fénix, II, p. 1-25)

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A uns olhos negros.

SONETOS

Olhos negros, que da alma sois senhores Duvido com razão desse atributo, Que é muito, que quem mata, traga o luto, E é muito ver na noite resplandores: Se de negros, meus olhos, tendes cores, Como as almas vos dão hoje tributo, Quem viu que os negros com rigor astuto Os brancos prendam com grilhões traidores. Mas ah, que foi discreta providência O fazê-los da cor da minha sorte, Por não sentir rigor tão desabrido. Para que veja assim toda a prudência Que foi prodígio grande, e pasmo forte, Em duas noites ver o Sol partido.

A F. tocando cithara. Esta lira sonora, que os sentidos Hoje faz suspender com doce acento, Trágico emblema é do meu tormento, Pois de éa pena os dous somos feridos. Ambos sentimos golpes desabridos Causados todos de um rigor violento: Eu prezo nos grilhões d’um pensamento, Ela espalhando ao ar ternos gemidos. Já que fomos no mal tão semelhantes, Sejam, Filis, também menos atrozes Os golpes de éa dor, que me condena: Mas estamos no alívio mui distantes, Que ela minora a pena com as vozes, Porém eu no silencio augmento a pena.

(Fénix, III, p. 223)

Comparando o seu amor ao Fénix.

(Fénix, III, p. 221)

Tu Fénix, tu do amor doce traslado, Companheiro em meus males peregrino, Pois se em fogo te acaba o teu destino, Em chamas me atormenta o meu cuidado Tu te podes queixar de um triste fado, Eu me queixarei de um deos mínimo, Pois tu por desgraçado, e eu por fino Acabas encendido, eu abrasado. Mas oh, que as tuas ânsias são pequenas À vista do martírio, em que discorro, Porque renasces em morrendo apenas; E servindo-te as penas de socorro. Tu renasces do fogo em tendo penas, Eu porque muito peno, em chamas morro.

Tocando F. cítara, se lhe pôs no braço dela um rouxinol. Seguindo o golpe desta pena dura Fili esse rouxinol de vós depende, E preso entre essas cordas se suspende Ouvindo o canto, vendo a formosura. Bem nos quebros do Sol hoje se apura Quando as falas de vós também aprende; Só por mim não cantais, antes se entende, Que de mim não quereis ver a figura. Mas siga dessa pena as harmonias Amante o rouxinol, já que ditoso Aos braços dessa Lira leva os passos. Sinta embora da pena as tiranias, Que é de quem ama prémio venturoso Seguir a pena por se ver nos braços.

(Fénix, III, p. 229)

À MORTE DE F. Esse jasmim que arminhos desacata, Essa aurora que nácares aviva, Essa fonte que aljôfares deriva, Essa rosa que púrpuras desata,

(Fénix, III, p. 222)

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Troca em cinza voraz lustrosa prata, Brota em pranto cruel púrpura viva, Profana em turvo pez prata nativa, Muda e m luto infeliz tersa escarlata.

Eu digo minha dor ao sofrimento, Tu cantas teu pesar a quem namoras, Tu esperas o bem todas as horas, Eu temo qualquer mal todo o momento.

Jasmim na alvura foi, na luz aurora, Fonte na graça, rosa no atributo, Essa heróica deidade que em luz repousa.

Ambos agora estamos padecendo Por decreto cruel do deus menino, Mas eu padeço mais só porque entendo;

Porém fora melhor que assim não fora, Pois a ser cinza, pranto, barro e luto, Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa.

Que é tão duro e cruel o meu destino, Que tu choras o mal que estás sofrendo, Eu choro o mal que sofro e que imagino.

(*Fénix, III, p. 232)

(*Fénix, III, p. 250)

À FRAGILIDADE DA VIDA HUMANA A. F., AGRADECENDO-LHE UMAS ROSAS

Esse baixel nas praias derrotado Foi nas ondas Narciso presumido; Esse farol nos céus escurecido Foi do monte libré, gala do prado.

Estes mimos da luz, do campo alarde, Mariposas do sol, línguas da aurora, Sendo alinhos de Abril, troféus de Flora, São galas na manhã, lutos na tarde.

Esse nácar em cinzas desatado Foi vistoso pavão de Abril florido; Esse estio em vesúvios encendido Foi Zéfiro suave, em doce agrado.

Sem que do fado insano o sol as guarde, As flores murcha quando as enamora, Pois cada rosa que com luzes doura É borboleta que nas chamas arde.

Se a nau, o sol, a rosa, a primavera Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel Sentem nos auges de um alento vago.

Fílis, mais do que amante, andais ingrata, Querendo dos rigores fazer moda, Embuçando o favor na tirania,

Olha, cego mortal, e considera Que és rosa, primavera, sol, baixel, Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.

Pois no caduco ser desta escarlata Dais a um amor que dura a vida toda Um galardão que apenas dura um dia.

(*Fénix, III, p. 246)

(*Fénix, III, p. 251)

A UM ROUXINOL CANTANDO Ramilhete animado, flor do vento, Que alegremente teus ciúmes choras, Tu, cantando teu mal, teu mal melhoras, Eu, chorando meu mal, meu mal aumento.

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Nesse mês em que Astreia o tempo iguala E o velocino de ouro o sol habita, Quando a terra as mortalhas ressuscita No prado que ouro empluma, âmbar exala,

[INDIGNAÇÃO DO UNIVERSO PERANTE O PECADO DE ADÃO] Fecham-se os céus, os anjos se ensurdecem, Armam-se as nuvens, sopram-se as fornalhas Dos abismos, e em trémulas batalhas Gritam esferas, montes estremecem;

Deixa Gabriel a etérea empírea sala, Corta o ar e em diáfana infinita Distância borda a esfera, a terra incita, Os homens resplandece, os céus abala;

Os astros, que ele sombras se guarnecem, Lutos dos orbes são, do horror mortalhas; Turvam-se os mares, armam-se as muralhas Dos céus, sobem clamores, raios descem.

Medeia entre Fenícia e o sagrado Jordão, bordando os campos de Judeia Que tem ao damasceno restaurado;

Grita o mar, brama o fogo, silva a fera, Chora Adão, geme o pranto, brada o rogo, Ensurdece-se Deus, o empíreo, a esfera.

Deixa o palmoso sólio de Idumeia, Caminha a Nazaré onde prostrado Adora a Lua nova em graça cheia.

Ó Adão infeliz, que desafogo Terás, se contra ti vês que se altera O abismo, a terra, o mar, o céu, o fogo.

(*Hecatombe, p. 12-13)

(*Hecatombe, p. 5)

[DOR DE MARIA MADALENA NA PAIXÃO DE CRISTO]

[A ANUNCIAÇÃO]

Dous mares, um de aljôfar, outro de ouro, Soltando a Madalena espalha e chora, Um de perlas raudal, ciúme da Aurora, Outro de Ofir prisão, do sol desdouro.

Era o tempo em que a rosa, essa sangria Das flores, febres de âmbar respirava E pastilhas das selvas perfumava No cambrai dos jasmins lenços ao dia;

Quebrando a imunidade o raio ao louro, Com louros raios melhor sol namora, E quando perlas verte, ondas arvora, Faz o aljôfar erário, o Ofir tesouro.

Quando as aves são solfa na harmonia, Quando ao som das violas voltas dava A rama e nos arrois lhe tocava Harpas a selva ao cravo que tangia;

Os olhos e os cabelos aos pesares Tremulando troféus, vertendo ensaios, São da dor sentinelas, da ânsia rondas.

Quando borrifa a fonte as inocentes Flores que, como réus da formosura, Pagam culpas de lindas em correntes,

E dobrando as tormentas em dous mares. Em pélagos de neve afoga os raios, Em naufrágios de fogo bebe as ondas.

E em traição de cristal, mostrando pura Candidez, com afagos transparentes Beija na face as flores e as murmura.

(*Hecatombe, p. 46)

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[COMOÇÃO DO UNIVERSO NA MORTE DE CRISTO]

Jacinto Freire de Andrade*

Expira Cristo e o mundo esmorecido. Cadáver o universo amortalhado, Nos horrores da sombra agonizado, Foi nas cinzas do Sol fénix nascido.

A UM MOSQUITO

Espedaçam-se as pedras, dividido Em pedaços do Templo o véu sagrado: É o fogo um clamor, é o mar um brado, É a terra um capuz, o ar um gemido. Treme a terra e com rápidos, velozes Raios graniza o céu cóleras loucas De pena que da mágoa inda são minguas;

Invencível mosquito, Émulo do mais livre pensamento, Sem corpo, e todo espírito, Que deste fim a um tão alto intento, Quando precipitado O ceo de Délia acometeste ousado. As portas de diamante Cerradas ao clamor de tanta gente Abriste triunfante, Zombando da esperança impertinente, Que entre temor, e espanto Nunca acabou comigo esperar tanto. Cupido, que inquieta Délia sentiu ferida, Espera, que o sinta, E deseja por seta A lança, que tiraste em sangue tinta, Que o peito endurecido É de prova das festas de Cupido. Porém de nada disto Te mostres tão soberbo, e presumido, Que podes sem ser visto Passar a mais ferir, sem ser sentido, E para castigar-te, Não ocupas lugar n’alguma parte. Foras de amor ferido, Se tivera o teu erro algum disconto, Ou se achara Cupido Aonde à ponta da festa pôr o ponto.

Os ares em suspiros bradam vozes, Os montes em rupturas abrem bocas, O fogo em labaredas rompe em línguas. (*Hecatombe, p. 49)

* In Fénix, III.

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Pois para ver mosquitos É necessário ter graos infinitos. E vós, que antes do dia Das culpas castigais levando a palma; Por nova tirania, Que fizestes do corpo inferno d’alma: Se por esta vitória Tendes glória, ou vanglória. Entre tantos rigores não dormais, Pois se as almas sem culpas castigais, Para desinquietar Vosso rigor severo, e infinito Basta só o sonido de um mosquito.

Consolação bastante; Pois não picaste a Délia como amante. Buscaste a noite escura Por cometer a Délia mais oculto; Quem medo te afigura, Se não faz o teu corpo nenhum vulto, Pobre de ti tão pobre, Que a mesma luz do Sol mal te descobre. Hidrópico mosquito, Por beber sangue assim não te condeno, Nem cometes delito, Que com os olhos d’alma tão pequeno, Quando apenas te vejo, Que desejas lugar para o desejo. Tanto o saber Divino Trabalhou no teu ser, tão novo, e estranho Que Ambrósio Calepino Não tem nome, qu’imprima o teu tamanho, Porque o diminutivo É mais em ti, que o teu superlativo. Por tradição antiga Deves graças a Deos humilde, e mudo; Pois não falta quem diga, Que de nada te fez, o que fez tudo: Sendo que bem podera Fazer de ti o nada, se quisera. Causas ao Mundo todo Admiração tão grande, que se espantam De ver por novo modo Em corpo tão pequeno traça tanta; Porque o entendimento Fábrica vê em ti sem fundamento. Oh da suprema idea, Sutil debuxo, amostra primorosa! Porque em ti mais campea, Que na máquina altiva, e majestosa: Que em fazer-te tão pobre Sua grandeza muito mais descobre. Somente, se se adverte, Dos vidraceiros és bem grande afronta; Pois não tem para ver-te Óculos nenhuns, que cheguem à conta;

(Fénix, III, p. 318-21)

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Sóror Madalena da Glória*

E em dor tão inclemente, Ausências de Sião cada qual sente. Jerusalém amada, Q’ impresa estas nos bronzes da memória, E essa glória passada A dor presente lhe desmente a glória, Que em tantas aflições, É a saudade vós, eco os grilhões. Aqui da Aurora bela A luz sempre entre sombras aparece, Que em tão contrária estrela, Só para o pranto o dia é que amanhece; E as lágrimas correntes, Desses Rios engrossam as enchentes. De ouvir o pranto triste, O mesmo Sol se nega ao claro dia, Que às magoas só resiste, Quem tem por alma a fera tirania; E o Sol já eclisado, Da nossa dor se mostra magoado; Sepulta a flor mimosa, O prado de tristezas revestido, E demaiada a Rosa Do carmim troca em lutos o vestido; Que ouvir sospiros tantos, Até no insensível são quebrantos. Lastimado o Jacinto, Aos nossos os seus ais acompanhando, Com um ai, diz, já sinto, Vossa dor o meu peito penetrando; E o que às flores indina, Ao coração humano não inclina. Os trinados clarins, Que tocados aos orbes suspendiam, E com gloriosos fins, Só a Deus afinados aplaudiam, Quando presos nos vimos, Na terra alheia o pranto só ouvimos. Nossa fortuna ingrata, Quando o grilhão arrastra a liberdade, Mais afligir-nos trata, Porque dos generais a crueldade,

AVISO DEL ENTENDIMIENTO SONETO Despierten ya del sueño los sentidos, No vivas oh mortal tan descuidado, Que no ay hora segura, quando el hado, Los dexa de immortales desmentidos. Si los golpes miraste suspendidos, Hora le ado llegar de executados, Antecipe el dolor de bien llorados Remedios para el mal de inavertidos. No se burle de ti contrario el tiempo, Cuando en ti descarregue el braço fuerte, Por menos esperado, mas sensible; No creas a tu loco pensamiento, Si lexos representa de la muerte, Del acero fatal golpe infalible. (Orbe Celeste, p. 274)

PRANTO DOS CATIVOS HEBREUS sobre os Rios de Babilónia. À Margem desses Rios De Babilónia os Hebreus sentados, Choram os desvarios Da sorte, e dos sospiros já cansados, * Orbe Celeste. Brados do Desengano [...]. Reino da Babilónia. Os três últimos poemas apresentados figuram na selecção de MLGP, a partir de onde os transcrevo, com * como indicação. A Autora usou como pseudónimo anagramático: Leonarda Gil da Gama.

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Que contemos disseram, Com que os rios nas lágrimas creceram. Como triunfantes mandam, Que os Hinos de Sião doces cantemos, Com impiedade andam; Mas à cadeia atados, respondemos Como na alheia terra, Mais cantaremos que o qu’a dor encerra. Alegres da vitória, Mata, derruba, abrasa, vão dizendo, Dure só por memória A dor que no seu mal vão padecendo; Não deixe vossa espada Pedra, que não desfaça em pó, e em nada. Com acção arrogante Desprezando sospiros lastimados, Com que na dor constante Pedaços d’alma vimos separados, Os peitos nos resgavam, Quando os filhos dos braços nos tiravam. Dos cabelos levados Nas pedras as cabeças lhe partiam, E os corações quebrados Dos pais, porque valer-lhe não podiam, Ficava em pesar tanto, Partida a alma de escutar seu pranto. Ali a tirania No rigor apurando o sofrimento, O coragão partia Dos filhos, e mulher vendo o tormento, E dividida a alma, Não sei em tanta dor qual leva a palma. Mas ai, que a sorte trata, Seu favor dando ao bárbaro Caldeu, E em aliança grata Contra nos convocando ao Idumeu, Deixar na injusta guerra A Cidade, e seus muros posta em terra. De Babilónia os muros Vitoriosas adornem as bandeiras, Que se hoje aos golpes duros, Cativos nos vem já suas Ribeiras,

Lá chegará o dia, Que o Ceo castigue a bárbara ousadia. Quando trocada a sorte, Essas altivas máquinas desfaça De nossa espada o córte, E o seu pezar ao nosso satisfaça; Sintam como sentimos, Ver aos seus filhos, como os nossos vimos. Em ti Rei Soberano, Que em três dedos sustentas todo o Mundo, Neste rigor tirano Toda a esperança do remédio fundo, E no amargo desterro, Teu nome invoco ao som do duro ferro. (Orbe Celeste, p. 275-78)

DESENGANO DA AMBIÇÃO É o oiro perigo desejado, Quando mais possuido mais amado. ROMANCE Ó Tu que a essa escura estância baixas, Ó engano buscando idolatrado, Olha que se a ambição te doira a sombra, Hás-de na terra achar o teu retrato. Esses puros reflexos que te induzem, Da sorte a pertender o grande ornato, Se a ideia os facilita conseguidos, A eisperiência os encontra sempre infaustos. Se produções do Sol já te parecem, Nesse pálido cofre intezoirados, Olha que o que hoje luzes imaginas, Nada acharás, se queres apurá-lo. Olha mortal, que mente essa quimera, Que o desejo te está representando, Se o teu desvelo a julga de valia, Preso talvez será do desengano. Se para empobrecer da terra as minas De vidro vás pisando esse palácio, Olha que o vidro quebra, a mina engana, Sepulcro sendo à vida o Reino Opaco.

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Esse mentido humor da terra dura, Que adoram por deidade os teus cuidados, Filho do Sol se julga quando visto, Sendo da terra só vapor doirado. E que a vida se arrisque, a ambição cegue Em montanhas de escuma confiando, Sem ter para o perigo mais defença, Que o que a eisperiência no naufrágio! Que pelos desperdícios que produz A terra de teus mesmos pés pisados, Venças os sustos dessas crespas ondas, Que sorvem de madeira os montes altos! Que te fies do vento, quando é vento O tesoiro, que buscas desvelado, E se a ambição em pó o desfizer, Todo esse pó o vento há-de levá-lo! Que importa quando esteja o mar de rosas, Ver de Neptuno os reinos sossegados, Se do oiro hás-de achar mentida a essência, Nas vilezas da terra congelado? Que importa que hoje a terra desentranhe O Mundo dos vislumbres enganado, Se de vida não pode dar-te um dia, O que há-de dar-te tantos de trabalho? Que importa do desejo persuadido, Que cego estranhos rumbos vás buscando, Se para segurar tua fortuna, Não podes na sua roda pôr um cravo? Pois se a vida não dá, de que te serve Esse metal dos home[n]s celebrado, Que Idolo dos humanos pensamentos, O respeita a vontade como oráculo. Seja só pertendido aquele bem, Que na felicidade eternizado, Rico te há-de fazer de imensas glórias, Sem que o valor lhe tire o sobressalto. Olha que é afrontar o ser altivo, Que foi a empresas grandes destinado, Se podendo aspirar a uma coroa, Se contenta com ser do oiro vassalo, Repara, que até o Sol se ri de ti, Vendo-te nessa lida tão cansado,

Quando como se foram suas luzes, De uma pouca de terra fazes caso. Emende-se esse louco desvario, Suspiros só te deva o sólio sacro, Adonde são constantes as fortunas, Sem se lhe atrever nunca o tempo ousado. (Orbe Celeste, p. 279-81)

ZELOS, E AUSÊNCIA ROMANCE Solitárias asperezas, Endurecidos rochedos, Adonde dos meus suspiros Soam mais tristes os ecos. Humildes vales sombrios, Rios que correis ligeiros, Em quem da minha ventura Tão própria a inconstância veio. Campos de flor matizados, Que apesar do frio Inverno Chamas na Rosa ostentais, Desmaios no Amor-perfèito. Fonte que em cristal baxais, Fios de prata torcendo, Invejas dando aos sospiros, Que entre o pranto estão ardendo. Árvores a cujas folhas Estão sacudindo os ventos, Porque não chegue a abrasar-vos De meus ais o fogo intenso. Aves que o ar discorreis, No voo as asas batendo, E por vossas penas conta As minhas meu sentimento. Compadecidas ouvi De minha dor os eicessos, Mas em dizer que saudade, Digo o que posso dizer-vos.

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Quando na nuve escondeis. Que hoje a competir se atreva Sombra, e Sol é admiração, Ministrando a vossa mão A sombra, que ao Sol se eleva, No alto voo, que leva Encobrindo Astro maior, Desmente a nuve o vapor, Com que encobre em negro manto, Quando se remonta tanto, Dessa luz o resplendor.

Triste padeço, e ausente Os golpes dos meus receios Nas batalhas da distância, Nos desafios do tempo. Nas violências, do que choro, Dos alívios desespero, Que não adormece a queixa, Quando a desperta o disvelo. Esmoreceu a esperança Nas dilações do desejo, Pronosticando a ruína Frenético o pensamento. Se de meu mal, são sintomas, Mortais ausências, e zelos, Era o remédio esquecer-me, Se em mim ouvera esquecimento. Mas se faz no meu cuidado Operações o veneno, Viva de sentilo quem, Não morre de padecê-lo.

(Orbe Celeste, p. 299)

UMA CAVEIRA PINTADA EM UM PAINEL QUE FOI RETRATO Este que vês de sombras colorido E invejas deu na primavera às flores, Do pincel transformadas os primores Desengano horroroso é dos sentidos.

(Orbe Celeste, p. 297-98)

Ídolo foi do engano pertendido A que a cega ilusão votou louvores; Estrago é já do tempo e seus rigores O que então foi ao que é já reduzido.

A èA REBUÇADA FERMOSURA, consoantes forçados.

Foi um vão artifício do cuidado, Foi luz exposta ao combater do vento, Emprego dos perigos mal guardado;

MOTE Quando na nuve escondeis, Dessa luz o resplendor, Então com maior ardor, Ao Sol invejar fazeis.

Foi nácar reduzido ao macilento, O culto ali nos medos transformado, Mortalha a gala, a casa monumento.

GLOSA Se quer por afinte ao Sol A vossa luz ocultar-se, Porque cegue ao revelar-se, Patente ao belo arrebol, Seja esse manto crisol Do triunfo, que pertendeis, Negando a luz que deveis, Na sombra com que enganais, Se o resplendor ocultais,

(*Orbe Celeste, p. 264-265)

OITAVAS Já, Senhor, despertaram meus cuidados Em tanta ingratidão adormecidos; Nasceram a querer-vos destinados E em cega idolatria os vi perdidos. Vossa mesma fineza lhe deu brados

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Francisco de Pina Melo*

Por que a tanto favor agradecidos Confesse o coração com rendimento Que é de amor vosso amor doce sustento. Dos aparentes bens a prisão dura, Que o gosto cativavam com violência, Venceu a vossa luz a sombra escura Para maior vitória da clemência. Constante a minha fé vos assegura De Babilónia às leis a resistência, Que é certo pouco faz quem obedece, Se chegando a vos ver o mais lhe esquece.

2 FRAGILIDADE DO ALÍVIO Se me ponho quieto, & pensativo; Com memórias a idea fatigando, Sobra à Morte o andar escogitando Para acabar-me a vida, outro motivo.

Primeiro se verá da quarta esfera Apagado o monarca refulgente Que no palácio etéreo reverbera A luz que os montes doura no oriente, Que meu amor vos falte quando espera Que acendais vós com fogo o fogo ardente, Que o peito, que das chamas tem inveja, Um coração de chamas ter deseja.

Antes de tantas lástimas cativo, Por tantos casos míseros passando, Não sei como em meus males contemplando. De peso tão profundo escapo vivo. Só tenho algum alívio enquanto dura A quimera de um vago pensamento Que aéreas esperanças me assegura:

Venham formosos lírios, venham rosas, Maçãs e jasmins venham, que ferida Minha alma está das setas amorosas Que quanto mais me ferem me dão vida. Cubram-me de açucenas, que cheirosas Fragância vão inspirando à fé unida. Arda o peito no fogo em que suave Imite o coração a imortal ave.

Triste alívio! infeliz contentamento! Que para sustentar minha ventura, Não tem mais cabedal, que o fingimento. (Rimas, p. 2)

3 GLÓRIA INSTANTÂNEA, E FUGITIVA

(*Reino da Babilónia, p. 261-62)

Não fui eu, nem podia ser quem teve; Entre os braços o bem, que mais queria, Sem dúvida o desejo mo fingia Com alguma ilusão, ou sonho leve.

* As Rimas: Coimbra: 1717. Os últimos seis poemas, assinalados com *, são transcritos a partir da antologia de MLGP.

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Só pareceu que o tive em ser tão breve, Pois apenas cuidei, que o possuía, Quando em fumo subtil se desfazia, Como à vista do Sol o faz a neve.

Isto a tão temerária, escura empresa Que é evidente a fatal calamidade Bem que leve a subtil sagacidade A vista prompta? a prevenção acesa?

Que menos me diria a sorte escura, Que o trágico sucesso desta história, Sendo sempre em meus males tão segura,

Ora tenho entendido que imaginas Em deitar-me somente, onde não saia, Porque de todo veja esmorecer-me.

Ficou a perda enfim, fugiu a glória, De modo que nos longes da ventura. Se desfalece a vista da memória.

Pois escapar do mal para as ruínas, É desejar que suba, porque caia Em parte, que não possa nunca erguer-me. (Rimas, p. 3)

(Rimas, p. 5)

4 DÉBIL NATUREZA DA FELICIDADE

6 LOUCURA DO PENSAMENTO

Vendo Amor que esta fé, este Cuidado Nunca em seguir seu giro foi violento, Quis dar-lhe um prémio ao seu merecimento, Por se ver de u~a vez desempenhado.

Que intentos são os teus, ó pensamento, Para que, com tão doce simpatia, Arrebates a louca fantasia Ao mesmo resplandor do Firmamento?

Com um rosto divino, um doce agrado; Que era glória imortal do pensamento, Pagava o seu serviço, a cujo intento Tinha já posto manso o duro Fado.

Quebra a insana altivez de tanto alento, Que na altura esmorece a idolatria: Bem conheces que as asas da ousadia Movem sempre as tragédias do escarmento.

Desanda nisto a roda da ventura, E descompondo a fábrica da dita, Segue outra vez seu curso a infausta estrela.

Que oprimas, pois te peço esse alarido, Que ergue a idea, porque se não me engano, Cuido que certamente vás perdido.

Resta agora que intente a Sorte escura Que eu tenha dentro n’alma sempre escrita A mágoa, sem remédio de perdê-la.

E possa-te servir de desengano, Que as mesmas direcções do teu sentido São os mesmos caminhos do teu dano.

(Rimas, p. 4)

(Rimas, p. 6)

5 DESTINO DO DESPENHO

7 MAIOR TORMENTO DO ALÍVIO

Não bastava, ó Amor, teres-me presa; Com suave violência, a liberdade, Mas arrancar-me agora inda a vontade. Sem valer-me a justiça da defesa?

Pela sombra de um bosque se metia, Seguindo o giro de um inculto atalho; Fido, um triste pastor, sem que agasalho Tenha no desemparo, em que se via.

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Cada vez mais turbado discorria, Vendo sem esperança seu trabalho, Cuja história no tronco de um carvalho, Por ser o último bem, deixar queria.

Achaste outra vez prompto meu cuidado Lutamos, & venceste; louco hei sido: Se eu tantas vezes fui de ti vencido, Como inda te esperei no campo armado?

Já no tosco papel as letras grava A vacilante mão, quando arrebenta O pranto, com que a árvore regava.

Se livre me encontrar desta aventura, Eu te prometo, Amor, que a seta fina Não tenha aonde empregue o movimento.

Com as ágoas a planta mais se augmenta; E juntamente a dor, que aliviava No mesmo desafogo se acrecenta.

Temperem-se os incêndios da loucura; Que onde tem feito Calos a ruína, Não pode ter lugar o vencimento.

(Rimas, p. 7)

(Rimas, p. 11)

8 TRABALHOSA FADIGA DO ACERTO

13 ACÉRRIMA PORFIA DA TRISTEZA

Duvido de uma glória, & certifico Um estrago se a logro, & neste aperto, Desafogando o mal, não sei se acerto, Ou reprimindo o bem, se o fructifico.

Que me quereis tristezas? acabar-me? Pouca glória buscais ao vosso alento; Eu já ando de sorte em meu tormento, Que a Morte só podia consolar-me:

Só sei que nem comigo o comunico, Nem na minha alma o trago descoberto, Antes em outro espírito o converto, Antes com forma alhea o falsifico.

Vede vós que fazeis em maltratar-me? Quanto mais que este fraco vencimento Tomou por sua conta o pensamento, Pois ele tem jurado de matar-me.

Que hei-de fazer em tão extravagante Objecto, como agora me convida Amor, neste successo que me ordena?

Com que sem tempo vem, vossa porfia; E mais eu cuido que se frustra a empresa, Ou seja de outro, ou vossa a tirania;

Há mais infausta sorte! que um inflante Que hei-de ter uma glória em minha vida Há-de vir tão confusa com a pena?

Que é tão infausta a minha natureza, Que para nunca ter uma alegria, Nunca me há-de acabar uma tristeza.

(Rimas, p. 8)

(Rimas, p. 13)

11 SIMPATIA DE PRISÃO AMOROSA

15 ESQUISITA IDEA DO FADO

Quando cuidei que o vínculo pesado De teu jugo já tinha sacudido, Ó ímpio Amor, agora mais rendido A teu carro fatal me vejo atado.

Quando me ponho a ver minha tristeza; Cuido mil anos tem meu sentimento, E se olha para vós o pensamento, Sempre encontra maior vossa beleza

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E inda vai minha dor, & a natureza. Da vossa bizarria em crecimento: Com que se há cousa igual a meu tormento, Só pode ser a vossa gentileza.

Da Morte já triumfou a = fermosura, E sacudido o pó da cinza = fria Nega Amor (qu’este caso não = sabia) Que até gora a guardasse a campa = dura.

Em vez da temporal voracidade Gastar a perfeição, & a desventura, Augmenta a pena, estende a divindade.

Logo os votos antigos lhe E vexando da Morte a Continua o respeito a Ajoelhado no horror da

Ora veja o que o Fado conjectura? Quer fazer uma nova eternidade De meu mal, & da vossa fermosura.

= = = =

procura, tirania, idolatria, sepultura.

Duvidaram os homens, & as = idades, Cheas de assombro, de mistério, e = medo Se a urna está banhada em =divindades.

(Rimas, p. 15)

34 IDEAS VÃS DA FANTASIA

E inda que se murmure, esse Tem tal veneração, que as Nunca hão-de profanar o seu

Nunca cuidei suavíssimo Mondego, Depois de tanto mal, tanta ruína, Que essa líquida estampa cristalina Fosse já de meus olhos doce emprego.

= penedo = saudades = segredo. (Rimas, p. 80)

SOLILÓQUIO Já que o sol pouco a pouco se desmaia E meu mal cada vez mais de desvela, Enquanto a pena, a ânsia, a mágoa vela, Quero aqui estar sozinho nesta praia.

Mas enfim a bejar outra vez chego Este campo, esta area, esta divina Habitação: Ó pátria peregrina, Merecedora de imortal sossego.

Que bravo o mar se vê! Como se ensaia Na fúria e contra os ares se rebela! Como se enrola! Como se encapela! Parece quer sair da sua raia.

Ora vem-me este influxo respirando, Porque este mal, aonde me consumo; Deixe de ser, tão prompto em meu martírio. Mas que loucura estou imaginando? Tão cheo de esperanças me presumo, Que inda cuida em descanso o meu dilírio?

Mas também que inflexível, que constante Aquela penha está à força dura De tanto assalto e horror perseverante!

(Rimas, p. 34)

Ó empolado mar, penha segura, Sois a imagem mais própria e semelhante De meu fado e da minha desventura.

80 À RAINHA D. INÊS DE CASTRO Sendo desenterrada pelo Príncipe D. Pedro.

(*Rimas, p. 41)

Usa-se dos consoantes de um Soneto que fez o Bacelar à morte de D. M. de Atayde

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MONTANHA DESABITADA

A UM BERÇO COM O FEITIO DE UMA TUMBA

Horrendo monte aonde só parece Que enigmas guarda a imagem do futuro, Em cujo infausto seio sempre escuro Nem tronco nem arbusto reverdece;

Já é túmulo o berço, já tristeza O que foi alegria; escuro norte Segue a luz e na câmara da morte Buscam os pulsos a vital proeza.

Governa a sombra, a luz desaparece, Não logram pomo as árvores maduro, E o bosque triste, cada vez mais duro, Tanto mais nos invernos se encanece.

Já na casa da Parca a fortaleza Dos alentos se expõe; já passaporte Da morte traz a vida, e desta sorte Se vão mudando as leis da natureza.

Tudo assombra a medonha soledade, Mal respira o enleio, abafa o engano Que fomenta o verdor da mocidade.

Não se admire ninguém. Traça subida Foi de supremo, angélico conceito Que altamente nos ânimos retumba;

Ó sitio de algum Nume soberano! De cada penha sai uma verdade, De cada tronco pende um desengano.

Porque, se tão depressa passa a vida, Quem pode duvidar que um próprio leito Pode vir a ser berço e mais ser tumba?

(*Rimas, p. 74)

(*Rimas, p. 78)

DA NOITE Deita, ó noite funesta, o negro manto, Pela aérea e terrena arquitectura, E influa de teu rosto a pompa escura Nos medrosos mortais confuso espanto. Do sepultado Febo ao fogo santo Receba o pardo círio a chama impura, E expulse a imagem da mortal figura O mal sofrido horror do eterno pranto. Infunda, pois, teu rosto entristecido Silêncio infausto em toda a redondeza, Desperta a treva, o lume adormecido. Alegre eu só, que é tal a natureza De um tão triste, infeliz como afligido, Que descansa entre as sombras da tristeza. (*Rimas, p. 50)

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BERNARDA FERREIRA

Outros Poetas*

(Da Senhora Dona Bernarda Ferreira) Si puede aver desdichas venturosas. Si lastimas que muevan a contento, Si en males bienes, glorias en tormento, Y gracia en las desgracias más penosas,

LEONARDA DA ENCARNAÇÃO

(Senhora Leonarda da Encarnação, freira professa do Rosário)

Aqui, Lauso, entre penas amorosas De tantas maravillas sois portento, Immortal Silvia, vos de muerte esento, Ellas por vos sin in tambien famosas.

Si las penas suspendia La Lira del Tracio Amante, Y las puertas de diamante A fuerça abrió de armonia; Vuestra dulce melodia Le avrá de llevar la palma, Pues con la sabrosa calma, Que en el alma introduzis, Las puertas del alma abris, Parais las penas del alma.

Cantando excessos de vo amor eterno Vencido aveis de Eurydice el Amante, Y al músico Anfion com altas palmas. Que si uno suspender pudo el Infierno, Vos a hazer cielo el Tajo sois bastante, Si otro movió las piedras, vos las almas.

FRANCISCO DIAS DE GUSMÃO

L’admiracion del poderoso objeto Fabrica de la mano poderosa Cantas en dulce Lira armoniosa Eterna suspencion, divino affecto. Admirable lo bello, y lo perfeto, Dudosa queda la election, dudosa, Si iguala tanto ardor la causa hermosa, O si al ardor supera el gran sujeto. Si bien son respetosos los recelos (Emulas de si mismas tus querellas) Igualan a la causa los desuelos. Iguales vivireis, ó acciones bellas En lamina diuina de los Cielos En caracteres lucidos de estrellas. * In Paulo Gonçalvez de Andrade, Várias Rimas.[Sem paginação].

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Labirinto Cúbico que donde quer, que se lea sempre se há-de achar

Poesia Visual*

MARIA THEREZA DE ÁUSTRIA

Labirinto de Letras Labirinto intrincado, que principiando do meio sempre se lerá EU SOU O MAIS EMPENHADO

– “Oraçam Académica y Panegyria...”

– Frei Francisco da Cunha: Oraçam Académica e Panegyria, História e Enconiástica, Prefano-Sacra. Lisboa: Off.Alvarense, 1747.

* In Ana Hatherly. A Experiência do Prodígio: [...]. Lisboa: INCM, 1983, figs. 4, 19, 24, 30 e 39, respectivamente.

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LABERINTO CÚBICO Que principiando pelo P se lê para todas as partes, se acha sempre este pareádo.

Labirinto de Versos

– Gregório de Matos, Obras. II. R. de Janeiro, 1923.

– Anónimo, Século XVIII (?). Vol. 664. N.º 10497. BNUC.

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Acróstico

– João de Torres Pereira, séc. XVIII. Vol.669. Fl. 10759. BGUC.

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BIBLIOGRAFIA S U M Á R I A

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Bibliografia

Gregório de Matos Matos (Guerra), Gregório de. Obras. Vol. I e II. Rio de Janeiro: Álvaro Pinto Ed., 1923.

TEXTOS LITERÁRIOS

Manuel Botelho de Oliveira Música do Parnaso. Lisboa: na Officina de Miguel Manescal, 1705.

Obras individuais e/ou outras Fontes Sóror Maria do Céu Obras Várias e Admiráveis. Lisboa, na Officina de Manuel Fernandes da Costa, 1735.

D. Francisco Manuel de Melo Obras Métricas. Mendes dos Remédios. Coimbra: 188?.

Enganos do Bosque, Desenganos do Rio. I e II Partes. Lisboa: na Officina de António Isidoro da Fonseca, 1741.

1ª edição: Obras Metricas. En Leon de Francia, por Horácio Boessat y George Remeus, 1665.

Fénix Renascida, V.

1ª edição: I Parte: 1736.

Poemas [Cantigas] em: A Preciosa de Sóror Maria do Céu. Edição actualizada do códice 3773 da Biblioteca Nacional precedida dum estudo histórico. Edicão Crítica de Ana Hatherly. Lisboa: INIC, 1990.

Frei Jerónimo Baía Fénix Renascida, I - IV. “A umas Beatas”. In O Ladrão Cristalino: Aspectos do Imaginário Barroco. Lisboa: Cosmos, 1997, p. 166-170. “Lampadário de cristal”. In Lampadário de Cristal. Apresentação crítica, fixação do texto, notas, glossário e roteiro de leitura de Ana Hatherly. Lisboa: Comunicação, 1992.

1ª edição: Lisboa, na oficina de Manuel Fernandes da Costa, 1731.

Tomás Pinto Brandão Pinto Renascido Empenado e Desempenado. Lisboa: na Officina de Pedro Ferreira, 1732.

André Nunes da Silva Poesias Sacras e Profanas, 1671. Hecatombe Sacra, 1686. Poesias Várias. Lisboa: por Domingos Carneiro, 1671.

Francisco de Vasconcelos Coutinho Hecatombe Métrico. Lisboa: na Officina de Pedro Ferreira, 1729. Fénix, II e III. Sóror Madalena da Glória (pseudónimo anagramático: Leonarda Gil da Gama) Orbe Celeste. Leonarda Gil da Gama. Lisboa: Off. de Pedro Ferreira, 1742. Reino de Babilónia Ganhado pelas Armas do Empíreo. Lisboa: na Officina de Pedro Ferreira, 1749. Brados do Desengano contra o Profundo Sono do Esquecimento. Lisboa: na Officina de Domingos Rodrigues, 1749. I Parte.

António da Fonseca Soares/Frei António das Chagas Carta Escrita a um Amigo seu depois de ser Religioso. Lisboa: na Officina da Música de Teotónio Antunes, 1738. Fugida para o Deserto e Desengano do Mundo. Lisboa, por Pedro Ferreira, 1756. Fénix Renascida, II, III,V.

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– Tomás Pinto Brandão (todos os poemas) – Francisco de Vasconcelos Coutinho (10 poemas) – Madalena da Glória (3 poemas) – Francisco de Pina e Melo (6 poemas)

Francisco de Pina e Melo As Rimas: Primeira e Segunda Parte. Coimbra: na Off. de Joseph Antunes da Sylva, 1717. Leonarda da Encarnação Francisco Dias de Gusmão D. Bernarda Ferreira [de Lacerda]

Se Souberas Falar também Falaras. Org., sel., estudo e notas de Gilberto Mendonça Teles. Lisboa: INCM, 1989. Para todos os poemas de Gregório de Matos.

In: Paulo Gonçalvez de Andrada. Várias Poesias. Offerecidas a Francisco de Faria Severim [...]. Em Coimbra, com todas as licenças necessárias, na Off. de Manoel Dias, Impressor da Universidade, anno, 1658 [sem paginação nas páginas prévias aos seus próprios poemas].

Ana Hatherley. A Experiência do Prodígio. Bases Teóricas e Antologia de Textos Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII. Lisboa: INCM, 1983. Para todos os poemas visuais.

Poemas Visuais

ESTUDOS SOBRE CADA UM DOS POETAS

Frei Francisco da Cunha. Oraçam Académica e panegyrica, História e Encomiástica, Profano-Sacra. Lisboa: na Off. Alvarense, 1743.

Jerónimo Baía Castro, Ivo José de. “Frei Jerónimo Baía: Edição crítica de seis poemas e estudo do vocabulário”. Diss. Licenciatura [dact.]. FLUL, 1969.

Anónimo (Século XVIII?). Vol. 664. Nº 10497. BNUC.

——. “Jerónimo Baía”. In Revista da Faculdade de Letras de Lisboa (13).

Gregório de Matos. Obras, II. Rio de Janeiro: 1923.

——. “Contribuição para a bibliografia de Frei Jerónimo Baía”. In Claro-Escuro I, 1988, p. 93-107.

João de Torres Pereira. (Século XVIII.) Vol. 669, fl. 10759. BGUC.

Cerdan, Francis. «Un imitateur portugais de Góngora: Frei Jerónimo Bahía». In Sillages (2), Univ. Poitiers, 1973, p. 7-43.

Antologias utilizadas: * Poetas do Período Barroco. Apresentação crítica, sel., notas e sugestões para análise literária de Maria Lucília Gonçalves Pires. Lisboa: Comunicação, 1985. Para alguns (ou todos os) poemas de: – Jerónimo Baía (4 poemas) – André Nunes da Silva (todos os poemas) – António da Fonseca Soares/Frei António das Chagas (todos os poemas) – Manuel Botelho de Oliveira (todos os poemas) – Sóror Maria do Céu (todos, excepto os incluídos em A Preciosa)

Hatherly, Ana. «A propósito do romance “Umas Beatas”, de Jerónimo Bahía». In Estudos Universitários de Língua Portuguesa: Homenagem ao Prof. Leodegário Mariano Filho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, p. 459-472. ——. «Manhas e artimanhas barrocas. A propósito do Romance “A umas beatas” de Jerónimo Baía». In O Ladrão Cristalino, 1993; Lisboa: Cosmos, 1997, p. 161-165.

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——.“Apresentação crítica”. Lampadário de Cristal, de Frei Jerónimo Baía. Apresentação crítica, fixação do texto, notas, glossário e roteiro de leitura de Ana Hatherly. Lisboa: Comunicação, 1992.

Gomes, José Carlos Teixeira. Gregório de Matos. O Boca de Brasa: um Estudo de Plágio e Criação Intertextual. Salvador, Baía: 1985. Peres, Fernando da Rocha. Gregório de Matos. Uma Revista Biográfica. Salvador: 1983.

Lund, Christopher. “Frei Jerónimo Bahía and the semantics of Wit”. In Arquivos do Centro Cultural Português (XXXI). Lisboa / Paris: FC Gulbenkian, 1985, p. 399-438.

Hatherly, Ana. “Petrarquismo e antipetrarquismo na poesia de Gregório de Matos”. In Poesia Incurável: Aspectos da Sensibilidade Barroca. Lisboa: Estampa, 2003, p.195-209.

Santos, Zulmira. “Entrada” do Dicionário de Literatura Portuguesa. Org. e dir. Álvaro Manuel Machado. Lisboa: Presença, 1996.

Pólvora, Hélio. Para Conhecer Melhor Gregório de Matos. Rio de Janeiro: 1974.

António da Fonseca Soares/Frei António das Chagas

Peres, Fernando da Rocha. “Gregório de Matos e Guerra: os apógrafos em Portugal”. In Ocidente, 77 (377), Set. 1969.

Belchior Pontes, Maria de Lourdes. Bibliografia de António da Fonseca Soares. Lisboa: 1950.

—— Gregório de Matos: uma Re-Visão Biográfica. Salvador: 1983.

—— Fr. António das Chagas: um Homem e um Estilo do Século XVII. Lisboa: 1953.

Spina, Segismundo. Gregório de Matos. São Paulo: 1946.

Ricard, Robert. Études sur l’histoire morale réligieuse du Portugal. Paris : 1970.

—— “Gregório de Matos”. In A Literatura no Brasil. Dir.Afrânio Coutinho. 2ª ed.;Vol. I. Rio de Janeiro: Ed. Sul Americana, 1968, p. 244-254.

Rocha,Andrée Crabbé. A Epistolografia em Portugal. Lisboa: 1985.

Araripe, Tristão de. “Gregório de Matos”. In Obra Crítica. Vol. II. Rio de Janeiro: 1960, p. 383-490.

Teles, Gilberto Mendonça.”Estudos”. Se Souberas Falar também Falaras: Antologia Poética. Org., sel., estudos e notas de Gilberto Mendonça Teles. Lisboa: INCM, 1989.

Barquín, Maria del Cármen. Gregório de Matos. México: 1946.

Wilson, Martins. História da Inteligência Brasileira. São Paulo: 1976.

Coutinho, Afrânio. A Literatura no Brasil. Vol. I, Rio de Janeiro: 1968.

Manuel Botelho de Oliveira

Gregório de Matos

Almeida, Carmelina. O Marinismo em Botelho. Salvador; Baía: 1975.

Dias, Ângela. O Resgate da Dissonância. Sátira e Projecto Literário Brasileiro. Rio de Janeiro: 1981.

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Castelo, José Aderaldo. Manifestações Literárias da Era Colonial. São Paulo: 1962.

Sóror Madalena da Glór ia (pseudónimo anagramático: Leonarda Gil da Gama)

Nascentes, Antenor. “Prefácio”. M. Botelho de Oliveira. Música do Parnaso. 2 vols. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1953.

Remédios, Mendes dos. “Prefácio”. Escritoras doutros Tempos. Coimbra: França Amado Ed., 1914. Francisco de Pina e Melo

Gomes, Eugénio. “O mito do ufanismo: Botelho de Oliveira”. In A Literatura no Brasil. 2.ª ed.; Vol. I; Rio de Janeiro: Ed. Sul Americana, 1968, p. 255-276.

Coelho, Jacinto do Prado. “A musa negra de Pina e Melo e as or igens do pré-romantismo português”. In Separata de Memórias (Classe de Letras, tomo VII). Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1959.

Ribeiro, J.R.I. “Música do Parnaso e a Poesia Latina de Manuel Botelho de Oliveira”. Diss. Assis, S. Paulo, 1990.

SOBRE POESIA VISUAL:

Sóror Maria do Céu

Hatherly, Ana. A Experiência do Prodígio: Bases Teóricas e Antologia de Textos-Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII. Lisboa: INCM, 1983.

Belo, Filomena. Rellação da Vida e Morte da Serva de Deos a Veneravel Madre Elenna da Crus por Sóror Maria do Céu. Transcrição do Códice 87 da Biblioteca Nacional. Precedida por um Estudo Histórico. Lisboa: Quimera, 1993. Remédios, Mendes dos. “Prefácio”. Escritoras doutros Tempos. Coimbra: França Amado ed., 1914. Tomás Pinto Brandão Palma-Ferreira, João. “Prefácio” a Tomás Pinto Brandão. Este é o Bom Governo de Portugal. Lisboa: Publicações Europa-América, 1976. Reimpr.: Obscuros e Marginados. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1980. ---------------------------------------- Do Pícaro na Literatura Portuguesa. Lisboa: 1981. Francisco de Vasconcelos (Coutinho) Mourão-Ferreira, David. “Nota sobre Francisco deVasconcelos”. In Hospital das Letras. 1966; Lisboa: INCM, s.d. [1981], 45-50.

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